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#96 | JULHO DE 2019 www.candido.bpp.pr.gov.

br JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

IDEIAS EM
ILUSTRAÇÃO:CAROLINA VIGNA

MOVIMENTO
Gênero mais abrangente da
literatura, o ensaio nunca foi tão
popular quanto nestes tempos
de redes sociais e discussões
sobre todo e qualquer assunto

PENSATA | Paulo Venturelli • POESIA | Rogério Skylab • UM ESCRITOR NA BIBLIOTECA | Cíntia Moscovich
2 JULHO DE 2019

E
m um mundo onde não há com mediação da jornalista e tradu-
mais espaço para exclusivis- tora Mariana Sanchez, ela falou sobre
mos, uma das máximas mais o incentivo à leitura no ambiente fa-
equivocadas é a de que as pessoas só miliar, sua origem judaica, a arte do
se interessam por leituras rápidas e conto e a superação de um câncer (que
sem muita profundidade. Obviamen- inspirou seu novo projeto de livro).
te, a linguagem ágil da internet ago- Citado na entrevista de Cíntia,
ra está em todos os lugares e pode até seu conterrâneo e professor Luiz An-
ser considerada hegemônica — mas tonio de Assis Brasil também colabo-
não é a única capaz de seduzir os lei- ra com esta edição. Coordenador, há
tores. Cada vez mais presente nas re- mais de 30 anos, da famosa Oficina de
des sociais, na imprensa e no merca- Criação Literária da PUCRS, ele narra
do editorial, o ensaio passa por um os bastidores de seu mais recente lan-
intenso processo de revalorização, çamento, um “manual reflexivo” para
especialmente graças ao seu caráter aspirantes a escritor.
abrangente e fluido. Retomando a discussão sobre
É o que explica o jornalista e a poesia brasileira contemporânea
escritor Ronaldo Bressane no especial no jornal, o professor e escritor Pau-
de capa desta edição. Em um “ensaio lo Venturelli comenta o surgimento de
sobre o ensaio”, ele resgata os uma nova geração de versadores, mais
primórdios do gênero e mostra como interessada na crueza da realidade do
o texto ensaístico pode dialogar com que na aura pomposa do gênero. Uma
a reportagem jornalística, a ficção, a atitude já adotada pelo autor chile-
autoficção, o diário, a crítica literária no Roberto Bolaño, cuja “essência de
e a poesia. E o melhor de tudo: com poeta” é comentada por João Lucas
leveza e ponderação — elementos Dusi, da equipe do Cândido.
que, cá entre nós, andam em falta no O menu de inéditos traz um
debate atual. conto de Carla Bessa, uma HQ de Aline
Outro destaque deste Cândido Daka e poemas de Luiz Felipe Lepre-
96 é a transcrição do bate-papo rea- vost e Rogério Skylab (foto). As ilus-
lizado com a escritora gaúcha Cíntia trações deste número são de Carolina
Moscovich em mais uma edição do Vigna e Beatriz Cajé.
projeto Um Escritor na Biblioteca. Du-
rante o encontro realizado em maio, Boa leitura.
BÁRBARA LOPES

Governador do Estado do Paraná: Carlos Massa Ratinho Junior Colaboradores desta edição: Cândido pela internet: BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
Secretário de Comunicação Social e Cultura: Hudson José Aline Daka, Beatriz Cajé, Carla Bessa, Rua Cândido Lopes, 133 | CEP: 80020-901 | Curitiba – PR
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Superintendente de Cultura: Luciana Casagrande Pereira Carolina Vigna, Luiz Antonio de Assis Horário de funcionamento
CÂNDIDO É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL Diretora da Biblioteca Pública do Paraná: Ilana Lerner Hoffmann Brasil, Luiz Felipe Leprevost, Mariana /jornalcandido Segunda a sexta: 8h30 às 20h.
DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna Sanchez, Paulo Venturelli, Ronaldo Sábado: 8h30 às 13h.
Edição: Omar Godoy Bressane e Rogério Skylab. A BPP divulga informações sobre
Redação: João Lucas Dusi serviços e toda a programação:
Estagiário: Bruno Orsatto Lanferdini Redação: bpp.pr.gov.br
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JULHO DE 2019 3

cândido indica curta da BPP


K R AW P E N A S

QUEER
VOZ E S D E TC H E R N Ó B I L
William S. Burroughs,
Svetlana Aleksiévitch, Companhia Companhia das Letras, 2017
das Letras, 2016 (Trad.: Christian Schwartz)
(Trad.: Sônia Branco) “O junk não apenas curto-
Antes do enorme sucesso da série circuita a energia sexual como,
Chernobyl, da HBO, a história do dependendo da dose, oblitera
maior desastre nuclear do mundo as reações emocionais quase a
já havia sido contada neste livro da ponto de fazê-las desaparecer.”
Prêmio Nobel de Literatura Svetlana Tentando ficar longe da droga
Aleksiévitch. Aqui, ela esmiúça a pesada, principalmente da heroína,
catástrofe sem precedentes ocorrida o protagonista de Queer (escrito
na Ucrânia, em 1986, quando uma em 1952 e publicado pela primeira
explosão seguida de incêndio na vez apenas em 1985), William Lee,
usina de Tchernóbil lançou partículas encontra-se num estado lamentável
radioativas na atmosfera da extinta de vulnerabilidade. Sem a segurança
União Soviética e se alastrou por que encontrava no opiáceo, resta-
boa parte da Europa. A partir lhe flanar pelos botecos, tentando — humilhantemente
de depoimentos de bombeiros, cientistas,
soldados e moradores da região, Svetlana
— se aproximar de Eugene Allerton. Depois de algum BATE-PAPO
esforço, e de jogar toda sua dignidade no lixo, Lee
constrói uma “história oral” desse terror,
em que chama atenção o descaso total dos
consegue o que queria e parte com seu amante para COM ANA
governantes diante da situação.
a América Latina, em busca de uma possível salvação
alucinógena. MARIA
MACHADO
O SOM E A FÚRIA PRIMEIRAS ESTÓRIAS A escritora carioca Ana Maria
Machado é a convidada de agosto
William Faulkner, Cosac Naify, 2012 João Guimarães Rosa,
do projeto Um Escritor na Biblioteca.
(Trad.: Paulo Henriques Britto) Nova Fronteira, 1988
O bate-papo acontece no dia 13, às
Publicado em 1929, o romance Publicado em 1962, o livro traz
19h, no auditório da Biblioteca Pública
narra a história de uma família o neologismo “estória” no título
do Paraná, com entrada gratuita.
decadente numa sociedade para marcar com bastante
Com 42 anos de carreira e mais de
idem. Um livro desafiador, que ênfase que se tratam de contos
100 títulos publicados, a ocupante
em alguns momentos remete à não apenas fictícios, mas,
da cadeira número 1 da Academia
Bíblia e à tragédia grega, e cujo em alguns casos, até mesmo
Brasileira de Letras escreveu alguns
grande protagonista é o tempo, fantásticos ou absurdos. O
dos maiores clássicos infantojuvenis
com seu andamento indiferente termo “primeiras”, por sua vez,
nacionais (Raul da Ferrugem Azul,
e impiedoso. Faulkner dá voz a serve para indicar que os textos
Menina Bonita do Laço de Fita, Quem
quatro personagens para narrar, são suas incursões iniciais no
Manda na Minha Boca Sou Eu, etc.).
a partir de vários ângulos, a gênero narrativo mais breve
Também produziu ensaios sobre a
trágica queda dos Compson, e conciso. Considerado por
cultura contemporânea, grandes
num Mississipi agonizante, ainda muitos como a melhor porta
autores nacionais e o universo do livro
marcado pela derrota dos Estados de entrada para a obra de
e da leitura. Um currículo extenso,
Confederados na Guerra Civil. Guimarães Rosa, esta coleção
que ainda inclui prêmios importantes
Usando e abusando do fluxo de consciência, e de 21 textos narra “causos” do sertão
(como o Hans Christian Andersen,
com saltos vertiginosos no tempo, o autor pinta com vários temas, humores, tons
considerado o Nobel da literatura
um quadro familiar gigantesco, complexo e e tratamentos. Destaque para os
infantil) e números comerciais
fascinante, com tintas de sangue, paixão, orgulho, contos “A Terceira Margem do Rio”,
expressivos (são mais de 20 milhões
tristeza, sofrimento e — claro — muito som e fúria. “Pirlimpsiquice” e “O Espelho”.
de exemplares vendidos em 25 países).
4 JULHO DE 2019

