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EDIL SILVA COSTA

FELIPE GRÜNE EWALD


FREDERICO FERNANDES
(Organizadores)

ANAIS DO II SEMINÁRIO BRASILEIRO DE POÉTICAS


ORAIS: MÉTODOS, ACERVOS, CARTOGRAFIAS

(PARTE 1)

Londrina
UEL
2012
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

S471a Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Métodos, Acervos, Cartografias (2.: 2011: Salvador, BA)
[Anais do] II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Métodos, Acervos, Cartografias / Edil Silva
Costa, Felipe Grüne Ewald, Frederico Fernandes (orgs.) – Londrina: UEL, 2012.

478 p.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-7846-101-0

1. Linguagem poética – Congressos. 2. Literatura – História e crítica – Congressos. 3. Crítica


literária – Congressos. 4. Linguística – Congressos. 5. Poesia sonora – História e crítica –
Congressos. I. Costa, Edil Silva. II. II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Métodos, Acervos,
Cartografias.

CDU 82-1.09

Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca


Central da Universidade Estadual de Londrina.
Métodos, Acervos, Cartografias

COMISSÃO ORGANIZADORA
Edil Silva Costa
Presidente

Frederico Fernandes
Vice Presidente

Vanusa Mascarenhas
Secretária

Rosa Helena Blanco


Coordenadora do PPGEL

Osmar Moreira
Coordenador do Pós- Critica

COMISSÃO CIENTÍFICA
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy (UFRGS)
Andrea Betania da Silva (UNEB)
Arivaldo de Lima Alves (UNEB)
Denise Barata (UERJ)
Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
José Guilherme Fernandes (UFPA)
Josebel Akel Fares (UEPA)
Margarete Nascimento dos Santos (UNEB)
Mario Cesar Leite (UFMT)
Silvio Roberto dos Santos Oliveira (UNEB)
Edilene Matos (UFBA)
Yeda Pessoa de Castro
REALIZAÇÃO
Universidade do Estado da Bahia

Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural

Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens

Nutopia (Núcleo das Tradições Orais e do Patrimônio Imaterial)

Universidade Estadual de Londrina

GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia

APOIO
Comissão Baiana de Folclore
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO 9

PARTE 1

LITERATURA ORAL E ESCRITA NA SALA DE AULA PARA O APRIMORE 12


DO USO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Abílio de Mendonça
NARRATIVAS QUILOMBOLAS: MULHERES REGISTRAM UMA MEMÓRIA 25
AFRICANA NA BAHIA
Ana Fátima Cruz dos Santos
ARTIGO RETIRADO PELA COMISSÃO EDITORIAL 39

HISTÓRIAS CONTADAS: O CONTO COMO INSTRUMENTO PARA O 53


AUXILIO NA AQUISIÇÃO DA PRÁTICA SOCIAL DE LEITURA E DE
ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Ana Paula Santos da Paz
PERIPÉCIAS DO “CAPETA”: NARRATIVAS SERTANEJAS EXPRESSAS NOS 62
CORDÉIS A MULHER QUE ENGANOU O DIABO E PELEJA DE MANOEL
RIACHÃO COM O DIABO
André Ricardo Nunes Nascimento
ANTONIN ARTAUD E KLAUSS VIANNA: PERFORMANCE COMO POESIA 72
VIVA DO CORPO SONORO
Ceres Vittori
CINEMA, ORALIDADE E PESQUISAS: TENDÊNCIAS PENDULARES ENTRE 90
O MUSEU E A VIDA
Ana Claudia Freitas Pantoja
ORALIDADE, LETRAMENTO E PRÁTICA DOCENTE NO SERTÃO 101
POTIGUAR: INCLUSÃO SOCIAL ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL
Claudson Faustino
Amarino Oliveira de Queiroz
METÁFORAS VIVIDAS: LETRA E VOZ NAS NARRATIVAS ORAIS 109
URBANAS DA RESTINGA
Cristina Mielczarski dos Santos
BOI ROUBADO: TRADIÇÃO DO TRABALHO EM FESTA 133
Daiane de Araújo França
Lúcia Maria de Jesus Parcero
CONTADORES DE HISTÓRIAS MIRINS: DESAFIOS DA ORALIDADE E A 143
LEITURA NA REDE PÚBLICA
Daniel D’Andrea
POÉTICAS ORAIS – QUESTÕES DE RELAÇÃO E METODOLOGIA 160
Felipe Grüne Ewald
POÉTICAS ORAIS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE COQUEIROS: A 170
METÁFORA DOS TRONCO VÉIO
Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho
“LÁ VEM A COMPADECIDA!” – DIÁLOGO ENTRE O CORDEL O CASTIGO 181
DA SOBERBA E A PEÇA TEATRAL AUTO DA COMPADECIDA
João Evangelista do Nascimento Neto

PARTE 2

CARTOGRAFIA DAS MEMÓRIAS TEATRAIS NA CIDADE DE BELÉM (1957- 197


1990)
José Denis de Oliveira Bezerra
SONS DA NEGRITUDE NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA: O ALCANCE 225
DA POESIA SONORA
Kárpio Márcio de Siqueira
KLÉVISSON VIANA E O IMAGINÁRIO NORDESTINO NA LITERATURA DE 235
CORDEL
Lívia Petry Jahn
LITERATURA DE CORDEL E MIGRAÇÃO NORDESTINA: ESPAÇOS 257
LITERÁRIOS E GEOGRÁFICOS
Luciany Aparecida Alves Santos
ENTRE O INGÊNUO E O COMPLEXO: VOZES DO PRAZER ESTÉTICO 275
Maria Auxiliadora Cunha Grossi
SANTA MEMÓRIA DA COMUNIDADE MUMBUCA: TESSITURAS DE 294
VERSOS POÉTICOS
Maria de Fátima Rocha Medina
FOLHETOS NORDESTINOS: UMA BIBLIOTECA CANTANTE E FALANTE 313

Maria Ignez Novais Ayala


Rosangela Vieira Freire
SALVOS PELO ANTI-HERÓI: CENAS DE INJUSTIÇA SOCIAL NAS 329
HISTÓRIAS DE PEDRO MALASARTE
Maria José Lopes Pedra
O ACERVO “A VIDA REINVENTADA”: APONTAMENTOS A PARTIR DE UM 336
OLHAR DIGITAL
Mauren Pavão Przybylski
O TROPICALISMO E SUAS FORÇAS 356
Pérola Cunha Bastos
ENTRE DISCURSOS: A CONSTRUÇÃO DO SAMBA DE VÉIO DA ILHA DO 372
MASSANGANO-PE.
Quercia Oliveira
A LITERATURA POPULAR E ORAL DO SER-TÃO: PERMANÊNCIAS DA 387
LETRA E DA VOZ
Renailda Ferreira Cazumbá
“TODOS OS FIOS DA VOZ”: CONFLUÊNCIAS ENTRE O CANTO E O 403
RECITAL NA PERFORMANCE DE MARIA BETHÂNIA
Renato Forin Junior
“PISA NEGADA , DEIXA A POEIRA SUBIR”: POÉTICA DA ORALIDADE NA 421
PERFORMANCE DO COCO DE RODA
Ridalvo Felix de Araujo
Sônia Queiroz
A VOZ COMO MÉTODO DE PROVOCAÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS 438
Tereza Virginia de Almeida
TRADIÇÃO E ENCANTO EM MATARANDIBA: O CONTO POPULAR A 453
FIGUEIRA
Thaís Aparecida Pellegrini Vieira
CARTOGRAFIA DAS NARRATIVAS DE CARLOS MAGNO 467
Willian Lima de Sousa
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8

APRESENTAÇÃO

Bahia de todos os encontros

Nos dias 31 de agosto, 01 e 2 de setembro de 2011 realizamos em Salvador, Bahia, o


II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: métodos, acervos, cartografias & Encontro
Intermediário do GT de Literatura Oral e Popular. Nosso objetivo era dar continuidade às
discussões iniciadas no I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais, realizado na Universidade
Estadual de Londrina, em outubro de 2010, e reunir mais uma vez o GT de Literatura Oral e
Popular da ANPOLL (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e
Linguística). Desde o último Encontro Intermediário do GT realizado em Salvador em 1998
não reuníamos um número tão grande de participantes. Mas se o quantitativo revela o
crescente interesse nos estudos da oralidade no Brasil, também nos indica que ainda são
restritos os espaços no âmbito das universidades para agregar esses pesquisadores. É na
qualidade dos trabalhos apresentados, e aqui parcialmente reunidos, que percebemos o
amadurecimento do grupo em mais de duas décadas de caminhada e, por outro lado, o
alargamento da participação de jovens pesquisadores que representam a seiva de nosso
trabalho.
A partir do tema proposto - métodos, acervos, cartografias -, foram discutidas questões
inerentes aos acervos e métodos de pesquisa para subsidiar o Projeto Rede Cartografia de
Poéticas Orais do Brasil, Projeto Integrado aprovado em 2009 e desenvolvido por
pesquisadores do GT, em comitês regionais.
A partir dos diversos subtemas que mapeamos nas pesquisas do GT de Literatura Oral
e Popular, o II Seminário teve como objetivos:

- Promover o debate sobre o emprego do texto poético oral no ensino de literatura e na


formação do leitor.
- Debater as diferentes abordagens da oralidade no texto literário, de modo a
identificar as várias metodologias e referenciais teóricos empregados.
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8

- Analisar os diferentes suportes de circulação do texto poético oral, levando em conta


textos tradicionais (como mitos, lendas, contos populares etc.) e de vanguarda (poesia sonora,
polipoesia, poesia cibernética).
- Contribuir para a criação do banco de dados do projeto Cartografia de Poéticas Orais
do Brasil, por meio do qual pesquisadores e comunidade científica possam ter acesso a textos
poético-orais e oriundos de projetos desenvolvidos no Brasil.
- Gerar produtos culturais (como livros e materiais audiovisuais), com fins à
disseminação dos resultados do evento.
- Estimular a consolidação de instrumental teórico e metodológico interdisciplinar
para dar conta das manifestações da voz em situações de performance, bem como de seu
registro em acervos físicos e virtuais.
- Favorecer a troca e a circulação dos saberes para além dos muros da academia, com a
participação de artistas populares que lidam com as questões da voz.
- Contribuir com o debate acerca das políticas públicas formuladas para as culturas
populares e seus impactos na educação.

Organizando a apresentação dos trabalhos a partir dos objetivos elencados e dos temas
inerentes a eles, o II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: métodos, acervos,
cartografias conseguiu promover um grande encontro de pesquisadores do país e do exterior,
professores universitários, graduandos, mestrandos, doutorandos, professores da rede pública
e privada, artistas e pessoas da comunidade.
A programação, composta por conferências e mesas-redondas, contou com a presença
de membros fundadores do GT como a Professora Idelette Muzart Fonseca dos Santos
(Université Paris X), convidados internacionais como Antoni Russell (Universidade
Autónoma de Barcelona) e Paula Cristina Villas (Buenos Aires), além de representantes do
Norte a Sul do país, dentre outros, Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL), Ana Lúcia
Liberato Tettamanzy (UFRS), José Jorge Carvalho (UnB), Mário Cezar Silva Leite (UFMT),
Josebel Akel Fares (UEPA), Maria Ignêz Ayala (UFPB), Marcos Ayala (UFPB), Edilene
Matos (UFBA), Heloísa Helena Costa (UFBA), Yeda Pessoa de Castro (UNEB). Desse modo,
promoveu-se um profícuo debate, superando as análises dicotômicas que separam
popular/erudito, e os estudos folcloristas mais tradicionais que enfrentam seus objetos com o
olhar do exótico.
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Das sessões de comunicação participaram pesquisadores docentes e discentes que tiveram


seus trabalhos selecionados pela Comissão Científica e que agora se reúnem mais uma vez,
para além da Bahia de Todos os Santos, tendo suas vozes transpostas para a forma escrita. São
esses trabalhos que o leitor encontrará aqui nos Anais do II Seminário Brasileiro de Poéticas
Orais: métodos, acervos, cartografias e que temos a alegria de apresentar.

Salvador, Bahia, março de 2012.


Edil Silva Costa
Universidade do Estado da Bahia
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LITERATURA ORAL E ESCRITA NA SALA DE AULA PARA O APRIMORE DO


USO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Abílio de Mendonça (NGEAALC/GELLC- UNEB)


abiliobi@ig.com.br

Resumo: Em espaço formal, educandos podem ser estimulados ao prazer de ler, escutar,
contar histórias e aprimorar o uso da Língua Portuguesa, ouvindo, lendo e criando textos,
enfocando a ética e a cidadania através de obras literárias africanas e afrobrasileiras e outros,
como os de Literatura de Cordel, que fazem parte da cultura local, enriquecendo o
conhecimento destes, mostrando a sua riqueza, tendo esses, mensagens ligadas a temas como
o amor ao próximo e a natureza, o autoconhecimento, a paz e outros, que objetivam
sensibilizar aos educandos a uma consciência de si e da importância em viver em
comunidade.

Em espaço formal, muitos professores se queixam que os seus alunos não leem ou não
têm estimulo para fazer isso. Crianças e adolescentes de comunidades carentes e com poucos
recursos econômicos se veem no dilema de ter de ler para cumprir uma exigência da escola
que coloca em seu currículo livros que são obrigatórios, mas não os estimula a tal coisa ou
torna esta atividade um ato desprazeroso ou como muitos definem: “chato”. É preciso que os
educadores tenham a sensibilidade de estimulá-los com textos que sejam interessantes para
estes e que contenham mensagens significativas, levando-os a ter prazer pelo hábito de leitura
e incentivá-los a ler textos variados que possuam significado para sua vida, procurando
trabalhar a auto-estima deles, aprimorando a linguagem formal e a sua escrita e fala,
enriquecendo seus conhecimentos literários tendo como fonte vários textos que fazem parte
da cultura dos mesmos, tais como de Literatura Africana e Afrobrasileira, de cordel,
trabalhando a ética e a cidadania para melhor interação social em sua comunidade.
Segundo SALES LOPES (2009) é de grande importância que o trabalho de leitura
esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto-se tratar-se uma forma
carinhosa e prazerosa para o conhecimento. Essa variável de constituição de experiências
possui propriedades positivas que devem ser discutidas e consideradas quando se trata de ler
diferentes tipos de textos. O estimulo a leitura envolve exercícios de reconhecimento das
propriedades que matizam um tipo particular de leitura, sendo possível evitar uma série de
equívocos, de fantasmas que costumam estar presentes nas escolas em relação às leituras. O
prazer de ler é uma técnica que se adquire no decorrer dos anos, tendo em vista que o prazer
da leitura vem aos poucos e contribue para a formação de leitores capazes de reconhecer as
sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão, a profundidade do texto lido. A leitura é
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importante em todas as idades e em todo o momento de vida. Ela estimula a formação de


cidadãos críticos que exige a inserção na sociedade. Nesse contexto, o papel do professor não
só de Língua Portuguesa, mas também como de todas as áreas de ensino, é de colaborar para a
compreensão do mundo e de suas transformações. A autora aponta que ler não se resume em
decodificar letras e escritas, vai mais além, é de modo geral, decodificando seus significados.
Para seduzir ou ganhar novos leitores, é imprescindível saber usar os artifícios necessários no
qual se possa oferecer ao outro o que deseja, mesmo que este não tenha consciência do seu
próprio desejo, de adquirir novos conhecimentos. Seduzir pela força da palavra bem aplicada,
pela sugestão, passando um entusiasmo honesto, verdadeiro e pelo exemplo exercido em casa,
tornando a leitura uma prática prazerosa que pode tornar-se familiar, encontrando respaldo na
escola através de professores leitores, no sentido amplo que envolve a palavra leitura.
Para ALVES (2001), a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram
dentro do livro, não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam, mas sim a estória. A
aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a
criança escuta com prazer. Seduzida pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para
aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los, porque eles
são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro, desejando autonomia, de ser
capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo. No
primeiro momento as maravilhas do texto se encontram na fala do professor. que no ato de
ler para os seus alunos, é o “seio bom“, o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. O
autor confessa nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática, não
sendo nelas que aprendeu as delícias da literatura, mas ele se lembra com alegria das aulas de
leitura, as quais são definidas como concertos. O professor lia, interpretava o texto, e todos
ouviam extasiados. Ninguém falava. A leitura era prazer puro, existindo uma
incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura e a experiência de ler a fim de
responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a
professora fechava o livro. Ele cita a importância da família na participação da atividade de
leitura, focalizando a grande relevância de ter esse hábito em casa.
Na escola, segundo ALVES (2001), o professor deverá continuar o processo de leitura
afetuosa. Ele lê, a criança ouve, instigando o desejo desta prática, pois toda aprendizagem
começa com um pedido e se não houvê-lo, a aprendizagem não acontecerá. Ele compara o
prazer da leitura de um texto com a audição de uma música, sendo que todo texto literário é
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uma partitura musical e as palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a
técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece.
Assim, quem ensina este ofício, isto é, aquele que pratica o ato da leitura para que seus alunos
tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Nas escolas, deveria ser estabelecida a prática
de “concertos de leitura“, com os alunos experimentando os prazeres do ler. A culpa de
muitos jovens não gostarem de ler não são deles, pois foram forçados a aprender tantas coisas
sobre os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais, análise
sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza
musical do texto literário, foi-lhes ensinada a anatomia morta do texto e não a sua vitalidade.
Para o autor, a leitura é definida como o ato de fazer amor com as palavras e essa transa
literária se inicia antes que as crianças saibam os nomes das letras, sem saber ler elas já são
sensíveis à beleza e o papel do professor é indispensável neste processo.
Mas a leitura não deve ser imposta pelo educador, e sim negociada. Uma sondagem
oral pode ser realizada no primeiro dia que as aulas formais começarem, sendo que esta deve
ter caráter descontraído, perguntando aos alunos se eles leem, como o fazem, que tipo de
obras e qual a freqüência. Muitos dos educandos dizem que pouco lêem, mas reconhecem a
sua importância. Isto demonstra a emergência para uma política voltada ao incentivo à leitura.
Alguns romances, contos e outros textos curtos podem auxiliar na escola, mas estes devem ser
focados para um objetivo maior, o de enriquecê-los culturalmente e levá-los a se
questionarem sobre as coisas que acontecem em sua comunidade, respeitando a cultura do
aluno, pois de acordo com SOARES (1993, p. 14) todo e qualquer grupo social possui cultura
pois esta significa a maneira pela qual o grupo social se identifica, através de seu
comportamento, valores, costumes, tradições, comuns e partilhados. Por isso, este ato deve
levar em consideração estes fatos culturais que fazem parte do grupo social que o aluno está
inserido.
Essas aulas podem ser ministradas com obras da Literatura Africana, enfocando
autores consagrados, como exemplo, a escritora angolana Alda Lara, servindo como
referencial de uma mulher negra que através de sua poesia denuncia o preconceito racial e
transmite a sensibilidade de uma pessoa que usa suas obras para revelar as belezas de sua terra
natal. Convém ressaltar que esta escritora sofreu muito o preconceito dela ser mulher e negra
em uma época que escrever era coisa de homem e não era permitido às pessoas da mesma cor
de pele dela o fazer e do mesmo sexo da escritora, pois o preconceito racial naquela época era
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muito forte e institucionalizado. Também pode ser referida a contista Isabel Ferreira que com
seus trabalhos, nos mostra os hábitos e costumes africanos da região de onde ela veio, Angola,
nos dando dados que podem ser interligados aos nossos, baianos, através de sua linguagem
própria. Segundo ela,“ A linguagem faz parte da expressão cultural e Individual de cada ser
humano” (FERREIRA, 2008, p. 10). Este referencial é de suma importância para os alunos
porque resgata o que muito tempo foi tentado encobrir, a cultura africana e sua importância
para a formação da nossa identidade nacional e cultural. Outra autora reconhecida
mundialmente e faz parte do universo feminino africano é Paulina Chiziane, autora de várias
obras literárias reconhecidas em vários países, tem como tema os hábitos e costumes de sua
nação, Moçambique. Esta contista moçambicana sofreu muito, assim como as duas outras
referidas acima, o preconceito de ser mulher e negra em sua época . Estes são referenciais que
podem abrir o debate para temas transversais como sexualidade, cidadania e outros em sala de
aula.
A Literatura Afrobrasileira também pode ser estudada e interligada com a africana,
fazendo um paralelo entre essas duas, enfocando as contribuições que o continente africano
tem para o Brasil e especialmente para a Bahia, dando referências de pessoas que fazem parte
da nossa cultura, como exemplo, Mestre Didi, contista e artista plástico soteropolitano. A sua
obra “Contos Crioulos da Bahia” pode servir de referencial para mostrar aos alunos que um
homem negro vindo de uma família humilde, superou todos os obstáculos e ascendeu
socialmente, sendo reconhecido internacionalmente. Suas obras são admiradas em vários
países, tais como França e Estados Unidos, sendo este ganhador de vários prêmios nestes
países e outros e consagrado como um dos maiores escritores e escultores do mundo. Elas
podem ser analisadas, interpretadas e interligados com a cultura baiana, trabalhando a ligação
Literatura Africana em língua portuguesa com a Literatura Afrobrasileira e a realidade do
aluno.
O objetivo desta intervenção, interligando estas duas culturas, é reforçar a consciência
étnica do aluno e trabalhar a sua auto-estima através da valorização da riqueza do legado
literário africano e sua conexão com a comunidade que o aluno está inserido, procurando
fazer os educandos a se reconhecer nestas, pois “Os coletivos diversos que fazem parte de
nossa formação social e cultural vêm reivindicando o direito de conhecer-se em sua
identidade e cultura, memória e história” (ARROYO, 2008, p. 49). Em sala de aula, este
conhecimento e reconhecimento identitário do aluno é importante para reforçar sua cultura e
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identidade e abrir espaço para o diálogo de referenciais que hoje estão sendo debatidos na
sociedade em que este está inserido.
Pode-se colocar referenciais femininos, como exemplo, a rainha Nzinga, rainha
que viveu durante um período em que havia o tráfico de escravos africanos, sentindo a
opressão da época da escravidão colonial. Esta guerreira, se revoltou contra o domínio
português, negociando com estes um tratado de paz. Ela se converteu ao catolicismo e adotou
o nome português de Dona Ana de Souza. Ganhou notoriedade durante a guerra por liderar
pessoalmente as suas tropas e por ter proibido-as de a tratarem como "Rainha", preferindo que
se dirigissem a ela como "Rei". Esta mulher guerreira pode ser associada com as brasileiras
que tanto lutaram e contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro, mostrando sua
força, inteligência e sensibilidade feminina, dando referenciais de mulheres que lutam até hoje
pelo espaço que muito a foram negado, assim como Mãe Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá,
comunidade-terreiro localizada na territorialidade do Cabula fronteira com Arenoso, a qual,
segundo CORREIA (2010, p.10) ,uma senhora que se opôs a todo tipo de exclusão ao
continuo civilizatório dos povos africanos que vieram para a Bahia. Ela, junto aos
movimentos negros e as comunalidades africano-brasileiras não se calaram ao longo da
história.
Através da leitura, interpretação e reelaboração destes textos em sala de aula de
Língua Portuguesa, pode-se buscar também o aprimorar da linguagem formal escrita e falada,
através da análise, crítica e recriação destes, pois a língua portuguesa é a que os brasileiros se
interagem, se comunicam, expressando os seus sentimentos, ideologias e construindo sua
identidade própria. PRAH (2000) aponta que “A língua serve também de instrumento de
opressão e imposição da cultura dominante”, sendo assim o que e como vai ser lido deve ser
analisado com cuidado, para que não seja instrumento de opressão e sim o ensino da norma
culta como forma de aprimore linguistico. A utilização da língua na forma culta é um meio de
especialização do indivíduo que o possibilita a galgar melhores empregos e se destacar mais
na sociedade, havendo um enfoque nas palavras que os educandos não conhecem, trocando-as
por seus sinônimos ou antônimos, trabalhando-se em sala de aula a parte semântica contidas
nos textos literários.
Trabalhar também a Redação após a leitura e interpretação de textos diversos, através
de métodos que deixem os alunos questionar e dar sua opinião, servindo de base para a
criação daqueles de sua própria autoria, incentivando a criatividade de forma lúdica, expondo
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suas ideias e reelaborando os seus conceitos e desmistificando a concepção que os mesmos


“não sabem escrever ou não possuem criatividade”, mostrando que são múltiplas a forma de
ler e escrever com sensibilidade .
Segundo BARRETO (2001) a sensibilidade do professor de língua portuguesa mudou
bastante de certo tempo para o atual, sendo que hoje é preciso repensar o papel do ensino da
língua. Ela coloca o papel do escritor como um pesquisador sendo este um árduo trabalho,
pois para muitas pessoas é um trabalho difícil exprimir no papel as suas ideias. Ela aponta
como razão para isso a causa e o efeito da crise em que se encontra a comunicação escrita,
citando a pouca eficácia do ensino de redação nas escolas, sendo que há uma falta de
treinamento específico para esta modalidade na sala de aula, decorrentes de total desprestígio
em que caiu a língua escrita como meio eficiente de comunicação. Não se pode esquecer de
que o ensino da língua não se destinou à produção, à leitura e à interpretação de textos, mas
sim se limitou a exigir do aluno as nomenclaturas gramaticais, uma vez que essas eram, e
continuam sendo, exigidas pelo vestibular e pelos concursos em geral. O resultado de tal
postura foi um aluno que mal sabe “escrever”. A sociedade exige do profissional, seja qual
profissão for, mesmo do professor, a capacidade de passar para o papel todos os seus estudos,
divulgando assim o seu trabalho. Para isso, é preciso alguns conhecimentos específicos da
elaboração da redação e, o principal, exige de qualquer um muita leitura. Escrever significa
comunicar-se e, todos sabem que, nas empresas e instituições a comunicação se faz muitas
vezes através da modalidade escrita. Há muitas pessoas com dificuldade de escrever um
texto. Esta dificuldade se explicita, quando o individuo tem de fazer uma curso ou até mesmo
uma avaliação, em que o exercício de escrita é uma constante; ou quando ele é solicitado a
escrever um relatório, uma declaração, ou um outro documento na empresa. No momento em
que estes questionamentos se colocam, pensamos a razão destas pessoas, formadas por uma
instituição, não conseguem escrever com certa tranqüilidade e atender às necessidades
exigidas pela instituição formal. É importante esclarecer que o cerne do problema de se fazer
uma boa redação está ligado aos ensinos fundamental e médio. Contudo, este problema é
levado até à faculdade e os docentes de língua portuguesa, matéria não encontrada em todos
os cursos , não procuram, geralmente, fazer nada para sanar este "mal da escrita". Ao final do
curso, o que se tem é um profissional incapaz de escrever bem o que aprendeu. Incapaz de
dissertar com segurança gramatical e estrutural a respeito de um tema apresentado. Não se
pode deixar de lembrar que o estudo gramatical é importante para a elaboração de um "bom"
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texto. A essência do problema é verificar o ensino de língua portuguesa na universidade no


que diz respeito à produção de textos, ou seja, mais especificamente, ao ensino de redação
dissertativa objetiva na universidade. Ela entende por literatura não um corpo ou uma
seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo
das pegadas de uma prática de escrever. O texto é o tecido dos significantes que constitui a
obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que deve
ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das
palavras de que ela é o teatro. O texto literário é aquele que transgride a barreira da
linearidade formal e soma à sua estrutura recursos conotativos, levando ao receptor a
possibilidade de significados variados. Entende-se por texto não-literário aquele que tem a
função principal de comunicar algo de forma objetiva, fazendo uso da função referencial,
utilizando, para isso, a linguagem puramente denotativa.
Para BARRETO (2001) o aprendizado da nomenclatura dos elementos da língua
acontece a partir da 3ª série do ensino fundamental e é reforçado durante as demais séries até
o término do ensino médio. Com o vestibular, cada vez mais interpretativo, a leitura começa a
ganhar espaço nas aulas de língua portuguesa. Após a leitura de textos literários e não-
literários, inicia-se um debate sobre a temática do texto que culmina com a proposta de
elaboração de um texto sobre o assunto debatido. A diferença básica entre o ensino médio e a
universidade é que o discente universitário tem que colocar em prática o conteúdo que foi
ensinado no ensino médio. No entanto, a língua portuguesa, nem sempre, foi ensinada da
melhor maneira possível, isto é, com a intenção de, realmente, dar autonomia ao educando, a
fim de que ele, agora, na universidade, saiba concatenar o conteúdo de todas disciplinas e
possa elaborar um texto rico sintática e semanticamente. Não sabemos, mas é o que se quer
descobrir também, o motivo da falência da expressão escrita. É imprescindível saber como
são dadas, de fato as aulas de português hoje e como a produção de texto é incentivada e
corrigida, se é que ela é tratada com destaque. Portanto, o fato é que o ensino de língua
portuguesa tem de passar por uma reformulação, ou melhor, deve seguir as novas exigências
da educação e do mercado de trabalho, pois ambos defendem o fato de o aluno, ao sair da
universidade, ser capaz de se comunicar a partir das modalidades oral e escrita com destreza e
não com medos e erros que se igualam aos dos alunos dos ensinos fundamental e médio. É
preciso que os professores direcionem as aulas também para escrita, senão continuaremos
tendo advogados com suas petições rejeitadas por falta de coesão e coerência ou a ler nos
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jornais e revistas com palavras erradas. É preciso entender que o aluno vai para sala de aula
com saberes e experiências vividas em sua comunidade e isso reflete na sua produção escrita.
A produção escrita do aluno depende também dos textos que o mesmo lê. É de suma
importância não limitar o educando a ler e escrever somente um tipo de texto, como somente
a prosa, mas também poesia. O intuito é de sensibilizar e chamar a atenção para a beleza e
grandiosidade deste gênero. A poesia pode ajudar na sensibilização e chamar a atenção para a
construção de textos mais humanos, como temas direcionados ao amor ao próximo, possuindo
uma riqueza no seu interior de mensagens que servem para a reflexão sobre o viver em
comunidade e o respeito ao ser humano, o convívio com a mãe natureza e com os nossos
irmãos, filhos desta bela e rica matriarca. A prática desta escrita e leitura em sala de aula pode
estar atrelada a vida cotidiana de seus alunos e suas representações.
A pesquisa feita por BULHÕES (2010), sobre a relação entre divergentes formas de
saber, especificamente da representação que alguns sujeitos de grupos populares urbanos
mantêm sobre as suas práticas de escrita na vida cotidiana, considerando que esta pode ter
significação diferente e representar aspirações singulares de pessoas divergentes, sendo que o
fenômeno da representação é social e simbólico, e que diversas modalidades dela trazem à
tona diferentes formas de saber. Esta revela que estes não reconhecem as leituras bíblicas que
realizam ao falar, tanto as particulares quanto as compartilhadas em voz alta, enquanto tal.
Eles veem este fato como ação de formação religiosa. Os textos que circulam na sua vida
diária na comunidade são vistos pelos que os escrevem ou leem não como instrumento para a
sua formação de leitor e redator, sendo que alguns menos escolarizados citam clássicos da
literatura ao falarem de suas experiências com a escrita. Eles justificam e valorizam a sua
pouca experiência escolar, sendo que um deles justificou o domínio da escrita com a última
reforma ortográfica. Esta pesquisa também demonstrou que os mais jovens não relacionavam
a leitura e redação de textos digitais como experiências de escrita, enquanto os mais
escolarizados aproximam-se mais da escrita escolar, acadêmica. Os saberes e experiências de
escrita entre sujeitos são compartilhados entre eles que convivem em um espaço popular
urbano, aproximando-se e muitas vezes se conflituando com um modelo hegemônico de
escrita. Eles privilegiam gêneros tradicionais de escrita próprios do contexto escolar,
acreditando que saber a língua é dominar regras da gramática tradicional. A escrita, vista
deste ângulo, limita-se à sua condição de código, sendo representada por um mecanismo
‘neutro’ cujo objetivo é atender as necessidades funcionais do Estado. A autora aponta a
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‘naturalização’ de ideologias que reproduz os padrões culturais e de poder de grupos


específicos. A escrita, nesta visão excludente, seria um produto em si mesmo, apartado do seu
contexto de produção.
Para ampliar o contexto acima referido de produção textual, alguns contos de literatura
de cordel podem ser usados também. Estes servem para ilustrar a riqueza regional e sua
ligação com a vida cotidiana do educando. Este tipo de literatura tem o objetivo maior de
mostrar que mesmo as coisas que aparentemente são simples, possuem uma complexidade e
podem conter referenciais culturais no qual fazem parte do universo do aluno. Este tipo de
literatura possuem uma grande variedade de temas, tradicionais ou contemporâneos, que
refletem a vivência popular, desde os problemas sociais até a conservação das narrativas
antigas, não havendo limites de temas para a sua criação, que podem ser sobre o amor
arrebatador, a política ou qualquer um. Estes também têm textos poeticamente estruturados,
têm a sextilha (conjunto de seis versos) como estrofe básica, mas também há as sextilhas,
oitavas e as décimas, podendo o professor utilizar destes para dar esse assunto em sala de
aula. A xilogravura, gravura rústica feita a partir de entalhes em chapa de madeira, pode ser
explorada com linguagem não-verbal transformada em texto verbal, pois o professor pode
pedir para os alunos a partir delas construir textos relacionados com essa gravura. Por se
referirem ao universo nordestino, este que o aluno está inserido, eles são importantes para a
formação de imagens referencias positivas para os educandos.
Estas imagens na escola, podem ser aprimoradas, pois “as crianças, adolescentes,
jovens e adultos que chegam a escola carregam imagens sociais com que os currículos, as
escolas e a docência trabalham, reforçam-nas ou se contrapõem” (ARROYO, 2008, P.23). Ao
entrarem para o ensino formal, estes levam consigo sua identidade de classe, raça, etnia,
gênero, território, campo, cidade, periferia e, segundo o autor (p.23), sobre essas imagens são
construídas as identidades dos alunos, definindo funções para cada escola, priorizando ou
secundarizando conhecimentos, habilidades, competências. Respeitar essas particularidades é
poder construir uma base boa para a construção dessas imagens, tendo como objetos
norteadores, textos que possam facilitar essa compressão.
Os textos selecionados devem ter em seu interior temas que servem para aprimorar o
aluno em sua vida social, tais como a ética, a paz, o amor ao próximo, a vida em coletividade,
a importância do auto-conhecimento e a cidadania, colocados de forma lúdica, através das
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mensagens intrínsecas e extrínsecas que têm em seu bojo o intuito de provocar o


questionamento do indivíduo como um cidadão membro de sua comunidade.
Estes textos podem ser de gêneros variados, pois cada membro envolvido no processo
possui um gosto diferente por determinado tipo de leitura, sendo esses selecionados por todos
o que compõe o espaço formal educacional (professor e alunos), pois alguns gostam de
romance, outros de drama ou até mesmo de comédia. A não imposição destes em detrimento
de outros é importante, sendo estes negociados entre esses membros, tendo como elemento
norteador as mensagens significativas que possuem como tema principal o amor, a
cooperação mútua, a valorização da paz e a importância de uma vida saudável materialmente
e espiritualmente para a comunidade que este está inserido.
Obras e autores internacionais são de vital relevância para a efetivação das atividades
literárias em sala de aula, pois trazem o universo cultural diferente do que o aluno está
inserido, pois “A busca das raízes para além do tempo e do espaço é, antes de mais nada,
outra maneira de compreender a relação com o mundo” (CORREIA, 2010, p. 2). Estes podem
ser Martin Luther King (Eu tenho um sonho), John Lennon (Imagine), Nelson Mandela
(pequenos dizeres dele sobre o Apartheid) e outros que colaboraram com a tentativa de
construir um mundo mais justo, mais pacífico e sem violência, mostrando a heterogeneidade
artística que existe no mundo e que neste habita várias culturas e realidades diversas,
trabalhando-se com interpretação e elaboração textual, colocando o estudante como membro
construtor de seu próprio texto e com a dramatização destes para tornar os encontros mais
animados e prazerosos. A diversidade de textos é benéfica neste processo com importante
papel no incentivo a criação e a sensibilização, levando os alunos para a criação de poesias e
outros tipos de textos, dando oportunidade dele a expor o seu dom criativo, associando-se a
outras formas de expressão como a musical.
A música tem um papel importante para descontrair o clima e exibir sorrisos. Os
envolvidos no processo podem cantar e interpretar as letras, atentando para as mensagens
significativas que ela possui, tornando esse ato educativo e cultural mais leve e mais
interessante para todos. Nas aulas de Língua Portuguesa, a música pode quebrar a monotonia
de forma agradável, sendo a letra dela além de poder sensibilizar o aluno, pode conter
elementos para servir de base para o assunto que o educador está propondo estudar, um
exemplo disto é se o assunto for “verbo”, uma música conteúdo estes verbos pode ser
analisado em sala de aula. Torna-se a aula mais fácil de ser entendida, porque pode chamar a
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atenção do aluno e melhor fixar o assunto, pois através dela o assunto proposto vai ser
interligado a algo que o aluno gosta e que o faz com prazer.
Outros recursos utilizados são contos, romances, revistas, filmes. Todos de diversos
gêneros com temas voltados para o crescimento espiritual e intelectual do educando. Estes
devem ser ligados com a realidade deste, possuindo um valor significativo na sua vida em
comunidade .
Crianças e adolescentes de escola pública e moradores da comunidade podem
participar e devem fazê-lo, envolvendo as pessoas que se relacionam culturalmente com estes
educandos, construindo o currículo. Este não são conteúdos prontos a serem passados aos
alunos, e sim “... uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidos em
contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais , intelectuais e pedagógicas”
(ARROYO, 2008, p.9). Eles não devem ser obrigados a participar das aulas, mas sim
estimulados a serem sujeitos ativos e a fazerem parte dela.
Através destes textos literários, os envolvidos no processo educacional em Língua
Portuguesa podem retirar neles os assuntos e temas necessários para aprimorar o
conhecimento e melhorar a ortografia e a semântica. A Literatura vai servir de objeto para
melhor entender a língua estudada e seus mecanismos. Através de mensagens contidas neles e
de sua grandiosa e rica sensibilidade contida em seu interior, aluno e professor encontram nela
um terreno fértil para melhor entender a Língua Portuguesa e tornar as aulas mais leves e
interessantes, sem o “peso” de analisar mecanicamente o texto e retirar elementos para fazer a
análise sintática ou morfológica, e sim de poder compreender melhor como funciona a língua
e seus elementos comunicativos. Essas mensagens contidas nestes textos literários podem ser
usadas para servirem de debate em sala de aula para objetivar uma mudança no
comportamento de seus integrantes, pois através desses diálogos, pode-se discutir a
convivência no espaço comunitário e o que este representa neste planeta rico em beleza e
cheio de oportunidades para crescer espiritualmente, dialogando o fato de não podermos viver
isolados e que é possível caminhar juntos na construção de um mundo melhor, no qual a
literatura (arte da palavra), da intervenção linguística e elaboração textual feita pelo aluno,
pode-se sensibilizar, não só o educando, mas também o educador, levando-o, através de
mensagens que possam despertá-los, e se fazer reconhecer em sua cultura, como filhos dessa
generosa e rica mãe natureza, a reverenciá-la e admirá-la, despertando o interesse dos
participantes deste processo educacional a atentar a importância do amor ao próximo e a
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sensibilidade para reconhecer as coisas lindas do mundo, tentando não mudar o mundo, pois
isto é utopia, mas tendo certeza que pode-se colaborar para algo se transformar, porque os
pequenos atos com amor podem levar a grandes resultados, por eles terem em seu interior a
semente que ao ser plantada, pode ser germinada e afetar a vida de outros, através de
mensagens contidas na Arte de Viver.

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NARRATIVAS QUILOMBOLAS: MULHERES REGISTRAM UMA MEMÓRIA


AFRICANA NA BAHIA

Ana Fátima Cruz dos Santos

Especialização UniJorge
anafatimadossantos@yahoo.com.br

RESUMO: Em virtude da implementação da Lei Federal 10.639/2003, pelo ensino de


história e culturas africanas e afro-brasileiras nos diversos níveis da educação no Brasil,
ampliou-se o número de produções didáticas e paradidáticas para instrumentalizar educadores
e demais interessados pela democratização de um ensino sem desigualdades raciais. Em meio
a instrumentos inovadores o diretor cinematográfico Antonio Olavo lançou o documentário
Quilombos da Bahia (2004) mapeando e obtendo depoimentos da população de comunidades
quilombolas distintas. Comunidades estas que se fundamentam a partir de lutas históricas
protagonizadas por pessoas negras e mantêm seu desenvolvimento cultural através de valores
ensinados por seus anciãos. Têm-se como objetivos da presente pesquisa apontar e analisar as
marcas existentes nos relatos orais que representam traços identitários de uma memória
africana viva no cotidiano desses territórios proferidos pelas mulheres entrevistadas no
audiovisual. São narrados contos populares locais e cantigas. Foram encontradas nas
narrativas descrições de grupos étnicos de origem africana, funcionalidade medicinal de ervas
e plantas típicas da região nordestina, e discussões sobre o processo educacional escolar de
alguns quilombos.
Palavras-chave: narrativas orais, quilombos, mulheres.

Quilombos da Bahia: documentário da realidade nordestina

Em 2004, o diretor e produtor Antonio Olavo lança em todo estado baiano o


documentário Quilombos da Bahia em que são apresentados depoimentos de quilombolas,
entre adultos e anciãos das comunidades visitadas. O arquivo cinematográfico tem como uma
das suas principais características registrar a memória do povo negro que transmitem às
gerações futuras seus costumes, histórias, medicina alternativa e cultura através da oralidade.
A problematização do pertencimento étnico entre os moradores mais antigos é um aspecto
curioso e relevante à identidade individual e local nos quilombos.
Após sanção da lei 10.639/2003, uma das leis que legitimam a luta pelas ações
afirmativas no Brasil e a abertura do sistema de cotas no mesmo ano por diversas
universidades brasileiras (exemplo: UNB – Universidade de Brasília - e UNEB –
Universidade do Estado da Bahia), alguns pesquisadores e estudiosos (as) das questões
etnicorraciais no Brasil passaram a efetivar maiores produções com um teor educacional sobre
o assunto afim de que temas que dizem respeito a preconceito racial, discriminação e outros
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tipos de violências voltadas especificamente às pessoas negras possam ser discutidos e


revistos pela sociedade contemporânea. São muitos os vieses a serem apontados e analisados
principalmente no setor educacional, o qual tem por objetivo a formação de sujeitos políticos
e conscientes. Um dos temas escolhidos para análise diz respeito às comunidades de
quilombos as quais referenciam um nível de organização africana mantendo o espírito de
coletividade entre os povos que compartilham o mesmo espaço não desprezando o uso das
tecnologias avançadas para a manutenção de seu bem estar: direito a água potável, energia
elétrica, escola com qualidade e assistência médica adequada.
Em novembro de 2003 foi sancionado o Decreto de Lei nº 4.887, o qual regulamenta
os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal (1988). Este preconiza que: Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Mesmo com essa conquista legislativa, os quilombolas ainda encontram dificuldade de
terem seu direito reconhecido, pois partidos políticos contrários movem ações contra esse
decreto e não legitimam a existência de quilombos modernos, justificando que o conceito de
quilombo abrange apenas àqueles formados antes da lei Áurea, em 1888. Manifesta-se, então,
o alerta à sociedade sobre mais um caso de retalhamento de uma camada de poder sob a
população afrodescendente.
Conforme o sociólogo Valdélio Silva (2007) a noção de quilombo não pode reduzir-se
ao modelo da República de Palmares, isto implicaria em desconsiderar a multiplicidade de
situações de aquilombamento e suas variadas conformações organizacionais (SILVA, 2007,
p.38). O conceito definido nesse trabalho adota quilombos enquanto sociedades ou territórios
que guardam um vínculo social, histórico ou cultural com comunidades anteriores formadas
por pessoas negras refugiadas do sistema escravocrata ou derivadas do abandono político após
sanção da Lei Áurea, resultando numa falta de estrutura econômica e social dos
afrodescendentes.
Os avanços históricos nas políticas públicas dos quilombolas adquirem afirmação
crescente no setor educacional por meio de estudos sobre suas comunidades e sua herança
negra ressaltando a presença marcante de mulheres na formação dos sujeitos históricos para a
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construção da identidade afro-brasileira. A partir da década de 90, um grande número de


publicações feitas por especialistas negros (as) sobre uma nova prática educativa provocam
reflexões positivamente diferenciadas para uma educação igualitária a pessoas de todos os
grupos étnicos que compartilham o meio escolar brasileiro. Isto se tornou importante devido a
dados de pesquisas em que são apontadas diferenças metodológicas na prática pedagógica em
sala de aula para crianças e adolescentes negros (as) e brancos (as), (SILVA, 2001) havendo
discriminação na orientação pedagógica pautada numa supremacia de raça ou status social –
quando não, as duas possibilidades.
Neste ínterim, o conhecimento sobre os quilombos nordestinos é um objeto ainda em
processo inicial de estudo nos cursos de Letras, por exemplo – levando-se em consideração a
intensidade de encontros, Conferências, grupos de estudo a partir da década de 80 em todo o
país. Entretanto, outros cursos como Pedagogia, História e Sociologia já percorrem um
caminho de estudos quilombolas mais apurado e múltiplo em nível de publicações e
interferência das mesmas nas políticas de Ações Afirmativas no Brasil.
A escolha pelo documentário como instrumento motivador da discussão etnicorracial
na educação não é aleatória. O cinema, segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, é visto como
uma forma de fomentar nas pessoas a “competência de ver”, a possibilidade de compreender
melhor os acontecimentos do cotidiano e saber resolvê-los de maneira particular e satisfatória.
Enquanto uma fonte de socialização, este recurso audiovisual está voltado para a ludicidade e
à autonomia, pois se encontra imbricado à formação cultural e educacional das pessoas, antes
aplicada apenas por leituras dos livros clássicos literários (DUARTE, 2002, p.19). O cinema
cria e auxilia na percepção do real, o que também propicia uma reflexão sobre a História, os
acontecimentos vividos por diferentes povos, culturas, grupos étnicos e assim pode ser
entendido como um “bem cultural audiovisual” (Duarte, 2002 apud Hobsbawm, 1994).

