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NILZA EIGENHEER
BERTONI 1 UMA BREVE VISÃO DO ENSINO ATUAL DE MATEMÁTICA
CONHECIMENTO MATEMÁTICO 2
PROPOSTA PEDAGÓGICA
Os argumentos que mantêm o ensino como está são menos proclamados. Na verdade,
eles representam uma força entranhada nas pessoas, que se origina na manutenção de cren-
ças e hábitos que perduram há décadas e são expressos por sentimentos tais como: “Mate-
mática é difícil mesmo, o programa é extenso, não dá tempo de ficar inventando coisas para
fazer, foi sempre assim”.
O que se encontra, portanto, é um discurso relativamente difundido sobre novas formas
de ensino, ao lado de certa resistência à implantação de mudanças e algumas dificuldades
nesse processo.
Entretanto, já se evidencia qual dos lados dessa dualidade irá prevalecer. As mudanças,
embora lentas, estão chegando, seja nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas propostas
programáticas, nos livros didáticos e paradidáticos, nos planejamentos e discussões entre
professores.
É necessário que o professor se prepare para elas, evitando que venha a se sentir estra-
nho e incapaz de atuar, quando elas estiverem instaladas.
rio não garantia seu preparo para a profissão. Muitos médicos só começam a aprender sobre
a profissão em seu período obrigatório de residência em hospitais, durante dois anos após os
seis de duração do curso.
De algum modo, esse esquema tradicional de formação de um profissional tem se reve-
lado bastante ineficaz. Ele provoca exclusão e desistência ao longo de todo o ensino básico e
também na universidade. Um montante significativo de investimentos feitos pelo governo vai
se diluindo e ficando sem retorno; novos investimentos se fazem necessários para resgatar os
analfabetos, os desistentes, os excluídos.
Os alunos de hoje vivem em uma sociedade tecnológica e conturbada. Crescem dentro de
um novo ritmo global de vida. São muito mais soltos na estrutura familiar e social, onde convi-
vem com mais tensões. Desemprego e violência também fazem parte do cotidiano.
A escola também tem sua dinâmica, seu ritmo, suas relações internas alteradas. O paco-
te instrucional antigo já não se adapta às novas condições da sociedade e do aluno, já não
funciona mais. Na falta de uma política global mais ágil, que repense o papel da escola e
incorpore gradativamente as mudanças necessárias, a escola persiste basicamente no es-
quema tradicional, lutando por fazer funcionar o modelo antigo, cada vez com maior desgaste
e menos resultados.
Apesar do seu evidente fracasso, há certa insistência em um tipo de escolaridade que
quase não tem mudado. Não seria o caso de se pensar qual é o conhecimento que se adapta à
maioria das pessoas do mundo de hoje, e que também é necessário à sociedade em que
vivem? Ou seja, como desenvolver no aluno de hoje habilidades para a vida?
Um ponto relevante a considerar se refere às características de agilidade e funciona-
lidade na aprendizagem. Em um curso de computação ou de língua estrangeira, por exem-
plo, o aluno não quer mais ficar aprendendo, durante um ano ou mais, aspectos teóricos,
conhecimentos que ele não sabe para que servem, e que lhes dizem que serão úteis mais
tarde. Na sociedade atual, as pessoas querem adquirir conhecimento concomitantemente a
alguns de seus usos, querem saber para onde esse conhecimento está levando, querem
entender e participar da aprendizagem. Essa consciência ativa, atenta e participante é alta-
mente desejável na sociedade moderna, que não comporta mais, pela diversidade e inter-
relação de suas funções, sujeitos treinados em uma quantidade de habilidades fragmenta-
das, incapazes de discuti-las, modificá-las, adaptá-las, além de terem dificuldade em apren-
der outras.
Essas são características desejáveis para o conhecimento atual: ágil, funcional,
participativo. Ele deve também ser liberador – no sentido de remover barreiras que impeçam
a plena criatividade de uma pessoa, sua compreensão do que faz e autonomia de pensamento
frente a situações-problema.
Distinguir o que é prioritário para a vida é algo que o professor atual deve saber. A
capacidade básica e mais geral a ser desenvolvida no aluno seria a de pensar, de saber desen-
volver uma atividade matemática nova, de buscar com autonomia a solução de problemas.
São comuns, no mundo atual, situações-problema para as quais existe um leque de solu-
ções possíveis, e que exigem, entre outros, conhecimentos matemáticos e tomadas de deci-
são. Elas requerem do aluno, mais que tudo, saber situar-se, perceber dados e conceitos de
que vai precisar, saber procurá-los ou criá-los e saber raciocinar e relacioná-los de modo a
obter uma resposta que, sem ser fechada, única e definida, seja uma solução plausível, dentro
do contexto.
Nessa análise do que é prioritário, o professor não pode ceder à tentação de querer
incluir tudo “o que o aluno poderá precisar”. Há inúmeros conhecimentos que serão apenas
informações necessárias em determinadas situações e que bastará ao aluno buscá-las, sem
necessidade de um trabalho maior do professor como mediador da construção desse conheci-
mento, por não se constituírem em estruturas cognitivas básicas e indispensáveis como a
leitura, escrita, a alfabetização matemática – que compreende, basicamente, reconhecer e
saber lidar com números, com grandezas, formas e informações quantitativas.
O principal objetivo do ensino de Matemática e a grande competência que ele visa desen-
volver são, como dissemos, a capacidade de pensar e resolver situações-problema com auto-
nomia. Isso deve ser feito pelo desenvolvimento, na escola, de atividade matemática significa-
tiva, que implique construção de estratégias e procedimentos, mobilização e busca de conhe-
cimento.
Resolver essas situações relaciona-se a uma série de competências matemáticas que
serão desenvolvidas não antes, mas durante o processo de construção de solução, caracteri-
zando o que se chama aquisição de conhecimento em ação. Desse modo, a resolução de pro-
blemas constitui-se em objetivo e em método do ensino de Matemática. Como competências
básicas e relevantes, os estudos atuais apontam para:
compreender as idéias, relações, representações dos números naturais;
compreender as idéias, relações e representações (decimal e fracionária) do número
racional positivo;
compreender e construir as operações entre números naturais e entre os números
racionais positivos, nas formas decimal e fracionária;
Conceito não é algo ensinado, mas construído pelo próprio sujeito nas relações
que estabelece com o mundo em que vive. O número é uma construção interna.
