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Espirito e espirito de época Uma conferéncia Um desprezo peculiar pela palavra, até mesmo quase asco ante a pala- vra, tomou conta da humanidade. A bela confianga de que seres humanos pudessem convencer uns aos outros através da palavra, da palavra e da lingua, foi radicalmente perdida; parlare adquiriu um sentido negativo, os parlamentos sucumbem ante a propria aversao por sua atividade parla- mentar, e se, em algum lugar, ¢ convocada uma conferéncia, ela se retine sob 0 escarnio e os augurios de ceticismo daqueles que sabem das coisas; o saber acerca da impossibilidade de um entendimento é grande demais, todo mundo sabe que 0 outro fala outra lingua, que 0 outro vive no interior de outro sistema de valores, que cada povo esta preso no interior de outro sistema de valores, sim, que nao apenas cada povo, que cada profissiio, que 0 comerciante nao pode convencer o militar, que o militar nao pode convencer 0 comerciante, o engenheiro nao pode convencer o trabalhador, € que eles se compreendem apenas na medida em que todos concedem ao outro o direito de fazer uso de seus instrumentos de poder sem qualquer consideracio para fazer valer seu proprio sistema de valores, sem levar 49 nada em consideragao, quebrando todo ¢ qualquer acordo, quando se tra- ta de passar por cima ¢ esmagar o inimigo. Jamais antes, pelo menos na hist6ria da Europa ocidental, 0 mundo admitiu com tanta honestidade € clareza, e pouco importa se isso parece cinismo ou nao, que a palavra de nada vale; mais do que isso, que nem sequer vale a pena buscar um entendimento; sim, jamais 0 mundo se resignou com tanta honestidade a admitir que nao se pode, nao se deve fazer uso de nenhum outro meio que nao 0 poder, o poder que o mais forte exerce sobre o mais fraco. De nada vale ficar se queixando de que 0 mundo é como é, e de nada vale, também, acusar 0 homem por causa disso. O desespero do homem é grande, pois, uma vez que cle duvida da palavra, também duvida do espi- rito, do espirito de seu proprio ca ater humano, do espirito que age através da lingua; a palavra é nada sem o espirito, e nao ha para o espirito nenhum outro campo de vida a nao ser o da palavr: quem mata o espirito, mata a palavra, e quem profana a palavra, profana o espirito, tao inseparavel- mente ambos esto ligados um ao outro. E.sempre de novo © homem perde a lingua, sempre de novo Ihe escapa o espirito, Ihe escapa o absoluto, sem- pre de novo ele é catapultado de volta ao siléncio de seu estado original sombrio, que hoje ainda é 0 embotamento do primitivo, a sua crueldade, a seu sofrimento sombrio: veraz em scu softimento, pois 0 homem munca perde a nostalgia do divino, por mais que ele seja repudiado ¢ esteja afas- tado do espirito, sim, cla ¢ imperdivel, e cle sempre voltara a se preparar para alcangé-la. O mutismo pesa sobre 0s ombros do mundo, cle que per- deu a lingua ¢ o espirito, porque teve de optar pelo poder, pelo poder e pelo assassinato, sem 0 qual o poder nao existe. Entre homem ¢ homem, entre grupo humano e grupo humano impera o mutismo, € esse mutismo é 0 mutismo do assassinato. Mas, apesar desse mutismo, 0 mundo € cheio de vozes. Elas nao se falam, so apenas vores, confusas como a confusio de um alto-falante que fun- ciona mal, cada uma tentando gritar mais alto do que as outras, superd-las pela poténcia, todas soltas ao mesmo tempo, uma baralhada de linguas, de 50 Espirito e espirito de época opinides, falando umas sobre as outras sem se ouvir, ¢ apenas mecanica- mente ¢ sem solenidade 6 que soa no meio de tudo a transmissio de um culto divino, superado, banalizado, aniquilado pelo burburinho terreno. Eo burburinho terrivel do mutismo, que acompanha o assassinato, € 0 retorico por exceléncia, o mutismo elevado a burburinho eo pathos do ret6rico, que ainda possui o som da lingua, mas j no é mais lingua, porém na condigao de grito em fases ainda constitui um componente do linguistico, embora na verdade apenas seja seu, por assim dizer, componente mudo, € nese mu- tismo acaba sendo apenas evasio, evastio do medo, evastio do desespero, evasiio da coragem; o retérico nao conhece didlogo, nao conhece argu- mento, nao conhece contra-argumento, cle nao surge das esferas do inte- lecto, cle surge da escuridao, naio convence, arrebata, fascina pelo poder da escuridao, pelo fascinio da escuridao, por esse perigo ao qual ninguém es- capa, porque nao existe ninguém no qual no viva a mesma escuridao, nin- guém que nao esteja abandonado ao perigo do extralogico, sim, do absurdo, conde quer que esse mutismo sombrio abra um caminho para a expresso, se apresentando de modo explosivo, ele toca os coragoes, eleva-os, amassa- -o8, abre-os, arrebata-os ao absurdo, a vertigem, ao entusiasmo ou a aniqui- lagio € ao assassinato. O retrico, essa musica que acompanha tanto 0 heroismo quanto o desespero, se encontra a servi¢o da crenga no poder. Mas que honestidade! O mutismo nao consegue mentir, porque s6 é possivel mentir com palavras — que honestidade, portanto, confessar a mentira da palavra, que honestidade saber que 0 espirito e apenas 0 es- pirito é que se deixa abusar para um objetivo de tal modo infame, que coragem de recomendar a mentira a servigo do poder! FE uma honestidade e uma postura que de todo modo pode ser remetida a Maquiavel, ainda que tenha vivido a sua nova edigaio comercial e nao lapidada nisso que se chama de americanismo. Mas nem por isso: honesto, o mundo sempre foi — cle acreditou de modo exatamente to honesto em Deus quanto nas bruxas, ele confiou com toda a honestidade no espirito, a honestidade nao é, do presente ponto de vista, uma virtude, mas sim meramente uma Espirito e espirito de época. 51 forma de vida humana geral, uma coaciio inevitavel para cada ser humano de admitir honestamente tudo que Ihe parece logico ¢ plausivel ou 0 capa- a satisfazer scus impulsos. Seré que, nto, a honestidade do homem que admite a brutalidade, do homem que, conforme diz a expressiio, fica realisticamente no terreno dos fatos, ¢, bem entendido, no terreno dos fatos mudos, se diferencia de qualquer outra honestidade? Existe um critério determinante para elas? Sim, existe um. E ele deve se localizar em uma forma determinada de ver as coisas, que se desenvolveu desde o Renascimento, uma forma de ver as coisas que se pode com muita procedéncia creditar também a Maquiavel € que, para esbocé-la em uma palavra, pode ser chamada de positiv: Pode até parecer blasfemo querer responsabilizar o espirito positivista, ao qual o Ocidente dev tanto, e que provavelmente tenha levado a Europa a sua posi¢io dominante no mundo — Colombo nao teria chegado as Amé- ricas nem a maquina a vapor teria sido inventada se 0 terreno europeu nao se tivesse tornado um terreno dos fatos —, sim, pode até parecer blasfemo, pois, querer responsabilizar a postura positivista pelos métodos mudos de gangster com os quais a Europa desnuda suas proprias conquistas e com os quais também acabara por perdé-las. O que o homem da vida pratica que se encontra sobre o terreno dos fatos, o homem da insoléncia brutal e da satisfagao primitiva dos impulsos, que ele gosta