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PROPOSTA PEDAGÓGICA

NILZA EIGENHEER
BERTONI 1 UMA BREVE VISÃO DO ENSINO ATUAL DE MATEMÁTICA

Há uma dualidade bem visível no ensino atual de


Matemática. Por um lado, a concepção mais
tradicionalista – com certa rigidez, pouca funcionalidade e
muitas amarras – ainda domina, em grande parte, livros,
programas e ações em sala de aula, constituindo a
concepção adotada por boa parte de professores, pais e
mesmo autores de livros didáticos. Por outro lado,
observa-se uma inquietação, um inconformismo, uma
insatisfação crescentes frente a esse ensino, que se
traduzem em busca continuada e experimentação tímida
de novas alternativas. Algumas inovações ocorrem mesmo
entre aqueles que desenvolvem o ensino mais tradicional.

As duas correntes têm argumentos que as sustentam.


Os argumentos a favor da mudança têm sido mais altos e veementes,
por conta dos que crêem nela e a difundem. Esses argumentos apontam os
constantes fracassos do ensino tradicional, evidenciados nos testes nacio-
nais; consideram as mudanças sociais e a presente realidade dos alunos,
que demandam uma nova escolaridade e uma relação diferente entre profes-
1
sores e alunos. Tais argumentos destacam, também, defeitos no ensino tra-
Professora aposentada do
Departamento de Matemá- dicional, principalmente sua ênfase numa Matemática abstrata, formal, me-
tica da Universidade de canizada, expositiva, descontextualizada e apontam, ainda, para virtudes no
Brasília. Consultora desta
série. novo ensino, que seria mais dinâmico, concretizável, participativo e social-
mente significativo. Ainda mais – a Matemática tradicional seria uma Mate-
mática pronta, enquanto o novo ensino teria um caráter de descoberta ou
construção.

CONHECIMENTO MATEMÁTICO 2
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Os argumentos que mantêm o ensino como está são menos proclamados. Na verdade,
eles representam uma força entranhada nas pessoas, que se origina na manutenção de cren-
ças e hábitos que perduram há décadas e são expressos por sentimentos tais como: “Mate-
mática é difícil mesmo, o programa é extenso, não dá tempo de ficar inventando coisas para
fazer, foi sempre assim”.
O que se encontra, portanto, é um discurso relativamente difundido sobre novas formas
de ensino, ao lado de certa resistência à implantação de mudanças e algumas dificuldades
nesse processo.
Entretanto, já se evidencia qual dos lados dessa dualidade irá prevalecer. As mudanças,
embora lentas, estão chegando, seja nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas propostas
programáticas, nos livros didáticos e paradidáticos, nos planejamentos e discussões entre
professores.
É necessário que o professor se prepare para elas, evitando que venha a se sentir estra-
nho e incapaz de atuar, quando elas estiverem instaladas.

Um ensino voltado para a vida

Fatores como o fracasso no ensino da Matemática, mudanças na sociedade, que deman-


dam outra formação do cidadão, mudanças na realidade de vida do aluno e sua pouca motiva-
ção ante o conhecimento veiculado na escola levam a pensar em um ensino e uma escola
diferentes, mais significativos para o aluno atual e para o cidadão que queremos formar.
Nesse sentido, ao se pensar atualmente na aprendizagem matemática nas séries ini-
ciais, muito se tem falado no objetivo de desenvolver, no aluno, as competências e habilidades
matemáticas para a vida na sociedade de hoje. Entretanto, definir quais são essas habilida-
des, consubstanciar uma proposta que atenda a essa concepção e operacionalizá-la não têm
sido tarefas de fácil realização.
O conhecimento continua a ser um bem importante, em qualquer sociedade. Sem conhe-
cimento não há serviços nem progresso. Sem ele não há médicos, engenheiros, padeiros,
costureiros, professores, entre outros. Sem ele não há pesquisas visando à melhoria da saú-
de e das condições gerais de vida.
Na formação tradicional, os alunos deviam submeter-se a longos anos de estudo, a maio-
ria com um caráter sempre preparatório para os estudos seguintes. O ensino de 1ª a 4ª série
visava preparar o aluno para o ensino de 5ª a 8ª; o de 5ª a 8ª visava prepará-lo para o Ensino
Médio; este preparava para o vestibular. Na universidade, o aluno constatava que havia apren-
dido uma quantidade enorme de coisas das quais não precisava, não sabia usar e até esque-
cera, e havia deixado de aprender muitas que eram necessárias. Mesmo o ensino universitá-

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rio não garantia seu preparo para a profissão. Muitos médicos só começam a aprender sobre
a profissão em seu período obrigatório de residência em hospitais, durante dois anos após os
seis de duração do curso.
De algum modo, esse esquema tradicional de formação de um profissional tem se reve-
lado bastante ineficaz. Ele provoca exclusão e desistência ao longo de todo o ensino básico e
também na universidade. Um montante significativo de investimentos feitos pelo governo vai
se diluindo e ficando sem retorno; novos investimentos se fazem necessários para resgatar os
analfabetos, os desistentes, os excluídos.
Os alunos de hoje vivem em uma sociedade tecnológica e conturbada. Crescem dentro de
um novo ritmo global de vida. São muito mais soltos na estrutura familiar e social, onde convi-
vem com mais tensões. Desemprego e violência também fazem parte do cotidiano.
A escola também tem sua dinâmica, seu ritmo, suas relações internas alteradas. O paco-
te instrucional antigo já não se adapta às novas condições da sociedade e do aluno, já não
funciona mais. Na falta de uma política global mais ágil, que repense o papel da escola e
incorpore gradativamente as mudanças necessárias, a escola persiste basicamente no es-
quema tradicional, lutando por fazer funcionar o modelo antigo, cada vez com maior desgaste
e menos resultados.
Apesar do seu evidente fracasso, há certa insistência em um tipo de escolaridade que
quase não tem mudado. Não seria o caso de se pensar qual é o conhecimento que se adapta à
maioria das pessoas do mundo de hoje, e que também é necessário à sociedade em que
vivem? Ou seja, como desenvolver no aluno de hoje habilidades para a vida?
Um ponto relevante a considerar se refere às características de agilidade e funciona-
lidade na aprendizagem. Em um curso de computação ou de língua estrangeira, por exem-
plo, o aluno não quer mais ficar aprendendo, durante um ano ou mais, aspectos teóricos,
conhecimentos que ele não sabe para que servem, e que lhes dizem que serão úteis mais
tarde. Na sociedade atual, as pessoas querem adquirir conhecimento concomitantemente a
alguns de seus usos, querem saber para onde esse conhecimento está levando, querem
entender e participar da aprendizagem. Essa consciência ativa, atenta e participante é alta-
mente desejável na sociedade moderna, que não comporta mais, pela diversidade e inter-
relação de suas funções, sujeitos treinados em uma quantidade de habilidades fragmenta-
das, incapazes de discuti-las, modificá-las, adaptá-las, além de terem dificuldade em apren-
der outras.
Essas são características desejáveis para o conhecimento atual: ágil, funcional,
participativo. Ele deve também ser liberador – no sentido de remover barreiras que impeçam
a plena criatividade de uma pessoa, sua compreensão do que faz e autonomia de pensamento
frente a situações-problema.

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Distinguir o que é prioritário para a vida é algo que o professor atual deve saber. A
capacidade básica e mais geral a ser desenvolvida no aluno seria a de pensar, de saber desen-
volver uma atividade matemática nova, de buscar com autonomia a solução de problemas.
São comuns, no mundo atual, situações-problema para as quais existe um leque de solu-
ções possíveis, e que exigem, entre outros, conhecimentos matemáticos e tomadas de deci-
são. Elas requerem do aluno, mais que tudo, saber situar-se, perceber dados e conceitos de
que vai precisar, saber procurá-los ou criá-los e saber raciocinar e relacioná-los de modo a
obter uma resposta que, sem ser fechada, única e definida, seja uma solução plausível, dentro
do contexto.
Nessa análise do que é prioritário, o professor não pode ceder à tentação de querer
incluir tudo “o que o aluno poderá precisar”. Há inúmeros conhecimentos que serão apenas
informações necessárias em determinadas situações e que bastará ao aluno buscá-las, sem
necessidade de um trabalho maior do professor como mediador da construção desse conheci-
mento, por não se constituírem em estruturas cognitivas básicas e indispensáveis como a
leitura, escrita, a alfabetização matemática – que compreende, basicamente, reconhecer e
saber lidar com números, com grandezas, formas e informações quantitativas.

Desenvolvendo competências e habilidades para a vida nas


séries iniciais

O principal objetivo do ensino de Matemática e a grande competência que ele visa desen-
volver são, como dissemos, a capacidade de pensar e resolver situações-problema com auto-
nomia. Isso deve ser feito pelo desenvolvimento, na escola, de atividade matemática significa-
tiva, que implique construção de estratégias e procedimentos, mobilização e busca de conhe-
cimento.
Resolver essas situações relaciona-se a uma série de competências matemáticas que
serão desenvolvidas não antes, mas durante o processo de construção de solução, caracteri-
zando o que se chama aquisição de conhecimento em ação. Desse modo, a resolução de pro-
blemas constitui-se em objetivo e em método do ensino de Matemática. Como competências
básicas e relevantes, os estudos atuais apontam para:
compreender as idéias, relações, representações dos números naturais;
compreender as idéias, relações e representações (decimal e fracionária) do número
racional positivo;
compreender e construir as operações entre números naturais e entre os números
racionais positivos, nas formas decimal e fracionária;

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reconhecer, construir e representar formas geométricas;


localizar-se e orientar-se espacialmente;
conhecer significativamente as grandezas comprimento, superfície, volume, capaci-
dade, massa, tempo e temperatura, sua medição e as unidades usuais de medida das
mesmas;
coletar, organizar, interpretar e analisar dados;
reconhecer o significado de proporcionalidade.
Aqui, cabe um cuidado especial em não considerar essas competências como um rol de
conteúdos, sobre o qual o professor provavelmente diria: “ensino praticamente tudo isso”. A
grande diferença, em relação ao ensino tradicional, é saber o que, nesses conteúdos, é signi-
ficativo para o aluno e saber desenvolvê-los com compreensão. O importante é, como disse-
mos, não dissociar conhecimentos escolares da vida. Assim, é relevante que essas competên-
cias surjam, pelo menos inicialmente, vinculadas a situações-problema da vida, importantes
de serem pensadas e resolvidas. Na verdade, não basta emprestar algumas ilustrações ou
objetos do cotidiano para veicular os conteúdos – essa seria uma articulação fraca e forçada
à realidade. O que se quer são situações motivadoras que provoquem o envolvimento dos
alunos e seu compromisso na busca de soluções, sobre as quais ele deverá assumir responsa-
bilidade.
Os programas da série Conhecimento matemático: desenvolvendo competências para a
vida, que será apresentada no Salto para o Futuro de 12 a 16 de abril, versarão, principalmen-
te, em torno do desenvolvimento, em sala de aula, nas séries iniciais dessas habilidades mate-
máticas para a vida, agrupadas, para efeito didático, em blocos de competências: numéricas,
métricas e geométricas.

Estes são os programas que farão parte desta série:

PGM 1: UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA

Nesse primeiro programa, em um primeiro momento, procura-se olhar os procedi-


mentos usuais da sala de aula e evidenciar que eles não têm contemplado, em
grande parte, a capacidade de pensar própria da criança nem seus interesses ou
motivações. São sugeridos procedimentos que atendam mais a essas questões. A
idéia central é de que tais procedimentos devem conferir espaço às crianças para
pensarem as situações e buscarem construir soluções próprias, a partir das quais
o professor poderá mediar, gradativamente, a construção de um conhecimento
mais sistematizado. Em um segundo momento, defende-se que o professor se apro-

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prie de objetos culturalmente constituídos para servirem de canais de transporte


de conceitos espontâneos e algoritmos alternativos, assim como de resgate do
pensamento intuitivo como fonte da produção matemática. Processos sociais
vivenciados pelo adulto e também pela criança, como o comércio, exigem o desen-
volvimento de novas competências cognitivas entre os cidadãos, das quais a escola
deve dar conta. No caso da criança, o espaço mais importante de construção do
conhecimento matemático, no contexto não escolar, ainda é o brincar. Formula-se
a tese de que, nas brincadeiras, as crianças são levadas a tratar de valores, de
medidas, de números, de operações, do espaço e do tempo, da probabilidade e das
possibilidades, das estratégias e táticas. Entretanto, as relações teóricas entre o
brincar e a Matemática podem ser realizadas de diferentes maneiras, mostrando
as diferentes possibilidades de conceber as ligações entre a atividade lúdica e a
construção do conhecimento matemático.

PGM 2: ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO

Conceito não é algo ensinado, mas construído pelo próprio sujeito nas relações
que estabelece com o mundo em que vive. O número é uma construção interna.
Neste programa, procuramos apresentar algumas reflexões para o professor so-
bre a numerização. Alguns princípios são necessários para a aprendizagem de
número. É importante também considerar a postura do professor diante da criança
em processo de aprendizagem. Apresentamos algumas situações de pesquisa com
crianças sobre a alfabetização numérica. A construção da idéia de número é bási-
ca para a compreensão de conceitos matemáticos, assim como aprender Matemá-
tica é ferramenta importante para a construção da cidadania.