Neste programa, procuramos apresentar algumas reflexões para o professor so-
bre a numerização. Alguns princípios são necessários para a aprendizagem de
número. É importante também considerar a postura do professor diante da criança
em processo de aprendizagem. Apresentamos algumas situações de pesquisa com
crianças sobre a alfabetização numérica. A construção da idéia de número é bási-
ca para a compreensão de conceitos matemáticos, assim como aprender Matemá-
tica é ferramenta importante para a construção da cidadania.
Apesar do uso mais freqüente dos números decimais em nossa cultura, as frações
não são totalmente descartáveis. O programa procura repensar o que de frações
ainda é importante ensinar, e como isso pode ser feito de modo a ter significado e
interesse para a criança. Nesse sentido, verifica-se que, em certas situações, os
particionamentos fracionários em partes diferentes de dez são mais significativos,
além de serem usados nos conceitos de chances, proporções, escalas. O que está
em jogo, entretanto, é a compreensão do sentido do número fracionário, e não
seus inúmeros cálculos, comumente priorizados no sistema escolar. O ensino de
frações tem apresentado inúmeras dificuldades e o rendimento dos alunos em pro-
vas nacionais tem sido bastante baixo. Uma introdução mais natural e con-
textualizada a esse tema é proposta, fazendo uso de situações-problema e levando
em conta constatações como:
o fato de os símbolos serem obstáculos à compreensão inicial do significado
desses números;
o fato de que trabalhar com famílias de frações inter-relacionadas – como meio/
quarto/oitavo; terço/sexto/nono; quinto/décimo/vinte avos – permite que a
Bibliografia
BERTONI, N.E. Matemática: Considerações sobre conteúdos, métodos e avaliação. Série
Estudos – Pesquisas – Inovações. Secretaria de Educação do Ceará/Diretoria de Pes-
quisa e Avaliação/Diretoria de Inovações Pedagógicas/Coordenadoria de Avaliação e Ino-
vação Educacional, 1996.
NILZA EIGENHEER
BERTONI 1 Vamos pensar na aprendizagem de um aluno antes e
FERREIRA* durante as séries iniciais, desde seus primeiros anos de
vida, sua passagem na escola maternal e na pré-escola,
seguindo-se as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Nosso intuito é detectar momentos em que essa
aprendizagem afasta-se de um ensino para a vida e
acompanhar as reações do aluno.
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Frente a uma conta como essa, é sabido o que as crianças fazem: aplicam o simples e
conhecido método de operar nas colunas: 8 – 2 = 6 e 4 –1 = 3
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Mas, antes que possam fazer o que lhes parece óbvio, ouvem uma pergunta que é univer-
sal: “Podemos tirar 8 de 2? ” As crianças, em coro, dizem: – NÃO!
E também, antes que elas digam que pensam que se deve tirar 2 de 8, o professor diz: “Preci-
samos emprestar do 4 ”. Para o professor, o fato de o 8 ser maior seria um obstáculo para a
criança, portanto, a situação seria nova, estimulante. Para a criança, a situação não tem nada de
diferente: ela tem 4 algarismos, 2 em cada coluna, e para fazer a subtração deve operar por coluna,
tirando um do outro. Ela nem chega a imaginar que a ordem possa ter alguma importância.
Dá o que pensar saber que as crianças não externam suas dúvidas e estranhezas. Se o
professor diz: Entenderam?– todas ficam quietas. Mesmo alguma tímida pergunta do tipo:
Mas por que não fazer 8 – 2? teria uma resposta em tom de obviedade pelo professor: Mas
é 2 – 8.
As faces das crianças externam estranheza. De algum modo, começam a perceber que
as coisas nem sempre serão inteligíveis, que em Matemática as regras mudam, que nem tudo
é fácil e agradável.
Fatos como esses continuam a ocorrer usualmente em nossas salas.
São as armadilhas e obstáculos de que falamos no início, que aparecem no ensino de
Matemática. Os processos desse ensino, repetidos durante décadas, não são tão naturais
quanto a escola ou o professor podem pensar. Apesar de certa contextualização na situação,
a mediação do professor é feita sem dar espaço ao raciocínio do aluno, havendo valorização
implícita do modo de fazer da escola, o que desanimará as crianças de pensarem, acostuman-
do-se a ficar esperando pela solução “certa”.
Seria importante ter permitido que pensassem. Mesmo mentalmente, aparecem solu-
ções. A criança pode pensar em tirar 8 em duas etapas: tirando 2 e depois tirando 6. Ela diz:
42, tiro 2 fica 40, tiro mais 6... ficam 34, tiro 10, ficam 24. Ao proceder assim, ela percebe “o
que está tirando do que”, e a razão disso.
Aos poucos, a repetição e a complexidade de impasses gerados em situações como a que
foi apresentada – talvez divisões mais longas, ou frações – levam as crianças a desistirem de
querer entender alguma coisa. E a gostarem cada vez menos de Matemática. Embora já te-
nham aprendido antes por regras, até certo ponto sentiam que estavam acompanhando e que
poderiam fazer aquilo nos testes, e que aquilo lhes servia para algo – juntar, tirar, etc. Mas as
coisas acabam ficando muito sem sentido. Um ponto crítico é quando deixam de ver qualquer
significado e passam apenas a aprender as regras que o professor lhes ensina.
Esses processos não permitem que a criança vivencie, na escola, desafios significativos.
Surge o desinteresse e o fracasso.
As habilidades para a vida dependem muito do bom senso do professor e da escola. Em
geral, há uma incerteza do professor em mudar o modo como sempre fez. Continua desenvol-
vendo um conhecimento descritivo, expositivo, sem permitir compreender a sua funcionalida-
de. Desse modo, deixa de produzir uma aprendizagem significativa para a vida.
Se isso começa a ocorrer já nas subtrações, será pior nas multiplicações ou divisões
longas e nas operações com frações. Realmente, é constrangedor o ensino de soma e da
subtração de frações, pelo método do mínimo múltiplo comum (mmc). Professores e alunos
não sabem realmente do que estão falando. O professor tenta, heroicamente, ir até o fim:
transformação de frações mistas em impróprias, determinação do mmc e redução das frações
a esse denominador comum, soma dos numeradores, extração dos inteiros ao final. Os alunos
se dispersam e aqueles poucos que o ouvem têm o nítido mistério das coisas ininteligíveis
estampado no rosto.