tanto de chamar de ameri- canismo, 0 que esse homem tem a ver com o homem dotado de espirito? ico! O. que essa espirituosidade positivista tem a ver com a atmosfera do assas- Com 0 homem da ciéncia, que ele além disso renega de modo fan: sinato que pesa sobre 0 mundo? Com o siléncio do assassinato? E ainda assim € exatamente isso que acontece — até porque gangster, comerciante, militar € cientista sao filhos de uma época. A responsabilidade da ciéncia é uma responsabilidade metafisica; ela nao tem “culpa”, sua culpa é, ao contrario, sua pureza, e justamente sua pureza, com a qual ela se colocou no terreno dos fatos, foi obrigada a se colocar por causa de sua prépria légica imperturbavel no terreno dos fatos: a ciéncia, desde sua libertagao do encanto escolastico, foi se afastando cada 52 Espirito e espirito de época vez mais da especulacao — como foi vagaroso esse process pode-se medir no disparate especulative que ainda imperava na medicina do século XVIII —, ¢ ela agora principia a se aproximar de seu ideal metodologico, ou seja, principia a reconhecer como “real” realidade com capacidade cientifica aquilo que pode ser verificado por olho, ouvido, tato e os reforgos que fazem parte desses sentidos (telescépio ¢ assim por diante), uma “real” realidade para a qual nilo basta nem mesmo 0 céleulo matematico, o método de tornar visivel teve de encontrar sua aplicagao incontestavel até mesmo na matematica, sob o nome do intuicionismo de Brouwer-Weyl. Com essa climinacao de tudo que é especulativo do ambito da ciéncia, comecou, no entanto, também a eliminagio do linguistico. F claro que existem ciéncias que vivem da e na lingua, por exemplo a histéria, ¢ toda uma série de disciplinas das ciéncias naturais, como a medicina ¢ a bota- nica, nao existiriam sem explicagdes linguisticas, ¢ até mesmo 0 Ambito do saber mais distante da lingua, o da matematica ¢ o da logistica, nao con- seguiria sobreviver sem uma introdug2o e sem “regras de comportamen: to” que devem ser dadas em lingua “natural”. Mas logo se percebe que aqui a lingua tem uma fungao diferente da que tem no interior de uma especu- lac&io com conceitos ou em uma especulacao dialética. Se, por exemplo. todos os acontecimentos hist6ricos tivessem sido registrados ininterrupta- mente em filme, poderia ser poupada uma boa parte da historia escrita, ¢ talvez um dia os noticiarios semanais realmente assumam em parte esse papel. O uso de meios de representacao precisos, mecdnicos ¢ “objetivos” esta em constante crescimento em todas as ciéncias — a comegar pela reprodugao de documentos historicos e chegando aos registros cinemato- graficos ¢ fonograficos de processos vitais ¢ naturais —, € por toda parte se almeja eliminar amplamente 0 homem “interpretante” ¢ sua débil lingua- gem pessoal ¢ assim chegar a um ideal de objetividade da pura descricao ¢ da pura representagao, conforme foram exigidos por Kirchhoff para a f- sica e por Ranke — fundamentalmente no mesmo tom — para a historia: ‘idescrever com simplicidade como as coisas se sucederam”. E, em certa medida, 0 império solitério quase aleangado da expressio matematica Espirito e espirito de época 53 também cai, no interior das ciéncias naturais, sob essa exigéncia de fazer uma representagao objetiva condicionada mudamente apenas pelos fatos ¢ independente dos homens. Pois a matematica se livrou quase totalmente do matematico, ele nao pode interpretar subjetivamente com ela, cla of- rece uma imagem dos fatos —a parabola como imagem do arremesso livre — ou entio nao a oferece: ela é wma linguagem precisa, muda, desprovida de subjetividade. De qualquer modo, a missiio da matematica nao esta esgotada com sua tarefa de representacao linguistica. Se Kant permite que uma ciéncia seja considerada ciéncia apenas na medida em que contiver matematica — toda a situag’o (c toda a apostasia) filos6fica de sua época est&o nessas palavras —, ele por certo também se referia 4 representacao matematica, mas, além disso, a outra coil acapacidade de ser provada. Pois a matema- tica, com seu edificio de equilibrio monstruoso construido no interior do tautologico — porque ela mesma foi erigida por forga da logica —, contém todas as estruturas légicas imaginaveis que possam suceder entre coisas, ou melhor, ela estatui com cada extensao de sua construgao, portanto com cada nova descoberta matematic ambém uma nova estrutura logica pos- sivel no interior do mundo; ela por um lado contém, ent&o, uma copia cada vez mais refinada, complicada e estendida de todas as estruturas légicas do mundo, sendo, portanto, para essas j de antemao uma expresso “linguis- tica”; por outro lado, no entanto, cla vai além dessa fungaio de copia e — ela mesma parte do mundo —, dito outra vez de modo kantiano mas por certo também metafisico, ela se transforma em condigao da experiéncia possivel acerca do mundo, uma experiéncia que ja comega com 0 fato de as coisas poderem ser pagas. E na uniao dessas estranhas propriedades meta- fisicas (de ser condigao de experiéncias possiveis) com o carater tautologico da matematica, nessa aplicabilidade de um a priori (qual seja tautoldgico) correto sobre as coisas do mundo, jaz sua peculiar “confiabilidade” mate- mética, sua “forga comprovativa”, sim, a exclusividade de sua forga compro- vativa, uma exclusividade que pode valer como fundamento da decaracao 54 Espirito e espirito de época kantiana, Pois fazem parte da possibilidade de ser ciéncia a prova ¢ a possi- bilidade da prova. Esta é, pois, a honestidade positivista: nao reconhecer nenhuma reali- dade que nao possa ser compreendida pelos sentidos ou apoiada por uma prova matematica. Sua uniao com a honestidade da vida vulgar pode até ser pequena — la 0 érgao dos sentidos € sobretudo 0 estémago € a mate- matica é a matematica do dinheiro —, mas também a recusa vulgar a qualquer espiritualidade € qualquer vinculo espiritual ¢ iluminada desse ponto de vista. Pois o espiritual desistiu de si mesmo, teve de desistir de si mesmo. Nao existe espiritual que nao tenha acreditado no espirito, que nao tenha acreditado no logos, que é o porta-voz do espirito, seu recipien- te e sua forma, que nao tenha buscado o absoluto, carregado pelo espirito ¢ pelo logos. Era a postura da Antiguidade platonica ¢ a postura do cris- tianismo platonico. E no interior de uma crenga de tal jaez no logos, quer le seja chamado pela palavra Deus ou por qualquer outra, toda dedugao logico-linguistica tem aquela forga comprov ativa que — ideal de toda a ciéncia — hoje em dia € reivindicada apenas pela matematica. A honesti- dade positivista ¢ a do Tomé incrédulo, no verdadeiro sentido da palavra incrédulo, ¢ ainda que ela, assim como Tomé, nao negue a realidade que vai além do tangivel e do provavel — cla apenas lhe escapou —, a hones- tidade nao tem nenhum meio a disposicao para dar conta dela. Um modo de pensar que se localiza fora da crenca deve almejat, em vez da verdade, a perceptibilidade, em vez do efetivo, uma realidade da qual ele mesmo sabe que ela apenas € existente na medida em que for passivel de ser repre- sentada matematicamente; cle é radicalmente antifilosdfico, ou, o que si nifica