Tradição, cultura, identidade


A partir da observação do filme-documentário Quilombos da Bahia, observou-se uma
forte presença das mulheres na manutenção dos costumes ou história local. Essas quilombolas
participam de diferentes atividades: curandeiras, líderes religiosas, dendezeiras, catadeiras,
tocadoras de prato, professoras. Expõem suas dificuldades econômicas, educacionais,
profissionais, porém não apresentam dúvidas de seus objetivos e possibilidades de conquista
mantendo a identidade quilombola enquanto local de resistência negra.
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Temas são constatados nas narrativas sobre religiosidade, saúde, educação formal,
identidade quilombola, reforma agrária, grupos culturais de música e danças regionais,
discussão racial e divisão de gênero no trabalho comunitário. Observa-se que a maioria das
falas no filme documentário é feita por mulheres, acima de cinquenta anos, o que legitima
também a importância dos mais velhos e suas memórias. São os anciãos contadores de
história, bibliotecas vivas sobre a trajetória do negro no mundo.
As narrativas são ferramentas de análise que apontam a construção identitária dos
sujeitos que as reproduzem e das pessoas que as observam e guardam na memória. Discutir a
visão socioconstrucionista do discurso e da identidade social é interessante ao focalizar como
a narrativa, um tipo de organização discursiva que usamos para agir no mundo social,
funciona, como instrumento cultural, na mediação do processo de construção das identidades
sociais (MOITA LOPES, 2002, pg. 59). É uma linguagem universal ligada às formações de
pertencimento local e global, individual e coletivo capaz de circular em diferentes grupos
étnicos.
O conceito de identidade no Brasil deve ser considerado cuidadosamente a depender
da ciência de estudo a qual se vincula ou ao propósito de sua definição: se é biológica ou
cultural. Há de se considerar que a identidade popular é algo que motiva assuntos
diferenciados e relevantes para uma exploração científica. Porém, o que estaria por trás de tal
interesse? As relações de poder? É em busca destas relações que o termo conceitual
identidade vem sendo discutido no ambiente acadêmico desde o século XVIII, alcançando
grande relevância na contemporaneidade. O discurso deve ser visto como uma forma de
coparticipação social, visto que os participantes discursivos constroem o significado ao se
envolverem e ao envolverem outros no discurso, em circunstâncias culturais, históricas e
institucionais particulares (MOITA LOPES, 2002, p.30).
O jogo de identidades está presente na sociedade, em diversas sociedades, de forma
que a depender da circunstância o indivíduo se posiciona politicamente com diferentes marcas
identitárias. Moita Lopes (2002) expõe esse fenômeno na mesma leitura de Hall (2001) como
identidades fragmentadas, onde os sujeitos são construídos discursivamente a partir de
histórias contadas na escola envolvendo os acontecimentos mutáveis da modernidade tardia.
O sujeito se constitui de uma identidade incompleta, sempre em processo. Formada
continuamente na e por meio da linguagem. É neste momento que se faz necessário o respeito
às diferenças entre os sujeitos através de seus discursos firmados em bases ideológicas
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diversificadas de acordo com as diferentes construções sociais dos indivíduos que interagem
no ambiente escolar.

O que parece essencial e teoricamente inovador, além de politicamente


crucial, é a necessidade de projetar o pensamento além das narrativas
originais e subjetividades iniciais de gênero e classe e mergulhar nas
subjetividades de raça, gênero, geração, (...), todas participantes da
constituição da identidade dos habitantes do século XXI. Isto talvez
permitiria reconquistar os espaços intermediários que podem ser
reconhecidos pelos traços indiciais constituintes das novas identidades,
dos novos sentidos, e da determinação de novos significados que
servirão de elos de união entre as pessoas inseridas e participantes de
uma planetariedade (sic) não sonhada nas diásporas anteriores. (BOHN,
2005, p. 20)

Do educador ao estudante, sendo a sala de aula um outro meio social para a


interposição de culturas. O discurso materializado nas narrativas é visto pela Linguística
Aplicada como “instrumento cultural” na mediação do processo formador de identidades.
Pois, a palavra compõe uma escolha do indivíduo em revelar o que acredita ser importante do
que pode ser descartado.
O conceito de sujeito, segundo Fernandes (2007, p.33), constitui-se enquanto um ser
social, apreendido em um espaço coletivo; portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado
em uma individualidade, (...), e sim um sujeito que tem existência em um espaço social e
ideológico. É o sujeito discursivo que indicará a ideologia ou ideologias presentes no
discurso. A relação do dito e do não dito pelo sujeito, interferindo na identificação que se faz
deste que fala de um determinado lugar e representa determinado grupo social/racial.
No documentário, as narrativas são manifestações da cultura local quilombola, das
vidas de seus antepassados, da herança deixada pela natureza para a cura do corpo e o meio de
trabalho para o sustento familiar. São elas representantes dos traços identitários trazidos em
cada ser no tempo, mostrando as nações que as consolidaram em discurso.
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos
com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses
sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação,
memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que
dela são construídas. (HALL, 2001, pg.51)
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As histórias contadas pelas mulheres no documentário figuram como “narrativas da


nação”, porém, não se apresentam como uma nação específica, senão pelo discurso de
comunidade quilombola. Falam de saberes populares transmitidos por gerações distintas ao
longo do tempo e carregam representações identitárias de povos vários, contudo, formam um
grupo único: pessoas negras quilombolas. Esse movimento de rever os discursos e empregar a
eles sentido e temporalidade revigoram algumas das estratégias definidas por Hall (2001)
presentes nas narrativas. Sendo esta a invenção da tradição (apud Hobsbawn e Ranger, 1983):
Tradição inventada significa um conjunto de práticas..., de natureza
ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de
comportamentos através de repetição, a qual, automaticamente,
implica continuidade com um passado histórico adequado (HALL,
2001).

O significado de pertencimento a determinada tradição figura para muitas


comunidades quilombolas como símbolo de identidade, de constituição dos indivíduos
migrados séculos anteriores para aquela terra e transmitida por gerações. Contudo, em alguns
depoimentos essa característica da invenção de uma tradição é notada até mesmo como
elemento de sobrevivência da comunidade, de suas famílias. Em outros momentos, as
mulheres apresentam atividades que existiam antes mesmo do seu nascimento e que foram
passadas pelas mulheres durante gerações da mesma forma, com a mesma função. Uma das
formas de continuidade da tradição oral africana apresenta-se nos gêneros da comunicação. O
conto, a poesia, os provérbios e ditados são exemplos de transmissão da memória africana
coletiva transmitida por séculos assim como a sua dinâmica econômica foi passada para
quilombos descendentes de suas terras e integrantes.

Com a palavra... Mulheres quilombolas, sim senhor!


Devido à pluralidade de narrativas das mulheres quilombolas dentre as 69
comunidades visitadas por Antonio Olavo, alguns aspectos foram selecionados neste trabalho
para análise das formações identitárias e pertencimento étnico visualizadas nos depoimentos
além das perspectivas de desenvolvimento local e educacional. O audiovisual, enquanto
recurso relevante na composição dos sujeitos em meio à socialização apresenta exemplos de
mulheres que simbolizam a resistência de seu povo, a continuidade de um grupo social
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negligenciado pelo Estado e aponta suas formas de manutenção dos costumes, saberes
populares e memória coletiva de uma trajetória histórica de descendentes afrobrasileiros.
A narrativa inicial do documentário é realizada pelo diretor a fim de contextualizar e
direcionar o olhar do espectador sobre a relevância dos quilombos como local de resistência,
referência da memória negra brasileira desde a era escravocrata. Além de denunciar o descaso
dos órgãos públicos quanto à legitimação desses territórios, seu tombamento e fornecimento
de recursos básicos para uma vida digna dos moradores. Serão descritos a seguir as narrativas
de mulheres de diferentes quilombos visitados pela equipe cinematográfica em 2004 no
estado da Bahia.

Benícia Amadeus: parentesco é parentesco


Um dos primeiros relatos de mulheres quilombolas vem do Quilombo de Embiara, em
Cachoeira. É representado por D. Benícia, senhora piladora de dendê que fala sobre o nível de
parentesco entre as pessoas da região. Indica ser um traço forte do local constatado pelas
relações matrimoniais dentre famílias durante anos, porém vem se restringindo devido à morte
desses mais velhos. Não há uma causa explícita dessas mortes na fala dela. O que se pode
perceber é um olhar entristecido e saudoso. Uma forma de disfarçar esse sentimento é
anunciada pelo retorno ao trabalho de pilar o dendê assim que é dada a informação ao
entrevistador.
A cultura de produção manual do dendê nos quilombos de Cachoeira ainda é muito
forte, sendo compartilhado o trabalho entre homens e mulheres que subdividem as tarefas: os
homens pisam a semente, as mulheres lavam e separam as camadas para o uso. Não há
restrição de idade e não há patrão: reafirmam o trabalho coletivo e igualitário.

M M : “v g çã f ”
Descendente de uma família de catadeiras, Maria Madalena, de Nilo Peçanha –
Quilombo Jatimane - compartilha seu orgulho em ser de uma família de africanos que
mantiveram sua força para o trabalho e o contínuo do trabalho com piaçaba de ‘geração em
geração’ pelas mulheres. Desde os cinco anos de idade lida com a produção de materiais com
Piaçaba.
Os trabalhos manuais muito comum entre mulheres têm além do caráter comercial o
valor cultural e familiar de passar uma “herança” aos seus descendentes. Assim é com a
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produção nas casas de farinha, onde famílias inteiras crescem e envelhecem ensinando de pais
pra filhos o ofício de fazer farinha de mandioca, ou entre as lavadeiras que levam suas filhas
desde crianças pra lida na beira dos rios.

D :“ h f í uC z ”
Conhecida como Ana, Delci faz parte da família fundadora da comunidade de
Cinzento, em Planalto. Sua avó iniciou a população do local havendo, então, a família dos
Pinheiros e dos Pereiras. O legado que perpassa gerações inteiras no território é o histórico de
Diabetes a qual ocasiona problemas de visão com a maioria dos quilombolas no lugar: ponto
relevante devido a uma constatação médica sobre a incidência numerosa dos casos de
Diabetes na população afrodescendente. Estando essa em maior concentração no estado
baiano, os territórios quilombolas têm dados quantitativos sobre a frequência elevada da
doença. Questiona-se desse modo a ausência da Saúde Pública até a referida data (2004) com
um atendimento incisivo junto à população.
No fim de seu relato, Ana canta uma ladainha para Santa Luzia, protetora dos cegos. É
uma forma de expressar a cultura do meio, a musicalidade também é uma narrativa que neste
caso, legitima seu discurso sobre o mal que acomete à comunidade.
No continuo, é ilustrada a fala de uma senhora do território de Bananal expondo a
riqueza local: o Menengó (tipo de dança regional de origem africana). A musicalidade cantada
por mulheres negras está ligada ao Samba-de-roda, lembrando fatos passados com os negros
africanos durante a escravidão ou histórias para divertir. Dessa forma, configura-se um espaço
de socialização e diversão dentro da comunidade onde não existe delimitação de faixa etária
nem gênero (masculino e feminino) para participar da roda.

M : “b v p ”
Moradora do Quilombo Tijuaçu, em Senhor do Bonfim, D. Maria Bernardina conta
que sua família era toda de etnia nagô – também chamada por ela como sinônimo de africano.
Seus antepassados eram respeitados porque sabiam lidar com magia, eram curandeiros,
detentores de segredos ligados à energia da natureza. O poder sob as energias da natureza, sob
o desconhecido é um exemplo de estratégia algumas pessoas negras utilizavam para se
manterem vivos, respeitados perante os demais.
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Os africanos eram temidos por seu conhecimento espiritual e por manipular


sabiamente plantas, sementes e outros elementos da terra. Tal imagem foi generalizada e até
para aqueles que não detinham tal conhecimento, a fama foi firmada e em inúmeros casos,
não desmentida para manter a segurança e respeito entre os seus e para o homem branco.
Um exemplo a ser mencionado é o Sr. Andrelino do Quilombo de Rio das Rãs –
também descrito no documentário – que realiza operações espirituais e trabalhos de Mesa
Branca na região.
Pela capacidade que ele tem de curar pessoas, através de rezas e
operações espirituais, é muito conhecido, respeitado e temido na
comunidade, no município da Lapa e cidades do interior da Bahia, e
até outros estados. [...]Mesmo sob condições físicas precárias, ele
sabe tudo o que se passa no Enchu e no restante da comunidade. As
pessoas o procuram para pedir opinião ou conselho, e sempre
respeitam e atendem suas orientações. (SILVA, 2007, p.27).

Nilma: medicina popular e familiar


Também moradora do Quilombo Tijuaçu, descreve as plantas medicinais e suas
funções – métodos de uso empregado conforme a natureza específica das ervas. Relata que
esse saber popular advém da competência de sua mãe, antiga rezadeira da região (D. Juriti),
que aprendeu com suas antecedentes. Em seu discurso aparece a segurança sobre a
necessidade de se ter pessoas detentoras desse saber de cura das pequenas enfermidades –
como vermes, dor local, inflamações - para a sobrevivência da comunidade local utilizando
remédios plantados por eles mesmos, ou seja, um exemplo de autonomia e sustentabilidade.
D. Maria Anísia, 86 anos, também moradora de Tijuaçu, narra fato de cura acontecido
em sua família através do poder das folhas indicadas por um rezador. O caso estava
desenganado pelo conhecimento científico, pelos médicos de formação acadêmica, entretanto,
adquiriu-se a melhora do paciente após tratamento com plantas medicinais.

Maria das Dores (Dendê – Cachoeira) e Hilda Costa (Lage dos Negros – Campo Formoso)
Maria das Dores, 70 anos, relata sobre a necessidade de assistência em infraestrutura,
educação e saúde na comunidade de Dendê. Neste momento, a câmera do cinegrafista realiza
uma passagem de Plano Geral numa escola simples mantida pelos moradores. As condições
de educação são precárias, porém prevalece a vontade de exercitar o letramento como direitos
seus enquanto cidadãos.
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Hilda Costa, 42 anos, aponta uma realidade diferenciada. Narra ser a primeira
universitária dentro da comunidade, cursando Pedagogia, sexto período. Sua escolha está
voltada para os objetivos locais porque pretende, ao concluir o curso, retornar à comunidade
para aplicar seus conhecimentos da área, além de incentivar e fortalecer a educação escolar no
quilombo. Há um desejo de desenvolver capacidades e valores artísticos, consciência política
e uma organização de coletividade maior dentro do seu território através da educação formal,
científica.
Como ainda é escassa a presença de universidades ou Instituições de Ensino Superior
na adjacência, quilombolas como Hilda almejam adaptar o conhecimento comunitário que
têm com o método acadêmico legitimado pela elite brasileira. É uma estratégia que começa a
ser comum por parte de remanescentes de quilombo visando à preservação da memória local e
dos seus antepassados. Também se caracteriza como um elo entre a linguagem escrita e a
linguagem oral não assumindo a forma de “apagamento da tradição”, mas sim, registro e
manutenção da mesma.

Jardelina da Cruz (Capim da Raiz) e Izabel Pereira (Junco): o mundo está mudado
D. Jardelina da Cruz, 70 anos, relembra a existência de terras de engenho até a década
de 60, mas que depois dessa data foram destruídas acabando-se as produções de cana-de-
açúcar, elemento este que foi significativo na formação de territórios quilombolas no entorno
dos engenhos e Casa Grande. De outra maneira, este discurso também é registrado pelo
pesquisador Nei Lopes (2008) que faz a seguinte referência ao trabalho nos engenhos de cana:
Em 1550 desembarcam em Salvador, Bahia, os primeiros escravos
destinados ao trabalho nos engenhos de cana no nordeste. E com o
desenvolvimento da lavoura açucareira a partir da década de 70 desse
século, o nordeste passa a receber cada vez mais escravos, oriundos
principalmente do Reino do Congo, do Dongo e de Benguela.
(LOPES, 2008, p. 159)

O rio que abastecia o local secou a partir da década de 80 e, assim, a seca passou a
dividir morada com os quilombolas de Juazeiro e com ela, a fome. Outras comunidades
também são atingidas pela seca e vivem sob a precariedade do recebimento de água através de
carros-pipa.
Sobre as transformações ocorridas a partir do novo milênio, D. Izabel Pereira de 95
anos questiona a alteração dos hábitos, o desinteresse pelos costumes dos mais velhos, a falta
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de respeito dos mais jovens com os ensinamentos de etiqueta e postura. Levantamento de um


aspecto moral que permeia os enunciados da pós-modernidade. Alguns símbolos culturais e,
assim identitários, foram “reatualizados” ao longo do século XX. A forma como se referir aos
mais velhos, o tratamento que era dado aos pais, os novos gostos musicais e dentre outras
mudanças que surgiram e continuarão a acontecer com o advento do capitalismo, da pós-
modernidade e, presentemente, o avanço das Tecnologias de Informação que aproximam
culturais locais em uma velocidade fluida.

Considerações finais
As mulheres quilombolas das comunidades exemplificadas simbolizam as demais
mulheres nordestinas e/ou brasileiras, contadoras de histórias que representam a resistência do
saber popular descendente dos povos africanos habitados no país a partir do século XVI. A
manutenção da cultura e alegorias sociais de diferentes origens étnicas é, de certa maneira,
preservada de outra forma: com a presença do audiovisual. Este registra, interpreta e socializa
a memória de um povo baseado na oralidade como meio de comunicação e salvaguarda de sua
história. Logo, a tradição oral faz parte da vivência de todo indivíduo negro no Brasil, da
cultura nesse país construída e nas identidades regionais que consideram a pessoa negra
africana como protagonista no processo formador da nação brasileira.
Segundo Florentina Souza e Maria Nazaré Lima fortalecem a significância do
contador de histórias na tradição oral como alguém que inicia a vida de outro alguém, aponta
a estrutura fundante do sujeito para que o mesmo transmita esses conhecimentos de seu povo
aos descendentes tornando o aprendizado coletivo e interativo:
O contador de história, nessa tradição, é um mestre, um iniciador da
criança, do jovem e até do adulto. Trata-se de uma iniciação para a
vida. As histórias míticas são contadas e recontadas e funcionam
como mapas que encaminham os sujeitos nas suas possibilidades de
convivência, sem prescrever conselhos, fazendo valer o arbítrio e o
jeito de ser de cada um. Ou seja, os conhecimentos produzidos nessas
culturas e seu aprendizado sempre podem favorecer a convivência ou
uma utilização prática. (SOUZA; LIMA, 2006, p.79-80).

É por meio da oralidade, da voz da (o) narradora (o) que a palavra ganha vida, a
História é incorporada à dinâmica de vida dos indivíduos e os mitos junto aos rituais são
transmitidos por gerações garantindo a “revivência” de elementos culturais locais e globais.
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As narrativas são apresentadas pelas mulheres no documentário Quilombos da Bahia em


forma de contos, mitos heroicos de seus ancestrais, Sambas de Roda e danças. São
patrimônios imateriais que essas quilombolas carregam de geração em geração através do
trabalho em grupo, amor a terra em que nasceram seus avós, pais e elas próprias e perspectiva
de angariar uma educação formal de qualidade e igualitária na sua comunidade.
O que se problematiza atualmente é a noção de quilombo para além da ideia de
“recluso tribal” (MOURA, 1998), ou até mesmo local à margem da contemporaneidade. As
narrativas registradas pelo filme reforçam a existência de comunidade de negros refugiados
assim como formação de quilombos após declaração da chamada Lei Áurea pela libertação
documental dos negros escravizados no Brasil.
Destaca-se, sobretudo, que até um certo estágio das suas histórias,
essas populações (quilombolas) não tinham a preocupação de legalizar
as terras que ocupavam, pois não as tinham, como ainda não as têm,
enquanto bens mercantis; o uso destas não obedecem aos padrões de
parcelamento, como na maior parte das áreas camponesas clássicas;
não são grupos que se isolaram da sociedade envolvente, como muitos
historiadores acreditaram; as atividades agrícola, pecuária, pesqueira e
extrativista são articuladas e exploradas sazonalmente - há uma
preocupação em manter o meio ambiente equilibrado; os laços de
parentesco, consangüíneos (sic) ou por afinidade, são a base para a
organização social... (SILVA, 2007, p.40).

O registro das histórias, mitos e acontecimentos nas comunidades quilombolas têm se


tornado mais necessário não só para a manutenção e ensinamento de sua oralidade, mas
também para sobrevivência de grupos étnicos, dos saberes farmacêuticos populares, de um
estilo de agricultura sustentável e compartilhamento dos símbolos sociais e linguísticos de um
povo. A documentação oficial da terra faz parte de uma estratégia em manter essa tradição
afrodescendente viva por mais séculos. As mulheres que aqui se apresentaram como
contadoras de histórias fazem parte desse processo educacional e identitários da população
baiana e dos afrobrasileiros.
Há de se observar que a valorização dessa herança africana no território brasileiro está
para além da simbologia a qual tentaram classificam a capacidade intelectual do negro
enquanto “limitada”, utilizando-se de elementos generalizantes como os trajes de “baiana”,
suas comidas típicas, o “futebol-espetáculo”, o samba, o perfil de malandro e a capoeira. É
necessário enxergar que a contribuição etnicorracial afrodescendente deixa marcas profundas
na formação de nacionalidade brasileira. Trata-se aqui de um caso sério a partir do momento
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em que são rememoradas as estratégias de apagamento durante anos sujeitados às pessoas


negras pela classe dominante branca que insistia em classificar a cultura do negro enquanto
inferior, de baixa conduta e desprestígio histórico. O processo de revisão desse apagamento é
lento, entretanto, deve-se recordar que muito sangue negro foi derramado em ressurreições,
fugas e revoltas com o objetivo de perpetuar a cultura pluriétnica africana dos antepassados
escravizados e valorizar uma trajetória digna de respeito e conscientização.
Ainda são muito pontuais os trabalhos pedagógicos realizados nas escolas
correspondentes à cultura negra e sua diversidade. As comunidades quilombolas ainda não
estão agraciadas como deveriam estar nos planos de aulas de diversas disciplinas ou nos
projetos pedagógicos anuais de instituições públicas e privadas. O MEC – Ministério da
Educação e Cultura – tem cumprido a agenda política construída juntamente com o
Movimento Negro na última década, favorecendo, desse modo, um elevado nível de
intervenções metodológicas com profissionais competentes e materiais especializados que
descrevem e problematizam a construção identitária do brasileiro consciente da pertença
negra em sua história de vida, na arquitetura de sua cidade e formação linguística, por
exemplo.
A educação brasileira carece de um conhecimento não estigmatizado sobre os
quilombos contemporâneos, favorecendo as sujeitos uma construção colaborativa de sua
aprendizagem, reafirmando seus traços sociais, culturais e, deste modo, compartilhando sua
identidade e as diferentes formas de afirmação étnica na sociedade. Por ventura, grupos de
estudos e subáreas da Linguística e Literatura marcam intensamente um novo direcionamento
para uma prática pedagógica diferenciada, que respeite a diversidade humana e discuta
também nos cursos de licenciaturas, em salas de aula de todos os níveis educacionais de
ensino a relevância das histórias de povos quilombolas, por referenciar um contínuo da
identidade negra africana no Brasil. Os discursos de mulheres quilombolas, expondo mais um
sujeito sócio-historicamente ignorado na formação linguística e cultural nacional, os quais são
responsáveis por grande parte da manutenção da linguagem regional.

REFERÊNCIAS
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Aplicada no Brasil. In: FREIRE, Maximina; ABRAHÃO, Maria Helena Vieira; BARCELOS,
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Campinas: Pontes Editores, 2005.
DUARTE, Rosália. Cinema & educação: refletindo sobre cinema e educação. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos:
Claraluz, 2007
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva,
Guacira Lopes Louro. Ed. 6. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidade fragmentadas: a construção discursiva de raça,
gênero e sexualidade em sala de aula. São Paulo: Mercado de Letras, 2002.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.
SILVA, Ana Célia da. Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático. Salvador:
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SILVA, Valdélio Santos. Do Mucambo do Pau Preto à Rio das Rãs: liberdade e escravidão
na construção da Identidade Negra de um Quilombo Contemporâneo. Salvador: Universidade
Federal da Bahia. Dissertação de Mestrado, dez. de 2007, 146 páginas.
SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura afro-brasileira . Salvador:
Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
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HISTÓRIAS CONTADAS: O CONTO COMO INSTRUMENTO PARA O AUXILIO


NA AQUISIÇÃO DA PRÁTICA SOCIAL DE LEITURA E DE ESCRITA NA
EDUCAÇÃO INFANTIL

Ana Paula Santos da Paz (UEFS)


anapaula_dapaz@yahoo.com.br

Isis Naiane de Jesus Santos (UEFS)


Isis_anegra@yahoo.com.br

Resumo: A presente comunicação pretende mostrar a importância do uso dos gêneros orais
nas salas de Educação Infantil. Resulta da observação e intervenção em uma sala de Educação
Infantil da rede pública do município de Feira de Santana, atividade acadêmica solicitada pela
disciplina “Fundamentos e ensino da leitura, escrita e produção de textos”. Ao passo que a
observação acontecia e aplicávamos o projeto de intervenção, pudemos observar a
importância da oralidade para o desenvolvimento das práticas sociais no processo de
alfabetização. A contação de histórias durante as aulas, principalmente o trabalho com contos,
podem favorecer as relações existentes entre a oralidade e a aquisição da prática social da
leitura e da escrita por crianças.

Palavras-chave: Oralidade. Leitura. Escrita. Educação Infantil.

INTRODUÇÃO
“Compete ao homem, ser lingüístico, nomear as coisas”. Com essa afirmação de
Regina Zilberman no texto Memória entre oralidade e escrita, iniciamos nossa apresentação.
Sob diversos pontos de vista (o de Regina Zilberman ao referir-se a Walter Benjamin,
por exemplo), compreendemos que o conto, mesmo em sua forma escrita, mantém, digamos
assim, os laços subjetivos entre a memória e os processos de aquisição de conhecimentos.
Afirma-nos a pesquisadora que: A oralidade é o modo mais notório da relação entre o nome e
a coisa, mas a escrita, originalmente, não tem como objetivo romper essa unidade.
Como lembra-nos, referindo-se também a Paul Zumthor, a oralidade é uma abstração,
“pois somente a voz é concreta”. A pesquisadora opta inclusive pelo termo vocalidade.
Considerando essas ponderações, e apesar da propriedade delas, foi a partir da
concepção mais divulgada de oralidade que construímos a nossa experiência. Considerando
também que tão concreta quanto a voz, a escrita de certo modo deposita a memória em um
registro (com todos os seus perigos e soluções).
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A escola, pensamos nós, ainda tenta lidar com esses sintomas e desafios. A nossa
experiência, no fundo, é mais uma pequena tentativa de reativar nossas memórias,
reaprendendo a lidar com a escrita e a contação de histórias enquanto suportes.
Os gêneros orais são importantes para o desenvolvimento da leitura e da escrita
enquanto práticas sociais, principalmente na educação infantil, fase em que as crianças
baseiam sua aprendizagem na oralidade e nos aspectos visuais. Assim, o trabalho com contos
pode favorecer as relações existentes entre a oralidade e a aquisição da prática social da
leitura e da escrita por crianças.
O primeiro passo para o trabalho com gêneros orais é a seleção daqueles que
especificamente poderão ser utilizados. Escolhido o gênero oral a ser trabalhado, o professor
deve proceder tal e qual no momento que organiza sua aula, identificando todos os elementos
estáveis que determinam a ocorrência do gênero, refletindo sobre esses elementos e
analisando-os com os alunos. Ao levantar esses elementos com os alunos, reforçando os
aspectos de oralidade sem esquecer o apoio na escrita, eles tomarão consciência da situação
em que se envolverão e terão melhores resultados no uso dos gêneros orais como valiosos
instrumentos para a prática social da língua.
Nesta perspectiva a presente comunicação é fruto de um trabalho realizado com o
gênero textual conto. Através da contação de histórias (contos) trabalhamos as relações
existentes entre oralidade e escrita. O conto foi escolhido por ser um tipo textual que se
caracteriza por ser uma narrativa curta, em prosa, que se mostra eficaz em reduzido número
de páginas ou mesmo linhas, facilitando a aprendizagem, que, na infância, é basicamente
visual e oral, como já dito anteriormente.
O trabalho com os aprendizes da Educação Infantil deve estar pautado na ludicidade.
A literatura infantil possibilita a esses sujeitos a ordenação das experiências existenciais. De
acordo com Aguiar (2001),
[...] a literatura infantil, a exemplo de outras modalidades de arte, lida
com a compreensão do real e pode conceder ao pequeno leitor a
possibilidade de desdobramento de suas capacidades afetivas e
intelectuais, desde que bem-adaptada às condições da criança.
(AGUIAR, 2001 p. 77)

Deste modo o conto pode favorecer o desenvolvimento cognitivo das crianças, visto
que partindo desse tipo de leitura outros aspectos são explorados de modo a enriquecer o
universo infantil. Durante o trabalho com estes outros aspectos advindos da leitura é que os
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professores estão trabalhando leitura e letramento com seus educandos. Portanto, diversas
leituras de mundo e novos conhecimentos surgem durante a exploração da história contada.
Pautadas nesta discussão é que construímos o projeto de intervenção, intitulado o
conto como instrumento para o auxilio na aquisição da prática social de leitura e de
escrita na educação infantil do qual resulta este artigo. Considerando, enfim, que fazem
parte do trabalho de alfabetização a valorização da oralidade e o letramento, tal projeto foi
aplicado em uma Sala de Educação Infantil grupo 05 de uma escola da rede municipal,
localizada em Feira de Santana, Bahia. Foi parte de uma pesquisa de campo solicitada pela
disciplina “Fundamentos e ensino da leitura, escrita e produção de textos”.
A contação de histórias durante esta atividade nos permitiu a confirmação da importância
da oralidade para o desenvolvimento das práticas sociais de leitura e escrita no processo de
alfabetização.

ORALIDADE E ESCRITA: PRÁTICAS SOCIAIS

O uso dos gêneros literários, em especial os contos, no contexto educacional são


fatores que podem auxiliar no desenvolvimento da oralidade e das práticas de letramento dos
educandos na Educação infantil. As relações existentes entre fala e escrita possibilitam a troca
de conhecimentos entre os sujeitos. Segundo Marcuschi (2001) “os gêneros foram se
constituindo historicamente na medida em que foi se tornando necessário realizar novas
atividades com a língua. Os gêneros são cristalizações linguística de práticas sociais”.
Na atualidade sabe-se que oralidade e escrita estão intrinsecamente relacionadas,
porém nem sempre esse fato foi considerado. Assim, é relativamente recente o pensar a
oralidade e a escrita como uma díade, em que esses termos não são considerados divergentes.
Falar é uma habilidade adquirida antes de escrever. Consequentemente,
as regras gramaticais e textuais (e, é claro, fonológicas) da fala são
adquiridas primeiro e formam a base do conhecimento da criança e do
uso da linguagem. A linguagem oral é adquirida pela criança à medida
que é envolvida em contextos comunicativos, nos quais a linguagem é
sempre significativa para ela. (CARDOSO, 2000, p. 133)

Assim a inserção das crianças em ambientes que valorizem a oralidade auxilia na


construção dos esquemas que facilitarão a sistematização da escrita. Por um lado, a criança
adquire linguagem oral naturalmente; já a aprendizagem da escrita, segundo Cardoso (2000),
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tem sido vinculada à escolarização da criança. E se a escola não tiver um olhar atento pode
muitas vezes não consegue o objetivo de fazer com que a criança adquira a linguagem escrita.
A aquisição da linguagem oral pela criança ocorre de forma não sistemática.
Entretanto, existem situações em que a criança pode refletir sobre a linguagem; como
exemplo temos: as situações em que alguém as corrige (dependendo dos moldes da correção).
São momentos em que, de certa forma, a criança está elaborando uma reflexão
metalinguística, pois confronta suas hipóteses com a nova informação que lhe é passada.
Na linguagem escrita, por outro lado, predomina a aprendizagem sistemática, porém
não existe o impedimento de que a criança enquanto sujeito ativo na construção do
conhecimento incorpore elementos do seu ambiente sócio-cultural. Segundo Cardoso (2000) é
assim que as crianças aprendem determinadas características da escrita, sem um método
sistemático e sem que alguém lhe ensine. Pode-se afirmar que linguagem oral e escrita
possuem relação com o social.
A linguagem escrita, enquanto atividade fundada e incorporada em
processos dialógicos, envolve em sua produção, todo um movimento
determinado pelas experiências da criança em “registrar sua fala”, nas
quais desempenham papel importante os interlocutores e as condições
de produção. Assim, o processo de produzir um texto não se encerra no
produto que fica visível. Ao contrário, a situação que desencadeia a
atividade influencia e prefigura o texto, na medida em que estabelece
contornos, tais como o objetivo da tarefa e o destinatário do texto.
(CARDOSO, 2000, p. 135)

Deste modo, a escola de Educação Infantil deve propiciar as crianças diversos


momentos de trabalhar a oralidade, pois é nela que está pautada a aprendizagem da escrita. A
contação de história é um momento propício para a criança conhecer novas palavras; e novas
situações de escrita devem estar sempre presentes no contexto de sala de aula.

CONTO, ORALIDADE E ESCRITA...


O conto segundo Coelho (1991), é um fragmento-de-vida, um momento significativo
que permite ao leitor intuir (ou interver) o todo do mundo ao qual aquele fragmento pertence.

A essa intenção de revelar apenas uma parte do todo, corresponde a


estrutura mais simples do gênero narrativo: há uma unidade dramática
ou um motivo central ( = um conflito, uma situação, um
acontecimento ... ) desenvolvido através de situações breves,
rigorosamente dependentes daquele motivo. Tudo no conto é
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condensado: a fabulação se desenvolve em torno de uma única ação ou


situação; a caracterização das personagens e do espaço é breve; a
duração temporal é curta... Daí sua pequena extensão material (via de
regra, um conto se estrutura em poucas páginas (COELHO, 1991 p. 68).

As características do conto acima citadas são as que o torna um excelente instrumento


de trabalho pedagógico na Educação Infantil. A brevidade dos textos permite que as crianças
detenham as informações facilmente e o docente, assim, pode fazer diversas abordagens a
partir de uma história.
A contação de histórias na Educação Infantil propicia as crianças fatores como:
elementos mágicos e o recurso da fantasia. Fatores, os quais acabam despertando o gosto pela
leitura, seja ela de imagens e/ou palavras. Escutando histórias muitas crianças recebem
informações e conhecimentos passam a ser assimilados, de modo que permitem o acesso à
realidade e facilita a ordenação das experiências existenciais do sujeito.
Trabalhar com histórias infantis oralmente permite ao professor propiciar reflexões
significativas acerca do real trazido em cada conto. Ao mesmo tempo em que os contos
proporcionam diversão eles favorecem a construção de valores que enriquecem o
desenvolvimento da criança, além de possibilitar a formação de pequenos leitores.
O professor deve analisar os contos a serem utilizados de forma a criar condições para
que aflorem situações em que as crianças possam descobrir as aproximações e o
distanciamento entre o oral e o escrito. O docente tem que perceber que a utilização das
histórias não é aleatória, elas são importantes para construção da relação entre oralidade e
escrita. Compreender essa importância possibilita a compreensão do processo de alfabetização
e, consequentemente, permite o avanço da prática pedagógica orientada para o processo.
[...] o aprendizado não é apenas uma questão de processamento
cognitivo no qual os indivíduos recebem, armazenam e utilizam certos
tipos de mensagens instrucionais que são organizadas em um currículo.
A aprendizagem da leitura e da escrita ocorre em um ambiente de
intercâmbios interacionais nos quais o que deve ser aprendido é, até
certo ponto, construção conjunta de professor e aluno. (COOK-
GUMPERZ, 1991 APUD COELHO, 1991, p. 17).

Assim, trabalhar com leitura e escrita na Educação Infantil tem um sentido muito mais
amplo, não é a mera transferência do sistema fonológico para o sistema ortográfico. É preciso
tornar os sujeitos aptos a produzir textos variados, de acordo com as exigências do contexto.
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Nos estudos sobre alfabetização Soares (2010) traz que “alfabetização é a ação e
alfabetizar, de tornar alfabeto”, ou seja, é tornar o sujeito capaz de ler e escrever. E as leituras
de Coelho (1991) possibilitam acrescentar que tal ação de tornar o sujeito capaz de ler e
escrever pressupõem intrínsecas relações entre oralidade e escrita. Trata-se fundamentalmente
de processo em que a língua escrita torna-se uma habilidade que se acrescenta as formas de
comunicação da criança, formas esta que o professor deve buscar sempre ampliar.
O fato de a criança sair de um mundo predominantemente oral evoca muitos outros
aspectos além da simples decodificação. A criança passa a pensar processos que envolvem
oralidade, escrita e suas implicações. O professor deve ai aproveitar a história contada e
provocar reflexões e novas aprendizagens, de forma a alfabetizar as crianças na perspectiva
do letramento, onde escrita, leitura e oralidade vão ter uma função social, não serão apenas
meras decodificações de signos.

METODOLOGIA
Este trabalho está baseado em uma metodologia empírica, uma vez que é embasado
numa discussão teórica a qual analisa o estudo das ações sociais, individuais e grupais no que
tange relações entre oralidade e escrita. E a partir de tal perspectiva ações foram
desenvolvidas para as crianças do grupo 05, da Educação Infantil, com foco na oralidade,
leitura e escrita.
O objetivo do trabalho realizado era Ampliar o repertório de contos conhecidos pela
turma e utilizar a linguagem oral, adequando-a a uma situação comunicativa formal. Assim
utilizamos reconto e reescrita de contos para trabalhar com os alunos. Aproximando cada vez
mais a relação entre oralidade e escrita. Dessa forma as seguintes atividades foram realizadas:
1° dia – Explicou-se o que é conto; fez-se a leitura do conto Porque a galinha
’ g p b ? de Rogério Andrade Barbosa; o texto trabalhado foi levado
copiado em papel metro; e foi perguntado as crianças sobre as palavras desconhecidas do
conto. Assim, neste primeiro dia foi pretendido explorar o conto oralmente e as palavras
desconhecidas.
2° dia – Dividiu-se as crianças em grupo e foi pedido que elas contassem um conto
para explorar o mesmo; desta forma cada conto dos grupos foi escrito em papel metro para
que as crianças tivessem acesso a leitura do outro.
3° dia -Retornar a leitura que eles contaram no dia anterior e fazer desenhos ou grafias
que ilustrem tais contos.
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4° dia - Contação de um novo conto, “ qu p f h u ?” de Rogério


de Andrade Barbosa, para que os alunos pudessem ver as semelhanças entres as
características dos contos dos outros dias bem como montar um quadro com as palavras
desconhecidas surgidas durante a leitura do texto.
5° dia - Recontando o conto trabalhado no dia anterior, montando um painel com
desenhos dos contos e o que mais relevante acharam em cada conto.
Ressaltando que, antes do início das atividades foi perguntado as crianças se
conheciam contos, e quais contos as crianças conheciam e elas foram estimuladas a contar.
Foram convidadas a conhecer outros contos, mostrando os livros selecionados. A leitura dos
outros contos se deu em voz alta, com entonação na voz e de maneira lúdica.

RESULTADOS
No primeiro dia, ao apresentarmos o conto “Por que as galinhas d’angola tem pintas
brancas?” de Rogério de Andrade Barbosa. Percebemos que as crianças ficaram inquietas,
mas ao mesmo tempo admiradas ao ver a capa do livro. Perguntamos se alguém já tinha visto
ou escutado a historia e todos em coro disseram que não. A contação ganhou um caráter mais
dinâmico, quando questionávamos as crianças sobre os possíveis porquês das pintas da
galinha. Chegado o final da contação, trabalhamos com o conto que estava escrito em uma
folha de papel metro, onde identificamos e destacamos com as crianças algumas palavras
diferentes e a colocamos no mural.
No segundo dia, brincamos com a oralidade e a imaginação das crianças que foram
divididas em grupo. Pedimos que elas contassem alguma historinha e, a cada historia contada,
percebemos que muitas crianças tinham outras versões para o Chapeuzinho Vermelho,
Cinderela e os Três porquinhos e o que nos chamou atenção foi que muitas começavam a
contar a história com personagem da outra, mas seus colegas intervinham, diziam que estava
errado e dava continuidade à história.
Retomamos as histórias contadas no dia anterior e pedimos para que as crianças
ilustrassem as mesmas com a construção de desenhos que seriam colocados em painel que
seria construído no ultimo dia. Os resultados obtidos nesses dias revelaram que as histórias
contadas para as crianças são internalizadas pelas mesmas e colabora na construção de
valores.
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Decidimos então no quarto dia levar um novo conto “Porque o porco tem focinho
curto?” de Rogério de Andrade Barbosa, para que pudéssemos contribuir com o
enriquecimento do repertório literário das crianças. Com a contação da história, percebemos
que as crianças fizeram ligações com o conto trabalhado anteriormente, já que muitas diziam
“olha agora é a do porquinho”, demonstrando que perceberam as semelhanças existentes
entres os personagens principais, que ambos pertenciam ao reino animal.
No quinto e último momento, trabalhamos o reconto do conto, no qual as crianças
eram instigadas a falarem sobre a história que tinha escutado anteriormente. Decidimos então,
finalizar as atividades com a construção de um painel utilizando os desenhos e textos que
tinham sido construídos anteriormente e a colagem de imagens dos contos trabalhados nestes
dias, demonstrando que com estas atividades despertamos, mesmo que de modo imparcial, o
gosto pela leitura, seja ela das palavras ou das imagens, e também o gosto de ouvir histórias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica notório assim que o trabalho com histórias suscita o imaginário infantil, responde
indagações, enriquece o vocabulário, favorece a reflexão crítica, auxilia na leitura e na escrita,
propicia o respeito aos turnos de fala e o conhecimento de aspectos da própria cultura
possibilitando, também, a interação social.
Essa experiência nos proporcionou perceber como o trabalho com narrativas, fundadas
na oralidade ou a ela relacionadas, por tradição ou na contação de histórias, reativa a
memória, recuperando a competência fundamental do ser humano que, em sendo lingüístico,
nomeia e instaura a sua realidade. Acreditamos que esse movimento de reaproximação com o
contar e o ouvir histórias favorece os processos de aquisição de conhecimentos.
A escola talvez nunca venha a compensar a grande falta ou distância que a sociedade,
da forma como foi estruturada, suscitou em nossas subjetividades. Mas despertar a criança
para hábitos ou atividades antes tão comuns talvez possa ao menos possibilitar o reencontro
desses sujeitos com algo tão presente e paradoxalmente tão ausente: a nossa própria memória.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Vera Teixeira de [et al.]. Era uma vez na escola: formando educadores para
formar leitores. Belo Horizonte: Formato editorial, 2001.
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____.
Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CARDOSO, Cancionila Janzkovski. Da oralidade à escrita: A produção do texto narrativo


no contexto escolar. Cuiabá: UFMT/ INEP/ MEC, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática,
1991.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e


eventos comunicativos. In: SIGNORINI, Inês. Investigando a relação oral/escrito e as
teorias do letramento. Campinas, SP: mercado de letras, 2001.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 4 ed. – Belo Horizonte: Autêntica,
2010.

ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. In: Letras de Hoje. Porto Alegre,
v. 41, n. 3, p. 117-132, setembro, 2006

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. A ‘literatura’ medieval. Tradução de Amalio Pinheiro e


Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
: métodos, acervos, cartografias 62
Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8

“ ”: V J X
CORDÉIS A MULHER QUE ENGANOU O DIABO E PELEJA DE MANOEL RIACHÃO
10
COM O DIABO

André Ricardo Nunes Nascimento11

Resumo: Neste artigo, discutem-se as imagens do Diabo presentes nos cordéis A mulher que
enganou o Diabo, de Manoel D’almeida Filho, e Peleja de Manoel Riachão com o Diabo, de
Leandro Gomes de Barros, buscando entender como esse personagem é representado nos
cordéis supracitados. A imagem do Diabo, em contato com o solo da cultura popular
nordestina, ganha novas interpretações e narrativas que demonstram a coragem e a resistência
do povo nordestino frente às adversidades rotineiras da vida. Para tanto, utilizam-se, como
aporte teórico, Nogueira (1986), Pontes (1979), Góis (2004), Albuquerque Jr (1999), dentre
outros. Tais análises demonstraram que os preceitos cristãos estão bastante enraizados no
cotidiano nordestino e que as características presentes na composição da imagem do Diabo
cristão se misturam com as peculiaridades da religiosidade popular sertaneja, o que possibilita
a construção da figura do Demônio nas mais diversas narrativas.

Palavras-chave: Diabo. Cultura Popular. Sertanejo. Religiosidade.

Do cotidiano do povo nordestino, nascem várias manifestações culturais que


demonstram a capacidade dessa gente de entreter-se com suas narrativas em um cenário seco
e recheado de sofrimento. Dessas histórias, brota a Literatura de Cordel que se ramifica pelos
vales da imaginação nordestina e desenha, em suas linhas, semblantes tristes pelas condições
a eles impostas, mas felizes pela esperança e alegria de viver.
Na Literatura de Cordel, nascem vários personagens construídos pela vivência do
sertanejo. Eles dão novas interpretações e narrativas a figuras conhecidas, ilustres e até a
entidades religiosas. Nessa conjuntura, o texto eripécias do “ apeta”: arrativas
Sertanejas Expressas nos Cordéis A Mulher que Enganou o Diabo e Peleja de Manoel
Riachão com o Diabo traz análises da imagem do demônio pinceladas pelas nuances do
imaginário e da religiosidade nordestina, buscando entender como a imagem do Diabo
clássico dialoga com a figura do Diabo do riso, entranhado nas páginas desses folhetos.
Este artigo torna-se relevante por propor análises da presença demoníaca nos textos de

10
Trabalho apresentado ao XIII Seminário Interdisciplinar de Pesquisa do VI Semestre noturno do
curso de Licenciatura em Letras: Habilitação Língua Portuguesa e Literaturas da Língua Portuguesa da
Universidade do Estado da Bahia - UNEB- Campus XXIV, orientado pelo Prof. Ms. João Evangelista
do Nascimento Neto.
11
Graduando do curso de Letras vernáculas da Universidade do Estado da Bahia UNEB, Campus
Professor Gedival de Sousa
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cordel e buscar conhecimentos pertinentes a aspectos que envolvem elementos religiosos,


populares, míticos e sociais presentes na cultura popular dos Nordestinos.
Para a construção desse texto, fez-se necessário o uso dos Cordéis A mulher que
enganou o Diabo, de Manoel D’almeida Filho12, e Peleja de Manoel Riachão com o Diabo,
de Leandro Gomes de Barros13, tendo como aporte teórico os autores Nogueira (1986), que
discute acerca das crenças sobre o Diabo no imaginário cristão; Pontes (1979), salientando
questões pertinente à figura do diabo na Literatura de Cordel; Góis (2004), trazendo análises
da Religiosidade Popular e Albuquerque Jr (1999), que esboça pesquisas a respeito da
invenção do Nordeste na literatura, dentre outros textos.
O Diabo é uma figura corriqueira nas páginas de cordel, sua imagem encontra-se
enraizada nas crenças populares de um povo, em sua maioria cristã, que vê nas peripécias
demoníacas a causa de todo mal presente na história humana. Nessa perspectiva, a figura do
Demônio ganhou força e fama e nos versos de cordel sua imagem, repleta de preceitos
cristãos, ganha notáveis artífices que adentram nessas narrativas sempre com o intuito de
afastá-lo e fazê-lo derrotado, frente à inesgotável luta entre o bem e o mal.
Segundo a crença cristã, o primeiro contato dos seres humanos com as forças
maléficas se deu logo após a criação do universo. Nela, Adão e Eva, primeiros habitantes da
terra, pecam graças a uma serpente que engana a mulher e a convence a conduzir Adão a
alimentar-se com o fruto proibido, desobedecendo aos ensinamentos de Deus:
[...] A mulher que me deste como companheira deu-me o fruto, e eu
comi. Javé Deus disse para a mulher: “O que foi que você fez?” A
mulher respondeu: A serpente me enganou e eu comi. (BÍBLIA
SAGRADA, 1990, p. 16).