Embora esses obstáculos ocorram primordialmente nas competências numéricas, é pre-
ciso lembrar, também, as incongruências que ocorrem, por exemplo, com relação às compe-
tências de medidas.
Em termos teóricos, do ponto de vista de formação de estruturas matemáticas mentais,
o estudo detalhado de várias grandezas e das unidades para medi-las não é relevante. Basta-
ria, para a formação dessas estruturas, que o aluno entendesse o sentido de medir uma
grandeza, com uma unidade arbitrária ou com suas subunidades. Entretanto, do ponto de vista
de habilidades para a vida, é muito importante que o aluno conheça grandezas que aparecem
usualmente no mundo real, bem como as unidades e subunidades reais, convencionadas para
medi-las.
As contradições aparecem no modo como essa aprendizagem é desenvolvida. Embora as
grandezas e unidades sejam relevantes para a vida, são exploradas como unidades matemá-
ticas abstratas, com relações também abstratas entre elas e as subunidades. Assim, o aluno
é levado a memorizar todas as unidades e subunidades dos vários sistemas de medida, e
também as regras de como fazer transformações entre elas.
Pouco ou nada é feito para que o aluno tenha uma familiaridade com a dimensão real das
unidades de medida, o que constituiria uma habilidade para a vida. Os alunos saem da escola
sem ter noção do tamanho de um metro, de um decímetro, de um quilômetro. Menos ainda do
metro quadrado. Não sabem avaliar quanto pesa um lápis, uma batata, um gato. Embora rea-
lizem muitas transformações, pouco significado há nelas. Por exemplo, um cidadão escolarizado,
ao comprar material para revestimento de superfícies, depende quase sempre da requisição
do profissional da área, cuja avaliação, comumente, implica desperdício.
Para discutir esses pontos e outros, essa série de programas irá abordar, além desse
programa inicial, que dá o eixo norteador de nossas preocupações, outros quatro programas
centrados em temas fundamentais das séries iniciais: a numerização, entendida mais como a
aprendizagem dos números naturais; a aprendizagem dos números decimais associados às
medidas, a aprendizagem das frações e a da geometria.
Em todos eles, procuraremos ultrapassar a idéia de que o conhecimento matemático
consiste em uma série de procedimentos rígidos, dos quais não se pode fugir e sobre os quais
não há variação possível.
Ocasionalmente, estaremos comentando sobre o uso de materiais concretos. Muitos deles
são altamente simbólicos e decifrá-los constitui uma dificuldade adicional para o aluno. Subs-
tituir essa concretização simbólica pela observação do que ocorre no contexto pode ser, mui-
tas vezes, vantajoso.
A questão da distribuição do tempo, ao longo dos bimestres, também influi muito para
uma boa aprendizagem. Na 3ª série, por exemplo, é comum que tópicos iniciais, menos impor-
tantes – como conjuntos, números romanos, números ordinais – consumam os bimestres
iniciais, restando menos tempo para os assuntos mais densos, como frações e números deci-
mais, que acabam sendo desenvolvidos apressadamente.
Mas a questão central é a da resolução de problemas. Apesar de tudo que se fala sobre
esse tema, o que está ocorrendo a esse respeito? A verdadeira resolução de problemas con-
siste em olhar para uma situação nova, explorá-la, ir descobrindo alguns fatos iniciais, ir
deslindando possíveis modos de pensar a solução.
Se o professor resolve ensinar a resolver os problemas, está negando o fato primordial
de que, na vida real, o estímulo é a própria situação, sem professor presente. Muito do que as
crianças não aprendem é devido ao fato de estamos tentando ensinar e não desafiando.
Um exemplo de problema desafiador para os alunos é: 26 crianças vão passear de carro
e cabem 4 crianças em cada carro, fora o motorista. Quantos carros são necessários? (Em
testes, muitas crianças respondem 6,5 ou até 65). Embora um sétimo carro pudesse levar até
28 crianças, para levar 26 ele continua sendo necessário, porque se fossem 6 carros seria
possível levar apenas 24 crianças.
Outro exemplo: um coelho come 2 pacotes de alimento por semana. Há 52 semanas no
ano. Quanto comem 5 coelhos em uma semana? Aqui, a informação do número de semanas
anual é dispensável. Não se trata de querer complicar para as crianças, ou introduzir uma
pegadinha – mas faz parte do fato de que as informações que recebemos não surgem todas já
selecionadas, e são exatamente as informações de que precisamos. Mas muitos alunos erram
pela insistência em usarem a quantidade de 52 semanas. Isso indica vícios adquiridos na
escola, incluindo a falta de vontade para entender e a falta de interesse para dar respostas
plausíveis.
Um exemplo de erro cometido usualmente pelas crianças, quando submetidas a proces-
sos mecânicos de ensino: se quiserem cercar uma horta retangular, com lado maior igual a 10 m
e lado menor igual a 6 m, é comum aparecerem as respostas 16 m ou 60 m. Os métodos
escolares levam-nas a pensarem que, em um problema escolar, deve-se imaginar que opera-
ção usar com os números dados. Os que pensam em adição dão o resultado 16, os que pen-
sam em multiplicação dão o resultado 60.
Vemos como o ensino começa a apresentar dificuldades já nas séries iniciais. Cada pro-
fessor tenta “reensinar” o que o anterior não conseguiu, e isso continua. O fato principal é que,
com o acúmulo de regras, as crianças passam a misturá-las. Ocorre grande perda de tempo e
vem a pressão sobre o professor para que dê todo o programa. Mais exercícios são dados em
sala e para casa, e as crianças tendem a pensar só nas regras que estão em jogo. Isso pode
lhes dar um ganho imediato aparente, mas também causa esquecimentos, à medida que as
regras vão sendo acumuladas. Ante tal fracasso, o professor é mais pressionado, resultando
em um círculo vicioso.
A pressão sobre os professores passa para os alunos. O clima em sala de aula torna-se
mais rígido. Faça aquilo que eu ensinei. Não use os dedos. Não fique imaginando. Escreva
apenas a resposta pedida. Não fale com o colega. Preste atenção no professor. Em resumo:
não tente pensar sozinho.
Tudo isso nos leva a pensar que a escola tem repetido processos tradicionais, sem refle-
tir mais profundamente, sem assumir uma responsabilidade real pelo desenvolvimento das
crianças e dos jovens.