F OTO S : K R AW P E N A S

CÍNTIA
MOSCOVICH
JULHO DE 2019 5

A
escritora gaúcha Cíntia Mos- a Chuva (2012). “Nunca senti tanto a Cintinha, a primogênita. Ela não viu Jornalismo e a faculdade de Letras
covich cresceu cercada de medo na minha vida”, conta. O tra- utilidade nenhuma para a filhinha de para poder ficar perto da palavra es-
clássicos da literatura mun- tamento foi complicado e “permea- cinco meses de idade, que precisava crita, que, afinal, era a grande pai-
dial — de Dostoiévski a Flaubert, do de cenas ridículas”, conta Cíntia, muito de fralda. Mas com cinco me- xão. Sempre gostei muito e, de fato, a
incluindo uma coleção completa de que atualmente trabalha em um livro ses de idade eu era a feliz possuidora grande busca sempre foi pela expres-
Machado de Assis. Essa fortuna lite- “mais ridículo do que bem-humora- da coleção completa de Machado de são através da palavra escrita. Só que,
rária se deu graças à obsessão do pai, do” sobre todo esse processo. Apesar Assis, que tenho até hoje. Dizem que assim, eu não conseguia me expressar.
que tinha ojeriza à ideia de os filhos de todo o perrengue, não desanimou: foi um arranca-rabo bandido em casa. Tinha uma ideia, mas quando tenta-
precisarem se submeter a terceiros. “Quero contar que a gente pode tam- Não me lembro de nada, mas foi mais va colocar aquilo em prática não me
“O grande medo dele era que alguém bém se divertir e ajudar os outros”. ou menos isso, essa era a relevância agradava. Noventa e nove por cen-
mandasse em nós, ou que alguém de- que o pai dava. Então cresci dentro de to das pessoas que querem escrever
cidisse as coisas por nós”, diz a auto- B I B L I O T E C A FA M I L I A R uma biblioteca, que era a biblioteca começam pela poesia, né? Isso foi na
ra de Porto Alegre, que participou do Minha família veio da Bessa- de casa. Para mim, era um ambiente infância — 8, 9 anos. Aliás, não esta-
terceiro encontro da temporada 2019 rábia, fugida de perseguições reli- muito familiar, um ambiente em que va sozinha. Eu tinha amiguinhas que
do projeto Um Escritor na Biblioteca, giosas. Chegaram aqui com uma mão todo mundo lia. A gente era obrigado também queriam ser poetas. Era um
mediado pela jornalista e tradutora na frente e outra atrás, aquela velha a ler, não tinha outra coisa para fazer, negócio horroroso. Na minha bibliote-
Mariana Sanchez. história que é muito comum, princi- não tinha tanto apelo. ca tinham bons poetas — Drummond,
Graças a esse contato preco- palmente no Paraná, que é terra de Bandeira, João Cabral. Era bacana,
ce com os cânones, Cíntia começou imigração. Eles foram para as colô- C L Á S S I CO S À D I S P O S I Ç ÃO sabe? Eu lia aquele troço e ia escrever,
a versar muito cedo, antes dos dez nias no Rio Grande do Sul e ganha- Era uma biblioteca bem va- só que na infância tu é muito imatu-
anos de idade. A convivência com os ram um rolo de arame farpado e um riada, com muitos autores judeus — ro, não tem experiência. Tu vai para
poemas de nomes como Drummond saco de sementes. Quando finalmen- Babel, Cronin, Singer. O recém-fa- a poesia, começa a rimar, descobre a
e João Cabral a inspiravam, mas, na te chegaram em Porto Alegre, o pai se lecido Jacob Guinsburg, da Editora rima e começa assim: “Oh, meu Bra-
prática, ela não conseguia produzir fez, mais ou menos, na vida. O gran- Perspectiva, foi o primeiro a lançar sil, que varonil!”, né? Em termos de
algo sólido: “Era uma distância abis- de medo dele era que alguém man- autores judeus com boas traduções rima, tu tem que fuzilar a pessoa que
sal que existia entre a coisa que eu dasse em nós, os filhos, ou que al- para o português. Nós tínhamos essa escreve isso, ou seja, eu queria me fu-
queria expressar e a palavra que se guém decidisse as coisas por nós, ou coleção enorme de autores judeus, e zilar. Daí tu te apaixona e começa a ri-
concretizava”. tirasse de nós a nossa independência, de russos também. Desde a mais ten- mar coração com pão: “Ele é um pão,
A reviravolta se deu aos 36 anos nossa vontade. Ele tinha ojeriza disso. ra idade, tinha ao alcance das mãos roubou meu coração”, alguma coisa
de idade, quando descobriu a Ofici- Hoje reconheço — depois de muitos Dostoiévski, Tolstói — e não era assim. Não é que a rima esteja supe-
na de Criação Literária do professor e anos de tratamento, terapia — que a proibido. Me lembro que era proibi- rada na poesia, mas eu não conseguia
escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, coisa do pai era meio obsessiva, mas do O Amante de Lady Chatterley, sabia fazer — não conseguia aproximações
ofertada há mais de três décadas pela tudo bem, né? Também não vou jul- que os livros que estavam lá em cima ricas, não conseguia fazer nada mui-
Pontifícia Universidade Católica do gar o meu pai. Mas ele queria isso, que eu não deveria pegar, que eram os li- to frutífero. Era uma coisa realmen-
Rio Grande do Sul. As primeiras aulas a gente tivesse autonomia e se tives- vros que o pai considerava mais pi- te ruim. E eu tinha esse senso de que
já foram frutíferas para a autora que se que, por ventura, fugir do Brasil, cantes. Graham Greene estava lá em a coisa era paupérrima, muito ruim,
viria a escrever os contos de Arquite- assim como os nossos bisavós tive- cima também. Minha memória está e tinha um desgosto profundo por
tura do Arco-Íris (2004), livro vence- ram que fugir, que a gente pudes- uma porcaria, mas também lembro aquilo. Sabia o que queria dizer, tinha
dor dos prêmios Jabuti e Portugal Te- se ir para qualquer lugar do mundo o seguinte: o pai e a mãe saíam, e era o sentimento da expressão e aqui-
lecom. “A oficina te ensina como fazer e começar nova vida, que tivesse esse só colocar uma cadeira para subir lá lo não se manifestava materialmen-
a coisa de uma maneira que ninguém estofo interno para recomeçar. Ele e e pegar. E também era um interdito te na minha escrita. Era uma distân-
note que aquilo levou tempo ou de- a mãe combinaram assim: tudo que que era muito fácil de burlar, nada cia abissal que existia entre a coisa que
mandou trabalho. O negócio é parecer eles ganhassem — o pai era comer- muito violento ou explícito. Era isso. eu queria expressar e a palavra que se
que seja fácil”, diz. ciante — era para ter uma biblioteca. Os autores canônicos sempre fizeram concretizava.
Quando a carreira já seguia E a mãe, desesperada. Ela conta que, parte — de Flaubert a Dickens. Co-
bem, um diagnóstico de câncer a “ti- quando eu tinha cinco meses, chegou meçamos a ler por eles. NA PROSA
rou do jogo” por um tempo. Acon- um carregamento em casa. Ela abriu Aos 36 anos de idade, uma
teceu no momento da produção dos e, por acaso, era a coleção completa PRIMEIROS VERSOS amiga minha, Iara, chegou em casa
contos de Essa Coisa Brilhante que É do Machado de Assis — presente para Fiz a opção profissional por e disse: “Cíntia, olha aqui! Tem uma
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coisa e ela tem que voltar para o Brasil. A outra que está
aqui se casa. Quando escrevi esse livro, que começou como
uma narrativa breve, eu ainda não tinha noções sobre o
conto tal como ele é tecnicamente conhecido hoje. Era uma
oficina de criação literária na PUC”. queira dar. Tem que ter uma predis- narrativa linear — não tinha subtexto, não tinha nenhum
Eu digo: “Ah, oficina de criação li- posição que te encaminhe para esse enredo subjacente. Era um troço linear, sem nenhuma ca-
terária. No que vai me ajudar nessa tipo de coisa, mas a oficina pode, me- mada. Depois, sofisticando a escrita, tu vai entendendo que
porcaria dessa poesia que eu faço?”. diante a aproximação de pessoas que pode colocar outras coisas embaixo e isso faz parte da so-
“É uma oficina que ensina a escre- têm esse mesmo encantamento, essa fisticação. Tu vai colocando coisas ali e vai as chamando
ver prosa.” Aí eu fui, me interessei mesma atração, te dar instrumentos através de pequenas pistas enxertadas no texto. Me lembro
por aquilo e postulei, porque é muito para que tu desenvolva alguma coisa de ter mostrado para o Assis Brasil, que leu e disse: “Olha,
concorrida a inscrição. Entrei na ofi- que queira desenvolver, ou que tenha é boa a narrativa. Só que isso daí não é um conto”. Aí, eu:
cina do Luiz Antonio de Assis Bra- prazer em desenvolver, porque tem “Pô, tu gostou desse troço, mas não é um conto por quê?”.
sil, que lançou agora o Escrever Ficção que ter uma paciência infinita para Era uma coisa muito boa, mas que não era um conto. Sabe
pela Companhia das Letras. É um livro poder se desenvolver na escrita. É um aquela solidão da ignorância que tu fica ali?
obrigatório para todo mundo, mesmo método de tentativa e erro — tem que
para quem não quer escrever. Aqui- fazer, reler, gostar ou não gostar, re- CONTO MODERNO
lo pode ser lido como um romance, fazer. É infinito. É um palimpsesto in- O autor iniciante que compreende o que é o conto
como uma narrativa, é uma coisa de- finito, então tem que ter uma parte moderno — essa tensão que existe entre história oculta e
liciosa de ser lida. E já nas primeiras tua que não é só prazer, vai ter que cifrada, essa sofisticação, jogo de ocultos — consegue do-
aulas do Assis, entendi que a essência ter uma parte também de muito tra- minar qualquer outro gênero. O fundamental num conto
da palavra pode ser a ação. Tu pode balho, e isso está embutido nessa par- é esse equilíbrio entre o contar e o não contar; se não ti-
narrar alguma coisa, contar uma his- te que a gente chama de vocação ou ver um jogo de ocultos, não é um bom conto. Dito de outra
tória e extrair significado da palavra sei lá o nome que podemos dar. A ofi- maneira, se o conto for óbvio, ralou-se. É uma coisa abso-
com a ação. Tu pode embutir signifi- cina vai te dar alguma parte de ins- lutamente sedutora, um jogo muito lindo de ser ensinado e
cado também contando uma história, trumento, de vivência, de artesanato de ser entendido. Me tornei contista por absoluto fascínio
principalmente contando uma histó- literário. E, principalmente, a oficina por esse jogo de ocultos, e, depois que tu entende isso, es-
ria, porque a poesia é um tanto quanto te ensina como fazer a coisa de uma crever romance é uma barbada. Desculpe, que horror dizer
estática, a poesia lírica, e na narrativa maneira que ninguém note que aquilo isso. É que a gente escreve conto, assim, numa tensão, e o
tu pode fazer milhões de coisas, mui- levou tempo ou demandou trabalho. romance é “ah, lembrei de tal coisa”, aí tu escreve numa
to mais realizáveis do que na poesia. O negócio é parecer que seja fácil. De cadernetinha do lado, sabe? Já o conto é urgente, é o agora.
uma bailarina tu quer graça e leveza,
OFICINAS LITERÁRIAS não te importa o trabalho que ela le- N E U R O S E D O C O N T I S TA
Não é que a oficina literária en- vou arrebentando os artelhos, né? De O Sergio Faraco é um contista maravilhoso, exem-
sine a escrever, mas ela te dá instru- um escritor você quer a mesma coisa. plo clássico de como tu não pode dissociar a neurose do
mentos para que tu possa desenvolver A oficina pode ajudar neste sentido: contista. Ele é absolutamente neurótico com detalhes, e
alguma coisa que já tem em ti. Tu tem como te arrebentar na intimidade e te se tu pega qualquer conto do Faraco tu vê que ele usa a
que ter o pendor, a vocação. Tu tem mostrar leve em público. teoria da unidade — tudo que está no conto é necessário
que ter a queda para aquilo. Se tu não para que ele se concretize, e ele tem a ideia de balanço e
tem a queda — a vocação, o pendor S O F I ST I C AÇ ÃO sistema. Se ele coloca uma tomada de três pinos na aber-
—, fica um tanto quanto difícil. Fa- Duas iguais [2004] conta a his- tura do conto, até o final aquela tomada de três pinos vai
zendo um tour pelo Paraná profundo, tória de amor homossexual entre duas ser usada, vai ter função ela ter três pinos, ela estar na-
eu e a Adriana Lunardi, que também meninas, numa escola judaica — para quele lugar naquela hora e vai parecer super mega natu-
foi aluna do Assis Brasil, a gente en- aumentar o interdito. Uma delas não é ral ela ter três pinos e estar ali naquela hora. No romance
controu uma moça que queria ser es- judia. Não que tivesse grande impor- não é tão necessário, até pode esquecer que ela tenha três
critora e que, no entanto, não gostava tância, mas era mais divertido assim. pinos. Qualquer coisa do Faraco que tu pegue, tu vai ver
de ler. Essa moça jamais se tornaria Não vou contar toda a história tam- que é sistêmica, tem uma unidade incrível, bem balan-
escritora, porque ela não tinha a vo- bém, mas, enfim, uma delas vai estu- ceada — é uma pintura, tem um efeito pictórico imenso,
cação, o pendor — o nome que a gente dar fora, na França, daí acontece uma de balanço, de equilíbrio.
JULHO DE 2019 7

AU TOA J U DA
Nessa altura do campeonato, a
Claudinha Tajes, que é também au-
tora, e muito engraçada, tinha es-
crito um livro chamado A Vida Sexual
da Mulher Feia. Ela tinha ido parar na
prateleira de autoajuda e me contou.
Cheguei em casa e liguei para a Clau-
dinha: “O que tu acha de eu escrever
um livro chamado Por Que Sou Gorda,
Mamãe?”. E ela: “Ai, guria, que coi-
sa boa! Vamos parar as duas na pra-
teleira de autoajuda, vamos?” “Va-
mos!”. Aí comecei a escrever o livro.
Só que, assim, continuava sendo a
minha mãe. Era um negócio diabó-
lico, porque todos os dias, às 8 ho-
ras da noite, ligo para saber como ela
está. Eu saía da sessão de escrita e li-
gava para a mãe, e continuava a ses-
são de escrita brigando com ela. Aí
digo “não, não dá”. Lembrei de um
ELOGIO À MEMÓRIA Não tinha ficção nenhuma, era um troço horro- amigo nosso, o psiquiatra Abrão Sla-
O livro Por Que Sou Gorda, Ma- roso, um tal de pontapé e cotovelada, horrível. Aí eu dei vutzky. Se vou para um médico que é
mãe? [2006] é uma ode à memó- para o Assis ler e ele disse: “Bá, tchê! Mas isso aqui não cristão, levo um tempão explicando.
ria. Para mim, pessoalmente, é um está bom. Tu abre esse troço e só tem esse chororô aí de Se vou para um médico judeu, está
grande elogio à memória e à me- tu falando da tua mãe. Isso aqui parece tu contando dos resolvido — corto um atalho de seis
mória do meu povo. A psicanálise se teus problemas com a tua mãe para mim, não parece li- meses de tratamento, o médico ju-
baseia nisso, em quanto a invenção teratura. O que o pobre do leitor tem a ver com os teus deu já sabe da mãe judia, não pre-
substitui o que te falta de memória. problemas com a tua mãe? Está horrível. Faz o seguin- cisa ficar explicando. Levantei o te-
O nosso dever é não esquecer. A his- te, tem uma parte que está bem engraçada, que fala de lefone: “Abrãozinho, estou com um
tória do livro é divertida, e a gente gordura. Por que tu não usa isso aí da gordura? Até aqui problema com o livro e com a mãe. E
não faz nada mais no mundo a não os grandes dramas existenciais são as dores de amor, a não tenho dinheiro”. Diz ele: “Bom,
ser se divertir, porque todo o resto humilhação, a pobreza. Por que que tu não fala da hu- te faço metade da sessão, pode ser?”.
é uma porcaria, né? É legal a agente milhação, da dor que é ser gordo nesse mundo de ma- “Pode, tá bem”. Foi tranquilo, em
se divertir. E escrever, para mim, é gros? Da dor de não caber numa roupa, do problema que um mês estava resolvido. Deixava
me divertir mesmo quando não estou é amarrar um sapato, suar em bicas para provar uma minha mãe no consultório dele, ia
me divertindo. O Modesto Carone, roupa num provador de magro. Fala disso, fala dessa dor, para casa e escrevia. Levei dois anos
da Unicamp, traduziu toda a obra do porque ninguém fala. E faz uma coisa: tira esse negócio para terminar.
Kafka diretamente do alemão, pela de Carta à Mãe que vai ser um horror, tu vai ficar a vida
primeira vez no Brasil, e um dos li- inteira com o Kafka te puxando os pés enquanto dorme. T R A D I Ç ÃO GAÚ C H A
vros é Carta ao Pai, que vem a ser um Faz assim, chama esse livro de Por Que Sou Gorda, Ma- Uma das possibilidades para a
troço monumental. É a maior missi- mãe?”. Eu disse: “Mas tu tá ficando maluco! Isso é nome existência dessa tradição de escritores
va já escrita por um filho a um pai, de livro de autoajuda”. “Por que tu não vai fazer isso? do Rio Grande do Sul é a proximidade
um acerto de contas. Então resolvi Tu pode vender alta literatura como se fosse autoajuda com os países do Rio da Prata — a Ar-
escrever uma missiva de uma filha e ganhar dinheiro uma vez na vida.” Quando fui negar, gentina e o Uruguai, lugares com forte
para uma mãe. Comecei a escrever ele continuou: “Não me responde, não me diz que não. tradição cultural. Isso pode influen-
e só tinha reclamação, era eu recla- Vai para o teu jardim e fica quieta, não conta para nin- ciar. Tem um gaiato que diz: “Isso é o
mando da minha mãe. guém. Vai refletir”. clima frio”. Não sei, mas certamente
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se deve à atuação da oficina de cria-


ção literária. Temos várias iniciativas
ligadas ao livro e à literatura. O As-
sis Brasil está há 34 anos, de manei-
ra ininterrupta, ministrando oficina e
incentivando jovens autores, incen-
tivando a literatura. Temos uma tra-
dição de boas editoras — a Editora
Globo nasceu no Rio Grande do Sul. E
nós temos também a Feira do Livro de
Porto Alegre, a mais longeva, com 65
edições. Ainda é uma terra que valo-
riza o livro e a leitura. Acho que é por
causa disso, mas a gente tem alerta-
do que a coisa está se esculhamban-
do demais. Não tem nenhuma política
pública, e em termos de leitura a coisa
está muito esculhambada.

