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A MORTE DE NARCISO (Metamorfoses III, 407-510, Ovídio)

Antes do Caos, da Terra, do Tártaro e de Eros, antes das potestades que pulsam
nas Origens, tenebrosas potências do abismo primordial... Antes de tudo!
Antes do mar e da terra e do céu que tudo cobre, um só era o rosto da natureza
no mundo, aquilo que chamamos Caos, massa rude e indigesta, apenas peso inerte,
desconjuntada discórdia das sementes das coisas.
Antes da guerra entre os monstros da noite e a lúcida força do dia, antes da
palavra, antes do teatro, antes de mim, antes de vocês, antes de tudo. Narciso, filho de
um rio e de uma ninfa da árvore, o filho de Náiade deitava de bruços e se olhava no
trêmulo espelho da fonte.
Uma grande calma me escuta, onde escuto a esperança.
Muda a voz das fontes.
A pérfida lua ergue seu espelho.
Até o fundo dos segredos na fonte extinta.
Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas jorrava, nem pássaro, nem fera,
nem tombando um ramo por toda úmida grama que o frescor irriga.
O bosque impede o sol de esquentar esse sítio, da caça e do caçador exausto
aqui vem dar Narciso, seduzido pela fonte amena, se inclina, vai beber, mas outra sede
o toma, enquanto bebe o embebe a forma do que vê, ama a sombra sem corpo, a imagem
quase corpo, se embevece de si mesmo e no êxtase delira.
É um signo marmóreo, uma estátua de Paros. de braços vê dois sóis, astros
gêmeos, seus olhos, contempla seus cabelos dignos de Apolo ou de Baco. Suas faces,
a elegância da boca. Mira-se, admira o que nele admiram. Deseja a si próprio, a si mesmo
se louva.

NARCISO
Querido corpo, abandono-me ao teu poder único.
As quietas águas me atraem para onde estendo os braços.
A essa pura vertigem não resisto.
Que poderei fazer, ó minha beleza, que tu não queiras?
Ateia o fogo e arde!
Quantos beijos vazios dei na mentira d’água?
Quantas vezes tentei captar a imagem irreal de mim mesmo
E mergulhei os braços abraçando o nada?
Não sabes o que está vendo, mas, ao ver se abrasa,
O que buscas não há, se te afastas, desfaz-se.
Esta imagem que colhes é um reflexo: foge!
Não subsiste em si mesma.
Vem contigo. Fica se estás. Se partes, caso o possas, ela se esvai.
Nem Ceres o alimento, nem o sono, paz, nada o tiras de lá.
Prostrado na grama, contempla as falsas formas,
Entre o delírio e o prazer, meio erguido os braços, ao bosque indaga:
Houve bosques como este outro amor tão cruel?
Sabeis. Destes refúgios a muitos que sofriam de amor.
Houve outro em tantos séculos de vida que como eu penasse?
Vejo o que amo, mas o que amo e vejo nunca posso tomá-lo!
E em tanto erro insisto amando.
O que mais dói porém não nos separa um mar, montes, caminhos...
Água nos tolhe. O outro também aspira a mim, sempre que beijo a amada face líquida.
Seus lábios refletidos tendem para os meus.
Sai fora dessa fonte, por que me iludes, menino?
Ninfas me amaram. No teu rosto leio bons prenúncios,
Quando te estendo os braços, braços me distendes.
Se rio, sorris, se choro, choras também.
Adivinho palavras em tua linda boca,
Dizes palavras que não chegam aos meus ouvidos.
Sou eu este outro!

POETA DE TODOS OS SENTIDOS!


Queimo no amor de mim mesmo!
Que hei de fazer! Rogando, sou rogado. A quem e como suplicar?
Quero evadir meu corpo, desejo estranho num amante.
Separar-se daquilo mesmo que ama.
Exaurido de amor expiro em minha aurora.
A morte não me pesa.
Quisera perdurar naquele a quem adoro,
Juntos num só concordes, morreremos juntos.
Volta abismado a contemplar o espelho:
Fica, não some, cruel fantasma em que me nutro e onde intocado de mim,
Deliro de paixão!
Rasga doido de dor as vestes em pedaços e pune o peito nu com seus dedos.
Ferido, o peito vai se tingindo de rubro como um fruto que em partes se oferece.
Quando igual se revê na onda das águas do rio, não mais suporta.
Narciso, pouco a pouco, pela chama de amor se fina e se consome.
Sua tez não mais figura força nem vigor, tudo que a vista agrada.
Nada resta em seu corpo, outrora amado de Eco.
A ninfa ao vê-lo se condói ferida, embora pelo seu desprezo. A ninfa chora.
E ai! Responde-lhe aos ais, duplica seus lamentos.
Toda vez que ele fere os braços, repercute o som dos golpes Eco.
Narciso encara as águas:
- Fugaz menino amado! Ai! Adeus! Adeus!
Retorna a ninfa. Então, no verde, pousa a fronte.
A noite lhe clausura os olhos, luz que se ama.
Recebido no inferno, assim mesmo esses olhos se deleitam mirando-se no Estígio.
Choram e cantam as Náiades. As Dríades deploram. Eco ressoa o pranto.
As tochas se agitam, mas o corpo não há.
Em seu lugar floresce um olho de topázio entre folhas e rosas.

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