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As reinvenções da Semiótica: entrevista com Ione Bentz

As reinvenções da Semiótica:
entrevista com Ione Bentz
André Corrêa da Silva de Araujo
Doutorando, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
andrecsaraujo@gmail.com

Luis Felipe Silveira de Abreu


Doutorando, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
paraluisabreu@gmail.com

Sinara Sandri
Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
sinara.sandri@gmail.com

Resumo
Com mestrado em Linguística em 1974, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e
doutorado em 1980, na Universidade de São Paulo, a formação da professora e pesquisadora Ione Maria
Ghislene Bentz está ligada à chegada dos estudos linguísticos e semióticos ao Brasil, e ao seu posterior
desenvolvimento como um campo de pesquisa fértil aos problemas da comunicação e da cultura.
Professora aposentada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com passagem pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, hoje, ela atua como
professora e pesquisadora junto à Pós-Graduação em Design da mesma universidade. Nesta entrevista, a
pesquisadora discute as particularidades da trajetória da Semiótica como campo de investigação no país,
destacando não só suas potências enquanto instrumento epistemológico e heurístico, mas também suas
dificuldades e conflitos disciplinares e institucionais ao longo dos últimos 40 anos.

Palavras-chave
Semiótica. Epistemologia. Teoria da Comunicação.
Complexidade.

Desde o lançamento de suas bases com Charles Sanders Peirce e Ferdinand de


Saussure, no iníício do Seí culo XX, e tendo como marco a difusaã o do estruturalismo a partir
dos anos 1950, a Semioí tica tem passado pelos mais diversos traâ nsitos – ou, para usarmos
um termo caro aà disciplina, pelas mais diversas traduçoã es. Passagens entre continentes e
perspectivas, desalojamentos institucionais entre campos como a Letras e a Comunicaçaã o,
em uma dinaâ mica entre a invençaã o e a consolidaçaã o; uma histoí ria que eí refletida na
trajetoí ria intelectual de Ione Maria Ghislene Bentz.
Com mestrado em Linguíística em 1974, com orientaçaã o de Wilson Guarany, na
Pontifíícia Universidade Catoí lica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e doutorado em 1980,

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orientada por Izidoro Blikstein, na Universidade de Saã o Paulo (USP), a formaçaã o da


professora e pesquisadora estaí ligada aà chegada dos estudos linguíísticos e semioí ticos ao
Brasil, e ao seu posterior desenvolvimento como um campo de pesquisa feí rtil aos problemas
da comunicaçaã o e da cultura. Professora aposentada pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), com passagem pelo Programa de Poí s-Graduaçaã o em Cieâ ncias da
Comunicaçaã o da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), hoje, ela atua como
professora e pesquisadora junto aà Poí s-Graduaçaã o em Design da Unisinos. Conduzindo a
experieâ ncia por esses espaços, o trabalho com a Semioí tica e seu interesse pelos processos de
significaçaã o e pelas linguagens sincreí ticas estaã o aíí envolvidas.
Nessa entrevista, Bentz destaca pontos dessa trajetoí ria, refletindo os avanços e as
dificuldades na insurgeâ ncia de novas propostas cientííficas. Pensa-se aqui sobre o lugar
arisco da Semioí tica, nessa sua taã o intensa vida pela academia brasileira, de disputas tanto
conceituais quanto institucionais. Em meio a isso, o que se destaca eí sua potencialidade de
fornecer uma matriz teoí rica epistemoloí gica firme, ao mesmo tempo em que se apresenta
como dispositivo para experimentaçoã es concretas e “laboratoriais”.