ANTOLOGIAS FEMININAS
Acho que uma vez foram ne-
cessárias. Não dou certeza de nada,
mas talvez não sejam mais. Tenho
um pouco de medo de levantar algu-
ma bandeira, sempre tive, mas a coisa
começa a ficar muito pulverizada —
é escrita feminina, negra, gay, trans.
Isso pulveriza de uma tal maneira que
tu não tem mais unidade de nada,
então tenho muito receio com essas
coisas que são muito fragmentadas, tase de um câncer de amídala. Eu ti- Tu fica tão incrédula, na verdade, que acaba sem reação.
sabe? Queria que todo mundo se reu- nha ganhado uma bolsa de criação li- Tu entrega o teu corpo para a medicina. E é sobre isso que
nisse em torno da literatura, mas tal- terária da Petrobras. Estava com um estou escrevendo agora. Ali pelo ano passado peguei o jei-
vez seja necessário, sim, a gente lutar. terço do livro pronto e tive que pa- to de escrever essa história.
rar. É assim: quando tu tem câncer,
CÂNCER tu só tem câncer, né? Só te trata, não LIVRO A CAMINHO
Eu estava escrevendo o livro faz mais nada, full time. Não peguei o A cena inicial é essa do consultório — uma moça
Essa Coisa Brilhante que É a Chuva e câncer exatamente no início, mas foi que chega lá, apavorada com isso. É porque o meu trata-
me veio esse diagnóstico de fumante. a tempo de reverter. Foi uma cirurgia mento foi todo ele permeado de cenas ridículas, não teve
Sempre escrevi fumando e sabia que muito grande, porque tive que tirar a um troço tão ridículo quanto o meu tratamento contra o
uma hora ia ter o diagnóstico. Sempre amídala e fazer um esvaziamento, ti- câncer. Sou muito boa samaritana, ajudei várias pessoas e
soube. Meu pai morreu com 56 anos rar toda a cadeia de nódulos, seccionar teve muita trapalhada no meio. Quero contar que a gen-
de câncer e a família era judia, hipo- músculo, nervo. E, depois, quimiote- te pode também se divertir e ajudar os outros. Não é tão
condríaca. Apareceu uma bola no meu rapia e radioterapia. É um tratamen- bem-humorado, é mais ridículo do que bem-humorado,
pescoço, um sintoma externo, metás- to longo, que te deixa meio abobada. como é a vida na verdade, né? Vai demorar um ano, um
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ano e meio mais ou menos para escre- leitura. A gente tem que ser sincero: o que a leitura pode que a gente faz isso. Chego ao ponto
ver, porque estou muito lenta. Estou proporcionar para um adulto? Pode proporcionar o que de fazer assim: “Pelo amor de Deus,
revisando porque está com problema; nenhum outro meio ou veículo pode, que é fazer com lê! Porque é bom pra ti, tu vai ser
estava com problema de linguagem, que tu, ser humano, consiga formar uma ideia abstra- uma pessoa melhor, tu até pode ga-
agora tem problema com a persona- ta. Televisão, internet, tudo te dá coisa pronta. A leitu- nhar mais dinheiro”. É mentira, mas
gem. A personagem tem que querer ra faz com que tu forme uma ideia abstrata. Através das usar a chantagem emocional é uma
alguma coisa, né? Ela está muito se- palavras que tu lê, tu forma a ideia do personagem, da boa tática. Vocês entendem que isso
nhora de si e muito parecida comigo. ação, ideia do cenário. É uma coisa para a qual tu tem é muito difícil, com toda a disputa,
Não sou eu. que convocar toda a tua experiência anterior, ou para com toda a facilidade que os outros
a qual tu tem que formar uma experiência de leitura, e meios proporcionam? É difícil pedir
INTERESSE PELA LEITURA para a qual tu tem que obrigatoriamente te enriquecer. para um adulto que largue tudo e vá
Estamos disputando com Nada te enriquece mais e nada convoca mais a tua rique- enfrentar uma dificuldade maior,
meios que exercem um forte apelo, za interior do que a leitura, então tu tem que convencer que é a leitura, para a qual ele tem
então não sei o que a gente poderia o leitor de que aquilo vai o tornar internamente rico. Mas que convocar todos os sentidos e ex-
fazer para despertar o interesse pela como é que tu vai convencer o cara, né? Não sei como é periências dele.
10 JULHO DE 2019

POEMAS | ROGÉRIO SKYLAB

RUÍNAS DEIXA FICAR


Meus poemas cumprem o mesmo destino O então secretário de James Joyce, o recém-chegado de Dublin, Samuel Beckett, estava
que os de um poeta esquecido escrevendo, certo dia, o que Joyce lhe ditava do Finnegans Wake, quando alguém bateu
cujos versos viraram ruínas. à porta e Joyce disse “come in”. Beckett, que não ouvira a batida, escreveu “come in”
como se fosse parte do que Joyce lhe ditara; um pouco depois releu a Joyce a parte até
E ele reconhece então escrita e este estranhou o “come in” ali no meio do texto, perguntando a Beckett
o que antes era seu estilo: o que era aquilo. — “É o que você ditou”, respondeu Beckett. Joyce pensou por algum
buracos na superfície do texto; tempo e, percebendo que Beckett não ouvira a batida da porta, disse: — “Deixa ficar”.
E Beckett escreveu: “deixa ficar”.
lacunas; rasuras.
A ruína faz vir à tona
o que estava por dentro.

MEU PAI PAUL AUSTER


Eu dei à luz meu pai Entrou na papelaria
no final de uma noite tenebrosa e procurou um caderno vermelho.
depois de longas contrações.
O rebento nasceu aos gritos. Só escrevia à mão.
Caderno novo: vida nova.
Eu não tive dúvidas: era meu pai,
o estrangeiro sem alma. Era detetive
e me seguia os passos.
Mas não descobria nada.

Seus cadernos eram cheios de fracassos,


rasuras, pistas falsas.
JULHO DE 2019 11

ISTO AQUI NÃO É UM SONETO O ESCRITOR gosta tanto de rasurar


que a sua obra completa
Isto aqui não é um soneto MODERNO é um compêndio de rasuras
(estamos num sítio arqueológico).
Ruína de uma forma poética um escritor sem editora quando tenta se espelhar
surgida na Renascença. (um músico sem gravadora), em alguém,
ao léu, invisível, se afunda
Forma esvaziada, de cuja estrutura sobrevivendo de vento
temos uma longínqua ideia. e sem fome fica então congelado
Isto aqui não é um soneto — sua forma sutil como se tivéssemos dado pausa
nem sua réplica.
incógnito e sem nome e quanto mais costuramos
Uma carcaça carcomida e sobretudo sem fome, uma imagem,
que um guia turístico informa um escritor moderno desaparece
pertencer a um antigo soneto, que resiste a escrever
o escritor moderno é um poço
exposto a visitações públicas e cuja dieta o fez assim: de águas estagnadas
essa forma espúria uma sombra e sobre o qual
é retrato dos tempos. do que poderia ser e não foi só ouvimos eco

um trânsfuga
exilado de si,
o que o faz percorrer
ESCRITA
O CALOR DA NOITE FRIA quilômetros por dia Antes de qualquer imagem
que me faça capturado
Nas correspondências de Kafka a Felice, apresento-vos essa piada: (como se fosse possível
existe um poema chinês do século XVIII o escritor moderno. fugir à captura
que ele o transcreve assim: um pária e eu não fosse já,
“Na noite fria, absorto na leitura sem pais neste instante que escrevo,
e país escravo),
de um livro, esqueci-me da hora de ir deitar. escrevo o que eu não vi,
O perfume da cama se dissipou quase inverossímil: o que eu não sou,
e minha mulher, que até então a duras penas, não tem peso, cor, volume o que eu não acho.
dominara sua ira, apaga a luz
deixa pouco rastro,
e me pergunta: sabe que horas são?” zomba dos que
Quando ela pega no sono, o pesquisam em universidades
eu ligo novamente o abajur e quase não sai de casa
ROGÉRIO SKYLAB é um músico e poeta
carioca. Autor do livro Debaixo das Rodas
e continuo a ler as cartas pouco afeito à política, de um Automóvel (2006) e de 21 álbuns
tal como Felice as lia e você me lê. o escritor moderno não lê jornal, musicais, lançou no começo deste ano o
No calor da noite fria. não vê TV disco Nas Portas do Cu — segundo volume
e se escreve algo,
de uma trilogia iniciada com O Rei do Cu,
em 2018, e que será concluída em 2020.
rasga em seguida Apresentou o programa de entrevistas
Matador de Passarinho no Canal Brasil.
12 JULHO DE 2019

C A PA

A VOLTA
DO “TEXTÃO”
Em alta na internet e no mercado ples discrepância entre opiniões con- de todos é o ouro. Este ensaio se de-
editorial, o ensaio dialoga com trastantes é repentinamente fechada dica a investigar como o ensaio pode
com uma frase de efeito, cortante e conversar com outros gêneros, como
a reportagem, a ficção, o diário peremptória, cercada de joinhas e co- a reportagem jornalística, a ficção, a
e até mesmo a poesia raçõezinhos e aplaudida sob a claque autoficção, o diário, a crítica literária
de “Lacrou!”. e até mesmo a poesia. A ambição aqui
RONALDO BRESSANE Mas calma: em que ponto um é a de descobrir não só um textão, mas
textão se transforma em um verda- um texto padrão ouro, maleável sem

A
lerta de “textão”: senta que lá vem ensaio. Mas cal- deiro ensaio? romper o seu fio.
ma. Só porque dizemos “ensaio” não precisamos Mario de Andrade costumava Existem algumas hipóteses
pensar em sábios cofiando o queixo e mirando o dizer que “Conto é tudo o que cha- para entender o ensaio. Uma delas re-
infinito. O ensaio nunca foi tão popular quanto em nossa mamos conto”. Do mesmo modo, en- gistra o seu surgimento em Os Ensaios,
época de redes sociais: basta entrar no Facebook, no Me- saio pode ser tudo o que chamamos do francês Montaigne, que os escre-
dium ou até no Twitter e, com sorte e talento para a bateia, ensaio. Talvez o ensaio seja tão abran- veu há 500 anos. Montaigne era um
garimpar ensaios sobre a morosidade da justiça brasileira gente que até o que não chamamos nobre rico, prefeito de Bordeaux, que
e as astúcias estranhas do ex-juiz Moro; o racismo nos- de ensaio também possa ser chama- tinha tido uma formação intelectual
so de cada dia expresso numa viagem de ônibus ou numa do de ensaio. Podemos ensaiar hipó- sólida e era meio antissocial. Em dado
ida ao cinema; o machismo estrutural que permeia a so- teses para entender este gênero, o momento, ele resolveu se trancar em
ciedade numa discussão sobre as estrepolias de Neymar; mais fluido de todos. De todos, tal- seu escritório e escrever sobre tudo
o exasperante zeitgeist que infiltra o tom de indignação a vez seja o gênero que mais assume a o que lhe apetecesse. Comida, reli-
cada polêmica sobre a) futebol feminino, b) a invasão do cara de quem escreve. O gênero mais gião, a educação dos filhos, vinhos,
telemarketing em nossas horas íntimas, c) as fotos de nos- maleável. Maleabilidade, em química, os tupinambás… A graça dos ensaios
sas crianças no Instagram, d) o pior presente que já rece- é a capacidade de um elemento trans- de Montaigne está justamente na eti-
bemos no dia dos namorados, etc., etc... Se antigamente formar-se sem perder a sua essên- mologia dupla da palavra essaier, em
se dizia que o Brasil era uma nação de 200 milhões de co- cia. Esta capacidade se relaciona com francês, que pode significar tanto um
mentaristas esportivos, hoje se pode afimar que o Brasil a ductibilidade, que é a propriedade de ensaio, no sentido de que se pratica
tem 200 milhões de ensaístas. Todo dia um textão nas re- um elemento moldar-se sem se fra- algo antes de uma apresentação final,
des nos lembra como vivemos em um tempo em que ter e turar. Alumínio e cobre são dúcteis e quanto um teste, no sentido de que se
difundir uma opinião autoral contribui para a reputação; maleáveis, pois se esgarçam ao má- coloca uma ideia, uma tese, uma for-
como as opiniões pessoais podem sucumbir à polariza- ximo, até se tornarem um fio finíssi- mulação à prova. Existe ainda um ou-
ção entre eixos críticos; e como muitas vezes uma sim- mo. O material mais maleável e dúctil tro par de etimologias, aproximando
JULHO DE 2019 13