A primeira desobediência dos homens para com Deus desencadeia as mais diversas
ramificações do pecado na terra, e acaba por reforçar a imagem do Diabo como a entidade de
maior representação do mal. Com isso, torna-se perceptível que o cristianismo foi e é o

12
Manuel d´Almeida Filho nasceu em 1914, no município de Alagoa Grande, próximo a Campina
Grande. Escreveu romances de amor e aventuras passados no Nordeste, biografias de cangaceiros,
histórias baseadas em produções diversas da cultura de massa, bem como contos de encantamento, de
exemplo e faceciosos, alguns desses, de cunho erótico, publicados com o pseudônimo Adam Fialho.
(http://www.casaruibarbosa.gov.br).
13
Leandro Gomes de Barros, paraibano nascido em 19/11/1865. Foi um dos poucos poetas populares a
viver unicamente de suas histórias rimadas, que foram centenas. Leandro versejou sobre todos os
temas, sempre com muito senso de humor. Começou a escrever seus folhetos em 1889.
(http://www.casaruibarbosa.gov.br).
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principal disseminador da imagem satânica que se ramifica nas mais diversas crenças.
Ao entrar em contato com o solo da cultura popular nordestina, a imagem maléfica do
Diabo acaba ganhando novas interpretações. Nos versos de cordel, o Demônio ganha ares de
personagem do humor e do entretenimento dos seus leitores. Nessa perspectiva, o Diabo passa
a transitar por espaços diferentes dos que os dogmas cristãos catalisam, ganhando novas
características e novas histórias.
No cordel de Manoel D’almeida Filho, percebe-se que no Nordeste é comum a
pronúncia do nome do Diabo e de outros xingamentos quando o nordestino vê-se em uma
situação desagradável ou até em momentos comuns:
Apesar de ser bonita
Casou com um preguiçoso
Que, além de não trabalhar,
Chamava pelo tinhoso14...
Maria todos os dias
Reclamava do esposo: (D’ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4)

Dentro do imaginário popular nordestino, o Diabo possui as mais variadas nomeações,


dentre elas destacam-se O Tinhoso, O Coisa ruim, Asmodeu, Lúcifer, Ferrabrás, Chifrudo,
Capeta15, que contribuem para que a ideia de mal absoluto se misture com a de
entretenimento. No cotidiano desse povo, tais nomes trazem a ideia de coragem frente à figura
do Diabo, ou seja, por auferir denominações que condizem com o cotidiano dessa gente, o
Diabo acaba, de forma curiosa, aproximando-se dos sertanejos e tornando-se uma entidade
visceralmente popularizada, indispensável à cultura nordestina:
[...] Os sinônimos, aliás numerosos são usados preferentemente para a
referência as suas ações de malefício. Um comportamento paradoxal
ante ao tabu linguístico, e que, sem dúvida, conta pontos a favor da
popularidade do Demônio. (PONTES, 1979, p. 12)

No Nordeste, a figura do Diabo populariza-se das mais diversas formas, seja em


pelejas de versos, pequenas situações que causam raiva e em todos os momentos quando
alguma façanha dá errada. No cordel A mulher que enganou o Diabo, de Manoel D’almeida
Filho, o Diabo aparece a uma mulher:

14
Grifo nosso.
15
Nomeações populares da imagem do Diabo, disponível em: http://cubano.ws/info-atual/diabo.
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Maria olhou bem o negro


E pensou consigo: “Agora
Vejo o Diabo em Minha frente;
Valei-me, nossa senhora,
Dai-me força para que
Vença o “bicho” 16 sem demora”. (D’ALMEIDA FILHO, 1986, p. 6)

Nesses versos, percebe-se que na imaginação dos nordestinos o Diabo configura o


medo. Mas esse medo ganha características repletas de autoconfiança e crença em outras
entidades como Nossa Senhora e os santos que são bastante corriqueiras no cotidiano dos
sertanejos.
Frente ao Demônio e a outras ameaças, a devoção para com entidades e santos mostra-
se perpetuada na fé nordestina. Nessa conjuntura, tais entidades detêm força suficiente para
combater qualquer espécie de mal que possa acontecer a esses indivíduos, passando a pincelar
todas as situações onde suas emoções os aflijam:
Em geral o povo gosta da devoção aos santos. Essas e outras práticas
religiosas se desenvolveram, muitas vezes, espontaneamente. Porém
nunca deixaram de ter uma grande vitalidade. Representam certa
adaptação da religião oficial às condições reais de vida do povo, uma
resposta a seus anseios e angústias. (GOIS, 2004, p. 75-76)

No entremeio dessa mistura entre o popular e o religioso, o imaginário do sertanejo


acaba que mostrando suas principais aflições. O Diabo configura a principal delas. No cordel
Peleja de Manoel Riachão com o Diabo, de Leandro Gomes de Barros, o Diabo duela contra
um humano, uma luta regada pela inteligência de Manoel Riachão e pela soberba e segurança
do Demônio.
O Diabo ser chamado de “bicho” está relacionado ao imaginário popular onde esta
entidade apresenta-se como um homem repleto de características presente em alguns animais,
o que é perceptível nas capas dos folhetos:

16
Grifo nosso.
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Figura 1 – Capa do cordel “A Peleja de


Manoel Riachão com o Diabo”.

No cordel de Barros, a imagem que configura a capa do livro mostra a figura do


Demônio com orelhas pontiagudas, unhas extensas e cauda. Na capa do folheto de D’almeida
Filho, os caracteres humanos são mais fortes, quando se nota a presença de orelhas pontudas:

Figura 2 – Capa do cordel “A Mulher


que enganou o Diabo”.

Essas semelhanças encontram-se mais presentes em animais que causam medo nas
pessoas. Além de assemelhar-se à crença popular nordestina que narra a possibilidade de o
Diabo transformar-se em um bode e outros animais, características presentes nessas capas.
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Recheado de criações cristãs em profundo contato com a cultura popular, Peleja de


Manoel Riachão com o Diabo traz em suas estrofes o discurso do “tinhoso”, quando o mesmo
se nomeia como um ser capaz das mais astutas façanhas:
Faço tudo o que quiser,
Minha força é sem limite –
Os feitos por mim obrados,
Não vejo homem que os cite!
Eu determino um coisa,
Não há força que a evite! (BARROS, [s.d.], p. 05)

Nesse trecho, o Diabo mostra-se um ser capaz de variados feitos. O possuidor de


forças capazes de causar as mais inimagináveis formas de manifestação do mal. Essa ideia se
cria embasada nos preceitos cristãos onde os que não obedecem aos ensinamentos de Deus
recebem como recompensa para a vida eterna a morada no Inferno, espaço reservado aos
sofrimentos daqueles que em vida praticam o mal, ou seja, quanto mais o conceito de terror é
estabelecido, mais as pessoas terão medo e obedecerão a Deus:
O “horror diabólico” domina as consciências cristãs. Nas igrejas
pregam-se as penas infernais. A fantasia dos eclesiásticos deve chorar,
provocar terror [...]. O Diabo causa terror e, através de sua figura e de
sua ação no mundo, impõe-se um rígido código moral. As narrações se
intensificam, crescem e ganham corpo, nas formas das visões
apocalípticas. (NOGUEIRA, 1986, p. 66)

Essa imagem maléfica criada pelos preceitos cristãos a fim de convencer seus adeptos
a seguirem incessantes seus ensinamentos, em solo popular, acaba que sucumbindo às
narrativas de cordel. Na obra de Manoel D’almeida Filho, o Diabo perde essas nomenclatura
e reinventa-se pela coragem dos personagens nordestinos.
Nas suas estrofes, a mulher movida pela coragem propõe-se a enfrentar o Demônio e,
para ela, não há necessidade de poderes equivalentes aos dele, e sim a força que a palavra
exerce sobre as pessoas, sendo tão poderosa a ponto de fazer o diabo ser vencido pelos
humanos:
E digo mais – fique certo –
Com a fé que tenho em Deus,
Se o Diabo vier aqui
Com os falsos planos seus,
Há de perder o trabalho
Para os argumentos meus. (D’ALMEIDA FILHO,1986, p. 6)
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Essa sextilha também elucida a ideia de que o nordestino é extremamente sagaz e


capaz de se esvair de qualquer situação. Essa afirmação vai contra o preconceito que o povo
dessa região tem uma inteligência relativamente inferior ao das outras regiões. O autor
desmente esse conceito, pois cria personagens capazes de promover a derrocada do Demônio,
através de seu discurso.
Narrativas como essas também são encontradas nas linhas de Leandro Gomes de
Barros. Na história de seu cordel, Manoel Riachão promove uma peleja com o Diabo e, sem
medo, movido pela confiança em Deus, mostra-se dotado de conhecimentos e rimas capazes
de sobrepor as do Demônio:
É muito feliz o homem
Que com tudo se consola!
Posso morrer na pobreza
Me achar pedindo esmola –
Deus me dá pra passar,
Ciência e esta viola! (BARROS, [s.d.], p. 15)

Esses versos pincelam o nordestino como um indivíduo religioso que atribui todas as
suas façanhas ao poder de Deus. O personagem Manoel Riachão caracteriza as faces de um
povo que, mesmo sofrendo as adversidades enfrentadas em seu cotidiano, mostra-se
batalhador e profundamente cristão, depositando sua confiança em Deus.
Nos cordéis analisados, a presença do Demônio dá-se de maneira a mostrar a astúcia
do nordestino que, em condições diferentes, demonstra-se capaz de improvisos que lhes
colocam em vantagem em situações críticas. Nessa conjuntura, colocar o Diabo em solo
nordestino contribui para afirmar o Nordeste como um lugar onde o sofrimento e a seca são
tão presentes que se pode assemelhar tais características às crenças de Inferno.
Tais obras desenham a criatividade de um povo que em meio à seca e à fome que
castigam essa região conservam-se dispostos a procurar formas de divertir-se até mesmo
contra as peripécias do “capeta”. A narrativa do cordel A mulher que enganou o Diabo mostra
que, além de ser forte e sagaz, o nordestino também é preocupado com o seu semelhante.
A personagem principal engana o Diabo e o faz construir uma cidade para abrigar os
mais necessitados, aproveitando-se assim de poderes malévolos do Demônio para causas
benéficas:
Quero que vá procurar
Pessoas necessitadas,
Pobres, famintas, sofridas,
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Que não possuam moradas,


Por elas, amanhã cedo,
Quero as casas habitadas. (D’ALMEIDA FILHO, 1986, p. 17)

Ao utilizar as forças demoníacas para fins benévolos, a personagem engana o Diabo,


mostrando-se com forças superiores as dele. Essa afirmação reforça o ideal cristão de fazer o
bem em todas as circunstâncias, e o nordestino, mesmo enfrentando o principal adversário de
Deus, não se aflige e, com astúcia, acaba ganhando a aposta que fez com o Demônio. Em
meio a essas narrativas, O Diabo sempre tenta ganhar a alma de mais um homem, que foi
criado por Deus a sua imagem e semelhança.
As narrativas expressas nos cordéis acabam que afirmando a ideia de maniqueísmo no
Nordeste. Para os personagens presentes nessas obras, não existem outras crenças ou forças
diferentes que a do bem e do mal. Nessa perspectiva, o Diabo clássico apresenta-se com
intensas modificações. As características populares recheiam sua imagem de outros histórias e
feitos, tornando a figura do Demônio pertencente tanto à cultura cristã clássica, quanto à
religiosidade popular, como explica Góis: “Mesmo assim fica: de um todo o povo vai
aprendendo a liturgia oficial e de outro, tem suas devoções e sua expressão popular” (2004, p.
75-76).
As imagens trazidas por esses cordéis caracterizam um Diabo que busca medir forças
com os seres humanos. Essa figura sucumbe aos objetivos humanos e perpetua a
representações nordestinas, onde seus moradores saem da quietude em que estão acostumados
a viver e buscam formas, até mesmo por intermédio de Deus, de melhorar sua vida, como é o
caso da narrativa de Manoel D’Almeida Filho, e mostrar-se superior a forças maléficas, como
narra o cordel de Leandro Gomes de Barros:
– Vá na altura em que for!
Riachão lhe respondeu.
Remexa todos os livros
Que o senhor aprendeu –
Eu não conheço esse ente
Que cante mais do que eu! (BARROS, [s.d.], p. 9)

O desejo de o Diabo arrebanhar almas, e a coragem e a confiança do nordestino em


Deus, cria pelejas em que os personagens principais usam todos os artifícios para conseguir a
vitória. Nessa conjuntura, o sertanejo passa a duelar com o demônio para alcançar seus
objetivos:
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Assimilando a nova filosofia de vida, o personagem se dispõe a dar


qualquer passo [...]. Negociará com o Demônio e não vacilará [...]
Além de sentir-se a vontade para rir de tudo isso o homem
experimenta a tentação de apoderar-se do instrumental demoníaco e
utilizá-lo com outras finalidades. (PONTES, 1979, p. 36)

As histórias desses folhetos reforçam a coragem do nordestino que, ao enfrentar o


Demônio, coloca-se disposto a vencê-lo; ao conseguir, vê-se repleto de felicidade por derrotar
o principal adversário de Deus.
Portanto, as narrativas do Diabo em solo nordestino contribuem para uma releitura do
imaginário sertanejo. Dele nascem histórias muito ricas, que se misturam, resultando em
vivências que exprimem a capacidade criativa de um povo que, embora convivendo com sua
sofrida realidade, povoam suas memórias de coragem e alegria. Esses textos trazem uma nova
visão do povo do sertão, gente tão inteligente como qualquer outra, que nas narrativas desses
folhetos, desafiam a entidade mais temida, até mesmo por eles. Essas batalhas contribuem
agora para a exaltação de pessoas simples e batalhadoras que não se deixam abalar pelo
sofrimento enfrentado em seu dia a dia, nem tampouco pela imagem malévola do Diabo.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Cortez, 1999.

BARROS, Leandro Gomes. Peleja de Manoel Riachão com o Diabo. São Paulo: Luzeiro.
[s.d.].

BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Ivo Stomiolo e Euclides Martins Balacin. São Paulo:
Edição Pastoral, Paulus, 1990.

DANTE, Alighieri. A Divina Comédia. Rio de Janeiro: Coleção Elefante, Ediouro, 1996.

D’ALMEIDA FILHO, Manoel. A mulher que Enganou o Diabo. São Paulo: Luzeiro. 1986.

GOIS, João de Deus. Religiosidade Popular. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva.


Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo: Ática, 1985.


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LEMAIRE Ria. Passado-presente e Passado-perdido: Transitar entre Oralidade e Escrita.


Revista Litterature ’america. Roma: Bulzoni Editore, Trimestral, Ano XXII, n. 92, 2002.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. São Paulo: Ática, 1986.

PONTES, Mario. Doce como o Diabo: O Demônio na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro:
Codecri, 1979.
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ANTONIN ARTAUD E KLAUSS VIANNA: PERFORMANCE COMO POESIA VIVA


DO CORPO SONORO

Ceres Vittori
Universidade Estadual de Londrina
ceresvittori@gmail.com

Este artigo apresenta ênfase no processo dramatúrgico corporal, envolvendo o


desenvolvimento das interfaces entre campos de conhecimento, em especial a ideia de
movimento concebida na Técnica Klauss Vianna e poesia do espaço em Artaud, para estudos
da performance e da poesia oral.
Contemporaneamente, é indispensável compreender o fenômeno teatral frente a novas
metodologias de investigação, e aqui se pretende o entendimento da cena, nas palavras de
Marinis (1997), como acontecimento caracterizado pela mesma imprevisibilidade,
complexidade e indeterminação próprias da vida.
A este respeito há inúmeros autores de importância primordial que referendam tal
ideia, tai como Jerzi Grotowski, Peter Brook, Eugenio Barba, entre tantos contemporâneos.
Graças às experiências deste novo teatro, a imagem de um teatro limitado pela convenção
mimético-representativa dominante no século XIX, foi superada por outra, de contornos mais
amplos, na qual o teatro não é reprodução, e sim, produção. Tal perspectiva implica em:
...insistir no caráter de realidade verdadeiramente constitutivo do
espetáculo teatral, que sempre está composto por ações,
comportamentos e efeitos reais abaixo e acima dos eventualmente
fictícios ou simulados: que sempre é, também, a utilização de técnicas
materiais reais ou de objetos verdadeiros. [...] Justamente é esta a
maior contribuição teórica das novas vanguardas: haver identificado
inequivocamente a “bi dimensionalidade” própria do espetáculo
teatral, que é sempre, ao mesmo tempo, acontecimento real e
acontecimento fictício, presença material e representação,
performance auto reflexiva e referencia a outra coisa, por si, fictícia.
(MARINIS, 1997, p.179) (tradução nossa).

Como ponto de partida é preciso analisar as obras de Klauss Vianna e Antonin Artaud
à luz destas novas perspectivas em teatro, no intuito de auxiliar a compreensão e
contextualização de seus paradigmas.
A pesquisa que dá fundamento a este artigo compõe-se de uma reflexão sobre a
palavra escrita e a dramaturgia do corpo sonoro no processo de criação de uma performance.
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Entende-se aqui que uma palavra não começa sendo uma palavra – “é o produto final iniciado
a partir de um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela
necessidade de expressão” (BROOK, 1970, p.5). A palavra que se sente e que é percebida
como um movimento, como uma “vocalidade não domada, que carrega sua presença no
mundo” (ZUMTHOR, in MENEZES, 1992, p.100).
Essa presença, ainda conforme Zumthor é a do indivíduo corporalmente vivo
repensado a partir de sua relação física e sensorial com o ambiente em que vive. É o corpo do
performer como produtor de poesia e de seus significados. Neste projeto o conceito de
performance é discutido como articulação estética da poesia viva do corpo sonoro.
Entendendo criação pela perspectiva do movimento e da voz, a pesquisa fomenta a ideia de
corpo sonoro como linguagem poética, principiada no estudo das ressonâncias, que seriam os
impulsos corporais geradores de ações vocais. (ALEIXO, 2002). Com isso, o exercício vocal
com palavras e textos ganha uma dimensão sensível de sonoridades corporais, corpo tal,
imprescindível à criação da performance.
Na tentativa de alavancar algumas hipóteses de trabalho que permitam a discussão,
análise e reflexão pretendidas aqui, a pesquisa abordará a obra de Antonin Artaud, e, mais
objetivamente os conceitos de dramaturgia do corpo e de poesia no espaço propostos pelo
autor. O escopo do projeto é o estudo da peça radiofônica “ b V z Juíz
D u ”, a partir da qual se pretende criar uma via de mão dupla entre a palavra escrita e a
poesia sonora.
Serão incluídas também as cartas escritas por Artaud, relativas à proibição de sua obra,
e o dossiê da peça radiofônica, no qual ele descreve como devem ser as características sonoras
da transmissão. Analisar a peça radiofônica a partir das relações vivas de dependência entre
palavra escrita e a poética oral é objetivo geral do trabalho. Para tal discussão, a análise da
peça radiofônica será orientada pela perspectiva de Paul Zumthor sobre a oralidade e os
aspectos comparativos entre a letra e a voz propostos pelo autor.
Em termos aplicativos o projeto visa possibilidades de transcriação de textos de
Artaud pela via da ampliação de conhecimento dos princípios específicos da dramaturgia do
corpo. A “performance da oralidade teatral”, conforme designação de Marlene Fortuna (2000)
parece termo adequado pra identificar o viés performático que caracteriza o trabalho. A
pesquisa levanta a hipótese de que é possível que a performance leve à percepção plena de um
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texto literário, dado que entre a performance e a leitura solitária e silenciosa há, em vez de
corte, uma adaptação progressiva. (ZUMTHOR, 2007)
Apresentar os autores que dão referência ao objeto desse estudo se faz necessário, com
vistas a situar suas principais aproximações e distanciamentos, contextualizando-os. É
importante ressaltar o caráter contestador de ambos, assim como o viés paradigmático
presente aos seus trabalhos. A poesia viva desses autores que se debruçam sobre a arquitetura
do artista é atemporal e garante a relevância de estudos como os que se apresentam no artigo.
Antonin Artaud (1986 – 1948) nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e
faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi poeta, ator, roteirista e diretor de teatro
francês. Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática
vocal, apurada dia a dia, associada a manifestações mágicas. Em 1937, Antonin Artaud é tido
como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje
duvidosos, foi transferido para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permaneceu ainda três
anos. Artaud voltou a Paris em 1946, onde, dois anos depois, foi encontrado morto em seu
quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante
produção literária ele desenhou, preparou conferências e realizou a emissão radiofônica Para
acabar com o juízo de Deus (Pour en finir avec le jugement de dieu), na qual sua vontade
expressiva se alia a um formalismo cuidadoso (TOLENTINO, s/d).
Klauss Vianna (1928-1992) foi bailarino, criador de uma técnica de princípios e
domínio do movimento. Apesar de seguir sistemas de regras e códigos da dança, sua técnica
transcende a arte para ser entendida como um caminho de autoconhecimento para a expressão
do homem no mundo. Nascido em Belo Horizonte, estudou dança e desde pequeno se
interessou pelo teatro. Dedicou quarenta anos de sua vida para a pesquisa e o ensino do
movimento corporal, contribuindo para a evolução da dança e do teatro no Brasil. Estudou e
trabalhou em Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e por onde passou
revolucionou a técnica e a linguagem da dança no Brasil.
Coreografou, entre outros, espetáculos como Roda Viva, Hoje é dia de Rock, Mão na
Luva, Clara Crocodilo, Dadá Corpo, Bolero e foi preparador corporal de grandes nomes do
teatro brasileiro tais como Marília Pêra e Marco Nanini. Dirigiu a Escola Oficial de Teatro
Martins Penna, no Rio de Janeiro, o Instituto Estadual das Escolas de Arte (INEARTE) e a
Escola de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo. Recebeu vários prêmios, dentre eles o
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Molière como melhor coreógrafo de teatro, na peça O Arquiteto e o imperador da Assíria.


(RIBEIRO, 2010).
Faz-se necessário neste momento destacar questões suscitadas por Paul Zumthor no
que concerne ao texto e a obra. O autor entende que nas formas poéticas transmitidas pela
voz, ainda que elas tenham sido previamente escritas, “a autonomia relativa do texto, em
relação à obra, diminui muito”. (Zumthor, 2007, p.17) (grifos do autor). E ressalta que
convém entender os respectivos termos, resumindo-os desta forma: a obra é tudo o que é
comunicado poeticamente, aqui e agora, incluídos o texto, a sonoridade, enfim, todos os
fatores da performance. O texto é a sequência linguística que tende ao fechamento, de tal
forma que “o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares
produzidos por seus componentes”. Informa, ainda, que é do texto que a voz do performer
extrai a obra, realçando, principalmente o estilo pessoal do intérprete. (ZUMTHOR, 1993,
p.220)
Para tanto, pretende-se admitir aos pressupostos da pesquisa, a proposta de Zumthor
ao não se preocupar estritamente com a informação trazida pela palavra e, sim, interrogar-se
sobre a palavra e a voz poética – seus usos, sua finalidade interna e uma formalização
adequada. Tal ponto de vista, segundo o autor, faz deslanchar um processo de confirmação da
ordem da percepção poética e é de capital importância epistemológica. Abrigada por este
pensar, a pesquisa se volta à corporeidade, ao corpo sonoro, e, com efeito, à voz poética. Essa,
por sua vez, ainda que tenha sido escrita, seu lugar é na performance, nos elementos não
textuais tal como a pessoa e o jogo do espaço cênico. (ZUMTHOR, 2007, p. 11).
Segundo os pressupostos de Zumthor, a performance se refere a um acontecimento
oral e gestual e nela se encontra um elemento irredutível: a presença de um corpo. Recorrer à
noção de performance implica em considerar o corpo no estudo da obra. Consequentemente, a
performance se liga ao espaço pelo viés do corpo e “esse laço se valoriza por uma noção, a de
teatralidade”. (ZUMTHOR, 2007, p.39).
O corpo humano, segundo Vianna, (1990, p.88) é a expressão de seus impulsos
interiores em seus movimentos. Ele buscava movimentos com as características do novo,
plenos de vida. Expressão de cada corpo, num determinado movimento; dos recursos e da
história deste corpo e não a repetição ou execução desatenta, que ele identificava como forma
desprovida de verdade e vida. (NEVES, 2008, p. 39). Os movimentos se exteriorizam através
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do gesto, compondo uma relação íntima com o ritmo, o espaço, o desenho das emoções, das
sensações e das intenções.
A associação entre as considerações de Zumthor e Vianna fomenta a ideia de corpo-
sonoro (ALEIXO, 2002), pela via do estudo das ressonâncias, os impulsos corporais
geradores de ações vocais. Com isso, o exercício vocal com palavras e textos ganha uma
dimensão sensível de sonoridades corporais. Artaud afirma em uma das cartas ao sr. René
Guilly, sobre a emissão da peça radiofônica, que “esta emissão era a busca de uma linguagem
que qualquer padeiro ou merceeiro teria compreendido, que pela via da emissão corporal
trazia em si as mais elevadas verdades metafísicas” (ARTAUD, 1975, p.86).
Quanto à referência às sonoridades corporais, Peter Brook (1970) apresenta, tomando
como exemplo a produção de Shakespeare, a seguinte afirmação: “As palavras de
Shakespeare são documentação das palavras que ele queria que fossem faladas, palavras
destinadas a sair em forma de sons, dos lábios de gente viva, com um tanto de entonação, de
pausa, de ritmo e gesto que deviam fazer parte integrante de significado verbal. Uma palavra
não começa sendo uma palavra - é o produto final iniciado a partir de um impulso, estimulado
por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expressão”. (BROOK,
1970, p. 5). Tal exemplo se aplica com igual propriedade à peça radiofônica e aos documentos
relativos à sua transmissão. Artaud documenta em palavras escritas aquilo que ele queria
como voz, como poesia sonora.
Em Artaud, encontramos este novo sentido da palavra. Para ele, o teatro é considerado
como sinônimo de “poesia em ação”, poesia realizada, aplicada. É poesia pelo teatro. Ela é a
consagração da revolta. É anarquia. Trata-se de uma forma de expressão espacial, concreta.
Artaud enfatiza a materialidade dessa nova linguagem, sua exterioridade física, sólida,
sensível, efetiva. Não o texto dialogado que se dirige ao intelecto, mas uma expressão
concreta que se dirija ao corpo, à sensibilidade. Não letra imóvel dos livros, mas livres ações
na vida (ARTAUD, 2006).
“Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud e mal digo isto
como só eu o sei dizer
imediatamente vereis o meu corpo actual
voar em estilhas
e refazer sob dez mil formas
um corpo novo
no qual jamais
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me podereis esquecer” (ARTAUD, 1975, p.158).

Neste texto do Post-Scriptum observa-se que a poesia abandona a palavra para se


materializar no corpo, por meio de gestos, movimentos, cores, sons, gritos, vibrações,
atitudes… A encenação teatral é a forma de expressão poética genuína, pois tira a centralidade
da palavra para utilizar uma multiplicidade de formas de expressão, uma “materialização
visual e plástica da palavra”. (ARTAUD, 2006).
Para além da estética se encontra a vida de Artaud, seu desnudamento. Poesia e
sangue; a poética como uma analogia ao sujeito criador. Para Artaud, “a palavra poética não é
um instrumento mediador entre sujeito e objeto, ela é habitada por uma estranheza: é algo da
ordem do acontecimento que permite a eclosão do poeta. Trata-se de ver a poesia como
possibilidade de transformação, de descoberta de outro modo de estar na linguagem” (LEAL,
2005).
Poeta, gostaria não de escrever uma peça no papel, mas no palco, num jorro em que a
palavra nascesse ao mesmo tempo em que a escrita sonora e visual. Em vez de afirmar-se por
pensamentos escritos, produz o vazio nele mesmo e, como numa crise mística, espera que
nasçam imagens que não decorram da lógica das palavras ou do pensamento (ASLAN, 2007).
“Digo que essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra,
deve primeiro satisfazer aos sentidos”, o caminho pela via do que ele denominaria corpo sem
órgãos. “Digo que existe uma poesia para os sentidos assim como há uma poesia para a
linguagem e que esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente teatral
na medida em que os pensamentos que expressa escapam à linguagem articulada”.
(ARTAUD, 1984, p.51)
A questão que se coloca é de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira
linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica,
linguagem de gritos e onomatopeias, linguagem sonora, em que todos os elementos objetivos
se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que terão tanta importância
intelectual e de significados sensíveis quanto a linguagem de palavras. (TOLENTINO,s/d)
Considerando esta noção e pensando os trabalhos de Artaud contemporaneamente, é,
portanto, indispensável compreender o fenômeno teatral frente a novas metodologias de
investigação. Dada tal perspectiva é que se pretende o entendimento do teatro, nas palavras de
Marinis, como acontecimento vivente e que nos remetem ao pensamento Artaudiano. Para
tanto, é necessário recorrer a autores que tratem dos paradigmas de uma dramaturgia corporal
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e de um teatro desejado e projetado como “o espaço-tempo da autenticidade e da sinceridade”


(Marinis, 1997, p.177).
Na prática teatral contemporânea, o ator já não significa por simples transposição e
imitação. Ele constrói seu significado por meio do seu corpo: de sua história e de suas partes.
Em Para Acabar de Vez com o Julgamento de Deus, Artaud apresenta este corpo dizendo que
“o homem é doente porque é mal construído” e que dele devemos extrair deus e seus órgãos,
desnudando-o. Aí, então, este corpo revelará sua expressão mais verdadeira: “levando-o mais
uma vez mais, uma derradeira vez, à mesa de autópsia para lhe refazer a anatomia”. Só
“quando lhe conseguirmos um corpo sem órgãos tê-lo-emos libertado de todos os seus
automatismos e restituído à sua verdadeira liberdade”. (ARTAUD, 1975, p.55).
Conforme propõe Zumthor, devemos nos interrogar sobre o papel do corpo na leitura e
na percepção do literário “O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu
corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha
relação com o mundo”. (ZUMTHOR, 2007, p.12). Para o autor, levar em consideração as
percepções sensoriais, portanto de um corpo vivo, coloca um problema de método, o que o
leva a dar um lugar central à ideia de performance.
Tomando como ponto de partida o trabalho do performer e este sendo fonte de
conhecimento e enquanto processo de comunicação é possível perceber o texto concretamente
realizado, numa produção sonora: uma dinâmica sustentada pela vivência e reflexão sobre a
questão do corpo sonoro como parâmetro fundamental a essa pesquisa e esse corpo, o
elemento expressivo da poética cênica.
A expressão vocal do performer, portanto, origina-se diretamente da execução do
texto, da “palavra viva”. É a “realidade experimentada”. O contexto sensório-motor deve
aparecer ao representar um texto, deve sugerir um acontecimento: o acontecimento-texto.
(ZUMTHOR, 2007 e 1993).
Seguindo essa perspectiva é necessário salientar que o teatro é essencialmente o lugar
onde se refaz o corpo e para tanto se faz necessário conectar a memória do corpo a
informações que o levarão a uma autonomia criativa. Vários sistemas trabalhando em
uníssono, onde o “verbo precedeu o substantivo, o fazer foi experimentado antes da coisa
feita”. (VIANNA, 1990, p.91). Um espiral evolutivo no tempo e no espaço, tendo o corpo
consciente como sistema complexo, aberto, capaz de gerar um produto artístico necessário,
fruto de uma relação dinâmica e orgânica. O performer encontra no corpo sonoro o caminho
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para o teatro. Pavis corrobora tal intenção ao discutir como “texto e cena são percebidos ao
mesmo tempo e lugar, sem que seja possível declarar que um seja anterior à outra.” (PAVIS,
1998, p. 94) (tradução nossa).
O corpo humano, conforme já citado em Vianna (1990, p.88), é a expressão de seus
impulsos interiores em seus movimentos. Expressão num determinado movimento dos
recursos e da história deste corpo e não a repetição desatenta. (NEVES, 2008, p.39). A relação
de sentido é potencializada no campo das experiências do indivíduo, não somente no campo
semântico de interpretações.
Sua experiência nos incita a buscar questões para além do nível técnico, ampliando
novas possibilidades criativas de movimento, sem perder de vista as necessidades de cada
novo ser que se propõe a perceber e compreender os processos evolutivos da “dança que está
em cada um de nós”, segundo fala do próprio Klauss. A individualidade contida nos conceitos
da técnica faz com que cada intérprete possa registrá-la em seu corpo na forma de movimento
expressivo, sendo essa dança, o próprio ser que a executa. A própria palavra viva da qual fala
Zumthor.
Assim como, para a psicanálise, o sujeito é um sujeito "esburacado", intermitente, com
"responsabilidade limitada", também o ator contemporâneo já não é encarregado de mimar
um indivíduo inalienável; já não é um simulador, mas um estimulador, ele "performa" suas
insuficiências, as suas ausências, a sua multiplicidade. Também já não é obrigado a
representar uma personagem ou uma ação de maneira global e mimética, como uma réplica da
realidade. Ele sugere a realidade por uma série de convenções que serão percebidas e
identificadas pelo espectador (PAVIS, 2010).
Por sua vez, a partir de suas observações e estudos sobre o corpo, Vianna desenvolveu
justamente uma técnica que busca aprofundar a consciência do corpo e do movimento em
função de ampliar as possibilidades de movimento e expressão. O intuito dessa consciência
corporal é a sensibilização de cada parte do mapa corporal, estimulando a propriocepção. A
percepção pela pessoa do seu próprio movimento amplia sua sensibilidade proprioceptiva. As
informações recolhidas pelos órgãos dos sentidos atuam sobre as atitudes, os movimentos que
permitem a postura, o ajustamento dos atos e ao que mais importa ao ator: a cinestesia –
sensação e percepção do movimento. Aí se localiza a dramaturgia do corpo. “Fazei enfim
dançar a anatomia humana”. (ARTAUD, 1975, p.55)
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Klauss pretendia a busca de bases reais, apoios no corpo e no espaço, que se projetam
no nível emocional tanto quanto no físico. Dizia, em aulas, que não se pode dançar se não se
tem um corpo. Roach apresenta uma hipótese de funcionamento acerca da performance
contemporânea que amplia a relevância do trabalho corporal na cena. Ele apresenta a
cinestesia como a nova mimesis: “o movimento expressivo está se transformando em uma
língua franca, na base de uma cognição afetiva e uma empatia corporal, só recentemente
experimentada. Mimesis, enraizada no drama, imita a ação; cinestesia a incorpora”. (ROACH,
2010). (tradução nossa).
Os autores de referência nesse artigo legitimam a ideia anterior, ocupando-se de uma
linguagem concreta, na qual a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchida
por objetos materiais, entre eles, e, principalmente, o ator. Ao falar de Vianna, observa-se que
sua técnica de consciência de movimento se propõe a ser utilizada para descobrir uma dança
“que já está na pessoa” (VIANNA, 1990). Percebe-se em suas palavras um entendimento de
que o corpo não produz nenhum instrumento senão suas próprias possibilidades de
movimentação e significação nesta mesma movimentação.
Seu trabalho é engendrado a partir da percepção das individualidades, com o posterior
enfrentamento de limites pessoais que, ao invés de se transformarem em impedimentos,
passam a construir subsídios importantes para a construção de uma imagem corporal real. Um
corpo vivo, pois o espaço cênico é lugar de ações e sentidos, que só acontecem na relação
ator/espectador, mas que, assim como na vida, permanecem na memoria daqueles que
compartiram do evento.
Quando se trata da percepção de individualidades e do enfrentamento de limites isso
se refere profundamente a um ser global que se espelha em seu corpo para conhecer-se e
trabalhar com sua autoimagem e autoestima na busca do desenvolvimento dos processos
cognitivos no corpo. Essa proposição define um corpo liberto e, ao mesmo tempo, consciente
de suas capacidades significativas.
Vianna enfatiza que em cada parte de nosso corpo existe uma tensão que guarda uma
memória, chamada de memória muscular. Para Artaud, essa memória corporal é chamada de
Musculatura Afetiva, que corresponde a “localizações físicas dos sentimentos”. (ARTAUD,
2006, p. 151). Em Artaud, descobrimos a importância de se tomar consciência das
localizações do pensamento afetivo. O ator é um ser sensível, capaz de abrir seus canais de
percepção.
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Um meio de reconhecimento, para ambos, é o esforço, um tempo, um ritmo, iniciado


na respiração e que vai provocar o uma qualidade correspondente a tal esforço; e os mesmos
pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação do
pensamento afetivo. Os mesmos que servem de trampolim para a emanação de um
sentimento. (ARTAUD, 2006, p.157).
No trabalho de Klauss Vianna, o equilíbrio das tensões gera a tonicidade ideal,
gerando também o equilíbrio emocional. Com o corpo equilibrado em suas tensões, a energia
circula naturalmente, e assim, o trabalho corporal cresce e evolui juntamente com a energia,
quanto mais atenção e percepção em meus gestos e deslocamentos, mais a capacidade de
produção e conservação de energia é expandida. (VIANNA, 1990, p. 106).
A percepção do peso evidencia a dosagem do tônus muscular, pois, “quando eu doso a
tensão na musculatura, equilibrando o tônus muscular, isso resulta numa sensação de leveza,
com esforço adequado para executar o movimento, transformando, assim, tensão muscular em
atenção muscular”. (MILLER, 2007, p. 65).
Duas forças opostas geram um conflito - em Artaud é denominado esforço - que gera o
movimento. Este, ao surgir, se sustenta, reflete e projeta a sua intenção para o exterior, no
espaço. No corpo, este fenômeno se inicia no momento em que descubro a importância do
solo e a ele me entrego e respeito. Esta é a primeira fase, a da germinação, a da entrega. Só
descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o movimento crie raízes, seja mais
profundo, como uma planta que só cresce a partir do contato íntimo como solo. (VIANNA,
1990, p. 78).
Para Artaud, esse mecanismo funciona da mesma forma, o atleta afetivo (o ator)
consegue localizar em seu corpo os pontos de sentimentos retidos. Assim, “saber que existe
uma saída corporal para a alma permite alcançar essa alma num sentido inverso e reencontrar
o seu ser através de uma espécie de analogias matemáticas”. (ARTAUD, 2006, p. 154).
Os paradigmas que Klauss apresenta em seu trabalho propõem que o “ser livre” não se
traduz em estádios alterados da consciência ou uso inconsciente de movimentos; ao contrário,
a criação de movimentos individuais e liberados demanda trabalho. Para ambos, o teatro não é
psicológico, o que confere aos sentidos e às sensações o status anteriormente destinado ao
sentimento, à emoção. O corpo é sensível e em seus movimentos está contido um ritmo
preciso necessário à revelação pretendida.
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Grotowski (1993) refere-se ao ator de teatro como produto de um trabalho disciplinar


rigoroso que resulta numa espontaneidade expressiva. Ele ainda leva em consideração o
desenvolvimento de um corpo expressivo que busca comunicar a realização semiótica
pretendida e que avança no sentido de construir uma linguagem própria, ligando a prática
diária a uma reflexão teórica consistente.
Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde se refaz a vida”, depois de Rodez
ele é essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O “corpo sem órgãos” é o nome deste
corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para “dançar
ao inverso”. A voz bate, cava, espeta, treme, a palavra toma uma dimensão material, ela é
gesto e ato. (ARTAUD, 2006). Voz é corpo e o teatro, o lugar desejado por este corpo-sonoro.
“Saber antecipadamente quais pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em
transes mágicos”. […] “E com o hieróglifo de uma respiração posso reencontrar uma ideia do
teatro sagrado”. (ARTAUD, 1984, p.171).
O que Artaud também propunha era o esquema representacional definido como a
operação de um sujeito do conhecimento em direção a um objeto a ser conhecido. A poesia
que se localiza na base da ação dramática. “O projeto de recriação da linguagem e de
construção do corpo seria, necessariamente, uma ação capaz de instaurar um regime de forças,
a partir do qual haveria uma identificação entre poesia e vida, o que permitiria a atuação direta
da primeira sobre a segunda. A proposta de um teatro da crueldade, formulada alguns anos
antes do período no asilo de Rodez, já repousava no encontro de uma materialidade da
linguagem cênica, o que apontaria para uma não separação entre esta e o corpo, constituindo-
se como uma linguagem do próprio corpo” (LEAL, 2005).
É possível tentar estabelecer uma aproximação na qual ambos concebem o vínculo
entre texto e representação como o estabelecimento de sentido e contraste entre diferentes
sistemas semióticos. Ambos encontram no corpo sonoro o caminho para o teatro.
Pavis confirma tal intenção ao discutir imagens e vozes no teatro contemporâneo: “Já
não é possível conceber a representação como consequência lógica ou temporal dos signos
textuais.” (PAVIS, 1998, p. 94) (tradução nossa). “Com efeito, pode-se dizer que um discurso
se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura que é praticada por tal indivíduo.”
(ZUMTHOR, 2007, p.25).
O teatro, entendido como fenômeno de significação e comunicação, é essencialmente
relacional, o que significa perceber o ator como aquele que expressa e o espectador, aquele
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que interpreta. “Não ao espetáculo representação, de uma noite para a outra uma peça tem de
se mexer”. (ARTAUD, 1975, p.102)
Artaud convida a um retorno às fontes da linguagem, a abandonar o aspecto discursivo
da palavra e recuperar seu sentido físico e afetivo. Na peça radiofônica, ele decompõe as
palavras, transportando-as a um novo patamar: o do corpo sonoro, a palavra que se sente, que
é percebida como um movimento. (TOLENTINO, S/D.) Esse é exatamente o ponto de
encontro dessa pesquisa, o qual suscita a imagem de uma via de mão dupla, cuja dinâmica
está ligada ao caráter performático, característico da poética da ação cênica.
Neste sentido, a dramaturgia do ator inscreve-se numa teoria da encenação e, de modo
mais geral, da recepção teatral e da produção do sentido: o trabalho do ator sobre si mesmo,
em particular sobre as suas sensações, só tem sentido na perspectiva do olhar do outro,
portanto do espectador que deve ser capaz de ler os indícios fisicamente visíveis assumidos
pelo ator.
Em O Teatro e seu Duplo, obra na qual apresenta o conjunto de ideias que
constituíram o teatro da crueldade, Artaud defende uma linguagem que pudesse exprimir
objetivamente verdades secretas. Uma linguagem mais concreta do que aquela que fala à
esfera psicológica: mudar a finalidade da palavra, servindo-se dela em um sentido concreto e
espacial, manipulá-la como um objeto, capaz de abalar as coisas, inicialmente no ar, e em
seguida em um domínio mais misterioso. (ARTAUD, 2006).
Ambos apresentam como inseparáveis as experiências de criação e de recepção da
dramaturgia para aquele que cria. O criador é também receptor desta experiência.
(TRAGTENBERG, 2008). É partir destas experiências que se observa, tanto em Artaud como
em Vianna, vida e arte se fundirem e se alimentarem.
Exatamente por isso Klauss Vianna inicia sua técnica em sua própria vida, pois
considera que é o corpo quem conta nossa história - através dos músculos, da postura, do
modo de andar, etc. De acordo com Vianna, o “ser humano que existe no bailarino tem que
estar atento e perceber tudo lá fora. É impossível dissociar vida da sala de aula”. (VIANNA,
1990, p. 31). Muito de sua vida, suas experiências, sua visão de mundo é levado para dentro
da técnica, não há como ignorar as emoções e sentimentos na sala de aula, pois “dançar é estar
inteiro”, nas palavras do próprio Klauss Vianna. (VIANNA, 1990, p. 25).
Artaud propõe ainda uma cultura que seja inseparável da vida. A ação do homem é o
homem no conflito com o destino. Uma cultura que se constrói continuamente e que não dá
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para se encerrar e se fechar em livros sobre ela. Uma cultura em vida, em movimento, em
ação que se faz e se refaz nesse vir-a-ser que não conhece saciedade nem cansaço: “esse meu
mundo dionisíaco de eternamente criar a si mesmo, esse meu para além do bem e do mal, sem
alvo... vontade de potencia”. (ARTAUD, 2006).
Compreender que o corpo não é apenas um sistema biológico, mas também social e
cultural: esta tem sido a preocupação atual de áreas do saber que se dedicam a investigar os
fluxos informacionais intersistêmicos. O que consiste o complexo que denominamos ‘corpo’
requer a derrubada de muros e fronteiras estabelecidas. Uma vez que é entidade cultural,
portanto história, resultado de um percurso, sua essência não está na permanência, mas na
mudança. Sua natureza não é aleatoriamente mutável, mas impõe limites de flexibilidade
apenas moderada. Como meio de comunicação, sua essência consiste em produzir, veicular e
armazenar informações, gerando textos dentro dos quais se projetam, inclusive, a si próprios.
Assim, corpo é vida biológica, é texto (tecido de cultura), é gerador de códigos
comunicativos e ele próprio linguagem formadora de redes sociais e culturais nas quais se
insere. Cabe, assim, compreender o “texto” corpo, mídia primária, como intersecção de fluxos
de diversa e múltipla natureza. A entidade “corpo biológico” fornece um substrato importante,
mas não exclusivo; “corpo social” é uma expansão do corpo biológico, gerado e gerador dos
vínculos que mantém viva uma sociedade; o “corpo cultural”, aquele que a história do
imaginário humano idealiza e gera. Texto cultural por excelência. (BAITELO, 1998, pg 11).
De acordo com Artaud, ao assistir o espetáculo do Teatro de Bali, este apresentava
traços de dança, canto, pantomima, música, e muito pouco do teatro psicológico,
“recolocando o teatro em seu plano de criação autônoma e pura, sob o ângulo da alucinação e
do medo”. Os temas eram vagos, abstratos, extremamente gerais. O que lhes dava vida era o
desenvolvimento complicado de todos os artifícios cênicos, os quais impunham ao espírito
como que a ideia de uma metafísica extraída de uma nova utilização do gesto e da voz
(ARTAUD, 2006).
Artaud observou que em todos aqueles gestos, atitudes, gritos lançados ao ar, através
das evoluções e das curvas que não deixam inutilizada nenhuma porção do espaço cênico,
surgia o sentido de uma nova linguagem física baseada nos signos e não mais nas palavras
(ARTAUD, 2006).
Ao enfatizar os elementos que admirava dentro do espetáculo do teatro de Bali, Artaud
faz referência à importância da precisão na partitura das ações, mas deixa claro que essa
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exatidão não está ligada ao automatismo. Tanto quanto Klauss, Artaud entende que as
emoções têm bases orgânicas e é nestes apoios concretos que se situa a vida do teatro: “o
segredo consiste em exacerbar esses apoios como uma musculatura que se esfola. O resto se
faz com gritos”. (ARTAUD, 1984, p.170).
Klauss igualmente se propõe a perceber e compreender o processo evolutivo do corpo.
O homem consciente ocupa espaços conscientes. Você projeta o que você é. Uma pessoa
alienada projeta alienação, por isso é necessária uma imagem real do nosso corpo. Esse
processo do conhecimento das intenções e desenvolvimento da memória muscular se traduz
em tônus, o qual, frequentemente, é esquecido e/ou compensado erradamente em forma de
tensões. Klauss propõe um método de trabalho a partir das percepções dos espaços internos do
corpo, construindo uma imagem interna. Sua dança surge das oposições entre esses espaços.
Do conflito surge uma nova imagem, uma nova forma de expressão, um novo movimento.
Essa imagem tende a se tornar real em todos os sentidos, enquanto se amplia e se define a
partir do corpo e nele gera um espaço de vida, de significação.
Conhecer as razões do funcionamento do corpo é imprescindível para se descobrir as
intenções deste e distribuir equilibradamente seu tônus. Para a construção de um corpo que
busque a significação pessoal e expressividade é imprescindível a disciplina e a auto-
organização. Para tornar orgânica a fluência do gesto é necessário alcançar o domínio das
articulações e possibilidades de movimento. Domínio esse, fundamental para a expressão da
liberdade do impulso criativo. Esse processo evolutivo é individual e, portanto, permite que
seja utilizado nas mais vastas intenções do ser humano, possibilitando que aquele que utiliza a
técnica projete em seu corpo o seu desejo, como ele é concebido.
No trabalho de ator, tal nível de consciência e complexidade de movimentos vai
possibilitar ao performer a precisa expressão de suas intenções e a caracterização exclusiva.
Neste momento, é fundamental que o intérprete se veja e perceba que seu movimento não terá
vida se não vier embasado por uma técnica que alavanque o sentido, a motivação de partes do
corpo. A criação nasce do entendimento no corpo, de uma imagem corporal plena de
significados. Essa harmonia gera uma força ativa, receptiva, compreendida tanto por quem
executa como por quem assiste.
Essa provocação parece fundamental a estes estudos desde a evolução em
complexidade solicitada ao ator até os questionamentos que pode trazer à plateia, tanto quanto
a interface que se estabelece. Cúmplices, ambos os lados são atingidos por um signo que
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mobiliza tanto intérprete quanto plateia, em um único processo criativo. “Não é possível
excluir o receptor do processo de reflexão sobre a existência e os efeitos que o discurso
sonoro provoca” (TRAGTENBERG, 2008).
Parece que a noção de linguagem que pertenceria apenas ao teatro poderia confundir-
se com a noção de uma linguagem no espaço, tal qual se pode produzir no palco e oposta à
linguagem das palavras. Uma linguagem sonoro-imagética, múltipla em significados. A
linguagem do teatro é em suma a linguagem do palco, que é dinâmica e objetiva. Ela participa
de tudo aquilo que poder ser posto sobre um palco em matéria de objetos, de formas, de
atitudes, de significações. Mas à medida que todos esses elementos se organizam e, ao se
organizarem, se separam do seu sentido direto, visando criar assim uma verdadeira linguagem
baseada no signo em vez da palavra. Na representação, não na tradução literal. (ARTAUD,
1995).
A “Técnica Klauss Vianna” é um instrumento para a expressividade, não um fim,
também visando a um corpo sígnico. Está conectada com o indivíduo e com o tempo em que
se insere. Num primeiro momento, observar-se sem crítica é o início do domínio da técnica.
Isso se dá quando se abdica do controle do corpo, passando apenas à escuta do mesmo, do
parar sem se ausentar. Não é sair de si, mas entrar em contato consigo mesmo. Somente após
o contato com essa referência interna, pode-se aprender a reconhecer o movimento e
organizar melhor o discurso sobre as relações corpóreas envolvidas, em sua plenitude.
Desta forma, talvez se possa alcançar “a poesia do espaço”, conforme Artaud, quando
diz que o teatro não deve ser composto por palavras, mas sim de gestos articulados no espaço
cênico: “as palavras serão tomadas num sentido encantatório, verdadeiramente mágico – por
sua forma, suas emanações sensíveis e já não apenas por seu sentido”. (ARTAUD, 2006, p.
146).
Assim, no esvaziamento do corpo, na busca de um corpo sem órgãos, na recusa em dar
a ele uma forma prévia, na liberação da escrita de um molde fixado pela sintaxe e pela lógica,
é que se poderia formular a hipótese de um fazer poético: uma via de mão dupla entre
pensadores da arte e da vida que se ocupam de um novo corpo, com uma nova linguagem,
inscrevendo-se no espaço cênico como dono de seus movimentos e como criador de suas
ações, de sua voz e, principalmente, de seus próprios signos dramatúrgicos.
O desenvolvimento da obra de Artaud sob estes novos paradigmas permitirá alcançar
objetivos mais específicos dessa pesquisa como destacar a importância da corporeidade da
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voz na composição do sentido do texto e neste momento os pressupostos de Vianna