O desenvolvimento da Semiótica no Brasil, pelos seus espaços e suas temporalidades,


nos parece ligado com a sua própria trajetória intelectual e acadêmica. Como tu
caracterizas a chegada desses estudos no país? Qual sua relação com esse primeiro
momento?
Minha trajetoí ria intelectual se confunde com minha atividade profissional. Quando
cheguei aà USP para o meu doutorado, em 1976, jaí vinha de uma experieâ ncia na Fundaçaã o de
Ensino Superior do Vale do Taquari (hoje Univates [Universidade do Vale do Taquari]). Nesse
perííodo, as ideias estruturalistas chegavam por meio da Linguíística, em um processo que
começou no iníício dos anos 1950. Por questoã es vaí rias, como a situaçaã o dos meios de
comunicaçaã o e das relaçoã es acadeâ micas internacionais, essas ideias jaí rodavam haí um
bocado de tempo em outros lugares, mas demoraram a circular no Brasil. Elas chegam ao Rio
Grande do Sul por algumas maã os. A primeira eí a do professor Wilson Guarany, que tinha
feito doutorado na Sorbonne e, laí , havia descoberto a Linguíística. Naã o “a” linguíística, mas
uma linguíística. Naã o a de base mais dura, ligada aà Fonologia e aà Sintaxe, mas aquela que
passamos a entender como Linguíística/Semioí tica. Mais ligada aà Semaâ ntica, essa linguíística
conseguiu dar conta, ou responder a algo que o Gerativismo de Chomsky, que dominava a
eí poca, naã o conseguiu. Tudo ia bem ateí a gramaticalidade das frases, mas naã o se dava conta

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das metaí foras ou das conotaçoã es etc. EÉ com essa bagagem que o professor Guarany chega
direto de Paris para PUCRS, com carta branca para montar um mestrado. Monta esse
programa, como figura principal, com uma boa formaçaã o de linguíística como cieâ ncia, que eí
como o Estruturalismo chegou aqui, atraveí s de Saussure, mas jaí aberto a todas influeâ ncias
que eu diria transdisciplinares. Estudaí vamos Kristeva, Barthes, Althusser, Derrida, entre
outros intelectuais de ponta. Entaã o, eu diria que nunca foi um mestrado ortodoxo , e essa
formaçaã o foi surpreendente, porque nos colocou em uma roda mais ampliada e deu foâ lego
aos nossos questionamentos, pois cada aluno jaí partia para explorar uma dessas vertentes.
Credito a isso a possibilidade de fazer uma semaâ ntica diferenciada, jaí que aparece,
teoricamente, na proposiçaã o de uma Semioí tica Greimasiana.

Esse processo seria anterior à passagem da Semiótica dos departamentos de Letras


para os de Comunicação? Como ocorre esse trânsito?
Essa passagem eí feita por essa visaã o ampliada da proí pria Linguíística. Ela acabou
ficando no seu lugar de origem, a Letras, institucionalmente, e acabou sendo vencida no
embate entre uma ideia do estudo da lííngua pelos textos literaí rios e as propostas de estudo
por meio da cultura. O professor Joaquim Mattoso Caâ mara foi o primeiro a perceber que
“existia algo, que naã o apenas a Literatura, a ser objeto de estudos das letras.”. Um primeiro
respiro que era tolerado, mas naã o necessariamente aceito, pois quando chega o
Estruturalismo com uma proposta de cieâ ncia que veâ a lííngua como um sistema e chega a
formulaçoã es com uso de equaçoã es, começa uma briga, uma disputa teoí rica em que a
compreensaã o de lííngua como cultura se veâ atingida. Entrou pela Letras, mas gerou um
conflito direto com o proí prio conceito de Literatura. Um conceito sempre muito forte no
Brasil, ao qual a visaã o cientíífica se colocava como antíípoda. A semioí tica tratava os textos
como quaisquer textos, naã o apenas os literaí rios, e fazia perguntas que a Literatura naã o fazia.
Ora, os cursos de Letras ficaram no aguardo enquanto a briga se dava entre os
estruturalistas e os literatos. Esse desenvolvimento, ali dentro, foi sendo minado. Havia
dificuldade, inclusive, da entrada nos curríículos dessa Linguíística que chegava para gerar
controveí rsias. .
Quem resolveu levar esses desafios, essas propostas, com mais força, foi a
Comunicaçaã o. Muito em parte, tambeí m, por envolvimentos institucionais: como o caso da
PUC/SP [Pontifíícia Universidade Catoí lica de Saã o Paulo] que tinha sua poí s-graduaçaã o em
Semioí tica e Comunicaçaã o e que realçou esse debate dizendo: “noí s existimos e fazemos

