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As reinvenções da Semiótica:
entrevista com Ione Bentz
André Corrêa da Silva de Araujo
Doutorando, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
andrecsaraujo@gmail.com
Sinara Sandri
Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
sinara.sandri@gmail.com
Resumo
Com mestrado em Linguística em 1974, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e
doutorado em 1980, na Universidade de São Paulo, a formação da professora e pesquisadora Ione Maria
Ghislene Bentz está ligada à chegada dos estudos linguísticos e semióticos ao Brasil, e ao seu posterior
desenvolvimento como um campo de pesquisa fértil aos problemas da comunicação e da cultura.
Professora aposentada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com passagem pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, hoje, ela atua como
professora e pesquisadora junto à Pós-Graduação em Design da mesma universidade. Nesta entrevista, a
pesquisadora discute as particularidades da trajetória da Semiótica como campo de investigação no país,
destacando não só suas potências enquanto instrumento epistemológico e heurístico, mas também suas
dificuldades e conflitos disciplinares e institucionais ao longo dos últimos 40 anos.
Palavras-chave
Semiótica. Epistemologia. Teoria da Comunicação.
Complexidade.
das metaí foras ou das conotaçoã es etc. EÉ com essa bagagem que o professor Guarany chega
direto de Paris para PUCRS, com carta branca para montar um mestrado. Monta esse
programa, como figura principal, com uma boa formaçaã o de linguíística como cieâ ncia, que eí
como o Estruturalismo chegou aqui, atraveí s de Saussure, mas jaí aberto a todas influeâ ncias
que eu diria transdisciplinares. Estudaí vamos Kristeva, Barthes, Althusser, Derrida, entre
outros intelectuais de ponta. Entaã o, eu diria que nunca foi um mestrado ortodoxo , e essa
formaçaã o foi surpreendente, porque nos colocou em uma roda mais ampliada e deu foâ lego
aos nossos questionamentos, pois cada aluno jaí partia para explorar uma dessas vertentes.
Credito a isso a possibilidade de fazer uma semaâ ntica diferenciada, jaí que aparece,
teoricamente, na proposiçaã o de uma Semioí tica Greimasiana.
semioí tica em vaí rias aí reas, inclusive na Comunicaçaã o”. Foi influeâ ncia, tambeí m, para criaçaã o
do Mestrado em Semioí tica da Unisinos. Nessa passagem, houve um esgarçamento positivo
que gerou uma razoaí vel toleraâ ncia aà Semioí tica. Mesmo assim, presentes nos curríículos de
graduaçaã o, as disciplinas foram desaparecendo, tambeí m, por falta de formaçaã o de
professores para trabalhar com elas. Formalmente, naã o acho que haja um lugar consentido
para a Semioí tica hoje, nem na Comunicaçaã o.
Entretanto, naã o se deve balizar esse pensamento pela formaçaã o em universidades ou
pela aceitaçaã o de programas e projetos de pesquisa. Tambeí m , percebo que as pessoas da
minha geraçaã o naã o se dizem estruturalistas, mas tu identificas sua formaçaã o no jeito de
pensar. Haí uma forma do raciocinar que identifica o pensamento estrutural. Chegou,
perturbou, se transformou e, transformando-se, os efeitos estaã o aíí. Passou, mas esses anos
[de] 1950, 1960 e 1970 naã o foram em vaã o.
Como tu avalias esses embates no campo da Comunicação? A que se deve essa perda
de um “lugar consentido”?
Para os estruturalistas, naã o haí diferença entre descriçaã o e anaí lise. Era anaí lise críítica.
O que se fazia a partir daíí [era] descrever categorias, propor categorias, mostrar os
movimentos relacionais e chegar a uma formulaçaã o que desse conta de uma classe de textos.
Poreí m, a quem interessa uma estrutura algoríítmica ou um resultado que deâ conta de uma
classe de textos, se o que interessa saã o interpretaçoã es socioculturais ou a vida dos textos
pela sua leitura??
A Comunicaçaã o sempre se pautou por processos de ordem midiaí tica e social, naã o se
contentando com as respostas desses estudos sisteâ micos. Reconhecia-se que a metodologia
era rigorosa teoricamente, mas, para noí s, a descriçaã o jaí era a anaí lise e, portanto, naã o
precisaria haver uma interpretaçaã o: uma descriçaã o que explicaria tal texto. Identificada a
estrutura estruturante, naã o haveria resposta soí para um texto, mas para todos os possííveis
textos a serem gerados. Entretanto, isso foi cortado quase pela raííz. Dizia-se “naã o queremos
estrutura de texto, isso eí uma coisa muito dura”. Naã o se sabia muito bem para o que aquilo
serviria e se as perguntas que tinham seriam iluminadas por essas metodologias.