fortalecem a possibilidade de se utilizar a dramaturgia do corpo sonoro como referencial
criativo na composição do experimento cênico. A pesquisa aplicada também corrobora a
intenção de ampliar as relações entre a linguagem poética do texto escrito e a do texto sonoro.
Ainda mais tratando-se de uma obra que, apesar de ter sido escrita previamente, foi criada
para a performance oral, alçando para além do texto, de poder visceral e contundente como é
o caso da peça radiofônica “ b V z Juíz D u ”.
“De todos os componentes da obra, uma poética escrita pode, em alguns casos, ser
mais ou menos econômica; uma poética da voz não o pode jamais”. Convencido de que a
ideia de performance deveria ser amplamente estendida e englobar o conjunto de fatos que
compreende a recepção, Zumthor traz a força da polissemia contida no ato performático,
“relacionando-a ao momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para
uma percepção sensorial – um engajamento do corpo”. (ZUMTHOR, 2007, p.18)
Entre o tempo e o espaço dos olhos e ouvidos até a boca uma transfusão acontece. O
que foi bebido entre letras escutadas, lidas e cheiradas, torna-se o próprio sangue, o próprio
ser, a vida que se instila em sons, em imagens e movimentos. O processo de comunicação não
se retalha em distintas linguagens apartadas; segue em signos contínuos, metamorfoseados em
dramaturgias, em poesia no tempo e no espaço da representação.
As intenções contidas nessa pesquisa revelam a curiosidade e a necessidade de
aproximações e distanciamentos entre áreas de conhecimento, no intuito de ampliar
possibilidades de confronto e espelhamento entre texto e corpo sonoro. Para tal intento é que
se apresenta à discussão, ao diálogo, buscando chão teórico crítico e aprofundado, que elucide
o objeto de estudo pretendido e os próximos passos da trajetória desta tese.

REFERÊNCIAS

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CINEMA, ORALIDADE E PESQUISAS: TENDÊNCIAS PENDULARES ENTRE O


MUSEU E A VIDA

Ana Claudia Freitas Pantoja – claudia.londres@gmail.com


(Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da UEL)

Resumo: Praticamente desde o seu nascimento, as imagens fílmicas foram objeto de interesse
das ciências sociais. Graças à difusão das idéias positivistas no início do século XX, o registro
cinematográfico não-ficcional foi compreendido em perspectiva instrumentalista, concebido
como registro objetivo e palpável de realidades sociais (leia-se espelho fiel, evidente e
incontestável da veracidade das relações e dos fatos). Daí o advento dos primeiros acervos
etnográficos, bancos de imagens e fototecas em escala continental, com fins francamente
museológicos. Entretanto, pouco depois da metade do mesmo século, estudos franceses
descartaram a pretensa neutralidade dos aparatos tecnológicos audiovisuais, comprovando
como seu uso estava – e ainda está – diretamente ligado às concepções e critérios dos
realizadores. Esta espécie de “desmascaramento” dos recursos de gravação levantou inúmeras
questões éticas e metodológicas para os pesquisadores sociais, incluindo os que se debruçam
sobre as poéticas orais e que precisam dos equipamentos para registro de performances
individuais ou coletivas. O presente artigo reconstitui brevemente o percurso histórico da
relação entre pesquisas e meios audiovisuais, sem, no entanto, ater-se a datas precisas (até
porque as mudanças no mundo científico não são instantâneas, nem tampouco simultâneas ou
uniformemente aplicadas em países diversos), abordando tendências predominantes no século
XX até chegar ao contexto atual.
Palavras-chave: Ciências Sociais. Poéticas Orais. Meios audiovisuais.

Primeiras imagens
Tradicionalmente, a exibição de dez brevíssimas películas, a primeira delas A saída da
fábrica, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, é considerada o marco inaugural do cinema em
todo mundo. Na verdade, o que os espectadores assistiram no estranho subterrâneo do Grand
Café, em Paris, a 28 de dezembro de 1895, foi uma sucessão de registros cotidianos, com
duração média de 40 segundos cada, que expunham momentos banais da vida de pessoas
anônimas, como o final de um expediente de trabalho ou o banho de um bebê. Fascinados,
estupefatos, muitos dos presentes fizeram menção de abandonar o lugar, por temor de que a
imagem de um trem em movimento fosse uma ameaça real de atropelamento. Estava, assim,
oficialmente lançado o cinematógrafo (SADOUL, 1963, p. 10-21).
Os Lumière, no entanto, não foram os “pais do cinema” ao pé da letra. A sétima arte é
fruto de anos de experimentos desenvolvidos em países diversos, alguns muito similares aos
dos irmãos franceses, a exemplo do que fizeram Léon Bouly ou Max e Emil Skladanowsky. O
que os Lumière apresentaram como inovação, de fato, foi a criação de um ambiente adequado
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à exibição das películas, a saber: a sala escura, o isolamento acústico, a tela de grandes
dimensões, etc. Mesmo assim, eles sequer acreditavam no potencial narrativo ficcional do
novo meio, preferindo investir no cinema como um instrumento a serviço do jornalismo e do
conhecimento científico, sem vislumbrar ali qualquer apelo comercial suficiente para a
estruturação do aparato como indústria.
A exemplo da dupla, uma parcela significativa de pesquisadores viu no cinema uma
oportunidade ímpar de eternizar seus respectivos objetos de estudo. Sem a interferência por
demais “deformadora” do registro verbal escrito, os acadêmicos poderiam, a partir de então,
captar os fenômenos físicos, psicológicos, históricos e sociais tais quais eles se apresentavam
“na realidade” – uma perspectiva baseada na crença de que a técnica excluía toda e qualquer
intervenção subjetivista do indivíduo no processo de filmagem.
Trata-se de uma abordagem instrumental condizente com os propósitos positivistas do
final do século XIX e início do século XX, para os quais o método científico deveria aliar
rigor técnico à objetividade, constituindo um acervo científico destituído de ambiguidades,
racional e alforriado das fantasias metafísicas. Antropólogos, em particular, estavam ávidos
por ilustrar suas pesquisas com imagens verídicas dos hábitos de povos não-europeus, em
estágios civilizatórios “menos avançados”, conforme se acreditava na época. O “exótico”
nada mais era que uma prova de infantilização das comunidades “inferiores” e as imagens em
movimento pareceriam atestar as teorias do evolucionismo cultural de modo contundente e
incontestável.
A despeito do alto custo e das restrições de uso das películas produzidas no período –
muitas vezes mais suscetíveis à combustão que as atuais – rapidamente os acervos imagéticos
de povos “excêntricos” ou “arcaicos” se multiplicaram nos departamentos acadêmicos de
pesquisas sociais. Era necessário organizar, catalogar e, principalmente, hierarquizar os
conteúdos cinematográficos, viabilizando análises sistemáticas e de caráter comparativo.
Jorge Nóvoa descreve bem o frisson causado pelas novas técnicas de registro ao afirmar que o
cinema transformou o nascente século XX em “um gigantesco laboratório de experiências”
(NÓVOA, 2009, p. 160).
Nos museus etnográficos, pinturas, desenhos e esculturas de repente eram dispostas
lado a lado com imagens em movimento curiosíssimas, em que seres humanos “atípicos”
(leia-se não caucaianos) expunham seus extravagantes hábitos “primitivos” às câmeras,
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atraindo multidões de curiosos. Em termos históricos, é irrisória a diferença de idade entre o


cinema e as cinematecas científicas, o que deixa entrever os laços preciosos entre ambos.
Mas nem só de homens e mulheres de terras longínquas nutria-se a curiosidade de
pesquisadores e do público leigo. Eloíza Gurgel Pires descortina uma faceta pouco explorada
da questão, no que denomina de “antropologia de urgência”. Segundo a autora, durante a
primeira metade do século XX, os cientistas sociais tomaram consciência da extinção
iminente de uma série de pequenas comunidades – presentes em quase todas as regiões do
planeta – devido ao êxodo rural em larga escala, à urbanização desenfreada, a difusão da
modernidade e à devastação provocada pela Primeira e Segunda Guerra Mundiais. Era preciso
registrar a existência dos “pequenos mundos” (para usar um termo goethiano), antes de seu
desaparecimento completo:
Nesse contexto, as imagens fílmicas são apropriadas a partir de um
desejo de memória, na tentativa de recuperar a história salvando os
vestígios dos acontecimentos passados. A imagem cinematográfica é
testemunho e, ao mesmo tempo, memória de uma realidade que se
pressentia em mudança. As coleções possuem então, a função de
organizar esses conhecimentos, essas memórias. Os colecionadores
apresentam-se como agenciadores de conhecimentos, da história como
memória; assim como o trapeiro de Baudelaire, recolhe as sucatas, os
restos, os detritos, movidos pelo desejo de não deixar nada se perder,
ser esquecido (PIRES, 2010, s.p.).

Desta forma, não apenas as tribos longínquas dos bolsões de miséria africanos eram
focos de interesse, como também as festas populares de pequenos grupamentos europeus em
aldeias de difícil acesso. As técnicas de plantio quase feudais, o preparo do fumo caseiro e as
vestimentas feitas à mão eram registradas para posterioridade, sabendo-se que pouco
durariam. Tudo era como uma breve flagrante de Baucis e Filémo, antes que a máquina
fáustica do progresso lhes desse cabo.
Em resumo, em seus primeiros anos de casamento, cinema e ciências sociais tiveram
uma relação etno-museológica, de tendências heróicas na busca de registro e preservação,
porém, muito voltados à prática e apenas vagamente conscientes das implicações de seu uso
instrumentalizado. A vida convertia-se em museu. Foram necessárias pelo menos duas
décadas para que se esboçassem alterações significativas nesse panorama.

Reviravoltas culturalistas, oralistas, metodológicas e documentaristas


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Sem que se possa estabelecer com precisão qual a mais impactante, quatro mudanças
cruciais foram registradas entre as décadas de 1930 e de 1960, com influência direta na
relação entre ciências sociais e cinema. Uma ocorreu no âmbito da Antropologia e atende pelo
termo de Culturalismo. Tendo como um de seus grandes expoentes Franz Boas, a corrente
rejeita a concepção evolucionista, majoritária até então, que apregoava existir uma espécie de
“escala” evolutiva entre povos diversos. Para Boas, não há um processo linear de
desenvolvimento a ser seguido, tampouco as sociedades não-européias estariam em patamares
históricos “atrasados” e na dependência de “salvadores” que os tirariam de um estágio
retrógrado de raciocínio e expressão (BOAS, 2004). Abria-se caminho para o relativismo
cultural. Esse foi um passo importante para que os cientistas e realizadores cinematográficos
rejeitassem viéses caricaturais na retratação de diferentes povos e comunidades.
O princípio do relativismo cultural decorre de um vasto conjunto de
fatos, obtidos ao se aplicar nos estudos etnológicos as técnicas que nos
permitiram penetrar no sistema de valores subjacentes às diferentes
sociedades (HERSKOVITS, 1948 apud ORTIZ, 2009).

Sob esse ponto de vista, o cinema, ao invés de ratificar o evolucionismo antrológico,


seria uma das bases de apoio ao relativismo cultural nascente.
A segunda grande reviravolta diz respeito à profunda crise epistemológica que se
instaura com relação ao papel do investigador no processo analítico. Estudos sobre o discurso
hegemônico da Ciência implodiram a pretensa neutralidade cartesiana e o pesquisador
impassível foi desmascarado em pleno exercício profissional. Como integrar-se a uma
comunidade, conviver com ela, enveredar por seus meandros, filmá-la, sem interferir em seus
modos de expressão? Impossível. De que maneira impedir que o julgamento pessoal do
sujeito transpareça nos relatórios de pesquisa? Igualmente impensável. E as imagens –
estáticas ou em movimento – não escapavam da cruel acusação de que eram portadoras da
ideologia de quem acionava a aparelhagem.
Se a viagem entre os continentes permitia alcançar a visão efêmera do
outro, a fotografia e depois a câmara cinematográfica tornaram
possível armazenar essas visões. Estas, construídas pelos operadores
das novas máquinas, não eram inocentes. Transportavam consigo as
interpretações subjetivas dos operadores, inseparáveis dos discursos
dos respectivos impérios e dos objetivos institucionais da sociedade
ocidental (RIBEIRO, 2005 apud PIRES, 2010).

À ideia de “Cinema” impunha-se a do cineasta/pesquisador.


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Além disso, há também o desmascaramento do próprio dispositivo tecnológico, agora


não mais tido como elemento neutro, inocente, “espelho” indubitável e tradução fidelíssima
do “mundo real”. Diversos pesquisadores da área da comunicação instituíram longos debates
sobre a falácia da objetividade na produção fotográfica e fílmica, destacando o enorme grau
de intervenção nas atividades de filmagem, direção e montagem dos conteúdos audiovisuais.
Desde a escolha do ângulo de visão até a seleção final das imagens a serem exibidas, todas as
etapas do processo requerem a manipulação dos materiais, do contrário, filmes sequer
existiriam. O grande movimento de negação da “transparência” da imagem e de seu pretenso
poder de representação direta ganhou força no âmbito dos estudos sobre cinema e
comunicação a partir da década de 1960, sob a inspiração do desconstrutivismo e através das
revistas Cahiers de Cinema, Cinethique e Tel Quel. Os mecanismos do processo ilusionista
presentes nos aparelhos de base (câmera, projetor, sala escura) foram denunciados pelos
teóricos da Nouvelle Vague como os pilares para a dominação social (GODOY, 2001).
A quarta mudança pode, em princípio, não parecer ter vínculos com os meios
audiovisuais, mas essa é uma crença equivocada. Ela trata do reconhecimento dos estudos
sobre as poéticas orais como autônomos em relação às pesquisas antropológicas e, sobretudo,
de caráter folclorista. Tendo como objetos produtos complexos, concentrados nas zonas
limítrofes entre a produção artística e as manifestações sociais, as análises oralistas ganharam
um fôlego que exigiu uma abordagem audiovisual diferenciada, em especial pela ênfase nos
conceitos de performance individual e coletiva, pela natureza ímpar da relação entre
narradores e contexto. Finalmente, entendeu-se que deixar a câmera ligada e simplesmente
pedir que os membros de uma comunidade “interpretem” os papéis que costumeiramente
adotam no cotidiano passou a ser uma atitude não só ingênua, como também eticamente
questionável. Afinal, o que um indivíduo ou um grupo expressam é mais que mera encenação
repetida:
A performance é uma realização poética plena: as palavras nela são
tomadas num conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão coerente
(em princípio) que, mesmo se se distinguem mal palavras e frases,
esse conjunto como tal faz sentido (ZUMTHOR, 2005, p. 87).

Portanto, a coisificação dos poetas e das manifestações poéticas orais, muitas vezes
sugeridas em registros audiovisuais, vai na contramão do que hoje se tem como referencial
teórico. A consciência desse risco, o de perder a autenticidade do registro (um perigo a que
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todos analistas estão sujeitos), torna mais cautelosos os pesquisadores que desejam
representar dignamente seus objetos.
Ainda sobre a performance, quando se inclui o aparato técnico cinematográfico na
equação, o número de incógnitas aumenta exponencialmente, uma vez que, se considerarmos
que um performer atua em interação com seu público (real ou pressuposto), é claro que a
câmera interferirá no processo, ainda que não seja essa a intenção do pesquisador. Foi-se o
tempo em que os indivíduos estavam completamente alheios aos apelos audiovisuais,
destituídos do acesso às mídias eletrônicas. A noção de que há um espectador para quem o
produto é endereçado, mesmo que se trate de um público apenas presumido, está presente no
ato performático. O performer não tem como fugir dessa realidade, seja pela consciência do
posicionamento da câmera, seja nos modos de impostação da voz ou até nas adaptações
discursivas propostas no ato comunicativo. "O ouvinte faz parte da performance, da mesma
forma que o autor e as circunstâncias. O ouvinte é 'interpelado', como se diz, ele intervém"
(ZUMTHOR, 2005, p. 92).
Assim, vê-se que os mecanismos audiovisuais carregam a ideologia de seus
operadores, a obrigatória destruição da crença na objetividade técnica e comportam em si até
mesmo seu público, presente em cada momento em que a luzinha vermelha acesa na câmera
indica o início das gravações.

Tendências contemporâneas
Mas após tantas reviravoltas em um espaço de tempo tão exíguo, que tendências ou
linhas de pensamento atuais podem ser delineadas na relação entre o audiovisual e seu uso em
pesquisas sociais?
A primeira observação é de que o barateamento tecnológico, promovido pelos aparatos
digitais, tende a democratizar o acesso aos meios de registro, o que abre margens de
experimentação para todo aquele que disponha dos aparelhos, o que inclui os pesquisadores.
“Os programas de edição digital estão mudando o modo como as histórias são contadas
porque está mudando também quem as conta” (BRENNEIS, 2002, p. IX). Ora, se antes as
gravações em película eram limitadas pelo elevado preço dos negativos, hoje essa é uma
preocupação a menos para os realizadores. Câmeras e, principalmente, suportes de registro e
reprodução tornaram-se acessíveis a uma ampla gama de pessoas e instituições. O resultado
desse crescimento deverá ser sentido na próxima década, tanto com relação à quantidade de
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material disponível para análise quanto pela velocidade e alcance das conclusões. Projetos
diversos de democratização da comunicação, de cartografia das produções oralizadas, além de
sites e blogs destinados ao estudo da história do cotidiano são provas ainda não totalmente
consolidadas, porém já consistentes do impacto da digitalização sobre as pesquisas em
poéticas orais.
Entretanto, apesar de Brennesis e diversos outros autores apostarem nas novas
tecnologias como alavanca para experiências audiovisuais e analíticas inovadoras, é preciso
destacar que há distância entre o potencial transformador e a transformação em si. Entre o
poder fazer e a prática, nem sempre a interseção é concretizada.
Em segundo lugar, deve-se frisar a emergência ainda sutil, mas gradual, de uma nova
concepção de registros audiovisuais de performances: a que não prega uma abordagem
amadora dos processos de produção, filmagem e pós-produção. Paulatinamente,
pesquisadores e documentaristas iniciam uma jornada rumo à fusão entre um conteúdo crítico
e uma proposta estética mais elaborada. Para que isso ocorra, abandonam-se – ou pelo menos
se relativizam – as concepções de que os produtos midiáticos são meramente para o consumo
massivo banal, orientados para o lucro fácil e imediato. As manifestações “tecnoestéticas”,
como defende Denize Azevedo Duarque Guimarães (2007), mesclam o domínio dos
equipamentos à experimentação de linguagens em busca de um resultado final que mobilize
“as sempre polêmicas relações entre arte, ciência e tecnologia” (GUIMARÃES, 2007, p.8).
Trocando em miúdos, inicia-se um movimento para que a ciência encampe preocupações
estéticas em seus meandros antes exclusivamente pragmáticos.
Conduzindo a discussão para o âmbito as poéticas orais e pensando no registro
audiovisual de performances (sejam elas atreladas aos etnotextos17 ou às vanguardas
artísticas), já se começa a falar em mecanismos de transcriação nas pesquisas sociais. Por
transcriação compreende-se o desdobramento de uma mesma matriz narrativa por intermédio
de múltiplas plataformas midiáticas (HUTCHEON, 2011, p. 11). Lido assim, o conceito não
parece muito diferente da antiga ideia de “adaptação”, no entanto, ele abarca a possibilidade –
lícita e às vezes até esperada – de se fazer ajustes na narrativa “original”, partindo do

17
Discursos que a comunidade desenvolve sobre si mesma, normalmente de circulação oralizada, que
desencadeiam processos de legitimação por meio da reafirmação de valores coletivos e da autoria
anônima (PELEN, 2001, p. 71-72).
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pressuposto de que, em alguns casos, mudar não é corromper, mas sim preservar a ideia-
matriz.
Apenas a título de exemplo, suponhamos que um contador de “causos” tenha especial
aptidão para utilizar o silêncio como elemento de suspense em uma narrativa. Vendo o
resultado das filmagens, contudo, o pesquisador/realizador descobre que o efeito não tem
grande impacto no vídeo, perdendo-se em meio a outros elementos. Como forma de recuperar
a tensão dramática, é possível lançar mão de um artifício técnico, o congelamento do frame,
como equivalente à suspensão temporária do discurso. A pausa explícita pode simular o
silêncio desejado, aproximando o resultado final do relato in loco, sendo assim mais fiel ao
“espírito” da história e da performance que do que a maneira tradicional de manutenção da
imagem tal qual foi captada. Obviamente, é função do pesquisador alertar o público para essas
mudanças, deixando transparentes os mecanismos de intervenção adotados.
É perceptível que a ideia da transcriação aplicada aos estudos sobre as poéticas orais e
ciências sociais em geral suscita discussões éticas acaloradas. Afinal, não é possível precisar o
quanto a manipulação técnica pode servir às pesquisas ou o quanto pode deturpar o conteúdo
ao ponto da descaracterização grave. Uma sugestão viável para superar o impasse seria a de
oferecer ao consumidor do estudo o material bruto de trabalho e o resultado definitivo da
edição. Entretanto, essa ainda não é uma prática contumaz e ainda serão necessários vários
anos de experiências para que um modelo chegue a um patamar mínimo de consenso.
Para agravar ainda mais o quadro, devemos pensar na tendência audiovisual
contemporânea de diluir as fronteiras entre o documental e o ficcional. Manuela Penafria, por
exemplo, defende que a diferença os dois termos não é de natureza, mas de grau, na medida
em que ambos representam o mundo através da manipulação de materiais expressivos
(PENAFRIA, 1999).
Nas produções de caráter documentarista, o que está em jogo é a tentativa de
preservação da autenticidade do registro, mesmo que a manutenção absoluta da experiência
“real” permaneça apenas como meta inalcançável. Afinal, assistir a um registro “autêntico”
também é ter acesso a certa visão de mundo particular de quem realizou a gravação. “Um
documentário é uma intervenção na realidade, é um percurso que se faz e que se partilha com
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o espectador. Um percurso equacionado por uma relação de confronto e/ou uma relação de
compromisso com os intervenientes/personagens” (PENAFRIA, 1999, p. 14)18.
Na ficção, vale para o vídeo a lógica semelhante à que rege as narrativas impressas,
analisadas por Umberto Eco. Para o autor, há “verdades” que só têm vigência entre os muros
de uma obra, graças a um acordo tácito entre autor e leitor – a chamada suspensão da
descrença – construída e mantida a partir de conhecimentos prévios que temos do mundo,
somados ao poder de convencimento de um criador.
Os estudiosos têm discutido amplamente o que significa uma
afirmação ser “verdadeira” numa estrutura ficcional. A resposta mais
razoável é que as afirmações ficcionais são verdadeiras dentro da
estrutura do mundo possível de determinada história. (...) É espantoso
um homem acordar e se ver transformado em inseto; contudo, se
realmente se transformou, tal inseto deve ser as características normais
de um inseto normal. Essas poucas linhas de Kafka constituem um
exemplo de realismo, não de surrealismo (ECO, 1994, p. 84 e 94).

Isto é, mais do nunca, compreende-se e emprega-se a ideia de que entre ficção e a


realidade há mais vasos comunicantes que se pressupunha no passado. Tendo isso em mente
como pensar nos produtos audiovisuais que (re)constroem narrativas míticas, lendas, causos,
interpretações poéticas do mundo real ou de caráter vanguardista? Como aceitar abordagens
“seguras” (leia-se convencionais e quase acanhadas) dos recursos técnicos, quando o
conteúdo das filmagens convida o espectador a uma perspectiva mais irreverente do mundo?
Não seria um contrassenso? Ao rejeitar um formato inventivo no momento de (re)constituir
narrativas orais, que são arrojadas por excelência, não estaria o pesquisador negando a riqueza
do próprio trabalho e condenando-o ao ostracismo junto ao público?
É possível que somente tentativas (no plural) que neguem a zona de segurança da
pesquisa possam responder a essa pergunta.

Considerações finais
Todas as indagações propostas no artigo repelem respostas simplistas, mas já estão – e
em num futuro próximo se farão sentir com cada vez mais premência – na pauta das ciências
sociais. Negar o uso dos recursos audiovisuais pela complexidade de questões que eles geram
não nos parece razoável, seria um retrocesso e tanto. Subutilizá-los, ignorando seu potencial,
também não condiz com o pensamento acadêmico atual, interdisciplinar, amplo e agregador.
18
De certa forma, voltamos aqui ao conceito de transcriação.
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Portanto, a saída talvez seja um investimento considerável por parte das instituições e dos
pesquisadores para que analisem, reflitam e, sobretudo, experimentem opções relacionadas ao
vídeo, seja na produção de roteiros coerentes, seja nos processos de filmagem e pós-produção.
Os agentes da ciência ainda têm receio de empregar artifícios criativos19 na análise das
questões sociais, como se a experimentação não fosse também parte do que estudam. Temem
perder a credibilidade, sem muitas vezes notar que rigor acadêmico não é antônimo de
ousadia. Esquecem-se da lição de Friedrich Kekulé, cientista respeitadíssimo, que só
conseguiu resolver a difícil e teoricamente insolúvel questão da estrutura molecular do
benzeno quando abandonou os métodos lineares e convencionais de seus antecessores,
passando a brincar com o enigma, até criar uma forma visual para a substância que estudava
(MACHADO, 2001).
A ciência e seus discípulos talvez possam aprender com as próprias poéticas orais a
lição de equilíbrio entre a cautela e impetuosidade, de maneira a transformar seus registros em
algo mais que simples ilustração esmaecida.

REFERÊNCIAS:

BRENNEIS, Lisa. Visual QuickPro Guide: Final Cut Pro 2 for MAC OS X. Berkeley,
California: Peachpit Press, 2002.

BOAS, Franz. As limitações do método comparativo da antropologia. In: CASTRO, Celso


(Org.). Franz Boas. Antropologia Cultural, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.

GUIMARÃES, Denise Azevedo Duarte. Comunicação Tecnoestética nas Mídias


Audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.

ORTIZ, Renato. Sobre o relativismo cultural. Revista Alambre, comunicación, información,


cultura, n. 2, mar. 2009.

MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.

19
Talvez utilizar o termo “artístico” seja muito forte para o caso
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NÓVOA, Jorge. Cinematógrafao. Laboratório da razão poética e do “novo” pensamento. In:


NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian (orgs).
Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Editora da
UNESP, 2009.

PENAFRIA, Manuela. O filme documentário: história, identidade, tecnologia. Lisboa:


Cosmos, 1999.

PIRES, Eloíza Gurgel. Cinema e Educação: o deslocamento poético do olhar na construção


do conhecimento. Revista Rua, Universidade Federal de São Carlos, 16 jun. 2010.

PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral:


reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. História e Oralidade (PUC-
SP) v.22, 2001.

SADOUL, Georges. História do Cinema Mundial, Volume I. São Paulo: Editora Martins,
1963.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Trad. Jerusa P. Ferreira e Sônia Queiroz. São
Paulo: Ateliê, 2005.
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ORALIDADE, LETRAMENTO E PRÁTICA DOCENTE NO SERTÃO POTIGUAR:


INCLUSÃO SOCIAL ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL

Claudson Faustino (Graduando em Letras, UFRN)


claudson45@hotmail.com

Amarino Oliveira de Queiroz (Docente orientador, UFRN)


amarinoqueiroz@yahoo.com.br

RESUMO: Através do exercício de memorização e da leitura de textos de cordel, muitos


nordestinos foram sistematicamente alfabetizados, ampliando desta forma seus espaços de
inserção social. Como a maioria dos jornais se concentra nos grandes centros, os “folhetos”
serviam como mini-jornais, ou seja, constituíam um meio de comunicação mais atrativo para
o homem sertanejo. Diante disso, as pessoas que gostavam de lê-los acabavam também
exercitando um trabalho autoral. Assim, ao fazer uso da leitura e da escrita, estas práticas
transformavam suas vidas, redimensionando aspectos culturais, sociais, cognitivos,
lingüísticos, entre outros, ou seja, desenvolvendo nelas práticas de letramento. Nesse sentido,
este trabalho pretende destacar a literatura de cordel como incentivo às práticas de letramento
nos contextos escolares e não escolares, com o exemplo da ação “Literatura de Cordel nas
Escolas”. Esta ação de extensão foi implementada no Sertão do Seridó potiguar através da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Currais Novos, priorizando a
leitura e a oralidade por intermédio da declamação poética, além do relato do Grupo Teatral
Netota Cordel do Pau Quebrado, que estimula as pessoas a conhecerem, através da recitação e
da performance, um pouco mais a respeito da chamada literatura popular, ou seja,
promovendo uma releitura do cordel com vistas à reflexão crítica da sociedade e da própria
identidade cultural. Para este trabalho, além dos relatos das experiências desenvolvidas na
referida ação de extensão e pelo grupo teatral, optou-se pela realização de uma pesquisa
bibliográfica que teve como base teórica os estudos de Galvão (2000), Maxado (1980),
Mollica (2007) e Soares (2001, 2010), dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Oralidade, letramento, literatura de cordel, inclusão social.

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem o propósito de mostrar como o estudo da literatura de cordel é
grandioso e agradável. Mostrando o cordel como um gênero que pode ser trabalhado em sala
de aula; abordando a leitura, a escrita e a oralidade como uma prática social; apontando o
cordel como incentivo às práticas de letramento; diferenciando a literatura oral de outros
gêneros literários; apresentando a prática docente no sertão potiguar: focalizando a
memorização, a declamação e a performance. E destacando a literatura de cordel como um
meio de inclusão social.
Sob essa perspectiva, pesquisas atuais no campo da Linguística e da Educação,
buscam compreender as práticas de letramentos (MARCUSCHI, 2001), (MOLLICA, 2007) e
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(SOARES, 2001; 2010). Como também no campo da Literatura busca entender a literatura de
cordel (GALVÃO, 2000), (MAXADO, 1984) e (QUEIROZ, 2002), que a compreendem
como uma literatura popular e social.
O artigo se organiza da seguinte maneira: primeiramente a introdução, que apresenta
os estudos prévios e os objetivos da pesquisa, em seguida, na segunda seção, desenvolve-se o
referencial teórico, buscando compreender a oralidade e o letramento e os papeis das
literaturas oral e escrita. Na terceira seção, salienta sobre a prática docente no sertão potiguar,
através da ação de extensão “Literatura de cordel nas escolas”, focalizando a metodologia de
ensino: da leitura, da escrita, da oralidade, da memorização, da declamação e da performance
e, posteriormente, na quarta seção, aponta a literatura de cordel como um meio de inclusão
social. Por último, as considerações finais.

2. ORALIDADE E LETRAMENTO: DA LITERATURA À LITERATURA ORAL


O homem é um ser que fala mais do que escreve, no entanto, isto não quer dizer que a
oralidade seja superior à escrita. Por outro lado, o uso da escrita, em muitas ocasiões, adquiriu
um valor social superior ao da oralidade. Entretanto, isto não significa que esta seja superior
àquela. Para Marcuschi (2001),

Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias,


mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos
nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e
coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições
formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante.
(MARCUSCHI, 2001, p. 17).

Concordando com o raciocínio de Marcuschi, entendemos que oralidade e escrita não


são sistemas cognitivos paralelos e sim modos complementares de compreender a sociedade,
ou seja, são práticas interativas e complementares no contexto das práticas culturais e sociais,
no qual a oralidade é adquirida nas relações sociais e culturais do dia-a-dia, desde quando nós
nascemos. E são estas relações que determinam o tipo de linguagem que o sujeito utilizará ao
longo da vida. Por isso, pode-se ver a prática da oralidade como uma forma de inclusão social
e cultural. Por outro lado, no que diz respeito à escrita, ela é fruto de um aprendizado escolar,
no qual é ensinado aos indivíduos representar palavras ou idéias por meio de sinais. Para
Mollica (2007, p. 15) apropriar-se da escrita é um “meio de inclusão social”.
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Para compreender melhor todo o conjunto representado pela oralidade e a escrita, é


importante apoiar-se em uma palavra recém chegada ao vocabulário das ciências linguísticas
e da educação: o letramento. Mas, o que é o letramento? De acordo com Soares (2001, p. 17)
o termo letramento é “a versão para o português da palavra literacy.” E o significado da
palavra letramento, ainda segundo a autora, é o “resultado da ação de ensinar e aprender as
práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um
indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais.”
(SOARES, 2001, p. 39).
Diante disso, existem muitas pessoas que têm um aprendizado escolar, portanto sabem
ler e escrever, porém não possuem uma compreensão do que está escrito, ou seja, elas
decodificam as palavras, mas não as entendem. Dessa forma, “ler e escrever significam
apreensão e compreensão de significados expressos em língua escrita (ler) ou expressão de
significados por meio da língua escrita (escrever)”. (SOARES, 2010, p.16).
Nessa concepção, na distinção entre a língua escrita e a língua oral, Soares (2010)
salienta que a primeira não é uma mera representação da segunda, ou melhor,

que a língua escrita não é, de forma alguma, um registro fiel dos fonemas da
língua oral, há também uma especificidade morfológica, sintática e semântica
da língua escrita: não se escreve como se fala, mesmo quando se fala em
situações formais; não se fala como se escreve, mesmo quando se escreve em
contextos informais. (SOARES, 2010, p. 17).

Na perspectiva literária, percebem-se as características da oralidade em muitos textos


da literatura clássica, medieval, moderna e contemporânea. Diferente do termo “literatura”,
que designa o conjunto dos escritos, ou seja, a acumulação do conhecimento nos textos
escritos, a “literatura oral” está presente nas diversas situações sociais em que o indivíduo
possa se inserir ao longo da vida, designando a herança da cultura oral. Para Maxado (1984),

O termo literatura oral, com essa acepção, foi criado pelo estudioso
francês Paul Sebillot, em 1881, para denominar o folclore dos contos,
cantos, fábulas, lendas, mitos, anedotas, anexins, adivinhações,
parlendas, rondas e jogos infantis, enigmas, charadas, provérbios,
orações, canções, frases feitas, autos, receitas, danças cantadas,
desafios, acalantos, aboios, superstições, conselhos, casos, máximas,
aforismas, adágios, ditados, estórias, gestas, xácaras, baladas, enfim,
tudo o que o povo cria e conserva para sua conversação e lazer.
(MAXADO, 1984, p.23).
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Nesse sentido, toda literatura que foi feita para o canto, para a declamação e para a
leitura em voz alta é chamada de literatura oral. De acordo com Cascudo (1984), esta
literatura é movimentada e mantida pela tradição oral. E esta tradição é transmitida de geração
a geração. Assim sendo, a literatura de cordel, que você irá ver adiante e que pode ser oral ou
escrita, se encaixa perfeitamente no que foi dito, ou seja, muitos cordéis são escritos para
serem cantados, declamados e lidos em voz alta. Em suma, conforme assegura, Maxado
(1984), a literatura de cordel são todas essas manifestações populares no formato impresso.

3. PRÁTICA DOCENTE NO SERTÃO POTIGUAR


3.1. Leitura, escrita e oralidade
Desenvolver um método de ensino/aprendizagem não é fácil, por isso muitos
estudiosos ficam debatendo sobre o futuro da educação. Além disso, depois de ver a realidade
do ensino brasileiro, muitos professores desanimam ou poucos são os que têm motivação para
a prática escolar. Esta realidade não é diferente no Seridó potiguar, ou melhor, no sertão
potiguar como um todo.
No que diz respeito a uma técnica de ensino que ajude ao desenvolvimento
educacional dessa região, aconselha-se trabalhar os processos da leitura, da escrita e da
oralidade. Porque na sociedade atual existe a necessidade da comunicação, da interação e da
inserção social. De acordo com Soares (2010), o alfabetismo é uma prática social, portanto o
método indicado para o (a) professor (a) é trabalhar as habilidades e conhecimentos de leitura
e escrita (dos alunos) em um conjunto de práticas sociais associadas com a leitura e a escrita.
No entanto, existe uma diferença radical entre as habilidades e conhecimentos que constituem
a leitura e as habilidades e conhecimentos que constituem a escrita. Segundo a autora,

ler, estende-se desde da habilidade de simplesmente traduzir em sons sílabas


isoladas, até habilidades de pensamento cognitivo e metacognitivo; inclui,
entre outras habilidades, a habilidade de decodificar símbolos escritos; a
habilidade de captar o sentido de um texto escrito; a capacidade de interpretar
seqüências de idéias ou acontecimentos, analogias, comparações, linguagem
figurada, relações complexas, anáfora; e ainda habilidades de fazer predições
iniciais sobre o significado do texto, de construir o significado combinando
conhecimentos prévios com as informações do texto, de controlar a
compreensão e modificar as predições iniciais, quando necessário, de refletir
sobre a importância do que foi lido, tirando conclusões e fazendo avaliações.
(SOARES, 2010, p. 31).

Por outro lado,


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escrever engloba desde a habilidade de traduzir fonemas em grafemas, até


habilidades cognitivas e metacognitivas; inclui habilidades motoras,
ortografia, uso adequado da pontuação, habilidades de selecionar informações
relevantes sobre o tema do texto e de identificar os leitores pretendidos,
habilidade de fixar os objetivos do texto e de decidir como desenvolvê-lo,
habilidade de organizar as idéias no texto, de estabelecer relações entre elas,
de expressá-las adequadamente. (SOARES, 2010, p. 32).

Nesse contexto, é importante para o (a) professor (a) destacar traços de oralidade na
escrita dos alunos, através da leitura reflexiva dos seus textos. Focalizando não só a escrita
formal e/ou informal, mas o sentido do texto. A oralidade é uma prática social, assim como a
leitura e a escrita, portanto é também essencial como método de ensino/aprendizagem.

3.2. Memorização, declamação e performance: o uso do cordel


Desenvolver a memorização sempre foi um processo importante na vida de muitos
líderes e, principalmente, de professores. Nos dias de hoje, procurar guardar na memória
aquilo que leu (aprender a decorar) é a técnica mais usada pelos alunos em sala de aula. No
entanto, eles aprendem, porém esquecem; por isso, memorizar é diferente de decorar. A
primeira é reter na memória ou aprender de cor o ato cognitivo, enquanto a segunda é tentar
reter na memória ou aprender de cor o ato cognitivo sem intenção, ou melhor, procurar
guardar na memória aquilo que leu sem vontade.
Nesse contexto da memorização, destacam-se os poetas mnemônicos e as poesias
mnemônicas na memória popular. Mas, o que são poesias mnemônicas? Segundo Cascudo
(1984, p. 352), são “os A. B. C., os pelo-sinal, padre-nosso, ave-maria, salve-rainha, paródias
irônicas de orações católicas, tendo finalidades satíricas e políticas.” (CASCUDO, 1984, p.
352).
Por conseguinte, quando um poeta declama um texto de cordel, o ritmo das estrofes é
muito rápido, parecendo favorecer a memorização. Muitos cordéis demonstram apresentar
várias características, como a recorrência a expressões típicas de um dialeto oral regional, que
o tornam muito próximo à oralidade. Conforme Galvão (2000, p. 454) quando um poeta
recita, só “pela entonação de sua declamação, mesmo para um auditor pouco habituado ao
universo do cordel, é possível identificar quando inicia e quando encerra cada um dos versos e
cada uma das estrofes.” (GALVÃO, 2000, p. 454). Desse modo, de acordo com Queiroz
(2002, p.19) “o uso performático da voz estaria, portanto, na matriz de uma série de outras
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manifestações culturais africanas, ou afro-descendentes, que se apoiaram em outros


elementos, da dança à música, e que se espalharam pelo mundo inteiro.” (QUEIROZ, 2002, p.
19).

3.3. Literatura de cordel nas escolas


A prática docente no sertão potiguar, focalizando a leitura, a escrita, a oralidade, a
memorização, a declamação e a performance, dando ênfase a literatura de cordel está sendo
desenvolvida através da ação de extensão Literatura de Cordel nas Escolas, que tem a
intenção de levar ao conhecimento dos discentes da rede estadual e municipal de Currais
Novos – RN, a literatura popular.
A ação tem o propósito de mostrar, pela declamação e a performance, os mais
conceituados poetas nordestinos e, principalmente, potiguares, visualizando o valor cultural
de cada um deles para a formação da Literatura Brasileira. Além de manter, preservar e
divulgar a literatura de cordel e ter um contato interativo entre os colaboradores e
colaborados.
A ação tem o propósito de que os alunos e professores despertem o interesse e a
sensibilidade em conhecer a literatura de cordel, sendo motivados pela declamação e a
performance. Além disso, a intenção é levar ao conhecimento dos alunos a literatura de cordel
como prática de desenvolvimento cognitivo. Para Batista (1977:28), a literatura de cordel se
constituiu como um “meio de comunicação, um instrumento de interligação entre as
sociedades que se formavam.” Ou seja, essa literatura serviu como um grande veículo de
informações para os que não tinham acesso a rádio, a jornal e a televisão. Outro destaque que
o cordel teve foi na prática de letramento. Segundo Galvão (2002, p. 136) as “pessoas que, em
sua origem, estavam pouco habituadas ao mundo da escrita, vivenciaram práticas de
letramento, ou seja, experimentaram situações em que utilizavam, efetivamente, as palavras
escrita e impressa.” Isto é, a literatura de cordel como incentivo à prática de letramento.
A ação é efetuada rotativamente e quinzenalmente nas escolas, onde é desenvolvida
uma oficina na qual é ensinada a história da literatura de cordel, é incentivada a leitura e a
escrita, e em seguida é apresentada a declamação, motivando a memorização, e junto com a
declamação a performance. Tudo isso marcado pelos traços da oralidade.
Esperamos que todos esses exercícios contribuam para a formação cultural, intelectual
e estética dos alunos e professores no sertão potiguar. Além disso, esperamos fazer com que a
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES – Centro de Ensino Superior


do Seridó, Campus de Currais Novos possa compartilhar a especialização profissional e
científica, nesse intercâmbio cultural e literário com as Escolas Estaduais e Municipais da
cidade de Currais Novos.

