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A TERRA SEM MAL, O PARAISO TUPI-GUARANI Eduardo de Almeida Navarro* descoberte da América conduciria, inexoravelmente, 3 necessidaide de um enguadranertodas novas vrealidades geogndjicos, culteraise socials secém-conhecidas nos esquemas europeus de compreen- sto do homem e de mundo e isso para impedtr a reativizagdo de Revelagéo biblica e selnaguardar ideia de unidade do género humano aceita desde a Antigiidade. Desse modo, a reli indigenas foram interpretados segundo os conceitor vigentes no universe mental europen do século XVI, O mito de Sumé foi assimilade & pregasio do apéstolo Séo Tomé na América, 0 mita do dilivio foi compreendido como reminiscincia de narrativa do Ginesis.A verdadeira religite sspi-geareni, que tem como esséncie a crenga na Terrasers Mal, passoudespercebide, nado, Religido sem Teologia, concebia.o paraiso como e superagéoda morte, da order social e politica. Poratso de hamens.deuses, que teria uma realizagFo histérien e uma localicogo peoprdfica, A busca da Terra sem Mal levou a grandes migragbes de indios pela América do Sul ¢ a idéia da imortalidade, nela conti, foi assimileda aocdnecito de "Vide Eteraado Cristionismo, oque avorecen emgrande ‘medida, © bom sucesso do Estado Jesuitico do Paroguci, Na superficie da terra nao hi, por certo, povo ou triboa que melhor se aplique do que ao guarani a palavra evangélica: O meu reino no 6 deste mundo. Tods a vida mental do guarani converge para o Alem”, Egon Schaden A compreensao da religido e dos mitos indigenas pelos europeus no século XVI. De origem remotissima, a grande naco tupi guarani ocupa- va vasia extensio do Brasil, do Paraguai, da Argentina e da Bolivia a0 chegarem @ América 0s conquistadores europeus. Desde o inicio, 0s relatos e as crdnicas dos viajantes ¢ dos missionarios ‘ram undnimes em afirmar que os indios tupi-guaranis nao tinham rcligiio. Pero de Magalhies Gandavo em 1576 escrevia “Nii adoram a coisa alguma nem tém para si que hi, depois da morte, gloria para os bons e pena para os maus". CULTURA VOTES - He 2, MARGO-ABRIL i535 a , A propria lingua tupi refletia, para Gandavo, a feicdo desor. denada da sociedade indigena: “Nao se acta nela F nem L nem R, coisa digna de espanto, Porque assim nao tém F8, nem Lei nem Rei’. O Padre Feinao Cardim escrevia em 1592 que “este gentio ndo tem conhecimento algum de seu Criador nem de cousa do Céu... &, portanto, nao tém adoragio nenhuma nem cerimonias ‘ou culto divino”. S80 Miguel das Missses ~ 85, Foto: arquiva/Eduardo de Almeida Navatro, Religido sem templos, sem Religido sem templos, sem adoracao de ido- i adoracao de idolos, sem los, sem sacrificios de animais, sem representacSes : Sacrificios de animais, sem __‘figuradas das dvindades, a religiso dos indios tupt. representagbes figuradas das __varanis passou despercetida para os eutopous ¢ divindades, a religido dos indios__€5se3 acreditaram, mesmo, que no tivessem ne- tupi-guaranis passou nhuma, despercebida para os europeus ¢ esses acreditaram, mesmo, que no tivessem nenhuma. Para os europeus do sécillo XMI, a descober- ta da existéncia de seres humanos na América Colocava uma sétia questio: como incluir os f dios nos esquemas de compreensio do homem A TEREA SER WAL. © PaRAISO ryrL suntan do mundo daquela época, em que a Biblia era considerada em sua literalidade? Como ligar os indios & hist6ria da humanidade em seu todo, jé que desde Santo Agostinho afirmavase a unidade do género humano’ Por outro lado, se a Biblia dizia que a palavra dos apéstolos correriatodaa Terra, teria a doutrina cristé chegado até os tupi-guaranis da América? *Sim, a doutrina crista foi transmitida aos indios na Antigi dade pelo apéstolo SE Tomé". Isso foi afirmado por Manuel da _Nébrega,_pelo Padre Vieira, foi idéia plenamente aceita nos séculos XVI € XVII. Na verdade, 0 que se fez foi interpretarse o mito de Sumé, heréi civilizador a quem os Tupis atiibufam, principalmente, 