You are on page 1of 22

O animal que promete: Deleuze e o problema da

memória segundo Nietzsche e Bergson

Dra Barbara Stiegler (Paris)

O conjunto do pensamento e da religiosidade ocidentais se


edificou sobre a oposição entre o homem e o animal. Tanto na Bíblia
como na história da metafísica, a parte animal do homem certamente
jamais foi denegada, mas antes constantemente lembrada; ela,
porém, se dobrou diante da diferença absoluta do homem, ou diante
de seu estatuto de exceção, o homem sendo o único encarregado de
entender a questão do ser, assim como de sua salvação.

Este estatuto de exceção é hoje, em todas as partes, inquietante.


Na hora da morte de Deus, que é também a da morte do Filho, na
hora do fim da metafísica, que é também a da desconfiança acerca
da « consciência », do « sujeito » e da « razão », assim como sobre o
« ser » ou sobre a « verdade », o pensamento ocidental se esforça em
investir com novos custos a questão da carne e, com ela, a da vida e
da animalidade constitutiva do homem. Tudo deve ser desde então
pensado.

Se o homem é inteiramente um animal, o que garante sua


diferença com outros viventes ? Se ele compartilha com os animais
o estatuto de « sujeito » sentindo, percebendo e pensando, tanto
quanto a preocupação de sua própria salvação, o que garante ainda
seu estatuto de exceção ? O retorno crítico ao problema da carne, da
afetividade e do corpo, o risco de uma bestialização do homem
assumido conjuntamente pela teoria da evolução (Darwin), a teoria
psicanalítica das pulsões (Freud) e a própria filosofia (Nietzsche)

1
não conduzem a perder de vista o que é próprio do homem e com ele
a questão de sua destinação? Herdando estas suspeitas, gostaria de
manter-me aqui sobre o fio estreito desta questão: se o homem é
inteiramente carne animal, o que garante sua diferença e onde se
decide sua destinação ?

Nietzsche, na Genealogia da moral, se esforçou em redefinir o


homem como o animal que promete e foi notadamente sobre este
texto que Deleuze fundamentou sua leitura de Nietzsche. Eu
começarei por mostrar que tal definição do animal humano significa
que seu estatuto de exceção não se joga mais na relação com a
« salvação », com a « verdade », como o « ser », mas em sua
extraordinária capacidade, até então nunca ainda experimentada
sobre a terra, de incorporar o fluxo daquilo que acontece. O próprio
do homem será desde então a hipertrofia de sua memória, fonte de
patologias inauditas tanto quanto de inéditas promessas – o altíssimo
grau de individuação experimentada pela espécie humana estando
inseparável dos riscos patológicos desta memória hipertrofiada. E é
aqui precisamente que gostaria de discutir a leitura deleuziana de
Nietzsche.

Se Deleuze, como Nietzsche, e na continuação de Bergson, se


esforçou igualmente em pensar toda diferença e o próprio
movimento da diferenciação, na relação com o passado (com
« passado em geral » de Bergson, ou com a « duração » que coexiste
com ela mesma), se tudo se joga, pois, para Deleuze como para
Nietzsche e Bergson, do lado da memória, tentarei mostrar que
Deleuze, pelo menos em seu livro sobre Nietzsche, mas talvez além
dele, marcou provavelmente uma das dimensões mais essenciais da
memória segundo Nietzsche : a dimensão necessariamente passiva,
inclusive patológica, da memória humana, a capacidade de sofrer do
passado se impondo como o avesso necessário da capacidade de
prometer um futuro.

2
Poderia acontecer, de fato, que a hostilidade contínua de
Deleuze à dialética hegeliana (tanto em seu livro sobre Bergson
como naquele sobre Nietzsche), sua hostilidade constante contra o
papel atribuído ao « negativo » pela dialética, o conduziu a criar o
impasse sobre negativo em geral, e com ele sobre a dimensão
necessariamente ambígua da memória – ao mesmo tempo positiva e
negativa, ativa e passiva, fonte de liberdade (ou de promessa) e de
patologia (ou de sofrimento).

Em síntese, é a oposição metafísica, de origem kantiana entre


atividade (livre) e passividade (patológica) que se encontra
finalmente endurecida por Deleuze, enquanto que Nietzsche se deu
com a análise da memória os meios de se libertar dela. Mas, para
melhor julgar o que afirmamos, convém partir, antes de tudo, da
definição canônica do homem reconduzida inclusive até Kant : o
homem como animal racional, quer dizer primeiramente, em grego,
como o animal que tem o logos.

Repensar a exceção humana no reino do que vive supõe com


efeito primeiramente partir de novo da definição canônica do
homem formulada por Aristóteles. Essa o inscreve de chofre na
animalidade (« o homem é o animal (que tem o logos), mas é para
logo dele o excluir : « o homem é o animal que tem o logos ». Tendo
o logos, isto é, primeiro a palavra, ele é aquele que escuta a
questão : « o que é ? » e, partindo, a questão do ser – quem ele
esquece ou de quem ele se lembra. Que ele diga « é verdade », « é
falso » « o céu é azul », ou « é belo », sempre e incessantemente
uma precompreensão do ser é exigida, o ser é sempre
subterraneamente de antemão escutado por aquele que tem a palavra
(como lembra Heidegger em Sein und Zeit, § 1).