a mesma coisa aqui, radicalmente antiteolégico. Embora cle tenha 0 método racional em comum com a filosofia-teologia, uma vez que exclui as duuas premissas fundamentais da filosofia, 0 logos ¢ 0 espirito, cle neces- sariamente — ¢ é 0 que esté realmente fazendo hoje — deve expulsar todo 0 problema verdadeiramente filos6fico ao reino da mistica, um reino que nao ¢ tolerado pela filosofia de verdad, mas pela teologia quase Espirito ¢ espirito de época 55 & visto como o reino da heresia, pois ambos, filosofia e teologia, respeitando a sua unidade idéntica, almejam 4 compreensao racional da totalidade do mundo. Com um faro inacreditavelmente fino, 0 catolicismo sentiu os perigos do espirito positivista que se manifestava. Ja a recusa do olhar interior ime- diato ¢ mistico da testemunho desse senso farejador, mas as coisas ficam ainda mais nitidas nos assuntos das ciéncias naturais: pois, no fundo, nao tem absolutamente nenhuma importancia para a Igreja se o Sol gira em torno da Terra ou a Terra cm torno do Sol; para ela isso ¢ indiferente € pode ser indiferente, pois de seu posto de guarda pode ser aceita como pos- sivel também uma terceira ou uma quarta solug&o astronémica; contra 0 que a Igreja se opde ¢ sempre tera de lutar € contra a postura espiritual positivista ¢ antifilos6fica que rouba a vida seu ponto de vista central — quer ele se chame Deus, quer se chame logos, mas ele se chama Deus -€ em vez disso 0 abandona a uma infinitude de pontos de vista. O que a Igreja fez pareceu as vezes suicida, pois ela lutou contra 0 espirito que forjou para ela armas contra inimigos externos e com essas armas inclusive atuou para espalhar a crenga sagrada, e partindo disso pode até parecer sorte a alguns que a Igreja quase sempre ainda assim tenha se desviado do novo espirito — mas isso n&o pode ser decidido aqui e provavelmente nao possa ser decidido de modo nenhum. Certo é que a Igreja continua exis- tindo, intacta, ainda que a vida “como tal” nao se passe mais dentro ¢ sim fora de seus muros (a metafora da ilha do Vaticano no meio da metrépole Roma!), ¢ certo 6 que fora de seus muros acontece exatamente aquilo que ela quis evitar, o império do espirito positivista, a luta de todos contra todos sob sua égide ¢ 0 apagar de tudo aquilo que podia ser chamado de espirito verdadeiro, quer dizer, de espirito que busca a verdade e nao o que ¢ mera- mente perceptivel. Em honra da filosofia precisa ser dito que ela sempre se opés a sua mun- danizagao. Isso até pode soar estranho, pois ninguém além do hipotético espirito de época tentou conseguir essa mundanizacao para a filosofia. Mas cis que agora esse espirito de época deixou de ser assim tao hipotético, ele é 56. Esptito e espitito de época 0 logico no desenvolvimento espiritual, ¢ cle foi sobretudo uma crise l6gica no interior da escolistica, que necessariamente pressionou em busca de no- vas formas ¢ novas verificagées fora da escoldstica. A ciéncia mundana se encontrava a disposigio, ¢ a filosofia — caso nao quisesse perder suas pro: prias reivindicagées cientificas — teve de se haver com iss0, Mas nenhum dos grandes filosofos que desde entao haviam se apresentado esqueceu que a filosofia, no fundo, tem de ser teologia, ¢ foi a teologia que dedicou toda sua nostalgia. Isso valeu para Descartes, para Spinoza, para Leibniz, para Kant (0 idealismo alemio inclusive pode ser compreendido como uma ten= tativa de chegar a um érganon universal escolastico-protestante), isso vale para Kierkegaard ¢, chega a dar na vista, inclusive — como se 0 religioso a0 final tivesse de voltar a sua origem — vale para o neokantismo “ficl as leis? de Cohen ¢ para Edmund Husserl. E certo que nenhuma dessas filosofias ficou livre de insergées ¢ matizes positivistas, mesmo a de Plato, quanto mais a de Aristoteles, e uma vez que nenbum fendmeno espiritual vivo pode se emancipar do espirito de época, e, caso queira se manter vivo, nem sequer deve fazé-lo, aconteceu que, ¢ isso pode ser provado sobretudo no idealismo alemao, a influéncia dos componentes positivistas se tornou cada vez mais importante. Mas seria completamente errado conceder por isso uma forca filosofica propria ao pensamento positivista. Mais uma ver: nao existe filosofar sem a experiéncia ancestral divino-platénica do eu solitério, de modo que, assim, se pode creditar 0 surgimento da “Filosofia positivista” de verdade nao a filosofia ¢ aos filsofos, mas sim a uma espé- Ge estranha de homens, quais sejam, os “especialistas” (que na verdade também podem ser encontrados entre os filosofos como funciondtios da filosofia). © que surgiv antes de tudo aqui foi o disparate peculiar das “fie Josofias dos empirismos”, que — eminentemente positivista — dissolveu 0 corpus homogeneo da filosofia em uma grande quantidade de pontos de vista ¢, na condicao de filosofia da historia, do direito, da raga, da técnica, da jardinagem, do colecionador de selos ou da direcao teatral se apresenta em. feicdo surpreendente. Na maior parte das vezes, essas fllosofias consistem em uma confusdo de teorias especializadas ¢ assim chamados pensamen- Espirito e espirito de época 57 tos que © especialista elabora acerca de sua especialidade, dos quais os primeiros de quando em vez até podem ser bem interessantes — fazem parte disso, por exemplo, as incontaveis hipéteses indutivas acerca das legi- timidades historias —, ao passo que os assim chamados pensamentos na maior parte das vezes tém miseravelmente pouco a ver com 0 pensar, pelo menos com o pensar filos6fico. O disparate, que, alias, no fundo nao passou de um makentendido, comegou naquele circulo de leigos esclarecidos do século XVIII que, cheios de ignorancia ¢ desprezo por tudo que era teolé- gico e com isso também por tudo que era filoséfico, tomavam por filosofia tudo que tinha aspecto de teoria: na época surgiram a Philosophie de U'histoine, de Voltaire, a Philosophie de la nature, de Lamarck, que contém as primeiras teorias acerca da mudanca das espécies, ¢ bem no mesmo sentido dessas filosofias espec lizadas, ou melhor, afilosofias, ficava também a coroagaio de todo esse desenvolvimento, 0 “positivismo” como tal de Comte, que em sua parte extrafiloséfica ¢ uma nova ciéncia historica ¢ uma nova teoria, a sociologia. Assim, nas “filosofias dos empirismos”, a contaminagao da filosofia pode ser medida de maneira bem clara, mas também que uma fi- losofia de tal modo contaminada positivisticamente se aproxima o maximo possivel do retorico, que esse perigo para uma filosofia que nfio possui seu ponto de vista nem em si nem em Deus quase parece inaplicavel, uma vez que € submetida a todo e qualquer ditado externo: ha centenas de exem- plos de tais filosofias retéricas, ¢ justamente a filosofia profissional alema providenciou o mais digno de nota, nao apenas no condenavel abuso do jargiio filosofico, conforme aconteceu, por exemplo, nas diversas filosofias da guerra, mas também em uma de suas variantes mais nobres: no pen- samento de Nietzsche (Nietzsche, o pensador menos teolégico, o mais an- titeolégico entre os pensadores!). Se algures a interagio da forma de ver positivista se torna vistvel entre “vida” e “espirito”, ent4o isso acontece no retérico, mesmo ali onde ele se mostra nobre € quase poético: nao se trata mais de alcancar através da lingua um conhecimento irrefutavel ¢ baseado firmemente no logos, nao se trata mais de conviceao logica e de capacidade de convencer, nao se trata da ratio divina, e sim de um irracional em ultima 58 Espirito e espitito de época instAncia, de algo que a toda hora esta pronto a cair na loucura, no arreba- tamento e na insanidade mais nobre, como em Nietzsche, mas do mesmo jeito na insanidade da abjecao, conforme € produzida pela infamia da ret6rica vulgar. E assim, talvez, a tinica ago verdadeiramente filos6fica do positivismo esteja no fato de ele, depois de um desenvolvimento de quatro- centos anos, ter acabado com todas suas aspiragbes semifilosoficas, de ter se tornado consciente de sua obrigacdo genuinamente cientifica para com a honestidade ¢, expulsando todos os temas filos6ficos ao reino do misticismo (j4 a velhice de Comte estava encoberta pela sombra do misticismo, pior ainda, do ocultismo!) ¢ limitando assim cada vez mais seu campo € se con- centrando em seu cerne cientifico proprio, que hoje j4 pode ser reconhe- cido com bastante clarez; : ele subsiste, em severa critica metédica, sobre uma base logico-matemitica, pertence ao reino de “mutismo” e, ainda que também aqui o trabalho nao pudesse ser feito sem 0 logos ¢ sem o espirito, esses dois conceitos pertencem, para o positivismo radical (¢ portanto mais uma vez filoséfico), a0 reino do misticismo; ele nada tem a ver com eles objetivamente, eles nao podem ser percebidos nem fundamentados ma- tematicamente. Eles pertencem, no melhor dos casos, aos pressupostos da vida impossiveis de serem investigados. Pressupostos da vida impossiv sis de serem investigados. Inaleangavel em seu impeto e segurando como que em um punho o gérmen da hist6ria ¢ todo seu crescimento, esta escrito na entrada dos acontecimentos: “No principio era o verbo”... “e o espirito de Deus paira sobre as Aguas”. E ain- da mais formidavel do que o saber acerca da evolugao de tudo que aconte- ce, que necessariamente esta distendido entre palavra € espirito, entre lei ¢ destino, mais formidével ainda do que aquele saber profético, esta preso na sentenga do principio o saber acerca da misteriosa origem dupla da alma humana: pois nao existe nenhuma declaragao acerca da historia que nao parta de um saber acerca da alma humana — ela é o primério, é a alma que se espelha na historia e na qual a historia se reflete —e o que o grande escritor, cuja mao foi conduzida pelo proprio Deus, langa como uma acusa- cdo contra seu criador, a nogio da divisio ancestral de Deus, que mantém Espirito e espirito de época 59 sua origem em segredo ¢ revela logo dois principios criadores como se ele mesmo fosse stidito deles, essa acusac&o, que ao mesmo tempo estabelece a toda ago humana a meta da harmonia divina perdida ¢ sua nova procura, essa acusacao nostalgica, a mais nostalgica que a imagem-e-semelhanga foi capaz de opor a imagem primeva, cla nasceu do mais profundo ¢ profun- damente assustado conhecimento do coragao ¢ da natureza imutavel do ser humano. E se a sentenga do principio jamais tivesse sido registrada, se ela jamais tivesse sido adaptada ¢ interpretada — e isso j4 aconteceu mi- lhares de vezes, ¢ volta a acontecer sempre que o ser humano se da conta, profundamente assustado, de scu proprio ser ¢ de sua propria consciéncia, € a pergunta acerca do pressuposto ultimo o assalta como a Descartes com seu cogilo ergo sum, que também nao passa de uma adaptagao —, se tudo isso jamais tivesse acontecido, se até mesmo a sentenga jamais tivesse adentra- do a clara consciéncia da lingua, ainda assim ndo existiria ser humano, por mais ingénuo que fosse, que nao carregasse em si, sentindo ¢ pressentindo, eo ingénuo talvez até mesmo de modo especial, 0 saber acerca da origem dupla de sua alma, que no vivesse em sia tarefa misteriosa, a cacao mis- tica de solucionar a discrepancia ¢ nao apenas escolher entre o primado do espirito e o primado do logos, ainda que este seja apenas o primeiro estdgio, como também almejar uma unidade na qual jaz a realizacio do humano e que justamente por isso também realiza a historia. Nao se objete que seria necessario ser crente para accitar tal otimismo mistico, ¢ menos ainda se objete que a inconveniente filosofia da historia volta a ser contrabandeada com isso, e além disso uma filosofia que — logos ¢ espirito vem de Deus — s6 poderia trazer marca agostiniana. Seriam censuras honradas, mas nao acertariam o alvo nem sequer acertariam 0 que quer que fosse. Que a crenca seja excluida de todas essas reflexdes, ain- da que tao s6 a forga da sentenga do principio, cla mesma, ja pudesse bas- tar para fazer com que um ser humano estremecesse misticamente, nao se falard de crenga, quer dizer, nao a partir do ponto de vista da crenca, ainda que nao esteja mais assim tao longe a época na qual os seres humanos nao quererao ouvir nem falar de outra coisa, nao, no interior desta ¢ das 60 _Espitito e espirito de época seguintes reflexdes nao deve ser exigida nenhuma crenga, mas no maximo aquela religio (natural) sem a qual nao existe vontade para 0 conhecimento, nem mesmo vontade para um conhecimento ateista. Mas sobre filosofia da historia, que na verdade hoje € muito mais popular — também santo Agostinho deve sua popularidade atual sua no fundo nem sequer existen- te caracteristica de “filésofo da historia” —, por certo nao se precisa dizer mais nada; j4 se compreende quase automaticamente que as assim chama- das construgdes filosofico-historicas, que levam, quase todas, a provar teses, tcorias, hipsteses, profecias quaisquer no decorrer da historia (e inclusive a adequé-las para tanto), devem ser refutadas, até mesmo 0 grande nome de Hegel nao encobriria um procedimento assim, nem mesmo o do hegeliano Marx, quanto mais o de seus frouxos seguidores, 0 de Biedermann, o de Jentzsch e assim por diante, ou talvez até mesmo as tentativas do pan- -eslavismo de estabelecer uma légica historica da supremacia racial eslava — tudo isso ao final das contas lembra a ascendéncia hebraica “cientifica- mente” passivel de ser provada dos britanicos — naturalmente também qualquer empreendimento que busque demonstrar na historia de modo concreto a profecia da sentenca do principio passo a passo, fase a fase, esta ria condenado ao mesmo vicio: por mais certo que seja que todos os aconte- cimentos humanos se encontram estendidos entre logos e espirito ou entre suas configuragoes externas, a lei ¢ o destino, por mais certo que seja que a huta desses dois principios pelo dominio e pela condugao da alma humana determina todos os acontecimentos ¢ todos os acontecimentos histricos, a unidade do acontecimento humano vislumbravel nao se manifesta para ser “infilosofada” ou “perfilosofada” — isso € assunto de prestidigitadores de saltio filos6fico, de filosofastros —, mas sim para poder aprender através deles 0 que € 0 ser humano, 0 que € 0 espirito, o que € 0 logos. Eentao isso ja nao € mais filosofia da historia, e sim filosofia, ou melhor, material para a filosofia (para o