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semioí tica em vaí rias aí reas, inclusive na Comunicaçaã o”. Foi influeâ ncia, tambeí m, para criaçaã o
do Mestrado em Semioí tica da Unisinos. Nessa passagem, houve um esgarçamento positivo
que gerou uma razoaí vel toleraâ ncia aà Semioí tica. Mesmo assim, presentes nos curríículos de
graduaçaã o, as disciplinas foram desaparecendo, tambeí m, por falta de formaçaã o de
professores para trabalhar com elas. Formalmente, naã o acho que haja um lugar consentido
para a Semioí tica hoje, nem na Comunicaçaã o.
Entretanto, naã o se deve balizar esse pensamento pela formaçaã o em universidades ou
pela aceitaçaã o de programas e projetos de pesquisa. Tambeí m , percebo que as pessoas da
minha geraçaã o naã o se dizem estruturalistas, mas tu identificas sua formaçaã o no jeito de
pensar. Haí uma forma do raciocinar que identifica o pensamento estrutural. Chegou,
perturbou, se transformou e, transformando-se, os efeitos estaã o aíí. Passou, mas esses anos
[de] 1950, 1960 e 1970 naã o foram em vaã o.

Como tu avalias esses embates no campo da Comunicação? A que se deve essa perda
de um “lugar consentido”?
Para os estruturalistas, naã o haí diferença entre descriçaã o e anaí lise. Era anaí lise críítica.
O que se fazia a partir daíí [era] descrever categorias, propor categorias, mostrar os
movimentos relacionais e chegar a uma formulaçaã o que desse conta de uma classe de textos.
Poreí m, a quem interessa uma estrutura algoríítmica ou um resultado que deâ conta de uma
classe de textos, se o que interessa saã o interpretaçoã es socioculturais ou a vida dos textos
pela sua leitura??
A Comunicaçaã o sempre se pautou por processos de ordem midiaí tica e social, naã o se
contentando com as respostas desses estudos sisteâ micos. Reconhecia-se que a metodologia
era rigorosa teoricamente, mas, para noí s, a descriçaã o jaí era a anaí lise e, portanto, naã o
precisaria haver uma interpretaçaã o: uma descriçaã o que explicaria tal texto. Identificada a
estrutura estruturante, naã o haveria resposta soí para um texto, mas para todos os possííveis
textos a serem gerados. Entretanto, isso foi cortado quase pela raííz. Dizia-se “naã o queremos
estrutura de texto, isso eí uma coisa muito dura”. Naã o se sabia muito bem para o que aquilo
serviria e se as perguntas que tinham seriam iluminadas por essas metodologias.
Houve uma seí rie de equíívocos histoí ricos, sobretudo naquilo que foi sendo
apropriado de forma “leve” (trabalhos naã o rigorosamente cientííficos). Naã o pelo que estava
sendo desenvolvido por pesquisadores de ponta, como os da USP ou da PUCSP, mas pela
raí pida popularizaçaã o de um tipo de interpretaçaã o que parecia ser livre e subjetiva. A críítica

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acabou sendo pesada, levando aà desconsideraçaã o de tudo que dali viesse. Assim, na
apropriaçaã o da Semioí tica, ela acabou sendo tratada como um lugar de livre interpretaçaã o,
um lugar de pouco precisaã o conceitual. Um espaço de termos importantes como signo, por
exemplo, que acabaram perdendo sua especificidade e [foram] usados como fala de senso
comum. Nesse processo, a relevaâ ncia de uma origem cientíífica acabou se perdendo.
Contrariamente, entretanto, proliferou e, repito, ainda estaí por aíí.