PGM 3: ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS

Nesse programa, desenvolve-se a idéia de que o ensino/aprendizagem das medi-


das e dos números decimais pode ser promotor da harmonização dos conteúdos
matemáticos trabalhados nas séries iniciais. Os números naturais foram os pri-
meiros a serem criados pelo homem, para resolver suas necessidades de conta-
gem. Entretanto, quando o homem precisou resolver questões relativas à medida,
foi necessário criar um outro tipo de número: os números fracionários. Nesse sen-
tido, as atividades de medidas são importantes para expandir a compreensão do
número pelas crianças.
Em nossa cultura, temos por hábito usar decimais bem mais que as frações. O nosso
sistema de medidas é decimal e nosso sistema legal tem por base o 10. O agrupa-

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mento, o valor posicional, a contagem, os algoritmos operatórios nos decimais aca-


bam por se constituírem em extensão homogênea e harmônica dos naturais aos nú-
meros racionais, mas ainda na base decimal. Historicamente, porém, há, no Brasil,
uma ênfase muito grande no ensino de frações, enquanto que o ensino de decimais e
medidas quase sempre fica relegado a um segundo plano. Há, portanto, uma ruptura
epistemológica, ao romper com o sistema decimal e passar para um sistema multibase
e, também, uma ruptura antropológica, que despreza nossa cultura, nosso sistema
monetário, nosso sistema legal de medidas.
Por outro lado, constata-se certo reducionismo curricular em dar ao estudo das
medidas um sentido mecânico de pura transformação de unidades. Mais relevante
seria o conhecimento das dimensões reais das unidades de medida e o uso de
instrumentos em medições reais, levando a perceber as relações entre as unida-
des. Deve-se evitar que, da Matemática da “vida” para a Matemática escolar, haja
uma ruptura indesejável de procedimentos. A escola deve ser um ambiente rico
para a construção da compreensão do todo, com a resolução de situações-proble-
ma, no confronto entre o conhecimento novo e velho, fazendo com que o estudante
aja sobre o objeto do conhecimento, organizando seu pensamento, fazendo a sínte-
se e se apropriando efetivamente dele.

PGM 4: É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA?

Apesar do uso mais freqüente dos números decimais em nossa cultura, as frações
não são totalmente descartáveis. O programa procura repensar o que de frações
ainda é importante ensinar, e como isso pode ser feito de modo a ter significado e
interesse para a criança. Nesse sentido, verifica-se que, em certas situações, os
particionamentos fracionários em partes diferentes de dez são mais significativos,
além de serem usados nos conceitos de chances, proporções, escalas. O que está
em jogo, entretanto, é a compreensão do sentido do número fracionário, e não
seus inúmeros cálculos, comumente priorizados no sistema escolar. O ensino de
frações tem apresentado inúmeras dificuldades e o rendimento dos alunos em pro-
vas nacionais tem sido bastante baixo. Uma introdução mais natural e con-
textualizada a esse tema é proposta, fazendo uso de situações-problema e levando
em conta constatações como:
o fato de os símbolos serem obstáculos à compreensão inicial do significado
desses números;
o fato de que trabalhar com famílias de frações inter-relacionadas – como meio/
quarto/oitavo; terço/sexto/nono; quinto/décimo/vinte avos – permite que a

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criança estabeleça relações e atribua significado a operações iniciais com esses


números;
o fato de as noções de mínimo múltiplo comum e de máximo divisor comum não
serem imprescindíveis aos cálculos, pelo menos nas séries iniciais;
o fato de os algoritmos operatórios desenvolvidos na escola serem de compre-
ensão quase impossível para as crianças e se afastarem muito dos algoritmos
para as mesmas operações nos números naturais.
O programa discute, ainda, o tempo necessário para que a construção do número
fracionário possa ser feita pela criança, apresenta aspectos históricos do desen-
volvimento desses números e dá sugestões para uma introdução ao estudo das
frações, que esteja vinculado a fatos e situações da vida.

PGM 5: QUE GEOMETRIA PODE SER SIGNIFICATIVA PARA A VIDA?

A aprendizagem de geometria, assim como a de frações, tem sido um dos pontos


críticos nas séries iniciais. O ensino de geometria tem sido comumente reduzido à
apresentação da nomenclatura das formas geométricas mais usuais (as quais são
apresentadas sempre nas mesmas posições), bem como a algumas noções sobre
retas paralelas ou perpendiculares e ângulos. Esse ensino não tem sido associado
a problemas, ficando o conhecimento fragmentado e aparentemente sem maior
uso na solução de situações-problema da vida. Uma revisão da Geometria Euclidiana
– buscando responder às questões sobre seu significado cultural no mundo atual
e sua contribuição para a solução de problemas relevantes para o homem de hoje
– leva a uma categorização da geometria para as séries iniciais em Geometria das
Medidas e das Proporções, Geometria das Formas e de suas representações, Ge-
ometria da Localização e da Orientação. O programa considera principalmente o
ensino/aprendizagem das duas últimas, pois as grandezas e medidas foram consi-
deradas no PGM 3.

Bibliografia
BERTONI, N.E. Matemática: Considerações sobre conteúdos, métodos e avaliação. Série
Estudos – Pesquisas – Inovações. Secretaria de Educação do Ceará/Diretoria de Pes-
quisa e Avaliação/Diretoria de Inovações Pedagógicas/Coordenadoria de Avaliação e Ino-
vação Educacional, 1996.

ABRANTES, P. Viagem de ida e volta. Portugal: Associação de Professores de Matemática, 1988.

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PGM 1 - Texto 1

NILZA EIGENHEER
BERTONI 1 Vamos pensar na aprendizagem de um aluno antes e
FERREIRA* durante as séries iniciais, desde seus primeiros anos de
vida, sua passagem na escola maternal e na pré-escola,
seguindo-se as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Nosso intuito é detectar momentos em que essa
aprendizagem afasta-se de um ensino para a vida e
acompanhar as reações do aluno.

São impressionantes o interesse, a energia e a velocidade com que as


crianças aprendem em seus primeiros anos. Aprendem a andar, a falar, a se
comunicar, a localizar objetos e locais, a reconhecer pessoas. Na pré-escola,
continuam a explorar com vitalidade e curiosidade o meio em que vivem, ob-
servando inumeráveis conexões, ampliando a aprendizagem de conceitos e
habilidades complexos, tais como se comunicar verbalmente e não-verbal-
mente, orientar-se e conhecer caminhos em casa, no prédio, na rua, na esco-
la, tudo sem passar por um ensino formal.
Na primeira série ou início da segunda, apesar do choque de terem de ficar
quatro horas sentadas e com forte recomendação de não falarem, ainda há certo
encantamento com o aprender. Tudo é novo: aprender a escrever palavras, fra-
ses, números, a fazer contas etc. E, ainda, aprendem muito fora da escola.
Como discorre Muniz (2001):

Se procurarmos na vida das crianças, fora da escola, os espaços


1
Professora aposentada do
Departamento de Mate-
onde a aprendizagem matemática é mais evidenciada, nós deveremos
mática da Universidade de considerar o comércio, as brincadeiras e os jogos como realidade da vida
Brasília. Consultora desta infantil que favorece a construção do conhecimento matemático.
série.

Mas, então, começam a ocorrer estranhezas, decepções e bloqueios de


aprendizagem dos alunos, ao se depararem, na escola, com certas propostas

10
PGM 1 - Texto 1

formais de ensino. A escolaridade começa a se arrastar até a 4ª série. Há alunos que se


recusam a continuar: dizem que já aprenderam a ler, a escrever os números e que não têm
mais nada para aprender na escola. Ou, no dizer de um deles: depois tem só bobagem.
Então, o que ocorre é um real afastamento físico (desistência, exclusão) ou um afastamento
comportamental e psíquico do aluno, em relação ao processo de aprendizagem formal na escola. O
aluno está na classe, mas apesar de querer apenas interagir com os colegas, é pressionado a ouvir
o professor. Ouve algumas coisas, mas de modo fragmentado; alegra-se no recreio e sente alívio na
saída. Do ponto de vista da cognição, seu comportamento mistura indisciplina e apatia.
Ao início desse processo, entretanto, é comum que as crianças tenham se sentido atraí-
das pelos números e suas relações, e que tenham gostado de Matemática até certa fase, do
mesmo modo que gostam de aprender qualquer coisa. No início, a avidez por conhecer o
mundo ainda é muito grande. Qualquer “continha” que aprendam é motivo de satisfação e de
comentários em casa.
A metodologia do professor, de mostrar como fazer, não as incomoda. É desse modo
que, geralmente, aprendem contas (ou algoritmos) para somar e subtrair. É comum o profes-
sor apresentar, após esse ensino, sua aplicação em problemas.
Aparece, por exemplo, este problema: o fazendeiro tinha 37 pintinhos; vendeu 14 deles;
pergunta-se quantos ficaram. É muito comum o professor explicar que: – Para saber quantos
ficaram, fazemos uma conta de menos, que vocês já aprenderam. Faz a conta no quadro,
enfatizando que o 14 deve ser escrito embaixo do 37, e que devem começar pelas unidades.
A solução do problema é apresentada, de modo único, como

37
– 14

e realizada em duas colunas distintas

3 7
– 1 4

O professor lembra o modo de fazer: 7 menos 4 dá 3; 3 menos 1 dá 2.


Como essas tarefas são realizadas com facilidade, o professor acha que tudo vai bem e
dá uma série de problemas desse tipo, para ver se todos os alunos estão sabendo fazer, isto
é, se memorizaram as regras.
Temos aí pontos de dissonância com o que chamamos de ensino para a vida: a
contextualização do problema é discutível: ele não é explorado como uma atividade livre pela
criança, mas é ensinado.

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 11


PGM 1 - Texto 1

A aprendizagem não contempla a compreensão e o pensar em Matemática, mas apenas


a imitação de como se faz. Não se estimula a pensar em números e quantidades. Ao invés
disso, desenvolve-se uma cultura de manipulação de algarismos.
Como seria desenvolvida essa aprendizagem, em um ensino pensado para a vida?
Em primeiro lugar, o problema deveria ter sido escolhido a partir de uma situação
vivida pelas crianças, e o professor deveria estar atento ao seu surgimento. Em segundo
lugar, a conta não deveria ter sido ensinada antes, mas o problema serviria de contexto para
ela vir a ser construída.
Um exemplo de situação vivida pelos alunos seria pensar em crianças que estavam na
sala e outras que saem. Por exemplo, pensar em 37 crianças que estavam na sala e em 14
que saíram, e questionar quantas ficaram. Se os alunos quiserem contar as que ficaram, o
professor deve permitir – afinal, é uma solução lógica. Mas o professor pode associar, em
seguida, com o que houve no dia anterior, quando havia 36 crianças e saíram 12. Agora, a
solução de contagem não é mais possível. Coloca-se, realmente, uma situação-problema,
que exige por parte do aluno uma atividade matemática autêntica, na qual ele se envolverá
com compromisso.
A mediação imediata do professor, sugerindo que peguem ou desenhem 36 pauzinhos
e retirem 12, tolhe o pensamento e a atividade cognitiva dos alunos. É preciso esperar, paci-
entemente, que as soluções próprias comecem a aparecer, individualmente ou em grupos. Em
geral, elas são bem surpreendentes, podendo ocorrer registros ou relatos verbais como:
Desenho de 36 pessoas, indicação de que 12 serão retiradas. Algumas crianças reti-
ram as 12 primeiras, outras retiram as 12 no meio. Elas contam as que sobram,
podendo ocorrer de escreverem os números de 1 a 24 sob cada uma delas.
De 30 saíram 10 e ficaram 20, de 6 saíram 2 e ficaram 4, então ficaram 24.
Olha, 36, se saírem 10 ficam 26, daí saem mais 2 e ficam 24.
Esses modos de pensar são exemplos do que chamamos atividade matemática autên-
tica. Essas soluções próprias devem ser valorizadas, discutidas, socializadas e sua escrita
deve ser estimulada. De modo algum o professor deve ensinar, imediatamente, o processo
formal. Em vez disso, sistematizações progressivas serão apresentadas pelo professor, base-
adas nas soluções das crianças.
Por exemplo, lembrando a segunda solução, ele poderá dizer que aquele grupo pensou
em 30 crianças e mais 6, e que foram tiradas 10 das 30 e 2 das 6, registrando:
30 e 6
saíram: 10 e 2
ficaram: 20 e 4

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 12


PGM 1 - Texto 1

Mudanças gradativas nessa representação (introdução do sinal de menos, do traço se-


parando o resultado, composição das quantidades em números na representação usual) leva-
rão ao algoritmo formal, em alguns dias ou semanas. Um cuidado especial deve ser o de não
exigir que todas as crianças passem a fazer esse algoritmo sistematizado, embora o profes-
sor deva passar a apresentá-lo usualmente. Há crianças cujo estágio de compreensão perma-
nece mais tempo em outras formas de representação, e esse tempo deve ser respeitado.
Nessa questão, reconhece-se o direito das crianças de terem modos próprios de solução.
Mas voltemos à situação usual da escola, em que o professor ensina a fazer a subtração
daquele modo único e informa que aquela conta serve para determinar quantidades que res-
tam após certa retirada.
Digamos que, até esse ponto, as crianças ainda tolerem bem as regras.
Mas, na seqüência dos dias, vem o que será um grande choque. “Agora vou ensiná-los a
fazer subtração com empréstimo ”, diz o professor. E coloca a situação: Havia 42 laranjas e 18
foram vendidas. Que conta vamos fazer para saber quantas sobram? Muitas crianças dizem -
Subtração. O professor escreve a conta no quadro.