qual, com gosto, se admitiria entZio o nome de filosofia exis- tencial). E. caso se quisesse até mesmo aplicar métodos dialéticos ¢ mostrar que a luta entre dois principios sempre representa uma disjungao, ¢ por isso deve resultar necessaria ¢ logicamente em quatro possibilidades de solucao Espitito eexpirto de época 61 (alias, vé-se nisso a expansiio monstruosamente complicada que ainda seria necessiria A dialética hegeliana), quatro possibilidades que por isso teriam de mostrar a seguinte feigfo para o caso presente: 1, vitéria de um dos principios (aqui, portanto, primado do espirito); 2. vitéria, quer dizer, dominio conjunto de ambos {aqui, unidade entre logos e espirito 3. vitéria do outro principio (aqui, primado do logos); 4, derrota de ambos, quer dizer falta de sentido de toda a luta e de toda a problematizagao (aqui, destronamento tanto do logos quanto do espirito); assim, provavelmente nao seja importante demonstrar agora a fase dessa luta, o modo dessa mudanga de fase e sua velocidade na historia, e do mes- mo modo seria um problema altamente inferior de seminario se através disso a doutrina de Hegel seria mais uma vez comprovada pela inversio, sim, talvez nao fosse nem mesmo decisivo que com tais construgdes légico- -rudes a obrigatoriedade dos periodos de decadéncia de valores mais uma vez fosse fundamentada, e sim pura ¢ unicamente importante seria perce- ber que —e esse fato era conhecido mesmo sem a lista das disjungées dia- Iéticas — na hist6ria do espfrito europeu, alids passivel de ser abrangida com uma simples visada, houve dois instantes da humanidade nos quais a unidade entre logos e espirito apareceu quase como uma meta atingida ou pelo menos atingivel, quais sejam, o das épocas da Antiguidade tardia da Idade Media tardia, ¢ que por sua vez esta reservado A época atual concretizar 0 quarto caso da disjungao ¢ eliminar tanto espirito quanto logos de sua vida, mas de qualquer modo nao de sua retérica, elimind-los radicalmente como componentes sem sentido (alids, também formalmen- te, um processo bem apropriado, ja que a descoberta da falta de sentido de certos questionamentos, cuja legitimidade no passado nfo era posta cm diivida, faz parte das grandes ac6es da logica moderna). E talvez de importdncia interior ainda maior do que essa constatagao seja a consta- 62. Espirito e espirito de época tacao da distancia, pode-se até falar em altura de queda, que separa a si- tuacdo animica atual da humanidade da maior aproximagao ideal, uma distancia que é tao formidavel que se compreende 0 aspecto eclesial que acredita vislumbrar nele a distancia entre o bom e o mau por exceléncia, entre 0 crist&o € 0 anticristdo em toda sua nitidez assustadora. SerA que o homem desta época realmente se declarou livre do espirite ¢ do logos? Sua vida exterior e a situag%io do mundo certamente deporiam em favor disso, seu sucumbir ao mutismo positivista deporia a favor, 0 ri- gorismo, com 0 qual sua consciéncia cientifica empurra esses termos do espirito e do logos ao reino do misticismo, tudo isso deporia a favor de que ele realmente se declarou livre. Mas se declarar livre nao é ser livre, e é provavelmente mais do que um otimismo mistico pensar que uma profec que se confirmou por dezenas de milénios, também se provara por centenas de milénios. E mesmo que se ignore ou se possa ignorar tudo isso, conti- nuaria existindo a conviccdo da natureza historica do ser humano, uma convicgao que — por exemplo, no sentido que lhe concede Dilthey — nao mais sc limita apenas a querer compreender a estrutura do espirito humano a partir de sua historia, mas, além disso, acredita na imutabilidade do hu- mano, em sua imutabilidade proxima do carater divino do logos. E esse € um momento extra-histérico, ele possui a certeza axiomatica da experiéncia interna, é a experiéncia platénica por exceléncia. O que a historia, o que © desenvolvimento histérico ensina, poderia — isso é 0 que deveria ser admitido, ao final das contas — ser suspenso no momento de uma cat trofe da humanidade, se nao em uma centena de milénios, pelo menos em duas centenas de milénios, ¢ 0 que se acrescenta em consideragdes logico- -dialéticas na historia a fim de apoiar ou mostrar sua. estabilidade mais ou menos legal (e com isso também a do ser humano), que 0 logos, até mesmo em sua negagao, ainda mantinha ou mantém sua mio em jogo, isso é de antemao leviano ou poderia, além disso, se revelar mais tarde como engano do observador hist6rico: realmente, tudo isso seria ocioso ¢ completamente vao se nilo contasse com a ajuda da experiéncia platonica, Se esta nao se encontrasse a disposicao, ¢ n4o voltasse a reviver a cada pouco, se, por Espirito e espirito de época 63 exemplo, o homem fosse, de fato, constituido do modo como o materialismo vulgar o concebe, jamais nesse mundo, ¢ menos ainda em um mundo de orientagao positivista, alguém teria chegado a ideia de que, além do Ambito racional daquilo que é visivel ¢ passivel de ser provado, poderia existir ainda um outro, um ambito do ininvestigavel. E claro que esse Ambito do ininves- tigavel nfo foi estabelecido propriamente para a absorgaio dos conceitos de espirito e logos; 0 positivismo preciso determina muito antes “de dentro para fora” suas proprias fronteiras de conhecimento, a abrangéncia de seu proprio conhecimento, ¢ simplesmente localiza aquilo que para ele é inal- cangavel como estando fora desse circulo de conhecimento — mas tao s6 0 fato de que ele se veja obrigado a estabelecer um circulo externo por ele designado como “mistico”, o fato de saber como € pequeno o circulo do racionalmente alcangavel, um pequeno enclave na infinitude da vida em si, nao apenas a vida fisiolégica, mas também a vida do conhecimento, essa pureza, essa humildade, essa honestidade no melhor dos sentidos cientifica concede, apontando para a assim chamada categoria mistica, para a ad- missao da experiéncia filos6fica e também aqui revela as raizes de todo 0 pensamento e todo o conhecimento no eterno reino terrestre do platénico, ainda que adentré-lo, por enquanto, seja proibido. Mesmo em sua nega- (40, 0 espirito impera, o logos impera. Mas ¢ justamente naquela proibigao de adentrar o chao platénico que jaz a tragédia desta épo qual foi roubada a alegria ¢ 0 consolo da ratio platénica ¢ que em vez disso foi abandonada a escuriddo de uma ret6rica prenhe de desgraca. Tragédia desta época? Tragédia da filosofia? Ou me- lhor, dos que filosofam? Na verdade niio se trata de nada disso. Tragédia é um destino pessoal, ¢ caso se quisesse tentar saber, usando para isso 0 ca- minho de uma pesquisa de jornal, quem sente a privacao do chao platénico como tragédia pessoal, ninguém se manifestaria, nem mesmo os fildsofos. Pois o mundo tem necessidades mais urgentes, preocupagdes mais urgentes, preocupagées verdadeiramente tragicas, ¢ o nexo, embora interno, ainda assim mediato dessas preocupagoes com a perda da situacao platénica nao 64 Espirito e espirito de época pode ser objeto de tragédia. Os filésofos, no entanto, esto completamente satisfeitos com seu trabalho puramente cientifico no circulo criticamente logico. E ainda assim aquela tragédia peculiar persiste. Ela é a tragédia do homem criador por exceléncia, do homem que € obrigado a formar o mundo em sua totalidade, a fim de que essa totalidade lhe dé a resposta & unica questo que move o homem em sua incansavel busca da unidade: Como eu me comporto em relacao ao mundo e Aquilo que chamo de minha vida?”