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Estado, atores politicos e governanca Eduardo Marques Esto artigo apresenta ¢ discute elementos assaciados A utilizagao do conceito de governanga urbana em estudos sobre politica politicas pdblicas em cidades. As politicas péblices séo atravessedas por conexdes entre diversos atores, estatais e ndo estatais, cruzando fronteiras or- rizacionais e influenciadas por diveras instituigSes. Essas interagdes ‘envolvem confltos, interesses, ideias e desigualdades de recursos poli- ticos, Embora esses elementos sejam quase indiscutiveis na literatura internacional, @ mesmo nacional que trata de polticas pubicas, tém pequena influéncia nos estudos urbanos latino-americanos. Introduzir um quadro conceitual que pormita incorporartais elementos. 20 estudo de polticas ¢ politica urbanas é 0 objetivo deste artigo. Acredito ‘que 0 concelto de gavernanga pode ajudar a preencher essa lacuna. A governanga, no entanto, tem significades diferentes (RHODES, 1996; STOKER, 1998), e 6 mesmo possivel afirmar que alguns autores esperem do termo mais do que um conceito pode entrega: (KOOIMAN et al., 2008). Na América Latina, governanga tem circulado com significados bastante diverses, alguns deles fruto de uma incorporago acritica da divulgagdo internacional do conceito, 0 que resulta em uma substancial cacofonia. Neste artigo, pretendo contribuir para 2 construgéo de uma def nigdo anatitica de governanga que amplie 0 faco de estudos de polticas no Brasil para além do governo e. ao mesmo tempo, integre o estudo da poiftica (politics) com 0 das politicas (policies), especificanda os elementos sob investigagao ao invés de apenas nomeé-los. Conceituo governanga como os padres de relagao entre atores estatais ¢ nfo estatais, conectados por relagdes formais € informais, tegais e ilegais, no interior de ambientes institucionais especificos e fortemente infiuen- ciados pelos legados politicos e de politicas de cada setor de politica piblica, Definido dessa forma, 0 conceito deixa em aberto a possibili- dade de varias configuragdes de poder e resultados politicos diversos, mas também evita pontos de vista normatives que estabelegam previa- ‘mente 0s resultados a encontrar nas andlises. Artes-de realizar esse esforgo de construgéo conceitual, entre: tanto, 6 necessario sistematizar os pontos de vista que a meu ver tém ficado implicitos no debate, discutindo crticamente os principais uses do ~conceito governanga no Brasil. Assim, defino e debato na seco seguinte © que denomino as seis fiogdes presentes nos debates brasileros, para apresentar em seguida um conceito alternative de governanca. Na toroeita seeao, discuto os principais elementos a incorporar a0 estudo de padrées de governanga em cidades brasileres. A concluséo, por fim, sumariza as principais afirmagées do artigo, Os usos de governanca 0 termo governanga tem sido usado com significados muito dife- Tentes, mas no pretendo discutir detalhadamente essas definigdes, tarefa jé realizada em detalhes por outros autores (RHODES, 1996, STOKER, 1998), Por vezes, a pelavra foi utiizada penas coma uma ‘metéfora para governo (WILSON, 2000; WILSON et al., 2011), Em muitos outros casos, o conceit designava 0 governo em politicas com forte inter: dependéncie; tals como questées metropolitanas ou gestéo da égua, com diferentes énfases na participagdo social JACOBI, 2005; ABERS; KECK, 2009), Em geral, porém, € possivel dizer que a ideia de governanca, no Brasil, esteve essociada a duas formas de organizar o governo, levando a dois diferentes conjuntos de resultados, discutidos a seguir, Gestao puiblica, redugao do Estado e integragdo de atores privados Neste caso, o termo governanga surgiu na década de 1990 para Gesignar um processo especifico de elaboragao de politicas com clara associagao com a reforma do Estado - Estado minimo ¢ gestao publica erencial. A construgao do conceito, nesse caso, partiu de um diage néstico sobre as falhas do Estado na promagao do desenvolvimento {econdmico), levando a um receitudrio do que seria necessdrio cons- truir a fim de reformé-lo, permitindo