4. INCLUSÃO SOCIAL ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL


O desafio dos educadores é desenvolver habilidades como forma de incluir pessoas na
sociedade, através da prática social da leitura e escrita. O cordel nos mostra um caminho para
a conquista deste objetivo. São muito amplas as temáticas ou os métodos que podem ser
trabalhado com o cordel, uma prática literária que apresenta grande diversidade cultural e
social.
Um dos métodos educativos que trabalha a literatura de cordel no sertão potiguar é o
método teatral. Esse método é desenvolvido pelo Grupo Teatral Netota Cordel do Pau
Quebrado, que vem se destacando na região do Seridó pela sua criatividade ao juntar a
performance de voz e de corpo, mais a declamação de folhetos de cordéis, reunindo tudo isso
para transformá-las em uma única e perfeita performance teatral. O grupo é destaque por
divulgar a cultura popular através da declamação de cordel. Seu objetivo principal é levar e
manter a prática da leitura dos folhetos de cordéis.
Contudo, as estórias que eram versadas e impressas em folhetos para serem vendidos
em feiras, hoje, na atualidade, são divulgadas na internet, na televisão, no rádio e também
pelo teatro. Diante disso tudo fica explícito que, a literatura de cordel existe para incluir o
sujeito na sociedade, para incentivar o sujeito a ler e a escrever.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode perceber pelo exposto ao longo deste artigo, o cordel faz parte da
cultura oral e da cultura escrita. Essa literatura é desenvolvida pelo e destinada ao povo. É
uma literatura viva que usa toda forma de criatividade; é uma literatura que faz o excluído
(analfabeto ou semi-analfabeto) refletir sobre sua vida social e cultural. Diante disso, ver os
métodos de alfabetização através da literatura de cordel como um conhecimento educacional é
ver também o cordel como uma prática social e cognitiva que, metodologicamente, ensina
mais do que diverte. Assim, além do cordel ser uma literatura que incentiva as práticas de
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letramento, é também a literatura que dá ênfase à oralidade, sendo nesse caso, uma literatura
do e para o povo.

REFERÊNCIAS:

BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da Literatura de Cordel. 1º ed. Natal-RN:


Manimbu, 1977.

CASCUDO, Luiz da Camara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1984.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Ler/ouvir folhetos de cordel em Pernambuco (1930 a


1950). Belo Horizonte – MG: Universidade Federal de Minas Gerais – PosEFE, 2000. Tese
de doutorado.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oralidade, memória e a mediação do outro: práticas de


letramento entre sujeitos com baixos níveis de escolarização – o caso do cordel (1930-1950).
Campinas. Disponível em: www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13934.pdf. Acessado em: 15 de Junho
de 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São


Paulo: Cortez, 2001.

MAXADO, Franklin. O que é literatura de cordel? Rio de Janeiro: Codecri, 1980.

MOLLICA, Maria Cecilia. Fala, letramento e inclusão social. São Paulo: Contexto, 2007.

QUEIROZ, Amarino Oliveira de. Ritmo e Poesia no Nordeste Brasileira: Confluências da


Embola e do Rap. Feira de Santana – BA: Universidade Estadual de Feira de Santana –
PosLDC, 2002. Dissertação de Mestrado.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autentica,
2001.

__________. Alfabetização e letramento. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.


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METÁFORAS VIVIDAS: LETRA E VOZ NAS NARRATIVAS ORAIS URBANAS DA


RESTINGA

Cristina Mielczarski dos Santos (mestranda/UFRGS)


crismielczarski@yahoo.com.br

“A humanidade narra como respira: naturalmente.”


Roland Barthes.

Introdução
A literatura, antes de ser escrita, foi passada de geração a geração através da oralidade.
Podemos citar os textos homéricos (A Ilíada e a Odisséia), as histórias das mil e uma noites,
as novelas de cavalaria medievais, os contos de Chaucer (The Canterbury Tales) e de
Boccaccio (Decameron). Na esteira de João Guimarães Rosa, que alimentou sua obra escrita
com a oralidade, muitos escritores contemporâneos tais como Ariano Suassuna, no Brasil,
José Saramago, em Portugal, e Mia Couto, em Moçambique, trazem a oralidade para dentro
de suas obras.
Desde os filósofos gregos do mundo antigo, pretendemos entender e explicar os
modos literários. Em sua Poética, Aristóteles dividiu a arte literária nos modos épico e
dramático. Mais tarde, estudiosos da literatura mudaram para a tríade: modo narrativo, lírico e
dramático. Nesse contexto, interessa-nos apenas o modo narrativo, particularmente a narrativa
oral e seu representante, o narrador oral, mais especificamente, o narrador oral urbano
periférico. Para tanto, as questões que se apresentam são: quais foram os narradores no
passado? Quem são os narradores contemporâneos urbanos? O que narram os moradores da
Restinga?

O caminho do narrador oral na linha temporal


Roland Barthes (1972, p. 19-20), estudioso da narrativa, afirma que ela iniciou com a
própria história da humanidade, como vemos:
Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a
narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, em
parte alguma, algum povo sem narrativas; todas as classes, todos os
grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas
são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes e mesmo
opostas: a narrativa ridiculariza a boa e a má-literatura: internacional,
trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida.
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Para estruturar uma narrativa, exige-se a presença de uma estória e de um contador de


estórias (SCHOLES & KELLOGG, 1977, p. 01). A narrativa oral é a arte de contar histórias,
é a celebração onde o ser humano diz em voz alta e em corpo inteiro, onde presta homenagem
a todos aqueles que o precederam (o xamã, o aedo, o griot, o contador de histórias árabes,
todos os “homens-narrativas” que o antecederam). Ao narrar, o sujeito traz à luz a memória
coletiva e a voz de todos em sua voz singular e criativa.
Xamã é um termo de origem tunguska (povo nativo da Sibéria), e, segundo Nicolau
Sevcenko (1988, p. 137), “tem um papel relevante, pois ele é o narrador mediador entre os
deuses e os homens, só através dele os homens se encontram com os deuses, consigo mesmos
e entre si”:
Figura singular, é arredio, calado, solitário, introvertido, sexualmente
ambíguo, o olhar sempre perdido, o corpo marcado [...] ele obedece a
tabus e prescrições alimentares, jejua, ingere e inala substâncias tóxicas
[...] o xamã é um servo arrastado ao limiar da insanidade por uma
comunidade que lhe vampiriza as alucinações. (SEVCENKO, 1988, p.
127).

O xamã representa a própria tradição narrativa ainda como mito-canção, sendo que a
linguagem é um dos principais recursos encantatórios do xamã:
Eles são poetas e cantores. Eles dançam e criam obras de arte. Eles não
são apenas líderes espirituais, mas também juízes e políticos.
Repositórios do conhecimento da História tanto sagrada quanto secular
de sua cultura, eles têm familiaridade com a geografia cósmica, assim
como a física, sabem tudo sobre as plantas, os animais e os elementos.
Eles são psicólogos, recriadores e descobridores de comida. Acima de
tudo, entretanto, os xamãs são técnicos do sagrado e mestres do êxtase.
(SEVCENKO 1988, p. 129-130).

A narrativa ainda como mito-canção é encontrada na figura do aedo, na Grécia antiga,


que, sempre acompanhado de uma lira, em suas canções homenageava os deuses e os heróis
de seu tempo, cultuando a deusa Mnemósine. Nesse contexto, narrativa e música andavam
juntas e o saber do aedo era incontestável, como nos assevera Todorov (2003, p. 85):
Assim como o chefe de um povo era a encarnação do primeiro tipo de
fala, aqui um outro membro da sociedade torna-se seu campeão
inconteste: é o aedo. Ele é alvo da admiração geral, pois sabe bem
dizer; merece as maiores honrarias: “sua voz o iguala aos Imortais”; é
uma felicidade escutá-lo. Jamais um ouvinte comenta o conteúdo do
canto, somente a arte do aedo e sua voz.
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Na África, o termo o griot, refere-se ao membro de uma casta africana que possui a
responsabilidade de perpetuar a tradição oral e a história de sua comunidade ou de sua
família, seja na forma de música, poesia seja na contação de histórias. Sendo assim, ele é o
depositório e transmissor da memória ancestral por meio da tradição oral, como sintetiza
Eudes Leite e Frederico Fernandes (1998, p. 21-22) “o griot é um especialista, escolhido ou
por linhagem, ou por profissão, e só ele detém o conhecimento dos textos mais longos e
especiais, como a epopeia, as genealogias ou a crônica histórica.”
Deste modo, os griots possuem como objeto de trabalho a palavra, e assim constituem
fonte de armazenamento e transmissão, seja de contos iniciáticos, seja anedotas e provérbios,
e outras formas orais anteriormente citadas. É pela voz e pela presença desses griots, que os
sujeitos de todas as idades, aprendem sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo. A
figura do griot tem, portanto, uma enorme importância na conservação da palavra, da
narração, do mito, porque canta os mitos dos diferentes povos e também elogia os heróis e
personagens do passado.
Percebe-se, contudo, que, na contemporaneidade, necessariamente na narrativa oral
urbana, aqui exposta, os sujeitos não empregam a música como meio de divulgação em suas
narrativas, a qual é apenas percebida no tom de suas falas. Não são como os xamãs
mediadores entre deuses e homens, entretanto, as mediações ocorrem entre homens e
mulheres, sujeitos ativos na sua comunidade. Ainda, tampouco, homenageiam deuses e
heróis, pois os heróis são eles mesmos em suas lutas diárias pela sobrevivência. Contudo, o
que eles possuem em comum? Os narradores orais urbanos da Restinga têm a missão, embora
não oficialmente, de manter viva na sua memória e na dos moradores suas histórias a respeito
da construção do bairro, as lutas comunitárias envolvidas. Necessitam, portanto, assim como
os xamãs, aedos e griots, da memória como instrumento de perpetuação desse passado e da
palavra como ferramenta de transmissão dessa memória.
O historiador Nicolau Sevcenko (1988, p. 126) parte da pré-história e define a
narrativa pela proximidade com o rito: “A narrativa não é uma exposição do assunto, é o
modo supremo da experiência da vida. Através dela o mito se torna rito e cerimônia, uma
suspensão do tempo, evasão do espaço e libertação dos frágeis limites do corpo mortal e
carente.”
É consenso dizer que narrativa e indivíduo caminham juntos porque “não pode haver
narrativa sem narrador e sem ouvinte.” (BARTHES, 1972, p. 47). Narrando, o sujeito
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constitui a sua identidade, organiza a sua própria existência, conforme sublinha Paul Ricoeur
(1997, p. 426):
Nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo qual
podemos nos dar conta de nós mesmos. É contando nossas próprias
histórias que damos a nós mesmos uma identidade. Reconhecemo-nos
nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E é pequena a diferença
se essas histórias são verdadeiras ou falsas, tanto a ficção como a
história verificável nos provém de uma identidade.

Entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundial, Walter Benjamin preconizava em “O Narrador” que


“a arte de narrar está em vias de extinção” (1994, p. 197), pois um número cada vez menor de
pessoas tinha experiências a compartilhar, fosse pela guerra, fosse pelos efeitos do
individualismo burguês (o romance e o jornal). Quando era solicitado a um grupo que alguém
narrasse, um mal-estar se instalava. “É como se estivéssemos privados de uma faculdade que
nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” (BENJAMIN,
1994, p. 198). Assim, refletindo sobre essas ideias de Benjamin a respeito da “extinção do ato
de narrar”, é possível cogitar que, com o advento da tecnologia e da correria da vida
contemporânea, cada vez mais são raros os momentos em que visualizamos pessoas sentadas
em uma roda de chimarrão, ou qualquer outro tipo de roda como antigamente se costumava
fazer, ouvindo alguém narrando, contando causos, lendas e histórias de fantasmas ou afins.
Na perspectiva do autor, todos os narradores orais recorrem à experiência que passa de
pessoa a pessoa. Afirma que existem dois grupos de narradores, sendo seus representantes
arcaicos o viajante (marinheiro comerciante) e o agricultor. O primeiro, como “alguém que
vem de longe”, carrega em sua bagagem o conhecimento de lugares longínquos: “quem viaja
tem muito o que contar”, é também possuidor de uma visão mais holística, narra a distância
do espaço ao voltar de suas viagens. O segundo, o camponês sedentário, é ligado mais à terra,
à família, tem conhecimento do passado e narra a distância do tempo. Ambos vinculam o
“saber das terras distantes” com o “saber do passado”. Além disso, cumpre ressaltar que essas
duas modalidades de vida engendraram de certo modo suas respectivas famílias de narradores.
Por fim, aponta para outro traço desse narrador, sintetizado na figura do conselheiro. O autor
assim bem o define, como se vê a seguir:
O narrador figura entre os mestres e os sábios [...] Pois pode recorrer ao
acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria
experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador
assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer).
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Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira.
(BENJAMIN, 1994, p.221).

O narrador oral urbano contemporâneo periférico


O presente trabalho desenvolveu-se na área da literatura oral, a partir do projeto A vida
reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de acervo de narrativas orais
(UFRGS). Partimos nós, os pesquisadores, na investigação a respeito do que, na
contemporaneidade, faz parte do imaginário desses sujeitos, os narradores da Restinga,
doravante assim intitulados.
As pesquisas no campo da literatura oral são bastante desenvolvidas em outros estados
brasileiros. Podemos citar o exemplo dos narradores da Amazônia paraense da Universidade
Federal do Pará, onde foram publicadas, em 1995, narrativas intituladas Belém conta...,
Santarém conta... Abaetetuba conta..., editadas pelo programa de pesquisa O Imaginário nas
Formas Narrativas Orais da Amazônia Paraense, desenvolvido nesta Universidade a partir de
1993. Ali, figura um vasto manancial de narrativas orais com caráter fictício ou lendário. Há
também importantes grupos de estudos em Mato Grosso, Bahia e Minas Gerais.
No entanto, em nossa pesquisa de campo apresentou-se uma cena totalmente
diferenciada. Nosso processo investigativo foi em busca de lendas, contos, causos, fábulas,
enfim, histórias tradicionais da oralidade, que possivelmente circulassem no imaginário da
coletividade da Restinga, como ocorre na maioria das pesquisas desenvolvidas nessa área,
como o caso citado da Universidade do Pará. Todavia, para nossa surpresa, quando
solicitamos aos sujeitos para contarem suas histórias, a maioria dos participantes iniciava sua
narrativa contando os caminhos que o levaram até a Restinga.
Por que, afinal, contam como chegaram até o bairro? Viu-se que isso ocorria pelo fato
de muitos moradores terem vindo de remoções ocorridas nos anos 60, quando o governo
deslocou grupos populacionais de diversos pontos mais centrais da cidade para o então novo
bairro, a Restinga, distante 22 km do centro da cidade de Porto Alegre (RS). Nesse aspecto,
convém ressaltar Ayala (1989, p. 261), quando menciona que, se quisermos estudar as
narrativas populares, “devemos não perder de vista que esta é uma produção cultural que se
faz dentro da vida. Justamente porque é um fazer dentro da vida, fica na memória dos
contadores de histórias e de seus ouvintes.”

O narrador na voz dos moradores da Restinga


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O primeiro contato com os narradores suscitou-nos diversos questionamentos, por


exemplo, como dar conta dessas narrativas que nos eram apresentadas, as “histórias de/na
vida”. O presente trabalho consiste em uma tentativa de explicar o momento da performance e
dar alguns exemplos do que foi encontrado de poético nos narradores da Restinga, ou seja,
poético nos termos de Paul Zumthor (2005, p. 72), em que o autor enfatiza que entende “por
poético a qualidade da inteligência que sabe dizer as coisas.”
Comecei a ir à Restinga com o grupo de pesquisa no final de 2007. Durante um ano,
reunimo-nos na casa de José Carlos dos Santos, mais conhecido como “Beleza”. Fizemos
outras tentativas em outros lugares, como na quadra da escola de samba, no centro
multimídia, mas o que se tornou uma rotina específica foi a residência do Beleza. As reuniões
ainda continuam, porém com outros objetivos veiculados ao prosseguimento do projeto. O
corpus para análise, portanto, é o das gravações realizadas nesse período, do qual temos o
diário de campo, um número significativo de fotos, os DVD com mais de quarenta horas de
gravação e os vídeos transcriados por nós, com o aval e a colaboração dos narradores.
São protagonistas dessas narrativas, além do próprio Beleza, Alex Pacheco, poeta,
artesão e oficineiro; Marco Almeida, o “Maragato”, liderança da TV Gato (organização que
luta pela democratização da comunicação), profundo conhecedor de informática e oficineiro
de informática nas escolas do bairro; José Ventura, criador e realizador de um projeto
esportivo para crianças do bairro; Jandira Consuelo Pinto Brito, poeta. Outras pessoas
comparecem esporadicamente aos nossos encontros, no entanto, as mencionadas são as mais
significativas e interessantes em suas narrativas.
O tempo dessas gravações é entendido como um momento performático nos termos de
Paul Zumthor (2005, p. 55), que ressalta que a performance é “a materialização de uma
mensagem poética por meio da voz humana e daquilo que a acompanha, o gesto, ou mesmo a
totalidade dos movimentos corporais.” Performance essa que não é apenas dos narradores,
uma vez que os mesmos estavam em frente de uma câmera e eram o foco da cena, detentores
da palavra, mas também performance por parte de nós, pesquisadores. Não reagíamos como
numa conversa formal ou informal, apenas escutávamos atenciosamente, participando com
gestos faciais, sorrisos, balançar de cabeça, todos sinais de escuta atenta. Anotávamos o que
eles iam narrando em nosso diário de campo individual, na atitude de recepção atenta e
solidária. Nesse sentido, Pierre Bourdieu (1998, p. 697) frisa que:
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Os “sim”, “ah bom”, “certo!, “oh!”, e também os acenos de cabeça


aprovadores, os olhares, os sorrisos e todas as information receipts,
sinais corporais ou verbais de atenção, de interesse, de aprovação, de
incentivo, de agradecimentos, são a condição da boa continuação da
troca [...] ; colocados no momento certo, eles atestam a participação
intelectual e afetiva do pesquisador.

Estabelece-se, assim, entre narradores e pesquisadores (interlocutores), na perspectiva


de Leite (2007, p. 8), “o acordo ficcional, chamado por Coleridge de ‘suspensão da crença’: o
ouvinte/leitor sabe que o está sendo narrado é uma estória imaginária 20, mas nem por isso
deve pensar que o narrador está contando mentiras”. Esta é a cena enunciativa que se encontra
na base da construção dessas narrativas, na qual um sujeito, ao enunciar o que enuncia,
pressupõe um “ritual social da linguagem, implícito, partilhado pelos interlocutores.”
(MAINGUENEAU, 1989, p. 32).
Entretanto, é de se notar que, no momento performático, o da gravação, os
interlocutores eram os pesquisadores. Contudo, sabe-se que, a partir do momento em que
forem divulgados os vídeos no site, abrir-se-á um leque imensurável de interlocutores, sendo
estes, portanto, qualquer um que tiver acesso as narrativas.
Assim, a performance, como bem define o próprio Zumthor (2000, p. 38), coloca-nos
frente ao sentido pleno da palavra “forma”, sendo que linguisticamente se situa “entre o
sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será dada por acabada e o prefixo
globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não inexistente”, ou seja, a forma se
percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuda.
Para melhor elucidar o momento performático, Bial (2007, p. 59) conforme nossa
tradução, esclarece-nos que:
A performance envolve um performer (alguém fazendo alguma coisa)
e um espectador (alguém observando alguma coisa). A narrativa oral
propicia um foco especialmente muito rico de investigação da relação
entre a literatura oral e a vida social porque parte da natureza especial
da narrativa é ser duplamente ancorada em eventos humanos.

Isto é, narrativas são a chave de ambos, através de eventos narrativos e eventos


narrados. Essa denominação é muito utilizada pelos estudos do antropólogo Richard Bauman
(1977, 1986), que subdivide o evento em “evento narrativo” (events in which they are told) e

20
Uso imaginário, aqui neste contexto, porque o narrador está afastado do momento vivido, e para
tanto utiliza sua memória, que seleciona do vivido algumas partes, inevitavelmente.
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o “evento narrado” (the events that they recount). Este é um dos princípios organizadores da
etnografia da performance. Segundo Hartmann (2005, p. 126), o “termo é usado para designar
um segmento limitado e culturalmente definido do fluxo de comportamento e da experiência,
que constitui um contexto significativo para a ação.”
Na perspectiva de Bauman (1986, tradução nossa), quando Benjamin (1994, p. 200), a
respeito do narrador, afirmava que este “retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada por outros, e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes”, já estava relacionando a radical interdependência do evento narrado e do evento
narrativo.
Sendo assim, o evento narrativo (a situação discursiva da sua narração) para nós,
pesquisadores, é o instante da gravação, quando os narradores contam suas histórias, sejam
narrações que recuperam a memória coletiva, sejam relatos da memória individual. As
histórias de vida destacam-se no âmbito individual, e no coletivo sobressaem-se as histórias
da construção do bairro, da rádio comunitária e uma profunda preocupação com o futuro
educacional e cultural das crianças da localidade Restinga. Consequentemente, essas
narrativas constroem um mosaico de memórias que fazem parte do evento narrado.
Paul Zumthor (2000, p. 98) afirma que “escutar um outro é ouvir, no silêncio de si
mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma
atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta.” Deste modo, nossa escuta nos
momentos de gravação era bastante atenta e reflexiva, já que, no momento performático, não
éramos apenas interlocutores/ouvintes. Para nós, era também um exercício, o exercício da
escuta, dar a palavra ao outro, e assim, acabávamos refletindo sobre nosso lugar. No final de
tarde, após as reuniões, voltávamos sempre discutindo as performances ocorridas.
Malinoswski (1978), etnógrafo polonês, em sua obra Argonautas do Pacíficio
Ocidental, vai morar na Melanésia, onde convive entre os nativos para melhor entender a
comunidade e redige um dos textos fundadores da etnografia participante. Em nossa pesquisa
de campo, não passamos a conviver na comunidade, apenas convivemos uma tarde por
semana, todavia, é pertinente afirmar que, em nossa convivência semanal por mais de dois
anos (principalmente com o Beleza), conhecemos um pouco melhor suas histórias e as
histórias que ele narra sobre a comunidade, pois, além de participarmos das gravações, para
elaborarmos um estudo teórico, assistimos inúmeras vezes aos DVDs. Nenhum de nós, os
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pesquisadores, mora na periferia, mas essa nossa convivência propicia um entendimento mais
consciente dos mecanismos sociais estabelecidos entre centro e periferia.
Esses mecanismos revelam-se também através da narrativa de Beleza: “Não temos
histórias, nossa cultura, nossas raízes, nossa identidade não está construída.” (Diário de
campo 08/11/07 - Beleza). Ele se refere à adversidade enfrentada pelos moradores da
Restinga, bairro no qual as pessoas, em um número significativo, não escolheram ir para lá,
foram levadas por projetos de “estetização” e “higienização” do centro da cidade.
Sabe-se que, ao narrar, o sujeito conta o que ocorreu, conta a interpretação do que
ocorreu e aquilo que ocorre na relação com o ocorrido, afinal esse é o processo da narração, e,
nesse processo entre a relação passado/presente, ele constitui sua identidade, como explicam
Vich e Zavala (2004, p.18, tradução nossa):
Muitos discursos orais são formas de memória coletiva através das
quais os sujeitos encontram fundamentos para constituir sua identidade
e repensar seu presente. A oralidade é uma das instâncias mediante as
quais as sociedades constroem um arquivo de conhecimento destinado a
interpretar e negociar o passado. Atualizadas em situações concretas,
algumas performances orais funcionam como rituais que cenificam as
experiências vividas e aspiram a intervir nas políticas da memória.

Conclui-se, portanto, que é importante, de uma forma ou de outra a intervenção do


grupo, que busca dialogar, sair dos muros da Universidade e deslocar-se para a comunidade
provocando as performances e o aparecimento e divulgação de novas narrativas desses
sujeitos tidos como periféricos.

O narrador como conselheiro


Os narradores com os quais convivemos semanalmente há mais de dois anos,
aproximadamente, possuem características singulares. No momento, serão dadas evidências
do narrador como um homem que sabe dar conselhos (BENJAMIN, 1994), utilizando, para
atingir esse objetivo, provérbios e metáforas, assim como outras expressões que transitam
entre oralidade e escrita.
Gerard Genette em Discurso da Narrativa (2002) distingue vários tipos de narrador,
mediante o seu lugar na diegese. O narrador autodiegético é aquele que narra as suas próprias
experiências como personagem central da história. É o tipo que nos interessa para classificar
os narradores da Restinga, porque, indubitavelmente, eles são protagonistas de suas histórias.
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Ainda quanto à classificação, o autor João David Pinto Correia (1993, p. 66) divide a
Literatura Oral Tradicional em macroconjuntos. Dentro desses conjuntos, nomeia-se um
subconjunto de composições de caráter prático-utilitário, onde se classificam provérbios,
sentenças, ditos e expressões e estereotipadas como práticas de sabedoria. Por conseguinte,
muitas das narrativas da Restinga poderiam configurar nessa metodologia classificatória
porque as mesmas estão repletas de expressões como provérbios cristalizados ou
reformulados, ditos, ditados, além de fazerem uso da linguagem poética, por meio do uso de
metáforas.
Concordamos com a perspectiva de Benjamin (1994, p. 200) que salienta a qualidade
inata do narrador, a de saber aconselhar:
A narrativa, ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma
dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma
de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar
conselhos. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem
um nome: sabedoria.

Da mesma forma, nossos narradores são homens e mulheres que, por meio de suas
experiências de vida, experiências essas calcadas em luta, seja por direitos individuais ou por
lutas da coletividade, não desejam calar-se e acomodar-se, querem ser ouvidos, são desejosos
de apoderar-se da palavra e, por intermédio dela, tentar modificar o ambiente que os circunda.
Seus conselhos não serão transmitidos apenas pela palavra, como o exemplo do uso dos
provérbios, mas também pela narração de suas ações e, principalmente, por intermédio de
ações diárias na coletividade.
Além disso, os narradores criam expressões muito características. Em “As crianças
não são guanxuma” (Diário de Campo 08/11/07 – Alex Pacheco), o narrador utiliza uma
metáfora referindo-se às crianças, que não são plantas tal qual a guanxuma, que se cria
sozinha, elas precisam ser educadas por alguém. Alex salienta também a falta de
protagonismo dos pais, pois, conforme suas palavras: “o ser humano precisa ser construído,
desde a sua concepção no ventre da mãe até depois de adulto mesmo”.
Seguindo essa linha, destaca-se outro exemplo: “Têm pai, têm mãe, elas não nasceram
no asfalto” (Diário de Campo 08/04/08 - Beleza). Essa expressão elucida a situação das
crianças moradoras do bairro, cujos pais, geralmente, não se responsabilizam pela sua
educação, delegando a totalidade dessa intervenção para a escola pública.
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Ainda com relação à educação infantil, Beleza cita que as crianças necessitam “Entrar
dentro da panela e não ficar na borda” (Diário de Campo 15/07/08 - Beleza), expressão
utilizada como sinônimo de exclusão. As crianças necessitam receber uma educação de
qualidade para não serem excluídas, portanto utiliza a palavra panela como representação para
sistema. É visível sua inquietude quanto à problemática das escolas públicas no bairro: “O dia
que tu for dono do teu nariz, tu não bebe água na orelha de ninguém” (Diário de Campo 17 ou
07/08/08 - Beleza). O narrador emprega novamente uma metáfora para propagar seu desejo
de autonomia para as crianças da comunidade, a metáfora “tu não bebe água na orelha de
ninguém” representa, neste contexto, a independência do sujeito.
Segundo Bakhtin (1986, p. 95), “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ideológico ou vivencial.”
Evidencia-se, nessas expressões metafóricas, a vivência e também a maneira de pensar dos
narradores. As metáforas são figuras de linguagem que transpõem o significado de um termo
para o outro em virtude de uma analogia. Nos exemplos citados, as metáforas são construídas
utilizando-se elementos tanto do meio urbano - “asfalto”, como elementos de meio rural -
“guanxuma”, também fazem parte analogias com partes do corpo, como “orelha” e “nariz”,
por exemplo. As construções aqui citadas demonstram o poder criativo dessas pessoas, a sua
sabedoria de dizer as coisas.

Os provérbios
Além das formas metafóricas criadas pelos narradores, estes empregam o provérbio na
sua forma cristalizada. Constata-se também a recriação dessas formas e, ainda, a construção
de outras formas proverbiais, refletindo, desse modo, a vida social do ambiente comunitário
em uma linguagem muito particular.
O provérbio, muito embora seja conhecido por muitos em nossa sociedade, enfrenta
uma dificuldade imensa quando da sua definição. Todavia, é feita uma pequena elucidação de
alguns dos conceitos vigentes para uma maior compreensão a seu respeito neste contexto.
Conforme Lima (1974, p. 14), observa-se o seguinte:
A armadura simples do provérbio permite, por conseguinte, que ele seja
manejado com facilidade pelo falante; sua formação poética promove a
sua retenção; a sabedoria que contém, sua aplicação a um número
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indefinido de situações. Pelo provérbio, com efeito, é todo um saber


comunal que, elipticamente, se precisa e condensa.

Como veremos a seguir, muitas definições possuem traços em comum. Conforme


consta no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2001, p. 2321), o provérbio é uma
“frase curta, de origem popular, com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito
a respeito da realidade ou uma regra social ou moral. Provérbio, adágio, dito, ditado, rifão,
máxima.” Também Helena Duarte (2006, p. 32), após muitas pesquisas, define assim o
provérbio: “um enunciado cristalizado, pertencente ao patrimônio lingüístico, mas de autoria
anônima, transmitido oralmente, ao qual subjaz uma verdade de caráter geral e cuja
autonomia sintática permite a sua conexão com as múltiplas situações em que se aplica.”
Logo, sabemos que o provérbio é considerado um texto tradicional como os mitos e os
símbolos. Possui inúmeros traços que o definem: origem remota e anônima, conteúdo
metafórico, caráter diacrônico, valor semântico de verdade universal. Seu caráter rítmico e sua
formulação facilitam a memorização, como elucida Walter Ong (1998, p. 45-46) nessa
passagem:
As fórmulas ajudam a implementar o discurso rítmico, assim como
funcionam, por si sós, como apoios mnemônicos, como expressões
fixas que circulam pelas bocas e pelos ouvidos de todos[...] “Dividir
para conquistar.” “Errar é humano, perdoar é divino”.[...] Fixas, muitas
vezes ritmicamente equilibradas, expressões desse e de outros tipos
podem ser ocasionalmente encontradas impressas; na realidade, podem
ser “procuradas” em livros de adágios, mas nas culturas orais não são
eventuais, são constantes. Elas formam a substância do próprio
pensamento. Sem elas, este é impossível em qualquer forma extensa,
pois é nelas que consiste. Nessas culturas orais, a própria lei está
encerrada em adágios formulares, provérbios, que não constituem
meros adornos jurídicos, mas são, em si mesmos, a lei.

Ainda, Maingueneau (1989, p. 101), por intermédio de sua perspectiva linguística,


assevera que o indivíduo, ao utilizar o provérbio, “toma sua asserção como o eco, a retomada
de um número ilimitado de enunciações, anterior do mesmo provérbio”, como vemos:
O provérbio representa um enunciado limite: o “locutor” autorizado que
o valida, em lugar de ser reconhecido apenas por uma determinada
coletividade, tende a coincidir com o conjunto de falantes da língua,
estando aí incluído o indivíduo que o profere. Este último toma sua
asserção como o eco, a retomada de um número ilimitado de
enunciações, anteriores do mesmo provérbio.
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Na literatura, muitos escritores bebem da fonte da oralidade e utilizam-se de ditos,


provérbios e expressões populares. José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, é um deles, e,
para tanto emprega em sua obra, em um corpus de nove romances, mais de 500 formas
proverbiais na sua forma fixada ou re-escrita. Em O Homem Duplicado (2008), o narrador
fala explicitamente sobre o ditado em dois momentos: “Diz a sabedoria popular que nunca se
pode ter tudo” (2008, p. 95) e “como o ditado antigo sabiamente ensina” (2008, p. 168). No
caso dos romances do escritor, ele se apropria dos ditados populares captando “as imagens
retiradas do palco do mundo, recuperando, assim, o que está oculto [...] logo o povo e a sua
linguagem” (DUARTE, 2006, p. 23).
Em contrapartida, o narrador Alex Pacheco, que é um dos protagonistas no “palco do
mundo”, serve-se do provérbio cristalizado, porém recriando sua forma original, “O sol
nasceu para todos e a sombra para poucos”. Utilizou-se do ditado cristalizado em uma
narrativa onde questiona sobre as poucas oportunidades que uma pessoa que não teve a
chance de estudar enfrenta. Desse modo, reformula o provérbio utilizando, para isso, a
primeira oração no original e acrescentando outra oração para complementar sua ideia inicial.
A primeira oração reforça a idéia de igualdade entre os homens, porém a crítica se configura
na segunda oração, onde está implícito o privilégio de apenas alguns dentro da sociedade.
Esse provérbio, inclusive, faz parte da decoração de um banco na casa do Beleza (Figura 01).

Figura 01 – Inscrição do provérbio no banco.

Em “Quando o filho é bonito, todo o morro é pai”, vê-se o provérbio “Quando o filho
é bonito, todo mundo é pai” recriado, ocorre uma substituição lexical, mudando-se a palavra
“mundo” para “morro”. Nas narrativas da Restinga, embora existam morros no bairro, eles
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não são habitados, ocorrendo, algumas vezes, uma analogia entre o bairro e o morro,
remetendo-nos a um espaço físico associado às ideias de exclusão e pobreza.
Note-se assim que, nos exemplos ora trazidos, tanto por intermédio da literatura como
da oralidade, denota-se o caráter universal e democrático das expressões proverbiais, que,
nascidas na oralidade, viajam através do tempo e das consecutivas gerações, ora voz, ora letra,
todavia, sem perder a sua forma e força.

Expressões cristalizadas
Ao reler o diário de campo lembrei-me do conto Os cabelos da China, do livro Contos
Gauchescos, no qual o capitão fala para Blau Nunes: “o ruivo não é trigo limpo!” (2005, p.
65); como se vê no recorte do conto citado:
(...) Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho,
rematando as suas tramas.
O capitão montou.
— Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, conforme
chegar, carrego. Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, para eu
saber. Blau!... não cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...
E desandou por entre as árvores. (...) (LOPES NETO, 2005, p. 65)

Sabe-se que Lopes Neto (1865/1916) trouxe a voz dos gaúchos para o texto,
valorizando dessa maneira a história do gaúcho e as suas tradições populares. A expressão
ressaltada “Não é trigo limpo” (Diário de Campo 01/04/08 - Beleza) também é ouvida na voz
dos narradores da Restinga, neste caso, na voz sempre presente do Beleza. Essa expressão é
resquício da cultura do interior do Rio Grande do Sul adquirida pelo nosso narrador, pois ele
nasceu em 1950, em Santo Antônio da Patrulha, onde passou sua infância e adolescência. A
influência da tradição gauchesca também pode ser notada na inscrição “Quem não quer
barulho, não amarra os porongos nos tentos.” (Figura 02) feita por Beleza no banco de sua
casa.
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Figura 02 – Expressão gauchesca

Diz-se de uma pessoa que não é “trigo limpo” quando não é confiável. Nesse contexto,
o narrador Beleza critica um político. No conto de João Simões Lopes Neto, ele captou da
oralidade suas histórias. Já nosso narrador absorveu a citada expressão de sua experiência
vivida.
Faz-se necessário citar aqui que a ideia de “circularidade da cultura”. Carlo Ginzburg,
(1987, p. 26) em sua obra O queijo e os vermes, foi inspirada na teoria de Bakhtin para
dissertar sobre Menocchio:
A impressionante convergência entre as posições de um desconhecido
moleiro friulano e as de grupos de intelectuais dos mais refinados e
conhecedores de seu tempo repõe com toda força o problema da
circularidade da cultura formulado por Bakhtin.

Na comunidade, não há um Menocchio de Ginzburg (1987) nem um Rabelais de


Bakthin (1987). Contudo, o termo circularidade da cultura, auxiliar-nos-ia a explicar esse
trânsito da oralidade para a escrita, da escrita para a oralidade. Contudo, dificilmente algum
teórico poderá afirmar categoricamente a origem do termo “trigo limpo”.
Roger Chartier (2003, p. 151) argumenta que as culturas operam em uma lógica de
“bifurcação” e de “apropriação”. Na bifurcação, são separadas as culturas, na apropriação,
observam-se as trocas. Explicita que, durante muito tempo a cultura popular poderia ser
definida pelo
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contraste com o que ela não era, a saber, a cultura letrada e dominante;
que era possível caracterizar “popular” o público de certas produções
culturais; que as expressões culturais podem ser tomadas por
socialmente puras e, para algumas dentre elas, como intrinsecamente
populares.

Em seguida o autor contradiz essas ideias vigentes e assegura que a literatura popular
“não é radicalmente diferente da literatura das elites, que impõem seu repertório e seus
modelos, elas são partilhadas por meios sociais diversos que não são exclusivamente
populares.” (2003, p. 151) As culturas são, simultaneamente, “aculturadas e aculturantes”. A
hierarquia das classes ou dos grupos dominantes não corresponde a uma hierarquia paralela
das produções e dos hábitos culturais.
Ainda na perspectiva de Chartier (2003, p. 153), o autor afirma que, para compreender
a cultura popular necessitamos
situar nesse espaço de afrontamentos as relações estabelecidas entre os
dois conjuntos de dispositivos; de um lado, os mecanismos da
dominação simbólica que visam a fazer reconhecer pelos próprios
dominados as representações e as consumações que, justamente,
qualificam (ou melhor, desqualificam) sua cultura como inferior e
ilegítima; de outro, as lógicas específicas à obra nos empregos, usos,
maneiras de fazer seu o que é imposto.

Por conseguinte, nas narrativas orais, os narradores contemporâneos apropriam-se dos


modelos que lhes são impostos, pela autoridade, pelo mercado, pela mídia, enfim, pelos
poderes ou pelos grupos dominantes, contudo inscrevem sua própria coerência. Desse modo, a
“vontade de inculcação dos modelos culturais não anula jamais o espaço próprio de sua
recepção, uso e interpretação.” (CHARTIER, 2003, p.156). É relevante destacar que a prática
fundamentalmente humana de construção da significação não desvanece em um mundo cada
vez mais circundado pelas coisas e pelo consumo.
A antropóloga Luciana Hartmann (2007) realiza um trabalho de recolha de narrativas
orais na fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai. Utiliza como categoria de classificação a
ideia de conflito baseada nas designações presentes na narrativa como pelea, luta, problema.
A autora (2007, p. 98) ressalta, no entanto, que o conflito “é aqui pensado como algo que
participa da vida social no seu cotidiano e não é apenas como uma situação fora da
normalidade.” Essa “categoria conflitiva” pode explicar as expressões que serão mostradas
daqui em diante, como “É um dois de paus” (Diário de Campo 01/04/08 - Beleza). “Dois de
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paus” é uma expressão que designa algo que não tem nenhuma utilidade, apenas uma
presença vazia em sua ação. É nesse sentido que Beleza refere-se aos oficineiros, aos
pequenos projetos culturais existentes, que abrangem apenas um pequeno número de
beneficiários, não dão conta da totalidade das necessidades da comunidade.
Segundo Hartmann (2007), nos relatos dos contadores fronteiriços, muitos se
afastaram, quando ainda eram jovens, do núcleo familiar, e esse é um dos elementos que
compõem o ethos desses sujeitos. Comparando-se os narradores da Restinga com os
narradores da fronteira, ambos possuem essa particularidade, vieram de diferentes lugares do
estado e até do país. O termo fronteira faz-nos refletir sobre um limiar, um lugar entre dois
lugares, mas que não pertence a nenhum dos dois, assim também é a periférica Restinga, um
lugar que não está associado ao centro, está à margem, mas se apropria de elementos do
centro.
Bourdieu (1998) nos diz que o espaço social e as diferenças que nele se desenham
tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida. Esses estilos são os
produtos sistemáticos do habitatus que se tornam sinais de distinção social. Como podemos
ver na perspectiva do autor (1998, p. 164):
A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se (material
ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou privados) que se
encontram distribuídos, depende do capital que se possui. O capital
permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis, ao
mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis [...] a
proximidade do espaço físico permite que a proximidade no espaço
social produza todos os efeitos facilitando ou favorecendo a
acumulação de capital social. [...] Inversamente, os que não possuem
capital são mantidos à distância, seja física, seja simbolicamente, dos
bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas
ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de capital
intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.

Em Hartmann (2007), os narradores são o personagem principal de suas histórias, a


pessoa do contador parece constituir-se a partir de eventos emblemáticos ocorridos ao longo
de sua vida, que lhe dão singularidade especialmente porque ocorrem fora do grupo de
origem. No caso de nossos narradores, suas narrativas marcam sempre suas lutas dentro da
comunidade. Talvez porque estejam contando para os pesquisadores, ou ainda porque sabem
que estamos gravando e que, portanto, serão vistos e ouvidos pela comunidade.
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Dando continuidade à exemplificação da “categoria conflitiva”, damos outros


exemplos para melhor elucidar essa abordagem. Em muitas narrativas, são relatadas as lutas
da comunidade por melhorias para o bairro (seja para o transporte, seja para as áreas da saúde
e da educação). Evidenciam-se expressões como “Vou chamar ele na rasteira” (Diário de
Campo 01/04/08 - Bolívar), que significa chamar alguém para a briga. Assim como “Na
Restinga ninguém leva pra compadre” (Diário de Campo 18/09/06 - Beleza), que quer dizer
que, na Restinga, não se deixa uma provocação sem resposta. Quando aconselha uma vizinha
a usar a panela - “Panela tem asa prá que?” (Diário de Campo 06/09/07 - Beleza), o morador
refere-se à violência doméstica, pois a mesma panela que serve para cozinhar e alimentar
também pode servir para a mulher se defender quando o marido utilizar a força física.
Com relação à educação, temos os seguintes exemplos, neste caso, de uma metáfora
“Não vai dar pontapé no escuro” (Diário de Campo 11/03/08 - Beleza), que se refere a um
conselho para as crianças. Elas necessitam de uma educação de bom nível para não dar
“pontapé no escuro”, significando ficarem sem opções de escolha no futuro. Segundo Lakoff
e Johnson (1980), “[...] a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na
linguagem, mas também no pensamento e na ação [...] faz parte de nosso sistema conceitual”
(1980, p. 45). Ainda segundo os autores, a maneira como pensamos, nossas ações diárias e
também nossas experiências são uma questão metafórica.
Já neste outro exemplo - “Só faltou me chamar de doce de coco” (Diário de Campo
11/03/08 - Beleza), o contador elucida uma história na qual ocorre um desentendimento com a
professora da escola, quando fazia uma oficina. Nesse caso, o “doce de coco” seria uma
ofensa e não uma forma elogiosa. Em outro momento - “Professor, se arreganha os dentes,
eles (os alunos) pulam em cima” (Diário de Campo - 07/08/08 - Beleza) - o assunto é como o
professor deveria agir com os alunos, não podendo ser muito complacente.
Vê-se aqui a expressão “Não dá para fazer ouvido de mercador” (Diário de Campo
08/07/08 - Beleza), que significa fingir que não escuta. Nesse caso, é utilizada referindo-se à
escola e à educação, que não funciona nas escolas públicas do bairro, ou seja, a escola não é
engajada com a comunidade.
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Figura 03 – Inscrição da quadra de António Aleixo na camiseta.

A quadra original é do poeta português António Aleixo (1899-1949), que é, em


Portugal, considerado “o poeta do povo”. O autor foi cauteleiro, pastor de rebanhos, cantor
popular de feira em feira, enfim, um homem do povo possuidor de uma sabedoria oriunda da
vida empírica, e não de conhecimentos acadêmicos. A seguir a quadra original e a inscrição
na camiseta:
Quem trabalha e mata a fome Quem come o pão que tem,
Não come o pão de ninguém; Não come o pão de ninguém;
Quem não ganha o pão que come Mas quem come além do que tem,
Come sempre o pão de alguém. Come o pão de alguém.
(Quadra de António Aleixo) (Inscrição na camiseta)

Como vemos, Beleza a reescreveu: “Quem come o pão que tem, não come o pão de
ninguém, mas quem come além do que tem, come o pão de alguém.” (fotos de 17/03/2008).
Da quadra original, utilizou apenas o segundo e quarto verso, porém respeitando a rima
alternada ABAB, que é uma das características da obra de António Aleixo. Essa inscrição faz
parte de uma camiseta que Beleza usa, e também de um banco onde pintou as inscrições sobre
os provérbios, como vemos na figura abaixo:
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Figura 04 – Inscrição da quadra de António Aleixo no banco.