42
– 18

Lembra que devem fazer por colunas, começando do final:

42
– 18

Frente a uma conta como essa, é sabido o que as crianças fazem: aplicam o simples e
conhecido método de operar nas colunas: 8 – 2 = 6 e 4 –1 = 3

42
– 18
36

Mas, antes que possam fazer o que lhes parece óbvio, ouvem uma pergunta que é univer-
sal: “Podemos tirar 8 de 2? ” As crianças, em coro, dizem: – NÃO!
E também, antes que elas digam que pensam que se deve tirar 2 de 8, o professor diz: “Preci-
samos emprestar do 4 ”. Para o professor, o fato de o 8 ser maior seria um obstáculo para a
criança, portanto, a situação seria nova, estimulante. Para a criança, a situação não tem nada de
diferente: ela tem 4 algarismos, 2 em cada coluna, e para fazer a subtração deve operar por coluna,
tirando um do outro. Ela nem chega a imaginar que a ordem possa ter alguma importância.
Dá o que pensar saber que as crianças não externam suas dúvidas e estranhezas. Se o
professor diz: Entenderam?– todas ficam quietas. Mesmo alguma tímida pergunta do tipo:

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 13


PGM 1 - Texto 1

Mas por que não fazer 8 – 2? teria uma resposta em tom de obviedade pelo professor: Mas
é 2 – 8.
As faces das crianças externam estranheza. De algum modo, começam a perceber que
as coisas nem sempre serão inteligíveis, que em Matemática as regras mudam, que nem tudo
é fácil e agradável.
Fatos como esses continuam a ocorrer usualmente em nossas salas.
São as armadilhas e obstáculos de que falamos no início, que aparecem no ensino de
Matemática. Os processos desse ensino, repetidos durante décadas, não são tão naturais
quanto a escola ou o professor podem pensar. Apesar de certa contextualização na situação,
a mediação do professor é feita sem dar espaço ao raciocínio do aluno, havendo valorização
implícita do modo de fazer da escola, o que desanimará as crianças de pensarem, acostuman-
do-se a ficar esperando pela solução “certa”.
Seria importante ter permitido que pensassem. Mesmo mentalmente, aparecem solu-
ções. A criança pode pensar em tirar 8 em duas etapas: tirando 2 e depois tirando 6. Ela diz:
42, tiro 2 fica 40, tiro mais 6... ficam 34, tiro 10, ficam 24. Ao proceder assim, ela percebe “o
que está tirando do que”, e a razão disso.
Aos poucos, a repetição e a complexidade de impasses gerados em situações como a que
foi apresentada – talvez divisões mais longas, ou frações – levam as crianças a desistirem de
querer entender alguma coisa. E a gostarem cada vez menos de Matemática. Embora já te-
nham aprendido antes por regras, até certo ponto sentiam que estavam acompanhando e que
poderiam fazer aquilo nos testes, e que aquilo lhes servia para algo – juntar, tirar, etc. Mas as
coisas acabam ficando muito sem sentido. Um ponto crítico é quando deixam de ver qualquer
significado e passam apenas a aprender as regras que o professor lhes ensina.
Esses processos não permitem que a criança vivencie, na escola, desafios significativos.
Surge o desinteresse e o fracasso.
As habilidades para a vida dependem muito do bom senso do professor e da escola. Em
geral, há uma incerteza do professor em mudar o modo como sempre fez. Continua desenvol-
vendo um conhecimento descritivo, expositivo, sem permitir compreender a sua funcionalida-
de. Desse modo, deixa de produzir uma aprendizagem significativa para a vida.
Se isso começa a ocorrer já nas subtrações, será pior nas multiplicações ou divisões
longas e nas operações com frações. Realmente, é constrangedor o ensino de soma e da
subtração de frações, pelo método do mínimo múltiplo comum (mmc). Professores e alunos
não sabem realmente do que estão falando. O professor tenta, heroicamente, ir até o fim:
transformação de frações mistas em impróprias, determinação do mmc e redução das frações
a esse denominador comum, soma dos numeradores, extração dos inteiros ao final. Os alunos

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 14


PGM 1 - Texto 1

se dispersam e aqueles poucos que o ouvem têm o nítido mistério das coisas ininteligíveis
estampado no rosto.
Embora esses obstáculos ocorram primordialmente nas competências numéricas, é pre-
ciso lembrar, também, as incongruências que ocorrem, por exemplo, com relação às compe-
tências de medidas.
Em termos teóricos, do ponto de vista de formação de estruturas matemáticas mentais,
o estudo detalhado de várias grandezas e das unidades para medi-las não é relevante. Basta-
ria, para a formação dessas estruturas, que o aluno entendesse o sentido de medir uma
grandeza, com uma unidade arbitrária ou com suas subunidades. Entretanto, do ponto de vista
de habilidades para a vida, é muito importante que o aluno conheça grandezas que aparecem
usualmente no mundo real, bem como as unidades e subunidades reais, convencionadas para
medi-las.
As contradições aparecem no modo como essa aprendizagem é desenvolvida. Embora as
grandezas e unidades sejam relevantes para a vida, são exploradas como unidades matemá-
ticas abstratas, com relações também abstratas entre elas e as subunidades. Assim, o aluno
é levado a memorizar todas as unidades e subunidades dos vários sistemas de medida, e
também as regras de como fazer transformações entre elas.
Pouco ou nada é feito para que o aluno tenha uma familiaridade com a dimensão real das
unidades de medida, o que constituiria uma habilidade para a vida. Os alunos saem da escola
sem ter noção do tamanho de um metro, de um decímetro, de um quilômetro. Menos ainda do
metro quadrado. Não sabem avaliar quanto pesa um lápis, uma batata, um gato. Embora rea-
lizem muitas transformações, pouco significado há nelas. Por exemplo, um cidadão escolarizado,
ao comprar material para revestimento de superfícies, depende quase sempre da requisição
do profissional da área, cuja avaliação, comumente, implica desperdício.
Para discutir esses pontos e outros, essa série de programas irá abordar, além desse
programa inicial, que dá o eixo norteador de nossas preocupações, outros quatro programas
centrados em temas fundamentais das séries iniciais: a numerização, entendida mais como a
aprendizagem dos números naturais; a aprendizagem dos números decimais associados às
medidas, a aprendizagem das frações e a da geometria.
Em todos eles, procuraremos ultrapassar a idéia de que o conhecimento matemático
consiste em uma série de procedimentos rígidos, dos quais não se pode fugir e sobre os quais
não há variação possível.
Ocasionalmente, estaremos comentando sobre o uso de materiais concretos. Muitos deles
são altamente simbólicos e decifrá-los constitui uma dificuldade adicional para o aluno. Subs-
tituir essa concretização simbólica pela observação do que ocorre no contexto pode ser, mui-
tas vezes, vantajoso.

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 15


PGM 1 - Texto 1

A questão da distribuição do tempo, ao longo dos bimestres, também influi muito para
uma boa aprendizagem. Na 3ª série, por exemplo, é comum que tópicos iniciais, menos impor-
tantes – como conjuntos, números romanos, números ordinais – consumam os bimestres
iniciais, restando menos tempo para os assuntos mais densos, como frações e números deci-
mais, que acabam sendo desenvolvidos apressadamente.
Mas a questão central é a da resolução de problemas. Apesar de tudo que se fala sobre
esse tema, o que está ocorrendo a esse respeito? A verdadeira resolução de problemas con-
siste em olhar para uma situação nova, explorá-la, ir descobrindo alguns fatos iniciais, ir
deslindando possíveis modos de pensar a solução.
Se o professor resolve ensinar a resolver os problemas, está negando o fato primordial
de que, na vida real, o estímulo é a própria situação, sem professor presente. Muito do que as
crianças não aprendem é devido ao fato de estamos tentando ensinar e não desafiando.
Um exemplo de problema desafiador para os alunos é: 26 crianças vão passear de carro
e cabem 4 crianças em cada carro, fora o motorista. Quantos carros são necessários? (Em
testes, muitas crianças respondem 6,5 ou até 65). Embora um sétimo carro pudesse levar até
28 crianças, para levar 26 ele continua sendo necessário, porque se fossem 6 carros seria
possível levar apenas 24 crianças.
Outro exemplo: um coelho come 2 pacotes de alimento por semana. Há 52 semanas no
ano. Quanto comem 5 coelhos em uma semana? Aqui, a informação do número de semanas
anual é dispensável. Não se trata de querer complicar para as crianças, ou introduzir uma
pegadinha – mas faz parte do fato de que as informações que recebemos não surgem todas já
selecionadas, e são exatamente as informações de que precisamos. Mas muitos alunos erram
pela insistência em usarem a quantidade de 52 semanas. Isso indica vícios adquiridos na
escola, incluindo a falta de vontade para entender e a falta de interesse para dar respostas
plausíveis.
Um exemplo de erro cometido usualmente pelas crianças, quando submetidas a proces-
sos mecânicos de ensino: se quiserem cercar uma horta retangular, com lado maior igual a 10 m
e lado menor igual a 6 m, é comum aparecerem as respostas 16 m ou 60 m. Os métodos
escolares levam-nas a pensarem que, em um problema escolar, deve-se imaginar que opera-
ção usar com os números dados. Os que pensam em adição dão o resultado 16, os que pen-
sam em multiplicação dão o resultado 60.
Vemos como o ensino começa a apresentar dificuldades já nas séries iniciais. Cada pro-
fessor tenta “reensinar” o que o anterior não conseguiu, e isso continua. O fato principal é que,
com o acúmulo de regras, as crianças passam a misturá-las. Ocorre grande perda de tempo e
vem a pressão sobre o professor para que dê todo o programa. Mais exercícios são dados em
sala e para casa, e as crianças tendem a pensar só nas regras que estão em jogo. Isso pode

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 16


PGM 1 - Texto 1

lhes dar um ganho imediato aparente, mas também causa esquecimentos, à medida que as
regras vão sendo acumuladas. Ante tal fracasso, o professor é mais pressionado, resultando
em um círculo vicioso.
A pressão sobre os professores passa para os alunos. O clima em sala de aula torna-se
mais rígido. Faça aquilo que eu ensinei. Não use os dedos. Não fique imaginando. Escreva
apenas a resposta pedida. Não fale com o colega. Preste atenção no professor. Em resumo:
não tente pensar sozinho.
Tudo isso nos leva a pensar que a escola tem repetido processos tradicionais, sem refle-
tir mais profundamente, sem assumir uma responsabilidade real pelo desenvolvimento das
crianças e dos jovens.
Um balanço das quatro séries iniciais mostra que a experiência escolar tem sido extremamen-
te ineficaz. Para todos esses males, há, como vimos, um tipo natural de cura que requer um compro-
misso com os significados dos conhecimentos que são veiculados, empenho em que as crianças
cresçam com a alegria de conhecer, saber fazer e ter responsabilidade. Isso requer mudanças de
vivência e visão da Matemática pelo professor, e também mudanças de atitudes, mas é possível
fazer estas mudanças em sala de aula, visando principalmente substituir a formação de um aluno
que pensa pouco matematicamente por alguém capaz de realizar atividade matemática.
Formar competências para a vida significa estar atento e em harmonia com o belo
crescimento natural das crianças.

Referências Bibliográficas
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática II:
II Numerização. Módulo III, vol. 2. Brasília,
UnB, 2002.

BERTONI, N. E. Matemática: Considerações sobre conteúdos, métodos e avaliação. Série


Estudos – Pesquisas – Inovações.
Inovações Secretaria de Educação do Ceará/Diretoria de Pes-
quisa e Avaliação/Diretoria de Inovações Pedagógicas/Coordenadoria de Avaliação e
Inovação Educacional, 1996.

LERNER, D. e SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. Em: Parra e Saiz


(org.). Didática da Matemática. Reflexões Psicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Mé-
dicas, 1996.

MUNIZ, Cristiano. Educação e Linguagem Matemática, Módulo 1 volume 2 de Educação Mate-


mática do PIE – Curso de Pedagogia para professores em exercício no início de Escolarização
– FE - UnB, 2001.

WHITNEY, H. Mathematical Reasoning, early grades. Growth through involvement, curriculum


outline. Princeton, NJ: Institute for Advanced Study, 1988. Mimeo.

WHITNEY, H. Taking Responsability in School Mathematics Education. The journal of mathe-


matical behaviour 4, 219-235, 1985.

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 17


PGM 1 - Texto 2

CRISTIANO MUNIZ 1 O PROFESSOR COMO MEDIADOR DO


FERREIRA*
CONHECIMENTO MATEMÁTICO

Há uma multiplicidade de possibilidades de realização


da mediação do conhecimento da Matemática, porém,
trabalhando estritamente no contexto escolar,
o professor muitas vezes não se apropria de objetos
culturalmente constituídos para servirem de canais
de transporte de conceitos espontâneos e algoritmos
alternativos, assim como de resgate do pensamento
intuitivo como fonte da produção matemática.
A incorporação cultural pelo educador do significado
do conhecimento matemático, ou seja, o processo
de educação matemática pelo qual o próprio professor
passou ao longo de sua formação inicial e continuada,
implicou por muito tempo a exclusão do processo de
aprendizagem escolar de objetos como o corpo, os
jogos, utensílios domésticos, artesanais e tecnológicos.