0 conhecimento que eles tinham da agricultura © de sua organizagao social, como uma narrativa da vinda do apéstolo So Tomé para a América. Com efeito, os nomes “Sumé” e “Tomé” tam semethangas sonoras. Por outro lado, se os indios nao eram idélatras, isso poderia ser conseqiéncia dos ensinamentos cristos que foram dados a seus ancestrais na Antgiidade. Além disso, muitos missionatios afirmaram a “inacéncia dos Indios”_Jean de Léry jona uma verdadeira fico de vida que um velho indio the deu. O indio queria saber por que os franceses vinham buscar 0 pau-brasil de to longe: “~ Mas esse homem 10 ico (isto é, 0 negociante de Ppau-brasil) nao morre? ~ Sim, disse eu, morre como os outros. ~Na verdade, agora vejo que vés...s0is grandes loucos, pois atravessais o mere sofreis grandes incomodos...e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Nao seré a terra que vos nutriu suficiente para alimentélos também?" Desse modo, s¢ 0 indio tinha valores espirituais admiraveis, se 5 podias respigar no discurso indigena parcelas da vercade cristd, isso seria um indicio da pregacao do apostolo Sao Tomé no passado. © dominicano Gregério Garcia em 1607 escrevia em sua “Origen de los Indios del Nuevo Mundo” que hi mengées a0 continente americano na prépria Sagrada Escritura. O proprio nome de Colombo e os de seus companheiros estariam suben- tendidos em Isaias, 60,8: COLTURA votES - me 2, waRco-aarie does aa Be 64 “Quem sao estes que como nuvens voarn e como pombas pera seus pombais? Esperam-me as ilhas e as naus do mar esta0 hg muito preparadas para que tragam seus filhos de longe eo ouro ea prata delas consigo”. ‘Além do mito de Sumé, outro mito indigena foi interpretado pelos europeus nos termos da narrativa biblica: © mito do diliivio. Assim se expressou 0 marinheiro alemio Hans Staden a respei ““Narrama que houve uma vez uma vastidao de aguas na qual todos os seus entepassados morreram afogados. “Narram que houve uma vez. Somente alguns dai escaparam numa emberca- uma vastidao de 4guasnaqual 0 ¢ outros sobre altas drvores. Penso que deve todos os seus antepassados ter sido o di io”. morreram afogados. Somente alguns dai escaparam numa embarcacao e outros sobre altas Arvores. Penso que deve ter sido odil Assim, enlagando 0 pasado indigena com a historia da salvagao da humanidade, a percep¢ao do mundo indio se tornaria coerente , a verdade biblica ficaria a salvo do relativismo geogrstico, Sarantida estaria a universalidade da Revelag3o (0s esquemas de compreensiio do homem e do mundo, fundados na Biblia, no seriam subvertidos. Desse modo, os indios foram, nas séculos XVI e XVII, considerados cristaos adormecidos, esquecidos da doutrina que, ensinada havia muito tempo atris, ter sea transmitido oralmente, haja vista o desconhecimento da escrita por eles e, assim, tesla chegado incompleta e fragmentada , ndo levando, portant, a uma prética e aura correcdo de vida que deveriam corresponder ao conhecimento pleno da palavra de Deus Yby Mara é yma, 0 paraiso dos homens-deuses Contudo, quer fossem pagaos sem conhecimento algum de seu Cilador ou cristaos adormecidos, com muitos valores que eram, certamente, os do Evangelho, a verdade & que os indios tupguaranis tinham uma religigo, uma religido sem Teologia, sem nenhum discurso sobre a divindade, sem um pantego a cultuar € sem deuses para os quais oferecer sacrificios propiciatérios. A esséncia de sua religido era a crenca na Terra sem Mal, a Yby mara’yma dos tupis, a Yvy marde’y dos guaranis. A Tirta SEM MLL, 0 PaRAISO TUPI-GuARAMI A dilerenga do peratso cristo ou mugulmano, que os justos conquistaro somente apés a morte, a Terra sem Mal tupi-guarani teria existéncia geografica e realizacao historica. € um lugar acessfvel aos vivos, aonde seria possivel ir de corpo ¢ alma, sem passar pela morte. Nela esto 0s ancestrais que morreram, masa morte no seria condicao necessaria para atingila Nio se poderia, por outro lado, assimilar a concepgio da