. Ea pergunta ética, e nao ha tragédia que nao tivesse de se referir pura ¢ unicamente a ela. Era a cla que a filosofia outrora servia, quando ainda nao hav ia se cindido ¢ constituia unidade teolégica, quando cla (justamente por isso) ainda possuia a lingua, sua lingua, era a ela que servia todo espirito criativamente filos6fico e 0 edificio ideal que ele crigia, para que seu saber acerca da totalidade do mundo se transformasse em algo natural ¢ compreensivel por si mesmo ¢ com isso chegasse a naturali- dade dessa compreenséio — um tiltimo refulgir disso ainda paira sobre a obra madura de Edmund Husserl —, pois a intengiio do filosofo jamais é, ¢ jamais podera ser, fazer declaragdes sobre as coisas empiricamente expe- rimentaveis do mundo, sobre um mundo que apenas em sua totalidade superconcreta ¢ idéntico a sua propria esfera, mas sim sua compreenstio da estrutura do mundo é uma compreensao da experiéncia interior ¢ da natu- reza do ser humano, que alias é “a condig&o de toda experiéncia possivel”: c ela é capaz de se tornar tao grande € verdadeiramente criativa que — como ha pouco nas palavras da escritura — pode se tornar um saber atemporalmente profético acerca das coisas acontecidas ¢ das que estéo acontecendo. Mas justamente a escritura também mostra que nao existe compreensao da natureza do humano que ao mesmo tempo, ou melhor, que primordialmente nao seja uma compreensao ética, e assim n&o esta dada ao homem filoséfico, por mais que ele fique no reino do conbeci- mento filoséfico (0 que nao impede que os Ambitos do conhecimento em- pirico também mantenham para ele a mesma importancia), a pergunta Espitito eespirto de Gpoca 65 “Como é 0 mundo?”, mas sim a pergunta pelo comportamento, nao a pergunta pelo ser, mas sim a pergunta pelo agir, para resumir, a pergunta ética. E aqui é que principia a tragédia ¢ inclusive chega a alcangar além do homem criativo ¢ conhecedor, se wansforma em tragédia do mundo, que, na falta do éthos, esté em franca decadéncia. Pois a ética nao pode viver sem lingua: nos tempos do mutismo também houve sempre apenas 0 exemplo ético mudo, a grande tragédia do martirio, a convicgao pela agao, nao pela palavra, o “suportar” da injustiga, a non-résistance. B, para isso 6 provavel que haja oportunidade suficiente hoje em dia. De qualquer modo, poderia ser feita contra a filosofia a censura de que é culpa dela se nao reafirmou sua possibilidade de se expressar linguisticamente em meio a uma necessidade ti assim tao grande; mas a mesma (e exatamente tao descabida) censura poderia ser feita contra todos os grandes pensadores dos tiltimos quatro- centos anos, porque n&o conseguiram deter a desteologizagio positivista, esse processo forgado (cuja tiltima consequéncia é a situagdo atual). E certo que o pensador filoséfico tenta sempre de novo voltar a lingua, ¢ ele 0 faz de modo tao mais intensivo quanto mais fanaticamente se da conta de sua ta- refa ética, Entdo sucede uma espécie de supercompensacao do linguistico, que principiou em Nietzsche — que intuiu tantos perigos —, mas que talvez também possa ser verificada em Kierkegaard, ¢ hoje em dia — ainda que de forma completamente diferente — pode ser verificada com toda a nitidez cm Heidegger ou Karl Kraus. Trata-se de um esforgo de fazer da lingua, ela mesma, 0 absoluto, de eleva-la, pelo menos em parte, a fundamento central do conhecimento, quer dizer, de haurir 0 conhecimento do que € de sua propria estrutura, na qual jaz empilhada a abundancia dos conhecimentos de milénios. E por mais positivista que seja também esse propésito (de uma racionalidade positivista, que também marcou Nietzsche), positivista ou tal- vez antes pré-positivista, ja que uma configuragaio cmpirica como a lingua € absolutizada e endeusada, positivista, j4 que é estabelecida uma analogia vaga entre a fungao da lingua e a da matematica, que realmente leva uma. espécie de vida propria automatica no interior do tautolégico, também se 66 Espirito e espirito de época expressa nisso a queda peculiar ao misticismo tipica de todo o positivismo: trata-se de um misticismo linguistico que é praticado ali, retorica em sua forma mais nobre, um tiltimo esforgo no sentido de escapar ao mutismo, de superar a tragédia ética do mutismo. Ja que nesta época nao existe mais um centro de valores que conceda o ponto de apoio obrigatério a uma filo- sofia teolégica e a uma ética ¢ eleva a lingua a compreensio obrigatoria ¢ provadora, a propria lingua é que deve se tornar, ela mesma, esse centro de valores mistico. Nao se trata do misticismo referido pelo positivismo logico, do “alto positivismo”, se é que se pode chama-lo assim, pois este, em seu proprio mutismo radical da matematica, pode lembrar apenas um mis ticismo igualmente radical, ¢ esta tiltima experiéncia mistica se nega a qual- quer expresso, ela é igualmente muda, O misticismo linguistico filosofico € outra coisa, ele se encontra na fronteira da poesia — como mostra 0 exemplo de Nietzsche —, ele se assusta ante 0 radicalismo derradeiro, es- pera que o conhecimento poético assuma a tarefa do conhecimento filos6- fico ¢ que seu misticismo “medido” suspenda a tragédia do mutismo ético. No meio de toda ¢ qualquer cultura se encontra sua teologia. Mas em seu principio se encontra a poesia. Assim, Homero se encontrava no bergo da Antiguidade grega, criador linguistico, formador de mitos, poeta e fil6- sofo, E em sua mio ele segurava o gérmen do futuro. Esta é a esperanga. E verdade que se torna necessario chegar a um acor- do, para compreender tal esperanga, sobre o significado da palavra mito, ‘Ainda nao basta saber que 0 mito é a forma poética primeva, na qual os povos cagadores ¢ guerreiros formularam toda sua cosmogonia, sua meta- fisica, todo seu saber acerca do ser humano e da natureza. A prioridade temporal nem sempre é um principio esclarecedor. O que nao pode ser compreendido a partir do fandamento primevo da vida humana acaba nao sendo compreendido de modo nenhum. E se o ser humano talvez — mas de todo modo apenas talvez — s6 tenha precisado se tornar sedentario ¢ virar pastor para que sua alma pudesse comegar a soar lirica ¢ para que cle chegasse Aquela consciéncia que o fez lograr colocar sua suspeita metafisica sob a condugao de uma filosofia epistemologica no principio Espirito e espirito de época 67 primitiva, mesmo assim, em um sentido mais elevado, tudo é simultanco, porque o humano é atemporal. Ainda que o mistico supere tudo que € lirico — mesmo que se trate de uma poesia de Hélderlin — em poder e forca metafisica, o homem nao logra reconhecer nada que nao encontre prefor- mado por seu criador em seu proprio eu. Pois a raiz conjunta de toda a filo- sofia, de todo o querer ético, de todo o conhecimento, mas também de toda a poesia, é o saber acerca da alma humana. E 0 contetido lirico que habita