Por muito tempo, desenvolveu-se a crença de que, para aprender Mate-


mática, o sujeito, mesmo a criança, não pode e não deve manipular o corpo
1
ou parte dele. Acreditava-se que, porque os objetos matemáticos são de na-
?????
tureza abstrata, a manipulação se constituiria num obstáculo a tal abstração,
levando a crer que o sujeito que manipula o concreto jamais conceberia os
seres matemáticos. Os dedos, de tão fácil acesso, seriam o primeiro obstácu-
lo na construção do número pela criança. Sempre tendo acesso aos dedos, a
criança iria sempre testemunhar as quantidades sobre os dedos, nunca sen-
tindo a necessidade de construir o conceito de número, ficando para sempre

18
PGM 1 - Texto 2

escravo da manipulação concreta sobre os dedos. Com isso, expurgam-se da escola importan-
tes mediadores da construção do conhecimento matemático da criança.

Se procurarmos na vida das crianças, fora da escola, os espaços onde a aprendizagem


matemática é mais evidenciada, nós deveremos considerar o comércio, as brincadeiras e os
jogos como realidades da vida infantil que favorecem a construção do conhecimento matemá-
tico. Na história de nossa sociedade, há um momento em que as trocas diretas de produto a
produto são substituídas pelas trocas mediatizadas por moedas, com o processo produto –
valor, valor – moeda, moeda – valor, valor – produto. Com essa evolução do comércio no
mundo, novas competências cognitivas exigidas foram desenvolvidas entre os cidadãos, das
quais a escola deve dar conta.

A leitura, a decomposição, as operações aritméticas, os registros, os cálculos mentais,


as comparações entre valores são agora elementos constituintes da vida prática e cotidiana
do cidadão. Fazer matemática, desenvolver atividade matemática é componente da formação
do cidadão comum do mundo capitalista, no qual estamos mergulhados. Formar o cidadão é
também, entre muitos outros objetivos, desenvolver essas habilidades ligadas à sua sobrevi-
vência. A matematização é viva nas conversas dentro dos mercados, nas esquinas e na mesa
com a família, os processos operatórios são constatados nas negociações e nos “vai-e-vem”
das moedas e papéis, numa matematização que extrapola os muros e o tempo de escola. Esse
é um espaço importante de desenvolvimento e aprendizagem da Matemática: o comércio influ-
encia diretamente a Matemática no seio da cultura.

Isto é verdade não somente para o mundo dos adultos, mas também da realidade infantil
do mundo atual. O crescente convite ao consumo, o desejo de participação do mundo que
inicialmente é destinado aos adultos, a posse de pequenos valores em moeda, a autonomia na
realização de pequenas aquisições (de guloseimas, de pequenos jogos e brinquedos ou de
matérias-primas para confeccioná-los), a necessidade de administrar suas pequenas econo-
mias pessoais são fatores presentes na vida de nossas crianças, que produzem a necessidade
de abstração dos conceitos ligados a valores, de realização de operações aritméticas, sobre-
tudo através do cálculo mental, da realização de estimativas, etc. Para que o professor seja
um mediador da aprendizagem matemática, deve conhecer as lógicas inerentes nestes espa-
ços de matematização.

Se considerarmos determinados contextos sociais específicos, por exemplo, o das crian-


ças trabalhadoras, a necessidade de obter o dinheiro pelo seu próprio trabalho é também um
elemento inegável que as encoraja ao processo de aprendizagem e construção do conheci-
mento matemático. Estudos científicos desenvolvidos mostraram bem como o contexto do
comércio provoca nessas crianças o desenvolvimento de competências para resolver proble-
mas matemáticos concretamente contextualizados, competências que essas mesmas crian-

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 19


PGM 1 - Texto 2

ças não apresentam em contextos escolares. O processo de incorporação dos conceitos cien-
tíficos é influenciado pelas representações pessoais que o aluno possui da Matemática, assim
como esta incorporação é influenciada pelos conceitos cotidianos e pelos processos operató-
rios próprios e pessoais adquiridos no contexto de resolução de problemas da vida cultural.
Infelizmente, muitos professores não consideram essas questões em seus projetos pe-
dagógicos, em função, dentre outros fatores, de sua formação inicial e de sua formação
continuada, que não permitiram, até então, considerar tais aspectos. Quando o professor não
percebe o conhecimento já produzido pela criança no contexto sociocultural, ele não pode
conceber um projeto que considere a real capacidade de a criança matematizar.
Ao nosso ver, no caso da criança, o espaço mais importante de construção do conheci-
mento matemático, no contexto não-escolar, ainda é o brincar. Nós consideramos aqui o brin-
car como um elemento cultural que caracteriza universalmente a vida infantil. Nós devemos
considerar que há quase que uma identidade entre o brincar e a infância. Mesmo a criança
trabalhadora brinca, a criança que trabalha brinca para manter viva sua infância.
Nós formulamos a tese de que, nas brincadeiras, as crianças são levadas a tratar de
valores, de medidas, de números, de operações, do espaço e do tempo, da probabilidade e das
possibilidades, das estratégias e táticas. Se existe uma atividade matemática no brincar –
atividade que não dispensa as aprendizagens escolares – analisando-a na vida cotidiana da
criança, vemos nas brincadeiras uma trama dos conhecimentos espontâneos e científicos, que
é constituída a partir de elaborações e resoluções de situações-problema durante o brincar.
Não se trata aqui de simplesmente utilizar o brincar como instrumento metodológico de iden-
tificação desta trama matemática, mas sim de analisar o brincar como um dos espaços
socioculturais que favorecem o cenário onde se desenvolve a trama entre o conhecimento
cotidiano e o conhecimento escolar ligados à Matemática.
Acreditamos que, durante o brincar, a criança encontra ocasiões de refletir sobre seus
processos cognitivos, estabelecendo suas estratégias e táticas: o brincar se situa no nível da
“metacognição” ou do conhecimento “metacognitivo”. Pois, no brincar, ela pode confrontar (o
que numa situação de sala de aula nem sempre acontece), discutir e testar com os demais
participantes seus procedimentos e seus resultados. No brincar o problema matemático não é
encarcerado em aplicações restritas de fórmulas impostas pela escola. Ao contrário, no jogo,
a criança pode criar suas próprias situações-problema, ela impõe situações aos demais parti-
cipantes, ela discute seus problemas e processos validando-os no grupo, desenvolvendo uma
atividade matemática que reflete a natureza da ação do espírito que está brincando.
Entretanto, as relações teóricas entre o brincar e a Matemática podem ser realizadas de
diferentes maneiras, mostrando as diferentes possibilidades de conceber as ligações entre a
atividade lúdica e a construção do conhecimento matemático.

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 20


PGM 1 - Texto 2

Referências Bibliográficas
MUNIZ, C. A. Jeu de societé et activité mathématique chez l´enfant. Tese de doutorado em
Ciências da Educação pela Université Paris Nord, 1999.

MUNIZ, Cristiano. Educação e Linguagem Matemática, Módulo 1, volume 2 de Educação Mate-


mática do PIE – Curso de Pedagogia para professores em exercício no início de Escolarização
– FE-UnB, 2001.

UM ENSINO DE MATEMÁTICA VOLTADO PARA A VIDA 21


PGM 2

SUELI BRITTO 1
FERREIRA*
Qual o dia do seu aniversário? Em que dia você nasceu?
Quantos anos você tem? Quanto você me deve? Quantos
quilos de carne devo comprar para o churrasco?
Quantos litros de água devemos levar para a
caminhada? Que horas são? Qual a sua altura? Em que
lugar ele está na fila? Quantos convidados para a festa?
Estas e muitas outras questões estão presentes em
nosso contexto sociocultural, fazendo parte das relações
entre as pessoas. Para responder a todas essas
perguntas, necessitamos recorrer aos números, seja
para representar a idéia de uma quantidade discreta
(contagem de elementos) ou contínua (medida).

A idéia de número é muito antiga. Não existe um inventor, mas as situa-


ções vividas pelo homem, participante da construção de sua própria história,
em diversos lugares do mundo, promoveram o desenvolvimento da numera-
ção falada ou escrita.
A História nos mostra que o homem inventou várias maneiras para rea-
lizar contagens e representá-las, e todas elas associadas às necessidades
de sua época. Todo seu processo de construção fez parte do seu próprio
contexto histórico-cultural. A relação biunívoca (ex: para cada ovelha, uma
pedra) esteve presente neste processo. Usando os dedos, contas, pedras,
marcas (conjunto comparador) entre outros, o homem ia garantindo o conhe-
cimento e a memória das quantidades já relacionadas. No entanto, a dificul-
dade de trabalhar com grandes quantidades foi exigindo mudança nas for-
mas de registros.
O registro escrito vai sendo construído para facilitar a própria vida hu-
mana. Imagine o trabalho que tinham os homens primitivos para registrar,

22
PGM 2

com pedrinhas ou riscos, a quantidade de mil quatrocentos e vinte e seis ovelhas. Para nós
basta escrever 1.426!
Vários sistemas de representação escrita dos números surgiram na história da humani-
dade: o sistema de numeração egípcio, o da Mesopotâmia, o romano, o maia, o arábico entre
outros. Temos sistemas de numeração em diferentes bases: 2, 5, 10...
A idéia de número foi sendo construída desde os primórdios da humanidade e passou
por muitas mudanças até os dias de hoje.
Com seu sistema de nove sinais (o zero surge depois), o povo hindu contribuiu de forma
significativa para o sistema de numeração decimal que usamos hoje. O sistema indo-arábico
utilizado em quase todo o mundo apresenta alguns princípios básicos:
Possuir base decimal, ou seja, a cada dez, formo um novo grupo da ordem posterior.
Fazer uso de dez símbolos, que são os algarismos: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, para
representar qualquer número desejado.
Ser um sistema de valor posicional, ou seja, o algarismo 2 pode valer 2, 20, 200...
dependendo da ordem em que se encontre no número representado.
Quando conhecemos um pouco da história da invenção dos números, podemos perceber
que o homem levou muitos milênios nesta construção. Com isto, pensamos que trabalhar a
idéia de número com crianças em processo escolar traz à tona um pouco deste vasto conheci-
mento elaborado ao longo da história da humanidade. Se, enquanto ensinantes, nos colocar-
mos como observadores das estratégias apresentadas pelas crianças, veremos que algumas
delas estão em comunhão com as estratégias utilizadas pelo homem ao longo da invenção dos
números. A contagem utilizando os dedos é uma das heranças de que até hoje fazemos uso.

A alfabetização matemática

Quando falamos em alfabetização, pensamos na aprendizagem da língua materna. Co-


nhecendo as letras e as relações possíveis entre elas, através de sua sonoridade, a leitura e a
escrita vão se constituindo. Nesta apropriação, nós nos tornamos leitores e escritores.
A alfabetização, no entanto não pode ocupar tão somente o campo das letras. É preciso
alfabetizar numericamente as pessoas. Desde pequenas, as crianças mergulham no mundo
dos números, muitas vezes sem compreendê-lo. É comum a repetição de seqüências numéri-
cas sem o estabelecimento de relações entre quantidades e símbolos. Quantos de nós, adul-
tos, não temos controle sobre situações do dia-a-dia como juros de cheque especial, compras
a prazo com taxas, entre outras, pela falta de habilidade com os números? Nossa alfabetiza-
ção numérica passa pela alfabetização financeira num mundo capitalista e globalizado.

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 23


PGM 2

A aprendizagem matemática, é, portanto, um elemento importante na construção da ci-


dadania. Cabe à escola a função de alfabetizar numericamente as crianças. O que seria esta
alfabetização? Inseridos num mundo cercado de números, o que o professor pode fazer pela
criança, para que esta possa agir conscientemente sobre ele?
A construção da idéia de número abordada por Kamii (1995, p. 13) mostra que “o número
é construído por cada criança a partir de todos os tipos de relações que ela cria entre os
objetos”. Neste sentido a idéia de número é uma construção interna do sujeito. Esta constru-
ção acontece nas inúmeras relações que ele estabelece na sua leitura de mundo. Quanto mais
diversificadas as experiências, melhores as possibilidades de compreensão desta idéia. Como
as relações estabelecidas são próprias de cada sujeito, porque surgem a partir de suas expe-
riências pregressas e as vividas no presente, podemos dizer que número é uma construção
mental, portanto interna e individual do sujeito diante de uma dada realidade presente.
Quando digo que vou comer metade do chocolate, ou gastar cinqüenta por cento da
minha mesada, ou ainda, que vou precisar de dois quartos do tanque de gasolina para ir a tal
lugar, não estaria falando de uma mesma idéia numérica, porém com diferentes registros?

Meio chocolate= 0,5


Cinqüenta por cento da mesada = 50%
Dois quartos do tanque = 2/4

Os diferentes registros representam a mesma quantidade em relação ao


todo, ou seja, a metade.

