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PARA UMA ANALISE SEMANTICA E PRAGMATICA, DO PRETERITO-MAIS-QUE-PERFEITO DO INDICATIVO EM PORTUGUES CONTEMPORANEO Ana Cristina M. Lopes () Introducio ‘Tanto quanto me € dado conhecer, nflo hé nenhum estudo sistemitico sobre a semintica do tempo verbal que tradicionalmente se designa por Pretérito-Mais-que- Perfeito do Indicative (doravante, MQP).! Neste trabalho, proponho-me analisar o fancionamento textual do MQP, 0 que pressupde uma caracterizacio prévia do seu valor semantico € a explicitacio das restrigoes pragmaticas que subtendem o seu u discursive adequado/coerente. Numa primeira seco, darei conta do tratamento tradicional do MQP nas gramiticas. Seguidamente, apresentarei o quadro tebrico que preside ao meu trabalho. Este incidlira na anilise @) das combinagdes do MQP com predicados pertencentes a diferentes classes de aktionsart ¢ (ii) das compatibilidades de ocorréncia deste tempo verbal com diversos tipos de adjuntos adverbiais temporais, tendo em vista captar as peculiaridades de interpretacio dessas combinat6rias. Por fim, proponho-me clarificar os contextos de uso que tomam adequada a selecga0 do MQP. Farei ainda um breve excurso sobre os ‘efeitos ce sentido’ criados pela co-ocorréncia cdo MQP com adverbiais temporais defcticos. I Caracterizagio tradicional Tradicionalmente, o MQP descrito como um tempo verbal que permite localizar no cixo do tempo uma acco terminada que ocorreu antes de uma outra aceio ja passaca.” Para além deste valor prototipico, Celso Cunha e Lindley Cintra (1984 assinalam, ainda outros usos, nomeacamente em expresses fixas exclamativas da linguagem corrente (do tipo ‘Quem me dera’, ‘Pudera!’) ¢ como substituto do Condicional simples em contexto literario (por exemplo, no verso de S4 Carneiro “Um pouco mais de azul —e fora além”). Estes Gitimos usos no serio contemplados neste artigo. Como € sabido, © portugues distingue-se das outras linguas roménicas por possuir, no seu sistema verbal, duas formas de MQP, uma simples e outra composta. No portugues. (© Davee de or europeu contemporineo, MQP simples ¢ composto s6 no comutam livremente na medida em que a selecgao da forma simples implica a adopcao de um registo marcadamente formal; em registos informais (orais e escritos), 0 MQP composto sempre seleccionado, Parece, pois, que as diferencas relevam apenas do plano da variagao diafisica ou esilstica, e no dos valores temporo-aspectuais expressos por cada uma das formas. Assim’ sendo, torna-se legitimo afirmar que no portugues contemporineo os dois tempos verbais se equivalem semanticamente, partilhando © mesmo valor sistémico. Em fases anteriores da lingua poder ter haviclo uma diferenca ‘semintica pertinente entre as das formas ~ alias, s6 se justificam dois tempos verbais, no sistema temporal de uma lingua, se eles forem funcionalmente distintos -, ¢ seria interessante comprovi-lo empiricamente através do estudo de textos antigos.* A partir do momento em que se tornam isofuncionais, uma das formas tender a ser progressivamente abandonada na interacelo verbal quotidiana, por uma questio de economia linguistica, £ justamente o que acontece hoje em dia com o MQP simples." Importa, entao, clarficar qual o valor de localizacio temporil expresso pelo MOP e quais as instrugdes que este tempo verbal carreia quanto & estrutura interna do intervalo de tempo ocupado pela situagio descrita, Para levar a bom termo esta tarefa, ha que optar por um quadro teérico consistente. No panorama actual da semantica linguistica, a proposta de Kamp e Ryle (1993) impde-se pelo seu potencial de adequagao descrtiva ¢ explicativa 2 Ponto de partida: Kamp/Reyle (1993) Tendo em vista um tratamento integrado da expresso do tempo e do aspecto nas linguas naturais, Kamp e Ryle (1993) construiram duas subteorias articuladas, que recobrem de forma consistente quer a localizacao das situagGes no eixo do tempo, quer a estrutura temporal interna dessas situagdes. So elas: ‘Duma subteoria bidimensional do