A quadra contida e sentenciosa de António Aleixo, assim como o provérbio, diz ou


sugere alguma verdade, “num mínimo de palavras e com um máximo de eficácia.”
(BARRENTO, 2005, p. 7). Talvez essa seja a razão pela qual a linguagem parêmica é
utilizada pelos narradores: por trazer esse estatuto de autoridade e de verdade geral, ao mesmo
tempo exime da responsabilidade pela verdade afirmada e, por outro lado, assegura-lhe algo
que está no mundo para dar valor e um sentido maior ao que diz.
Nota-se que o narrador Beleza não apenas apropria-se dos termos cristalizados, dos
provérbios, dos ditos e das expressões, como também das quadras portuguesas. Sua vontade
de expressar-se é tamanha que não importa o meio pelo qual irá divulgar suas ideias e seus
princípios. Talvez esse diálogo com a literatura tenha nascido sob a influência de sua avó, que
lia em voz alta para os netos perto do fogão à lenha. Ela ensinava que “tem que escutar as
pessoas” (Diário de Campo 18/09/2006 - Beleza). A escuta é uma das partes essenciais para
que ocorra o diálogo.
Por conseguinte, seja pela fala (voz), no momento das narrativas, seja pela inscrição
(letra) na camiseta ou no banco, sua voz é sentida em todos esses momentos plurais. Todos
esses itens são importantes para que se compreenda o processo de constituição da
individualidade desses narradores da comunidade periférica, pois “constituir-se como sujeito,
comporta a organização da própria experiência.” (HARTMANN, 2007, p. 96).
Pode-se observar que, no momento da gravação, quando os narradores têm o poder da
palavra, quando eles têm a oportunidade para dar o seu testemunho e ser ouvidos, é uma
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ocasião que possuem para levar sua experiência da esfera privada para a esfera pública, eles,
nesse momento, também podem se explicar, como nos esclarece Bourdieu (1998, p. 704):
Uma ocasião também de se explicar, no sentido mais completo do
termo, isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos
e sobre o mundo, e manifestar o ponto, no interior desse mundo, a partir
do qual eles vêem a si mesmos e o mundo, e se tornam compreendidos,
justificados, e para eles mesmos em primeiro lugar.

Considerações finais
Como se pode observar, ao longo do presente relato, tentamos demonstrar o caráter
criativo de nossos narradores por intermédio de sua performance ao contar-nos histórias de/na
vida. Eles empregam em suas narrativas provérbios, metáforas e expressões que estão no
mundo, contudo dando a essas declarações um tom singular e individual. É muito importante,
que os professores aproximem as culturas orais e eruditas, a fim de proporcionar ao seu aluno
a significação, ressignificação do aprendizado e o prazer de aprender. Principalmente, nas
classes mais populares, se os professores iniciassem os estudos a partir da oralidade, talvez os
alunos não se sentissem tão excluídos, partissem do universo do aluno, onde ele está inserido,
na fala cotidiana. Por outro lado, acredito ser fundamental também o diálogo com a
comunidade. Sem sombra de dúvidas, o mais enriquecedor de tudo, foi o contato com os
narradores, a experiência e o aprendizado, que somente na vivência é possível obter.
Assim, o narrador oral urbano, que se evidencia aqui, tem a urgência de se fazer
escutar, não deseja falar de lendas de um passado distante, deseja sim falar de suas próprias
lendas, em que é protagonista de sua história. Para essas pessoas da Restinga, faz-se
necessário narrar suas histórias de luta por melhores condições na comunidade, narrar suas
ações diárias para constituírem-se como sujeitos, cidadãos, donos de seu próprio destino.
Revelam-se, assim, por meio das narrativas épicas de Beleza, dos poemas de Jandira, dos
poemas de Alex, suas vozes não desejam se calar seja por intermédio da escrita (letra) seja da
oralidade (voz), esses sujeitos querem o direito à palavra.
Narrar, portanto, faz parte do viver, é a vida. Assim, a narrativa se faz presente na
música, no cinema, na dança, no romance e também entre os moradores da Restinga. Onde há
o humano, há o ato de narrar. Por conseguinte, há a necessidade de se ter um olho no texto,
mas principalmente um olhar mais atento na vida, na vivência, obra-prima em si.
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BOI ROUBADO: TRADIÇÃO DO TRABALHO EM FESTA

Daiane de Araújo França/ UNEB

Lúcia Maria de Jesus Parcero/ UNEB


dainane2006@hotmail.com

Resumo: O projeto em andamento, intitulado Boi roubado: tradição de trabalho em festa é


realizado em municípios da região sisaleira que mantêm a tradição cultural do evento “boi
roubado”. Tem o objetivo de conhecer as atividades socioculturais desta região,
especificamente por meio da análise dos recursos linguísticos performáticos (códigos
especiais, linguagem figurada, paralelismos e/ou traços paralinguísticos peculiares e formas
de apelo à tradição) em suas manifestações estéticas performáticas nas cantigas de trabalho
desse evento. Propõe-se analisar estes aspectos com base nos pressupostos teóricos da
Sociolinguística qualitativa aliados aos conceitos de performance e arte verbal desenvolvidos
por Zumthor (1993) e Genette (2001, apud Farias Júnior, 2004). Partes dos dados para análise
são extraídas de contextos e práticas sociais adquiridos por meio de entrevistas, pesquisas,
gravações e a observação do evento. Dessa forma, todas as informações trabalhadas
contribuem para o (re) conhecimento e divulgação da memória, da expressão oral e dos rituais
articuladores de uma ideologia que fortalece a cultura regional e a identidade cultural da
região sisaleira.

Palavras chave: boi-roubado; festa; trabalho; linguagem; performance.

Sabe-se que o estudo entre língua, sociedade e cultura se relaciona intrinsecamente até
ao ponto de, muitas vezes, tornar-se difícil separar uma da outra ou de estabelecer até onde
uma influencia a outra. Além dessas relações, outro fator entra em campo para introduzir
dúvidas quanto à linguagem utilizada por um determinado grupo sócio-cultural: é o fator
geográfico, regional ou diatópico. Ou seja: seriam todas essas variações próprias da língua,
condicionadas pela sociedade, ou teriam marcas de determinada cultura?
Diante disso, percebe-se que a linguagem é, por excelência, uma prática social, através
da qual a sociedade organiza seus conhecimentos, tornando-a uma possibilidade de fortalecer
e transmitir a cultura popular por meio da inclusão de todos na dimensão estética e social da
vida de tais indivíduos. Nessa perspectiva, a memória oral se torna uma forma de recompor
essa tradição idealizada no cotidiano que se encontra quase extinta na maioria das localidades
baianas. Nesses termos, a transmissão de um saber memorizado a ser resguardado se torna um
percalço para os estudos científicos. Isso porque não se pode conceber uma transcrição exata
do que se enunciou oralmente, visto que os recursos da escrita não readquirem o potencial da
voz e dos gestos empregados na transmissão oral. Assumindo esta perspectiva, Alcoforado e
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Albám (2001) apontam para os limites do trabalho do pesquisador, que só parcialmente e de


modo interpretativo consegue acessar o texto oral, cuja realização só acontece no momento da
performance.
Com o objetivo de analisar o uso da linguagem em suas manifestações estéticas de
vida social e cultural nas cantigas de trabalho da expressão cultural do “boi roubado” e ainda
observar como estes recursos linguísticos da performance se articulam na criação da
identidade cultural, procedem as seguintes hipóteses que serão confirmadas ao término da
pesquisa: a) Ao proceder a uma investigação etnográfica sobre as performances (gravadas e
observadas in loco) e sobre a produção textual (letra das cantigas) do evento “boi roubado”,
possivelmente poderá desenvolver-se um conceito de arte verbal que privilegie as dimensões
estética, social e cultural da linguagem. b) Dessa forma, pode tornar-se explícito que as
performances, entendida como o conjunto de recursos corporais e expressivos encenados no
momento da transmissão do conteúdo verbal, constroem um discurso integrativo da/ para
determinada comunidade através da apropriação de elementos simbólicos (ritmos, danças,
improviso etc.) da cultura popular nordestina. c) Ao revelar os elementos dessa cultura, esse
mesmo discurso possivelmente construirá um caráter de permanência e resistência que
caracteriza a manifestação do “boi roubado” com o seu meio social. Assim, criará uma
identidade cultural própria para as comunidades rurais da região sisaleira.
Assim, toma-se como objeto desta pesquisa a expressão cultural “boi roubado”, a qual
consiste numa manifestação coletiva que mistura trabalho agrícola, música e arte, além de
uma forte característica cênico-teatral e a presença de coreografias e rituais bem ao modo do
homem e da mulher camponesa. Segundo informações fornecidas por LPL21, o “boi roubado”
é uma forma de trabalho coletivo, visto que um grupo de amigos da comunidade ao
perceberem que o outro necessita capinar uma plantação e não tem condição para realizar o
serviço, dirigem-se, às vezes de maneira secreta, à roça do amigo. Sua denominação advém
dessa visita secreta a uma fazenda. Tudo acontece de madrugada, quando o proprietário é
surpreendido pelos fogos e tiros de espingarda em sua roça, e este cuida de matar boi ou
carneiros para alimentar os amigos/participantes da farra. A partir desse momento começa a
cantoria com canções na forma de parelha baseada em músicas típicas da localidade e após o
amanhecer inicia-se o trabalho. Enquanto os homens trabalham no campo, as mulheres fazem

21
Informante número 02 do corpus de entrevistas, o qual reside em Beira de Cerca, tem 73 anos de
idade e freqüenta os ”b ub ” ainda existentes na região.
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as comidas (café da manhã, almoço e janta) e os preparativos para a comemoração no final do


dia, em que cantam juntos a bandeira – ritual que envolve uma bandeira, um litro de cachaça,
um copo e toadas que louvam o dono da casa e à cultura. Depois dessa homenagem, os
lavradores fazem um samba (roda de sambadores divididos em parelha que entoam canções e
são respondidos por um coro de mulheres que batem palmas e sambam ao som do cavaquinho
e do pandeiro até a madrugada).
Para analisar os aspectos sociolinguísticos deste evento, assume-se a noção de
performance proposta por Zumthor (1993) e Genette (2001, apud Farias Júnior, 2004), entre
outros, que consideram a relação entre a arte verbal (a poesia) e o gestual (a performance), ou
seja, a performance como o único modo vivo de comunicação poética. Esta pesquisa adota
uma metodologia com base nos pressupostos teóricos da Sociolinguística na abordagem
qualitativa, que tem como foco de interesse os estudos relacionados ao tema da arte verbal.
Baseia-se ainda em recursos da Etnografia e da Antropologia, na qual a legitimidade é
alcançada mediante a descrição dos contextos e práticas sociais extraídos dos dados
linguísticos obtidos. Para o antropólogo Lévi-Strauss (1970, apud Silva, 1989), a
Antropologia é uma forma de conhecimento da heterogeneidade cultural; é ainda um modo
para situar-se no contorno dessa diversidade social e cultural e, por meio do qual, alarmamos
possibilidades para tornarmos verdadeiramente humanos. Quanto à abordagem qualitativa,
Neves (1996) afirma que desta faz parte a obtenção de dados descritivos mediante o contato
direto e interativo do pesquisador com a situação/ objeto de estudo. Fez-se uso da utilização
da história oral, através de entrevistas para obter subsídios sobre a história do “boi roubado” e
sua importância para a tradição nordestina, pois a história oral é:
[...] um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica,...)
que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que
participaram ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões
de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Trata-se
de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais,
categorias profissionais, movimentos etc. (Albertiv apud Silva, 1989,
p. 52).

Observa-se que a “memória” é fonte de informação para a história, pois possibilita


relatos do passado de um tempo vivido que certamente enriquece a compreensão do presente.
Para tanto, são realizadas visitas às comunidades que mantêm esse evento cultural, com o
intuito de conhecer suas origens, suas atitudes linguísticas e, principalmente, suas
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manifestações culturais, em especial, o evento “boi roubado”. Para melhor análise desses
aspectos, são selecionados os moradores mais velhos daquelas comunidades e os principais
participantes do evento para nos conceder entrevistas que versam sobre o desenvolvimento
deste evento, do trabalho agrícola, da convivência com a seca, do lazer, da escolaridade, da
religião, das crenças locais e ainda dos meios de sobrevivência – temas abordados nas
cantigas a serem analisadas que refletem o cotidiano nordestino. Estes informantes são
identificados neste trabalho por símbolos convencionados a fim de preservar a voz desses
sujeitos tão importantes para a realização desta pesquisa. Tais dados são gravados e
analisados através de transcrições grafemáticas, além de termos fotografias e filmagens como
complemento e ilustrações deste trabalho. Esse estudo postula, a partir de uma investigação
etnográfica, sobre as cantigas orais e sobre suas performances gravadas em vídeo e
observadas in loco, que este grupo constitui ao ser influenciado em suas ações performáticas
em suas composições musicais por elementos e ritmos de seu meio sócio-cultural,
expressando assim, o cotidiano do nordestino, suas crenças, seus ritos, sua cultura.
Esse trabalho tem em vista apreender a diversidade cultural que envolve o cotidiano
dos trabalhadores rurais da região sisaleira, em específico as cantigas de trabalho que estão
presente no evento “boi roubado”, as quais apontam fortes vestígios de um processo de
resistência cultural ao intenso trabalho realizado no campo, sinalizando ainda a prática
expressiva de manifestações de solidariedade e diversão construídas nessa experiência. Segue
um trecho transcrito grafematicamente dessas cantigas em análise que reflete a multiplicidade
cultural nordestina ao revelar uma abrangência de temas que figuram as cantorias, a
religiosidade e o estima á literatura popular dos cantadores.
Nas horas de Deus, amém
Nas horas de Deus, amém
Quando eu canto essa bandêra
Eu estimo e quero essa bandêra
Eu estimo e quero bem
Vamo dá um passinho pra frente
Para a gente encontrar
A senhora, Dona Gal
Que quêra me perdoá
Nosso amigo é véi
Que está aqui no lugá
Na fazenda de Zenóbio
E nóis queremo aqui está
Uma bandêra bem cantada
Faz quem tem amor chorá
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Eu agora vou dizer


Eu agora vou falar
Dona Gal me dê licença
Me dê o prato pra cá.

Frente aos estudos realizados podemos perceber que as cantigas de trabalho são
fundamentais para a continuidade da cultura dos trabalhadores, visto que são capazes de
expressar aspectos históricos, econômicos e sociais dos sujeitos envolvidos nesse evento.
Sabe-se que no Nordeste existem diversos tipos de cantigas, cada uma relacionada a
determinado serviço: são, em muitos casos, organizações coletivas que revelam muito acerca
dos costumes e práticas das comunidades. Esses cantos servem ainda de importantes fontes
históricas, pois versam os aspectos culturais, econômicos e políticos de determinado contexto
social; explanam o ambiente e o período em que foram produzidas, assim como a rotina dos
trabalhadores rurais. Por meio desse elemento lúdico concebido no dia a dia, é que
pretendemos compreender o papel desses trabalhadores como sujeitos culturalmente
históricos.
Nesta perspectiva, num estudo sobre as cantigas de trabalho é possível considerá-las
como um costume existente no espaço do homem rural, em que a ajuda mútua representa um
elemento constituinte da interação entre vizinhos e famílias de lavradores. Dentre essas
práticas destaca-se o mutirão, o batalhão, o boi roubado, que geralmente ocorrem na
agricultura de subsistência em um esforço conjunto com o objetivo de apressar tarefas
agrícolas e, ao mesmo tempo, promover a diversão dos seus participantes.

A festa na vida
De acordo com Guarinello (apud Jancso & Kantor, 2001) a busca por definições
paramentadas ao que poderíamos conceituar como festa é bastante vulnerável, flexível e
própria, esta na perspectiva de que tal definição pode ser influenciada por nossos valores e
nossa visão de mundo, pois um evento pode ser considerado uma festa para determinado
indivíduo, porém, para outro não é articulado da mesma forma. Contudo, o autor afirma que
alguns aspectos são integrados à classificação de um evento como sendo uma festa, como por
exemplo, a presença da manifestação coletiva especificamente popular, caracterizada pelo
riso, pela alegria transbordante, integrada ao cotidiano, à realidade na dimensão da realização
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das relações sociais. Nessa perspectiva, enquadramos o evento “boi roubado” como sendo
uma festa, já que seus participantes realizam sim um trabalho, porém sob as configurações
acima descritas, além de permanecerem durante todo o período de realização da tarefa
cantarolando, muito satisfeitos mesmo estando prestando um serviço não remunerado para o
dono da terra, até soltam fogos e, em contrapartida, o evento prossegue com comidas, bebidas
e muitas danças. Portanto, também exige preparação, planejamento, custos, e é montada
segundo regras peculiares por parte dos organizadores desta forma de ação coletiva.
Assim sendo, a festa é, portanto, um evento do cotidiano demandado por uma ação
coletiva efetivada em tempo e lugar definidos. Portanto, é um ponto de confluência das ações
sociais, cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. Dessa forma, é produto da
realidade social e, como esta, mostra ativamente essa realidade. Logo, festa se delimita a ser
um espaço aberto no viver social para a reiteração, produção e também negociação das
identidades sociais. O “boi roubado” corrobora com estas características por se fazer presente
a plena exaltação dos sentidos de forma unificada, não apagando, mas unindo os diferentes.
Ao analisar essa expressão cultural, é possível perceber que existem fortes laços de
solidariedade entre os seus moradores, além da capacidade de contarem sua própria história
de vida usando literatura de cordel. Portanto, festa, para o autor, é um trabalho social,
específico, coletivo, da sociedade sobre si mesma, a qual desperta afeto e emoções diferentes
para cada indivíduo. Contudo, ressalta ainda que o senso comum e a maioria dos cientistas
sociais denominam de “festa” o que representa um recorte arbitrário no interior de uma
atividade social, de uma forma de ação coletiva mais ampla e dessa forma envolve a produção
de memória e preservação da tradição.
Ainda é notável e comprovado pelos próprios informantes que essa tradição lúdica está
se perdendo nas novas gerações, pois os jovens, atualmente, buscam novas formas de
entretenimento e melhores meios de sobrevivência, como afirma o informante LPL:
- “Naquele tempo, o boi de roça aqui... era direto, todo
ano tinha cinco, agora... depois vai se acabano, a
mudernage qué sabê de dançá sozinho se esculambano...
se istragano, pulano que nem um lote de... sem cabeça”.

A escolha pelo tema adveio da necessidade de se compreender a importância e as


simbologias de um grupo de “boi roubado” e suas repercussões na cultura popular baiana,
destacando sua contribuição nas práticas linguísticas e culturais da região sisaleira. Esse
interesse originou-se nas visitas às comunidades de Candeal, ao ouvir relatos como o citado
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anteriormente sobre a perda dessa expressão cultural lúdica nas novas gerações, pois os
jovens atualmente, como afirma o participante LPL, buscam novas formas de entretenimento
e melhores meios de sobrevivência

A linguagem como prática social


Segundo Laraia (1986), o homem é possuidor de um tesouro de signos que tem a
faculdade de multiplicá-los infinitamente sendo capaz de assegurar a retenção de suas idéias
eruditas, comunicá-las para outros homens e transmiti-las para os seus descendentes como
uma herança sempre crescente. Assim sendo, a comunicação é um processo cultural, ou seja,
a linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não
tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral. Este fato
comprova que a linguagem é, por excelência, uma prática social, pois a sociedade faz uso
desse meio para organizar e transmitir seus conhecimentos.
Os assuntos relacionados à linguagem sempre despertaram o interesse da humanidade
que, desde a Antiguidade, já se debruçava sobre vários estudos a respeito de sua organização,
bem como de seus constituintes. Tais estudos continuaram e continuam, sob outras
perspectivas, a serem empreendidos até os dias atuais. No século XX, procurava-se investigar
a linguagem, abstraindo os elementos exteriores ao sistema lingüístico, preocupando-se em
separar os estudos da linguagem. Sem dúvida, a partir do desenvolvimento da Linguística
como ciência e da Antropologia, a língua passou a ser analisada cientificamente como
elemento da cultura. A cultura, de acordo com Montagu,
Representa a resposta do homem às suas necessidades
básicas. É o modo que tem o homem de colocar-se à
vontade no mundo. É o comportamento que aprendeu
como membro da sociedade. Podemos defini-la como o
modo de vida de um povo, o meio, em forma de idéias,
instituições, potes e panelas, língua, instrumento,
serviços e pensamentos, criado por um grupo de seres
humanos que ocupam um território comum (Montagu,
1972 apud Silva,1989).

Já a língua se apresenta, de acordo com Mattoso Câmara,


Como um microcosmo da cultura. Tudo que esta última
possui se expressa através da língua; mas também a
língua em si mesma é um dado cultural. Quando um
etnólogo vai estudar uma cultura, vê com razão na língua
um aspecto dessa cultura. Nesse sentido, é o fragmento
da cultura de um grupo humano a sua língua. Mas, como
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ao mesmo tempo a língua integra em si toda a cultura,


ela deixa de ser esse fragmento para ascender à
representação em miniatura de toda a cultura. E ainda
mais: como elemento de cultura, a língua apresenta o
aspecto muito curioso de não ser em si mesma uma coisa
cultural de per si, à maneira da religião, da organização
da família, da arte da pesca etc.; ela apenas serve dentro
da cultura como seu meio de representação e
comunicação (Mattoso Câmara, 1965 apud Silva, 1989).

Dessa forma, percebemos que língua e cultura são dois instrumentos inseparáveis. A
língua é um instrumento vivo e em constante desenvolvimento que bebe em fontes culturais e
expressa suas manifestações dinamicamente.

A performance e seus recursos linguísticos


Dessa forma, o “boi roubado” se apropria da expressividade oral para perpetuar
tradicionalmente seus rituais e cantorias, os quais articulam uma ideologia fortalecedora da
cultura regional e, ao mesmo tempo, conformista diante de fatos que geralmente não depende
do conhecimento humano, mas sim sublime. Bauman e Sherzer (1974) e Bauman (1977, apud
Farias Júnior, 2004), contestam que a arte verbal é uma manifestação de visão integrativa da
tradição e que faz uso da linguagem privilegiando suas dimensões estética, social e cultural.
Para Maingueneau (1995, apud Farias Júnior, 2004), os recursos performáticos contribuem
para concretizar e extrapolar a esfera do lingüístico e, consequentemente, traduzir a cultura da
região e da origem do grupo. Bauman (1977) classifica alguns recursos que são chamados por
ele de keys to performance, isto é, um conjunto estruturado de meios comunicativos diferentes
que assinalam a entrada ou o início de um acontecimento performático e que irão determinar o
modo como a performance é efetivada em conjunto com os recursos lingüísticos, são esses: a)
códigos especiais, que marcam a singularidade de um modo de fala e servem como recurso
para também se verificar as variedades lingüísticas que cada grupo social apresenta; b)
linguagem figurada, a qual permite que a criatividade conduza o conteúdo verbal em que a
intensidade expressiva e a habilidade comunicativa especial são centrais; c) paralelismo, que
traz a repetição com ou sem a variação das estruturas fônicas, gramáticas, semânticas ou
prosódicas que podem se combinar na construção de uma expressão servindo como um
dispositivo de entrada na performance, ou como realce da fluência da improvisação; d) traços
paralinguísticos especiais, como a entonação, a altura, a pausa e a velocidade. Segundo
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Bauman (1977), a concepção de John McDowell (1974) foi importante no sentido de mostrar
que esses traços são elementos chaves para a performance e que, por estarem escondidos por
trás dos códigos que conseguem ser expressos, revelam a clareza da performance como um
modo de fala; e) fórmulas especiais, que se constituem em marcadores de específicos gêneros
textuais tais como o conto e a cantiga que fazem uso de funções referenciais, as quais ainda
contribuem para retomar uma tradição, sendo algo que pré-existe um momento da
comunicação; f) apelo à tradição, uma maneira de sinalizar a suposição de responsabilidade
para fazer apropriado um ato comunicativo pela aceitação da prática passada como um padrão
de referência.
É através desta propriedade vocal em conjunto com as representações coletivas
comportamentais que estão intimamente ligadas ao cotidiano dos moradores que vai se
firmando/formulando a identidade do evento e, consequentemente das tradições deste povo do
semi-árido baiano, visto que, como afirma Hall (2005), essas identidades – entendidas como
um conjunto de caracteres culturais próprios de determinado grupo social – só adquirem
sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas.
No sentido de ratificar o que diz Duranti, (1997, apud Farias Júnior, 2004) que “a linguagem
deve ser entendida como uma prática cultural”, é que explicitamos as ações performáticas
(danças, cantorias) e a produção textual (poesias recitadas, letras de música, canções
populares e tradicionais etc.) que servem como uma possibilidade de traduzir a cultura da
região através do envolvimento de todos os participantes do evento na dimensão estética e
social da vida de tais indivíduos.
Diante do exposto, percebemos que as conexões entre festa e trabalho se mostram de
forma peculiar, visto que não desvincula o prazer da batalha pela sobrevivência; o corpo que
dança do coração que agradece e louva o canto festivo. É dessa forma que se dá continuidade
à tradição, a qual, por sua vez, depende das frágeis relações que se estabelecem nas lideranças
dessa prática cultural entre os mais velhos e os mais jovens, que desde cedo se incorporam aos
grupos, também por laços afetivos e familiares, mas que de certa forma já concebiam
inovação em diversos sentidos, principalmente no que se refere aos recursos da linguagem
que expressam e perpetuam nossa riqueza cultural.

Referências
: métodos, acervos, cartografias 142
Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8

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Contos populares brasileiros: Bahia. Recife: FJN, Massagana, 2001. Disponível em:
http://www.comissaobaianadefolclore.org.br/wp-content/uploads/artigos/artigo5.pdf. Acesso em 10
de dezembro de 2010, às 14h00min.

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006.

FARIAS JÚNIOR, Jorge França de. Um estudo sobre arte verbal: da performance do Cordel
do Fogo Encantado ao ethos da cultura popular do sertão do Moxotó em Pernambuco. Revista
dos Cursos de Pós-graduação, Campinas, 18 fev. 2004. Unicamp, Volume 10, p. 149-63.

HAAL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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portuguesa. São Paulo: FAPESP, 2001.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1986.

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Pesquisas em Administração. São Paulo: FEA – nº3, 2° semestre, 1996.

PASSOS, Mauro (org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

SILVA, Nélio Pereira da. Boi nunca morre, vive com a zabumba de ouro: um estudo sobre o
bumba-meu-boi do Monte Castelo. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e documentação de
História contemporânea do Brasil, 1989.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Trad. Jerusa Pires Ferreira & Suely Fenerich.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz
Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1983.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro &
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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CONTADORES DE HISTÓRIAS MIRINS:


Desafios da Oralidade e a Leitura na Rede Pública

Daniel D’Andrea22

RESUMO: Esta comunicação é um relato da experiência de realização do Projeto de Contar


Histórias, acontecido no município de Guarulhos (SP) no período de 2003 a 2009. Este relato
pretende socializar as experiências, desafios e descobertas, acontecidas no decorrer do projeto
que conseguiu organizar Semanas de Contar Histórias, Palestras, Oficinas, a realização do
projeto nas escolas, com a participação dos educadores, educandos e a comunidade como um
todo. Considerando-se a experiência mais emblemática deste projeto a formação de grupos de
crianças que narram histórias, sem ser lidas ou apoiadas em aspectos teatrais. No desenvolver
do projeto verificou-se o interesse crescente das crianças pela leitura e os livros, a partir da
compreensão do vínculo entre oralidade e escrita.

Palavras – Chave: Contadores Mirins – Arte-Educação – Políticas Públicas – Guarulhos –


Oralidade – Leitura.

INTRODUÇÃO
Estas experiências que começo a narrar aqui é uma tentativa de registro das atividades
do Projeto Contador de Histórias, iniciado na Semana de Educação em novembro de 2003
pela Secretaria de Educação de Guarulhos (SP), passando por diferentes interfaces até agosto
de 2009, onde ocorreram algumas transformações no processo de inauguração dos CEUs, na
atual gestão municipal.
A chegada de um governo democrático de características progressistas em 2001
permitiu implementar políticas públicas dedicadas às camadas populares dos bairros mais
afastados do município que aumentaram significativamente em número de habitantes nas
últimas quatro décadas, por causa da industrialização acelerada em Guarulhos, em
consequência, entre outros fatores, da sua posição privilegiada no início de importantes
rodovias federais, como as vias Dutra e Fernão Dias, assim como também devido ao seu
posicionamento estratégico em relação à construção do Aeroporto Internacional de Guarulhos,
aumentaram as fontes de trabalho em função da instalação de firmas dedicadas ao transporte e
logística, decorrentes da ativação econômica produzida pela instalação deste importante
aeroporto.

22
Are-Educador, recolhe contos de tradição oral , pesquisa contadores tradicionais e organiza grupos
de contadores mirins. Atualmente, na Secretaria de Educação de Guarulhos, SP.
narrarpopular@yahoo.com.br
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Este crescimento econômico permitiu a Guarulhos colocar-se entre os dez primeiros


lugares em orçamento do País, sendo, na atualidade, a segunda cidade em população do
estado de São Paulo, com um milhão e trezentos mil habitantes aproximadamente, segundo o
censo de 2010.
O novo governo municipal fez um forte investimento na área educacional para levar às
regiões mais afastadas os serviços públicos necessários de infraestrutura, esgoto, saúde,
transporte e educação.
No plano diretor do governo municipal implementou-se um ambicioso projeto de
construção de escolas que, em poucos anos, conseguiu triplicar a rede municipal de ensino, ao
criar novas escolas de ensino fundamental assim como iniciar o projeto municipal de
educação de jovens e adultos.
Estas rápidas transformações, alicerçadas no Projeto Político Pedagógico, permitiram
firmar uma política pública destinada a desenvolver projetos de “Artes” na rede pública
municipal de Guarulhos. Como uma das políticas mais importantes de sua ação pedagógica
não apenas incorporando-a ao currículo como também levando uma equipe de arte-
educadores das linguagens: artes plásticas, canto-coral, contador de histórias e teatro, nas
salas de aula da educação infantil, ensino fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA),
assim como cursos de formação permanente para os educadores da rede que aumentaram
significativamente nesse período.
No decorrer da história da Arte-Educação no Brasil desde o período colonial até os
dias atuais, observa-se que a arte na educação era destinada às elites e com forte influência de
padrões culturais europeus, transmitida aos educandos, sem considerar que a arte e todas as
suas formas de expressão, como a música, poesia, pintura, narrativas de histórias, são
produções culturais. Esta postura fortalecia uma concepção de arte discriminadora relacionada
ao modelo prevalente na época de grupos étnicos considerados superiores.
A arte destinada à educação das camadas populares é até hoje fundamentada na
concepção de educação para o trabalho, desde o início do ensino do desenho técnico, com a
finalidade de ser utilizado posteriormente a serviço das indústrias, e a formação de colégios e
cursos também técnicos, devido à forte influência norte-americana, antes e após o final da
ditadura militar no Brasil.
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Existe ainda o embate entre a educação para a utilidade e praticidade aplicável ao


trabalho, assim como o ensino da arte, com suas diferentes linguagens, para sensibilização e
formação global do ser humano.

HISTÓRICO DO CONTAR HISTÓRIAS NO BRASIL


Contar histórias é uma das atividades mais antigas do ser humano. No início da
humanidade, o contar histórias era importante momento de transmitir os mitos, a memória, a
saga da tribo, os códigos de conduta.
Estas narrativas iniciais de tradição oral estavam mais relacionadas ao sagrado.
Gradativamente, a narrativa foi se diversificando e nascem os diferentes gêneros orais: mitos,
lendas, fábulas, contos maravilhosos, etc.
O Brasil, País de tamanho continental e de múltiplas matrizes étnicas, tem uma
diversidade de narrativas num amplo leque de estilos e sotaques. Indígenas, africanos e
portugueses aportaram suas técnicas e procedimentos narrativos à construção de uma forma
de narrar tipicamente brasileira que, em forma sincrética, alinhavava os contos portugueses de
tradição oral trazidos pelos conquistadores aos que se somaram os mitos de nossos indígenas,
como Curupira, Caipora, etc. Os descendentes de africanos aportaram sua versatilidade
performática, que recuperaram e continuaram a tradição dos griotes africanos, verdadeiros
artistas da palavra e do canto.
O contador de histórias caboclas exerceu este ofício-arte, secularmente, com
diferentes objetivos: explicar origens, decifrar mistérios, condensar em forma poética os
grandes enigmas da humanidade, a formação de plantas, animais, montanhas, rios, a presença
de seres protetores da mata, das águas, entidades da escuridão, a luta dos heróis civilizadores,
a saga de personagens contestadores, a ordem social injusta.
Enquanto narrava, o contador explorava as próprias possibilidades de sua linguagem,
modificava o enredo, criava novos finais, enfim, interagia com seu público, contando histórias
fantásticas ou singelas, de pescarias ou caçadas. Este exímio artesão da palavra exercia seu
ofício em reuniões, festas, mutirões, velórios ou onde a circunstância precisasse de sua arte
popular como exemplo, experiência, advertência.
Na primeira metade do século 20, narradores populares e suas histórias inspiraram os
escritores desse período, como Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Lins do Rego, Mário
de Andrade, entre outros, que beberam da fonte inesgotável da tradição oral de nosso País.
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Como entender a existência de uma Velha Totonha na obra de Lins do Rego, sem o convívio
da oralidade do nordeste. Ou como conceber o universo mágico do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, sem o suporte da Tia Nastácia e do Tio Barnabé, depositários de relatos ancestrais
do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo.
Este histórico da presença do contador de histórias no imaginário e memória dos
moradores do município de Guarulhos, que possui uma secular herança caipira renovada por
sua vez nas últimas décadas pelo fluxo migratório de estados vizinhos e principalmente pela
chegada de novos moradores originários do nordeste brasileiro. Estes grupos humanos
possuem um rico acervo de histórias ouvidas em sua infância e adolescência. No entanto, no
espaço urbano em seu novo habitat, diminuíram os lugares e momentos para a narração de
uma boa história. Porém, os contos não desapareceram, apenas ficaram latentes na memória
cultural de uma grande parcela dos habitantes do Município, advindos do interior do Brasil.
Não apenas se contam poucas histórias para os pequenos nas classes sociais
despossuídas, como ainda nas famílias de crianças de classe média contam em raras ocasiões
histórias “de boca”, seus pais preferem levar as crianças em algum fim de semana a assistir
um contador performático em um “espetáculo” pontual que não cria vínculos afetivos e
expressa a “terceirização” do contar histórias nos dias de hoje.
Por este motivo, em nossos cursos de formação permanente para os educadores da
rede municipal de Guarulhos, enfatizamos a necessidade de valorizar a figura do contador de
histórias que marcou a infância dos educadores e dos pais das crianças da comunidade.
Nesta direção, foram organizadas diferentes coletâneas de histórias com os moradores
de nosso município para recuperar as histórias de tradição oral que por falta de ser contadas,
corriam risco de ser totalmente esquecidas.
O questionário apresentado logo abaixo auxiliou os educadores a compreender a
importância do contador de histórias que, de forma empírica, narrava em seus primeiros anos
de vida e influenciou profundamente de modo tal que nos dias atuais se faz necessária a
recuperação de seu estilo, repertório, detalhes das técnicas narrativas e do contexto onde
aconteciam os relatos.

CONTADOR DE HISTÓRIAS: ATO DE AMOR E RESISTÊNCIA CULTURAL

Nome do Contador de Histórias:____________________________


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Região de Origem:_______________________________________
Ano aproximado em que a história era contada:________________
Na época, o Contador teria quantos anos?_____________________
Qual era o título que o contador dava ao seu conto?_____________
(caso você não se lembre, dê um título a ele)

O narrador costumava contar outras histórias? Quais?


De Pedro Malasartes ( ) De Assombração ( )
De Reis e Princesas ( ) De animais ( )De São Pedro ( )
De Diabo ( ) De Saci ( ) De Curupira ( ) Causos ( )

Qual dado daquele conto que você não esquece?

Qual era a particularidade mais interessante do contador?

O Contador tinha algum jeito especial para chamar a atenção das pessoas, para iniciar e
finalizar as histórias do tipo era uma vez..., Pé de Pato, Pé de Pinto, quem quiser que conte
cinco... ou cantava uma música, dava uma risadinha, acendia o cachimbo e outros?
Comente:
O contador narrava em que lugar da casa?
No Quintal ( ) Próximo da Fogueira ( ) Na Cozinha ( ) Sentado na Cama ( ) Embaixo da
Árvore ( ) Na Roça ( ) Na Praça ( )
Quais outros lugares? ( )________________________

Ele contava em que momento?


Festas Religiosas ( ) Reuniões de Amigos ( )
Durante o trabalho () Mutirão ( )
Colheita ( ) ou qual outro momento?_______________________

Ele contava só para crianças ( ) Só para adultos ( ) Só para parentes ( )


Só para amigos ou colegas ( ) Para quem estivesse presente ( )
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Quando contava?
Quando chovia ( ) Quando acabava a luz ( ) Após o jantar ( ) Nas noites de frio ( )
No quintal nas noites enluaradas ( ) Em qualquer hora ( ) Ele contava sem ler ( )
Às vezes lia ( )
Após contar fazia comentários, tipo:
Moral da História, comentava algum fato, façanha, algo engraçado relativos aos personagens:
Vocês precisavam pedir ou ele contava espontaneamente?
Contava com a mesma voz, ou ficava mais fina, mais grossa, dava paradas, etc?
Tinha expressões ao rosto, piscava os olhos, dava risadinha, fazia caretas, imitações?
Fazia gestos com as mãos, braços, o corpo ou pés?
Duração dos contos: + ou –
Além dos Contos, ele sabia cantigas de ninar ( ) Adivinhas( ) Trava-línguas ( ) Simpatias (
) Cantigas de Roda ( ) Trovas ( ) Quais:
Além de Contador, ele era: violeiro, repentista, cantador, benzedor?
****
Nome do Participante:____________________________________
Nome da Oficina:________________________________________
Data da realização: / / Local:___________________________

Que aspectos deste trabalho lhes resultaram mais significativos

O Projeto Contador de Histórias se estrutura a partir desta declaração de princípios


acontecida na Semana de Educação, em novembro de 2003:

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS DE GUARULHOS


AOS LIVROS E ÀS HISTÓRIAS

I. Toda criança moradora ou em trânsito no município de Guarulhos, sem fazer


diferenças de cor, língua, idade, religião e outras, tem direito a escutar as mais
lindas histórias da tradição oral dos povos do mundo, em especial as do continente
americano e das diversas regiões de nosso País.
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II. Toda criança tem direito a pedir aos adultos a narrativa de contos a qualquer hora do
dia, sem desculpas de não saber contar ou eles estarem muito ocupados, mesmo
que seja pedido o mesmo conto sempre e reclamar se não for contado do mesmo
jeito, sendo permitido adormecer ou ficar desperto, sonhando durante a narrativa.
III. Todas as crianças do município têm direito a ouvir contos narrados por avós, tios,
vizinhos, faxineiras, merendeiras, guardas, diretoras, agentes de desenvolvimento
infantil, professores, arte-educadores, bibliotecárias...
IV. Uma vez por semana, meninas e meninos terão direito a que os pais desliguem a
televisão e outros aparelhos para lhes contar aquelas belas lendas e causos que
ouviram na infância e, também, lhes recuperar as brincadeiras da meninice e
construir-lhes pipas e bonecas de pano, entre outros brinquedos e brincadeiras.
V. Todas as crianças do município têm direito a que lhes sejam contadas ou lidas as
histórias dos livros recentemente adquiridos, seja de pano ou apenas de figuras,
com muitas ilustrações, letras e palavras novas, além de poderem manusear, ler em
dupla, de trás para frente, ler um pouquinho e passar para outra história, ver só as
ilustrações e ainda levar nos fins-de-semana, livros emprestados para sua casa para
curtir e valorizar livros e a leitura em família.
VI. Toda criança de Guarulhos tem direito à memória e histórias do próprio município, das
aldeias e tradições orais de nossos indígenas, da cultura e festas de nosso povo
negro, da participação e presença da mulher e da criança na construção da história
guarulhense. Todavia, deverá saber narrativas do ouro de Lavras, da fazenda
Candinha, das boiadas na Juscelino Kubitschek, das quintas de videira, próximas à
Rodovia Fernão Dias, do trenzinho da Cantareira, da carpição de Bonsucesso, da
construção da Via Dutra, da fábrica de pólvora nos Pimentas, da Fazenda Uma nos
terrenos do atual Aeroporto, de todos os caminhos velhos de tropeiros, que são as
atuais avenidas, dos veados e jaguatiricas da Cantareira, das lutas por melhorias
dos bairros, dos grupos musicais e artistas de Guarulhos e das inúmeras histórias
que, como experiência de vida, não devem se perder.
VII. Toda criança de Guarulhos tem direito a inventar suas próprias histórias, criar
novos finais nas velhas histórias, promover o casamento de Cinderela com Pedro
Malasartes, de criar um correio eletrônico entre Chapeuzinho Vermelho e o
Pequeno Príncipe ou uma conversa, via celular, entre o Saci-Pererê e a Loira do
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Banheiro e dar uma bolsa de estudos para a Cigarra para os cursos de Canto-Coral-
Cênico, Danças Brasileira ou outros, assim como montar seus próprios livros com
direito à edição artesanal e tarde de autógrafos.
VIII. Participar da Semana Guarulhense do Contar Histórias em que todo mundo deverá
contar histórias e também da Semana Guarulhense de Valorização do Livro e da
Leitura.

Porque contar é um ato de amor e resistência cultural!