ILUSTRAÇÕES: CAROLINA VIGNA


DIVULGAÇÃO
fecha, tem iluminações súbitas quan-
do ninguém estava esperando, entra
em becos sem saída, contradiz-se,
enxerga-se no espelho e dá risada do
que vê. É nesse sentido um parente do
stand-up comedy (claro que aqui es-
tou pensando mais no Louis CK do que
no Danilo Gentili). A melhor definição
pra mim é da ensaísta Cinthia Ozick:

“O ensaio é o movimento de uma


mente quando brinca”.

essai de balança, ou de pesar, “examinar”, e também de O argentino O ensaio se move, não está pa-
Jorge Luis
“enxame”, como de abelhas ou pássaros. rado em ideias preconcebidas. O en-
Borges (1899-
Ou seja, o ensaio não parte de uma tese e então pro- 1986): um dos saísta vai imprimindo a sua subjeti-
cura elementos para comprová-la: antes, ele procura esta ficcionistas vidade sobre a realidade, sem se deter
tese. Ele procura esta tese sempre sendo ponderado, usan- que puxaram em determinados pontos, tal como
o movimento
do sua balança, e passeando entre ideias dispersas, como ensaístico para um andarilho que vai passeando pe-
em um enxame. dentro de suas las ruas, sem um objetivo definido
Neste sentido, o ensaio flerta com o jornalismo no narrativas. de chegar a algum lugar — mas, por
que ele tem de mais nobre: é a arte da dúvida. Ele é o exa- causa disso mesmo, acaba chegan-
DIVULGAÇÃO
to oposto, por exemplo, de um texto religioso, ou de um do. A realidade é uma paisagem men-
texto técnico, ou mesmo de um texto científico. Um bom tal para o ensaísta, que, como flâneur
ensaio não respeita nem Deus nem a dinâmica dos mate- das ideias, se interessa mais pelo que
riais nem a lei da gravidade. Assim, ele estende a mão ao está pensando do que pelo que está
leitor, relativizando a autoridade de quem escreve. Tal- vendo em sua realidade objetiva —
vez por isso o ensaio tenha demorado tanto a engrenar mas precisa da realidade objetiva
em países de cultura ibérica, onde funciona muito a lei do para despertar suas reflexões. A rea-
doutor, que identifica na fonte do saber uma espécie de lidade objetiva se converte em paisa-
autoridade moral e política. E talvez por isso muita gen- gem externa, assim como para o flâ-
te no Brasil ainda confunda ensaio com monografia, tese neur as ruas da cidade se convertem
ou dissertação. em uma espécie de cenário pro seu
Na pós-modernidade, o ensaio é a substância que solilóquio interior. Baudelaire define
recheia não só teses acadêmicas como também o melhor essa diferença: há o badaud, o vadio
da ficção. Há desde os ensaístas que flutuam entre a re- O capixaba Rubem Braga (1913-1990) foi um dos expoentes da que fica atrás de uma oportunidade,
crônica, considerada a modalidade de ensaio mais praticada no país.
portagem e a autoficção, como Geoff Dyer e John Jeremiah um malandro sempre atrás de uma
Sullivan, quanto os ficcionistas que puxaram o movimen- chance, uma mulher, um roubo. E
DIVULGAÇÃO
to ensaístico para dentro de suas narrativas, de Jorge Luis tem o flâneur, essa subjetividade que
Borges a WG Sebald. Recentemente, o historiador carioca caminha. O badaud é o cinema-câ-
Felipe Charbel aproximou o ensaio da autoficção e da me- mera do Dziga Vertov: ele quer saber
taficção, cruzando narrativas de sua própria vida a leitu- como estão as pessoas, como elas vi-
ras de autores como Carlos Heitor Cony, Roberto Bolaño e vem, em que se interessam. Já o flâ-
Philip Roth no romance Janelas Irreais (Relicário), um dos neur, no conceito de um dos grandes
A carioca Marília
lançamentos mais intrigantes de 2018. Garcia é um dos ensaístas do século 20, Walter Benja-
nomes de destaque min, se interessa mais em despertar a
E N S A Í S TA : E N T R E O B A D A U D E O F L Â N E U R no ressurgimento sua própria subjetividade no contato
da forma ensaística
O ensaio é sinuoso, digressivo, foge do assunto, com a realidade que mora do lado de
dentro da poesia
pega outro assunto pelo rabo, abre parênteses e não os brasileira. fora de sua cabeça.
14 JULHO DE 2019

C A PA de Moraes, Carlos Drummond de An-


drade, Cecília Meirelles e muitos ou-
tros, que aproximaram aquele texto
O escritor argentino César Aira diz que o ensaio é “o tanto da poesia quanto da reflexão fi-
lugar inusitado onde se encontram saberes diferentes”. losófica, e às vezes também da fic-
Já a professora Christy Wampole sustenta que o ensaio ção pura. Um texto que cabe em um
pode atuar como um DJ, sampleando, mixando e tiran- espaço pequeno, entre 3 e 10 mil to-
do o novo do já visto e ouvido. Essa ideia rima com a pro- ques, perfeito para jornais e revistas
posta de Benjamin, que queria criar um ensaio só usando de grande tiragem, mas que passam
epígrafes, citações e ditos alheios editados de uma manei- a ser reunidos em livros e antolo-
ra singular. Ele via o ensaísta como um pescador de pé- gias, demonstrando a profundidade
rolas, um sujeito que leu uma biblioteca inteira para co- do gênero.
lher meia dúzia de citações que, juntas, poderiam formular “A passagem da objetividade
ideias inteiramente novas. Este conceito de “pescador de primitiva para um subjetivismo lí-
pérolas” está exposto à maravilha em um ensaio-per- rico mais ou menos radical corres-
fil da filósofa Hannah Arendt no livro Homens em Tempos ponde a uma autêntica revolução
Sombrios (Penguin). nesse processo de focalizar a reali-
Arendt conta que o autor de Magia e Técnica, Arte e Po- dade, tornando o ensaio próximo da
lítica colecionava 600 citações. Notório bibliófilo, Benjamin poesia pelas muitas possibilidades do
ansiava por um ideal de ensaística todo estruturado em flagrante lírico, mudando o ponto de
citações — “montada com tanta maestria que dispensaria vista exterior do cronista para o in-
textos de acompanhamento”. Este método de “perfurar” terior do sujeito, enriquecendo infi-
um texto para obter o essencial em forma de citação “é o nitamente as possibilidades do fla-
equivalente moderno das invocações rituais, e os espíri- grante humano”, escreve Eulalio.
tos que agora surgem são aquelas essências espirituais de Temos aí então um primeiro
um passado que sofreram a ‘transformação marinha’ sha- passo excelente para começar a pra-
kesperiana dos olhos vivos em pérolas, dos ossos vivos em ticar o ensaio no que ele tem de mais
coral”, diz Arendt, citando A Tempestade. espontâneo e leve. E a leveza, segun-
“Para Benjamin, citar é nomear (…), trazer a ver- do Italo Calvino, é o ato de contrariar
dade à luz.” Citar, para Arendt, ou seja, falar através de o peso do mundo, aliviar a espessura
vozes alheias, é a maneira como Benjamin escolhia para de tudo aquilo que obscurece o texto
lidar com o passado. O pescador de pérolas desce ao pas- do mundo e nos obscurece. A leveza
sado para trazer à superfície “fragmentos de pensamen- é uma espécie de pacto a estabelecer
to”, que então ganham novo contexto. com a transparência. E, progressiva-
mente, deverá tornar-se um estilo,
C R Ô N I C A : O E N SA I O CO M O P R O SA R Á P I DA uma dicção, um modo esperançoso
Em um ensaio sobre a história do gênero no Bra- de habitar a nossa história.
sil, Alexandre Eulalio afirma que uma das máscaras do Com Calvino aprendemos duas
ensaio, a crônica, é sua forma mais praticada e popular coisas importantes sobre a leveza: a
no país. A crônica nasce com craques como João do Rio, primeira de todas é que ela nos pede
e depois Lima Barreto, ainda muito aparentada à repor- uma arte de resistência, pois só re-
tagem e ao comentário de uma atualidade — daí o nome conquistamos a leveza a custo de
“crônica”, pois está muito atrelada ao espírito do tem- uma paciente luta; a segunda é a ne-
po, além de estar conformada, a princípio, em um jornal. cessidade de ativarmos a nossa capa-
Mas é só no período de ouro da crônica, os anos cidade de deslocação (na verdade, só
1960, que surge um jeito totalmente brasileiro de cro- um olhar peregrino possui a agilida-
nicar, sob a sombra enorme de Rubem Braga. Na estei- de espiritual para não se deixar se-
ra vêm Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Clarice questrar pelo desânimo). Daí Calvino
Lispector, Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Vinicius lembrar o verso de Paul Éluard: “Ser
JULHO DE 2019 15

como o pássaro, e não como a pluma”. Como “Imitação da água”, um entre dois lugares que existem de verdade, em Santa
A pluma não se move, é movida; o pás- poema dos anos 1950, em que o poe- Teresa: o Parque das Ruínas, que é vizinho da Chácara
saro carrega em seu voo a intenção. ta compara a mulher amada a uma do Céu. Como o céu pode estar perto das ruínas? Como
“Cada vez que o reino humano onda na praia. Mas não exatamente uma coisa vira outra coisa, sem deixar de ser uma?
me parece condenado ao peso, digo isso: a onda está parada, pouco an- Marília cria uma cartografia poética, em que os temas
para mim mesmo que (…) eu devia tes de se quebrar. Então o poeta faz surgem de vários lugares, e os lugares trazem memórias
voar para outro espaço. Não se trata várias aproximações a este conceito e reflexões. Mesmo que os lugares estejam longe uns dos
absolutamente de fuga para o sonho da onda parada, usando metáforas, outros, as reflexões os trazem para perto.
ou o irracional. Quero dizer que pre- aliterações, assonâncias e seu ritmo O tom de Marília é lento, bem humorado e pro-
ciso mudar de ponto de observação, lento e venenoso. Ele quer dar conta saico. Mas aos poucos vêm aparecendo rimas, que po-
que preciso considerar o mundo sob de um paradoxo, uma onda parada, dem ser visuais ou conceituais. Sim, rimas de conceitos:
uma outra ótica, outra lógica, outros para comparar a uma mulher deita- um conceito que aparece, depois some, e então volta
meios de conhecimento e controle”, da. Assim, a onda se transforma em de novo. E também há refrões conceituais — ideias que
diz Calvino em suas  incontornáveis uma planta, em um olho, em uma vão e voltam, como se sustentassem todo o poema, as-
Seis Propostas Para o Próximo Milênio. montanha. O movimento do poe- sim como um refrão sustenta uma canção. A forma do
ma é ensaístico, ainda que ele use poema é a forma do ensaio, e o ensaio é justamente so-
ENSAIO-POEMA descrições. Vai até mudando o tem- bre como se forma um movimento, sobre como um lu-
Se ensaio, conforme Cinthia po verbal: a onda “parava”, depois gar leva a outro lugar, desde que com significação, com
Ozick, “é a mente quando brinca”, e “parara”, e depois “guardasse”, no sentimento. Marília não hesita em trazer o leitor para
se poesia, na definição de Ezra Pou- subjuntivo. A conclusão é que a imo- dentro do poema, convidando-o a pensar junto. Neste
nd, “é o máximo de concentração bilidade da mulher deitada é precá- poema, além das múltiplas referências — algo também
de sentido em um mínimo de pala- ria, pois traz em si “o dom de se der- típico do ensaio —, Marília usa o recurso de imagens:
vras”, seria possível escrever poesia ramar”. Este dom é, para o poeta, da fotos, cartões postais, imagens roubadas da internet (no
em tom de ensaio? Temos uma lon- natureza íntima das águas. No en- que lembra Sebald). Quase como se estivesse brincando
ga tradição de poetas-ensaístas, do tanto, apesar da sensualidade e da com uma espécie de ensaio universitário.
qual Drummond talvez seja o nome sugestão sexual, as águas podem Ciência e poesia. Pesquisa e reflexão. Fora e den-
mais lembrado. Mas mesmo àque- ser traiçoeiras, “fundas”, trazendo tro. Assim como se move, o ensaio também faz o leitor
les poetas mais afeitos à ressonân- uma “intimidade sombria” e “certo se mover. Muitas vezes é seu pensamento que faz com
cia das palavras e ao rigor da métrica abraçar completo”, ou seja, o abra- que o ensaísta se coloque em marcha, se mexa, tire a
se encontra o típico movimento on- ço do afogado, o abraço da morte. A bunda da cadeira para investigar a realidade. E daí uma
dulante do ensaio — como João Ca- cama então do início do poema se impressão sobre o mundo pode fazer com que o ensaís-
bral de Melo Neto, nosso poeta mais converte em um leito de morte. ta se torne um repórter, um viajante, um pesquisador,
cerebral. O interessante é que, ape- Dos anos 1950 aos nossos um passeador. Mas ele pode mesmo duvidar da reali-
sar de ser tão cerebral e tão afeito às anos 10, temos um ressurgimento dade, duvidar de como a realidade se estrutura, duvi-
ideias, reflexões e conceitos, toda a da forma ensaística dentro da nossa dar de seus sentidos. E traz da realidade uma reflexão.
poesia de Cabral é fundamentada em poesia, mas agora libertada da mé- Neste sentido propus um formato a que dei o nome de
coisas, em objetos físicos, em subs- trica, e aproximada às artes visuais. pensata-playground. Uma união entre a apuração da re-
tantivos concretos. E mais: Cabral Em muitos poetas contemporâneos portagem, a sinuosidade do ensaio e certo tom intimis-
tem profunda aversão aos clichês. o ensaio tem sido incorporado jus- ta próprio à autoficção. Algo bem parecido com isso que
Ele não se satisfaz em comparar tamente naquilo que mais o aproxi- estou escrevendo para você ler agora.
uma mulher a uma flor. Quer saber ma da forma da crônica: a epifania. O ensaísta coloca a realidade em xeque. Ele não
os porquês. É uma poesia explica- Entre nós, uma das mais destaca- acredita em nada. O propósito do ensaio é continuar
tiva. Suas comparações, por exem- das caçadoras de epifanias tem sido brincando, seguir ensaiando, e não chegar a uma con-
plo, não são líricas, e sim abstra- a poeta carioca Marília Garcia. Ela clusão. Deixemos as conclusões para os fanáticos reli-
tas. Quando ele compara uma coisa a ganhou o Prêmio Oceanos em 2018 giosos e as inteligências artificiais. O ensaio induz o ser
outra, destrincha a fundo quais são com  Câmera Lenta  (Cia das Letras) humano ao erro, e como somente o erro nos diferencia
as camadas que ligam um objeto a e acaba de lançar outra joia, Parque como humanos, só o erro pode nos levar a eventuais
outro. E o movimento deste destrin- das Ruínas  (Luna Parque). O poema acertos. E esta afirmação aqui também pode ser — du-
char é o ensaio. todo reside em desdobrar um choque vide sempre — um erro.
16 JULHO DE 2019