Houve uma seí rie de equíívocos histoí ricos, sobretudo naquilo que foi sendo
apropriado de forma “leve” (trabalhos naã o rigorosamente cientííficos). Naã o pelo que estava
sendo desenvolvido por pesquisadores de ponta, como os da USP ou da PUCSP, mas pela
raí pida popularizaçaã o de um tipo de interpretaçaã o que parecia ser livre e subjetiva. A críítica
acabou sendo pesada, levando aà desconsideraçaã o de tudo que dali viesse. Assim, na
apropriaçaã o da Semioí tica, ela acabou sendo tratada como um lugar de livre interpretaçaã o,
um lugar de pouco precisaã o conceitual. Um espaço de termos importantes como signo, por
exemplo, que acabaram perdendo sua especificidade e [foram] usados como fala de senso
comum. Nesse processo, a relevaâ ncia de uma origem cientíífica acabou se perdendo.
Contrariamente, entretanto, proliferou e, repito, ainda estaí por aíí.
A semiótica surge muito próxima dos movimentos de vanguarda não só no campo das
artes, como também dos formalismos no cinema, por exemplo. No Brasil, depois dos
anos 70 e 80, quando ela perde a proximidade com as vanguardas, em função de um
movimento histórico em que o pensamento retrocede ao século XVIII com a volta do
autor, o retorno de uma discussão da recepção que não passa por teorias da leitura
como elaborada por Barthes. A Semiótica perdeu a guerra ou essa guerra ainda pode
ser vencida?
Eu voltaria um pouco. Quando eu falo da literatura eu estenderia para as artes.
Mesmo os irmaã os [Augusto e Haroldo de] Campos e Deí cio Pignatari naã o estavam
confortaí veis com as consequeâ ncias do modelo semioí tico se naã o para a criaçaã o, mas para a
anaí lise.
A sua carreira foi laboratorial? As suas experiências de gestão, por exemplo, não
foram um laboratório de Semiótica?
Provocadora a questaã o. A minha formaçaã o em Linguíística e Semioí tica mudou meu
paradigma. Nunca mais depois desses estudos, desde a cozinha ateí a praça, deixei de me
organizar e organizar o entorno semioticamente. Para os que naã o entendem que o
pensamento e a emoçaã o caminham juntos, pensam: ‘mas que coisa chata’. De modo nenhum.
A gente pensa, sente, vive a partir de paraâ metros, de percepçoã es que estaã o conformes aà
nossa matriz cognitiva. Nesse sentido, minha vida tem sido um laboratoí rio de Semioí tica. A
Semioí tica naã o foi um casaco que vesti, foi uma pele que cobriu a minha primeira pele como
uma maí scara que naã o desgruda da pele original. Uma simbiose, um amaí lgama. Para
qualquer coisa que eu olhe, pergunto: “no que isso eí diferente daquilo? Essas diferenças saã o
de que ordem?”. EÉ um bom víício. Quanto aà experieâ ncia de gestaã o e do magisteí rio, elas foram
sempre pautadas por esse tipo de movimento, dirííamos, cognitivo.
Parece que a semiótica assume para ti uma posição tripla: uma matriz epistemológica
e ideológica e um dispositivo teórico experimental, também, calcado em uma função
pragmática. Como entendes o funcionamento conjunto dessas três dimensões na
pesquisa em Semiótica e na Comunicação em geral?
Tenho percebido que as Cieâ ncias Sociais fazem pesquisa aplicada. Descobri que o
Design naã o faz pesquisa aplicada, faz produçaã o e praí ticas que, em pesquisa avançada, devem
ser compreendidas, faladas e ampliadas. Pensei que Comunicaçaã o tambeí m fizesse produçaã o,
mas quase toda a poí s-graduaçaã o avançou, a partir de pesquisa bibliograí fica, modelos e uso
de teoí ricos, em direçaã o aà pesquisa aplicada. As habilitaçoã es, as antigas, pelo menos, ficaram
de lado. Naã o pretendo fazer o contraponto com o pragmatismo, naã o eí o caso, mas eí inegaí vel
o poder das teorias de Foucault para tratar do jornalismo. Talvez se pudesse perguntar em
que Foucault alterou o fazer jornalíístico em Porto Alegre. Caberia uma pergunta deste tipo?