HISTÓRICO DO PROJETO CONTADOR DE HISTÓRIAS


D’Andrea (2008, in: CARDOSO, 2008:103-106) conta sobre o percurso histórico, o
projeto Artes e Saberes do Contador de Histórias, teve início em setembro de 2002. Na etapa
inicial, constou de duas atividades básicas: contar histórias nos CEMEIs (Centro Municipal de
Educação Infantil) e duas oficinas para educadores.
O interesse despertado pela proposta pode ser confirmado no ano de 2003, pelo
numeroso contingente de educadores que participavam do projeto por meio das oficinas:
Narrando Histórias para os Pequenos, Contos de Animais e Ecologia, Radiografia dos
Personagens Infantis e Narrativas Populares em Projetos Educacionais. Nesse mesmo ano,
foi lida a Declaração dos Direitos das Crianças de Guarulhos aos Livros e às Histórias, na II
Semana de Educação realizada em novembro.
O ano de 2004 se caracterizou pela apresentação e participação de nossos projetos nas
edições do Fórum Mundial de Educação de São Paulo, Anhembi (em abril) e Porto Alegre
(em julho), em que foram apresentadas as experiências de Narrativas Populares e Memorial
da Família, respectivamente.
Nesse mesmo período, na Semana do Livro, foi lançado o Primeiro Concurso
Literário de Contos Infantis dos Educadores da Rede Municipal de Educação, cuja premiação
foi realizada em novembro durante a II Semana de Contar Histórias. Na Semana do Livro de
2006 foi entregue à Rede o livro resultante do concurso, intitulado Tecendo Novas Histórias.
No final de 2004, e com maior intensidade em 2005, implementou-se o projeto
Conhecendo Nossos Bairros, com participação de diversas escolas da rede municipal.
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Na saga do projeto Conhecendo Nossos Bairros, surgiu a necessidade de trabalhar a


identidade do Município e sua História, o que culminou com o oferecimento do curso
Construindo a História de Guarulhos. Este foi uma resposta à necessidade dos educadores
que trabalham no Município de começar a descobrir a riqueza da história local, superando
historiografias tradicionais com a inclusão de trabalhos de características acadêmicas e
atualizados e as vozes dos lutadores dos movimentos pela melhoria dos bairros.
No ano de 2005, por meio do projeto Narrativas Populares, pudemos construir a
recuperação e valorização da oralidade e cultura popular que nossos educandos da EJA
possuem.
Foram realizadas inúmeras rodas de contadores com os funcionários da prefeitura que
participavam do Projeto Servidor, assim como outras rodas em diversas escolas dos bairros de
Guarulhos. Estas tiveram continuidade com as ações dos professores e, fundamentalmente,
pelo trabalho do formador do projeto, Felipe Cabral, que direcionou e aprofundou a proposta
nos Núcleos de Educação de Jovens e Adultos, no atendimento às escolas municipais.
Realizamos narrativas de histórias no Centro de Incentivo à Leitura Luís de Camões
para crianças de nossa rede, assim como a organização de um grupo de Contadores Mirins
pertencentes à comunidade próxima ao CAIC do Jardim Cumbica.
Outro desdobramento auspicioso de nosso projeto foi a organização de um grupo de
contadores juvenis advindos das 5as., 6as. e 7as. séries da Escola Estadual Felix Porto, no
bairro dos Pimentas. A criação desse ativo grupo foi oportunizada pela reserva de vagas das
oficinas de formação permanente da rede estadual.
O projeto conta também com um grupo de contadoras formado por educadoras da rede
municipal, denominado Contos e Encantos de Guarulhos que, de forma discreta, realiza ações
nos centros municipais de educação infantil e escolas de ensino fundamental. Seus integrantes
são responsáveis pelos espaços de formação, pela realização de oficinas nas Semanas de
Contar Histórias e do Livro, pelos Conversando Sobre da V Semana de Educação. Esse
grupo, além das ações na rede, estuda e pesquisa a narrativa oral e cultura popular,
participando como convidado da Mostra de Contadores de Histórias organizada pelo SESC
de Sorocaba, em outubro de 2005.
Em 2006, houve a participação na Festa de São Benedito, em Aparecida do Norte
(SP), ocorrida em abril, na festa de tropeiros e violeiros de São Francisco Xavier ocorrida em
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junho. No dia 22 de agosto, Dia do Folclore, houve a apresentação do grupo na Fundação


Cassiano Ricardo, em São José dos Campos (SP).
Neste mesmo ano, iniciou-se um trabalho com o intuito de promover a integração
entre o Projeto de Contar Histórias e as ações do Programa Fome Zero de Boa Alimentação
por meio da participação na formação das cozinheiras da rede municipal de Guarulhos.
Em 2007, ocorreu a formação de quatro grupos de contadores mirins de escolas da
rede: Conta com Pimentas, Histórias da Rua 3, Florada das Olivas e Turma do Drummond.
Em maio do mesmo ano, houve a participação desses grupos de contadores mirins na
roda de contadores da Semana de Contar Histórias e do Livro. Em julho, a visita ao Museu da
Língua Portuguesa, em São Paulo. Em novembro houve a participação no Concurso de
Contadores Mirins.
Em janeiro de 2008, participaram da formação de início do ano letivo dos professores.
Em fevereiro houve a participação no lançamento do livro Histórias de Onça, de Ruth
Guimarães, no Zoológico de Guarulhos. Em maio, ocorreu a participação na roda de
contadores na Semana de Contar Histórias e do Livro. Em agosto, a participação no
lançamento do livro Histórias de Jabuti de Ruth Guimarães, na Casa dos Cordéis, em
Guarulhos, e a participação do lançamento do mesmo livro nos municípios de Sapucaí Mirim
(MG) e São Bento (SP).
Em abril de 2009, houve a apresentação dos Contos de Monteiro Lobato. Em
setembro, houve a apresentação cultural na Formação dos Educadores da Educação Infantil.
Em outubro, a apresentação dos grupos de contadores mirins na Semana do Professor.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO PROJETO


O Projeto Contadores Mirins nasceu de um desdobramento do projeto Contador de
Histórias, que surgiu a partir das reflexões significativas geradas nos cursos de formação
sobre a arte de contar, partindo de uma premissa de inspiração freiriana: "Ninguém liberta
ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". (PAULO
FREIRE, 1987), projetando ao tema da narrativa oral.
Comumente o adulto e o educador foram os outorgantes da linguagem, ou seja,
contavam e liam histórias de seu próprio gosto ou necessidade. Nossa prática no dia-a-dia
com a criança nos que elas não assimilam passivamente estes relatos. Às vezes se fascinam,
em outros casos, os rejeitam, sem maiores argumentos. Desta forma, nossos ouvintes
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começam a emitir opiniões, pedir a mesma história ou pedir para serem contadas outras
histórias.
Demoramos um tempo para compreender este processo dialético entre o contador e
seus ouvintes, para finalmente, compreender que além da simples narrativa de histórias ou
ações didáticas de promoção à leitura, precisávamos, com as crianças mais interessadas,
formar grupos de contadores mirins que, além de narrar as histórias propostas, também
queriam contar de sua família, contos populares, piadas, lendas urbanas, histórias bíblicas, um
repertório que não passava pela mediação do livro, porém, poderia aproximar estas à
descoberta do mundo da leitura.
O Projeto Contador de Histórias teve diferentes modalidades de atuação, sendo uma
das principais a formação de educadores, que, por sua vez, desenvolveram a proposta nas
diferentes áreas de atuação de ensino: EJA, Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos
(MOVA), Educação Infantil, Inclusiva e no Ensino Fundamental. Outra forma foi a narrativa
de histórias nos Centros de Incentivo à Leitura e o mais marcante como experiência foi a
realização do projeto nas escolas com a presença semanal de um arte-educador trabalhando as
questões da oralidade e a leitura diretamente com os educandos e educadores nas salas de
aula.
O contar histórias é uma atividade cultural e identitária a qual recomendamos ser
realizada de forma diária, ou seja, independentemente das atividades pedagógicas, da
chamada “hora do conto” ou de um projeto pontual temático do calendário escolar. A
narrativa quando é realizada cotidianamente e acompanhada de outras atividades ligadas ao
uso da palavra como a poesia, trava-línguas, adivinhas, cantigas de roda, brincos, brinquedos
cantados, possibilitam entre educadores e educandos um espaço de afetividades, trocas,
interações pessoais e aprendizados mediados pela riqueza de nossas raízes culturais.
A roda de contadores de histórias, cuja disposição circular, é um espaço de
características lúdicas e democráticas, onde se exercitam as artes da palavra, assim como o
momento em que as crianças contam suas histórias de vida, vivências, viagens. Estas
situações ajudam aos alunos na organização do discurso, no uso da expressão verbal e no
respeito à fala das outras crianças.
É parte da metodologia do projeto a utilização do repertório dos contos de tradição
oral, fundamentalmente, aqueles que, por sua origem, possuem elementos “formulísticos”,
partes cantadas, ou cantaroladas, ritmos corporais, onomatopeias, vozes das personagens,
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possibilitam às crianças narradoras a interiorização da história gesticulação, expressão


corporal, que ajuda a reter o texto oral como uma unidade da palavra, melodia e significado.
Entretanto, estes elementos utilizados ao narrar histórias se harmonizam com os
objetivos curriculares, quanto à compreensão de leitura, memorização das sequências dos
eventos mais importantes ou cruciais dos contos, ao entendimento do texto como um todo,
sendo que a memória auditiva proporcionada pela audição das histórias colabora para
assimilação das formas fonológicas e gramaticais proporcionando consciência crescente da
riqueza da linguagem. O fato de ouvir histórias acerca de sua família, seu bairro, bem como
lendas, causos entre outras narrativas, desperta na criança o interesse a querer conhecer outras
histórias sejam elas narradas oralmente ou descobertas pela leitura de livros.
A leitura de livros com intenção de saciar a curiosidade de conhecer novas histórias ou
de buscar as histórias ouvidas em livros foi sendo intensificadas à medida que as crianças
estabeleciam o vínculo entre o oral e o escrito, enquanto manifestação desta linguagem oral,
compreendendo que estas duas modalidades de linguagem estão ligadas entre si, pelo qual o
aprendizado da escrita decorre de leitura do mundo, com elementos da oralidade nos
primeiros anos de vida.
Na decorrência da formação de grupos de contadores mirins, os encontros têm
características de oficina, como formas de construção de conhecimento. Estas práticas
pressupõe um certo ritual de abertura-acolhimento, a integração-harmonização, a roda de
conversa, onde as crianças trazem seus próprios relatos aprendidos no convívio de suas
comunidades, sendo esta uma das características da identidade de nosso projeto: possibilitar
espaços para que a voz da criança flua e seja ouvida.
As crianças propõem as histórias que irão contar, isto é motivadas porque nas
comunidades em que elas moram, nos bairros populares, a palavra e o relato oral é muito
prestigiado face à presença da população de origem rural, de imigração relativamente recente,
onde o causo, a lenda, a anedota são muito presentes no dia-a-dia do povo. O vínculo afetivo
com as raízes culturais da terra natal é continuamente reforçado com a visita mais frequente,
graças a certa melhoria econômica, à terra dos ancestrais, onde nas férias as crianças renovam
o vínculo com avós, tios, primos. Reforçando que nos bairros onde o projeto obteve maior
adesão são bairros populares com uma porcentagem ampla de pessoas advindas de outros
estados, principalmente a Região Nordeste assim como também Minas Gerais e Paraná.
Grande parte deste contingente populacional morava em bairros rurais ou pequenos
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municípios, onde até hoje prevalecem códigos culturais tradicionais representados pelo
convívio social intenso, redes de ajuda mútua. As crianças escutam e acrescem estas histórias
ao seu repertório, pois a elas resultam familiar, reinterpretando-as na medida em que se
apropriam das matrizes do etno-texto, onde é gerado.
A forte presença das igrejas cristãs, principalmente, evangélica e católica na periferia
das áreas metropolitanas, cujos fiéis recontam histórias bíblicas ou de exemplo, são parte das
conversas informais, nas rodas espontâneas no espaço público de convívio comunitário que é
a rua, o comércio, escolas e igrejas, tornam-se parte do acervo de histórias que a criança se
apropria.
Outra das particularidades dos alunos das escolas entre 8 e 13 anos de idade é a
predileção por histórias divulgadas pela televisão, caracterizadas como “lendas urbanas”, as
quais são uma forma de sincretismo de histórias brasileiras de assombração com elementos de
filmes de terror estrangeiros. O tom coloquial destas histórias que mesclam elementos
cotidianos com fatos sobrenaturais chamam muito a atenção dos pré-adolescentes em face de
conhecimento do mundo, como substituição no imaginário rural do que décadas atrás
concitavam o interesse de gerações passadas, os mitos e lendas originárias do mundo rural,
com sua fauna de monstros, fantasmas e outros seres do imaginário popular.
As crianças, a partir de certa idade, querem tomar a palavra e contar suas vivências e
fundamentalmente suas histórias. Evidentemente, este projeto não é o único do gênero, existe
em outros países; e em nível nacional, diversas experiências. No entanto, a prática é destinada
a ensaiar um texto para ser apresentado numa comemoração ou evento, utilizando
predominantemente as formas literárias quanto ao texto e a linguagem teatral como forma de
ser apresentado.
Nossos contadores mirins estão capacitados a realizar sua performática num palco
diante de centenas de pessoas e até utilizando formas de amplificação da voz humana. No
entanto, onde é ainda mais apreciada a riqueza de sua arte é em pequenos espaços, contando
para dezenas de ouvintes, com possibilidades de interagir com seu auditório, numa forma de
narrar de características comunitárias e a utilização da roda, que Madalena Freire sugere na
“Experiência da Vila Helena” e na “Paixão de Conhecer o Mundo” (FREIRE, 2007).
A partir das empíricas sistematizações de nossas ações, começamos a tomar contato
com outras experiências diferenciadas de narrar histórias no Brasil afora, como o Grupo de
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Contadores de Estórias Miguilin, que acontece no município de Codisburgo (MG), dedicados


a transmitir a obra de João Guimarães Rosa.
Outra experiência marcante é o trabalho no município de Lençóis (BA) da Pedagogia
Griô,, através do livro de Lílian Pacheco, A Reinvenção da Roda da Vida (PACHECO, 2006),
onde se narra a experiência com a ancestralidade baiana numa ação dos Pontos de Cultura
Grãos de Luz e Griô, integrando a tradição oral no currículo de Educação Municipal.
Ambas experiências enraizadoras da vastíssima cultura popular brasileira com o
reconhecimento comunitário da suma importância da arte-educação como auxiliar no ato de
conjugar os saberes populares com os conhecimentos acadêmicos aportados pela escola.
Outro dado de relevância é inserir nosso projeto nos Direitos das Culturas da Infância
como forma de exercitar a meninice e brasilidade num mundo de apelos consumistas, de
descaracterização da infância, erotização precoce, onde se copiam modelos estrangeiros.

CONCLUSÃO
Como balanço destas experiências com os grupos de contadores infantis e juvenis, de
educadores e da EJA, fica evidenciada a dificuldade de manter grupos que deem continuidade
a estas ricas experiências como no caso das crianças que na hora ficam mais entusiásticas com
as propostas de narrar em diferentes espaços, coincide com a finalização do ensino
fundamental I, aos 11 anos aproximadamente, momento em que saem da rede municipal de
Guarulhos, onde acontece o projeto, para ingressar na Rede Estadual de Educação, o que
ocasiona a dispersão dos grupos para diferentes escolas estaduais. Tal fato dificulta a
continuidade das atividades de contar histórias.
No fundamental II e no ensino médio, os jovens ingressam em uma cultura de códigos
consumistas, ideologicamente dominada pela mídia de massas, onde são desvalorizadas
práticas artísticas consideradas “não-hegemônicas”, pelo menos nas grandes áreas
metropolitanas.
Os jovens simpatizantes do contar histórias no modelo mais espontâneo e tradicional,
sofrem o embate dos próprios colegas que caracterizam estas práticas de ultrapassadas,
distantes do modelo que propõe a mídia televisiva. Temos ainda um segundo fator
relacionado à família que desencoraja os adolescentes a continuar por entender que estão
desviando a atenção deles dos estudos e não possuir uma utilidade para fins acadêmicos e
profissionais, por isto muitos destes jovens partiram para cursos técnicos para ingressar no
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mercado de trabalho. O narrar é visto como reminiscências do mundo rural ou persistência da


fantasia infantil em um mundo dominado pelo pragmatismo e racionalidade.
Todavia, nos setores populares, a entrada no mundo do trabalho afasta, junto com a
proximidade da escolha de uma carreira adulta, o tempo mais descontraído da vida em
exercitar as “artes”. O jovem se sente desmotivado porque não quer “pagar mico” de contar,
já que seus colegas desprestigiam sua escolha, assim, sentindo-se incompreendido e pouco
apoiado por eles, pela família, além do fato de existirem poucos espaços para narrar.
Os jovens que persistem nas práticas narrativas orais são minoria que “compram a
briga” e que em raríssimas oportunidades se tornam arte-educadores dos projetos que contam
histórias.
Entretanto, o projeto tem recebido importante apoio de pais de jovens e adolescentes
que continuam contando.
Uma das descobertas mais significativas do projeto é o fascínio da criança em ouvir
histórias na educação infantil. Primeiro ela ouve e imediatamente passa a imitar o contador,
seus gestos, sua fala, seu sotaque, sobretudo os contos que têm motes ou estribilhos,
perguntas-respostas que possibilitam certa interatividade entre o contador e seus ouvintes.
O momento em que a criança se assume como contador mirim, explicando o
significado de sua atividade para seus colegas, observamos o aumento de autoestima em
crianças com dificuldades de aprendizagem e com necessidades educativas especiais.
A felicidade experimentada na hora em que as crianças leitoras iniciantes descobrem o
sentido das palavras, quando soletram apontando-as com o dedo indicador, que são as mesmas
do conto que elas conhecem faz um tempo, apenas memorizado pela audição contínua de sua
narrativa.
O Projeto Contadores Mirins lançou sua proposta de incluir a criança como produtora
de cultura, guardiã da memória de seus antepassados pelas histórias de vida e de tradição oral
contadas a elas.
As Semanas de Contar Histórias possibilitaram um verdadeiro intercâmbio de
narrativas de todo o tipo, fundamentalmente, pelo convite a narrar não apenas de educadores e
educandos e sim da comunidade escolar e os moradores do bairro. Isto possibilitou ouvir
histórias sobre a formação das vilas, das lutas pela melhoria das condições de vida e os causos
e lendas narradas pelos funcionários não-docentes das escolas que, com sua graça, sotaque e
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palavreado regional, enriqueceram o conhecimento das crianças com outras histórias que
nunca estariam possibilitadas sua escuta.

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POÉTICAS ORAIS – QUESTÕES DE RELAÇÃO E METODOLOGIA

Felipe Grüne Ewald (UEL – felipe.ewald@gmail.com)

RESUMO: Em minha pesquisa discuto diferentes conceitos de poesia a fim de contribuir com
a constituição das Poéticas Orais. Para realizar isso tenho sempre em mente manifestações
conhecidas durante convivência em campo. Esta comunicação tenta dar conta de sistematizar
uma proposição metodológica a partir das práticas experimentadas ao longo de 4 anos de
convivência com moradores da Restinga, bairro periférico de Porto Alegre (RS). Trata-se de
um trabalho desenvolvido junto com os moradores, a partir de suas demandas. Fomos a
campo sem ferramentas delimitadas de investigação, contando com uma alta flexibilidade
metodológica, o que nos permitiu desenvolver um método que se adequasse à situação vivida.
A prática acabou por constituir a metodologia. Chegamos a uma sistemática em que se postula
que a operação poética possível encontra-se justamente em nossa relação, em nossa ação
conjunta. A intervenção da academia assume a criação tanto quanto os moradores. Assim,
poderíamos dizer que o método perfaz a poesia; o pesquisador integra-se na operação criativa.
Os fazeres transitam por diferentes linguagens, sendo a produção audiovisual – bastante
explorada no decorrer do trabalho – o meio em que talvez mais claramente se possa delinear a
mediação promotora de uma síntese do heterogêneo. Nesse sentido, explorarei a ação junto ao
Maragato – sujeito-agente da pesquisa –, exemplo que pode elucidar a discussão
metodológica levantada.
Palavras-chave: Metodologia; Restinga; Relação; Perspectivismo.

A comunicação que aqui apresento é uma tentativa de estabelecer um diálogo com o


campo da Antropologia no sentido de buscar um esquema teórico-metodológico fora do
senso-comum acadêmico na área de estudos literários. Uma vez que lido com expressões
conhecidas e delimitadas por meio de trabalho de campo, penso ser pertinente a escolha que
faço.
Ao defrontar-me com os sujeitos do estudo e suas produções, proponho que se trata de
apelar para a atitude habitual de fazer uma análise interepretativa redutora sobre determinado
texto acabado. Pelo contrário, o material que se me apresentou durante a pesquisa de campo
aponta claramente o caráter de inacabamento dos textos, sua processualidade. Um passo que
ensaio realizar é o de estender as questões, que averiguo junto aos sujeitos que acompanho, ao
trabalho em geral dos estudos literários; repensá-los a partir deste ponto.
O trabalho que se mostra possível é o de remontar seus trajetos por si mesmos, sem a
intervenção ostensiva da crítica de realizar um recorte e delimitar um conteúdo poético por
semelhança com seus critérios particulares. Ou antes, o recorte e a delimitação, devem se dar
por um processo consciente que leve em consideração o ponto de vista que os produz. Por
isso a necessidade de buscar uma formulação teórica que se constrói a partir de um modelo
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não-moderno: o perspectivismo ameríndio; o qual traz consigo um controle para o


relativismo.
Isso não significa que esteja aplicando às expressões que estudo um modelo pronto e
fechado. Pelo contrário, o teor da discussão original (dentro do campo da Antropologia)
precisa ser remodelado, adaptado para ser compreendido dentro dos estudos literários. Isto é
realizado dentro das minhas possibilidade e limitações.

Trabalho de Campo
Participo – desde 2006, com alguns períodos de interrupção – de uma pesquisa que
ocorre em parceria com moradores da comunidade da Restinga. Este é um dos bairros mais
populosos da periferia de Porto Alegre-RS, situado a cerca de 30 quilômetros do centro.
Começou a ser formado a partir da década de 60, num processo – muito comum ainda hoje –
de expulsão de populações marginalizadas das áreas centrais da cidade, numa dinâmica que,
se por um lado tende a aproximar do acesso à moradia, por outro provoca o isolamento quanto
aos principais serviços essenciais e dificulta a garantia dos direitos básicos. A luta para
alcançar estes direitos passou a ser uma das marcas identitárias do bairro, que hoje encontra-
se desarticulado e menos coeso e organizado, sendo formado por grupos provenientes das
mais diferentes localidades, de dentro e de fora da cidade23.
O trabalho da pesquisa é impulsionado por demandas mútuas: nós (acadêmicos) nos
propomos a escutar e interagir com membros da comunidade, a fim de relfletir sobre a
narrativa oral e a oralidade em performance; alguns moradores – que tomaram parte ou
seguem participando do trabalho – desejam sistematizar e comunicar a memória do bairro e
envolver a comunidade nesse esforço – o que nos constitui em mediadores de fato desta
memória, para além do papel de mediação etnográfica que nos cabe como pesquisadores.
Abro aqui um pequeno desvio na apresentação do campo, para tocar na questão da
mediação. A apresentação dos discursos do campo nas discussões críticas próprias da
academia não se dá de maneira nenhuma de forma transparente. As correspondências
possíveis entre o texto escrito pelo etnógrafo e o texto oral proferido pelo informante não são
lineares (ROCHA e ECKERT, 2005), mas dependentes de uma tradução que costuma ser
acompanhada de traição e imprecisão. É sob estes termos que se dá a mediação.

23
Informações mais detalhadas podem ser encontradas em Gamalho (2009) e Ewald (2009).
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Além dos registros feitos em diários, imagens e em audiovisual, produzimos, junto


com o grupo de moradores, vídeos e uma exposição itinerante que conta diferentes versões da
história do bairro.
Dentre os moradores que componhem ou já compuseram o grupo, destacarei, para fins
deste trabalho, o Maragato, a quem me referirei apenas desta forma. Próximo dos 50 anos de
idade, Maragato é um sujeito nômade, leva uma vida um tanto instável, sem residência
propriamente estabelecida, já tendo morado em diferentes cidades do país e diferentes bairros
de Porto Alegre. Tampouco possui uma carreira fixa: entre outras ocupações, foi ou é
radialista, produtor de vídeos, vendedor de algodão doce, reciclador de lixo, oficineiro de
informática. Não se destaca por uma desenvoltura retórica e gestual própria de um contador
de histórias. Empenha-se, no entanto, em expor suas teorias sobre o uso das tecnologias e da
comunicação como instrumentos pedagógicos.
Retonarei ao Maragato mais adiante para tratar de evento específico, característico de
sua produção. Mas, para introduzi-lo, passarei pela discussão antropológica do
perspectivismo, tentando apropriar-me de maneira singular de suas proposições.

Perspectivismo
Para introduzir o assunto, apresento na sequência um trecho do conto "Como os
venenos Azá e Ineg, para matar peixe, vieram ao mundo", presente na coleção de Koch-
Grünberg, registrada por este a partir das narrativas dos índios (norte-amazônicos) Akúli (do
povo Arekuná) e Mayuluaípu (do povo Taulipangue). A versão que reproduzo está em obra
organizada por Sérgio Medeiros (2002, p. 93-4, grifo meu):
O rapaz encontrou uma cascavel e gritou: 'Cuidado! Uma cobra!', e
correu. A anta [com quem vivia] correu atrás dele. Então pararam e
disseram: 'Vamos ver'. Voltaram para junto da cobra. Aí a anta disse:
'Isto não é cobra! É meu fogão!; ela explicou: 'Dizem que a cobra
corre atrás para morder. Mas isto não é cobra. Para nós, antas, o
cachorro é uma cobra!' Disse mais: 'A cobra corre atrás da gente e
onde ela morde, dói. A cobra para nós é um fogão. Os homens a
consideram uma cobra e sofrem com a mordida, como nós sofremos
com uma mordida de cão'. E a anta seguiu avante com o rapaz, que
agora sabia que a cobra era um fogão, e não se assustou mais.

Em sua discussão crítica e interpretativa dos contos, Sérgio Medeiros (2002), numa
inspiração estruturalista (que será posteriormente revisada pelo próprio autor em sua obra e
por mim adiante), propõe uma dicotomia de dois ambientes opostos e separados. O primeiro
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deles seria a aldeia, de caráter familiar. O outro a paragem mítica, caracteristicamente não-
familiar, envolta numa atmosfera de sonho e abundância. "O mundo não-familiar é, portanto,
o mundo da metáfora, da imagem, do duplo sentido, da polissemia, enfim, da poesia (p. 233)".
A proposta é interessante e sedutora. Não a descarto completamente. No estanto, este
tipo de abordagem é tipicamente o consenso da nossa crítica tradicional, que parte, mesmo
que não-intencionalmente, de um etnocentrismo, o qual passa a emoldurar o objeto que está
estudando, tomando-o pelo que pensa ser aquilo que tem na frente, entendido por
aproximação com seus objetos tradicionais. O formato de texto acabado fá-lo interpretar os
contos atentando para o nível linguístico e não sua realização ou as peculiaridades para as
quais apontam. A variação se daria nas diferentes formas de organização e elaboração do
conteúdo linguístico. São verificados mundos distintos e exclusivos, um do estritamente
factual e outro do imaginário, enquadrados numa bipolaridade.
Na história citada anteriormente, há um mundo se constituindo, em que vão se pondo
em acordo a anta e o rapaz, utilizando as mesmas, digamos, categorias (aquilo que corre atrás
da gente e morde), que se referem a coisas diferentes (cobras ou cachorros). Prefiro pensar,
então, que não se trata de um modo referente e um modo figurado ou jogo linguístico. São
ambos referências ao mundo.
As explicações são dadas internamente, pela personagem. Vejamos um situação um
pouco diferente, com o exemplo do conto "Como os homens ganharam a rede de dormir",
narrado por Mayuluaípu:
Antigamente, os homens não possuíam redes e dormiam no chão.
Passou muito tempo. Então encontraram um cão que dormia numa
rede. Eles de noite dormiam no chão; o cachorro, porém, dormia na
sua rede. Na manhã seguinte disseram ao cachorro: "Cunhado, vende-
me esta rede!". O cachorro respondeu: "Com o que vão pagar?".
Disseram-lhe: "Não podemos dar nada pela rede!". Então o cachorro
disse: "Podem pagá-la com sakura 24!" (Para o cahorro, o excremento
humano, que ele gosta de comer, é sakura). Aquela gente não
conseguiu entender o que o cachorro estava dizendo.
Naquela noite dormiram com o cachorro, mas saíram da casa para
defecar. O cachorro os seguiu pelo faro, gostou do excremento e o
comeu. Então o cachorro lhes disse: "Bem, vou-lhes dar a minha
rede!". Vendeu-lhes a rede e disse: "Agora vão defecar para pagar a
rede!". Até hoje o cachorro gosta de comer excrementos humanos. O
cachorro, na mesma ocasião, deu também aos homens sementes de
algodão. (MEDEIROS, 2002, p. 101, grifo meu)
24
Há uma nota que explica que sakura é uma massa da mandioca usada para preparar o caxiri.
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Neste conto, encontramos um comentário metanarrativo – realizado pelo narrador ou


por uma voz paralela à sua, seja Mayuluaípu ou seja Grünberg –, em busca de ajuste do
entendimento e esclarecimento25. É ela exatamente que traduzirá a questão multinaturalista –
a ser apresentada adiante. Quando explica que o excremento é para o cachorro o mesmo que a
massa de mandioca é para a espécie humana, estabelece um entendimento prévio do mundo,
não dependente da metáfora interna à linguagem. O entendimento é fixado em pleno ato de
narrar e não pelo conteúdo interno da narrativa.
Portanto, o que busco propor aqui é uma mudança na atitude crítica frente aos textos e
situações narrativas. Não irei emoldurar os objetos pelo meu ponto de vista. Esta virada é
propulsionada através da apropriação da noção de perspectivismo ameríndio, proposta por
Eduardo Viveiros de Castro (2002).
Ele aponta que, para os ameríndios, "todos os seres vêem ('representam') o mundo da
mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais utilizam as mesmas
categorias e valores que os humanos" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 378-9). As
perspectivas sempre ocorrem separadamente, de acordo com o ponto de vista que cria o
sujeito. Os não-humanos vêem as coisas como (epistemologia) os humanos vêem, mas as
coisas (ontologia) que vêem são outras. Diferentes tipos de seres vêem coisas diferentes da
mesma maneira. Por exemplo: os urubus, ao se alimentarem de vermes, estão se alimentando
da mesma forma como os humanos comemos peixe grelhado: são coisas diferentes, mas
representadas como a mesma coisa. Por outro lado, o que para nós humanos é um mero
atoleiro de lama, para as antas pode ser uma casa cerimonial. Logo: uma mesma coisa,
distintamente representada.
Devemos compreender a forma corporal humana e a cultura como atributos
pronominais, o que refuta qualquer imputação de antropocentrismo a esta doutrina. Eles:
são o modo mediante o qual todo agente se apreende, e não predicados
literais e constitutivos da espécie humana projetados 'metaforicamente'
sobre os não-humanos. Esses atributos – a condição e não a espécie
humana – são imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele.
(Ibid., p. 374)

25
A questão dos ajustes de sentido, através do que chamei metanarrativa, é explorada por Authier-
Revuz (1998).
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Portanto, aqui se encontra a primeira problematização para a interpretação de Sérgio


Medeiros, de que há uma paragem mítica que é o mundo da metáfora e da poesia. Se
enveredamos pela proposta que ora apresento, refutaremos a ideia de projeção metafórica e
concluiremos talvez que a poesia está no ponto de vista que constitui o mundo, tese que
perseguirei mais adiante ao tratar do Maragato.
Retornando ao perspectivismo. A cultura é a forma como os agentes experimentam
sua natureza, ou seja, a Cultura é a natureza do Sujeito. A humanidade (a condição humana) é
o nome da forma geral do Sujeito, o que coloca a cultura, a forma do espírito, na série
universal, do que é comum a todos. O que na ideologia ocidental chamamos de natureza – ou
seja, os corpos, o que existe no mundo – é colocado na série variável. "Se os salmões parecem
aos salmões o que os humanos parecem aos humanos – e isto é o animismo–, os salmões não
parecem humanos aos humanos, nem os humanos aos salmões – e isto é o perspectivismo"
(Ibid., p. 376). Os lambaris se vêem como humanos – lembrando: a condição, não a espécie –
e nunca como lambaris, porque esta é a forma pela qual são vistos pelos humanos.
Ao contrário da mitologia evolucionista, na ameríndia a condição original comum aos
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade; assim, diremos que a natureza
vai se afastando da cultura. Logo, se, para o pensamento ocidental, os macacos são o que
fomos, para os ameríndios, eles foram o que somos. E, tendo sido outrora humanos, animais e
outros seres continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.
No perspectivismo, que é um multinaturalismo, temos, digamos, um universalismo
cultural e uma variabilidade natural. Mesmas representações, outros objetos; sentido único,
referências múltiplas. São essas referências que vão sendo ajustadas, constituindo o mundo
nos contos que apresento, seja internamente à história, seja no próprio evento narrativo por
uma estrutura metanarrativa. Lendo pelo viés do perspectivismo, não irei mais interpretar
como um contraste entre mundo familiar e paragem mítica, mas um mundo em que há um
sentido único (aquilo que corre atrás da gente e morde; o alimento saboroso) para referências
diversas (a cobra ou o cachorro; o excremento ou a sakura).
É assim que me proponho a confrontar com o Maragato, sujeito com quem convivo na
pesquisa de campo. Utilizarei tanto o entendimento interno da história, como o ato em si de
contar (como no evento narrativo destacado no segundo conto), especialmente porque
costumo estar em sua presença o que ressalta a importância da performance.
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Por fim, especulo que, no que tange à tradução cultural, a que parece mais praticável é
a de explorar a ontologia relativa a um ponto de vista, tentar elucidar como se configura
determinado mundo e tentar expressá-lo de acordo com possíveis equivalentes de acordo com
nossa ontologia. Afinal, um ponto de vista não é uma opinião subjetiva; "não há pontos de
vista sobre as coisas – as coisas é que são pontos de vista" (Ibid., p. 385). A questão não deve
ser qual o ponto de vista das onças sobre o mundo, mas de que mundo elas são o ponto de
vista, que mundo existe no ponto de vista das onças. Iniciando a apropriação: quais as
referências existentes sob o ponto de vista ocupado pelo Maragato.

Maragato
Passo, então, ao sujeito da pesquisa que desejo enfocar e uma de suas produções. Se
aqui se tratasse de uma proposta de viés da tradição crítica, tomaria como corpus seu livro de
poemas Simplesmente Você. Trata-se de uma coletânea de poemas seus, impressa em folha
A4, encadernada com espiral e contando com uma capa ilustrada. Os textos não contam com
algum grau de excepcionalidade. São sinceros e diretos, sem cuidado peculiar com ritmo ou
forma ou correção gramatical. Vejamos como exemplo "Alem do tempo":
Alem do amor,
Alem do tempo,
Alem do sorriso,
Só a paz...

Alem do amor,
Beijo no escuro
Amor sem futuro.
Alem do amor,
Alem do fim. (MARAGATO, s/d, p. 3)

O que se torna excepcional é o fato de Maragato propor uma interpretação da cultura


letrada erudita, realizando um lançamento do livro, com convite, sessão de autógrafos e um
discurso, em que conta sobre um encontro com o poeta Mário Quintana na infância.
Nesse trabalho eu coloquei um espelho infantil: o que que é um
espelho infantil? Eu comecei a lembrar de umas cenas da minha
infância, do meu pai, do meu avô... Mas uma cena me chamou
atenção, que eu me lembrei: quando eu tinha 9 anos, eu vim a Porto
Alegre – morava em Canoas – eu vim a Porto Alegre e, naquela
ocasião, eu tive a oportunidade de conhecer o Mário Quintana, na
praça! Meu pai, esperando pra entrar no Cinema Imperial, que tinha
ali... nós estamos sentados num banco, vendo aquele senhor, de cabelo
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clarinho, óculos pesados no rosto, escrevendo lentamente num pedaço


de papel. Aí [...] um sorvete de bola, naquele tempo não existia ainda
aqueles (faz o gesto de servir sorvete direto da máquina), era de bola
mesmo. Aí foi comprar um que era na frente do cinema. A sessão, vei
demorar ainda uma meia hora, mais ou menos. E aí ele foi buscar o
sorvete. Nesse meio tempo, eu muito maroto – acho que tinha uns 8
ou 9 anos – eu fui em direção a esse senhor e aí, sentei do lado desse
senhor, a minha perna, nem encostava no chão [...] Aí esse senhor
perguntou: 'tu gosta de poesia?'. Gosto, escrevo alguma coisa. Aí,
mostrei os meus rabiscos pra ele, ele mostrou os dele também. Daí o
meu pai me chama, eu viro as costas, tô indo, aí ele pergunta ao longe,
com a voz enfraquecida: 'como é teu nome?', 'Meu nome é Marco. E o
seu?', 'É Mário'. Nunca esqueci disso daí... (Registro Audiovisual, 28
de julho de 2011, 1'25"-3')

Este encontro com o poeta, muito apropriado para a ocasião, foi relatado neste dia pela
primeira (e única) vez neste dia de 2011. Maragato participa na pesquisa desde 2006.
Pergunto-me por que ele nunca o relatou, considerando que sabia da nossa procedência da
área de Letras. Aqui não estou alegando que ele esteja contando uma mentira. Isto é
irrelevante. Meu interesse está justamente no encaixe apropriado desta história para compor o
quadro do lançamento do livro, concorrendo para sua auto-afirmação como poeta. Minha
aposta é de que esta cena é que institui a poesia, para além do livro.
Desejo aqui retomar o perspectivismo para compreender como o ponto de viste se
encontra na afecção. Temos que o relativismo ocidental é um multiculturalismo que admite
uma diversidade de representações subjetivas e parciais a respeito de uma natureza externa e
universal, indiferente à representação. Já o perspectivismo ameríndio é um multinaturalismo
que propõe uma unidade de representação (apenas pronominal, como marcador enunciativo,
relacional) aplicada a naturezas diversas. "Uma só 'cultura', múltiplas 'naturezas';
epistemologia constante, ontologia variável" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 379). As
representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista (a diferença) está no corpo;
isso não significa, no entanto, que se trate de uma diferença fisiológica ou anatômica – no
perspectivismo, temos uma ontologia relacional, em que substâncias individuais não são a
realidade última. É uma diferença de afecções e capacidades, ou seja, um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus.
O que de certa forma postulo é a presença de uma afecção-Maragato, sob a qual se
constitui um mundo peculiar, em que a realização poética ocupa objetos distintos dos que são
comumente avalizados pela academia. Ou seja, uma vez que o mundo não está dado, os
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objetos poéticos são outros. Não são as várias formas de escrever um livro de ficção que
marcam as diferenças entre "culturas"; os diferentes objetos em que o poético é encarnado é
que marcam as distinções, já que as formas de operar são as mesmas.
No caso específico do Maragato vemos o poético se entranhar nas vivências e
narrativas de si. Diria inclusive que com requintes de ironia e com introduções e orientações
para um público leigo. Ele arma todo um ambiente com o propósito de conformar uma zona
de conforto para os acadêmicos não-iniciados na sua arte. As circunstâncias em que esta se
apresenta são a do lançamento do livro de poesias a que fomos especialmente convidados. Ou
seja, tudo dentro do esperado: aqui há um autor de um livro que está impresso e encadernado,
dentro do qual há poemas; este livro está sendo lançado e você foi convidado para participar
de uma conversa com o autor e inclusive ter o seu exemplar autografado.
Ocorre que essa mise-en-scène constitui o seu ardil. É ela mesma parte da realização
poética, que é complementada por seu discurso. Alguns indícios rompem essa ficcionalização:
os livros não são vendidos, mas doados pelo autor; apenas nós (acadêmicos) comparecemos
ao lançamento; o local é um ponto de cultura que promove o diálogo latinoamericano (como
ruído de fundo no vídeo gravado, temos o alongado discurso do presidente venezuelano Hugo
Chávez, transmitido pela televisão); estamos num salão de refeitório pequeno e não há livros à
volta.
De qualquer forma, é a história de sua fundação, sua constituição como poeta: tanto no
nível do conteúdo (o evento narrado) e da diacronia, numa semelhança com o tom mítico
fundacional, como no nível da forma/performance (o evento narrativo26) e da sincronia, em
que ele executa junto a seus interlocutores a constituição da persona do poeta, pelo evento
mesmo, não apenas pelo texto.
Ou seja, postulo que o que é poético no episódio apresentado, o encontro do Maragato
com o Mário Quintana, não é (apenas) o texto em si, mas especificamente a realização do
relato em presença, de maneira astuciosa, num engate preciso com a situação; é o que deve
perfazê-lo poeta diante de nós. Em paralelo com o perspectivismo ameríndio, é como se
dissesse: 'vocês olham para o que narro e buscam o poético no nível linguístico, enquanto eu
de fato o apresento na concretude do fazer em relação com vocês'. De certa forma, digamos
que a concretude desse encontro com Quintana (imaginado? real?, não importa) o 'contamina'

26
Os termos "evento narrado" e "evento narrativo" são explorados, entre outros, por Richard Bauman
(1986).
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com a possibilidade poética, evidenciando a necessidade de estar em relação, em confrontação


subjetiva.
Nesse sentido o que se propõe aqui é uma extrapolação do que nos coloca Paul
Zumthor (2000/2005), da poesia na expansão do corpo, na performance aqui-e-agora, na
presença da voz. Aqui aponto para uma relação em que se constitui uma poesia. Mas esta
questão da relação será tratada em outro espaço, em outro momento.

REFERÊNCIAS:

AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras Incertas: as não–coincidências do dizer. Trad.


Claudia R. Castellanos Pfeiffer, Gileade Pereira de Godoi, Luiz Francisco Dias, Maria Onice
Payer, Mónica Zoppi-Fontana, Pedro de Souza, Rosangela Morello e Suzy Maria Lagazzi-
Rodrigues. Campinas: UNICAMP, 1998.

BAUMAN, Richard. Story, Performance and Event: contextual studies of oral narrative.
Cambridge University Press, 1986.

MARAGATO. Simplesmente você. [Edição caseira]

MEDEIROS, S. (org.). Makunaíma e Jurupari - cosmogonias ameríndias. São Paulo:


Perspectiva, 2002.

ROCHA, A. L. C./ ECKERT, C. O tempo e a cidade. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena.


In: _______. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo:
Cosac Naify, 2002.

ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Educ, 2000.

______. Escritura e Nomadismo. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Sônia Queiroz. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2005.
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POÉTICAS ORAIS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE COQUEIROS: A


METÁFORA DOS TRONCO VÉIO

Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho – UNEB/PUCRS


ilmaravalois@hotmail.com

Foi aprender. Vi, e assim a gente mesmo vê e espera a


vontade de Deus. Ia vendo meus tronco véio.
(FRANCISQUINHA)

Discutir a metáfora dos “tronco veio”, muito pertinentemente anunciada por Dona
Francisquinha na epígrafe o presente texto, é trazer à baila relações culturais que fazem a
construção do ser quilombola em Coqueiros, (Comunidade remanescente de quilombo27
situada no Município de Mirangaba-Ba, a 270Km da capital do estado da Bahia, Salvador), o
que permite evidenciar a forma constelatória desafiadora de binarismos em cujas teias a
ancestralidade da comunidade é vivenciada, principalmente, no que tange às poéticas orais
limiares em constante processo de continuidade movediça. Neste sentido, faz-se o presente
artigo, considerando como horizonte referencial empírico memórias narradas em entrevistas
semi-estrutudadas, finalizadas em janeiro de 2009, por leitores e leitoras de Coqueiros, a
saber: Dona Francisquinha (82), Dona Elza (63), Aparecida (40) e Socorro (25).
As relações estabelecidas entre oralidade e escrita, enquanto dimensões constitutivas
das culturas pós-modernas, desencadeiam diálogos complexos que repercutem na formação
das identidades, principalmente quando se trata de grupos cujas práticas cotidianas são mais
associadas à oralidade, mesmo estando inseridos em uma sociedade marcada pela onipresença
da escrita e dela fazendo uso. Nesse caso, a oralidade funciona como mediadora privilegiada
no processo de construção do lugar simbólico dos sujeitos sociais, descortinando formas de
ser e pertencer.
Retomando uma judiciosa afirmação de Paul Zumthor (1993, p. 71), pode-se
considerar que, em Coqueiros, “[...] nada teria sido transmitido nem recebido, nenhuma
transferência se teria eficazmente operado sem a invenção e a colaboração, sem a contribuição
sensorial própria da voz [...]”. As orações, as canções, as receitas, as superstições, os rituais,

27
Coqueiros - Comunidade quilombola reconhecida e registrada no Livro de cadastro Geral n°. 06 —
Registro 611 — Fi. 121, em 3 1/05/2006 - Publicado no Diário Oficial da União em 07/06/2006,
Seção 1, no. 108 — Folha 5.
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enfim, as muitas matérias de aprendizagens do cotidiano, todas elas foram, e são, ainda hoje,
em grande parte, dialogadas no âmbito de práticas orais que vão (re)criando tradições e dando
continuidade a modos de ser e viver, que, não estando cristalizados, vão sendo dinamicamente
traduzidos a cada nova geração, no contexto da comunidade.
Os deslocamentos operados funcionam como atualizações necessárias às novas
demandas socioculturais, sem, contudo, negar o valor das construções passadas. Assim, os
processos característicos dessas atualizações podem ser refletidos, na perspectiva
fenomenológica, a partir da dinâmica revigoração de um “já vivido” a perdurar nas relações
intersubjetivas da atualidade, o que permite uma aproximação com as discussões acerca da
ideia de “enraizamento dinâmico”, que nas palavras de Maffesoli (2007, p. 116), “[...] Não se
trata de um saber teórico, mas de uma vivência prática, a da experiência individual que se
enraíza na experiência coletiva. Trata-se de uma espécie de instinto que funda a perduração
societal nos usos e costumes da comunidade”.
Fundamentada na perspectiva de que os conhecimentos mantêm uma ligação com
realidades passadas, por meio dos resíduos deixados por gerações anteriores sendo
reinventados constantemente, a ideia do enraizamento dinâmico ratifica a importância
atribuída à tradição, à renovação do sentimento de pertencer, sem desconsiderar as
ramificações calcadas nas redes de sociabilidade. Nesse sentido, a lógica da construção
teórico-conceitual que rege as relações interpessoais em Coqueiros pode ser considerada a
lógica da vivência prática, da experiência comunitária, da celebração revisionária de
narrativas que seguem fazendo uma coerência social diferenciada para a comunidade em suas
(re)elaborações culturais.
Nesse cenário, as casas das famílias, juntamente com os centros religiosos, a escola, os
ambientes de sociabilidade onde ocorrem as festas sagradas, profanas ou híbridas, funcionam
como ambientes constelatórios capazes de possibilitar experiências significativas, porquanto
sejam espaços elementares de construção de conhecimentos organizadores da vida em
Coqueiros. Dona Francisquinha, tratando da atividade de parteira que exerceu durante muito
tempo na comunidade, evidencia, no aprendizado da profissão, a relevância da observação de
suas familiares como fonte de saber: Foi aprender. Vi, e assim a gente mesmo vê e espera a
vontade de Deus. Ia vendo meus tronco véio.
A expressão os tronco véio, tecida por Dona Francisquinha como referência às
antepassadas que lhe serviram de sustentação na aquisição da profissão, é exemplar para que
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possamos entender como se constrói esse saber cotidiano edificado na experiência dos mais
velhos. Coadunando com Mafesoli, a reflexão de Dona Francisquinha aponta para um
referencial ancestral que perdura na atualidade e em cujas teias faz-se o ressignificar do
passado/presente/futuro. È assim que a própria Dona Francisquinha diz, na continuidade da
entrevista, mas sempre hoje não é mais assim, referindo-se não à lição dos troncos, mas às
condições de existência, aos partos em Coqueiros, em clara referência a uma realidade
dinâmica que não está petrificada. Os tronco véio, enquanto metáfora da ancestralidade, da
memória, da oralidade não é apresentada como árvore perecível, mas como uma lição de
transmutação que pode materializar-se em aprendizagens complexas fundamentadas em
continuidades e rupturas, muitas vezes, paradoxais, que ficam evidentes quando observamos
mais de perto o movimento cultural em andamento na comunidade de Coqueiros. É ação de
lembrar, esquecer, silenciar, dizer, transgredir.
A certeza do tronco a dar uma sustentação existencial não aparece, nas palavras de D.
Francisquinha, como um já dito irrefutável, mas como continuidade da vida em toda a sua
complexidade. Os troco véio dizem dos saberes da experiência, das construções elaboradas na
convivência do dia-a-dia, nas trocas interpessoais, na vida repassada às novas gerações. Nessa
perspectiva, pode-se considerar que as teorias sobre o tempo, sobre as plantações, sobre as
questões metafísicas, sobre as elaborações culturais estão inseridas no universo conceitual de
Coqueiros na forma de um compartilhar cotidiano calcado no “princípio da comunidade”,
para usar um termo de Boaventura Santos (2001) ao discutir os paradigmas dominantes da
ciência moderna.
Nesse contexto, as poéticas da oralidade ocupam lugar de privilégio em Coqueiros,
formando constelações multiformes sustentadas na energia dos tronco véio, que é, também, a
energia da voz. Trata-se da poética do cotidiano, da lida, do viver. E aqui fica evidente a
transmutação de tais construções culturais, visto que muitas delas somente ganham existência
no âmbito da memória. Percebe-se que a comunidade opera uma seleção, voluntária ou
involuntária, de suas continuidades e rupturas, de forma que há construções poético-culturais
sendo esquecidas, e a memória também concretiza-se pelo esquecimento, outras passando por
transformações e outras, ainda, sendo revisitadas e colocadas em evidência. Os cantares
voltados à lida na roça, por exemplo, são hoje performatizados com maior força no âmbito da
memória, embora as atividades de trabalho ainda sejam compartilhadas, em grande parte, por
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meio da oralidade. Aparecida nos conta dos versos cantados e recitados durante a cata do
café:
Cantando, a gente pega café. Agora até que diminuiu mais por causa
que até as coisas mudou mais, até os café não dá mais na época certa.
Aqui nós tem uma roça mesmo, aqui nos Canudo, que, ÔXE, a gente
não sabia onde é que tava cantando roda, porque uma queria cantar
mais alto do que outra.[...] Eu sei que alegrava os café, e, nessa
época, dava DUM JEIto. O povo diz que os café parou de dar depois
que os povo parou de cantar. g z : ‘C f z b x
galha, que eu quero pegar café, cafezeiro eu já te disse meu
qu ’. í qu z uv , u
café, que era pros café se alegrar. Era desse JEito. E mãe mesmo
: ‘V ê oda que é pra alegrar o cafezeiro, que é pra no
p óx ’. ( ) (APARECIDA)

É ainda Aparecida a narradora de outros costumes que já não se praticam mais na


comunidade, mas que ela presenciou, ao mesmo tempo em que faz referência aos rituais
festivos do casamento que se mantêm, com algumas alterações, como se pode entender a
partir dos ditos e não-ditos de sua fala:
Aqui era assim: tinha os batalhão de cavar brejo. Cavava os brejo,
depois a gente ia com a bandeira encontrar os cavador. Tinha que ser
uma moça pra enfeitar a bandeira... aí a gente ia com a bandeira,
qu ; qu v h , ç v : ‘Ô ê ê
bandeira verde, toda enfeitada de frô, quem enfeitou essa bandeira foi
u ç v ’. h v h b enxadas, que
cavou o brejo, até na casa do dono do brejo, e, quando chegava lá,
começava a rodar a casa... aí ia sambar todo mundo. Era o
divertimento que a gente tinha.

[...]

Quando casava uma noiva, em Mirangaba ou então em Santa Cruz,


tinha que vir com aquela noiva acompanhando e cantando roda. Era
z v : ‘M u qu v ã f h ,
a moça quando casa, não namora mais, ô meu coqueiro novo não
f h ’. g v z v p h
dizendo verso, aí quando chega em casa, a mãe mais o pai já tá
esperando a noiva com a toalha pra noiva ajoelhar e dá benção aos
pai... e o povo canTANdo. Vamos supor, foi Bruna que casou, aí uns
z : ‘D Lu , ã v h , Lu , ã v
chorar, Bruna u, f u D v ug ’; p v z: ‘D
Lu , ã f qu à , qu u f h u g b ’.
(risos) É engraÇAdo. Os casamento daqui é engraçado...; e vai
cantando. Depois que termina, agora aí vai almoçar ou vai jantar, se
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é à noite. E agora aí volta e aperta... aí todo mundo tá se divertindo.