A semiótica surge muito próxima dos movimentos de vanguarda não só no campo das
artes, como também dos formalismos no cinema, por exemplo. No Brasil, depois dos
anos 70 e 80, quando ela perde a proximidade com as vanguardas, em função de um
movimento histórico em que o pensamento retrocede ao século XVIII com a volta do
autor, o retorno de uma discussão da recepção que não passa por teorias da leitura
como elaborada por Barthes. A Semiótica perdeu a guerra ou essa guerra ainda pode
ser vencida?
Eu voltaria um pouco. Quando eu falo da literatura eu estenderia para as artes.
Mesmo os irmaã os [Augusto e Haroldo de] Campos e Deí cio Pignatari naã o estavam
confortaí veis com as consequeâ ncias do modelo semioí tico se naã o para a criaçaã o, mas para a
anaí lise.

Haveria irmãos Campos sem modelo semiótico?


Claro. Naã o depende disso. Os modelos naã o se confundem com a realidade; o desenho
que fazemos dela tem vaí rias fontes de inspiraçaã o, e em tempos de Modernismo,
Concretismo, etc., processos estruturantes alcançaram alto potencial inspirador. As teorias
naã o se confundem com ela, a realidade, [elas] a antecipam ou [a] sucedem, naã o importa, mas
a significam de vaí rias formas. Os modelos semioí ticos conseguiram dar compreensaã o,
discernimento, organizaçaã o e diferenciaçoã es caras aà produçaã o de arte. A arte sempre se
produz, nunca eí produzida. Talvez tenham faltado experimentaçoã es resultantes dos
estruturalismos, dessa compreensaã o, dessa dinaâ mica com taã o bons resultados tanto em
artes, quanto em cieâ ncias. Naã o se fez, porque a preocupaçaã o maior era compreender aquilo
que nunca foi faí cil, a Semioí tica nunca foi faí cil de dominar. Talvez seja isso de que reclamo,
mas naã o acho que haja qualquer atrelamento a nenhum modelo. As experimentaçoã es, sim,
mais do que as ditas aplicaçoã es, podem produzir coisas fantaí sticas e inovadoras. As formas
de experimentaçaã o, as experieâ ncias ‘laboratoriais’ talvez pudessem ter sido um ponto

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importante de aproximaçaã o entre a pesquisa em Comunicaçaã o que, se naã o eí , deveria ser


laboratorial. EÉ isso, quem sabe o casamento entre esses dois campos de conhecimento naã o
poderia ter sido mais harmonioso?

A sua carreira foi laboratorial? As suas experiências de gestão, por exemplo, não
foram um laboratório de Semiótica?
Provocadora a questaã o. A minha formaçaã o em Linguíística e Semioí tica mudou meu
paradigma. Nunca mais depois desses estudos, desde a cozinha ateí a praça, deixei de me
organizar e organizar o entorno semioticamente. Para os que naã o entendem que o
pensamento e a emoçaã o caminham juntos, pensam: ‘mas que coisa chata’. De modo nenhum.
A gente pensa, sente, vive a partir de paraâ metros, de percepçoã es que estaã o conformes aà
nossa matriz cognitiva. Nesse sentido, minha vida tem sido um laboratoí rio de Semioí tica. A
Semioí tica naã o foi um casaco que vesti, foi uma pele que cobriu a minha primeira pele como
uma maí scara que naã o desgruda da pele original. Uma simbiose, um amaí lgama. Para
qualquer coisa que eu olhe, pergunto: “no que isso eí diferente daquilo? Essas diferenças saã o
de que ordem?”. EÉ um bom víício. Quanto aà experieâ ncia de gestaã o e do magisteí rio, elas foram
sempre pautadas por esse tipo de movimento, dirííamos, cognitivo.