Terra sem Mal & concepgao do Reino de Deus na teclogia de Teillnard de Chardin ou na Teologia da Libertaczo, segundo as quais 0 Reino de Deus comeca jé neste mundo: “O Reino de Deus ja esta entre vis” (Mateus 12,28). A Yoy mar3-e’yma nao admite # temporalidade hist6rica, a imanéncia como seu elemen- to componente, como quer a Teologia da Libertacio. Ela é a superagde do tempo, @ negacao da vida social, a completa anulagao da ordem estabelecida. Desse modo, nao existe, Judalsmno, a Era Messianica também teria realizacao hist6rica. O Messias judeu seria, com efeito, além de um instaurador da paz € da justica, um libertador politico. Desse modo, na raiz da concepgao de uma Era Messignica estava um projeto politico: a libertacSo de Israel da dominagao babilénica e, depois, romana, conduzindo a0 advento de uma era em que Israel dominaria 0 i, um messianismo verdadeiro. No mundo e z lei de Deus tiunfaria no plano temporal. Estaria, enfirn, superada a dialética entre o plano humano eo plano civino, entre a vontade do homem e a vontade de Deus. Uma concep¢a6 messiénica clissica, assim, implica que 0 religioso e 6 politico convirjam para a realizaco de um mesmo objetivo: “a sobrevivencia de uma sociedade ameacada por outra na sua propria existéncia” (Clasires, 1979). © messianismo clas sico implica a aboligio da dominagio e do juga do mais forte sobre 0 mais fraco. O Messias viria com forga e poder para derrotar as hostes inimigas e implantar uma nova ordem politica: “Levantara 0 seu estandarte entre as nacbes, juntara os fugitivos de Israel e reuniré os dispersos de Juda dos quatro cantos da terra”. Isaias 11,12. A Terra sem Mal & a0 contrétio, @ negecao de qualquer ordem politica e social. O religioso € o politico tomnamese incon- ciliavels. Se 0 Reino de Deus judaico-cristao é a plena e cabal realizagao da lei de Deus e é regido por seu poder, a Terra sem Mal 6a negagio de qualquer poder, de qualquer ordem politica, CULTURA VOTES - Ke 2, WARGO-ABRIL 1995 ‘s mesmo que divina. Isso porque esta al impli a possibilidade de os homens serem seus proprios deuses. Estamos, aqui, dianta gu de uma religiio atéia, sem cultos ou sactificios, mas ndo sem viv praticas religiosas. vir tec Na Terra sem Mal nao existe a morte, a terra produz por si Te mesma os seus frutos, 0 milho cresce sozinho, as flechas alcan- ES am espontaneamente a caca. Somente opuléncia e lazer eter et Nos. O trabalho estaria proscrito para sempre. Se hi, aqui, algu- Me Z mas semelhangas com o Jaidim do Eden, ha tam. ak Na Terra sem Mal nao existea erp diferengas profundas. © Jardim do Eden é aa morte, a terra produz por si govemado pela vontade de Deus. Desobedecer 3 mesma os seus frutos, 0 milho ela (cu desacatar 0 poder que 0 governa) implica cresce sozinho, as flechas @ punigzo de perder o paraiso. Pois ao homem € alcancam espontaneamente a tudo era permitido no Eden, menos fazer algo que caga. Somente opulénciae lazer conferisseaele o poder de seriguala Deus. Assim, eternos. O trabalho estaria a sua presenca ali era condicionada a sua obedién- me proscrito para sempre. ciaaum poder maior. Jana Terra sem Malnenhum cag poder maior fimitaria a ago do homem. Na ver- seu dade, tudo, sem excecio, ali seria permitido. O mal éa existéncia mu da ordem politicosocial. Dangas e bebedeiras seriam ‘ali as vel ‘ocupages exclusivas. Nao € por acaso que no paraiso tupi guarani sé se danca e bebese: a festa ¢ a melhor expresso da contra-ordem, € a ritu: nega¢ao da tirania do wabalho, da submissio ao poder, do dos controle social, da opressao do tempo. care enc Assim, na Terra sem Mal ha a abolicao de qualquer poder: [4 fest: todos se autogovernam. Recuperar a plena liberdade & assumir a ale atureza divina que a sociedade desiruiu. Nenhuma submisso 3 ao civindade, uma vez que 0 homem se tornaria sua propria divindade. Mas a Terra sem Mal, sendo um espaco real (situado, indi segundo alguns indios, para além das Cordilheiras dos Andes, 4 