C A PA
REPRODUÇÃO

CIÊNCIA
E POESIA O francês Michel de Montaigne (1533-1592) é considerado o “pai do ensaio”.

P
ai de todos os ensaístas, Mi- arrependimento, a experiência, a ra- Starobinski lembra que, para vel. “Trata-se de tirar o melhor par-
chel de Montaigne (1533- zão de Estado, o massacre de indíge- Montaigne, escrever é ensaiar de tido dessas disciplinas e então tomar
1592) elegeu como dístico nas, as confissões obtidas sob tortura novo, com forças sempre jovens, a dianteira sobre elas, uma dianteira
a pergunta “Que sei eu?”, inscrita (…). No ensaio segundo Montaigne, o num impulso sempre primeiro e es- de reflexão e liberdade, em sua pró-
justamente ao lado de uma balança. exercício da reflexão interna é inse- pontâneo, tocar o leitor na carne, ar- pria defesa e a nossa (…) A partir de
Nesta questão se embutem tanto a parável da inspeção da realidade ex- rastá-lo a pensar e sentir mais in- uma liberdade que escolhe seus ob-
humildade em relação a um assun- terior. É só depois de ter abordado as tensamente. “E às vezes também jetos e inventa sua linguagem e seus
to em particular quanto a perspecti- grandes questões morais, escutado a surpreendê-lo, escandalizá-lo e in- métodos, o ensaio deveria aliar ciên-
va subjetiva. Cada ensaio de Montaig- sentença dos autores clássicos, depa- citá-lo à réplica.” Montaigne dizia: cia e poesia.”
ne é um espelho onde ele pinta um rado com os dilaceramentos do mun- “a fala é metade o que fala e metade
autorretrato de sua consciência agu- do presente que, buscando comunicar o que escuta”. Starobinski sugere ao
da. Segundo o ensaísta  Jean Staro- suas cogitações, ele se descobre con- ensaísta contemporâneo identificar- RONALDO BRESSANE é escritor,
binski, Montaigne “não nos oferece substancial a seu livro, oferecendo de -se com a liberdade de Montaigne, jornalista e professor de escrita criativa.
nem um diário íntimo nem uma au- si mesmo uma representação indire- que fugia à linguagem impessoal hoje Entre seus livros estão os romances Escalpo
(Reformatório), Mnemomáquina (Demônio
tobiografia. Ele se pinta olhando-se ta, que só pede para ser complemen- vigente nos ensaios das ciências hu-
Negro) e os romances gráficos V.I.S.H.N.U.
no espelho (…), exprimindo sua opi- tada e enriquecida: ‘A matéria-prima manas, e encontrar a sua própria voz (Companhia das Letras) e Sandiliche
nião sobre a presunção, a vaidade, o do meu livro sou eu mesmo’.” usando todo corpo de saber disponí- (Cosac Naify)
JULHO DE 2019 17

DICAS
DE LEITURA
• 200 Crônicas Escolhidas, Rubem Braga (Record)

• O Aleph, Jorge Luis Borges (Companhia das Letras)

• Doze Ensaios Sobre o Ensaio, org. Paulo Roberto Pires (IMS)

• Os Emigrantes, WG Sebald (Companhia das Letras)

• Os Ensaios, Montaigne (Penguin / Companhia


das Letras)

• Esse Cabelo, Djaimilia Pereira de Almeida (LeYa)

• Ficando Longe do Fato de já Estar Meio Que Longe de Tudo,


David Foster Wallace (Companhia das Letras)

• Inferno Verde, Leslie Kaplan (Luna Parque)

• Ioga Para Quem Não Está Nem Aí, Geoff Dyer


(Companhia das Letras)

• Janelas Irreais, Felipe Charbel (Relicário)

• Mecanismos Internos: Ensaios sobre Literatura, JM Coetzee


(Companhia das Letras)

• Mitologias, Roland Barthes (Difel)

• Os Argonautas, Maggie Nelson (Autêntica)

• Parque das Ruínas, Marília Garcia (Luna Parque)

• Pulphead, John Jeremiah Sullivan


(Companhia das Letras)

• Sermões, Nuno Ramos (Ed.34)

• Também os Brancos Sabem Dançar,


Kalef Epalanga (Todavia)

• Um Beijo Por Mês, Vilma Arêas (Luna Parque)

• Um Corpo Negro, Teju Cole (IMS)

• Viagem Ao Fundo da Mente, Karl Ove Knausgard (IMS)


18 JULHO DE 2019

do que transforma tudo em merca- Um poema que traz ferrugem


P E N S ATA
doria, o mundo que circula em torno ao nosso ânimo, às nossas articula-
A coluna Pensata abre espaço para que autores discutam
do dinheiro e de resultados imedia- ções mentais, ao resto de idealismo
um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição,
Paulo Venturelli retoma a reflexão sobre os rumos da tos e vive sob a pulsão de conquistar que podemos ter a respeito da vida:
poesia contemporânea — que, segundo ele, abriu mão da os 15 minutos de fama.
aura pomposa do gênero para se jogar na crueza do real. Vejamos alguns exemplos do uma mulher gorda
que estou tentando deslindar: incomoda muita gente
uma mulher gorda e bêbada

POESIA SEM “P”


Qualquer pessoa que conhecesse incomoda muito mais
Max Horkheimer uma mulher gorda
saberia é uma mulher suja

MAÍUSCULO
que ele era capaz de uivar uma mulher suja
como um cão. incomoda incomoda
De acordo com testemunhas muito mais
ele podia demonstrar esse uma mulher limpa
[desconcertante talento rápido
PAULO VENTURELLI tanto nas ruas de Manhattan uma mulher limpa
como na Estação Central Angélica Freitas, 2012
de Frankfurt.

T
enho, dentro do possível, marca mais presença entre nossos De acordo com testemunhas Não importa a cacofonia. Ela
acompanhado a poesia que / as poetas. Eles / as buscam aqui- o filósofo teria ensinado vem de propósito. Ela faz o leitor
se escreve hoje no Brasil. Per- lo que o poeta chamou de “todas as [a uivar seu próprio cão. rilhar os dentes e põe areia na en-
cebo que certas características mar- palavras, todas as construções, todos Daniel Arelli, 2018 grenagem: acorda, cara, a estética
cam os / as poetas: há um abandono os ritmos” e, por isto, encontro na não está mais afeita aos grandes te-
do lirismo tradicional, não se usam poesia atual o toque sujo do cotidiano. O autor cutuca a filosofia pela mas, ao cânone, ela rasteja na sarje-
mais metáforas “fechadas”, aca- Pelo menos, não é mais ver- porta dos fundos e além de criar hu- ta e ali encontra a ironia para descar-
bou-se a senda que levava a poesia dade o que Gombrowicz escreveu em mor que leva ao raciocínio, des- nar qualquer pujança da mulher ideal
para algo que posso chamar de “mí- 1951: “Seria da minha parte mais sacraliza o próprio poema, seja no e sublime.
tico”, os poemas estão circunscritos sutil não perturbar um dos raros despojamento da linguagem que se Passo adiante:
a questões cotidianas, são quase um ofícios religiosos que ainda nos res- repete sem nenhum prurido.
comentário sobre o dia a dia, não há tam. Acabamos por duvidar de qua- Outro exemplo: não, não brinquemos
mais solenidade, nem pedestal, os / se tudo, e no entanto continuamos de esconde-esconde
as poetas parecem buscar uma lin- a entregar-nos ao culto da Poesia e caminhante minhas charadas são inocentes
guagem que seja próxima do homem dos Poetas; é esta até porventura a caminhos há cada dia descubro uma
comum, há um certo ar de troça no única divindade que não temos ver- O mais estreito [parte da minha própria
que se vem produzindo, rompeu-se gonha de adorar com muita pompa, te leva más allá piada
a redoma da inspiração, pois o olhar grande porção de reverências e lin- Pedro Carrano, 2017 mau gosto diria
para o mundo contemporâneo traz dos arrulhos de voz”. mau jeito de ser
uma certa racionalização, um diálo- Sejam o que forem os tais ofí- Não se estranha o diálogo re- viver pra quê?
go com outras linguagens, o que, na cios religiosos, é certo que a poesia criador com Antonio Machado. Ao não me oculte o fogo, Senhor
poesia tradicional, era ausente, se- de hoje perdeu a aura, desfez-se de lado disto, a telegrafia do poema sus- meu Lord, meu mito,
gundo Bakhtin. Sem estro, sem es- pompa e não se escreve mais com P cita no leitor uma explosão de enten- [minha estampa de escrava
tratosfera, sem abismos existenciais. maiúsculo. Danem-se a divindade e dimento do real, com crítica, de teor dos deuses
Talvez, a nova geração de poe- as reverências. A poesia hoje, no seu político, no acento que o mais estrei- não me oculte o sexo,
tas siga as coordenadas de Bandeira: ludismo, almeja alcançar um leitor to dá aos versos. Talvez a noção de [o tempo da vulva nas mãos
“Estou farto do lirismo comedido / não elitizado, um leitor capaz de Bakhtin no sentido de que o poeta faz meu clitóris foi
do lirismo bem comportado / Do li- aceitar a carga de certa vulgaridade da linguagem sua própria linguagem [machucado quando criança
rismo funcionário público (...)”. O que, por sua vez, está aí justo para não se aplique mais nos caminhos ah, sinto muito, caros palhaços,
purismo que aborrecia Bandeira não criticar o vulgar, o filisteu, o mun- que nossa poesia vem seguindo. [aí sentados na
JULHO DE 2019 19