tempo, que envolve dois parimetros temporais: © primeiro indica a relacio entre 0 “temporal perspective point” (TPp0 ¢ 0 tempo da enunciagdo (assinale-se que o TPpt equivale basicamente 20 “tempo de referencia" de Reichenbach, ¢ designa o ponto de referéncia a partir do qual se ‘perspectiva a localizago temporal da eventualidade descrita) e 0 segundo indica a relagdo entre a localizagio da eventualidade location time”) e oTPpt. O primeiro traco temporal comporta dois valores [+Passado] e [Passadol, 0 que significa que © ponto de referéncia pode ser o pasado ou o presente, O segundo parimetro envolve trés valores, passado, futuro € presente. Dada a ambiguidade desta opcio terminologica, sobretudo porque nao se diferencia da que € utilizada, ppara referenciar o TPpt, optaremos pelas designagdes, hoje correntes no Ambito da semantica temporal, de anterioridade, posterioridade ¢ sobreposicao. i) uma subteoria de "propriedades aspectuais", que inclui distingdes basicas de aktionsart (nomeadamente a distingio central entre estados e eventos) e ainda converses sobre os valores baisicos de aktionsart. Estas conversoes Caspectual shifis") sdo carreadas, segundo os autores, pelas construges progressivas ¢ perlectivas e representam-se pelos tragos PROG e PERF. Para se entender de forma mais cabal o que significam estes Gihimos tragos, convém aduzir que Kamp 058 ‘e Ryle defendem uma concepsilo de evento em termos de estrutura tripartida que engloba uma fase preparatoria, um ponto de culminaca0 e um estado resultante.* Diagramaticamente: fase prep. ponto culm. est. result. i 1 1 um Segundo os autores, “PERF will be used to distinguish between those expressions that refer to result states (these have + PERF) and those which refer to parts of the schema other than the result state part PERF)" (p. 559). Quanto a0 efeito do Progressivo, é descrito da seguinte forma: “the eventu: described by progressive forms as a verb v are of the type which is represented by that part of the schema corresponding to the Aktionsart of v which terminates in, but does not include, the culmination point” (p. 566). Vejamos como se concretiza esta teoria através da anilise ele um enunciado simples: @) 0 Paulo abriu a porta, Neste enunciado, os valores relevantes, no que diz respeito aos subsistemas temporais, sdo os seguintes: [- Estativo] no plano da aktionsart, -PERF] no plano das conversoes aspectuais, -Passado] no que diz respeito a0 Tppt e [+Anterioridadel no plano da relagio entre 0 Tppt e © evento descrito, Na caracterizagao que propdem do Past Perfect, tempo que no sistema verbal inglés se pode considerar equivalente 20 nosso MQP, embora sO exista a forma composta (com o auxilar ‘ter’ no Past Simple seguido do Participio Passado), os autores apresentam- -no como tempo intrinsecamente ambiguo, ji que the afectam tragos temporo-aspectuais dlistintos, agrupacios da seguinte maneita: @_+PASSADO, tanterioridade, +/- ESTATIVO, -PERF GD +PASSADO, +anterioridade, +ESTATIVO, +PERF Gil) #PASSADO, +sobreposicio, +ESTATIVO, +PERF A primeira caracterizagio corresponde A interpretacio das ocorréncias do tempo verbal em questio em flasbhacks tipicos. Veja-se 0 exemplo (2) @) Fred arrived at 10, He had got up at 5; he had taken a long shower, had got dressed and had eaten a leisurely breakfast. He had left the house at 6:30." Neste exemplo, as frases que comportam MQP descrevem sequencialmente eventos que so anteriores a um ponto de referencia passado, circunscrito pelo Pretérito Perfeito Simples da frase inicial, ndo sendo relevante a perspectivacio do estado subsequente a sua culminacao, Os dois tiltimos feixes de tragos temporais caracterizam a interpretaglo que poe em relevo o estado resultante do evento descrito pelo verbo. Para o feixe indicado em (i), que corresponde a representago linguistica de um estado resultante anterior ao TPpt, (08 autores propoem © seguinte exemplo: (3) Mary went to the post office. She had written the letter.”

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