melhores politicas com menos governo. Ao longo do tempo, entretanto, o receitudrio do que fazer sendo transformado. Muitas foram as linhas que levaram a esse ponto de viste da gover nanga permeada por uma visdo negativa do Estado influenciada pela Nova Gesto Publica. Dentre elas, devo listar a crise das grandes econo- mmias ocidentais nos anos 1970, @ busca por uma maior eficiéncia, @ introdugao da concorréncia com empresas privadas € Importagao «le ferramentas de esto do setor privado para a gestao publica, Tal viséio permeou grande parte das polticas promovidas por governos @ entidadles multilateriais para o chamado Sul global (BANCO MUNDIAL, 1989; OCDE, 1995). Apés alguns anos e depois de diversas refornas mal sucedicias, entretanto, ficou evidente que a prescrigéo neoliberal centrada apenas na redugao do Estado nao seria suficiente para promover o desenvotvi- mento (MOORE, 1993). Desenvoveu-se entdo uma segunda geracdo dessa mesma litera ‘ura, centrada em novas fungdes do Estado, especialmente as decicadas a regulagao, Essa agenda ecoava os debates do neoinstitucionalismo na economia, 08 quais associavam os niveis de desenvolvimento econdmico as instituigdes presentes em um certo pais (NORTH, 1990}. Segundo essa geragdo de estudos propositivos sobre o Estado, ao invés de reduzi-lo seria necessério reformulé-lo para separar suas capacilades de regulador das jé antigas atividades ligadas & promogao direta do desenvolvimento. O rece tuério inolufa a criagdo de novas agéncias para a regulaggo e a promocée da produgao privada de bens piblicos, bem comio a construgao de estru- turas de incentivos, com uma intensidade tao grande que autores como Raco (2013) sustentaram a construgdo de um “capitatismo regulatério” ras politicas urbanas no caos inglés. Dentre os promotores dessa viséio encontram-se de forma destacade os governos briténcio € norte-amert cano, mas também orgenizagdes multiaterais, especialmente 0 Banco Mundial e a OCDE (OCDE, 1995). Na década de 1980, essas organizaches promoveram poiticas de ajuste estrutural em paises pobres e em desen- volvimento, mes ignoraram os contextos e as condicdes politics ocais. As falhas dessa gerado de polticas leveram a intensas criticas contra essas organizagbes (externas @ internas @ elas), ¢a geragao subse ‘quente de poiiticas integrou, 20 menos parciaimente, dinamicas policas locais e instituigdes. Como resultado, temas como comupeao, construcao institucional, produgdio de consensos e cooperagio. prestagao de contas, legitimidade e sustentabilidade eftraram fortemente na agenda dessas instituigdes desde os anos 1990 (MOORE, 1993). Nas palavras do préprio Banco Mundial: “A Africa precisa no apenas de menos governo, mas de um governo melhor [.J” (WORLD BANK, 1989, p 5.) 'No caso brasileiro, as discusses locais sobre reforma do Estado foram intensas, mas datadas nas administragdes de Femanda Henrique Cardoso, nos anos 1990. Segundo os debates ento desenvolvidos, se goemenge 183 & governablidade e govemanga deveriam ser mantides separados € entendidos como duas capacidades diferentes deservoWvidas no interior dos sistemas politicos. A governabilidade remeteria as condigdes que garantem a deciso em politicas pUblicas, enquanto a governanga Geveria ser entendida como as “condigdes financeiras e administratives que 0 governo tem para transformer em realidede as decisées que toma” (BRESSER PEREIRA, 1997, p 7), ou “a capacidade de p6r em prética as, decisdes dos governos” (BRESSER PEREIRA, 1997, p.