minha arquibancada Para que denunciar com gran- você surgirá agora O que pretendo com estas li-
Muito prazer! diloquência? Toda a barbárie e loucu- pela primeira nhas? Em primeiro lugar, mostrar
sim, digo, muito prazer! ra das grandes cidades expostas no vez (ontem tempos com quase certeza que o raciocínio
Ninguém estava lá para absurdo não é acidente atropelar ciclis- atrás amanhã cabralino tomou conta da nova ge-
[apagar os incêndios ta!. E na última sílaba desta última antes do sol que se agora) ração. Se não tanto, a maioria dos /
chorei sozinha no quarto palavra fora de espaço. como se das poetas está atrelada àquelas ano-
[sem janelas Seguindo: agora apenas tações reduzidas em que pontificou
pulei amarelinha no dia seguinte retornasse Ana C. Cesar. Ou seja, o poeta inspi-
e tolamente sobrevivi Esperar Ulisses para rado de Dufrenne, aquele que é posto
[à cabra-cega Sem fios (1) esta casa ao serviço de potências que o transcen-
Esperar Ulisses quando (2) este corpo e dem, saiu o mapa. O poeta de Freud,
Patrícia Porto, 2017 [sem mais não alcanço senão (3) a alegria narcísico, movido por narcose e que não
Minha agulha que sempre é bastante forte para nos fazer esquecer
O que à primeira vista pare- Prefiro bordar, Ulisses agora nossa miséria real, está mudo.
ce lamento, logo se transforma num Enfiar na borda o lembra Está com razão Borges? —
dedo apontado para um problema tão [vermelho púrpura seu nome Passamos à poesia, passamos à vida. E
comum nos Brasis de hoje: a explo- Onde talvez se banhe, oh, não! Ricardo Aleixo, 2018 a vida, tenho certeza, é feita de poesia
ração sexual infantil. Ela chorou so- Achem para mim meus cabelos, (...) — a poesia está logo ali à espreita.
zinha, ela pergunta a razão de viver, [escravas A reiteração do agora e a Os poetas apresentados aqui, é óbvio,
ela chama pela inocência onde esta Preciso tecer de loucura os furos enunciação do tempo ressoam a es- não apenas refletem, mas refratam,
está interditada, ela constata a pre- [que entre pécie de solidão e desamparo do como quer Bakhtin, as muitas facetas
sença de palhaços — abusadores? — As pernas soluça: Ulisses poeta que, sem lacrimejar com tais de nossa realidade. Não é tempo de
todavia, sobrevive tolamente e está Preciso aplacar o calor que temas, mostra-os de forma contida. alienação. Não há lugar para nefeli-
inteira de novo na cabra-cega. A poe- [mesmo agora no frio A relação numérica aponta para o lo- batas. Há solidariedade com os mas-
ta deixa de buscar o idílio infantil, o Nua cal para onde o ser amado deve vol- sacrados e silenciados de todo dia.
paraíso do passado e revela o inferno Desfiei minhas vestes... tar, põe um corpo estranho no dis- Lembro Ungaretti:
escondido nesta fase da vida. É muito tempo curso verbal, quebra a leitura e a leva
Outra voz: Todo o tecido apodreceu... a um patamar de certa zombaria a Permita-me uma premissa. É
Levem-me ao mar. aguar o poema. comum dizer-se que o poeta vive au-
Agora já é passado. Adriane Garcia, 2013 Note o leitor que nem a tão sente da vida, que se entretém aparta-
Esse pensamento óbvio decantada musicalidade faz parte do em sua torre de marfim. Por favor,
ou clichê O erotismo, a solidão, o dese- dos poemas apontados. Cada um no abramos juntos os livros de poesia ofe-
ou demasiadamente lírico jo, a saudade, o vazio — e tudo tecido seu ser poético é claudicante, rompe recidos aos homens do século XIX até
ou filosoficamente raso com contenção. Um diálogo: no subs- a linha temática, distancia a leitura hoje. Se quisermos ter um testemunho
ainda me assombra trato, a Odisseia, de Homero, recriada como ato racional e não se apela para sincero e preciso do drama e da tragé-
[como a uma criança. na atualidade, a mulher poderosa, a a emoção tão presente na poética em dia do nosso tempo, devemos consul-
Agora é passado mulher dona de seu destino, não bor- língua portuguesa desde sempre. tar os poetas.
em Botafogo da apenas o véu, como determina o Para concluir:
Numa das listras da próprio caminho. Aponto para isto. O Brasil não
[faixa de pedestres Na obra-prima que é a antolo- Um bom poema é feito é feito para principiantes.
está escrito gia Pesado Demais Para a Ventania, de tiro de misericórdia.
Não é acidente atropelar ciclista! Ricardo Aleixo, também encontro os O poeta não tortura seu leitor
O trecho final da frase traços que venho apresentando: como faz o prosador,
o ta! linhas PAULO VENTURELLI é escritor e
está fora da listra Tão lento quanto e dias a fio. professor aposentado da Universidade
foi riscado em branco possível agora É pá-buf! Federal do Paraná (UFPR). Catarinense de
Brusque, está radicado em Curitiba (PR)
[no asfalto cinza. pousar o olhar O corpo caído:
desde 1974. Publicou 23 livros de vários
(…) na parte acesa da rua o pingo na testa. gêneros, incluindo poesia, contos, romance e
Thiago Camelo, 2017 de onde Marcelo Sandmann, 2014 infantojuvenil.
20 JULHO DE 2019

CONTO | CARLA BESSA

URUBUS
A
o puxar o sapato vem junto uma perna esgarça-
da. Mas não é só de calça desmembrada do dono,
não. Tem gente dentro, carne, osso. Tem sexo. Dá
para ver direitinho que tem tudo isso ali dentro da perna
daquela calça. É homem. É, ou foi. Será que está vivo ou
morto? Mas antes de se ocupar disso a mãozinha ainda
gordinha de criança apalpa, se escarafuncha para dentro
do bolso, quem sabe não tem dinheiro por aqui. Já teve
várias vezes, tantos fundos de calça recheados ali no lixão.
Ao sentir-se cavoucado, o quadril lá dentro da
roupa se contorce, vira de bruços, a mãozinha do la-
drãozinho fica imprensada, vai junto, ai meu deus. Cam-
baleia-tropeça o menino por cima do corpo que, caramba
tá vivo mesmo. O cheiro é: não tem nem como descrever,
é é é azedo, é é é insuportável. O corpo nos resíduos pa-
rece que reside há muito tempo. O menino grita, mas da
boca não sai som. Com desmedido esforço dá um último
puxão cheio de dor-raiva-medo, a mão liberta, a boca
solta um suspiro, aaaaah. Um pedaço de calça com pele
grudada, escamas, gordura, um líquido preto vem junto
na palma suja. O homem no meio do lixo se decompõe, o
menino pensa. E se lembra do pai lendo o panfleto, ar-
rancando com os dentes letra por letra das palavras: “o
chorume do aterro é um líquido preto que escorre do lixo,
penetra na terra, contamina o solo e o lençol freático”. O
menino na hora não entendeu, mas achou bonito o lençol
freático e desejou um para sua caminha que na verdade
era só colchonete sobre chão duro.
O mesmo pai que, agora, bem ali pertinho, avista o
filho e chama, ô Zezinho! O menino se ergue apoiando o
bracinho naquele corpo encontrado ali, a criatura afunda
ainda mais no entulho. No rosto empastado do homem no
meio do lixo de repente os olhos se abrem e, quem é você,
garoto? Zé Duardo, às suas ordens, o menino pensa, mas
não fala. A cara do homem deitado não dá para ver se é
JULHO DE 2019 21

ILUSTRAÇÃO: CAROLINA VIGNA


preto ou branco, nem o peito nu, agora vestido de lama. Quando chega na tenda à mar-
Zezinho arrepia. gem do aterro, o almoço posto na
As canelinhas finas ao alcance das mãos encar- mesa, foi dali mesmo, foi dos restos
didas, dos dedos de graxa-gordura-carvão daquele ser que tiraram tudo, tem o que apro-
imundo que logo estica o braço e puxa, ai, não! De novo a veitar. Zezinho come devora o que
voz sai só na cabeça, o berro fica entalado. A gargantinha encontra no prato, mas não é mui-
apertada, pensa em chamar o pai ali a poucos passos, tão to. Uma garrafa de Coca-Cola um
pertinho e tão longe longe longe, mas o grito sucumbe em outro moleque encontrou ainda fe-
plástico-resto-de-comida-lata-velha, corta o lábio. O chada, divide com ele e ficam ami-
homem agora agarra o menino, abraça, beija! e solta um gos. E mais um resto de um prato de
ar podre da boca, não moço não! A voz do menino agora alguém que ficou doente, ficou sem
estridente-entredentes. E enfia o pezinho numa fundura fome. Depois do almoço Zezinho le-
bem no lugar do sexo do homem-lama homem-lixo ho- vanta, arrota, anda e sobe um mon-
mem-bicho. Que solta um gemido um latido um ai aba- tinho com o amigo novo. Dali dá para
fado, não se sabe se dor ou o quê. ver o lugar onde encontrou o homem,
Zezinho liberto pisa naquele peito, nos braços, o os urubus rodeando, e a criatura lá
homem afunda afunda. Zezinho desacorrenta a raiva o em pé de novo catando lixo, comen-
medo, pula em cima do esfarrapado, dá chute na cara suja do ali mesmo, então não morreu. Ze-
da criatura. A cabeça vira bola, rola de um lado para o ou- zinho despreocupa. Aponta, mostra
tro, resfolegando colada na sola do menino. Por fim o cor- para o amigo, olha ali, conhece ele?
po pende para o lado, descamba para dentro de um des- Mas o amigo ocupado com um troço
nível uma vala, Zezinho não tinha visto, quase vai junto. que achou não dá atenção na hora.
De repente, do rabo do olho, ele advinha o pai ace- Insiste para Zezinho descer, ele vai
nando, ô, vem cá moleque, tô te chamando! Zezinho plan- muito a contragosto. Quando vê era
tado-estatelado, não se mexe nem a cabeça vira. Agora o só um diário todo escrito, de nada
olhar pregado no deslumbre do homem escorrendo para me serve, não sei ler. Sobe o monte
dentro da terra, se esfarelando, liquefazendo. Zezinho fica de novo arrastando o companheiro e
com medo, será que matei o sujeito. Nisso, sente uma mão quando olham o homem-chorume já
embrutecida um tentáculo sobre o ombrinho pontudo de tinha sumido. No lugar onde estava,
tão magro, um susto da porra, o menino quase desmaia. agora pousados bicando o lixo: um
Mas era só o pai, a boca anunciando, esse aí, dizem que bando de urubus.
ele vive aqui. É o homem-chorume, o fantasma, o anjo do
lixão. Não mexe com ele, não. Aí Zezinho aprende que o
ser humano no lixo falta pouco para ser lixo humano. Ze-
CARLA BESSA é uma escritora e tradutora
zinho compreende que aquele é ele daqui a alguns anos.
carioca radicada na Alemanha desde
O pai e o filho se afastam, os olhos nos pés chafur- 1991. Estreou na literatura com Aí Eu Fiquei
dando nos resíduos. Mais adiante o pai nota Zezinho se Sem Esse Filho (2017). O conto “Urubus”,
virando toda hora para trás, chega garoto, esquece ele, publicado pelo Cândido, foi um dos
vencedores do Prêmio Off Flip de Literatura e
vamos almoçar. O menino não obedece, observa espan- integra um livro homônimo que será lançado
tado os urubus sobrevoando o lugar onde o homem caiu. neste mês de julho, durante a Festa Literária
Caiu não, escorreu. Internacional de Paraty.
22 JULHO DE 2019

ARTIGO | LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

ESCREVER FICÇÃO:
O MAKING-OF
O coordenador da já lendária Oficina O que eu não contava é que a nha alguns romances publicados e
de Criação Literária da PUCRS ideia passara pela cabeça também do dez anos de magistério superior. Ao
pessoal da Companhia das Letras, o final dessa primeira aula, eu sen-
revela os bastidores de seu livro gentilíssimo Luiz Schwarcz à fren- ti que estava comprometido com a
mais recente, um “manual reflexivo” te. Me convidaram para conversar, fui. oficina. Depois, aquilo se consoli-
para aspirantes a escritor A reunião foi bem prazerosa, e o café, dou, criei uma pedagogia — que está
bem encorpado. Me fizeram uma pro- sempre em transformação — e com
posta concreta, a partir de um concei- o suceder dos anos vi meus alunos