Considerando que as crianças desde muito cedo têm contato com números, mas que
este contato não garante a aprendizagem significativa desta idéia, vamos enumerar alguns
itens importantes para serem pensados na alfabetização numérica:
Conhecimento prévio: toda criança adentra o espaço escolar com alguma idéia sobre
número. Compete ao professor procurar saber o conhecimento que a criança traz, a
partir de diferentes situações promovidas em sala, seja com jogos, brincadeiras,
desafios, etc.
Recitação numérica: saber recitar números isoladamente não garante a aprendiza-
gem da idéia de número; no entanto, a recitação seqüenciada é uma das atividades
necessárias, associada a outras, para a aprendizagem do número.
Contagem: é a transformação de uma quantidade não perceptiva, em grupos perceptivos,
no intuito de quantificar. A contagem mais elementar é a de 1 em 1. Saber recitar a ordem

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 24


PGM 2

numérica é essencial para a contagem. Segundo Vergnaud, em palestra publicada na Re-


vista do GEEMPA (1996, p. 11-12), a contagem exige do sujeito uma sincronia entre o
olhar, o dedo, a mão e a voz. A atividade de contar envolve duas idéias da Matemática. A
primeira é a relação biunívoca estabelecida entre os objetos contados, a mão, o dedo que
aponta, o olhar e a voz. Sem esta sincronia, a contagem não fica garantida. A criança pode
repetir um número, ou falar um número tendo apontado dois objetos, etc. A outra idéia
matemática refere-se à repetição do último número da contagem.
contagem Vergnaud diz que, ao
falar pela primeira vez o último número da seqüência, a criança está designando o último
elemento da contagem; já na segunda vez, ela está se referindo a todo o conjunto, ao
cardinal. Ao quantificar, ainda é importante que a criança tenha consciência dos objetos já
contados, para não incluí-los novamente no processo de contagem.
O conhecimento e a grafia dos símbolos numéricos: a compreensão dos números até
9 e de suas relações precede a aprendizagem da escrita de cada um dos números. A
aprendizagem da escrita pode acontecer a partir do interesse e situações que surjam
no grupo. Assim como a aprendizagem da escrita das letras não exige uma ordem, a
escrita dos números também pode acontecer independente de sua seqüência. O mais
importante é o significado da aprendizagem daquela escrita. Por exemplo, podemos
escrever a idade de Paulo, ou o número de biscoitos que cada um ganhou, etc. Escre-
ver na areia, passar o dedo por cima do número já feito, colar sementes ou bolinhas
de papel podem ser, entre outras, atividades auxiliares para o desenvolvimento des-
sa competência.
A intervenção pedagógica: na fase inicial de aprendizagem dos números: o professor
deve oportunizar a vivência com jogos, brincadeiras envolvendo o corpo, situações
que surgem em classe, tendo como foco de observação a enumeração; as relações
estabelecidas entre os números, o que vem antes, ou depois; a relação entre quanti-
dades e símbolos e a idéia de adição. O professor deve ser um observador das ações
das crianças, pois o planejamento do seu trabalho deve partir do saber das crianças
e não daquilo que se julga necessário ensinar. Nesta proposta, o erro é visto como
um aliado do processo pedagógico, pois servirá como base para as ações em futuras
aulas. As atividades propostas não devem relacionar-se só a números menores, pois
o trabalho com números maiores desperta o interesse do grupo. Com freqüência as
crianças usam em seus discursos: este objeto tem 100 quilos; meu pai tem 1.000
reais, etc. O trabalho com estes números pressupõe o agrupamento na base 10. No
entanto, a introdução de termos como centena, dezena e unidade só faz sentido quan-
do a criança já compreende o significado das noções aos quais eles se referem. Ge-
ralmente, elas usam substitutos como grupinhos ou montinhos compreendendo
muito bem a idéia de valor posicional e a formação da base 10.

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 25


PGM 2

Os recursos materiais: a construção da idéia de número pressupõe a contagem ou a


enumeração, portanto recursos para a execução desta atividade são indispensáveis.
Os primeiros recursos podem ser o próprio corpo e objetos como tampinhas, palitos,
sementes... O uso da sapateira também é um bom instrumento para a formação de
números maiores que exigem agrupamento. O material dourado pode ser introduzido
em uma fase posterior, quando as crianças já compreendem a base de troca, ou seja,
10 unidades são o mesmo que 1 dezena. O QVL e o ábaco são instrumentos que
trabalham com valor posicional, portanto, é necessário que as crianças estabeleçam
relações de troca em nível mental, pois uma bolinha pode valer 1, 10, 100 ou 1.000
dependendo da casa que ocupar. Neste caso, não estaremos trabalhando com quan-
tidades, mas com representações simbólicas.
As operações fundamentais: o trabalho com as quatro operações (adição, subtração,
multiplicação e divisão) oferece, em qualquer série, uma ampla oportunidade de estar
trabalhando com a idéia de número. A resolução mental de uma operação pressupõe o
conhecimento da estrutura do número, de como ele pode ser decomposto, de outras
quantidades que o compõem; a resolução reflexiva de uma operação pressupõe o co-
nhecimento do significado da representação do número, que se associa ao sistema de
base decimal e ao valor posicional, que são o cerne do nosso sistema de numeração.
A seguir, apresentaremos algumas situações de pesquisa que demonstram o conhe-
cimento que as crianças possuem no trato com os números:

Quando o registro numérico está associado à oralidade


Ao ditar o número duzentos e quarenta e cinco, foram obtidas diferentes respostas:
204405, 2405, 20045.
Ao ditar o dez mil, foram obtidas as seguintes respostas: 10100, 101000, 10 10000.
Estas representações demonstram que as crianças estão numa fase de pensar o
número para escrevê-lo. E pensar o número pressupõe falar o número. É uma fase
de construção e não de uso da memória.

Esta situação refere-se a uma adição usando os dedos


No jogo de dados, Guilherme tirou 4 e 6. Ele disse que a soma era 12. Foi pedido
para que ele mostrasse usando os dedos.
Guilherme mostrou seis dedos e, na hora de colocar quatro, utilizou a mão que tinha
um dedo levantado, portanto, levantou mais três dedos formando quatro. Uma mão
ficou com cinco dedos levantados e a outra com quatro dedos levantados. Então, ele
disse: nove.

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 26


PGM 2

Ao ser indagado sobre sua resposta, ele refez a contagem da mesma maneira. A
seguir, a proposta foi de que usasse palitos. Com os palitos, ele encontrou 10 como
resultado.
Foi pedido que ele refizesse a contagem usando as mãos, e ele fez da mesma ma-
neira. Nesse ponto, a pesquisadora (autora deste texto) fez uma intervenção, segu-
rando o dedo que fazia parte do 6 e pediu que ele colocasse mais 4. Então, ele
coloca os 4 dedos e chega no 10. Ele conhece

Pude perceber que Guilherme apresentou compreensão da adição, mas centrou-


se na representação dos números, portanto, aquilo que apareceu no dado de-
veria ser visto na mão. Ao invés de levantar quatro dedos, porque naquela situ-
ação pedia-se que juntasse quatro, ele levantou três e juntou com o dedo já
levantado para completar quatro. Então, sua atenção direcionou-se para cada
momento. Primeiro representou seis e o fez corretamente, depois representou
quatro esquecendo-se do seis. Ao contar os dedos levantados, chegou ao nove
e não a dez.

Representando a quantidade escolhida


Em outra situação de grupo, na qual cada um representava uma quantidade esco-
lhida, Guilherme escolheu o número 13. Representou-o com os algarismos e depois
a pesquisadora lhe pediu que fizesse a representação com o material dourado. O
que aconteceu foi o seguinte:
Pesquisadora: “Qual o número que você montou?”
Guilherme: “Treze”. Representou 1 dezena e 3 unidades com o material dourado.
Pesquisadora: “Então, conta pra ver se tem 13.”
(Guilherme contou cada peça do material como uma unidade: 1 - contando a deze-
na - e 2, 3, 4, contando as unidades).

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 27


PGM 2

Pesquisadora: “Quatro ou treze?”

Guilherme: “Treze.”
Pesquisadora: “Treze? Então conta que eu quero ver os 13.”
(Guilherme contou novamente até 4, com mais ênfase no 4).
Os diferentes procedimentos realizados por Guilherme demonstraram claramente,
um conflito conceitual, no qual ora ele demonstrava o 13, ora não conseguia provar
que aquele registro referia-se ao 13 e fazia uma contagem de peças em que dezena
e unidade representavam o mesmo valor.

1 3 (Seu registro inicial)

1 2 3 4 (sua contagem posterior)

Os procedimentos apresentados pela criança, quando em situação de resolução


de um problema, referem-se aos conceitos construídos e que podem ser coloca-
dos em prova a partir de uma intervenção. Para que essa intervenção aconteça,
no sentido de fazer avançar os conceitos de que a criança já dispõe para dar
conta de resolver novos desafios, é preciso que, antes de qualquer coisa, profes-
sor e criança estejam interagindo de forma a possibilitar a compreensão dos
processos de elaboração do conhecimento por parte da criança, para que o pro-
fessor seja capaz de procurar as melhores situações para desafiar o aluno diante
do conhecimento, que diz respeito à natureza das trocas, da interação entre os
participantes do processo.

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 28


PGM 2

A opção pela centena


Nesse encontro, trabalhamos com a composição numérica e a análise dos valores
de cada ordem. Cada criança escolhia dois algarismos. Marcos formou o número 79
e depois o 97. Quando a pesquisadora pediu que representasse a quantidade com
material dourado, ele pediu para acrescentar mais um algarismo, o que ela concor-
dou. Então formou e leu o número 759. Pegou 7 dezenas e 59 unidades no material
dourado para representar o 759.
Pesquisadora: “É assim?”
Marcos: “É assim que faz.”
Pesquisadora: “Então conta os 759.”
(Ele contou de 10 em 10 as 7 dezenas. Depois continuou contando os cubinhos e
chegou ao 136, apresentando algumas dificuldades na contagem. Do 99 foi para o
40. Ajudei-o algumas vezes na contagem, quando não sabia o número seguinte).
Pesquisadora: “E agora é 136 ou 759?”
Marcos: “Ih! Vou ter de pegar do outro (centena).”
(Trocou as 7 dezenas por 7 centenas).
Marcos: “Agora tenho de completar com 59, porque tem 36.”
Pesquisadora: “Mas você não tinha colocado 59 cubinhos?”
Marcos: “Mas eu contei 36.”
(Pegou o pote com os cubinhos e continuou a contagem para completar os 59. Ele
acrescentou alguns e os cubinhos acabaram. E agora?).
Pesquisadora: “Bom, então vamos recontar para ver quantos tem.”
(Marcos começou a contagem e quando chegou ao 59 juntou os que sobravam e
colocou no pote).
Pesquisadora: “Não tem outro jeito de representar o 59?”
Marcos: “Tem, mas eu não quero.”
A pesquisadora mostrou 5 dezenas e perguntou o que era.
Marcos: “É 50”. (Foi pegando e devolvendo todos os cubinhos para o pote)
Pesquisadora: “Mas você vai colocar todos no pote?”
Marcos: “Vou trocar.”
Pesquisadora: “Mas aqui tem 50 e aí tem 59.”
Marcos: “Ah! Vai sobrar nove”. Pegou as nove unidades.
Pesquisadora: “E agora, como ficou?”.
Marcos: “759.”
Estas situações mostram claramente que as crianças envolvidas estão em proces-
so de construção da idéia de número. Algumas vezes, demonstram conhecimento

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 29


PGM 2

da relação quantidade x símbolo, outras não. Algumas vezes demonstram conheci-


mento do valor posicional, outras não. Mostram também o quanto o entendimento
do material dourado só é formado na ação da criança com esse material, não bas-
tando que o professor informe o valor de cada peça e espere um reconhecimento e
capacidade de contar da criança.

Podemos verificar que a compreensão de número não está só em saber recitar,


nem tampouco em saber registrar um número falado. A idéia de número se constrói
nas relações estabelecidas com os objetos. A idéia de número existe, quando há a
compreensão da quantidade.

Ao professor cabe a tarefa de promover boas situações que levem as crianças a


refletir e elaborar novos conhecimentos. Cabe, ainda, observar, dialogar e desco-
brir quais as estratégias utilizadas pelas crianças na elaboração do conhecimento
matemático, pois este conhecimento será o motivo para novas indagações.

Bibliografia:
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática II:
II Numerização. Módulo III, vol. 2. UnB,
2002.

BIANCHINI, Edwaldo e PACCOLA, Herval. Sistemas de numeração ao longo da história


história. São
Paulo: Moderna, 1997.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


Nacionais matemáti-
ca. Brasília: MEC/SEF, 1997.

FREITAS, S. B. L de. Da avaliação à aprendizagem:


aprendizagem uma experiência na alfabetização matemá-
tica. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação, UnB, Brasília, 2003.

KAMII, Constance. A criança e o número


número. Campinas, SP: Papirus, 1995.

VERGNAUD, G. A trama dos campos conceituais na construção dos conhecimentos


conhecimentos. In: Re-
vista do GEEMPA, Porto Alegre, nº 4, p. 6-19, julho 1996.

ALFABETIZANDO COM OS NÚMEROS, OU NUMERIZANDO 30


PGM 3

A Matemática está presente em nosso dia-a-dia: nos


CARMYRA afazeres de casa, nas compras do supermercado, da
OLIVEIRA
BATISTA1 mercearia, nas trocas de figurinhas, na construção das
ERONDINA
pipas, no jogo de queimada, em toda a parte. A
BARBOSA Matemática também está presente na escola, em
DA SILVA2
conhecimentos como: número de sílabas, número de
pessoas que formam a população de um lugar, nas
rimas, no alfabeto, nas calorias dos alimentos que
ingerimos, nos desenhos que fazemos, nas situações-
problema que resolvemos, na merenda, na quantidade
de pessoas que trabalham na escola. Porém, da
matemática da “vida” para a Matemática escolar há uma
ruptura de procedimentos que, por vezes deixam
estudantes e professores com a sensação de que falam
linguagens diferentes. Por que isso acontece?