Um balanço das quatro séries iniciais mostra que a experiência escolar tem sido extremamen-
te ineficaz. Para todos esses males, há, como vimos, um tipo natural de cura que requer um compro-
misso com os significados dos conhecimentos que são veiculados, empenho em que as crianças
cresçam com a alegria de conhecer, saber fazer e ter responsabilidade. Isso requer mudanças de
vivência e visão da Matemática pelo professor, e também mudanças de atitudes, mas é possível
fazer estas mudanças em sala de aula, visando principalmente substituir a formação de um aluno
que pensa pouco matematicamente por alguém capaz de realizar atividade matemática.
Formar competências para a vida significa estar atento e em harmonia com o belo
crescimento natural das crianças.
Referências Bibliográficas
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática II:
II Numerização. Módulo III, vol. 2. Brasília,
UnB, 2002.
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escravo da manipulação concreta sobre os dedos. Com isso, expurgam-se da escola importan-
tes mediadores da construção do conhecimento matemático da criança.
Isto é verdade não somente para o mundo dos adultos, mas também da realidade infantil
do mundo atual. O crescente convite ao consumo, o desejo de participação do mundo que
inicialmente é destinado aos adultos, a posse de pequenos valores em moeda, a autonomia na
realização de pequenas aquisições (de guloseimas, de pequenos jogos e brinquedos ou de
matérias-primas para confeccioná-los), a necessidade de administrar suas pequenas econo-
mias pessoais são fatores presentes na vida de nossas crianças, que produzem a necessidade
de abstração dos conceitos ligados a valores, de realização de operações aritméticas, sobre-
tudo através do cálculo mental, da realização de estimativas, etc. Para que o professor seja
um mediador da aprendizagem matemática, deve conhecer as lógicas inerentes nestes espa-
ços de matematização.
ças não apresentam em contextos escolares. O processo de incorporação dos conceitos cien-
tíficos é influenciado pelas representações pessoais que o aluno possui da Matemática, assim
como esta incorporação é influenciada pelos conceitos cotidianos e pelos processos operató-
rios próprios e pessoais adquiridos no contexto de resolução de problemas da vida cultural.
Infelizmente, muitos professores não consideram essas questões em seus projetos pe-
dagógicos, em função, dentre outros fatores, de sua formação inicial e de sua formação
continuada, que não permitiram, até então, considerar tais aspectos. Quando o professor não
percebe o conhecimento já produzido pela criança no contexto sociocultural, ele não pode
conceber um projeto que considere a real capacidade de a criança matematizar.
Ao nosso ver, no caso da criança, o espaço mais importante de construção do conheci-
mento matemático, no contexto não-escolar, ainda é o brincar. Nós consideramos aqui o brin-
car como um elemento cultural que caracteriza universalmente a vida infantil. Nós devemos
considerar que há quase que uma identidade entre o brincar e a infância. Mesmo a criança
trabalhadora brinca, a criança que trabalha brinca para manter viva sua infância.
Nós formulamos a tese de que, nas brincadeiras, as crianças são levadas a tratar de
valores, de medidas, de números, de operações, do espaço e do tempo, da probabilidade e das
possibilidades, das estratégias e táticas. Se existe uma atividade matemática no brincar –
atividade que não dispensa as aprendizagens escolares – analisando-a na vida cotidiana da
criança, vemos nas brincadeiras uma trama dos conhecimentos espontâneos e científicos, que
é constituída a partir de elaborações e resoluções de situações-problema durante o brincar.
Não se trata aqui de simplesmente utilizar o brincar como instrumento metodológico de iden-
tificação desta trama matemática, mas sim de analisar o brincar como um dos espaços
socioculturais que favorecem o cenário onde se desenvolve a trama entre o conhecimento
cotidiano e o conhecimento escolar ligados à Matemática.
Acreditamos que, durante o brincar, a criança encontra ocasiões de refletir sobre seus
processos cognitivos, estabelecendo suas estratégias e táticas: o brincar se situa no nível da
“metacognição” ou do conhecimento “metacognitivo”. Pois, no brincar, ela pode confrontar (o
que numa situação de sala de aula nem sempre acontece), discutir e testar com os demais
participantes seus procedimentos e seus resultados. No brincar o problema matemático não é
encarcerado em aplicações restritas de fórmulas impostas pela escola. Ao contrário, no jogo,
a criança pode criar suas próprias situações-problema, ela impõe situações aos demais parti-
cipantes, ela discute seus problemas e processos validando-os no grupo, desenvolvendo uma
atividade matemática que reflete a natureza da ação do espírito que está brincando.
Entretanto, as relações teóricas entre o brincar e a Matemática podem ser realizadas de
diferentes maneiras, mostrando as diferentes possibilidades de conceber as ligações entre a
atividade lúdica e a construção do conhecimento matemático.
Referências Bibliográficas
MUNIZ, C. A. Jeu de societé et activité mathématique chez l´enfant. Tese de doutorado em
Ciências da Educação pela Université Paris Nord, 1999.
SUELI BRITTO 1
FERREIRA*
Qual o dia do seu aniversário? Em que dia você nasceu?
Quantos anos você tem? Quanto você me deve? Quantos
quilos de carne devo comprar para o churrasco?
Quantos litros de água devemos levar para a
caminhada? Que horas são? Qual a sua altura? Em que
lugar ele está na fila? Quantos convidados para a festa?
Estas e muitas outras questões estão presentes em
nosso contexto sociocultural, fazendo parte das relações
entre as pessoas. Para responder a todas essas
perguntas, necessitamos recorrer aos números, seja
para representar a idéia de uma quantidade discreta
(contagem de elementos) ou contínua (medida).
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PGM 2
com pedrinhas ou riscos, a quantidade de mil quatrocentos e vinte e seis ovelhas. Para nós
basta escrever 1.426!
Vários sistemas de representação escrita dos números surgiram na história da humani-
dade: o sistema de numeração egípcio, o da Mesopotâmia, o romano, o maia, o arábico entre
outros. Temos sistemas de numeração em diferentes bases: 2, 5, 10...
A idéia de número foi sendo construída desde os primórdios da humanidade e passou
por muitas mudanças até os dias de hoje.