C
onfesso: nunca passou pela minha cabeça escre- to: que eu escrevesse um manual que crescendo, ganhando prêmios, pu-
ver uma obra dessa natureza. Pela cabeça dos meus desse indicações de como melhorar a blicando em editoras de prestígio,
alunos e ex-alunos, sim, passou. Me sugeriam, al- escrita dos aspirantes a escritor. O as- sendo traduzidos, fazendo suas vi-
guns pediam francamente, outros exigiam, sob a épica ale- sunto, portanto, voltava à minha vida. das de sucesso. Sim, alguma coisa eu
gação de que eu tinha o compromisso tácito, firmado com Alegaram que eu tinha a experiência tinha construído, não poderia negar
a minha geração, de deixar um legado das mais de três dé- necessária para isso e que inúmeros isso a mim mesmo. Mas como eu iria
cadas de ensino ininterrupto da escrita criativa. Eram ge- autores da editora foram meus alu- escrever esse livro? A quem se desti-
nerosos em demasia, mimavam-me, mas também, e in- nos. Coloquei algumas dúvidas, cada naria, eu estava certo: a pessoas que
diretamente, me lembravam da minha óbvia mortalidade. vez menos enfáticas à medida em que querem escrever ficção e acham que
Eu me sentia o próprio professor Uchida Hyakken, do filme transcorria a reunião. Ao fim da tar- não dominam todas as ferramen-
Madadayo, do Akira Kurosawa. Minha resposta invariável de eu havia concordado. Mas saí de lá tas para isso. Então: seria um livro
era não, não vou escrever e alegava quatro motivos: em pri- com um grande ponto de interrogação escrito por um escritor para outros
meiro, a preguiça, esse motor da humanidade; em segundo, e, talvez, com a desconfiança de que escritores. Embora eu seja um pro-
eu teria de suspender a escrita da minha própria literatura iria cometer uma fraude. fessor, também um teórico, senti
por um bom tempo — boa ou má, só eu poderia escrevê-la; No voo de retorno a Porto desde logo que o livro não poderia
em terceiro, eu não tinha a menor ideia de como se escre- Alegre, a 35 mil pés, comecei a pen- trazer teoria; a teoria é uma sofis-
via um livro como esse; e em quarto, o mais importante, eu sar nas razões que me tinham leva- ticada extravagância para quem não
não escreveria porque sempre me considerei, e ainda me do àquela situação completamente pensa nisso, e quer apenas escrever
considero, um professor, que pratica, mais do que tudo, o inesperada. Pensei, é claro, no meu uma ficção.
corpo a corpo com o aluno — como eu iria “dar aulas” em longo itinerário, em especial, da
forma de livro, sem a presença, sem o olhar, sem o respirar primeira aula da oficina da PUCRS, GRANDES TEMAS
expectante do aluno à minha frente? Com essas respostas, lá no século XX, com todos aque- Um pensamento inicial foi di-
sei claramente, decepcionei o pessoal. Mas o fato é que, aos les alunos à frente e eu sem saber vidir a obra em 30 capítulos, chama-
poucos, eles tiraram a ideia da cabeça e eu voltei à segura, muito bem como começar. Naque- dos de aula 1, aula 2, etc., até 30, que
mas sempre fascinante, rotina das minhas aulas. le momento, a meu crédito, eu ti- é o número de encontros da minha
JULHO DE 2019 23

FÁ B I O S A N T I AG O

Luiz Antonio de Assis


Brasil ministrando
uma oficina de
oficina completa. Logo vi que não to, tempo, espaço, enredo, pois, na criação literária na suntos que eu iria desenvolver. E teria de haver citações
iria funcionar, porque os conteúdos verdade, é isso mesmo que faço nas Biblioteca em 2017 de clássicos, modernos, contemporâneos, estrangeiros e
de uma aula se entreveram com os de aulas. Soube, de pronto, que o livro nacionais, mulheres e homens. No final resultaram 271
outra, e eu teria de repetir algumas estaria recheado de citações de au- autores citados ou referidos.
coisas. A progressão seria bocejan- tores literários, que chamei, como Depois, havia uma questão importante: “ficção” é
te, inclusive para mim mesmo. En- orientação de trabalho, de “textos uma generalidade; ela engloba o conto, o romance, a no-
tão me ocorreu que talvez não fosse exemplares”, parafraseando o título vela. Embora não pareça, são gêneros bastante delimita-
má ideia tratar dos grandes temas da de Cervantes. Sim, teria de ter mui- dos e de longa tradição. O meu livro teria de ser suficien-
escrita de ficção, e que qualquer es- tas citações, muitas. Eu precisava de temente amplo para atender a essas três formas. Simples
colar conhece: personagem, confli- textos que me dessem razão nos as- assim, eu pensava.
24 JULHO DE 2019

ARTIGO | LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

E pensei num título: Sobre Escrita de Ficção. Em boa Q U E S TÃ O E S S E N C I A L deve entender essa organização inter-
hora, e depois do livro pronto para ser publicado, Luiz Algo interessante que aconteceu, na — e é nossa incumbência fazer com
Schwarcz sugeriu algo bem mais simples, estimulante e algo inesperado, foi o quanto eu refleti que isso aconteça —, isso lhe possibi-
dinâmico, com um verbo incluído: Escrever Ficção. Muitos sobre as questões literárias que eu en- litará entender uma obra fragmentada.
amigos foram contra a expressão “manual” do subtítulo, sinava como algo consolidado para mim Assim, substituí a ideia de linearida-
porque achavam que isso diminuía a obra. Mas eu sabia mesmo; o decorrer dos meses da escrita, de pela ideia de sistema. Essas foram
que não era apenas um manual, porque haveria muito de entretanto, me fez criar novas propos- “descobertas” que a mim mesmo sur-
reflexão. Assim, era preferível que os leitores descobris- tas, que destoam do habitual, e tenho preenderam, e foram para o livro. É
sem isso por si mesmos, o que de fato tem acontecido, bem presente dois casos. Uma destas possível que não sejam ideias tão no-
conforme consta nas resenhas críticas saídas até agora. se refere ao que chamei de questão es- vas no plano das diferentes disciplinas
Bem, e que tamanho teria esse livro? Um tamanhão, para sencial da personagem. A personagem é literárias, mas serão novas quando a
dar conta de tudo isso. Algo como 250 páginas. No fim de mais relevante do que a história (uma perspectiva é a de quem escreve, não
tudo, ficou em 400 páginas. das minhas propostas) e, por isso, o fic- a de quem lê. Isso aconteceu também
Quando o avião pousou em Porto Alegre, a tarefa cionista deve dedicar a ela o melhor de com o costumeiro ensinamento acer-
já era um realizável e sedutor pesadelo. Mas eu trazia um sua inventividade. A partir de algumas ca dos narradores (Norman Friedman
bônus na manga. Sucede que, durante a reunião na editora, leituras que passaram por Freud, La- à frente) que substituí pela concep-
me foi oferecida a possibilidade de contar com um auxiliar can e Charles Mauron, e conversas com ção de focalização de Gérard Genette,
de pesquisa, o que aceitei com alegria, decerto já anteci- o psicanalista Robson Pereira, cheguei abandonada ao ferro velho da teoria
pando a enormidade do encargo. Então, na minha univer- à obviedade: se todos nós possuímos desde o derretimento do Estruturalis-
sidade, a P
­ UCRS, havia boas alunas e alunos de nossa gra- uma questão que vive dentro de nós — mo. A ideia de focalização é bem mais
duação, mestrado e doutorado em Escrita Criativa. Alguns e quase sempre ela é causa de sofrimen- leve, e a que mais serve a quem co-
tinham sido meus alunos de oficina, e dentre estes, escolhi to —, a personagem, porque ser huma- meça a escrever — mas atenção: fiz
e convidei Luís Roberto Amabile, um jovem escritor, in- no, também terá essa peculiaridade e, tudo isso reduzindo a teoria a um ro-
teligente e vocacionado, que dava os primeiros passos na assim, a tarefa primordial do ficcionista dapé, fiel ao propósito que deu for-
carreira acadêmica. O Luís Roberto revelou-se um exemplo é estabelecer a questão essencial de sua ma ao livro. Essas reflexões foram de-
de pessoa que entendeu a natureza de sua tarefa, que foi personagem; uma vez isso criado e co- senvolvidas durante a escrita do livro
além da simples busca dos textos exemplares que me fal- nhecido, o conflito gera-se quando essa e, o principal, durante as aulas, que,
tavam, pois ele próprio tinha sugestões excelentes. Muito questão se choca com os fatos da vida, e entretanto, seguiam seu andamento
discutimos, muito conversamos, num trabalho que levou encontrei no Hamlet — mas não só nele normal na universidade. Assim, meus
mais de um ano. Ele, por exemplo, me lembrava de coisas — o melhor exemplo. pacientes alunos foram, com todo o
que eu havia falado em aula e que seria interessante in- Outro tema que avancei foi so- respeito, os alegres pilotos de prova
cluir no livro; noutras, me expunha, com muita franque- bre a organização sistêmica da obra das minhas experiências metodológi-
za, “não foi bem assim que o senhor falou em aula”. Hoje ficcional, que tem no centro a perso- cas, e se divertiam quando eu trazia,
ele consta como colaborador na obra, e com muita justiça. nagem e sua questão essencial. O leitor para discutir com eles (e experimen-
JULHO DE 2019 25

tar, diga-se) um tema de um livro que aproveitar a minha experiência com a Contando o número de caracte-
ainda era um embrião. narrativa longa e, por isso, incluí um res, vejo que ainda me sobra um pe-
De repente, voltou um assunto roteiro para a escrita do romance li- queno espaço, e me permito a uma
que eu pensava plenamente decidido near. Hesitei de início, pois isso pode- confidência tragicômica: durante a
naquele voo de retorno de São Paulo, ria levar a uma sensação de déjà-vu: escrita do livro, tive um diagnóstico
e voltou com uma constatação: seria eu teria de retomar alguns assuntos, médico muito ruim, ruim mesmo, na
impossível que o livro pudesse valer, mas corri o risco, e agora vejo que esse forma de um laudo. Cheguei à univer-
ao mesmo tempo, para tratar dos três é um capítulo muito apreciado pelos sidade arrastando o mundo nas costas
gêneros narrativos. A personagem, leitores, senão o mais apreciado. e com o tal laudo incendiando a mi-
por exemplo, e seu desenvolvimen- A tudo isso muito me ajudou nha pasta. Um ex-aluno me viu e re-
to, tal como vinha sendo tratado até meu pensamento racionalista-ilu- solveu me perguntar o que eu andava
àquele ponto do livro, é assunto pró- minista, que sei fora de moda numa escrevendo. Disse-lhe, com uma voz
prio da novela e do romance, pois, no época em que a razão está em baixa, certamente deprimida, murmurante,
conto contemporâneo, o que vale é o trocada pela brutalidade. Esse pen- que era um manual de escrita criati-
instante — a tal “fotografia” de que samento, contudo, vai me servir até va. Resposta dele, cheia de alegre sur-
fala Cortázar; o mesmo para a trama, o o fim da vida e, a bem dizer, só me presa: “Mas que belo testamento será,
conflito, etc. O que fazer? Seria impos- ajuda quando o trabalho é me tornar professor!”. Pano rápido, como diria o
sível “passar por cima” na diferen- claro e sistematizador, qualidades Millôr e suas metáforas teatrais. De-
ça entre esses gêneros. A decisão foi que penso intrínsecas ao professor, pois de uma cirurgia, tudo se resolveu.
colocar, aqui e ali, observações mais especialmente ao professor que es- E o testamento, esse, está aí.
ou menos deste teor: “isto vale mais creve um manual.
para a novela e o romance”; noutros Enfim, minhas quatro alega-
casos, como o tratamento do espaço, ções para recusar a empreitada fo-
do tempo etc., eles podem valer para ram se desfazendo: cessou a pre-
os três gêneros. Assim, penso que isso guiça, continuei a escrever minha
ficou resolvido. Foi dessa forma que a literatura (Leopold, uma novela), fui
obra avançou, crescendo e crescendo entendendo a metodologia do livro
a cada semana, gerando descobertas à medida em que o escrevia, e pen-
e — por que não? — encantamento. so que consegui, sem grande perda, LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL é
transpor algo da “aula falada” para a escritor e professor universitário. Publicou
ROMANCE LINEAR “aula escrita”. Isto é: cumpri o meu mais de 20 livros, entre eles Concerto
Campestre, O Pintor de Retratos e Escrever
Quase ao final, mesmo haven- propósito e cheguei inteiro ao final.
Ficção: Um Manual de Criação Literária.
do decidido que o livro fosse mul- Quanto à qualidade da obra, bem — Coordena, há 34 anos, a Oficina de Criação
tiuso, senti que seria uma pena não isso não me compete avaliar. Literária da PUCRS.
26 JULHO DE 2019

ILUS

ENSAIO

CÃO
ROMÂNTICO
Mais conhecido por seus romances,
o escritor chileno Roberto Bolaño
(1953-2003) foi essencialmente um
poeta e encabeçou o movimento
de vanguarda infrarrealista

JOÃO LUCAS DUSI

O
escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) foi
essencialmente um poeta. Apesar de reconhe-
cido e premiado por seus dois maiores roman-
ces, Os Detetives Selvagens (1998) e 2666 (lançado pos-
tumamente em 2004), o autor teve uma relação muito
próxima com os versos. No Brasil, apenas traduções in-
dependentes de seus poemas foram publicadas, mas a
Companhia das Letras — casa editorial do autor no país
— planeja lançar seu trabalho poético no ano que vem.
Aos 26 anos de idade, em 1979, Bolaño organi-
zou a antologia Muchachos Desnudos Bajo El Arcoiris de
Fuego, reunindo 11 jovens poetas latino-americanos.
Essa manobra iniciática sugere que explorar o potencial
simbólico do conglomerado de países miseráveis e vio-
lentos que chamam de América Latina foi desde sem-
pre uma das preocupações do autor. Em entrevista con-
cedida no mesmo ano de sua morte, por exemplo, ele
foi questionado sobre sua nacionalidade e cravou: “Sou
latino-americano”.
Mesmo que já se dedicasse às letras há bastante
tempo, foi somente aos 43 anos de idade que enveredou
JULHO DE 2019 27