Vamos iniciar nossa reflexão trazendo um pouco da história da Matemá-


tica para lembrarmos de como se deu a construção e o uso das medidas e
dos números decimais pelo homem.

1
???? Um pouco de história
2

Os números naturais foram os primeiros a serem criados pelo homem,


para resolver suas necessidades de contagem. Entretanto, quando o homem
precisou resolver questões do seu cotidiano, relativas à medida, foi necessá-
rio criar um outro tipo de número: os números fracionários. Os antigos egíp-
cios, por exemplo, usavam uma corda para medir comprimentos. Mas, em

31
PGM 3

suas medições, nem sempre o resultado era um número natural de tamanhos da corda. Assim,
resolveram marcá-la com nós. A medida podia ser expressa em certo número de cordas mais
algumas subdivisões entre os nós. Mesmo assim, o resultado podia não envolver um número
natural de intervalos entre os nós, gerando a necessidade de novas subdivisões. No decorrer
da história, o conjunto dos números racionais ganha significado no cotidiano humano, por
abranger nele os números naturais, as frações e os números decimais.
Dessa maneira, grupos culturais diferentes criaram maneiras diferenciadas de proceder,
em seus esquemas lógicos, o manejo de quantidades e, conseqüentemente, o de números e
medidas, que atendessem às necessidades cotidianas desses grupos. Por isso, até hoje mui-
tos grupos culturais têm suas formas de matematizar (D’Ambrósio, 1998, p.17) Entretanto,
sabemos que existem os invariantes entre culturas distintas – pois há inúmeros pontos em
que essas culturas se reúnem em torno de procedimentos matemáticos semelhantes.
Para respeitar os procedimentos lógicos de determinado contexto social e, ao mesmo
tempo, trabalhar esses invariantes mais universais, a escola deve promover atividades que
envolvam situações-problema do cotidiano dos estudantes, isto é, do grupo social no qual
estão inseridos e, a partir deles, criar também situações novas nas quais eles poderão mobi-
lizar os conhecimentos que já têm e ampliá-los, construindo, assim, novas aprendizagens.

Algumas reflexões

Nas séries iniciais, a aprendizagem e o ensino dos números decimais e das medidas é, na
maioria das vezes, relegado a poucas aulas no final do ano, o que sugere uma acomodação, na ação
do professor, causada pela proposta curricular oficial dos sistemas de ensino brasileiros, proposta
engessada em uma apresentação linear e rígida da seqüência dos conteúdos. Os números decimais,
o sistema monetário e o sistema de medidas não são compreendidos como um estudo dinâmico e
interessante nem, como podemos dizer, parte de um único campo conceitual: dos Números Racio-
nais. Ao invés dessa visão rica e integrada, sua aprendizagem é desenvolvida limitada ao estudo da
mudança de vírgula de um lado para o outro, sem compreensão, sem manuseio, sem construção e
uso de materiais que são utilizados socialmente como embalagens, ferramentas de medição, etc.
Quanto a isso Muniz, Batista e Barbosa afirmam que:

Em nossa cultura temos por hábito usar decimais bem mais que as frações: no dinhei-
ro, nas medidas de comprimento, de massa, capacidade, superfície, volume. Mais que isso,
o nosso sistema de medidas é decimal, nosso sistema legal tem por base o DEZ. Basta que
olhemos à nossa volta para constatar a grande quantidade de números com vírgula que
aparece [...] o manejo de quantidades e, conseqüentemente de números e medidas, obedece
a direções muito diferentes, ligadas ao modelo cultural (2002, p. 24).

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 32


PGM 3

Historicamente, podemos perceber que há, no Brasil, uma ênfase muito grande no ensi-
no de frações, enquanto que o ensino de decimais e medidas quase sempre fica relegado a um
segundo plano. A organização dos conteúdos, na maioria dos currículos, não nos possibilita
pensar em uma outra lógica senão esta. Somos quase que incapazes de dar um único trata-
mento a frações e decimais sem priorizar um em detrimento do outro.

Em verdade, esta organização curricular tem uma explicação histórico-cultural. Tradicio-


nalmente o nosso currículo recebeu influências de culturas diferentes das nossas, especial-
mente das culturas americana e inglesa. Ocorre que, nessas culturas, o uso das frações é
rotineiro. Podemos citar como exemplo o sistema de medidas e o sistema monetário. É comum
nesses países falar em uma polegada e meia, uma libra e meia, um quarto de dólar, uma hora
e um quarto, etc.

O mesmo não ocorre em nosso país. Em nossa cultura, temos por hábito usar os núme-
ros com vírgulas bem mais que as frações. Nas vivências monetárias, nas medidas de compri-
mento, massa, capacidade, superfície, volume, entre outros, vemos maciçamente a presença
de números decimais. Basta que olhemos à nossa volta para constatar a grande quantidade
de números com vírgula que aparecem nos jornais, revistas, anúncios, nos encartes, rótulos,
embalagens.

O fato de termos um currículo baseado em culturas diferentes da nossa faz com que o
nosso ensino seja carente de significado, principalmente quando tratamos dos números racio-
nais. Muitas vezes nossa ação pedagógica ou nossas opções metodológicas tornam-se verdadei-
ros obstáculos à aprendizagem. Nas séries iniciais e até na 5ª série, sempre começamos o ano
letivo trabalhando com o sistema de numeração decimal usado na representação dos números
naturais, valorizando a organização numérica por ordens e classes e enfatizando principalmente
os agrupamentos de dez em dez. Trabalhamos com as quatro operações na base 10 durante
metade do ano letivo, e aí, sem quê nem porquê, rompemos com toda esta estrutura mental
construída no campo numérico decimal e partimos para o estudo em outras bases. O trabalho
desenvolvido com frações, sobretudo quando operamos com números fracionários, em termos
cognitivos e matemáticos, mobiliza estruturas com mais de uma base numérica.

Podemos perceber facilmente que o trabalho com um sistema multibase traz algumas
dificuldades para o aluno. Tal fato pode ser explicado se compreendermos que quando traba-
lhamos com meios, estamos na base 2, com terços, estamos na base 3, com quartos, estamos
na base 4, e assim por diante. Assim, operar com duas frações pode significar tratar com duas
quantidades numéricas que se encontram em bases diferentes, portanto a operação com tais
números implica uma mediação via redução a uma base comum entre as duas quantidades
numéricas. Este é um obstáculo epistemológico suficientemente significativo para justificar,
no mínimo, a busca de outros caminhos metodológicos.

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 33


PGM 3

Precisamos compreender que esta ruptura no processo de construção de estruturas


numéricas, presente na maioria dos currículos brasileiros, não possui uma base epistemológica
e antropológica significativa para justificar a sua perpetuação. Epistemologicamente, não há
sentido em romper abruptamente com o sistema decimal e passar para um sistema multibase,
para depois retornar ao sistema decimal. Podemos afirmar que a estrutura numérica existen-
te nos números naturais continua preservada nos decimais. O agrupamento, o valor posicional,
a contagem, os algoritmos operatórios nos decimais acabam por se constituírem em extensão
homogênea e harmônica dos naturais aos números racionais, mas ainda na base decimal.
Antropologicamente, como já dissemos, esta ruptura despreza nossa cultura, nosso sistema
monetário, nosso sistema legal de medidas que também são de base 10.
É preciso também refletir sobre o reducionismo curricular que dá ao estudo das medidas
um sentido mecânico de pura transformação de unidades. Devemos reconsiderar a concepção
de medidas no currículo, resgatando sua noção cultural, pois a presença da Matemática em
nossa vida se dá predominantemente por meio das medidas. Mais relevante é o conhecimento
das dimensões reais das unidades de medida e o uso de instrumentos em medições reais,
levando a perceber as relações entre as unidades.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam Grandezas e Medidas como um dos blo-
cos de conteúdos justificando que:

“ Na vida em sociedade, as grandezas e as medidas estão presentes em quase todas as


atividades realizadas. Desse modo, desempenham papel importante no currículo, pois mostram
claramente ao aluno a utilidade do conhecimento matemático no cotidiano.” (PCN, 1997, p. 56)

O ser humano constrói a sua noção de medidas muito antes de chegar à escola, o que
nem sempre é considerado pelo professor. Temos que buscar essas noções dos alunos em
seu contexto social e daí fazer o ponto de partida para a ampliação do conhecimento sobre
esse assunto, e não desenvolvê-lo a partir de conceitos científicos já fechados. Assim, o traba-
lho com medidas deve partir da dimensão da cultura para chegar à ciência e não o inverso,
como acontecem nos nossos currículos, muitas vezes sob influência da Matemática moderna.
De acordo com Nunes (1997), as atividades de medidas são importantes para expandir a
compreensão do número pelas crianças. O estudo de medidas deve ser decorrente da percep-
ção espaço/temporal do aluno a partir das medidas arbitrárias inerentes ao seu contexto
social. A construção dos instrumentos de medidas deve se basear em situações de simulação
de medidas, do ato de medir, levando o aluno e seu grupo a escolher as unidades de medida
que julgarem apropriadas. Esse deve ser o pressuposto inicial para esse estudo.
Na perspectiva da educação matemática, o estudo das medidas deve perpassar todo o
espaço curricular, isto é, as medidas devem ser trabalhadas durante todo o ano letivo. Lem-

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 34


PGM 3

bramos que a proposta de “currículo em espiral” citada nos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais para o ensino da Matemática defende que: “o mesmo conteúdo deve ser apresentado em
diferentes níveis de abordagem, nos diferentes níveis de ensino, de modo que as idéias bási-
cas sejam dominadas aos poucos, em um aprofundamento constante de sua compreensão e
aplicação ”. Desta forma, o professor, em cada série, não deve ter a pretensão de esgotar o
trabalho com medidas, mas mediar a construção dos conhecimentos do aluno de tal forma que
o leve a estabelecer relações com conhecimentos anteriores, criando condições de constru-
ções futuras.

Ensino/aprendizagem: como proceder?

Visto que o conhecimento é construído pelo sujeito em sua relação com outros sujeitos e
com o mundo, a sala de aula deve ser um espaço privilegiado, mas não único, de construção do
saber. Neste lócus de construção do conhecimento, é natural e esperado que exista uma
relação de respeito e afetividade, para que seja fértil o desenvolvimento de aprendizagens
múltiplas. Nesse processo, os sujeitos estão em permanente conhecimento e reconhecimento
de si mesmos e da realidade. Por isso, acreditamos ser fundamental que todos se reconheçam
como sujeitos históricos que, em desenvolvimento, compreendem a realidade de forma dife-
renciada e em tempos diferentes. Mas, considerando a função social da educação, os profes-
sores possuem uma tarefa especial, a de mediar essa construção.
Dessa forma, a sala de aula deve ser espaço de interação, de troca, de produção, de
reelaboração, de discussão, ou com uma só palavra, de mediação. Segundo Jussara Hoffmann:

A mediação é espaço de encontro, espaço a ser ocupado pelo diálogo, pela reciproci-
dade de pensamento e sentimentos entre o educador e o educando, entre educadores,
entre educandos, pessoas em processo de humanização – um espaço a ser construído. [...]
A mediação se dá quando o professor pensa sobre como o aluno está pensando ou se sen-
tindo sobre algo, quando o aluno pensa sobre como o professor e outros pensam e se sen-
tem sobre esse mesmo algo, e quando, nesse momento, seus olhares cruzam-se e inter-
pretam-se, percebendo-se enquanto sujeitos concretos, com seus jeitos particulares de
ser, de conhecer, de existir (1998, p. 9).

A atividade docente é, por excelência, atividade de mediação. Mas será que somos, de
fato, mediadores da aprendizagem? Ou ainda estamos “dando aulas”? Será que nos coloca-
mos como produtores de conhecimento e consideramos que o aluno, também, produz conheci-
mento ou ainda somos apenas transmissores do saber socialmente construído? A construção
do conhecimento na perspectiva dialética da educação, segundo Celso Vasconcellos, tem sen-
tido quando possibilita compreender, usufruir e transformar a realidade (1999, p. 34).