(risos) (APARECIDA)

A presença da música, tanto nas atividades de trabalho quanto nos momentos de


festividade solene, traduz a natureza celebratória dos quilombolas de Coqueiros que, estando
em processo de reelaboração de seus horizontes culturais, fazem dialogar velhas e novas
configurações simbólicas na construção de suas identidades. Os versos cantados por ocasião
dos casamentos guardam uma significação discursiva plural capaz de referendar os valores e
comportamentos desejáveis para os indivíduos da comunidade. As lembranças de Aparecida,
talvez por sua condição de mulher, priorizam canções voltadas para o comportamento da
moça de valor, que quando casa, não namora mais e que deve se unir a um homem que seja
gentes boa. O resultado parece ser a gênese da família idealizada na comunidade.
Aparecida traz também à tona as memórias das tarefas que mais gostava de
desempenhar ao frequentar a escola na infância e elege a recitação de poesias como a sua
atividade preferida. Ressalte-se que o ensinamento das poesias acontecia em casa, com os
pais; a escola aparece apenas como cenário e palco para as apresentações em datas festivas:
Quando chegava lá [na escola], botava uma mesona grande pros
aluno subir pra dizer poesia. Ah, isso aí eu adorava. E as professoras
gostava de me chamar, porque eu não tinha vergonha de chegar lá em
cima e dizer minha poesia.[...] Mãe me ensinou e eu aprendi. Minha
poesia que eu dizia era assim. Eu subia lá em z : ‘M
J u ...’, qu h qu f z ã ,p f z
e era assim pro público aplaudir, tá entendendo? [Fazendo gestos de
sudação ao público]. Aí todo mundo batia palma e eu dizia assim:
‘M J u,g h m maior, sua sombra cobre tudo, ou
qu h v u qu f ç ’. E p h , u ã x v
ninguém dizer, e todo mundo batia palma. Pai também me ensinou,
mas a que eu gostava mais é a que mãe me ensinou. A de menino
Jesus.

A riqueza que borbulha a partir dos versos, músicas, adivinhas, causos e contos a
circular cotidianamente, oferecem lições exemplares de vida, criando horizontes conceituais
cuidadosamente moldados através dos tempos e que não podem simplesmente desaparecer.
Quantas histórias povoam o imaginário popular da comunidade e cujo valor incontestável
precisa cultivado, divulgado. São dizeres, muitas vezes, descaracterizados e desvalorizados
em nome do rigor científico perseguido pela racionalidade letrada e que raramente encontram
espaço para fluir. O breve conto narrado, a seguir, por Aparecida funciona como um exemplar
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dos conhecimentos complexos que podem ser comunicados de maneira leve e prazerosa,
possibilitando reflexões e aprendizagens que a própria escola teima em ignorar ou insiste em
tratar como entretenimento e não como conhecimento.
Se eu conto história? Eu só tenho na lembrança uma sozinha, uma
história que pai contava que eu ainda conto pra meus filhos. Uma do
passarinho. Só essa que eu conto, mas as outras eu já me esqueci, e
era muita história que pai sabia, muita MESmo. A do passarinho é
u : ‘D qu h u u h qu h u
passarinho. Ela tinha muito filho e não tinha o que comer. Aí diz que
ela disse assim: - Oh meu filho, hoje nós não tem o que comer, nós
vamo resolver matar esse passarinho pra nós comer. Aí disse que na
hora que ela ia com a mão, o passarinho dizia assim [Cantando]: -
Não me mate, não, lango, lango, lango, que eu sou rei dos pássaros,
lango, lango, lango, se o senhor me matar, lango, lango, lango, o
mundo se acaba. E aí a mulher disse que entristeceu, aí disse que ela
mandava o marido: - Vai pegar, vai, pra ver se ele não diz nada. Aí
disse que quando o marido ia, ele cantava de novo... cantava de
novo... até que ela desistiu p h ’.

E continua:
A gente entendia... eu mesma entendia, assim, que já era um exemplo
de vida, que o passarinho tava cantando pra não matar ele, que ele
precisava de viver. É igualmente hoje, a gente tá vendo mais ou menos
as histórias que os mais velhos contava batendo quase igual com hoje.
Quando eu vejo passar no jornal, o pessoal com aqueles passarinho
preso e os policial tem hora que pega e toma e solta, eu lembro dessa
história que pai contava.(APARECIDA)

Não seria possível encontrar aqui pistas textuais necessárias à compreensão das
intricadas relações estabelecidas entre o homem e a natureza, por exemplo? O paradigma da
complexidade que rege as sociedades pós-modernas, em toda sua lógica planetária, holística e
transitória ecoa por meio da sabedoria milenar de vozes ancestrais a ofertar um legado
cultural único em sua dialogicidade conceitual. A história dos passarinhos a cantar para não
morrer também não guarda uma semelhança com um certo povo que se apegou ao canto para
não sucumbir à tristeza e para sobreviver? É nesse sentido que a oralidade precisa ser
compreendida, como tecelã de conhecimentos de valor inestimável; como ofício destinado a
esculpir o ser humano a partir de traços, cores e contornos vivenciais identitários, e não como
marca de primitivismo ou atraso cultural.
Para Nascimento (2003, p. 39), “a análise sociológica contemporânea dos novos
contornos do mundo globalizado vem confirmar a ênfase sobre identidade e comunidade, pois
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nela a identidade efetivamente se torna categoria fundamental”. A identidade coletiva, a nível


local, desempenha uma função preponderante para a problematização dos processos de
exclusão e para a formação de uma autoestima positiva, porquanto seja a comunidade o
espaço de socialização onde a memória (individual e coletiva) age entrecruzando arquivos
culturais diferenciados.
O advento do reconhecimento quilombola em Coqueiros, por exemplo, tem
funcionado como um momento revigorador de realizações culturais voltadas à matriz
africana. Pode-se considerar, então, que as mudanças identitárias acontecem em um campo de
batalha afeito às identificações constantes, o que, na análise de Bauman, cumpre o papel de
problematizar os essencialismos impossíveis de se manter no contexto da “modernidade
líquida”. Assim, para o autor,
A identidade [...] é um conceito altamente contestado. Sempre que se
ouvir essa palavra, pode-se estar certo de que está havendo uma
batalha. O campo da batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem,
à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que
desaparecem os ruídos da refrega. Assim, não se pode evitar que ela
corte os dois lados. [...] A identidade é uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo
tempo uma recusa a ser devorado. (BAUMAN, 2005, p. 83)

Essa batalha é percebida em costumes e rituais que se edificam em novas formas de


ser-fazer, inclusive no traço cultural mais marcante da comunidade, a Festa dos Santos Reis,
comemorada a seis de janeiro, com pompa e muita alegria por moradores, vizinhos e muitas
pessoas vindas de longe, e que a cada ano tem ganhado proporções inéditas. As itinerâncias
dos cantadores de reis, nos dias que antecedem a festa, cumprem a tarefa de celebrar, divulgar
e arrecadar dividendos que auxiliem financeiramente a realização dos festejos. A missa
solene, precedida de uma procissão, lota rapidamente a pequena igreja, sendo que muitos fiéis
precisam acompanhar a celebração do lado de fora. Depois da missa, é servido o almoço
coletivo, preparado pelos coqueirenses em mutirão para os convidados. Todos comem e
bebem à vontade, e, então, começam as apresentações culturais. É um momento de
confraternização muito bonito em que, não apenas as pessoas de Coqueiros, mas de muitas
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outras comunidades remanescentes28, mostram suas poéticas performáticas sendo que o samba
de roda faz-se a atração principal.
Coqueiros, enquanto comunidade remanescente de quilombo, escolheu evidenciar a
herança africana presente no samba de roda, um dos troncos mais expressivos da comunidade,
de forma que esse traço cultural tem se fortalecido, tornando-se o cartão de visita da
comunidade e a forma de representá-la quando seus moradores participam de eventos em
outras localidades. Faz-se mister destacar que é a própria comunidade que elege o samba de
roda como acontecimento mitopoético. Nas palavras de Socorro,
[...] até hoje nós estamos passando de geração em geração... não
temos deixado essa cultura acabar. Sabe que a cultura do quilombola
é o samba, que descobriram tapando a casa. Descobriram que o pé
dava pra sambar, pisando barro, e depois o batuque, através dos
litros que bebiam, dos pratos que comiam; batendo o batuque
descobriram que tinha que ter sido o samba. Do couro do animal
faziam os pandeiros, os tambores. O candomblé aqui mesmo é a raiz
principal. Aqui nunca acabou. O candomblé aqui é de geração em
geração. É menina nova, é pai, é filho, tudo dança. Pai bate pra
mulher sambar, e samba bonito MESMO.

É possível conhecer, no texto supracitado, parte de uma narrativa de fundação que


procura ressaltar a raiz africana das tradições da comunidade. O lugar de enunciação
assumido por Socorro é o lugar de quem, estando em processo de reivindicação por melhores
condições de vida para o povoado, procura ressaltar as características que considera
importantes para o autorreconhecimento, reforçando assim o direito de usufruir das políticas
públicas afirmativas29. Essa evidenciação da arte verbal e performática, nas palavras de
Borges (2003, p. 11), concretiza “um momento singular em que as regras sociais estão sendo
materializadas, e, por isso mesmo, revela-se o instante em que o estético (individual) apreende
o ético (coletivo) e o transforma em representação artística”.

28
Muitos são os grupos, a maioria proveniente de comunidades remanescentes, que lotam ônibus e
chegam para participar das comemorações, trazendo suas manifestações culturais, a exemplo,
tratando-se do ano de 2009, de Tijuaçu, com a apresentação do belíssimo samba de lata, além de
Filadélfia, Antônio Gonçalves, Caém, Senhor do Bonfim, Pindobaçu, Dionísia, Olhos D'água, etc.

29
“[...] conjunto de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas
para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e
mantidas por estrutura social excludente e discriminatória”. (CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, 2004, p. 7)
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O samba também ganha destaque nas narrativas de Aparecida:


Mãe diz que com dois anos de idade, pai já me botava pra fazer piega,
e eu já fazia. Sambo desde pequena, desde pequena que eu sambo.
Gosto mesmo, não aguento ver bater um pandeiro que eu tô lá. (risos)
Eu aprendi aqui, na nossa comunidade... que desde pequena meu pai
me levava... por isso que eu aprendi tudo foi aqui, na comunidade [...]
o que eu aprendi foi com meu pai, foi tudo aqui em nossa
comunidade... de samba, de reza, de tudo.

Presentificado na performance dos rituais, inclusive aqueles voltados à religiosidade, o


samba representa a expressão maior da ancestralidade presente em reminiscências que
traduzem os sentidos armazenados na memória coletiva guardiã de formas singulares de
significar tradições e valores. Conforme Leda Martins (2006, p. 83), “[...] no caso brasileiro,
os ritos de ascendência africana, religiosos e seculares ocupam um lugar ímpar como veículos
de transmissão de um dos mais relevantes aspectos da visão de mundo africana, a
ancestralidade [...]”. Nesse viés, destaca-se a fala de Dona Elza, ao ressaltar a aprendizagem
dos sambas: Eu aprendi assim, vendo os outros cantar e eu segurava na mente e ali eu
aprendi. E continua:
Eu comecei a cantar, eu já tava mãe de família. Quem cantava reis
era minha avó, aí ela morreu. Quando era pra cantar um reis, eu
z qu ã b p v z : ‘M p qu b ’. M u
sabia, aí continuei cantando. Foi que nem a esmola de São Gonçalo,
eu também prendi com ela, assim, cantando mais os outros. Eu não
cantava, vim dá pra cantar mesmo depois que ela morreu. O povo
f v : ‘ h, u qu p g u p , p , p
’. í qu u j v ã G ç
mesmo, eu já tinha meus filho tudo, já tava tudo grande. Fez que nem
o Reis também. (DONA ELZA)

Para Dona Elza, o samba representa uma forma de “participar dos mistérios dos que já
se foram. Espaço visitado e tempo vivido são fontes de renascimento, de retorno à Unidade,
desde que os antepassados deixaram a herança do experimentado”. (PEREIRA; GOMES,
1988, p. 159) Ela possui o conhecimento a ser continuado, o que a coloca frente a uma
espécie de obrigação a ser assumida na comunidade. É a contribuição que lhe cabe: puxar o
samba, possibilitar o pagamento das promessas a São Gonçalo, festejar os Santos Reis.
O Reizado, a Esmola de São Gonçalo, o samba por prazer ou obrigação religiosa,
inscrevem-se nas encruzilhadas da cultura; seja a voz, (re)criando sentidos que volteiam nos
gestos performáticos a ecoar através dos tempos, seja o corpo, grafando a letra sinuosa das
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reminiscências rasuradas, ambos evocam a metáfora dos tronco véio e imprimem o desafio da
impossibilidade de determinismos quando se trata de cultura, memória e identidade, pois que
os caminhos de sentidos são múltiplos, sinuosos, imprevisíveis.

Considerações finais
No percurso dialógico e polissêmico da história, os arquivos que fazem as poéticas da
oralidade em Coqueiros são (re)criados, (re)significados e (re)visitados fazendo emergir
tessituras simbólicas armazenadas nas memórias individuais e coletivas, nos esquecimentos e
silenciamentos que os constitui. Nesse movimento, práticas culturais são forjadas fazendo
conviver palavra, ritmo, voz, movimento e desvelando subjetividades complexas inscritas nas
reminiscências da oralidade, na textualidade complexa das relações cotidianas, nas
construções mnemônicas do corpo.
O saber oral que tece(u) a vida na comunidade, a memória coletiva - gênese de
comportamentos e valores em constante movimento -, a cultura que materializa a
ancestralidade são a tônica da metáfora dos tronco véio em sua possibilidade de significar a
tradição oral, em cuja arte observa-se o trabalho performático da poética, esgarçando sentidos
múltiplos presentes na cotidianidade de Coqueiros e descortinando o trabalho constelatório
das formações identitárias no devir dos tempos.

Referências

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Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BORGES, Luiz Carlos. Os Guarani Mbyá e a oralidade discursiva do mito. In:


FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (Org.). Oralidade e Literatura: manifestações e
abordagens no Brasil. Londrina: Eduel, 2003.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (BRASIL). Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana. Documento aprovado em 10 de março de 2004. Brasília, 2004.

MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Tradução


de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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MARTINS, Leda Maria. A oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazereth Soares
(Org.). Brasil afro-brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raca e gênero no Brasil. São
Paulo: Sammus, 2003.

PEREIRA, Edimilson de Almeisa; GOMES, Núbia Pereira de M. Inumeráveis cabeças:


tradições afro-brasileiras e horizontes da contemporaneidade. In: FONSECA, Maria Nazereth
Soares (Org.). Brasil afro-brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 41-60.

SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2001.

ZUMTHOR, Paul. A Letra e voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro & Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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“ V !” – DIÁLOGO ENTRE O CORDEL O


CASTIGO DA SOBERBA E A PEÇA TEATRAL AUTO DA
COMPADECIDA
Prof. Ms. João Evangelista do Nascimento Neto (UNEB/PUCRS)
E-mail: netoevangelista@uol.com.br

Resumo: Neste trabalho, analisa-se a intertextualidade entre o Castigo da soberba, cordel


anônimo, e a peça teatral de Ariano Suassuna, Auto da Compadecida. O texto de cordel é
utilizado pelo autor paraibano para dar origem ao terceiro ato da sua obra, quando as
personagens são julgadas pelas ações realizadas no microcosmo social em que viviam,
Taperoá. O enredo de ambas as obras está centrado no catolicismo popular e, de forma
maniqueísta, traça uma ética salvadora para a sociedade. Para tal discussão, utilizam-se os
estudos teóricos de Gois (2004), Mota (1955), Nogueira (1986), Vassalo (1993), Vaz (2004),
dentre outros.

Palavras-chave: Cordel; Teatro; Intertextualidade; Religiosidade; Maniqueísmo.

Dura lex, sed lex30. Todos em seus lugares. Declaro abertos os trabalhos desta
pesquisa-inquérito, na sessão do Tribunal da Comarca Divina, instaurada no cordel o Castigo
da soberba, de autoria desconhecida, texto-base para o terceiro ato do Auto da Compadecida,
do escritor Ariano Suassuna. Vai começar o julgamento do homem pelos seus atos. Fiquem
apostos os advogados de defesa e de acusação. De pé para a entrada do Meritíssimo Juiz
Manoel. Que entre o réu e inicie o julgamento.
O jogo de intertexto, apreciado pelo autor paraibano, é visto aqui, nessa instância,
como uma fonte rica de diálogos. A partir dos vieses da religiosidade popular e do
maniqueísmo, a denúncia contra o ser humano ganha visibilidade em sua matriz no cordel
bem como no texto teatral, apoiada em teóricos como Gois (2004), Mota (1955), Nogueira
(1986), Pontes (1979), Vassalo (1993) e Vaz (2004), dentre outros.

1. O juditium accusationis31

30
A lei é dura, mas é a lei.
31
Fase preliminar preparatória e de formação de culpa.
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Nas primeiras sextilhas do cordel, o homem rico é apresentado e, desse modo, o


leitor/ouvinte toma conhecimento do réu. Há, então, a descrição do personagem, bem como
seu modo vivendi32:
Era um homem muito rico,
Tinha honras de Barão,
Tinha vinte engenhos de ferro,
Em metal trinta milhão,
Doze mil vacas paridas
Nas fazendas do sertão.

[...]
Com vinte anos de idade
Ele tomou novo estado,
Aumentou o cabedal
Adespois de ter casado,
Que, antes de interar dez anos,
Sete vez havia herdado.
(MOTA, 1955, p.168)

Nesse primeiro momento, não há alusão ao desvio de caráter do protagonista. O


cordelista opta por ratificar a condição de uma imensa riqueza, a priori, percebida como uma
bênção, uma dádiva. Contudo, na quinta estrofe, aliada à riqueza, tem-se conhecimento da
impossibilidade de o homem gerar filhos, impedindo a continuação de sua descendência:
Bem conhecido e falado
Dos mais homes brasileiro,
Tanto por bens de fortuna
Como em crédito de dinheiro,
Mas não tinha nem um filho
Para dele ser herdeiro.
(MOTA, 1955, p.168)

O que antes parecia prêmio, transforma-se em maldição. Um filho seria a coroação da


vida de um homem, o realizar-se no outro, a oportunidade humana de voltar a ser imortal. Isso
foi vedado ao Barão. A ele, restou o dinheiro frio aos braços afetuosos do filho, a riqueza ao
sentimento verdadeiro. Daí a sua soberba, o seu endurecimento, já que não pode exercitar a
nobreza de alma, ao gerar e educar um novo ser, ficando-lhe, de sobra, um homem frustrado,
apoiando-se na própria riqueza.

32
Modo de vida.
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O cordel propõe-se, portanto, a falar da relação entre o homem e o dinheiro, a raiz de


todos os males. Para tal, utiliza-se da religiosidade popular a fim de desmascarar a prisão a
que o ser humano é submetido quando se vê preso aos grilhões da riqueza e do poder:
O catolicismo popular se exprime mediante elementos culturais, e as
culturas populares, por meio de elementos religiosos. A simbiose, em
alguns casos, é tão forte que não é fácil distinguir o que pertence a religião
do que pertence à cultura. (GOIS, 2004, p. 11).

O catolicismo popular, reinante no Nordeste brasileiro, é permeado de influências


culturais, advindas de elementos do espiritismo, das culturas negra e indígena, afastando o fiel
de uma religiosidade clássica do Vaticano, enriquecendo e diversificando as práticas no dia-a-
dia do nordestino. O embricamento da religião com os elementos culturais, na região, funde
conceitos pagãos a pilares cristãos, numa clara re-leitura do conceito de fé e de pecado.
O termo pecado vem do latim pecatum, significa erro, falha, falta. Em termos
religiosos, pecado simboliza a separação entre Deus e o homem por meio da culpa causada
por normas divinas quebradas.
O castigo da soberba, então, opta por relacionar o Barão e sua esposa aos pecados
capitais. Conhecidos também como os pecados-cabeça ou vícios capitais, são sete os
estabelecidos pela Igreja: a luxúria, a gula, a avareza, a inveja, a preguiça, a ira e a soberba.
No texto do cordel, a soberba é eleita como a mãe de todos os pecados, a geradora de todos os
demais. É a partir da soberba, o sentimento de superioridade sobre os outros, que surgem a
luxúria e a preguiça, pecados preponderantes na esposa do Barão:
A mulher deste Barão
Tinha honras de rainha,
Sessenta e cinco criadas
Pra lhe servir na cozinha,
Parecia inda mais bela
Pelos cabelos que tinha.
(MOTA, 1955, p.168)

A descrição hiperbólica do estilo de vida da esposa do homem rico evidencia seu


caráter frívolo. Encarcerada pelo dinheiro, não sabe o que há a sua volta, não conhece ou
interessa-se pelo outro. Possui uma preocupação estética excessiva, o que simboliza a
hipocrisia social, imperando numa sociedade reificadora, onde o ter prepondera sobre o ser.
O protagonista encarna o pecado da soberba, mas a sua riqueza, da mesma forma que
vem rapidamente, some de forma inesperada. De fidalgo, transmuta-se em mendigo, de
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homem respeitado e conhecido vira um ser indesejado e mal visto. Mas se a sorte financeira
muda, varia também seu aspecto afetivo. Sua esposa engravida em meio a tanta miséria, e o
ex-Barão, não reconhece a mão divina em sua vida. Nega-se a relacionar-se com a divindade,
opta por afastar-se mais ainda do Cristo. Como última instauração da justiça divina, o
protagonista morre:
Logo assim quem ele morreu,
Cobriu-se os montes dum véu,
Mas a alma, como invisive,
Chegou às portas do céu,
Em tristeza amortalhada
Para dar contas de réu.

Mais de doze mil demônios


Tudo isso lhe acompanhavam,
Uns se rindo, outros soltando
Gargalhadas que rolavam,
Todos eles muito alegres
Da certeza que levavam.
(MOTA, 1955, p.170)

Até mesmo as forças da natureza manifestaram-se diante da morte de um homem mal,


fadado às hostes infernais. Com a morte e respectiva chegada às portas do céu, o Barão,
acompanhado de demônios, dá-se início ao julgamento.
O texto teatral Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, bebe da fonte deste cordel
a fim de criar a sociedade taperoense plena de vícios e erros mundanos. Nos dois primeiros
atos da peça, o leitor/espectador vê-se apresentado ao Padeiro e sua esposa – encarnações do
pecado da soberba, da avareza e da luxúria; ao Padre e ao Bispo – legítimos representantes da
avareza; o Major Antonio Moraes – símbolo da ira e da soberba e João Grilo – emblema da
ira, da gula e da preguiça.
Suassuna cria em Taperoá, no sertão paraibano, um microcosmo da sociedade,
fazendo do Auto uma exemplificação de um intertexto. Segundo Kristeva,
todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade,
instala-se a de intertextualidade” (Kristeva, 1974, p.64, grifo da autora).

O autor, portanto, apoia-se no romanceiro nordestino, que por sua vez, possui
influências negras, indígenas e ibéricas. Tudo isso permeado pelo forte alcance da
religiosidade popular presente na vida e no imaginário do sertanejo.
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As divindades no Auto da Compadecida são caracterizadas seguindo os moldes


medievais. Todo o discurso da peça gira em torno das figuras de Manuel, da Virgem Maira e
do Encourado, representantes vivos da tríade escolástica da Idade Média:
A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, através da técnica do
teatro épico cristão, com suas modalidades específicas e seus personagens
estereotipados. Isto ocorre porque a Idade Média é o espaço em que
floresceu uma dramaturgia que associa o religioso e o popular através das
oposições litúrgico/profano e sério/jocoso. E sobretudo porque, sendo a
cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca
atua como uma espécie de fonte para o próprio romanceiro, onde o aspecto
religioso se reforça não só por causa da religiosidade popular da região como
também pela opção pessoal da crença do autor, convertido ao catolicismo na
maturidade. Por isso as peças de Suassuna se revestem de traços ideológicos
próprios da Idade Média, como o maniqueísmo e o tom moralizante.
(VASSALLO, 1993, p. 29-30)

O texto suassuniano é uma proposta de conserto apresentada à sociedade por meio da


moral e da ética cristã, mas re-elaboradas por um viés popular. Desse modo, é possível ao
homem alcançar a paz e a felicidade duradouras pelo desmascaramento dos erros sociais,
coletivos, e novo pacto com o divino:
PALHAÇO, grande voz
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade. [...] A
intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da
misericórdia. Auto da Compadecida! [...] Ao escrever esta peça, onde
combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado
por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma
é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito
de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua
gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a
certas intimidades. [...] Auto da Compadecida! Uma história altamente
moral e um apelo à misericórdia. (SUASSUNA, 1975, p. 21-23)

Há que ressaltar, também, outra influência do medievo no texto suassuniano, a


iconoclastia. As imagens religiosas, usadas, a princípio, como didáticas, devido ao grande
número de analfabetos, passa a receber outro olhar pelos fiéis, um olhar de adoração. É pela
imagem que as divindades se corporificam para os crentes, é por meio delas que os pedidos
são feitos, os pecados confessados, as chagas curadas. As representações imagéticas são a
prova viva e constante de que o homem é instado a não se esquecer de Deus e a buscá-lo
incessantemente:
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(...) a imagem não cai gratuitamente do céu. Ela é tomada numa história
santa e autenticada por ela. Ela não é exterior à religião, ela não é um
acréscimo supérfluo ou um excitante psicológico de devoção, que um culto
em espírito e em verdade pudesse dispensar.
Ela é interior à religião. Ela faz parte de sua explicação teológica. Ela está
integrada na liturgia. De uma como da outra ela tira uma garantia. De ambas
ela tira também sua vida: é a luz da fé que o ícone desvenda o que se espera
dele representar. Quem não tem essa fé não vê mais nada. É na prece que se
realiza, através da imagem, o contato deificado com o protótipo.
(BENSANÇON, 1997, p. 228-229)

O teatrólogo usa os ícones religiosos para trazer o homem de volta à divindade. Ao


mesmo tempo, propõe que esse retorno também aproxime o homem da cultura popular, pois
compreende que abraçar o catolicismo popular significa embeber-se de mitos, de tradições e
de expressões artísticas que caracterizam o povo nordestino, marcando este povo de uma
identidade própria.
Constitui-se esta, então, a primeira parte do julgamento, a saber, a constituição do
processo e da culpabilidade dos personagens do Castigo da soberba e do Auto da
Compadecida.

2. O juditium causae33
A partir da apresentação dos personagens do cordel e do texto teatral, dá-se início aos
procedimentos do júri. Há, nesse instante, a oportunidade de observar o meritum causae34,
bem como a inquirição dos réus.
No Castigo da soberba, a Alma do Barão, recém-chegada da terra, apela aos guardiões
do céu pela sua entrada:
- “Ó divino São Miguel,
Vosso nome esculareço,
Valei-me nesta agonia,
Nestas pena em que padeço!”
São Miguel arrespondeu:
- “Alma, eu não te conheço!”
- “Vala-me o Senhor São Pedro
Por ser Apóstolo primeiro,
Foi quem recebeu as chaves,
Que do céu é o chaveiro,
É quem pode ver as faces

33
O julgamento propriamente dito.

34
Mérito da causa.
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Do nosso Deus verdadeiro!”


(MOTA, 1955, 170-171)

Mais que uma súplica, a alma condena-se ainda mais pelo fato de demonstrar
conhecimento da religião e, mesmo assim, negando-se a ser fiel em vida. Seu desespero é
tamanho pelo medo que sente de ir para o inferno por já estar rodeado de demônios a sua
espera:
O “horror diabólico” domina as consciências cristãs. Nas igrejas pregam-se
as penas infernais. [...] O Diabo causa terror e, através de sua figura e de sua
ação no mundo, impõe-se um rígido código moral. As narrações se
intensificam, crescem e ganham corpo, nas formas das visões apocalípticas.
(NOGUEIRA, 1986, p. 66)

Mas ele precisa ser julgado formalmente antes de ser dada sua sentença final. É mister
haver a cross examination35 para que todos os lados sejam ouvidos, todas as provas estudadas,
por isso a Alma do Barão ouve de São Pedro:
- “Alma, eu te abro a porta
Porque tu me vem rogar,
Porém não tenho poder
Pra fazer-te aqui ficar...
Tu recorre a Jesus Cristo
Que é quem jeito pode dar.”
(MOTA, 1955, p. 171)

A Alma adentra ao céu e vê a cena formada: é levado à sala do julgamento, onde estão
presentes o juiz, Jesus Cristo, ao centro. Do seu lado, a Virgem Maria, a advogada de defesa.
Do outro, o Cão, o acusador.
Após a denúncia formalizada, é a hora e a vez de o réu fazer sua petição e de o juiz dar
a sentença:
“Arretira-te, alma ingrata,
Vai pra donde tu andaste,
Que a santa Religião
Tu nunca que procuraste:
Te dei trinta e quatro anos,
Nunca de mim te lembraste.”
(MOTA, 1955, p. 171)

Em seguida, passa-se a palavra ao promotor, o Cão. A oratória do Diabo gira em torno


do discurso religioso, apontando as faltas graves do Barão, o que justificaria sua ida eterna

35
Inquirição direta e sucessiva, quando juiz, acusador e advogado tomam a palavra respectivamente.
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para as moradas infernais. Diante do exposto pelo advogado de acusação, o juiz reconhece os
argumentos e as provas convincentes do causídico. A Alma é julgada por não ter feito o bem,
omitindo-se de resolver ou ao menos minorar a problemática da fome no sertão, é acusado de
não ter sido solidário, nem humano, tampouco humilde em sua estada terrena.
Depois de confirmada a sentença infernal à Alma, resta-lhe apenas apelar para a
segunda instância, por isso clama por Nossa Senhora. Segundo Mota (1955), o ”Castigo da
soberba“ espelha bem a confiança que os sertanejos depositam na misericórdia divina (p.168).
Nesse agravo36, o réu compreende que não há salvação para si mesmo se não for através da
misericórdia. Jesus Cristo, o Juiz, não pode desvincular-se de sua função e ignorar as provas
que constam nos autos. Ele precisa agir com equidade, já que é a personificação da Justiça.
Cabe, então, a sua mãe, compadecer-se do homem perdido por distanciar-se de Deus:
(Alma) - “Valha-me, ó Virgem Maria,
Pelo vosso resplandor,
Pelo dia em que nasceu
Pelo nome que tomou,
O nome do vosso filho
Que no ventre carregou!”

(Maria) - “Alma, já que me chamaste,


Na presença te cheguei,
Tu falaste com fiança
Neste nome que eu tomei,
No nome de meu filhinho
Que no ventre carreguei.”
(MOTA, 1955, p. 173)

O recurso impetrado pelo réu apela não mais para a justiça, já que, por esta, seria
condenado, usa do recurso emocional, do arrependimento tardio para suscitar a compreensão
de Maria. Nesse ínterim, o requerente abandona todas as regras de um júri, quebra os
protocolos a fim de garantir a sua revisão da pena.
Nossa Senhora é chamada para atuar como advogada de defesa pelo fato de estar
ligada intimamente ao ser humano. Ao ser considerada a mãe da humanidade, Maria dirige ao
homem um olhar diferente. É o olhar de amor de uma mãe que é capaz de sobrepujar a tudo e
a todos. Só o pedido de uma genitora pode ser mais forte e mais imperioso que o direito.
Maria, mãe de Jesus, o Amor maior que a Justiça:
(Alma) – “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança dos mortais,

36
Recurso contra decisão do Juiz ou Desembargador.
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Quem recorre a vosso nome


Sei que não desamparais,
Eu, pegando em vossos pés
Sei que não largo eles mais.”

(Maria) – “Pois, alma, demora aí,


Enquanto eu vou consultar,
Fazer pedido a meu Filho,
Ver se eu posso te salvar,
Ver se teus grandes pecados
Tem grau de se perdoar.”

(Cão) – “Como esta tal Maria


Eu mesmo nem nunca vi:
Uns pedem por interesse,
Pedem porque é pra si,
Mas ela pede é pros outros,
Não se enjoa de pedir...”
(MOTA, 1955, p. 175)

Abre-se no Julgamento para os debates, a Alma, o Cão e Maria intercalam-se na


réplica e na tréplica acerca das atitudes do Barão e das consequências por causa destas. O
Cão, representante do Ministério Público, apela para as leis estabelecidas pelo próprio Cristo
nas Escrituras sagradas, enquanto Maria, ao solicitar apartes, contrapõe o Promotor e o
próprio Juiz com exemplos de jurisprudências, ou seja, decisões judiciais que abrem brechas
para decisões que não constam na lei ou que a interpretam de forma diferente da usual. Foi
assim com Cipriano, com Paulo, o pai de Santo Antonio, a filha da Cananéia, bem como
Longuim e Pedro, todos beneficiados pelo perdão do Juiz Manuel, todos alcançados pela
compaixão divina.
Do mesmo modo, como nenhum desse obteve sentença favorável por méritos
próprios, Maria cita tais casos a fim de livrar seu cliente, a Alma do Barão, das labaredas do
Inferno. Desse modo, Jesus Cristo não pode desdizer-se, negar-se, tampouco, como filho
obediente que é, recusar um pedido da sua mãe:
(Jesus) - “Pois, minha Mãe, carregue a alma,
Leve em sua proteção,
Diga às outras que a recebam,
Façam com ela união...
Fica feito o seu pedido:
Dou a ela a salvação.”

(Cão) – “Vamos todos nós embora


Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
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Não será o derradeiro...


Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro!”
(MOTA, 1955, p. 177)

É desse modo que o homem obtém a salvação, não advinda da Justiça, já que todo ser
humano é pecador e distante da divindade, mas pela misericórdia personificada em Nossa
Senhora, a representante do homem no tribunal celeste, a intercessora de todo ser que a
procura, pobre ou rico, fraco ou forte, preto ou branco. A representação da Grande-Mãe, da
Nossa Senhora é a da divindade mais próxima do homem, aquela que intervém em favor do
homem por ter sido primeiramente humana e alçada ao grau de santa por levar em seu ventre
o Filho de Deus.
Se Cristo, outrora Pai de Amor, agora se consubstancia em Pai da Justiça, é Maria
quem ocupa seu lugar de Amorosa, de Misericordiosa, no imaginário popular nordestino
presente no Castigo da soberba e também recorrente no Auto da Compadecida.
No texto de Suassuna, Nossa Senhora, a Compadecida, é apresentada como o símbolo
de afabilidade e de brandura. Com voz mansa, mas firme, é autora de gestos discretos, embora
significativos. Taxada de bisbilhoteira pelo Encourado, ao declarar que “mulher em tudo se
mete” (1975, 14), o Demônio evidencia o temor que possui de seu desempenho.
O Diabo é cônscio da tradição patriarcal, que eleva a figura da mãe dentro do lar, na
educação dos filhos. Essa veneração que a genitora alcança faz dela um ser poderoso, pois,
aliando doçura e firmeza, consegue ser a personificação da temperança, virtude que a alça ao
lugar de defensora maior de todos os homens, todos seus filhos por adoção:
ENCOURADO: Protesto.
MANUEL: Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu
velho. Discordar de minha mãe é que não vou.
ENCOURADO: Grande coisa esse chamego que ela faz pra salvar todo
mundo! Termina desmoralizando tudo. (SUASSUNA, 1975, p. 170-171)

João Grilo, o Amarelo picaresco suassuniano, ciente da faceta misericordiosa de


Maria, clama por sua ajuda, como o fez a Alma, no Castigo da soberba:
Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa
ela tem de ser ouvida! [...] Ah e você pensa que eu me entreguei? Pode ser
que eu vá (para o inferno)37 , mas não é assim não! [...] Ah, isso é comigo.
Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela (a Virgem) 38
vem, querem ver? (SUASSUNA, 1975, p. 143)

37
Acréscimo nosso.
38
Acréscimo nosso.
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Grilo é o homem do povo, sofredor, injustiçado, mas também aquele que usou as
mesmas armas que seus algozes. Mentiu, roubou, enganou. Primeiro, por necessidade, depois,
pelo prazer de vingar-se dos ricos e dos poderosos, daqueles que não pensam na causa dos
fracos, mas os oprimem. O Amarelo é também perspicaz para compreender que a única arma
que possui é a palavra. Sseu último instrumento é a voz e sua capacidade de persuadir, de
convencer.
Ali no entre-lugar, entre o céu, o inferno e o purgatório, Grilo vê-se ao lado do
Cangaceiro Severino de Aracaju, seu assassino, acompanhado pelo Padeiro e sua Esposa, seus
patrões sovinas, do Padre e do Bispo, os clérigos pouco afeitos à causa dos menos
favorecidos. Todos agiram contra o Grilo e contra todos Grilo agiu.
Abre-se o livro de registro dos pecados, descortina-se o rol de falhas humanas,
visibiliza-se a lista de desvios sociais:
[...] Simonia, no enterro do cachorro, velhacaria, política mundana,
arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes [...] falta de
coleguismo com o bispo [...] preguiça [...] Hipocrisia e auto-suficiência [...]
roubava a igreja. [...] Piores patrões. [...] avareza do marido, adultério da
mulher. [...] Mataram mais de trinta. [...] o amarelo, que enganava todo
mundo. (SUASSUNA, 1975, p. 149-163)

São faltas graves cometidas, que gerariam, certamente, uma sentença condenatória.
Após a acareação do Padeiro e sua Esposa, do Bispo, do Sacristão e do Padre, há a
interferência de João Grilo, que decide atuar como o representante legal dos acusados. Aí,
mais uma vez, o Amarelo apropria-se de sua competência discursiva para, em nome do
cristianismo, conseguir um acordo, com a justificativa de derrotar o Demônio. A pena é
reduzida de ida eterna ao Inferno para uma passagem temporária pelo Purgatório, a fim de
expurgar os erros cometidos e tornarem-se aptos ao céu:
[...] Aqui não se trata de purificar uma coisa, nem mesmo de limpar uma
determinada área. Trata-se, sim, de purificarmos a nós mesmos: com a
morte, o homem, ainda mesmo como pessoa espiritual e moral, adquire
caráter e consumação definitivos. [...] (VAZ, 2004, p. 73).

O Purgatório caracteriza-se por ser um local provisório, usado como meio de o


condenado rever seus erros, arrepender-se de seus pecados. No Auto, esse espaço funciona
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como uma pena alternativa, livrando os personagens de caírem nas mãos do Encourado e dos
seus carcereiros, os demônios.
É com esse argumento que Grilo consegue livrar os religiosos e seus ex-patrões da
pena máxima:

JOÃO GRILO: Um momento, senhor. Posso dar uma palavra? [...] Os cinco
últimos lugares do purgatório estão desocupados?
MANUEL: Estão.
JOÃO GRILO: Pegue esses cinco camaradas e bote lá!
A COMPADECIDA: É uma boa solução, meu filho. Dá pra eles pagarem o
muito que fizeram e assegura a sua salvação.
JOÃO GRILO: E tem a vantagem de descontentar aquele camarada39 ali que
é pior do que carne de cobra. [...]
MANUEL: Então está concedido. (Auto, p. 180-169)

Severino de Aracaju é absolvido, justificado pelos traumas de infância, contudo, resta


ainda o julgamento do João Grilo, o amarelo mais sabido do sertão. Astucioso e trapaceiro,
sobre si recaem as maiores queixas. Até mesmo sua causa mortis40 fora atribuída a sua
tentativa de enganar e mentir para Severino e os cangaceiros. Não há lugar no Purgatório para
Grilo, não há espaço no céu para o pícaro do sertão. Para ele, a única alternativa é usar no
julgamento celeste as mesmas artimanhas utilizadas na terra. Sua última aposta é confundir o
Juiz com seus argumentos e apelar à Advogada do homem, a Compadecida. Nesse instante, de
posse do poder do convencimento, João recebe como sentença uma nova oportunidade na
terra:
A COMPADECIDA: João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de
suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre com a nossa. Não
o condene [...] Peço-lhe então, muito simplesmente, que não condene João.
[...] Dê-lhe então outra oportunidade.
MANUEL: Como?
A COMPADECIDA: Deixe João voltar.
MANUEL: Você se dá por satisfeito?
JOÃO GRILO: Demais. [...] (SUASSUNA, 1975, p.183-184)

Em toda a peça de Suassuna, o maniqueísmo está presente nas discussões religiosas,


quando o autor defende o certo versus o errado, o bem versus o mal, o egoísmo individual
versus o altruísmo coletivo. Surgido no século III, na Pérsia e na Babilônia, o maniqueísmo é
uma filosofia sincrética pautada pelo dualismo. Há dois lados, duas maneiras de se ver o

39
Refere-se ao Encourado.
40
Causa da morte.
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mundo, reduzindo o campo de visão do homem, diminuindo as suas opções (ROSA, 2008). O
cristianismo bebeu da fonte do maniqueísmo, adaptando as suas leis a ideia do sim ou não
como únicas respostas viáveis aos cristãos, mas admitindo que há outras soluções possíveis,
mas estas conduzirão o ser humano ao Inferno e ao Maligno.
Para si, o Amarelo não desejava a mesma pena que os demais julgados obtiveram.
Conseguira separar os processos e fora julgado sozinho. Assim, tivera oportunidade de causar
nos membros do júri a dúvida e, nesse caso, in dubio pro reo41:
A COMPADECIDA: [...] Não o condene, deixe João ir para o Purgatório.
JOÃO GRILO: Para o Purgatório? Não, não faça isso assim não. [Chamando
a Compadecida à parte.] Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito
negociante e com esse povo a gente pede mais, para impressionar. A senhora
pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA: Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de
outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?
JOÃO GRILO: Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada termina
enrolando nós dois!
A COMPADECIDA: Deixe comigo. [...] Então fica satisfeito42?
JOÃO GRILO: Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.
(SUASSUNA, 1975, p. 183-184)

Ipso facto43, Grilo vence o Diabo, obtendo, entre todos, a melhor sentença. O autor
paraibano, nesse momento, evidencia a força da religiosidade popular, que inclui uma ideia de
reencarnação, rejeitada pelo cristianismo clássico. O Amarelo experimenta a sensação de
imortalidade, prova do desejo humano de ser eterno ao conseguir seu retorno ao sertão. É
vitorioso por pelejar e derrotar o Encourado, bem-sucedido no embate discursivo com
Manuel, produtivo no convencimento de seus argumentos, seja no chão árido de Taperoá, seja
entre os espaços celestiais do julgamento.
Ao obter uma sentença ex tunc44, Grilo agradece a sua advogada pela absolvição dos
pecados, ao tempo em que solicita sua ajuda, visto que é difícil livrar-se de velhos hábitos:

41
Na dúvida a favor do réu.
42
A Compadecida consegue que João Grilo retorne a terra.
43
Em decorrência disso.
44
Os efeitos da sentença retroagem, sendo aplicados aos fatos acontecidos antes da publicação da
sentença.
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GRILO: Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu!
[Ajoelhando-se diante de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão.] Até à vista,
grande advogada. Não me deixe de mão não, estou decidido a tomar jeito,
mas a senhora sabe que a carne é fraca. (SUASSUNA, 1975, p.188)

Os últimos instantes do julgamento de João Grilo são marcados pelo tom de comédia
na fala do personagem. Grilo é um pícaro e, como tal, está condenado a ludibriar as pessoas, é
o que sabe melhor fazer. Sua malandragem é defendida na obra como a estratégia encontrada
pelo homem pobre para sobreviver em meio ao descaso político e religioso. Para tal, usa o
‘jeitinho brasileiro’ como
Uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente
brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar
ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e –
também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais
gerais. (DAMATTA, 1986, p. 103).

Grilo é a síntese de um Nordeste árido, mas também simboliza um lugar alegre, feliz
apesar das disparidades, dos descasos e dos desmandos. Suassuna, em sua obra, defende que o
‘jeitinho brasileiro’ só existe porque falta uma ação oficial mais contundente, um olhar
diferenciado sobre o Nordeste, especificamente no sertão. Para o autor, a religião é o caminho
alternativo para a resolução dos problemas locais. O catolicismo, vivido em sua plenitude, é o
caminho para o conserto da sociedade e para o concerto do homem com a divindade, já que a
Deo rex, a rege lex45.

Consummatum est46
O castigo da soberba, cordel de autoria desconhecida, corrobora com o Auto da
Compadecida, texto teatral brasileiro mais popular do século XX, na discussão do poder da
religião na vida do sertanejo. Com efeito moralizante, ambos os textos julgam religiosamente
os seus personagens com o intuito de julgar o homem socialmente. A estrutura montada no
céu assemelha-se ao júri terreal; há defesa, há acusação e há apresentação de provas. Mas o
homem é condenado por afastar-se de Deus e, ao fazê-lo, distancia-se de si mesmo e de seus
semelhantes. A visão coletiva, nas obras, sobrepõe-se ao ideal individualista, percebido como
egoísmo e atraso social.

45
O rei vem de Deus, a lei vem do rei.
46
Está consumado.
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A obra suassuniana, perceptivelmente baseada no cordel anônimo, lida com a ideia de


texto literário como um grande intertexto, enfim, o texto como o emaranhado das leituras do
seu autor, a literatura enquanto espaço de trocas simbólicas, de exposições ideológicas, de
lembrança a outros escritores e textos. O terceiro ato do Auto da Compadecida é uma
homenagem ao Castigo da soberba.
Nos dois textos, julgam-se os personagens, mas também há, a cada leitura, o
julgamento dos leitores; em cada montagem, o julgamento dos espectadores. Essa é uma
avaliação que não se extingue completamente. Enquanto houver homem, haverá julgamento.
Por hora, declaro encerrados os presentes trabalhos relativos ao diálogo entre o
Castigo da soberba e o Auto da Compadecida, sessão especial da reunião periódica do
corrente ano do Tribunal do Júri.
Res judicata pro veritate accipitur47.

Referências

ANGHER, Anne Joyce. Vade Mecum. São Paulo: Rideel, 2011.

BENSANÇON, Alain. A imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

Castigo da soberba. In: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a
Noite, 1955.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

GOIS, João de Deus. Religiosidade popular. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974

MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a Noite, 1955.

NOGUEIRA, Carlos Alberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986.

ROSA, José Maria Silva. Da cisão extrema, no Maniqueísmo, à identidade como relação, em
Confissões X. Covilhã: Lusofonia, 2008

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 11. ed. Rio de janeiro : Agir, 1975.
47
A coisa julgada é tida como verdadeira.
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VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de
janeiro: Francisco Alves, 1993.

VAZ, Eurides Divino. Uma reflexão sobre céu, inferno e purgatório. Petrópolis, RJ: Vozes,
2004.

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