Parece que a semiótica assume para ti uma posição tripla: uma matriz epistemológica
e ideológica e um dispositivo teórico experimental, também, calcado em uma função
pragmática. Como entendes o funcionamento conjunto dessas três dimensões na
pesquisa em Semiótica e na Comunicação em geral?
Tenho percebido que as Cieâ ncias Sociais fazem pesquisa aplicada. Descobri que o
Design naã o faz pesquisa aplicada, faz produçaã o e praí ticas que, em pesquisa avançada, devem
ser compreendidas, faladas e ampliadas. Pensei que Comunicaçaã o tambeí m fizesse produçaã o,
mas quase toda a poí s-graduaçaã o avançou, a partir de pesquisa bibliograí fica, modelos e uso
de teoí ricos, em direçaã o aà pesquisa aplicada. As habilitaçoã es, as antigas, pelo menos, ficaram
de lado. Naã o pretendo fazer o contraponto com o pragmatismo, naã o eí o caso, mas eí inegaí vel
o poder das teorias de Foucault para tratar do jornalismo. Talvez se pudesse perguntar em
que Foucault alterou o fazer jornalíístico em Porto Alegre. Caberia uma pergunta deste tipo?
Responderia ao pragmatismo de inspiraçaã o Peirceana, via Morris? O dispositivo teoí rico de
inegaí vel importaâ ncia ganharia pertineâ ncia pragmaí tica reconhecíível? Como naã o ressaltar o
fundamento epistemoloí gico como identificador das bases teoí ricas? Sim, vejo essas matrizes,

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dimensoã es ou dispositivos interligados. Aliaí s, que bela discussaã o poderia ser feita a partir da
compreensaã o operativa (o que naã o significa concreta) dos dispositivos!
Uma coisa reconhecemos: os problemas que temos como sociedade precisam ser
antecipados, refletidos e pensados pela universidade (naã o soí , mas especialmente). EÉ seu
compromisso. Naã o eí apenas pegar uma teoria, conheceâ -la bem, aplicaí -la, trabalhar com
categorias e chegar a conclusoã es, mas descobrir, criar, formular ou propor novos modos de
conhecer ou de fazer. Perguntaria em relaçaã o aà semioí tica: ela tem, ou pode ter, vocaçaã o
projetual? Que supostas novas relevaâ ncias viriam deste compromisso de
construçaã o/reconstruçaã o de uma sociedade problematizante/problematizada? Enfim, seria
um desafio a ser respondido pelas dimensoã es anteriormente indicadas por uma pergunta.
Aliaí s, o que problematizar ou o que fazer eí o que naã o nos falta nestes tempos de Brasil.

A semiótica não seria, então, uma teoria meramente formalista no mau sentido, com
muito pouco a dizer sobre os contextos políticos e sociais concretos que estamos
imersos?
Na origem da semioí tica, o que se desenhou foi uma formalizaçaã o dos contos
populares. Naã o apenas os russos, mas a estrutura dos contos populares como um todo. Hoje
em dia, em tempos de induí stria 4.0, essas sistematizaçoã es dariam um belííssimo aplicativo. A
mateí ria dos aplicativos, as sistematizaçoã es, os softwares saã o concernentes aà s formalizaçoã es.
Talvez essa pudesse ser uma nova chave de leitura para as propostas da Semioí tica.
Haí uma coisa que preciso dizer. Andei por vaí rios terrenos: saíí da Linguíística, fui para
Comunicaçaã o e agora estou no Design, mas sou apenas uma cabeça, um soí campo: Semioí tica.
Eu opero por aíí, e as contestaçoã es veâ m das aí reas nas quais a semioí tica se acopla. Sou
rigorosa quanto aà precisaã o teoí rica e aà coereâ ncia entre epistemologia e metodologia. Naã o
considero a metodologia como um conjunto de teí cnicas ou ferramentas de pesquisa
desligadas daquilo que se estaí investigando e da episteme, isto eí , de um recorte de visaã o.
Entretanto, se aquilo que estaí s investigando estaí organizado em corpus, o teu corpus pode
acabar naã o se movendo. Quem sabe se absorvermos a ideia de exemplo e contraexemplo
trazida por Noam Chomsky. Ele naã o trabalhava com um corpus fechado, mas com exemplos
de fala que se contrapunham aà s frase-modelos que jaí haviam sido desenhados. Naã o acho que
devamos abandonar a ideia de corpus, mas eí preciso entendeâ -lo como uma plataforma de
salto, a partir do qual, o tal salto, pode acontecer muita coisa diferente e instigante. Se te
isolas na ideia do corpus como plataforma, ele se fecha e naã o se dinamiza.