segundo outios, no meio do oceano, segundo outros, ainda, nc aa Interior da Terra), exige a migrac3o para que seja encontrada, aa Exige também um profeta quea anuncie e fega ver apossibilidade ts de atingila, tal como Moisés a conduzir seu povo para Canaa. trie Mas, se atravessar 0 Mar Vermelho significava Para os hebreus guar ertar-se do jugo dos egipcios, buscar a Terra sem Mal significa- ela va, para os tup?guaranis, ibertar-se de si mesmos, de sua propria a Condigaio de homens, das peias que a sociedade hes criava para el chegar a condigo de deuses. des 56 A TeneA Sem WAL, 0 TAEAISO TUPI-sUARAMI cou Seus profeias eram os “caralbas” (ou “carais", para os suaranis). Eram homens solitésios, que viviam separados da con- vivéncia social. Jejuavam, viviam em siléncio e se diziam filhos da Virtude suprema, sem pai terreno, descendentes dos herdis celes- tes, dos heréis civiizadores. Sua misso primordial: anunciar a Terra sem Mal. Tais carafbas tinham livre ransito pelas aldeias por ‘onde passassem e eram recebidos com reveréncia e solenidade. Estavam sempre acompanhados, para onde quer que fossem, por tum s€quito de indios. Seu poder era eminentemente expiritual e religioso e nao politico. Seu discurso era sempre sobre o paraiso indigena. O padre Nébrega ouviu um deles e assim o relatou: “Chegando 0 feiticeiro (isto 6, 0 caraiba), com muita festa, entra numa casa escura e pée uma cabaca de figura humana e mudando a sua prépria voz como a de um menino, ... hes diz que no cuidem de trabalhar, nem ao a roca, que 0 manti- ‘mento por si cresceré e que nunca thes faltars de comer e que a ‘caGa por si s6 viré a casa e que as flechas iro a0 mato cagar para seu senhor e hao de matar muitos dos seus contrarios e cativarao muitos para os seus comeres. E promete-hes longa vida e que as velhas hao de se tomar mogas e que déem as filhas a quem quiserem ¢ outras coisas semelhantes Ihes diz e promete”. Também o francés Jean de Léry assistiu, no século XVI, a um ritual comandado por caraibas, com dangas e canticos entremea- dos de discursos. Segundo contou 0 intérprete de Léry, os caraibas falavem dos mortos e dos ancestrais e da certeza de encontré-los “por detrés das grandes montanhas” para dancar ¢ festejar com eles; falavam também do mito do ciltivio.A razéo de enlacarem 0 tema do paraiso com 0 do diliivio ( ou do fim do mundo) veremos adiante Se 05 profetas eram os carsibas, a viagem para a Canad indigena, para a Terra sem Mal, era uma penosa travessia em meio. a florestas, campos, serras, uma viagem sem destino, sem chega- da. Com efeito, as migragSes para a Terta sem Mal sao feitas hd séculos pelos indios tupi-guaranis e jé envolveram deslocamentos de milhares de pessoas pelo terri. Se 0S profetas eram os caraibas, 2 t6rio da América do Sul. Se encontramos indios__viagem para a Canaa indigena, Buaranis, hoje, no fitoral paulista, 6 somente por __para.a Terra sem Mal, era uma esta razio: a busca do paraiso. Eles vieram coma _penosa travessia em meio a finalidade de atravessar a “grande agua”, 0. ocea- _lorestas, campos, serras, uma viagem sem destino, sem no, além da qual créem que ele se encontre. Os movimentos de guaranis do Paraguai para a costa CULTURA VOTES - ¥* 2, waRGo-Azert i995 chegada. 67 atlantica comegaram no século passado. Hoje hi muitos deles em aldeias prdximas de So Paulo, ou junto a0 mar, em Perufbe, Siio Schastido, Itarri etc. Relala o grande etn6logo Curt Nimuen- daju, que vabalhou longo tempo com os guaranis: “Em maio de 1912 encontrei, para surpresa minha, o aca pamento de um pequeno grupo de guaranis paraguaios a apenas treze quilmetros a oeste de Sao Paulo... Eram auténticos indios da floresta, com 0 labio inferior perfurado e arcos e flechas, sem conhecimento do Portugués e falando apenas algumas palavres em Espanhol. Era 0 que restava de um grupo maior que, 20s poucos, no caminho, havia ficado reduzido a seis pessoas... Eles querfam atravessar o mar em direcdo a0 leste”” A