no interior de toda a poesia ¢ faz dela 0 que cla é: poesia. Mas talvez tam- bém seja 0 contetide lirico de toda a filosofia que apenas no eu solitario se torna aquilo que ela é. E com certeza é 0 contetido lirico de toda a arte. E a experiéncia original platénica, sua divindade original em s E pressupos- to esse primado légico, nao temporal do lirico, pressuposta sua tarefa de expr toda sua simplicidade ¢ imutabilidade divina, o mitico acaba virando uma sar as emogdes mais profundas ¢ mais derradeiras do ser humano em transformagao do lirico, em sua projecao no mundo exterior: também no caso dele se trata da exteriorizacao das emogées mais simples ¢ mais pro- fundas da alma humana, mas elas nao sao mais confissao lirica, elas antes transparecem “objetivamente” em um acontecimento externo, portanto em um determinado comportamento do homem concreto ¢ visivel, de modo que elas, livres da confissio lirico-privada, buscam alcangar a repre- sentagao épica ou dramatica. Caso seja assim, caso 0 comportamento do homem, caso 0 acontecimento em que ele se realiza, seja de tal origina- lidade ¢ simplicidade lirica, caso se mostre verdadeiramente a estrutura derradeira do humano, caso se trate, para resumir, mais uma vez da alma humana, uma objetivagao do lirico desse jaez pode definitivamente ser declarada mito. E a relagao da oragao com a hagiografia; ¢ também ali a oracio ¢ 0 verdadeiro residuo do mistico ¢ do magico. Mas, assim como anatureza do homem esté embutida na natureza do mundo ¢ sua paisagem, jaz nela como em um ber¢o eterno, ¢ assim como sua cangio lirica das profundidades de seu eu também sempre canta a natureza, 0 aconteci- mento que forma 0 mito, um acontecimento das profundezas do coragio e ao mesmo tempo um acontecimento na natureza, sim, até mesmo um 68 Espirito e esprito de época acontecimento da propria natureza, cuja violéncia metafisica propria pode se tornar tao grande, tio verdadeiramente “mitica” nessa fungao que o fundamento lirico original, como se fosse apenas algo pequeno, pessoal ¢ subjetivo, as vezes acaba sendo completamente encoberto por ela. E isso ha tempos nada mais tem a ver com povos cagadores € pastores, também nao com tipos humanos (ainda que se quisesse deduzir o extrovertido mitico- -metafisico a partir do cagador, ¢ 0 introvertido lirico-filos6fico a partir do pastor), mas sim fica claro que tanto 0 mitico quanto 0 lirico jazem em cada alma humana, alma que é imutavel, imortal, divina como eles, e que € carregada por uma reivindicagao de eternidade tao grande quanto a atemporalidade da natureza ¢ da alma humana em si. Ea grande para- bola do logos € do espirito na natureza, a qual também o homem per- tence, € 0 conhecimento poético em si, é a esperanga eterna, que sempre floresce quando o conhecimento racional chega a seu limite, esperanga de voltar a encontrar no mito a lingua que foi perdida. Mas é justamente essa validade universal que de repente transforma 0 problema do mito por assim dizer também em uma questdo interna e atual no ambito da poesia. A poesia nao seria parte da época a qual per- tence se nao possuisse e nao refletisse as mesmas tendéncias desta; no fun- do, os motivos apresentados para isso pouco importam, ainda que nao seja um acaso que aqui se trate da validade universal do poético. Pois é igual- mente natural que o circulo do niilismo relativista, que distingue 0 positi- vismo ¢ empurra ao misticismo, precisa se tornar visivel também em todos os outros Ambitos de valores, portanto também no da poesia. Aqui isso acontece na troca da importancia do problema. Onde ficaram os proble- mas de Strindberg ou até mesmo os de Wedekind? E ainda assim cles eram, no passado, temas de validade quase absoluta. O que ainda importa hoje em dia o problema do matriménio? O que significa tratar literariamente questdes sexuais, sociais ¢ demais questdes de ordem privada? Nada, abso- Iutamente nada! Que depressiio! Quando se lembra que toda a criagio artistica depende de seu fundamento original lirico-atemporal ¢ mitico ¢ — isso vale até mesmo para suas variantes mais mesquinhas, de certo modo Espirito e espirito de época 69 destinadas ao uso caseiro — no fundo s6 pode acontecer sub specie aelernitalis, caso ndo queira desesperar ¢ sufocar ante sua propria falta de sentido, compreende-se 0 asco e 0 enfado quase legitimo que esta embutido na expressao “literatura do asfalto”. Trata-se da validade eterna da poesia, € por isso em tiltima instancia do mito. E essa nostalgia se torna tanto mais violenta quanto mais indiscreto, quanto pior, quanto mais sanguindrio e incompreensivel s : tornar o mundo, O que poderia contrabalancar a guerra no espaco da fantasia? Que tema é suficientemente grande a ponto de poder resistir ao lado da guerra? Que palavra pode se medir com a guerra, qual delas pode proporcionar tanto consolo a ponto de poder ser usada ante 0 mais profundo desespero do coragao? E apenas o mito da existéncia hu- mana por exceléncia, o mito da natureza e sua fenomenalidade divino- -humana. Ciaso existisse esse mito, ele nao seria apenas a salvagaio da poesia € de sua validade eterna, como também um sinal da misericérdia, ele seria um sinal do consolo, pois seria um sinal da crenga ¢ uma nova fusio de valores, aquela fusto que é necessaria para botar um fim no estilhagamento sanguindrio dos valores. Mas por enquanto ele nao existe. Apes r de toda a nostalgia da época pelo mito, E, ainda que ele esteja em relagao com a natureza ¢ com a es- séncia origindria da alma humana, jamais se erguera — 0 propésito brota da falta de fantasia especificamente positivista — nem dos romances de gue € solo, nem dos romances do populisme francés. Também Edipo e Fausto nao foram agricultores que dominavam a pratica da terra. A cria- gao de um mito nao pode ser alcangada com um simples comando, nem mesmo a partir da nostalgia. Pois as concretizagdes do mitico tém notoria- mente apenas uma variabilidade muito pequena, talvez porque justamente a estrutura fundamental do humano, que se expressa no mito, é de uma simplicidade tao grande ¢ sao necessaria mudangas relativamente grandes demais na alma humana antes que consiga realizar para si um novo simbolo mitico, como 0 que cresceu na figura do doutor Fausto. E se um escritor, movido por aquela nostalgia do mito e sua validade eterna, ¢ movido a reformular algo mitico, nao reflete apenas humildade quando se vé obri- 70 Espirito e espiito de 6poca gado a se dar por satisfeito com o que ja existe: trata-se de um procedi- mento que talvez encontre seu paralelo na constante variacao de temas biblicos por parte do artista medieval, talvez também na continuidade dos problemas na filosofia ocidental, que sempre se vé obrigada a modificar a palavra do principio e fundamentar de novo a origem dupla no logos ¢ no espirito, e mesmo assim nao se pode falar em um novo mito, mas no maximo em uma nostalgia por ele. Nem a — para destacar os exemplos mais visiveis — nova coneretizagao do peregrino mitico, Jaco por Thomas Mann, nem a do peregrino mitico Ulisses por James Joyce podem ser consi- deradas mito; ambas nao 0 so, por maior que seja a realizago de