Com seu sistema de nove sinais (o zero surge depois), o povo hindu contribuiu de forma
significativa para o sistema de numeração decimal que usamos hoje. O sistema indo-arábico
utilizado em quase todo o mundo apresenta alguns princípios básicos:
Possuir base decimal, ou seja, a cada dez, formo um novo grupo da ordem posterior.
Fazer uso de dez símbolos, que são os algarismos: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, para
representar qualquer número desejado.
Ser um sistema de valor posicional, ou seja, o algarismo 2 pode valer 2, 20, 200...
dependendo da ordem em que se encontre no número representado.
Quando conhecemos um pouco da história da invenção dos números, podemos perceber
que o homem levou muitos milênios nesta construção. Com isto, pensamos que trabalhar a
idéia de número com crianças em processo escolar traz à tona um pouco deste vasto conheci-
mento elaborado ao longo da história da humanidade. Se, enquanto ensinantes, nos colocar-
mos como observadores das estratégias apresentadas pelas crianças, veremos que algumas
delas estão em comunhão com as estratégias utilizadas pelo homem ao longo da invenção dos
números. A contagem utilizando os dedos é uma das heranças de que até hoje fazemos uso.
A alfabetização matemática
Considerando que as crianças desde muito cedo têm contato com números, mas que
este contato não garante a aprendizagem significativa desta idéia, vamos enumerar alguns
itens importantes para serem pensados na alfabetização numérica:
Conhecimento prévio: toda criança adentra o espaço escolar com alguma idéia sobre
número. Compete ao professor procurar saber o conhecimento que a criança traz, a
partir de diferentes situações promovidas em sala, seja com jogos, brincadeiras,
desafios, etc.
Recitação numérica: saber recitar números isoladamente não garante a aprendiza-
gem da idéia de número; no entanto, a recitação seqüenciada é uma das atividades
necessárias, associada a outras, para a aprendizagem do número.
Contagem: é a transformação de uma quantidade não perceptiva, em grupos perceptivos,
no intuito de quantificar. A contagem mais elementar é a de 1 em 1. Saber recitar a ordem
Ao ser indagado sobre sua resposta, ele refez a contagem da mesma maneira. A
seguir, a proposta foi de que usasse palitos. Com os palitos, ele encontrou 10 como
resultado.
Foi pedido que ele refizesse a contagem usando as mãos, e ele fez da mesma ma-
neira. Nesse ponto, a pesquisadora (autora deste texto) fez uma intervenção, segu-
rando o dedo que fazia parte do 6 e pediu que ele colocasse mais 4. Então, ele
coloca os 4 dedos e chega no 10. Ele conhece
Guilherme: “Treze.”
Pesquisadora: “Treze? Então conta que eu quero ver os 13.”
(Guilherme contou novamente até 4, com mais ênfase no 4).
Os diferentes procedimentos realizados por Guilherme demonstraram claramente,
um conflito conceitual, no qual ora ele demonstrava o 13, ora não conseguia provar
que aquele registro referia-se ao 13 e fazia uma contagem de peças em que dezena
e unidade representavam o mesmo valor.
Bibliografia:
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática II:
II Numerização. Módulo III, vol. 2. UnB,
2002.
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???? Um pouco de história
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suas medições, nem sempre o resultado era um número natural de tamanhos da corda. Assim,
resolveram marcá-la com nós. A medida podia ser expressa em certo número de cordas mais
algumas subdivisões entre os nós. Mesmo assim, o resultado podia não envolver um número
natural de intervalos entre os nós, gerando a necessidade de novas subdivisões. No decorrer
da história, o conjunto dos números racionais ganha significado no cotidiano humano, por
abranger nele os números naturais, as frações e os números decimais.
Dessa maneira, grupos culturais diferentes criaram maneiras diferenciadas de proceder,
em seus esquemas lógicos, o manejo de quantidades e, conseqüentemente, o de números e
medidas, que atendessem às necessidades cotidianas desses grupos. Por isso, até hoje mui-
tos grupos culturais têm suas formas de matematizar (D’Ambrósio, 1998, p.17) Entretanto,
sabemos que existem os invariantes entre culturas distintas – pois há inúmeros pontos em
que essas culturas se reúnem em torno de procedimentos matemáticos semelhantes.
Para respeitar os procedimentos lógicos de determinado contexto social e, ao mesmo
tempo, trabalhar esses invariantes mais universais, a escola deve promover atividades que
envolvam situações-problema do cotidiano dos estudantes, isto é, do grupo social no qual
estão inseridos e, a partir deles, criar também situações novas nas quais eles poderão mobi-
lizar os conhecimentos que já têm e ampliá-los, construindo, assim, novas aprendizagens.
Algumas reflexões
Nas séries iniciais, a aprendizagem e o ensino dos números decimais e das medidas é, na
maioria das vezes, relegado a poucas aulas no final do ano, o que sugere uma acomodação, na ação
do professor, causada pela proposta curricular oficial dos sistemas de ensino brasileiros, proposta
engessada em uma apresentação linear e rígida da seqüência dos conteúdos. Os números decimais,
o sistema monetário e o sistema de medidas não são compreendidos como um estudo dinâmico e
interessante nem, como podemos dizer, parte de um único campo conceitual: dos Números Racio-
nais. Ao invés dessa visão rica e integrada, sua aprendizagem é desenvolvida limitada ao estudo da
mudança de vírgula de um lado para o outro, sem compreensão, sem manuseio, sem construção e
uso de materiais que são utilizados socialmente como embalagens, ferramentas de medição, etc.
Quanto a isso Muniz, Batista e Barbosa afirmam que:
Em nossa cultura temos por hábito usar decimais bem mais que as frações: no dinhei-
ro, nas medidas de comprimento, de massa, capacidade, superfície, volume. Mais que isso,
o nosso sistema de medidas é decimal, nosso sistema legal tem por base o DEZ. Basta que
olhemos à nossa volta para constatar a grande quantidade de números com vírgula que
aparece [...] o manejo de quantidades e, conseqüentemente de números e medidas, obedece
a direções muito diferentes, ligadas ao modelo cultural (2002, p. 24).
Historicamente, podemos perceber que há, no Brasil, uma ênfase muito grande no ensi-
no de frações, enquanto que o ensino de decimais e medidas quase sempre fica relegado a um
segundo plano. A organização dos conteúdos, na maioria dos currículos, não nos possibilita
pensar em uma outra lógica senão esta. Somos quase que incapazes de dar um único trata-
mento a frações e decimais sem priorizar um em detrimento do outro.