propria exist8ncia de indios tupis, os primeiros que entra- ram em contato com os portugueses, em toda a costa do Brasil desde 0 século XVI, leva-nos a pensar que a busca da Terra sen Mal fosse a razao de eles estarem ali, imaginando eles,provavel mente, que o paraiso estivesse no meio do oceano, como ocorre com muitos guaranis hoje. ‘Mas se 0 paraiso estava, segundo alguns caraibas, no ocea- no, para outros estaria “por detras das grandes mont ”. Essa crenga levou milhares de tupis do Brasil até 0 Peru, rumo A Cordilheira dos Andes, de 1539 a 1549. Depois de dez anos de marcha ¢ milhares de mortes (nenhum mané lhes foi descido do céu, como ocorreu, segundo 0 Pentateuco, ao povo hebreu, no deserto), os cerca de doze mil indios saidos do Brasil reduziam-se @ trezentos e foram capturados na cidade peruana de Chacha- poyas. Contaram 20s espanhéis que, em seu percurso, haviam pasiado por um pais provide de “tanta riqueza que afirmaram haver nuas mui compridas entre eles, nas quais ndo se fazia outra coisa sengo lavar pedras d’ouro e pedrarias”. Era com efeito, 0 Eldorado, um mito que fascinou osespanhdis eos levou a grandes expedicées pelo interior da América do Sul, a sua procura. O mito da Terra sem Mal, de um lado, ¢ 0 do Eldorado, de outro, feriam 03 indios tupiguaranis e os espanhéis cruzarem a América do Sul em diregdes opostas. H& muitos relatos sobre as marchas de milhares de indios Para a Terra sem Mal. Outro bem conhecido € do capuchinho Claude d’Abbeville, que veio pare o Brasil quando os franceses tentavamm estabelecer uma colonia no Maranhao, a chamada “Franca Equinocial’. Diz d’Abbeville que o capitao La Ravardiére, A TERRA SEM MAL. 0 TLRAISO TUFI-GUARANI ‘o.comandante dos franceses, teria encontrado sessenta milindios no Maranhie, provenientes de Pernambuco, que iam em busca da Terra sem Mel. Encontou 0s indios “no centro de uma floresta desconhecida”. © carafba que comandava os indios intimara-os a”permanecer ali, dancando, até que seu espirito thes ensinasse 0 lugar para aonde deveriam ir’ ‘A dana, com efeito, é uma ascese que torna 0 compo sutil 0 prepara para a viagem ao paraiso. O transe a que se chega por ela, pela bebida, pelo fumo e pelo canto 6 0 caminho para se ter vis6es da Terra sem Mal. Um guarani revelou-nos, certa vez, que 0 pajé de sua aldeia tinha visdes dela e as revelava aos outros incios nos momentos de transe. Mas no é somente desejo ardente de rever os antepas sados ede obteraimortalidade que impele os indios tupi-guaranis paraa Terra sem Mal. € também a certeza de que © mundo sera destruido por um cataclisma. A Mas nao é somente o desejo Terra, quejé foi destruida uma vez por um grande _ardente de rever os antepassados dilévio, ser destruida novamente, Pode-se, ago- e de obter a imortalidade que ra, entendes por que 0s caraibas a que Léry fez _impele os indios tupi-guaranis mencio falavain, ao mesmo tempo, daTerrasem _ para Terra sem Mal. E também Mal e do dildvio. Com efeitoum carai guarani a certeza de que o mundo sera encontrado por Nimuendaju em 1947 afirmou —_ destruido por um cataclisma. A que estivera em sonho no paraiso 218 “soubera_ Terra, que ja foi destruida uma estar préximo o fim do mundo” (Schaden, 1963). vez por um grande dildvio, sera destruida novamente. Podemos, assim, compreender por que Tupi, a entidade que preside 4 desiruigao pelo raio, foi assimilado ao Deus cristo e bem aceito pelos indios. A verdade € que a religido dos indios € comandada pela figura de uma entidade destruidora e nao por uma entidade criedora. A alma guarani, voltada para o outro mundo, € essencialmente rilenarista, vé sempre diante de sio fim do sistema de coisas da ordem estabelecida.Todo mitenarismo va no fim do mundo a condigao prévia para a instaurag3o da nova era que deverd cheger. Se a viagem até a Terra sem Mal é uma experiéncia de dor, de privacies, de soffimentos e até de morte, recusar sua busca equivale a esperar pelo pior, pelo cataclisma