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Você se afirma como uma pessoa que passou por várias áreas, mas que tem um só
campo, a Semiótica. Ao mesmo tempo, críticos afirmam que você abandonou a
Semiótica. No que eles têm razão ou não?
Eles teâ m razaã o. Se eu mandasse um texto de Semioí tica para uma revista especíífica da
aí rea, naã o receberiam. Naã o receberiam por causa da disciplina dos autores e da disciplina da
execuçaã o. Entre o pessoal que se manteve mais rigoroso, haí muito maior fidelidade a
autores. Essa “matriz de pensamento”, que para mim eí importante, naã o eí taã o importante
para os outros. AÀ s vezes, sequer reconhecido e muitas vezes considerado displiceâ ncia ou
“ressignificaçoã es impuras”. A matriz inclusive naã o eí nem percebida pelos alunos. Quando eí
percebida, eles a usam. Acabo dando maior valor aà matriz que gestou a Semioí tica do que aà s
teorias semioí ticas por ela gestadas. Permito-me reinterpretar com alguma ousadia pouco
rigorosa, quem sabe por que o mundo se move e as coisas se transformam e, tambeí m, noí s
nos transformamos em nosso modo de ver o mundo. Reconheço naã o ser bom ficar sem
‘tribo’ e sem todas as boas inclusoã es dela decorrentes.

Dada essa trajetória, como tu entendes esse termo polêmico da interdisciplinaridade?


A semiótica é interdisciplinar? Qual a validade desse termo?
Percebi que o que precisa ser revitalizado hoje em dia eí o conceito de sistema, aà luz
de uma Teoria da Complexidade, proposta por Edgar Morin. A noçaã o de sistema, assim
proposta, demanda rever o conceito de sistema/ato e as claí ssicas dicotomias saussurianas.
Reconheço relaçoã es de dependeâ ncia entre os elementos de um sistema, mas pode haver
ruíído ou acaso que o altere, em previsoã es, portanto, ou sem recurso a um reconhecido
sistema. Pensando na linha do contraexemplo, se algueí m cutucar as minhas teses, em vez de
suprimi-las para evitar a perturbaçaã o, vou agregar importantes conexoã es. Um acaso, um
cacoete capaz de alterar o sistema. Pode ser que o uso de “tipo” que pode, quem sabe,
funcionar como um prefixo que naã o sendo, aparece antes das palavras em portugueâ s. Assim:
“tipo maã e, tipo comi, tipo banana, tipo naã o vou etc”. A lííngua eí viva. Saã o essas rupturas que
criam as novidades. Obviamente, naã o sou contra o sistema/ato, mas sou a favor das
potencialidades do sistema mais abertos e de uma complexidade que naã o seja entendida
como “isso eí complexo, isso naã o eí complexo”, mas como um olhar que contemple justamente
essa complexidade e abertura dos sistemas. Pois, afinal, quem eí complexo eí o mundo, gente.
Nesse sentido, eí mais do que multi, inter ou qualquer coisa: eí transdisciplinar. Escapa-se da

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discussaã o do que seja ou naã o inter, multi ou pluri-disciplinaridade. Aceita-se que o teu
problema requer, invoca outras aí reas para que mais se saiba sobre ele, ou para que mais
tentativas de respostas sejam alcançadas. Que outras aí reas tu precisarias invocar? Quais os
ganhos? Como naã o esterilizar este potencial conceito pela visaã o de que pessoas de diferentes
especialidades se devam reunir e aportar sua contribuiçaã o? Por que naã o reconhecer o valor
da quebra da disciplinaridade, em vez de interpretaí -la como ‘coisa coletiva de pessoas que
querem trocar’. Enfim, naã o sei bem, apenas intuo que pode ser muito bom e diferente.

A Semiótica é um dispositivo metateórico?