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 35


PGM 3

A despeito de toda essa importância da sala de aula, precisamos pensar para além dos
seus limites. Precisamos considerar que os sujeitos do conhecimento possuem uma história,
que o próprio conhecimento transforma-se devido ao contexto em que se situa no tempo.
Pensar sobre estas questões é, sobretudo, desnaturalizar o nosso olhar sobre a realidade.
Com isso, queremos dizer desacostumar o olhar de aceitar como natural a realidade que tem
sempre visto, de procurar enxergá-la melhor, além da aparência, buscando respostas a inda-
gações como: de onde vem e quem é o aluno? Como tem sido a sua trajetória de vida? Em que
meio ele vive? Quais são os hábitos e costumes do seu meio? E você? Qual a sua história?
Qual a sua concepção de aprendizagem? Qual é o tipo de construção social da qual você está
efetivamente participando? Que conteúdos trabalha? Como estes conteúdos foram construídos?
Por que e por quem foram construídos?
Quando somos capazes de exercer essa visão desnaturalizada da realidade, colocamos em
xeque a nossa própria concepção de currículo. Estamos tomando para nós a responsabilidade de
reafirmar que o currículo é muito mais que uma lista de conteúdos. O currículo é caminho, trajetória
e, portanto, é algo que está em permanente movimento e construção. Os conteúdos trabalhados
pela escola são apenas uma parte dessa construção mas não têm fim em si mesmos. É esta pers-
pectiva de currículo que nos permite acreditar que em educação estamos em permanente processo
dialético de interação entre passado, presente e futuro, de tal forma que possamos compreender e
viver o presente, buscar referências e analisar o passado, para antever o futuro.
Celso Vasconcellos em seu livro Construção do Conhecimento em Sala de Aula (1999,
p.14), nos coloca diante da seguinte indagação: Qual o critério para a organização/seleção
dos conteúdos? Este é um questionamento importante e requer de nós educadores uma pos-
tura crítica. Que resposta você daria a essa indagação? Você já parou para pensar sobre
isso? Você já parou para pensar que, muitas vezes, em nome de cumprir a lista de conteúdos
preferimos transmitir saberes do passado desconsiderando conteúdos do nosso presente?
Pensar sobre estas questões, de fato, não é tarefa simples, mas se realmente quisermos
ressignificar o nosso trabalho pedagógico, numa perspectiva dialética da educação, acredi-
tando que a escola tem como objetivo principal a formação plena do aluno enquanto sujeito
histórico, então não temos outra opção. No começo, pode até parecer trabalhoso, mas estamos
convencidos de que é absolutamente necessário para criarmos uma escola socialmente com-
prometida, mais inclusiva, em que se tenha a dimensão do prazer de aprender.
Toda essa reflexão nos leva a focar nosso olhar sobre o nosso trabalho pedagógico em
relação à Matemática na escola. Chevallard, Bosh e Gascon nos ajudam a refletir sobre isto
quando afirmam:

O fato de que se ensine matemática na escola responde a uma necessidade ao mes-


mo tempo individual e social. [...] A presença da matemática na escola é uma conseqüência

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 36


PGM 3

de sua presença na sociedade e, portanto, as necessidades matemáticas que surgem na


escola deveriam estar subordinadas às necessidades da vida em sociedade.

Se a proposta é rediscutir a presença da Matemática na escola, numa linha histórico-


crítica, faz-se necessário repensar o que é aprender e ensinar Matemática a fim de ressignificar
os papéis do professor e do aluno.
Na perspectiva da educação matemática, o professor é o mediador entre o conhecimen-
to matemático e o aluno. Isto exige dele a capacidade de transformar o saber matemático
acumulado em saber escolar, possível de ser ensinado e aprendido. Ele deve ser capaz de
fazer a transposição didática a fim de tornar o conhecimento matemático significativo.
O aluno não é uma tabula rasa, ele possui um papel ativo em sua própria aprendizagem,
uma vez que ele é produtor de conhecimento matemático e esta sua capacidade deve ser
potencializada pela escola. O papel do professor ganha, assim, novos significados. Ele é
organizador, consultor, mediador, incentivador e problematizador do processo de ensino apren-
dizagem.
Por fim, o trabalho escolar voltado para a educação matemática busca colaborar para a
criação de uma escola em que se constroem conhecimentos, não os dá prontos e acabados,
não nega as contradições, aliás, as procura, pois busca a superação e não o consenso dogmático.
A escola deve ser um ambiente rico para a construção da compreensão do todo, com a reso-
lução de situações-problema, no confronto entre o conhecimento novo e velho, fazendo com
que o estudante aja sobre o objeto do conhecimento, organizando seu pensamento, fazendo a
síntese e se apropriando efetivamente desse conhecimento.
Não no intuito de concluir, mas apenas no de criar uma síntese provisória, gostaríamos
de dizer que o nosso papel de educadores não se limita a reproduzir aquilo que nos foi desig-
nado. É da natureza humana dar significação ao mundo, indagar, criar, mudar, reagir. Portan-
to, não temos que reproduzir a escola que nos ensinou nem destruir o que de bom ela contin-
ha, mas temos que avançar para uma educação holística, sair das caixinhas que segmentam o
saber e que limitam a visão de mundo das pessoas.
Que a escola seja um ambiente rico em aprendizagem para o professor, o estudante e a
comunidade escolar.

Referências Bibliográficas
CHEVALLARD, Yves, BOSCH, Mariana e GASCON, Josep. Estudar Matemáticas: o elo perdido
entre o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2001.

D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo, Editora Ática, 1990.

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 37


PGM 3

HOFFMAMN, Jussara Maria L. Pontos e Contrapontos: do pensar ao agir em avaliação. Porto


Alegre, Editora Mediação, 1998.

MUNIZ, Cristiano A. Os números decimais – Módulo do Projeto Um Novo Currículo de Matemáti-


ca de 1ª a 8ª séries. Brasília, Departamento de Matemática/UnB, 1987.

MUNIZ, Cristiano, BATISTA, Carmyra e BARBOSA, Erondina. Educação e Linguagem Matemática


– Módulo 2 de Educação Matemática do PIE - Curso de Pedagogia para professores em
exercício no início de Escolarização - FE-UnB, 2001.

NUNES, Terezinha, BRYANT, Peter. Crianças fazendo matemática. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.

VASCONCELLOS, Celso dos S. Construção do conhecimento em sala de aula . São Paulo: Libertad,
1999.

ENSINO/APRENDIZAGEM DAS MEDIDAS E DE NÚMEROS DECIMAIS 38


PGM 4

Frações e Números Fracionários


NILZA
EIGENHEER
BERTONI O texto relativo ao terceiro programa dessa série, as
autoras procuraram ressaltar a presença mais
expressiva, em nossa cultura, da representação decimal
dos números racionais sobre a representação
fracionária. Procuraram enfatizar, também, a
necessidade de um trabalho articulado entre números
na representação decimal e sistemas de medida,
priorizando a representação decimal e incluindo a
construção de conceitos e de processos operatórios.

Uma vez colocado isso, torna-se necessário discutir e redimensionar o


ensino da representação fracionária, comumente referido como ensino das
frações.
Realmente, em nossa cultura, o uso de cálculos na representação
fracionária é bem reduzido. Nesse sentido, toda a ênfase de nossos livros
didáticos e nossas propostas curriculares em desenvolver, de modo mecâni-
co, esses cálculos, resulta em quase nenhum uso funcional autêntico.
Entretanto, seria relevante ao aluno aprender o sentido de uma fração?
Aqui, a resposta é positiva. Representações fracionárias e representações
decimais são facetas de um mesmo número, o número racional, ainda que
representações decimais, de tipos especiais, também possam servir para
representar números não racionais.
Um conhecimento mais global do número racional positivo, que é o
estudado até a 4ª série, compreende uma interpretação correta de suas
duas representações. O aluno precisa saber transitar com desenvoltura da
representação ¼ de kg para a representação 0,5 kg ou para a expressão
500 gramas.

39
PGM 4

Nos particionamentos iniciais da unidade, em um determinado número de partes iguais, a


escolha de um número arbitrário de partes pode fazer mais sentido do que a divisão em 10 e em
100. Pensemos em um problema de 3 meninas que comem igualmente um bolo, e de quatro meni-
nos que comem igualmente um bolo de mesmo tamanho. Podemos perguntar às crianças, mesmo
antes de conhecer frações, quem come mais – uma menina ou um menino? Nesse problema, a
quantificação do pedaço resultante – um terço, um quarto – associa-se mais naturalmente a frações
do que à representação decimal. Essa quantificação ficaria artificial se quiséssemos identificar o
pedaço dos meninos como 25 centésimos do bolo, e o das meninas como 0,3333...do bolo.
Há outras razões que demandam esse entendimento do número fracionário. Em ques-
tões de chance ou probabilidade, ele é inerente à compreensão dos novos conceitos. Assim, o
aluno percebe que, ao jogar uma moeda, a chance de cair uma face ou outra é de 1 em 2, ou
metade da chance para cada uma delas. Ao jogar par ou ímpar, há 5 chances de aparecer um
número ímpar (1, 3, 5, 7 ou 9) e 6 chances de aparecer um número par (0, 2, 4, 6, 8 ou 10), Em
um total de 11 resultados possíveis, as chances de se tirar um número ímpar são de 5/11 e de
se tirar um número par são de 6/11.
As frações são ainda de grande uso nas proporções e nas porcentagens, em razões e
escalas, e ainda nas receitas culinárias. Mas, como se pode perceber, o que está em jogo é a
compreensão do sentido do número fracionário, e não seus inúmeros cálculos, os quais são,
contudo, priorizados no sistema escolar. Essa compreensão não pode ser conseguida só com
a divisão de figuras geométricas em partes iguais e a memorização das regras operatórias.
Frações têm sido um dos temas mais difíceis no Ensino Fundamental. Avaliações e pes-
quisas atestam o baixo rendimento dos alunos no assunto. Ao contrário do que parecem pen-
sar os autores de livros didáticos, a construção do sentido de número fracionário não é tarefa
que possa ser resolvida em uma ou duas páginas. É preciso encontrar caminhos para levar o
aluno a identificar essas quantidades em seu contexto cotidiano e a apropriar-se da idéia do
número fracionário correspondente, usando-os de modo significativo.
Nos últimos anos, as pesquisas sobre o ensino e a aprendizagem desse tema têm detec-
tado inúmeros problemas e levantado hipóteses, que, entretanto, não abrangem a totalidade
da problemática, nem são conclusivas. Talvez devido a isso, propostas de ensino incorporando
esses resultados são apenas incipientes. O mais comum de se encontrar são as mesmas
propostas de sempre, que começam informando as crianças sobre nomes e símbolos de
frações, apresentando quadrados, retângulos ou círculos divididos e parcialmente pintados.
Pontos importantes a considerar, no desenvolvimento desse tema, são:
a constatação de que os símbolos são obstáculos à compreensão inicial do significado
desses números pela criança, o que sugere um tempo inicial de aprendizagem não
simbólica das frações;

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 40


PGM 4

a constatação de que trabalhar com famílias de frações inter-relacionadas, como meio/


quarto/oitavo; terço/sexto/nono, quinto/décimo/vinte avo, permite que a criança
estabeleça relações e atribua significado a operações iniciais com esses números.
Elas percebem, por exemplo, que 1 quarto é metade de 1 meio; que 1 quarto + 1
quarto é igual a 1 meio; que duas vezes 1 quarto dá 1 meio, que 1 meio dividido por 2
dá 1 quarto, etc. Um fato significativo foi o raciocínio demonstrado por uma criança,
ao se deparar, em um jogo, com o desafio: quanto é 5 terços menos 1 sexto? Ela foi
rápida: 4 terços e meio. Nitidamente, ela se apoiava na relação vivida e construída, de
que o sexto era obtido dividindo-se o terço ao meio; o sexto valia, portanto, metade
do terço. Assim, ao pensar em 5 terços menos 1 sexto, ela pensava em 5 terços
menos a metade de um deles, o que daria, portanto, 4 terços e meio (terço);
a constatação de que as noções de mínimo múltiplo comum e de máximo divisor co-
mum interrompem o caminho natural da construção da idéia de fração pela criança, e,
além do mais, não são imprescindíveis aos cálculos, sendo possível desenvolvê-los,
pelo menos nas séries iniciais, sem aqueles conceitos;
a constatação de que os algoritmos operatórios desenvolvidos na escola são de com-
preensão quase impossível para as crianças, e se afastam muito dos algoritmos para
as mesmas operações nos números naturais. Comparem-se, por exemplo, os
algoritmos tradicionais da soma e da divisão de frações, com os algoritmos da soma
e da divisão entre os números naturais. São tão distintos que as crianças não chegam
a identificar que os novos algoritmos possam estar efetivamente ligados a uma situ-
ação real de soma ou de divisão.
Além disso, como temos defendido nessa série, será mais significativo e interessante
para as crianças aprenderem os conceitos em situações do dia-a-dia ou em situações-pro-
blema.
É possível trabalhar uma variedade grande de problemas desafiantes para a criança,
antes mesmo de ela começar a aprender frações. Eles servirão para a criança pensar nessas
quantidades, de maneira significativa e real, e podem servir de ocasião para a introdução de
nomes das partes que aparecem. Alguns exemplos são:
Maria cortou uma laranja para dividi-la bem certinho entre si e uma colega. Que
parte da laranja cada uma recebeu?
Celina estava fazendo 9 anos. O pai dela lembrou que metade da vida ela havia mora-
do com seus avós. Quanto tempo Celina ficou com os avós?
A mãe dividiu um doce em 8 partes iguais. Joelmir, Maria e Gláucia vieram e comeram
tudo. Joelmir comeu metade do doce. Maria comeu uma das partes cortadas. Quantas
partes do bolo Gláucia comeu?

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 41


PGM 4

Uma professora tinha 10 alunos. Ela dividiu uma goiabada em 10 pedaços, para dar
um pedaço a cada aluno. Mas três alunos não quiseram. Dois deles eram irmãos e
deram seus pedaços para um primo, da mesma sala; o outro deu seu pedaço para um
colega de classe. No lanche, os colegas comeram os pedaços que ganharam.
Quantos alunos comeram goiabada?
Quantos alunos comeram mais do que um pedaço? Quantos pedaços eles comeram:?
Quantos alunos comeram só um pedaço?
Tia Lucy tinha 5 doces para dividir igualmente entre 4 sobrinhos. Como ela poderia
fazer essa divisão?
Quatro crianças compraram 3 barras de chocolate e querem dividi-las igualmente
entre elas. Como elas podem fazer isso?
Quantos meio litros cabem em um litro e meio?
Metade de meio litro é chamada de 1 quarto de litro. Quantos quartos de litro cabem
em um litro e meio?
Não é necessário ensinar nada. Só deixar as crianças pensarem, elaborarem hipóteses,
apresentarem respostas de um grupo a outro e repensarem, até se certificarem de uma solu-
ção a que possam chegar sozinhas.
Essas soluções próprias, desenhadas, registradas em língua escrita ou faladas, servirão
de ponto de partida para a introdução dos primeiros registros numéricos, que devem usar os
números naturais e os nomes das partes, tendo uma forma que os associa fortemente com os
registros correspondentes, feitos para os números naturais. Assim, eles se apresentam ver-
ticais para a soma e a subtração de frações, e em chave para a divisão. Ou seja, procura-se
introduzir algoritmos, na aparência e na essência, mais de acordo com as concepções da
criança. Exemplificando:

Pelo que sabemos, essa abordagem não está incorporada aos livros e propostas atuais.
Além disso, constata-se que, na maioria dos livros didáticos, não aparecem problemas
relacionados à multiplicação e à divisão de frações, ficando o desenvolvimento desses tópicos
sem significado para o aluno.