Mann, na qual clevou a forma corrente do romance psicologico as fronteiras do mito, mas nem um passo além dessas fronteiras; ambas nfo 0 sao, por mais formidavel que seja a forga simbélica de Joyce, com a qual ele explode a forma do antigo romance para chegar a uma forma nova. Mas nao foi por que essa explosao ainda nao se mostrow definitivamente bem-sucedida porque Joyce, no ambito da categoria estética, continua, € na condigao de virtuose, depositario da forma antiga, que Mr. Bloom nao se tornou e jamais haverd de se tornar uma figura mitica, mas sim porque todo 0 relativismo € todo 0 niilismo religioso da época esté embutido (¢ inclusive consciente- mente representado) nel : a figura mitica, no entanto, € sempre uma figura do consolo ¢ da religido. O que acontece em Thomas Mann € como uma colegio das iiltimas reservas para adotar com elas uma posicao que logo parece ter 0 aspecto de uma cabega de ponte na terra nova, mas que nao permite comegar uma nova marcha a partir dela: assim € que as cabecas de ponte dos romanos ficavam do outro lado do Reno ¢ do Dantibio, postos avancados na terra do motismo barbaro, que jazia intransitavel diante deles. A cabeca de ponte de Joyce, a0 contrario, possui um porto suspenso — se cle algum dia sera ultrapassado nao se pode dizer hoje em dia. Mas isso € apenas uma alegoria, ¢ mesmo assim uma alegoria que po- deria dizer mais. Pois o discurso se localiza entre 0 mutismo do ceticismo radical ¢ 0 mutismo do misticismo radical. E se é impossivel para a época chegat ao mito, é 0 mutismo do ceticismo que a impede, o emudecer cético Espirito e espitito de 6poca 77 do positivismo, que no ambito da poesia nenhures se apresenta tio nitido quanto justamente em Joyce. Todo o asco ante a lingua, toda a aversio ante o ato de operar com conceitos que ficaram vazios, toda essa ma von- tade da filosofia positivista ante uma tradigio paralisada em jargao, tudo isso se torna vivo em Joyce de uma forma poética ¢ profundamente genial: nenhuma convengao de pensamentos ou de sentimentos deve continuar tendo validade, por toda parte se devem buscar as tltimas causas ¢ as der- radeiras realidades (positivistas!) — um prentincio de tal asco e de tal ho- nestidade pode ser percebido em Tolstoi, mas como ele ainda se mostra fraco e até mesmo amével em sua obra! —, ¢ exatamente com 0 mesmo. asco, com o mesmo desprezo é tratada a lingua, sua sintaxe de sujeito e pre- dicado paralisada ao asco, exatamente com o mesmo édio s&o alcangadas suas tiltimas realidades fonéticas, ¢ ela é dissecada em seus componentes originais, para ser com cles remontada em formato completamente novo, que para aqueles que se encontram fora é completamente incompreen- sivel. Até se poderia dizer que aqui o caréter privado do lirico mais uma vez superou o mito, que ele o transformou retroativamente em uma lirica radical, uma lirica tao radical que se tornou um assunto completamente esotérico. E como se houvesse um ataque fortissimo ao mito ¢ ao mesmo tempo uma rentincia igualmente forte a ele. Joyce pode ser tomado como paradigmatico? Caso isso pudesse acon- tecer, seria declarada nao apenas a rentincia aos novos mitos, teria sido no apenas roubada a poesia a tiltima esperanca ¢ ela seria colocada na série das artes que se tornaram supérfluas, conforme ja 0 sao a pintura e a escultura, mas inclusive seria arrancada ao espirito, que j4 perdeu suas possibilidades de expressio filos6fica, também a esperanca de se expressar poeticamente. A lingua, a lingua palavra de Deus, estariam definitiva- mente mortas. Mas fazer profecias é um neg6cio melindroso. Nao é apenas possivel que surja um poeta — um Homero da modernidade — ao qual seja permitido formar 0 novo mito, mas inclusive muito mais do que isso; poderia nascer 0 novo fil6sofo que pudesse voltar a fazer da filosofia a cos- mogonia teolégica universal, que — no fundo, ele ja seria um fundador 72 Espirito e espitito de época de religito —, gragas a uma filosofia que a todos une como essa, inclusive fizesse cessar a decadéncia de valores no mundo e reunir os valores mais uma vez em seu centro de crenga. Tudo isso seria possivel. Mas vamos supor que esse caso de misericérdia no suceda, ainda que um dia venha a suceder, O que acontecerd? Sera que o logos ¢ 0 espirito desapareceram do mundo porque perderam sua expressao linguistica? Mas eles ainda possuem uma expresso linguistica € ela é a mais audivel nesse mundo que emudece, ela se torna cada vez mais audivel e mais rica, ¢ ela & a misica, que paira sobre tudo que é humano como um ltimo sinal do espfrito ¢ do logos em sua validade universal. Nao foram os motivos sociais ¢ econdmicos que levaram a humanidade a uma incompreensao continuamente crescente diante de toda e qualquer outra arte, inclusive poderiam ser tornados validos, com facilidade, os mesmos motivos também para a misica, mas aqui eles nao sao acertados, e a humanidade antes se langou com um certo frenesi aos bragos da musica, insaciavel e com aquele radic: lismo e falta de concessao que também esto entre as posturas fun- damentais desta época, com uma paixdo que pode ser esclarecida apenas a partir do mutismo ¢ da incapacidade de compreenstio do homem atual ¢ do sofrimento profundo que com isso Ihe é jogado as costas: como um tiltimo cintilar da misericérdia de Deus, 0 homem agarra a musica, como uma {iltima nogao da crenga ¢ de um conhecimento que vai além do visivel, ela Ihe é dada, como uma forma de ludibriar o mutismo que supera a tragédia de seu conhecimento racional, e até mesmo nos rebentos mais extremos ele ainda sente, venturoso, a ventura, e, ouvindo, volta a ser 0 que um dia foi, volta a ser homem, ser humano. Quase chega a parecer que a musica esta bem menos submetida aos perigos deste mundo racional do que qual- quer outra expresso ou atividade humana, mesmo a desgraga do isola- mento dos valores, conforme est4 dada para toda e qualquer obra de arte na inevitavel art pour Lart, parece no conseguir prejudicé-la, sim, nem mesmo a mecanizacao a qual ela necessariamente tem de se submeter em um mundo mecanizado. Seu sorriso continua existindo, ainda continua existindo. Espirito ¢ espirito de época 73 Entretanto: inda que também a misica emudeca neste mundo, ainda que tudo, também esta ultima manifestacao imediata do espirito emudega, ainda que apenas um pensamento racional continue existindo, um pen- samento racional que se mantém no visivel em desesperada honestidade, consciente de seus limites, de seus limites cientificos, respondendo a todas 2s perguntas pelo outro lado de tais fronteiras com a convicgao do ignorabi- mus ¢ apontando para o mistico, também nessa Postura, essa postura assim t80 logica, o espirito ainda age, ele ainda é um agente, um supraordenado que nao pertence mais ao ambito do trabalho ¢ nao pode mais ser abran- gido pelo ambito do trabalho, mas mesmo assim continua e sabe-se que esta A disposigao. Fé desse saber que tudo depende, ao final das contas, Ele contém a legitimaco, mais do que isso, a exigéncia de nao desistir e de perguntar pelo espirito, (1934) 74 Espirito e espirito de época

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