You are on page 1of 9
O SUS E OS MECANISMOS DE EXCLUSAO: A SAUDE MENTALA MARGEM DO SISTEMA DE SAUDE Teresa Cristina Endo Manoel Tosta Berlinck ‘Um dos prineipios fandamentais do Sistema Unico de Satide (SUS) é a universalidade: todos os cidadaos tém 0 mesmo direito de acesso aos cuidados de suide, que significa 0 atendimento ao aleance de todos, sem distingio ou restrigio dle qualquer tipo. A pessoa que procura 0 atendimento pblico nao preci ra dc identidade, enderego fixo, ou carteira de trabalho. O carater de universalidade estabelece o atendimento indis- tinto a qualquer pessoa. Contudo, vemos a distingio ocorrer cotidianamente nos equipamentos de saiide por outras vias, através da diversidade de concepgao do que seja 0 doente, a doenga e as for- mas de cuidar, A atengdo a satide piblica tem historia e revela uma origem imbricada de valor moral no entendimento das doengas, e principalmente no julgamento das pessoas pobres que adoecem. Na Inglaterra no século XVI, fol instaurada a “lei dos pobres’, um sistema de assisténcia assumido pelo Estado, que designava a cada freguesia arrecadar impostos para assistir aos pobres, conseguir empregos para os fisicamente capazes, punit 0s indolentes e prestar caridade aos idosos, aos doentes ¢ incapacitados. No século XVIII, as pessoas que ganhavam abaixo do nivel de subsisténcia recebiam ‘uma penstio pelo Estado, o que ocasionou num aumento tio grande nos gastos piblicos, que culminoui na votacao de uma nova lei, que considerava a pobreza entre os fsicamente capazes como uma falha moral. Ao invés da caridade, deveria ser estimulada a busca de empregos, a partir de entio sé Ihes era oferecido assisténcia nos asilos. Assim, qualquer tentativa de assisténcia através da Lei dos Pobres significava, em realidade, um obsticulo A autoajuda, um pecado contra a necessidade filoséfica, e um impedimento ao progresso. possuir cart 70 Dever-se-ia, ao invés, compelir os pobres a resolverem por si mesmos os seus problemas ¢ estimuld-los a serem previdentes, a se ajudarem (ROSEN, 1994). No século XIX, com o crescimento do sentimento humanitério ea partir do relaté- tio da Comissao da satide das Cidades, escrito em 1843 por Sir Robert Peel “desnudou-se para quem desejasse ver, as apavorantes condigdes existentes. Mostrava-se que a super- populagao e congestéo, pobreza, crime, insalubridade e mortalidade alta, em geral convi- viam” (ROSEN, 1994, p. 174, grifos nossos). Enno século XX, com 0 fenémeno do desemprego industrial, mostrou-se que a po- breza era mais que um problema moral. Revelou-se a intima relagio entre as taxas de morbidade e mortalidade e as condicdes de vida das diferentes classes sociais (ROSEN, 1994), A legislagao social inglesa das décadas de 1930 e 1940 substituiu as “Leis dos po bres” por um sistema abrangente de servigos puiblicos. Este recorte hist6rico ilustra como a pobreza era vis ta em diferentes épocas e recebeu construtos ideolégicos distintos, conforme interesses econdmicos e politicos hegeméni- cos de cada periodo. Ao se associar a pobreza & moralidade dos individuos, destituia-se 0 Estado e responsabilizava-se a pessoa por sua condicao de vida e de doenga a partir de seus atos transgressores ou falhas morais. Aos usuarios vistos como dependentes do SUS, parece restar a resignagio com a assisténcia ofertada, herdam 0 mesmo status da “Lei dos Pobres’, como se Ihes fosse des- tinado apenas o precério ou desqualificado como ‘nica alternativa de tratamento como © nome sugere: “SUS dependente’” No entanto, o que se preconiza no SUS é um modelo assistencial de ponta, em que deve ser garantido 0 acesso universal aos tratamentos, a integralidade que garante a atengio a