Sim, eí um maravilhoso dispositivo metateoí rico, mas precisamos reconheceâ -lo nos
vaí rios nííveis de meta: linguagem-objeto e, entaã o, meta linguagem/teoria, metameta
(metodologia) ou metametameta (níível de epistemologia). Se naã o distinguirmos esses nííveis
de deslocamento vertical e interdependente, reduzimos o poder do termo, ou tiramos sua
potencialidade maior. AÀ s vezes, acho que sabemos bem o que fazer com esse tal dispositivo e
acabamos procurando outras companhias como, por exemplo, a psicanaí lise, combinaçoã es
horizontais e naã o de nííveis, embora, nos preocupemos com coereâ ncias do tipo como Lacan
propoã e o psiquismo como linguagem, olha bem coerente (nem tanto nos desdobramentos)
com a proposta da Linguíística/Semioí tica..

Quais seriam as companhias possíveis e as impossíveis da Semiótica na


contemporaneidade e como analisas a relação com a fenomenologia?
O que eí o contemporaâ neo? Naã o sei o que eí isso. Sofremos uma críítica de matriz e
vivemos um imperialismo do objeto com uma ideia bastante datada de deixar o objeto falar.
EÉ importante que se diga que a academia tem um compromisso com a metalinguagem, com o
rigor conceitual e com a formulaçaã o de interpretaçoã es relevantes, a partir de teoria bem
constituíída. Mas, nesse meio, deve haver alguma desordem, sem o que haveria pouco a
descobrir. Nesse ponto, eí preciso que se diga que as teorias semioí ticas saã o muito bem
constituíídas.
Estruturalismo e pragmatismo tiveram uma raiz comum, mas depois houve uma
dicotomizaçaã o em duas vertentes que se dizem incompatííveis. Saã o epistemes que manteí m,
de um modo ou outro, seu prestíígio cientíífico. Poderia tentar explicar que a ruptura prende-
se ao fato de que a matriz antes de ser semioí tica eí linguageira e, aíí, aparece a noçaã o de
representaçaã o. Jaí houve tentativas sem sucesso, digo eu, de abandonar a noçaã o de

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representaçaã o. Quando o pragmaí tico olha para a realidade e diz “eí isso” e pronto, ele
identifica o significado, mas naã o opera com a representaçaã o pela linguagem. Modo raso de
ver, talvez? E a fenomenologia, e o modo com a cieâ ncia hegemoâ nica a veâ , como naã o cientíífica,
como naã o rigorosa?
Fenomenologias bem reconhecidas – Heidegger, Merleau-Ponty etc. - reconhecem
tipos diferenciados de cogniçaã o e propoã em diferentes metodologias. Parecem inventivas,
sempre capazes de uma descoberta naã o prevista pelas regularidades sisteâ micas ou pelas
metodologias descritivas ou prescritivas. As posiçoã es fenomenoloí gicas naã o favoreceriam as
praí ticas abdutivas? Em determinado momento, naã o fariam renascer percepçoã es excluíídas
pelo rigor das cieâ ncias ‘duras’? A cieâ ncia eí irmaã geâ mea da arte, da inventividade. O meí todo eí
importante para percorrer os caminhos, mas naã o pode soterrar ou anular a imaginaçaã o e a
descoberta. Pela possibilidade que a fenomenologia tem de trabalhar com hipoí teses
absurdas, naã o apenas com consensos de que derivam hipoí teses, talvez ela abra
possibilidades. O insight, a intuiçaã o de ordem sensitiva, naã o pode ser perdida. Abordamos o
problema a partir de uma seí rie de questoã es que saã o da ordem do pensamento semioí tico,
mas naã o podemos trabalhar com uma percepçaã o que jaí esteja previamente racionalizada.
Como escapar desta armadilha? Onde fica a imaginaçaã o na cieâ ncia?