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 42


PGM 4

Dificuldades e problemas no ensino e na aprendizagem dos números fracionários


Um problema constante é o baixo rendimento apresentado pelos alunos, nas provas
escolares e nas provas de avaliação nacional, tanto na compreensão desses números quanto
nos cálculos com os mesmos.
Pode-se dizer que os alunos, mesmo quando sabem efetuar os cálculos, aprendidos de
forma memorizada, não sabem para que usá-los. Desse modo, é comum encontrar alunos que
ficam bloqueados frente a perguntas como:
quanto vale 3/2 de R$ 25,00?
com 22 ½ litros, quantos frascos de 1 ½ litros poderemos encher?
Na resposta da primeira, há vários caminhos possíveis: calcular o valor de 3 metades de
25,00; multiplicar 3/2 por 25,00 ou, ainda, evitar cálculos com frações, se o aluno tiver uma
noção real do número 3/2, entendendo-o também como uma vez e meia.
Para a segunda, o aluno deveria ter um reconhecimento imediato de que está associada
a uma divisão, com o sentido de medida – quantas vezes 1 cabe em 22 ? O processo de
divisão de frações pode ser usado ou, em seu lugar, um processo intuitivo:
Para encher 2 frascos gastamos 3 litros;
Para encher 4, são 6 litros;
Para 8 frascos, são 12 litros;
Para 16 frascos, são 24 litros – passa do que temos;
Para 12 frascos (8 + 4) são 12 + 6 = 18 litros;
Para 14 frascos, preciso de mais 3 litros, e dará 21 litros;
Como tenho 22 ½ litros, ainda dará para encher mais um frasco. A resposta é 15
frascos.
A falta de desenvolvimento do significado e da lógica subjacente aos tópicos desse tema
tem sido constante, na maioria das propostas atuais. Outras questões que os professores e
alunos têm, em geral, dificuldade em responder são, por exemplo:
resolva mentalmente: quanto dá ½ dividido por ¼ ?
por que a divisão de frações se faz daquele jeito estranho?
por que se usa o mmc? por que ele é usado na soma e na subtração e não na divisão
e na multiplicação?
Outra dificuldade reside nas propostas curriculares estaduais muito extensas sobre o
tema, que se refletem nos conteúdos de muitos livros didáticos. A apresentação é feita como
se os alunos pudessem adquirir competências de compreender esses números, estabelecer

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 43


PGM 4

ª
relações, operar com eles e resolver problemas durante dois bimestres – um na 3 série e
ª
outro na 4 série. Esse dimensionamento inadequado traduz uma concepção de Ensino Funda-
mental que visa à formação do aluno-calculadora – não importa o que ele entenda ou não, o
importante é que consiga realizar qualquer operação com os números naturais, fracionários,
decimais. Não importa mesmo que ele saiba como usar essas operações, ou como combiná-
las, na resolução de problemas.
Essa concepção não se coaduna com uma educação que visa à formação do cidadão
autônomo e crítico, e à sua inserção ativa na sociedade. Autonomia e poder de crítica não
serão atingidos por esquemas de dependência ao professor, desvinculados de um pensar
consciente. Por sua vez, a atuação ativa num mercado de trabalho que requer capacidade de
resolver problemas, avaliar situações, propor soluções e ter versatilidade para novas fun-
ções, não pode ser alcançada apenas pelo exercício de um fazer mecânico, sem pensamento
próprio e sem questionamento. Felizmente os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam
para novos rumos – nas séries iniciais, a prioridade é dada à representação decimal dos
números; os conteúdos relativos aos números fracionários foram diminuídos, havendo tempo
suficiente para uma introdução bem fundamentada a eles.
De fato, na aprendizagem dos números naturais, são necessários vários anos para a
sedimentação da compreensão de alguns números iniciais desse conjunto. Embora essa apren-
dizagem se inicie por volta de 1 ano e meio, muitas crianças chegam aos 6 ou sete anos
sabendo apenas identificar, nomear e comparar quantidades até 6 ou 8 (não estamos nos
referindo à sua capacidade de recitar, oralmente, a seqüência numérica até números bem
maiores, ou mesmo de saber ler símbolos como 100 ou 1.000). Se isso ocorre com os números
naturais, que povoam nosso universo sociocultural e com os quais a criança entra em contacto
diariamente, por que deveria ser diferente com os números fracionários, pouco presentes no
cotidiano, e com os quais a criança pouco ou nenhum contacto teve?
As propostas escolares não têm levado em conta esse fato. Basta olhar os livros escola-
res para se ver que, após a introdução da metade (quase sempre de um número), feita em
alguma série anterior, nenhuma menção é feita a qualquer outra fração, até o início do estudo
desses números, geralmente na terceira série. Pode-se notar então,no início desses livros,
uma boa quantidade de informações: vários desses novos números são apresentados, acom-
panhados da simbologia correspondente; é comum ainda serem introduzidas terminologias
como fração, numerador e denominador, fração própria, imprópria, mista, etc.
A escola propõe que, nesses estudos iniciais (aos quais costumam ser destinados em
poucos dias), os alunos aprendam:
os nomes um meio, um terço, um quarto, um quinto, um sexto, um sétimo, um oitavo,
um nono e um décimo – além dos também desconhecidos “avos”.

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 44


PGM 4

a se referir a mais do que uma dessas partes: dois meios, dois terços, três quartos,
quatro quintos, etc.
os símbolos para esses termos: 1/2, 1/3, 1/4, 1/5, 1/6, 1/7, 1/8, 1/9, 1/10. Ou 2/2,
2/3, 3/4, 4/5.
alguma terminologia relacionada: numerador, denominador, frações próprias, impró-
prias, mistas, aparentes, etc.
Mack, uma pesquisadora norte-americana citada por Nunes e Bryant (1997, p. 213), ve-
ª
rificou, entre alunos de 6 série, que a compreensão de situações que envolviam frações fora
da escola não se articulava com as representações simbólicas aprendidas na escola. Ela pro-
pôs um problema: “suponha que você tem duas pizzas do mesmo tamanho e você corta uma
delas em 6 pedaços de tamanho igual, e você corta a outra em 8 pedaços de tamanho igual. Se
você recebe um pedaço de cada pizza, de qual você ganha mais?” Depois, uma nova pergunta:
“que fração é maior, 1/6 ou 1/8?” Mack observou que problemas sobre situações cotidianas
não pareciam causar dificuldade; mas no segundo problema, com exceção de 1 aluno, todos
disseram que 1/8 era maior porque 8 é um número maior. Mack trabalhou com esses alunos
movendo-se de uma abordagem à outra – dos problemas apresentados simbolicamente a
situações de contextos familiares e vice-versa – e notou que os estudantes começaram a
relacionar símbolos e procedimentos escolares de frações ao seu conhecimento informal. Nunes
e Bryant (1997, p. 213), indagam-se se essa lacuna não poderia ser evitada por meio de uma
aprendizagem escolar que estabelecesse essas conexões, e aventam a hipótese da causa do
problema ser o uso escolar de procedimento de dupla contagem. para a aprendizagem de
frações – o qual consiste em, num todo dividido em partes iguais com algumas delas destaca-
das, contar o número total de partes (por exemplo, 8), contar o número de partes pintadas
(por exemplo, 5) e escrever 5/8 , sem entender o significado deste novo tipo de número.
Nunes e Bryant (1997), citam também, na página 193, as pesquisas de Campos et al.
(1995), evidenciando que esse modo de introduzir frações pode causar erro. Nas pesquisas
ª
de Campos, foram apresentadas três figuras, para que alunos de 5 série reconhecessem as
frações associadas a cada caso.
Os alunos deram respostas corretas para os dois primeiros retângulos. No terceiro
retângulo, 56% dos alunos escolheram 1/7 como a fração correspondente; 12% escolheram
2/8 e 4% indicaram tanto ¼ como 2/8.

O desenvolvimento histórico da noção de fração vivido pela


humanidade

Três aspectos salientam-se nesse desenvolvimento:

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 45


PGM 4

O modo provável como chegaram às frações: Tropfke (1980), em sua História da


Matemática Elementar, faz uma descrição inicial do aparecimento histórico das frações
a qual, numa tradução adaptada, diz o seguinte: “A tarefa de dividir k objetos em n
partes (por exemplo, dividir 7 pães por 10 pessoas) apareceu, na prática, seguramen-
te antes de qualquer costume escrito. Talvez se tenha inicialmente dividido cada um
dos objetos em 10 partes – desse modo, obtinha-se a “fração tronco” 1/10, que podia
ser considerada, de certo modo, como uma nova unidade, e então reunia-se 7 dessas
novas unidades. A fração geral 7/10 é assim, por um lado, entendida como o resulta-
do da divisão 7 : 10; por outro, como reunião de 7 unidades 1/10”.
O fato de os povos antigos, principalmente os egípcios, terem se apoiado fortemente
nas frações “tronco”, ou unitárias (com numerador 1).
O fato de terem considerado também os complementos dessas frações unitárias, em
relação ao todo.
Elas nos sugerem várias ações para a aprendizagem das frações:
associar a fração não só a certas partes de um inteiro dividido igualmente, mas tam-
bém ao resultado da divisão de vários inteiros em certo número de partes iguais;
usar bastante, no início, frações de numerador 1, mencionando, por exemplo, 3 peda-
ços de ¼; 2 pedaços de 1/3, etc.
levar as crianças a compreenderem quanto sobra de um inteiro, ao se retirar certa
fração. Podemos perguntar, por exemplo: se eu comer 2 pedaços de 1/3 do bolo,
quanto sobra do bolo?

Construção do conhecimento das primeiras frações

Resumindo, diríamos que uma proposta para a aprendizagem das primeiras frações deve
estar atenta a:
Aproveitar toda oportunidade em que apareçam, no contexto do mundo real, divisões
de coisas ou objetos – um ou mais do que um – resultando em partes iguais.
Aproveitar toda oportunidade de objetos já divididos num certo número de partes
iguais, dando-se destaque à situação e ensinando o nome dessa parte. Por exemplo:
pudins são vendidos, em padarias, divididos em 12 partes iguais.
Fazer as crianças observarem que todas as partes obtidas valem o mesmo tanto.
Perceber que as partes podem aparecer numa ordem aleatória. Por exemplo: peda-
ços de metade, em seguida décimos, depois quartos, quintos, oitavos, conforme
apareçam em situações práticas.

É POSSÍVEL ENSINAR FRAÇÕES PARA A VIDA? 46


PGM 4

A cada nova parte, ou fração, insistir:

quantos daqueles precisamos para voltar a ter a coisa toda (formação do todo).
Essa compreensão, de quantas frações iguais à certa fração dada são necessárias
para fazer o todo, será útil ao longo de toda aprendizagem com frações – ela permi-
te identificar de que fração se trata.
tirando uma delas, quantas sobram na coisa que foi dividida?
se já temos uma, quantas precisamos juntar para poder montar a coisa inteira?
(complemento)
Para finalizar, lembramos ao professor que, embora tenhamos sinalizado para uma re-
dução drástica da quantidade de cálculos formais com frações, pensamos que o tempo a ser
trabalhado com esse conceito não deve ser reduzido. Uma grande atenção deve ser dada à
formação do conceito de número fracionário e seu uso em problemas significativos.

Bibliografia:
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática 4:
4 Frações e Números

Fracionários. Módulo V, vol. 2. UnB, 2002.

NUNES, Terezinha, BRYANT, Peter. Crianças fazendo matemática.


matemática Porto Alegre: Artes Médi-
cas, 1997.

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PGM 1

Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação
Tarso Genro

Secretário de Educação a Distância


?????????

MEC / SEED / TV ESCOLA


SALTO PARA O FUTURO

Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos


Jean Claude Frajmund

Diretora do Departamento de
Política de Educação a Distância
Carmen Moreira de Castro Neves

Cordenadora Geral de Planejamento e


Desenvolvimento de Educação a Distância
Tânia Maria Magalhães Castro

Supervisora Pedagógica
Rosa Helena Mendonça

Coordenadoras de Utilização e Avaliação


Mônica Mufarrej e Leila Atta Abrahão

Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins

Diagramação e Editoração
Norma Massa

Consultora especialmente convidada


????????????

Email: salto@tvebrasil.com.br
Home page: www.tvebrasil.com.br/salto
Av. Gomes Freire, 474, sala 105. Centro.
CEP: 20231-011 – Rio de Janeiro (RJ).
Dezembro de 2003

CONHECIMENTO MATEMÁTICO 48

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