O mesmo não ocorre em nosso país. Em nossa cultura, temos por hábito usar os núme-
ros com vírgulas bem mais que as frações. Nas vivências monetárias, nas medidas de compri-
mento, massa, capacidade, superfície, volume, entre outros, vemos maciçamente a presença
de números decimais. Basta que olhemos à nossa volta para constatar a grande quantidade
de números com vírgula que aparecem nos jornais, revistas, anúncios, nos encartes, rótulos,
embalagens.
O fato de termos um currículo baseado em culturas diferentes da nossa faz com que o
nosso ensino seja carente de significado, principalmente quando tratamos dos números racio-
nais. Muitas vezes nossa ação pedagógica ou nossas opções metodológicas tornam-se verdadei-
ros obstáculos à aprendizagem. Nas séries iniciais e até na 5ª série, sempre começamos o ano
letivo trabalhando com o sistema de numeração decimal usado na representação dos números
naturais, valorizando a organização numérica por ordens e classes e enfatizando principalmente
os agrupamentos de dez em dez. Trabalhamos com as quatro operações na base 10 durante
metade do ano letivo, e aí, sem quê nem porquê, rompemos com toda esta estrutura mental
construída no campo numérico decimal e partimos para o estudo em outras bases. O trabalho
desenvolvido com frações, sobretudo quando operamos com números fracionários, em termos
cognitivos e matemáticos, mobiliza estruturas com mais de uma base numérica.
Podemos perceber facilmente que o trabalho com um sistema multibase traz algumas
dificuldades para o aluno. Tal fato pode ser explicado se compreendermos que quando traba-
lhamos com meios, estamos na base 2, com terços, estamos na base 3, com quartos, estamos
na base 4, e assim por diante. Assim, operar com duas frações pode significar tratar com duas
quantidades numéricas que se encontram em bases diferentes, portanto a operação com tais
números implica uma mediação via redução a uma base comum entre as duas quantidades
numéricas. Este é um obstáculo epistemológico suficientemente significativo para justificar,
no mínimo, a busca de outros caminhos metodológicos.
O ser humano constrói a sua noção de medidas muito antes de chegar à escola, o que
nem sempre é considerado pelo professor. Temos que buscar essas noções dos alunos em
seu contexto social e daí fazer o ponto de partida para a ampliação do conhecimento sobre
esse assunto, e não desenvolvê-lo a partir de conceitos científicos já fechados. Assim, o traba-
lho com medidas deve partir da dimensão da cultura para chegar à ciência e não o inverso,
como acontecem nos nossos currículos, muitas vezes sob influência da Matemática moderna.
De acordo com Nunes (1997), as atividades de medidas são importantes para expandir a
compreensão do número pelas crianças. O estudo de medidas deve ser decorrente da percep-
ção espaço/temporal do aluno a partir das medidas arbitrárias inerentes ao seu contexto
social. A construção dos instrumentos de medidas deve se basear em situações de simulação
de medidas, do ato de medir, levando o aluno e seu grupo a escolher as unidades de medida
que julgarem apropriadas. Esse deve ser o pressuposto inicial para esse estudo.
Na perspectiva da educação matemática, o estudo das medidas deve perpassar todo o
espaço curricular, isto é, as medidas devem ser trabalhadas durante todo o ano letivo. Lem-
bramos que a proposta de “currículo em espiral” citada nos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais para o ensino da Matemática defende que: “o mesmo conteúdo deve ser apresentado em
diferentes níveis de abordagem, nos diferentes níveis de ensino, de modo que as idéias bási-
cas sejam dominadas aos poucos, em um aprofundamento constante de sua compreensão e
aplicação ”. Desta forma, o professor, em cada série, não deve ter a pretensão de esgotar o
trabalho com medidas, mas mediar a construção dos conhecimentos do aluno de tal forma que
o leve a estabelecer relações com conhecimentos anteriores, criando condições de constru-
ções futuras.
Visto que o conhecimento é construído pelo sujeito em sua relação com outros sujeitos e
com o mundo, a sala de aula deve ser um espaço privilegiado, mas não único, de construção do
saber. Neste lócus de construção do conhecimento, é natural e esperado que exista uma
relação de respeito e afetividade, para que seja fértil o desenvolvimento de aprendizagens
múltiplas. Nesse processo, os sujeitos estão em permanente conhecimento e reconhecimento
de si mesmos e da realidade. Por isso, acreditamos ser fundamental que todos se reconheçam
como sujeitos históricos que, em desenvolvimento, compreendem a realidade de forma dife-
renciada e em tempos diferentes. Mas, considerando a função social da educação, os profes-
sores possuem uma tarefa especial, a de mediar essa construção.
Dessa forma, a sala de aula deve ser espaço de interação, de troca, de produção, de
reelaboração, de discussão, ou com uma só palavra, de mediação. Segundo Jussara Hoffmann:
A mediação é espaço de encontro, espaço a ser ocupado pelo diálogo, pela reciproci-
dade de pensamento e sentimentos entre o educador e o educando, entre educadores,
entre educandos, pessoas em processo de humanização – um espaço a ser construído. [...]
A mediação se dá quando o professor pensa sobre como o aluno está pensando ou se sen-
tindo sobre algo, quando o aluno pensa sobre como o professor e outros pensam e se sen-
tem sobre esse mesmo algo, e quando, nesse momento, seus olhares cruzam-se e inter-
pretam-se, percebendo-se enquanto sujeitos concretos, com seus jeitos particulares de
ser, de conhecer, de existir (1998, p. 9).
A atividade docente é, por excelência, atividade de mediação. Mas será que somos, de
fato, mediadores da aprendizagem? Ou ainda estamos “dando aulas”? Será que nos coloca-
mos como produtores de conhecimento e consideramos que o aluno, também, produz conheci-
mento ou ainda somos apenas transmissores do saber socialmente construído? A construção
do conhecimento na perspectiva dialética da educação, segundo Celso Vasconcellos, tem sen-
tido quando possibilita compreender, usufruir e transformar a realidade (1999, p. 34).
A despeito de toda essa importância da sala de aula, precisamos pensar para além dos
seus limites. Precisamos considerar que os sujeitos do conhecimento possuem uma história,
que o próprio conhecimento transforma-se devido ao contexto em que se situa no tempo.