Há espaço para isso na pesquisa da Comunicação, marcada por uma lógica abdutiva,
por exemplo?
Naã o haí , em princíípio, interdiçoã es: haí escolhas e ousadias. O pensamento abdutivo
estaí na origem e antecede qualquer organizaçaã o de pesquisa, mas tambeí m eí possíível pensar
adiante a partir de hipoí teses de futuros inventadas. Por exemplo, eí possíível pensar a partir
da negaçaã o de todo de qualquer saber acumulado sobre documentaí rios como narrativas.
Tudo absolutamente negado. Logo a pergunta: O que aconteceria? O que se descobriria? Que
nova ordem de formulaçoã es seriam feitas? Que novos objetos-documentaí rio viriam a ser
criados? Boas perguntas... Naã o interessa a ningueí m se perguntar sobre isso? Noí s temos
mantido uma trilha de pesquisa de conformidade a moldes e tradiçoã es que acaba tendo
pouca inventividade. Estarei sendo demasiado severa?

Seria algo como perguntar “e se”, em vez de buscar as melhores hipóteses para
explicar um efeito?

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Seria estimulante pensar em situaçoã es como “e se algo”. Essa abertura poderia


orientar trabalhos com metodologias diferenciadas. Naã o devemos estar completamente
configurados racionalmente. Naã o existe isso, pelo menos naã o acho bom. A psicologia naã o
conseguiu separar o sensíível do racional, mas continuamos trabalhando com uma
racionalidade que se sobrepoã e aà s sensaçoã es. Ela deve se sobrepor na cieâ ncia e ocupar o
espaço da imaginaçaã o; deve ter um lugar precedente na configuraçaã o de um projeto de
pesquisa.
Haí pessoas experimentando em algum lugar. Provavelmente, saã o estes trabalhos que
estaã o em nuí mero minoritaí rio nas estatíísticas. O lugar para esta inventividade eí a fase de
preí -formataçaã o do projeto. Se existe este espaço inventivo, o desenvolvimento do projeto vai
respeitaí -lo. O problema eí que essa discussaã o de inventividade estaí muito distante da cieâ ncia
e torna-se necessaí rio inventar um lugar para a descoberta. A academia exige projetos
perfeitos em que a pessoa precisa saber antecipadamente aonde quer chegar e acredita que
o como fazer daraí respostas. Esse eí o formato que atende aà exigeâ ncia da academia. O
formalismo negado aà origem estrutural domina toda a estrutura universitaí ria.

Como analisa a semiótica da perspectiva do modelo e da necessidade de ser


experimental?
Desloquei a Semioí tica para uma forma de organizaçaã o do pensamento e de
percepçaã o do mundo. Usar modelos eí outra opçaã o. Usar tudo isso para fomentar ou propor
experimentaçoã es eí apenas outra funcionalidade. Acredito que na experimentaçaã o a
Semioí tica se reinvente. Fica um convite: vamos, Comunicaçaã o e Design criar um laboratoí rio
que teste o potencial da Semioí tica para propor sistemas, processos, produtos ou quaisquer
outros artefatos?

Agradecimentos
Agradecemos a presença de Alexandre Rocha da Silva, Bruno Leites e Marcelo
Bergamin Conter pela participaçaã o na entrevista.

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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. x, p. 0-0, mês ano.


As reinvenções da Semiótica: entrevista com Ione Bentz

Reinventing Semiotics: an interview with


Ione Bentz

Abstract

With a Master’s degree in Linguistics from 1974 (PUCRS) and a


PhD from 1980 (Universidade de São Paulo), Ione Betnz’s
formation is strictly connected with the arrival of the linguistic
and semiotic studies in Brazil and also with its further
development as a fertile research field for communication and
cultural problems. Emeritus professor from Universidade
Federal do Rio Grande do Sul and a part of the Postgraduate
Program of Communication Sciences at Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, nowadays Ione works as professor and researcher
in the Postgraduate Program of Design at Universidade do Vale
do Rio dos Sinos. In this interview, Ione discusses the
particularities of Semiotics as a research field in the country,
highlighting its potentialities as an epistemic and heuristic
instrument, but also its disciplinary and institutional difficulties
for the last 40 years.

Keywords
Semiotics. Epistemology. Communication Theory. Complexity.

Recebido em 11/04/2018
Aceito em 12/04/2018

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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. x, p. 0-0, mês ano.

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