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discurso (28), 1997; 127-143 O Suicidio segundo Arthur Schopenhauer Jean-Yves Béziau* Resumo! Neste artigo examinamos a concepgi filosGfica do suicfdio em Schopenhauer. Mos- tramos que a razio fundamental pela qual Schopenhauer rejeita © suicidio esta intimamente ligada ao fundamento da swa metafisica, Explicamos suas diferengas face as rejeigGes tradi- cionais do suieidio, visto que Schopenhauer considera o suicidio um erro mas ndo um crime, © quais sfio 0s casos nos quais 0 suicidio pode ser accito. Palavras-chave: Schopenhauer — suicfdio em meméria de Sarah Kofman I. O suicfdio como problema metafisico fundamental Geralmente o suicidio é concebido como um fenémeno psicolégico € tratado como tal, Schopenhauer aborda esta questdo enquanto fildsofo. To bem quanto ele, ninguém soube, gragas a um sistema filoséfico, dar conta e explicar até mesmo os pequenos problemas da vida cotidiana. Cada pormenor, encarado sob a luz de sua teoria geral, ganha sentido. Mas, de fato, seria possivel dizer que para esse fildsofo nao ha algo as- sim como pequenas questdes e grandes coneeitos. A andlise do menor * Pesquisador doutor do Laboratério Nacional de Computagao Cientifica — CNPq. 128 Béviau, J.-Y., discurso (28), 1997; 127-143 problema da acesso ao préprio coragdo do mundo como vontade e como, representagdo. O suicidio, mais que qualquer outro. A questio do suicidio concerne diretamente Aquilo que, sendo fundamental, esté em jogo na filosofia schopenhaueriana. Com efeito, a vontade deve negar-se — é ai que reside o bem absoluto. E preciso, entre- tanto, ndo confundir a negagio da Vontade, obtida pela via do ascetismo, com a hegagao iluséria, que de modo algum atinge a Vontade ¢, mais que isso, pde entrave & possibilidade da negagao. Ao se estudar o tema do sui- cidio em Schopenhauer, portanto, mergulha-se diretamente neste inex- tricdvel quadro fantasmagérico do mundo que tao bem ele soube compo! ha que se debater, as im, Com os mais profundos enigmas de sua filosofia. IL. O suicidio, afirmagio por auto-supressio Porque ndo € posstvel deixar de querer é que se deixa de viver O suicid6filo se dé a morte. Logo, seria possivel pensar que ele quer morrer e que, conseqiientemente, nao lhe apetece viver. Nada mais falso que esse racioeinio, pois “aquele que se dé a morte quereria viver” (Schopenhauer 1, p. 499). Mas por que ele se dd a morte? E que esta insatisfeito com sua vida, a que nao lhe permite realizar seus desejos, consumar sua vontade, viver como bem Ihe apetecesse, ou seja, viver realmente: “Nao estd descontente senfio com as condigées nas quais s vida fracassou [...] quereria a vida, quereria que sua vontade existisse & se afirmasse sem obstéculo” (id., ibid.). Parece paradoxal afirmar seu desejo de viver, sua vontade, negando sua vida; mal se vé como isso poderia parecer uma solugdo, nao fosse aos olhos de um insensato. Seria possivel pensar que, para afirmar sua vonta- de, mesmo a vida mais mediocre seria um meio melhor do que a morte. E que 0 suiciddfilo tem uma outra idéia da morte, que nao é a de um nada total. Sabe no fundo de si mesmo que, enquanto individuo, & apenas um péziau, J.~Y., discurso (28), 1997: 127-143 129 fenémeno, uma objetivagio do querer-viver'! e que “a Vontade no care- cera jamais de fendmenos” (Schopenhauer |, p. 500). O querer-viver se objetiva para se afirmar; logo, se tal afirmagao se acha molestada por mas condigées, a tinica maneira de continuar a se afirmar e de negar este fe- némeno particular e pouco vidvel é que “a vontade se afirme no suicidio pela supressdo mesma do fendmeno, pois ela ja nao pode se afirmar de outra maneira” (id., ibid., p. 500-1), Contradigado do querer-viver consigo mesmo De certo modo, 0 suicfdio é uma autodestruigdo da vontade, e Schopenhauer o vincula & luta césmica da Vontade consigo mesma. O sui- cidio representaria 0 apogeu dessa luta. Por que a vontade entra em luta consigo mesma? Ao se objetivar, a Vontade se faz miltipla, e cada objetivagao parti- cular se afirma negando as demais; tal afirmagao é levada ao maximo, até © ponto de equilfbrio para além do qual 0 mundo ja nao seria possfvel. Havemo-nos com o pior dos mundos possfveis, o mundo dos fenémenos € uma luta incessante dos fenémenos entre si. De um ponto de vista geral, a Vontade, ao se objetivar, declara guer- ra a si mesma: “Gragas A individuagdo, ela pOe a luz essa hostilidade in- terior que traz em sua esséncia [...] em sua prépria carne crava os seus dentes, sem enxergar que é a si mesma que dilacera, [...] 0 carrasco ea Vitima sio um s6” (id., ibid., p. 446). Portanto, 0 suicfdio seria o reflexo, €m um individuo, desse grande combate césmico-fenomenal. O paralelo Nao € verdadeiramente convincente, pois, se no Ambito geral “a vontade, Nao encontrando absolutamente nada fora de si no mundo dos fenédmenos €sendo uma vontade faminta, deve devorar sua propria carne” (idem 2, Pp. 175), por sua vez, de modo algum o individuo é obrigado a nutrir-se de Si mesmo, O suicidio é, antes, uma contradigdo entre a vontade como fe- homeno e a vontade como coisa-em-si, o que leva a crer numa luta intra- fenomenal aparecendo como a negagiio de um fendmeno por si mesmo.

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