Pensar sobre estas questões é, sobretudo, desnaturalizar o nosso olhar sobre a realidade.
Com isso, queremos dizer desacostumar o olhar de aceitar como natural a realidade que tem
sempre visto, de procurar enxergá-la melhor, além da aparência, buscando respostas a inda-
gações como: de onde vem e quem é o aluno? Como tem sido a sua trajetória de vida? Em que
meio ele vive? Quais são os hábitos e costumes do seu meio? E você? Qual a sua história?
Qual a sua concepção de aprendizagem? Qual é o tipo de construção social da qual você está
efetivamente participando? Que conteúdos trabalha? Como estes conteúdos foram construídos?
Por que e por quem foram construídos?
Quando somos capazes de exercer essa visão desnaturalizada da realidade, colocamos em
xeque a nossa própria concepção de currículo. Estamos tomando para nós a responsabilidade de
reafirmar que o currículo é muito mais que uma lista de conteúdos. O currículo é caminho, trajetória
e, portanto, é algo que está em permanente movimento e construção. Os conteúdos trabalhados
pela escola são apenas uma parte dessa construção mas não têm fim em si mesmos. É esta pers-
pectiva de currículo que nos permite acreditar que em educação estamos em permanente processo
dialético de interação entre passado, presente e futuro, de tal forma que possamos compreender e
viver o presente, buscar referências e analisar o passado, para antever o futuro.
Celso Vasconcellos em seu livro Construção do Conhecimento em Sala de Aula (1999,
p.14), nos coloca diante da seguinte indagação: Qual o critério para a organização/seleção
dos conteúdos? Este é um questionamento importante e requer de nós educadores uma pos-
tura crítica. Que resposta você daria a essa indagação? Você já parou para pensar sobre
isso? Você já parou para pensar que, muitas vezes, em nome de cumprir a lista de conteúdos
preferimos transmitir saberes do passado desconsiderando conteúdos do nosso presente?
Pensar sobre estas questões, de fato, não é tarefa simples, mas se realmente quisermos
ressignificar o nosso trabalho pedagógico, numa perspectiva dialética da educação, acredi-
tando que a escola tem como objetivo principal a formação plena do aluno enquanto sujeito
histórico, então não temos outra opção. No começo, pode até parecer trabalhoso, mas estamos
convencidos de que é absolutamente necessário para criarmos uma escola socialmente com-
prometida, mais inclusiva, em que se tenha a dimensão do prazer de aprender.
Toda essa reflexão nos leva a focar nosso olhar sobre o nosso trabalho pedagógico em
relação à Matemática na escola. Chevallard, Bosh e Gascon nos ajudam a refletir sobre isto
quando afirmam:
Referências Bibliográficas
CHEVALLARD, Yves, BOSCH, Mariana e GASCON, Josep. Estudar Matemáticas: o elo perdido
entre o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2001.
NUNES, Terezinha, BRYANT, Peter. Crianças fazendo matemática. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
VASCONCELLOS, Celso dos S. Construção do conhecimento em sala de aula . São Paulo: Libertad,
1999.
39
PGM 4
Uma professora tinha 10 alunos. Ela dividiu uma goiabada em 10 pedaços, para dar
um pedaço a cada aluno. Mas três alunos não quiseram. Dois deles eram irmãos e
deram seus pedaços para um primo, da mesma sala; o outro deu seu pedaço para um
colega de classe. No lanche, os colegas comeram os pedaços que ganharam.
Quantos alunos comeram goiabada?
Quantos alunos comeram mais do que um pedaço? Quantos pedaços eles comeram:?
Quantos alunos comeram só um pedaço?
Tia Lucy tinha 5 doces para dividir igualmente entre 4 sobrinhos. Como ela poderia
fazer essa divisão?
Quatro crianças compraram 3 barras de chocolate e querem dividi-las igualmente
entre elas. Como elas podem fazer isso?
Quantos meio litros cabem em um litro e meio?
Metade de meio litro é chamada de 1 quarto de litro. Quantos quartos de litro cabem
em um litro e meio?
Não é necessário ensinar nada. Só deixar as crianças pensarem, elaborarem hipóteses,
apresentarem respostas de um grupo a outro e repensarem, até se certificarem de uma solu-
ção a que possam chegar sozinhas.
Essas soluções próprias, desenhadas, registradas em língua escrita ou faladas, servirão
de ponto de partida para a introdução dos primeiros registros numéricos, que devem usar os
números naturais e os nomes das partes, tendo uma forma que os associa fortemente com os
registros correspondentes, feitos para os números naturais. Assim, eles se apresentam ver-
ticais para a soma e a subtração de frações, e em chave para a divisão. Ou seja, procura-se
introduzir algoritmos, na aparência e na essência, mais de acordo com as concepções da
criança. Exemplificando:
Pelo que sabemos, essa abordagem não está incorporada aos livros e propostas atuais.
Além disso, constata-se que, na maioria dos livros didáticos, não aparecem problemas
relacionados à multiplicação e à divisão de frações, ficando o desenvolvimento desses tópicos
sem significado para o aluno.
ª
relações, operar com eles e resolver problemas durante dois bimestres – um na 3 série e
ª
outro na 4 série. Esse dimensionamento inadequado traduz uma concepção de Ensino Funda-
mental que visa à formação do aluno-calculadora – não importa o que ele entenda ou não, o
importante é que consiga realizar qualquer operação com os números naturais, fracionários,
decimais. Não importa mesmo que ele saiba como usar essas operações, ou como combiná-
las, na resolução de problemas.
Essa concepção não se coaduna com uma educação que visa à formação do cidadão
autônomo e crítico, e à sua inserção ativa na sociedade. Autonomia e poder de crítica não
serão atingidos por esquemas de dependência ao professor, desvinculados de um pensar
consciente. Por sua vez, a atuação ativa num mercado de trabalho que requer capacidade de
resolver problemas, avaliar situações, propor soluções e ter versatilidade para novas fun-
ções, não pode ser alcançada apenas pelo exercício de um fazer mecânico, sem pensamento
próprio e sem questionamento. Felizmente os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam
para novos rumos – nas séries iniciais, a prioridade é dada à representação decimal dos
números; os conteúdos relativos aos números fracionários foram diminuídos, havendo tempo
suficiente para uma introdução bem fundamentada a eles.