Responderia ao pragmatismo de inspiraçaã o Peirceana, via Morris? O dispositivo teoí rico de
inegaí vel importaâ ncia ganharia pertineâ ncia pragmaí tica reconhecíível? Como naã o ressaltar o
fundamento epistemoloí gico como identificador das bases teoí ricas? Sim, vejo essas matrizes,
dimensoã es ou dispositivos interligados. Aliaí s, que bela discussaã o poderia ser feita a partir da
compreensaã o operativa (o que naã o significa concreta) dos dispositivos!
Uma coisa reconhecemos: os problemas que temos como sociedade precisam ser
antecipados, refletidos e pensados pela universidade (naã o soí , mas especialmente). EÉ seu
compromisso. Naã o eí apenas pegar uma teoria, conheceâ -la bem, aplicaí -la, trabalhar com
categorias e chegar a conclusoã es, mas descobrir, criar, formular ou propor novos modos de
conhecer ou de fazer. Perguntaria em relaçaã o aà semioí tica: ela tem, ou pode ter, vocaçaã o
projetual? Que supostas novas relevaâ ncias viriam deste compromisso de
construçaã o/reconstruçaã o de uma sociedade problematizante/problematizada? Enfim, seria
um desafio a ser respondido pelas dimensoã es anteriormente indicadas por uma pergunta.
Aliaí s, o que problematizar ou o que fazer eí o que naã o nos falta nestes tempos de Brasil.
A semiótica não seria, então, uma teoria meramente formalista no mau sentido, com
muito pouco a dizer sobre os contextos políticos e sociais concretos que estamos
imersos?
Na origem da semioí tica, o que se desenhou foi uma formalizaçaã o dos contos
populares. Naã o apenas os russos, mas a estrutura dos contos populares como um todo. Hoje
em dia, em tempos de induí stria 4.0, essas sistematizaçoã es dariam um belííssimo aplicativo. A
mateí ria dos aplicativos, as sistematizaçoã es, os softwares saã o concernentes aà s formalizaçoã es.
Talvez essa pudesse ser uma nova chave de leitura para as propostas da Semioí tica.
Haí uma coisa que preciso dizer. Andei por vaí rios terrenos: saíí da Linguíística, fui para
Comunicaçaã o e agora estou no Design, mas sou apenas uma cabeça, um soí campo: Semioí tica.
Eu opero por aíí, e as contestaçoã es veâ m das aí reas nas quais a semioí tica se acopla. Sou
rigorosa quanto aà precisaã o teoí rica e aà coereâ ncia entre epistemologia e metodologia. Naã o
considero a metodologia como um conjunto de teí cnicas ou ferramentas de pesquisa
desligadas daquilo que se estaí investigando e da episteme, isto eí , de um recorte de visaã o.
Entretanto, se aquilo que estaí s investigando estaí organizado em corpus, o teu corpus pode
acabar naã o se movendo. Quem sabe se absorvermos a ideia de exemplo e contraexemplo
trazida por Noam Chomsky. Ele naã o trabalhava com um corpus fechado, mas com exemplos
de fala que se contrapunham aà s frase-modelos que jaí haviam sido desenhados. Naã o acho que
devamos abandonar a ideia de corpus, mas eí preciso entendeâ -lo como uma plataforma de
salto, a partir do qual, o tal salto, pode acontecer muita coisa diferente e instigante. Se te
isolas na ideia do corpus como plataforma, ele se fecha e naã o se dinamiza.
Você se afirma como uma pessoa que passou por várias áreas, mas que tem um só
campo, a Semiótica. Ao mesmo tempo, críticos afirmam que você abandonou a
Semiótica. No que eles têm razão ou não?
