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Revista de Economia Politica, vol. 15, n® 2 (58), abril-junho/95 A invencao do subdesenvolvimento’ CELSO FURTADO E quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas préprias potencialidades, quando se empenha em enriquecer 0 universo de que participa, que cabe falar de desenvolvimento, 0 qual somentese efetiva quando aacumulagiio conduz a criagdo de valores que se difundem na coletividade. A cigncia do desenvolvimento preocupa-se com dois processos de criatividade. O primeiro diz respeito & técnica, ao empenho do homem de dotar-se de instrumentos, de aumentar sua capacidade de aco. O segundo refere-se ao significado de sua atividade, aos valores com que o homem enriquece seu patrim6nio existencial. Nada é mais caracteristico da civilizagao industrial do que a canalizagio privilegiada da capacidade inventiva humana para a criagdo de técnicas, ou seja, para abrir novos caminhos ao processo de acumulag&o, o que explica sua formidavel forca expansiva, E também explica por que, no estudo do desenvolvi- mento, 0 ponto focal dominante foi a logica da acumulaga Mas foi como rejeigdo deuma visio simplificada do processo de difusio geografica da civilizagao industrial que emergiu a Teoria do Desenvolvimento, cujo campo central de estudo so as malformagées sociais engendradas durante esse processo de difusdo. A deniincia do falso neutralismo das técnicas deu visibilidade a face oculta, mas dominante, do processo de desenvolvimento, que ¢ a definigdo dos fins, a criagiio dos valores substantivos. A teoria do desenvolvimento traduz a tomada de consciéncia das limitacoes impostas ao mundo periférico pela divisio internacional do trabalho que se estabeleceu coma difusio da civilizagio industrial. O primeiro passo consistiu em perceber que os * Palestra proferida por ocasido do recebimento do titulo de Professor Honoris Causa concedido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em novemibro de 1994. principais obstdculos a passagem da simples modernizagdo mimética ao desenvolvi- mento propriamente dito cimentavam-se na esfera social. O avango na acumulagao nem sempre produziu transformagdes nas estruturas sociais capazes de modificar significativamente a distribuigdo da renda e a destinag3o do novo excedente. A acumulagdo, que nas economias céntricas havia conduzido a escassez de mao-de-obra, criando as condigdes para que se dessem a elevagao dos salarios reais e a homogenei- zagao social, produziu nas regides periféricas efeitos totalmente diversos: engendrou ‘a marginalizagdo social e reforgou as estruturas tradicionais de dominagio ou substituiu-as por outras similares. Em verdade, a acumulagao periférica esteve de preferéncia a servico da internacionalizagao dos mercados, que acompanhou a difusio da civilizago industrial. O conceito de dependéncia tecnolégica permite articular os distintos elementos que esto na base desse problema. O desenvolvimento tecnolégico é dependente quando nao se limita a introdugdo de novas técnicas, mas impde a adogio de padrdes de consumo sob a forma de novos produtos finais que correspondem a um grau de acumulaco e de sofisticagdo técnica que nao existem na sociedade em questio. Uma melhor compreensio dessa problematica permitiu que fossem formuladas algumas questées e abertas novas linhas de reflexiio sobre o subdesenvolvimento. Que possibilidade existe de se ter acesso 4 tecnologia de vanguarda da civilizagao industrial, escapando 4 légica do atual sistema de diviso internacional do trabalho? Ou melhor: até que ponto essa tecnologia pode ser posta a servigo da consecugao de objetivos definidos autonomamente por uma sociedade de nivel de acumulagao relativamente baixo e que pretende a homogeneizagio social? Seria a dependéncia tecnolégica simples decorréncia do processo de aculturagiio das elites dominantes nas economias periféricas? E possivel ter acesso a tecnologia moderna sem submeter-se a0 processo de mundializagao de valores impostos pela dinamica dos mercados? Pode-se evitar que © sistema de incitagSes, requerido para alcangar os padrées de eficiéncia proprios da técnica moderna, engendre crescentes desigualdades sociais nos paises de baixo nivel de acumulagio? A reflexdo suscitada por essa tematica vem permitindo circunscrever melhor 0 campo do estudo do subdesenvolvimento. De um lado, apresentam-se as