todas as areas da satide, e a equidade que determina oatendimento de forma igualitaria a todo cidadao, Do outro lado da margem, do cidadao excluido da rede de cuidados do SUS, 0 ce- nario é desalentador. Assistimos horrorizados, por exemplo, aos casos de maus tratos de familiares aos seus parentes portadores de transtorno mental, sejam criangas, adolescen- tes, jovens ow idosos. Causam indignagao noticias como a da mae que construiu, com a ajuda da prefeitura, um quarto nos fundos da sua casa, nos moldes de uma cela forte, ¢ manteve seu filho nesta condicao de carcere privado durante quinze anos, com a anuén- cia do poder pablico, da comunidade local e da propria fam De acordo com a matéria denominada “Autistas em cativeiro”: “Sem saber como lidar com filhos sofrendo de autismo severo, familias optam por uma solucéo medieval: prendé-los. A janela do quarto de Alexsandre Borges da Silva, de 18 anos, d4 para dentro da casa simples de Sapeacu, no interior da Bahia. £ um vao aberto para o corredor que leva da sala a cozinha. Quando o dinheiro der, vamos colocar uma grade, diz.0 padastro Cos- me Nogueira da Silva, enquanto com as maos desenha barras de ferro no vazio’. Por todo o Brasil, no século XXI, autistas como Alexsandre ainda recebem trata- mento semelhante ao que 0s deficientes mentais recebiam na Idade Média. Naquela épo- ca, era comum eles viverem como animais. Presos em jaulas, nao recebiam educagao, eram alimentados por entre as grades, faziam as necessidades no chio. O descaso para 0 autismo parece ter se tornado visivel e objeto de indignagao apenas apés a ocupagiio ¢ tratamento da midia sobre 0 caso, O softimento das pessoas autistas e familiares yanhou um espaco de preocupacio no contexto jornalistico, e passou a existir como problema aos olhos da sociedade. ‘Testemunhamos, cotidianamente, no somente em celas forte, mas habitando as calgadas de passagem, pessoas 4 margem do SUS, doentes, famintas, isoladas, alijacias «ka familia e da propria rede social. Seres invisiveis que vagam despercebidos e sem qualquer assisténcia, Diante deste cenario, vemos se perpetuar verdadeiros vicuos de desprote no territ6rio da satide publica, A marca da exclusao atravessa necessariamente o trabalho da clinica no SUS, cm fungao da realidade social e psiquica da clientela atendida, que perdeu, na maioria dos ca sos, referéncias fundamentais de pertencimento a uma familia, a um grupo, a um genero, 4 sua condigéo humana, Os termos insergio, reinsergao e inclusio social esto presentes no discurso cotidiano das priticas institucionais, nas portarias ministeriais, ev cientificos, em foruns e encontros de satide mental. No entanto, ainda ¢ um desalio pen sar numa clinica da inclusio. Na resenha de Elisabeth Ferreira Mangia (2008) sobre © livro Psiquiatria Instilucio- nal: do hospicio & Reforma Psiquidtrica (LOUGON, 2006), a autora observa: ‘Nas tiltimas décadas, 0 problema representado pelos transtornos micritais tem ocupado cada vez mais a agenda das politicas de satide. Muitos paises tém construido politicas de satide mental comprometidas com o desenvolvimento de novas formas de cuidado, com a melhoria da qualidade de vida, garantia dos direitos de cidadania e combate ds formas de violéncia, exclusdo e estigma, de que sao alvo as pessoas com transtornos mentais. ‘io. PLigos Sao elementos analisados: ..promover o resgate da cidadania, a inclusdo social e a ressocializagéo dos internos e as novas formas de atengio e escuta. O autor questiona a viabilidade do projeto e reconhece que a inclusdo social esbarra na impossibilidade das familias receberem seus membros improdutivos, ou mesmo na auséncia de vincu- n

You might also like