Eles teâ m razaã o. Se eu mandasse um texto de Semioí tica para uma revista especíífica da
aí rea, naã o receberiam. Naã o receberiam por causa da disciplina dos autores e da disciplina da
execuçaã o. Entre o pessoal que se manteve mais rigoroso, haí muito maior fidelidade a
autores. Essa “matriz de pensamento”, que para mim eí importante, naã o eí taã o importante
para os outros. AÀ s vezes, sequer reconhecido e muitas vezes considerado displiceâ ncia ou
“ressignificaçoã es impuras”. A matriz inclusive naã o eí nem percebida pelos alunos. Quando eí
percebida, eles a usam. Acabo dando maior valor aà matriz que gestou a Semioí tica do que aà s
teorias semioí ticas por ela gestadas. Permito-me reinterpretar com alguma ousadia pouco
rigorosa, quem sabe por que o mundo se move e as coisas se transformam e, tambeí m, noí s
nos transformamos em nosso modo de ver o mundo. Reconheço naã o ser bom ficar sem
‘tribo’ e sem todas as boas inclusoã es dela decorrentes.
discussaã o do que seja ou naã o inter, multi ou pluri-disciplinaridade. Aceita-se que o teu
problema requer, invoca outras aí reas para que mais se saiba sobre ele, ou para que mais
tentativas de respostas sejam alcançadas. Que outras aí reas tu precisarias invocar? Quais os
ganhos? Como naã o esterilizar este potencial conceito pela visaã o de que pessoas de diferentes
especialidades se devam reunir e aportar sua contribuiçaã o? Por que naã o reconhecer o valor
da quebra da disciplinaridade, em vez de interpretaí -la como ‘coisa coletiva de pessoas que
querem trocar’. Enfim, naã o sei bem, apenas intuo que pode ser muito bom e diferente.
representaçaã o. Quando o pragmaí tico olha para a realidade e diz “eí isso” e pronto, ele
identifica o significado, mas naã o opera com a representaçaã o pela linguagem. Modo raso de
ver, talvez? E a fenomenologia, e o modo com a cieâ ncia hegemoâ nica a veâ , como naã o cientíífica,
como naã o rigorosa?
Fenomenologias bem reconhecidas – Heidegger, Merleau-Ponty etc. - reconhecem
tipos diferenciados de cogniçaã o e propoã em diferentes metodologias. Parecem inventivas,
sempre capazes de uma descoberta naã o prevista pelas regularidades sisteâ micas ou pelas
metodologias descritivas ou prescritivas. As posiçoã es fenomenoloí gicas naã o favoreceriam as
praí ticas abdutivas? Em determinado momento, naã o fariam renascer percepçoã es excluíídas
pelo rigor das cieâ ncias ‘duras’? A cieâ ncia eí irmaã geâ mea da arte, da inventividade. O meí todo eí
importante para percorrer os caminhos, mas naã o pode soterrar ou anular a imaginaçaã o e a
descoberta. Pela possibilidade que a fenomenologia tem de trabalhar com hipoí teses
absurdas, naã o apenas com consensos de que derivam hipoí teses, talvez ela abra
possibilidades. O insight, a intuiçaã o de ordem sensitiva, naã o pode ser perdida. Abordamos o
problema a partir de uma seí rie de questoã es que saã o da ordem do pensamento semioí tico,
mas naã o podemos trabalhar com uma percepçaã o que jaí esteja previamente racionalizada.
Como escapar desta armadilha? Onde fica a imaginaçaã o na cieâ ncia?
Há espaço para isso na pesquisa da Comunicação, marcada por uma lógica abdutiva,
por exemplo?
Naã o haí , em princíípio, interdiçoã es: haí escolhas e ousadias. O pensamento abdutivo
estaí na origem e antecede qualquer organizaçaã o de pesquisa, mas tambeí m eí possíível pensar
adiante a partir de hipoí teses de futuros inventadas. Por exemplo, eí possíível pensar a partir
da negaçaã o de todo de qualquer saber acumulado sobre documentaí rios como narrativas.
Tudo absolutamente negado. Logo a pergunta: O que aconteceria? O que se descobriria? Que
nova ordem de formulaçoã es seriam feitas? Que novos objetos-documentaí rio viriam a ser
criados? Boas perguntas... Naã o interessa a ningueí m se perguntar sobre isso? Noí s temos
mantido uma trilha de pesquisa de conformidade a moldes e tradiçoã es que acaba tendo
pouca inventividade. Estarei sendo demasiado severa?
Seria algo como perguntar “e se”, em vez de buscar as melhores hipóteses para
explicar um efeito?
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Agradecimentos
Agradecemos a presença de Alexandre Rocha da Silva, Bruno Leites e Marcelo
Bergamin Conter pela participaçaã o na entrevista.
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Abstract
Keywords
Semiotics. Epistemology. Communication Theory. Complexity.
Recebido em 11/04/2018
Aceito em 12/04/2018
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