exigéncias de um processo de mundializagao, imposto pela légica dos mercados, que estd na base da difusio da civilizagao industrial. De outro, configuram-se os requerimentos de uma tecnologia que ¢ fruto da histéria das economias centrais e que exacerba sua tendéncia original limitar a criago de empregos. Por ultimo, esto as especificidades das formas sociais mais aptas para operar essa tecnologia, ou seja, as formas de organizagdo da produgao e de incitagiio ao trabalho, as quais tendem a limitar a possibilidade de recurso aos sistemas centralizados de decises. ‘A superagdo do subdesenvolvimento implica a tentativa de encontrar resposta para essas miltiplas questées. O que se tem em vista ¢ descobrir 0 caminho da criatividade em nivel dos fins, langando mao dos recursos da tecnologia moderna, na medida em que isso é compativel com a preservagao da autonomia na definigiio dos valores substantivos. Em outras palavras: como efetivamente desenvolver-se a partir de um nivel relativamente baixo de acumulagao, tendo em conta as malformagoes sociais incentivadas pela divisio internacional do trabalho e os constrangimentos 6 impostos pela mundializagao dos mercados? Como ter acesso a tecnologia moderna sem deslizar em formas de dependéncia que limitam a autonomia de decisio e frustram 0 objetivo de homogencizagao social? E possivel resumir em trés modelos as tentativas mais significativas de superagdo do subdesenvolvimento nesta segunda metade do século XX: 1, COLETIVIZACAO DOS MEIOS DE PRODUCAO Esse primeiro projeto baseou-seno controle coletivo dasatividades econdmicas de maior peso, fosse em nivel das unidades produtivas (autogestio), fosse em nivel nacional (planificagao centralizada), ou ainda sob a forma de combinagio desses dois padrdes de organizagio coletiva do sistema econémico. O fundamento do projeto de coletivizagdo tem raizes na doutrina marxista. Por outro lado, da-se como evidente que as formas de organizagao social prevalecentes nos paises periféricos conduzem a aculturagdo das minorias dominantes, integrando as estruturas de dominagio interna e externa e, conseqiientemente, excluindo as maiorias dos beneficios do esforgo cumulativo. Dai que o crescimento econémico nao conduza por si s6 ao desenvolvimento. Por outro lado, tem-se como certo que a ldgica dos mercados no induz as transformagées estruturais requeridas para vencer os fatores de inércia que se opdem ao desenvolvimento das forcas produtivas a baixos niveis de acumulago. Narealidade, essa l6gica propicia a especializaco internacional com base nos critérios de vantagens comparativas estaticas. Ora, 0 excedente produzido por essa especializagao e retido localmente estimula a modernizacao dependente, a qual passa a condicionar o subseqiiente processo de transformagao das estruturas produtivas. A industrializago que emerge da especializagio internacional reforga as estruturas sociais preexistentes. Se a coletivizagao se funda na autogestio, as pressdes para elevar 0 consumo podem ser considerdveis, 0 que reduz a possibilidade de acumulagao reprodutiva. Se © ponto de partida é a planificagio centralizada, a emergéncia de um poder burocratico totalizante tende a conduzir a um afastamento crescente entre os centros de decisao ¢ a massa da populagao, portanto, a novas estruturas de privilégios. Ademais, apresen- tam-se os problemas suscitados pela operagdo de um sistema econémico regido por decisdes centralizadas. Teoricamente, € possivel programar as atividades de um conjunto de unidades operativas discretas, articuladas em um sé sistema. Mas a coletivizagao plena transforma essa possibilidade tedrica em necessidade pratica. As dificuldades que se apresentam em nivel de execugao do programa so tanto maiores quanto mais baixo for o nivel de desenvolvimento das forgas produtivas. Em sintese, as experiéncias de coletivizagaio dos meios de produgao confrontaram- se com dificuldades criadas por problemas de trés ordens: (i) 0 da organizagao social, que responde pela definigio de prioridades na alocagao de recursos escassos; (ii) 0 do sistema de incitagdes, que concilia o melhor desempenho das atividades produtivas com a desejada distribuigo da renda; € (iii) 0 da insergio na economia internacional, que assegura 0 acesso a tecnologia ¢ aos recursos financeiros fora das relagdes de dependéncia.

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