O desmedido
momento
Jacques Ranciére
{Lfoto Guimaties Ross, Aemangens da
gti, in Fiogio completa, . Rio de
Janeita: Nova Aguilar, 1994, p.389.
2."Oscimnos, in ibidem, ps5.
Maureen Bisilliat
Fotos da série A Jodo Guimardes Rosa
Gente de Andrequicé, c. 1966
- “
Em Primeiras estérias, Guimaraes Rosa
mostra que nas vidas em que nada
acontece abre-se 0 espaco da ficeao,
o lugar sem histéria onde histérias
podem acontecer
“sta 6a estéria. Ia um menino [..) Assim comega a primeira
das Primeiras estérias de Joio Guimaraes Rosa: com um me-
nino tomando o avido para ir visitar o canteiro de obras onde
agrande cidade est sendo construida no deserto. 0 titulo da
historia é “As margens da alegria”. Reencontraremos esse me-
nino, sem idade e sem nome, fazendo o mesmo trajeto, na 21"
exiltima histéria, intitulada “Os cimos” Esta termina, natural-
mente, com oavido aterrissando na volta. “Chegamos, afinal”,
diz.o tio que o acompanha. “Ah, nao. Ainda nao”, responde o
menino, como que desejoso de permanecer mais um pouco
no tempo da hist6ria, de recuar diante do que vem no firm da
viagem:“E vinha a vida"?
Assim}
a. E,no entanto, a historia vivida pelo menino no
rece acontecimentos espetaculares. O que normalmente
constitui mratéria das histérias vé-se aqui repelido para a mar-
gem, transformado em simples causa ou pretexto da viagem:3 Ibidem, p54.
Boiada em Curvelo no inicio
a viagem aos geras, 1966
Minas Gerais
no primeiro caso, o futuro da grande cidade em constru-
‘ao;no segundo, a doenca da mie, que forga o afastamento da
crianga. Em ambos, a propria viagem se condensa no destum-
bre de um momento: na primeira narrativa, temos a“margem
da alegria” oferecida pela visio de um peru saracoteando no
terreiro, alegria logo anulada, uma vez. que o animal s6 estava
ali para uma satisfacdlo mais trivial, a dos comensais de um
almogo de aniversério. E na segunda temos 0 cimo, a felici-
dade proporcionada por um tucano que chega pontualmente
as 6:20 de cada manha para, durante dez minutos, borrifar
cores no dia nascente e assim anunciar ndo que a mie est
curada, mas que ela nunca esteve doente, que ela “nascera
sempre sie salva"s
Nao convém nos enganarmos sobre o sentido da histéria:
niio se trata de opor o gosto infantil do maravilhoso ao pro-
saismo da vida comum. No fundo, o peru no terreiro eo tucano
na drvore tém efetivamente mais realidade do que os projetos
urbanisticos ou os telegramas que dio noticias da mie distante.
‘Mas tampouco se trata de opor os pequenos fatos vividos aos
grandes aconteciment:
Eis o que pode querer dizer Primeiras estérias. Com efeito,
essas histérias nio sio as primeiras escritas por Guimaraes,
Rosa, Eele nao hesitaré em publicar Terceiras est6rias, embora
as “segundas” jamais tenham existido. Tampouco hesitaré em
denominar uma delas “A terceira margem do rio”, quando,
justamente, um rio com trés margens parece inconcebivel.
Aterceira margem, de fato, é muito mais seu meio, mas um
meio singular, tornado margem imével, 0 meio de um rio-
-lago que nao se dirige para mar nenhum. As primeiras hist6-
rias devem ser compreendidas assim, So margens de histéri
quase-histérias que des as margens de toda histéria,
momentos em quea vida se separa de si mesma, contando-s
transformando-se em “verdadeira vida": uma vida que,
cisamente, nao tem. contrariando assim o principi
aristotélico de toda ficgio: 0 de ter comeco, meio e fim e di
gir-se do primeiro ao ultimo elemento por um encadeament«
combinado de causas ¢ efeitos. Nao é que Guimaraes Ro:
ueira opr alguma logica autotelica supostamente moderna
4 ficgo tradicional. Mais do que qualquer outro, ele considera
Ooar
, muito especialmente, diz ele, da oO
vida do sertio, onde, uma ver satisfeitas as exigencias do gado
eda lavoura, nao ha nada mais a fazer, na fazenda separada
{4 No sertio.oque poe fareruma
Pesoadoseutemp ineanso set
Contr historia Aiea cera
simpesmente que eer verde
conti eerevi” Dislogo com
(Ganter Lorene, in ie, 1.33 = _ en ° "
stbiden. p35 cxiticos”,* algumas quase-histérias ou Cébulas experimentais
donadae do quase nada, doalguém edo ninguém, do aconte-
cimento e do nao acontecimento, para mostrar como, imper-
ceptivel e radicalmente
de historias
hd. A defasagem, portanto, no € 0 que costu.
‘mamos pensar, o que habitualmente enseja a historia. His por
que a primeira forma, a mais simples, do conto critico, oda
histéria esperada e que nfo acontece. A historia “esperada” é
aquela que se deduz de uma situacdo e dos personagens que
nela se encontram. Por exemplo, ema “Famigerado”, chega um
cavaleiro, com semblante ameagador e armas “alimpadas”,
G-Tumigende’,inibier,va.p.a94, _ acompanhado de trés capangas, para pedir uma “opiniio”*
ao narrador. Ouvindo-o declinar seu nome, o de um matador
impiedoso conhecido a léguas de distancia, o narrador possui
todos os motivos para temer quanto ao tipo de opiniao pedida.
A consulta, no entanto, € puramente linguistica: o facinora
quer saber se ha motivos para alguém considerar-se insuiltado
pelo qualificativo que um “moco do governo” Ihe deu: “fa-
migerado”. # ira embora satisfeito quando, perante suas trés
testemunhas,o narrador Ihe houver asseverado quea palavra
quer dizer simplesmente célebre, conhecido, nao carregando
em si nenhuma conotacio pejorativa. O mote da querela, 0
mote das hist6rias & moda antiga em que o personagem ma-
tava para se vingar ce uma palavra insultante, vé-se assim neu-
tralizado, Ble agora se resolve mediante opinio de linguista.
Numa outta histéria, “Os irmios Dagobé”, o desfecho san-
grento parece, em contrapartida, inevitavel. Vo enterrar 0
mais velho de um bando de quatro irmfos facinoras, Ble foi [=]
morto em legitima defesa por um homem honesto, mas isso
nao muda nada no que se refere a vinganga esperada dos ou-
tros trés. Na vida, prevemos que algo vai acontecer porque sa-
bemos até onde individuos podem chegar em fungao do que
so, Assim, quando o honesto assassino, para provar sua boa-
i -fé, vem st oferecer para ser o quarto carregador do caixdo, os