I L U S T R AÇ Õ E S : B E AT R I Z C A J É

de vez por esse caminho. A essa al- tipoesia”, e que para Bolaño “estava acima de todos”,
tura, morava na Espanha desde 1977 parece ter sido decisiva no imaginário do autor chileno.
e exerceu inúmeras atividades alea- Em conversas com a imprensa, não era raro soltar fra-
tórias a fim de sobreviver — de gar- ses do tipo “Não escuto conselhos de ninguém, nem se-
çom a vendedor de bijuterias. Mas quer de meu médico” (ele morreu aos 50 anos de idade,
seu ofício preferido foi o de vigilante em 2003, em decorrência de complicações hepáticas)
noturno de um camping próximo de ou “Gostaria de ter sido detetive de homicídios, muito
Barcelona. Este também foi o traba- mais que escritor”.
lho que melhor exerceu, já que nin- Ainda sobre a relevância da poesia na prosa de
guém nunca roubou nada enquanto Bolaño, James Wood comenta sobre Noturno do Chile
Bolaño esteve por lá. (2000), em resenha publicada em abril de 2007 no New
Com a publicação de A Lite- York Times: “O romance inteiro é uma espécie de poe-
ratura Nazista na América, em 1996, ma. Você não vai se surpreender ao descobrir que Ro-
o escritor chamou a atenção da crí- berto Bolaño escreveu poesia antes de prosa”. O crítico
tica e pôde deixar para trás os su- inglês também relembra a utilização de períodos curtos
bempregos. O livro, o terceiro de sua e discretos ao se referir à estrutura do monumental Os
carreira, traz biografias fictícias de Detetives Selvagens.
romancistas, ensaístas e sobretudo Neste livro de mais de 600 páginas, vencedor do
poetas que nutriram alguma sim- Prêmio Rómulo Gallegos, os integrantes do movimento
patia pelo nazismo e outras barbá- poético de vanguarda Realismo Visceral (encabeçado pe-
ries afins. Como é o caso da abas- los poetas que não versam Arturo Belano e Ulises Lima)
tada argentina Edelmira Thompson estão atrás da desaparecida Cesárea Tinajero. São os “de-
de Mendiluce (1894-1993), que es- tetives selvagens” que dão título à obra. E nenhuma se-
treou na poesia aos 15 anos de ida- melhança com a vida real do autor é mera coincidência.
de, com Para Papai, ou da mexicana
Irma Carrasco (1910-1966), autora INFRARREALISMO
dos versos de A Voz Por Ti Murcha. Na abertura do “Primeiro Manifesto Infrarrealista”,
A primeira obra de Bolaño a redigido por Bolaño na década de 1970 e publicado na In-
cair nas graças dos críticos, como se fra — Revistal Menstrual del Movimiento Infrarrealista, lê-se:
pode perceber, é fortemente pauta- “LARGUEM TUDO, NOVAMENTE” — assim mesmo, em
da pela poesia — e já traz o tom crí- maiúsculas, como um brado. O pontapé inicial do infrar-
tico e destemido que caracterizaria realismo se deu na Cidade do México, onde Bolaño morou
toda sua produção futura. Em en- por alguns anos. O grupo contou com a participação de no-
trevista de 2001, quando questiona- mes como Mario Santiago Papasquiaro (1953-1998), que
do sobre o motivo de escolher tra- morreu atropelado ao atravessar a rua sem olhar para os
balhar com o controverso tema do lados (era uma prática recorrente em seus passeios), e os
nazismo, disparou: “Como disse Ni- ainda vivos Rubén Medina e Bruno Montané — este último,
canor Parra, para foder a paciência. em entrevista de 2016, publicada no portal LuchaLibro, dis-
Basicamente para foder a paciência. se: “Caminhar, escrever, recitar poemas e namorar eram
Para rir muito”. Essa irreverência de coisas que desejávamos e devíamos fazer”, referindo-se às
Parra, um poeta que praticou a “an- atividades do movimento poético.
28 JULHO DE 2019

ENSAIO

Dentre as reivindicações do grupo, que em algu- os especialistas em poesia sabem o


ma medida guardam semelhanças com as reformas es- que é um dímetro coriâmbico, é pe-
tilísticas sugeridas pelos artistas brasileiros a partir da rigoso se definir como poeta”. Ou-
Semana de Arte Moderna (1922), estava “fazer surgir tros exibicionismos do autor, que
novas sensações — subverter o cotidiano”. A recusa à trazem uma verve humorística, são
mesmice, típica dos movimentos de vanguarda jovens e encontrados em Os Detetives Selva-
disruptivos, aparece em outro trecho do manifesto: “So- gens, por meio do personagem Juan
nhávamos com utopia e acordamos gritando”. A partir García Madero. Ao longo da obra, o
do momento em que se assimila o golpe aplicado pela jovem aspirante a poeta de 17 anos,
realidade, a única saída é se rebelar. Não à toa, Bolaño que mais parece uma enciclopédia
admirava Arthur Rimbaud (1854-1891), o poeta francês ambulante, destila conhecimen-
que, aos 19 anos de idade, queimou centenas de cópias to técnico sobre poesia. Nem só de
de seu livro de estreia, Uma Temporada no Inferno. combatividade se sustentavam os
Essa postura combativa se evidencia no trabalho versos ou a pessoa de Bolaño.
poético de Bolaño. No poema “A poesia latino-america-
na”, por exemplo, publicado na seção Manifestos y Po- SONHO INOMINÁVEL
siciones da coletânea La Universidad Desconocida (2007), Em “O burro”, poema que
o alerta vem já no primeiro verso (em tradução de Mit- também integra La Universidad Des-
suo Florentino, assim como os versos de “O Burro” que conocida, o amigo Mario Santiago Pa-
serão citados adiante): “Algo horrível, cavalheiros. A pasquiaro, transformado em perso-
vacuidade e o espanto”. O poema segue investigando a nagem, busca o próprio autor, Bolaño,
condição dos poetas “mexicanos e argentinos, peruanos em uma moto preta, roubada, e eles
e colombianos, chilenos, brasileiros e bolivianos”, to- partem atrás de “um sonho inominá-
dos “empenhados em suas parcelas de poder”, “pate- vel, / Inclassificável, o sonho da nossa
ticamente orgulhosos e pateticamente cultos”, “vaido- juventude, / Digo, o mais valente so-
sos e lamentáveis” — nota-se que não faltam elogios. nho de todos / Os sonhos”. Trata-se
Esse ataque aos seus pares indica que, ao mesmo tem- da valentia que exige o movimento de
po em que a poesia lhe é cara, a figura mítica do poeta, contrariedade, longe da estagnação e
isto é, aquele sujeito empolado, arrogante e beletrista a favor da pulsão. Por mais que às ve-
— caso dos parnasianos brasileiros, como Olavo Bilac e zes o poeta chileno soe dúbio, como
suas polainas, para usar um exemplo que nos é próxi- quando comenta sobre “o sonho ino-
mo —, causa-lhe repugnância. Para Bolaño, a poesia se minável e inútil / da valentia”, esse
assemelha a um gesto de valentia que não pode fugir à conflito interno parece ser justamen-
realidade em nome de uma pretensa elevação. te o que o move. Insistir nessa causa
Sobre sua própria produção, comentou: “Como perdida, a poesia, é sua força motriz,
poeta não sou nada lírico. Sou totalmente prosaico, co- e o único “palco concebível” para essa
tidiano”. Ironicamente, o autor tinha um vasto conhe- inutilidade é uma “rota miserável, de
cimento do fazer poético. Em entrevista ao jornal chi- caminhos apagados pela chuva e pelo
leno Las Últimas Noticias, concedida em 2003 a Mónica pó, terra de moscas e lagartixas, ma-
Maristain, afirmou: “Num país como o Chile, onde nem tos ressecados e ventanias de areia”.
JULHO DE 2019 29

É como se não houvesse espaço para seus versos em am-


bientes civilizados e esterilizados, isto é, longe da maneira
que ele concebia a realidade.
Outros versos que trabalham com essa dubiedade
estão no poema “Os cães românticos”, aqui em tradu-
ção de André Caramuru Aubert: “Naquele tempo eu ti-
nha vinte anos / e estava louco. / Havia perdido um país /
mas havia ganhado um sonho. / E se tinha esse sonho / o
resto não importava”. A aparente fortuna do jovem poe-
ta, que viu o Chile tomado pela ditadura, mas encontrou
forças no sonho lírico, se desdobra: “E o pesadelo me di-
zia: crescerás. / Deixarás para trás as imagens da dor e do
labirinto / e esquecerás”. Quem lhe comunica a nova sorte
é o pesadelo, e aí está mais um par de opostos recorren-
tes no versejar do autor: sonho e pesadelo de mãos dadas.
Mas é possível que o maior exemplo desse con-
flito interior de Bolaño, que parecia ver na poesia algo
tão repulsivo quanto essencial, esteja no romance Amu-
leto (1999). Desdobramento de um acontecimento nar-
rado em Os Detetives Selvagens, o livro é um relato da
uruguaia Auxilio Lacouture — uma mulher “sem docu-
mentos, sem trabalho, sem casa onde descansar a ca-
beça”. Depois de passar alguns dias confinada num ba-
nheiro da Universidade Nacional Autônoma do México,
enquanto os granadeiros e o exército invadiam a insti-
tuição, ela retorna à “realidade” e vê se abrir um abismo
insondável em um vale, com fantasmas que marcham,
“caminham para o abismo”.
Apesar de não constituírem uma unidade hege-
mônica, esses caminhantes fantasmagóricos estão uni-
dos pela generosidade e a coragem. Sobre a cena, a “mãe
de todos os poetas do México” comenta: “E os ouvi can-
tar, ainda os ouço cantar, agora que não estou no vale,
bem baixinho, apenas um murmúrio quase inaudível,
os meninos mais lindos da América Latina, os meninos
mal alimentados e os bem alimentados, os que tiveram
tudo e os que não tiveram nada, que canto mais lin-
do o que sai de seus lábios, que bonitos eles eram, que
beleza, apesar de estarem marchando ombro a ombro
rumo à morte”.
30 JULHO DE 2019

HQ | ALINE DAKA
JULHO DE 2019 31

ALINE DAKA é ilustradora, artista visual e educadora. Mestre em Edução e bacharel e licenciada em Artes Visuais,
é curadora da (n.t.) Revista Literária em Tradução e já participou de exposições em várias cidades do Brasil.
32 JULHO DE 2019

P OEMA | LUIZ FELIPE LEPREVOST

ILUSTRAÇÃO: CAROLINA VIGNA


NÃO SEI COMO UM
POEMA DEVE SER
um crânio achado por uma retroescavadeira a identificação biométrica
a sensação de habitar um país extinto a cidade vazando o triplo do próprio tamanho
uma vidência, uma evidência esmagar a área pública de uso restrito
frutas na água, escorregar na lajota trak-trek-trak de cavalos batendo cascos
de que lugar no meu corpo chega o seu nome a casa envolvida por uma atmosfera hibernal
zebras no final da jornada a neblina floresta de vapor por onde os mortos abrem picadas
um violão violando o viver sem trégua o ódio cheio de areia, a areia não ser areia alheia
filhotes de águia, a solidão de um oásis o amor desabado sobre as coisas que não são ele
escuta vê abraça uma visão O Carro da Miséria
a paciência que apenas os ossos têm voltar à superfície da rua extrema
a ânsia da carne pela carne a resignação das almas paradas
a mensagem suja entrando em tudo
a ferrugem corroendo a soberba dos motores não sei se
é tudo verdade, é mentira um poema
verde e amarelo
você se conhece ou inventa deve chorar a sua boca, ateliê de sobrancelhas
se deve bicar como pombas febris a besta abjeta
como deve ser um poema se o seu reflexo cimentado nos aros dos ânimos exaltados
não sei se deve vir com um bridão nos dentes
se o Beijo no Asfalto, se a moléstia indigesta
um mecanismo esfarelando
seco como um tiro
molhado como um orgasmo
formigas se infiltrando pela fresta
você me socorrendo no fim da saudade
barulhento como uma passeata contra o tirano
LUIZ FELIPE LEPREVOST é escritor, compositor, ator e dramaturgo.
exageradamente feliz Publicou E se Contorce Igual um Dragãozinho Ferido, Barras Antipânico e Barrinha
um carnaval que se faz no corpo de Cereal, Ode Mundana e Tudo Urge no Meu Estar Tranquilo, entre outros livros.
a incredulidade do sexo Teve encenadas as peças Hieronymus nas Masmorras, O Butô do Mick Jagger, Na
Verdade não Era e Pecinhas para uma Tecnologia do Afeto.

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