-18). A proposta ineluie a redefinigao das fronteiras do Estado, com éreas exclusivas para @ sua ago, e outras que deveriam ser concedidas ou prvatizadas. As pol ticas ureanas ocuparam um lugar de destaque nessa agenda baseada fem desresponsabilizagao do nivel federal e criagao de incentivos para Drivatizagao a ou a concessao de polticas como transportes, habite¢éo, saneamento e limpeza urbana. Essa reforma chegou a aprovar legisla: gées estratégicas para suas propostas, como e reletiva as organizagoes sociais, mas néo avangou na sua implementaco, até mesmo de acordo com o seu préprio formulador (BRESSER PEREIRA, 200%) ‘A reforma partiu do pressuposto de que o Estado poderia operar fora do sistema politico, ou mesmo da politica. Com excegéo dos estudos sobre as agéncias reguladoras, essa linha de andlse quase desapareceu desde a década de 2000, principaimente apés o inicio das governos Lula. Embora autores como Boschi (2003), Diniz (2003), Azevedo (2000) ¢ Azevedo e Mares Guia (2000) tenham produzido andlises sobre a reforma do Estado compativeis com uma compreensao mais densa da produgao de poltticas, a maior parte dos debates entéo desenvolvidos apenas defendeu es polticas tederais entdo em implementacao (ARAUIO, 2002), Avolovidade do declnio da reforma do Estado em debates académicos revela 0 quanto @ agenda de pesquisa no Brasil 6 orientada por conjun- tures e debates politicos, ao invés de por problemas de investigacao, 0 ‘Que torna o acimulo de conhecimento de longo prazo uma tarefa cffel Governanga Democratica / Participacao Social Para outra parte significativa da literatura nacional ¢ latino-ameri- cana, 0 conceito de governanga esta ligado &s questBes de participaggo Social, democracta, controle social e movimentos sociais em varias reas de politicas. De certa forma, a governanca ocupa aqui o mesmo Papel que a ideia de “poder local” ocupou nos debates desenvolvidos na década de 1980, mesolando descentralizagao, democratizacao e partic ago em nivel local. Em termos empiricos, essa literatura concentra-se na recente ctiagdo de instituigdes participativas. no bojo da redemocratizagao brasileira, incluindo a criagao de Consethos de politicas publicas, Orca: imentos participativos e Conferéncias nacionais (CARDOSO; VALLE, 2000: SANTOS, 2002). Por vezes, elas foram vistas como espagos ce demo- cracia deliberativa, mas também foram consideradas por outros como arenas neocorporativistas (CORTES; GUGLIANO, 2010). A maior parte dessa produgao nao especifica 0 conceito de gover nanga com o qual esté trabalhando, embora a maioria dos textos sugira que a definigdo inclui certos resultados do governo, como maior accoun- ‘ability dos governantes, reconhecimento de direitos e participagao no processo de decisao, Tal como acontece na literatura anterior, o Estado é visto com descontianga, mas nesse caso por ser consideradlo como uma fonte de controle e tutela, 0 que poderia ser atenuado pelo desenvoivi mento do controle social € da participacéo institucionalizada, Também deforma semelhante & perspectiva anterior, o termo governanga s6 pode ser aplicado quando o proceso politico contém determinacios elementos ou leva a certos resultados. Mas, enquanto a literatura anterior estava interessada nas mudengas-do-desenho institucional que conduzenr 2 eficiéncia, essa linha de argumentagao esta interessada nas mudancas, ‘que aumentam o controle social Embora haja excegdes, a maior parte dessa produgao nao leva em conta satisfatoriamente as intensas transformagdes politicas ¢ instituclo nals desde a redemocratizacao, com excegao, obviamente, do aumento a participagao social e algumes referéncias ao federalismo. A conse quéncia 6 que essa literatura incorporou apenas perifericamente dois elementos centrais para 0 funcionamento da politica e das politicas no ‘momento atual ~ a importéncia das dinémices eleitoriais e dos partidos =, € 88 especificidades das recentes reformas das pollticas puiblicas Esses problemas s80 causados, oo menos em parte, pela tematizagao da participagdo © dos movimentos soviais pelo ngulo da autonomia, coma se mobilizagdes ndo fossem construidas dentro de redes que os conectam a outros atores sociais (incluindo estatais), e como se suas demandes no fossem construidas socielmente em constante didlogo com os enquadramentos politicos @ com os conjuntos de direitos ¢ poli ticas consolidedas em (¢ por) instituigSes politicas, Para sermos completamente preciso, & necessério efirmar que uma parte da literatura mais recente sobre os movimentos socials, diferen- temente, parte do conceito neoinstitucional de encaixe para trazer para co, lores polos e eovemanga 185

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