De fato, na aprendizagem dos números naturais, são necessários vários anos para a
sedimentação da compreensão de alguns números iniciais desse conjunto. Embora essa apren-
dizagem se inicie por volta de 1 ano e meio, muitas crianças chegam aos 6 ou sete anos
sabendo apenas identificar, nomear e comparar quantidades até 6 ou 8 (não estamos nos
referindo à sua capacidade de recitar, oralmente, a seqüência numérica até números bem
maiores, ou mesmo de saber ler símbolos como 100 ou 1.000). Se isso ocorre com os números
naturais, que povoam nosso universo sociocultural e com os quais a criança entra em contacto
diariamente, por que deveria ser diferente com os números fracionários, pouco presentes no
cotidiano, e com os quais a criança pouco ou nenhum contacto teve?
As propostas escolares não têm levado em conta esse fato. Basta olhar os livros escola-
res para se ver que, após a introdução da metade (quase sempre de um número), feita em
alguma série anterior, nenhuma menção é feita a qualquer outra fração, até o início do estudo
desses números, geralmente na terceira série. Pode-se notar então,no início desses livros,
uma boa quantidade de informações: vários desses novos números são apresentados, acom-
panhados da simbologia correspondente; é comum ainda serem introduzidas terminologias
como fração, numerador e denominador, fração própria, imprópria, mista, etc.
A escola propõe que, nesses estudos iniciais (aos quais costumam ser destinados em
poucos dias), os alunos aprendam:
os nomes um meio, um terço, um quarto, um quinto, um sexto, um sétimo, um oitavo,
um nono e um décimo – além dos também desconhecidos “avos”.
a se referir a mais do que uma dessas partes: dois meios, dois terços, três quartos,
quatro quintos, etc.
os símbolos para esses termos: 1/2, 1/3, 1/4, 1/5, 1/6, 1/7, 1/8, 1/9, 1/10. Ou 2/2,
2/3, 3/4, 4/5.
alguma terminologia relacionada: numerador, denominador, frações próprias, impró-
prias, mistas, aparentes, etc.
Mack, uma pesquisadora norte-americana citada por Nunes e Bryant (1997, p. 213), ve-
ª
rificou, entre alunos de 6 série, que a compreensão de situações que envolviam frações fora
da escola não se articulava com as representações simbólicas aprendidas na escola. Ela pro-
pôs um problema: “suponha que você tem duas pizzas do mesmo tamanho e você corta uma
delas em 6 pedaços de tamanho igual, e você corta a outra em 8 pedaços de tamanho igual. Se
você recebe um pedaço de cada pizza, de qual você ganha mais?” Depois, uma nova pergunta:
“que fração é maior, 1/6 ou 1/8?” Mack observou que problemas sobre situações cotidianas
não pareciam causar dificuldade; mas no segundo problema, com exceção de 1 aluno, todos
disseram que 1/8 era maior porque 8 é um número maior. Mack trabalhou com esses alunos
movendo-se de uma abordagem à outra – dos problemas apresentados simbolicamente a
situações de contextos familiares e vice-versa – e notou que os estudantes começaram a
relacionar símbolos e procedimentos escolares de frações ao seu conhecimento informal. Nunes
e Bryant (1997, p. 213), indagam-se se essa lacuna não poderia ser evitada por meio de uma
aprendizagem escolar que estabelecesse essas conexões, e aventam a hipótese da causa do
problema ser o uso escolar de procedimento de dupla contagem. para a aprendizagem de
frações – o qual consiste em, num todo dividido em partes iguais com algumas delas destaca-
das, contar o número total de partes (por exemplo, 8), contar o número de partes pintadas
(por exemplo, 5) e escrever 5/8 , sem entender o significado deste novo tipo de número.
Nunes e Bryant (1997), citam também, na página 193, as pesquisas de Campos et al.
(1995), evidenciando que esse modo de introduzir frações pode causar erro. Nas pesquisas
ª
de Campos, foram apresentadas três figuras, para que alunos de 5 série reconhecessem as
frações associadas a cada caso.
Os alunos deram respostas corretas para os dois primeiros retângulos. No terceiro
retângulo, 56% dos alunos escolheram 1/7 como a fração correspondente; 12% escolheram
2/8 e 4% indicaram tanto ¼ como 2/8.
Resumindo, diríamos que uma proposta para a aprendizagem das primeiras frações deve
estar atenta a:
Aproveitar toda oportunidade em que apareçam, no contexto do mundo real, divisões
de coisas ou objetos – um ou mais do que um – resultando em partes iguais.
Aproveitar toda oportunidade de objetos já divididos num certo número de partes
iguais, dando-se destaque à situação e ensinando o nome dessa parte. Por exemplo:
pudins são vendidos, em padarias, divididos em 12 partes iguais.
Fazer as crianças observarem que todas as partes obtidas valem o mesmo tanto.
Perceber que as partes podem aparecer numa ordem aleatória. Por exemplo: peda-
ços de metade, em seguida décimos, depois quartos, quintos, oitavos, conforme
apareçam em situações práticas.
quantos daqueles precisamos para voltar a ter a coisa toda (formação do todo).
Essa compreensão, de quantas frações iguais à certa fração dada são necessárias
para fazer o todo, será útil ao longo de toda aprendizagem com frações – ela permi-
te identificar de que fração se trata.
tirando uma delas, quantas sobram na coisa que foi dividida?
se já temos uma, quantas precisamos juntar para poder montar a coisa inteira?
(complemento)
Para finalizar, lembramos ao professor que, embora tenhamos sinalizado para uma re-
dução drástica da quantidade de cálculos formais com frações, pensamos que o tempo a ser
trabalhado com esse conceito não deve ser reduzido. Uma grande atenção deve ser dada à
formação do conceito de número fracionário e seu uso em problemas significativos.
Bibliografia:
BERTONI, N. E. Educação e linguagem matemática 4:
4 Frações e Números
Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Tarso Genro
Diretora do Departamento de
Política de Educação a Distância
Carmen Moreira de Castro Neves
Supervisora Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Norma Massa
Email: salto@tvebrasil.com.br
Home page: www.tvebrasil.com.br/salto
Av. Gomes Freire, 474, sala 105. Centro.
CEP: 20231-011 – Rio de Janeiro (RJ).
Dezembro de 2003
CONHECIMENTO MATEMÁTICO 48