que destruird ‘0 mundo. Desse modo, ao escolher, Tupi, 2 entidade que presidia ao raio, como 0 correspondente ao Deus cristao, os missiondrios do século XVI tocaram um ponto sensivel da alma tupi-guarani, algo CULTURA YOES - K* 2, ARGO-EBRIL 1995 6 Gus, se n20 fazia sentido para 0 Cristanismo (cujo Deus 6, antes, ° Giador ), era pleno de significado para oindios, Bosi (1992) bem percebeu que “a nova representacao do Sagrado, assim produizida, j4 nao era nema teologia cristi nem a renca tupi, mas uma terceira esfera simbélica, uma espécie de mitologia paralela que s6 a situac3o colonial tornara possivel Devemos buscar, sem divida alguma, no intesior da propria ‘eligido guarani uma explicag3o para. éxito das missbes jesutticas da América do Sul. Desde o inicio do século XVI os jesuites Passaram a congregar indios para a catequese dentro de um verdadeiro enclave politico onde, além dos préprios jesuitas, sonfente 0 Papa e 0 rei da Espanha teriam auloridade. Isto é crlaam dentro do sistema colonial espanhol um terrtério que ja fol chamado de “Repiblica Comunista Catélica’ ou “Reptblica Jesuitica Guarani’. Duzentos mil indios foram isolados por eles do sistema colonial espanhel, uma populago enorme para o século XVII, Devemo-nos perguntar, agora, por que milhares de indios aceitaram viver sob a tutela dos padres jesuftas. Conversio auténtica? Condicdes econdmicas estiveis que garantiam sua sobrevivéncial Fuga da submisso acs espanhéis A grande diferenca é que os nas grandes propriedades rurais conhecidas jesuitas prometiam uma Terra como “encomiendas"? Seja qual fora causa de- sem Mal apés a morte e os terminante, 0 que 6 certo 6 que a esséncia da caraibas indigenas para esta vida. religigo guarani, a busca da Terra sem Mal, encon- Nao havia, assim, como os tava guarida na religiio catdlica. ( Que outra coisa Padres frustrarem os indiosem seria a Vida Fterna -Prometida aos jusios pelo sua mais profunda aspiracao, a Evangelho senao a propria realizacao jo sonho da imortalidade. de chegar 3 Terra’sem Mal? A grande diferonca & que os jesuftas prometiam uma Terra sem Mal aps a morte e os caraibas indigenas para esta vida. NZo havia, assim, como os padres frustrarem os indios em sua mais profunda aspitaca0, a da imortalidade. Com efeito, nao foi a crenca num Deus que se encamou, que padeceu e morreu na cruz para a remissSo da humanidade que tocou as notas mais profundas da alma guarani. A idéia de um Deus derrotado na cruz pelos homens erathes estranha. O Que realmente identificou os guaranis das Missdes com o Cristia- nismo foia possibilidede de chegarem eles & Tetra sem Mal, ainda Que essa assumisse, agora, uma roupagem evsti, 0 A TERRA SEM WAL, © PARAISO Tari-cuLtanL Com 0 avanco da civilizaga0, 0s espacos vazios para os indios tupi-guaranis tornaram-se poucos. Migcar hoje para a Terta sem Mal implicaria depararse fatalmente com a cultura do ho- mem branco, passar por suas fazendas, por suas cidades, por suas estradas, softer a viol€ncia polcial, a hosiilidade dos fazendeiros, a incompreensdo da sociedade em geral. Assim, 0 discurso dos carafbas teria de mudar, fatalmente. A Terra sem Mal ainda permanece como o tema essencial dos discursos e ritos daqueles indios, mas muitos ndo acreditam mais ‘ha sua existéncia terrena. Um guarani mby4 da aldeia “Morro da Saudade", situada dentro do municipio de Sao Paulo, em meio a ‘Mata Atlantica, disse-nos que ele chegaria a Terra sem Mal, mas aps sud morte. O cacique daquela aldeia, porém, afirmounos que ainda em vida ela poderia ser atingida. Mas a migraco para ela tomnou-se impossivel. Hoje tal busca tem um caréter mais interior, mais espiritual que fisico. A vida social é assim, a grande provacio, antes representada pela migracZo em busca do paraiso. Antes obstacu- 'o para que o homem se tomnasse um deus, a vida social é hoje validada pelo discurso dos carats. Isso porque se tomou conscién-

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