Contudo, eis que desde sempre, parece colocá-lo à parte da


animalidade. Sendo o único animal que entende a cópula « é », e
com ela, o ser que religa a palavra a ela mesma, ele é o único animal

3
capaz de questionar (o único capaz de se perguntar : « o que é
isto... ? ». Essa compreensão parece fazê-lo sair para sempre da
animalidade. Enquanto que os animais emitem e recebem sinais, isto
é, significações atômicas encadeadas umas as outras segundo
modalidades programadas antecipadamente (pelos programas
genéticos ou programas congelados pela aprendizagem), o humano é
aquele que tem como missão religar sozinho e por si mesmo os
signos os quais herdou vindo ao mundo, o que faz dele o único ser
falante. Entendendo o acoplamento dos signos uns com os outros,
ele é também aquele que tem como tarefa dizer o que os distingue, o
que os separa ou o que os opõem : « isto não é correto », « o céu
não é mais azul », « eu não sou você » etc. O « ser » é algo mediante
o qual se entendem os recortes e os vínculos .
E é a razão pela qual Aristóteles interpreta, em De
interpretatione, (2, 16 a 27 seq.) como em De Anima (G 6, 430 a), o
logos como produção de símbolos (ou sumbolon: aquilo que articula
duas coisas juntas ou os acorda), de sínteses (ou sunthesis : o que
separa e distingue). Para todos estes textos, eu os remeto aos
comentários de Heidegger, Os conceitos fundamentais da
metafísica§ 72.
Só o homem afirma e nega (só o homem tem a palavra), pois,
só o homem entende de separar e religar o que a ele acontece. Para
dizer em termos de Nietzsche: o homem que afirma e nega se ocupa
de separar e de reunir, isto é, de organizar o fluxo caótico daquilo
que a acontece com ele. Pelo « fluxo », cabe aqui compreender o
que Nietzsche interpreta como o « rio » heracliano (« fluxo » e
« rio » se diz em alemão com o mesmo termo Fluß). No léxico de
Nietzsche, o fluxo designa aquilo que nos advém, o advir como tal
(em alemão : Das Geschehen), advir que é ao mesmo tempo
absolutamente fluente (desprovido de toda estabilidade), caótico e
contraditório (desprovido de ordem e de coerência) e, enfim
desmesurado ou supersaturado (desprovido de qualquer medida).

Nietzsche explica além do mais que o corpo, o organismo ou a


carne, por sua vez, está justamente encarregado de introduzir no

4
fluxo tudo aquilo que a ele falta, organizando-o : a saber –
estabilidade, ordem, coerência, medida e organização, e nisso
projetando no fluxo ficções necessárias à sua organização (duração,
identidade, estabilidade, delimitação etc). Tal é a virtude, o sentido,
fundamentalmente organizador de todo organismo.

Contudo, isto poderia ser também o sentido fundamental da


palavra (logos) implicada desde Aristóteles na definição canônica do
homem. Nós entendemos de religar e separar, ou de produzir
sínteses e separações, pois nós entendemos de organizar o fluxo.

Ora, nada nos autoriza a retirar esta atividade das formas de


vida pré-humanas. A totalidade dos viventes que nos precederam
não soube, e isto antes de nós, recortar e reatar no caos do fluxo?
Que uma conduta seja programada (pela filogênese da espécie) ou
livremente inventada (pela ontogênese do indivíduo), isto supõe em
todos os casos que a vida decidiu, coletiva ou solitariamente, mas
sempre de modo espontâneo (isto é, por si mesmo, sponte) no fluxo
daquilo que lhe acontece. É necessariamente de maneira espontânea
que o animal (ou a espécie animal) seleciona seu « meio » ou mundo
próprio (o Umwelt de J. Von Uexhüll) sobre o fundo de
possibilidades de seu meio ambiente (Umgenbung).

Ora nada nos autoriza a afirmar que os seres vivos não


humanos não entendam de recortar e reatar o fluxo daquilo que
advém a eles. É por que nós, os homens, não entendemos aquilo
mediante o qual reatam e recortam que eles mesmos não entendem
de recortar e reatar ?

De que modo nossa surdez às ligações pré-humanas poderia


fundar a de todos os outros viventes em relação a seus próprios
modos de ligação e recorte ? Deve-se antes inverter a análise e se
perguntar se esta atividade vital através da qual os seres vivos
reatam e separam o fluxo do que a eles acontece, não constitui o
fundo e a condição de possibilidade do verbo « ser » que no homem

5
permite os recortes e os laços sobre os quais ele tem a
responsabilidade. Longe de fazer sair o homem da animalidade, o
entendimento do ser seria então, e contrariamente, o que confirma
seu enraizamento na vida, na carne e a animalidade. Nietzsche não
queria dizer outra coisa ao aproximar, em detrimento à toda história
da metafísica, o juízo, o princípio lógico de identidade à assimilação
orgânica, ocupada, segundo ele, em afirmar, tanto na digestão como
na percepção, uma identidade do semelhante.

O homem, como o animal e enquanto animal, deve decidir no


fluxo e aprender a reatar aquilo que ele separou. A palavra é uma das
modalidades possíveis, e uma das mais tardias desta tarefa. Mas se a
palavra implica a precompreensão do ser, é preciso acrescentar que
« o ser » implica uma confrontação mais originária, pré-humana,
animal e carnal, com o fluxo daquilo que acontece. Será que nosso
corpo não sente assimilar ou eliminar ? Será que não se escuta
incorporar e recusar ? Será que o animal não sente perceber o
idêntico e distinguir o diferente ? Será que ele não se escuta
reconhecer e diferenciar ?
Afirmar e negar, acoplar e separar são atos que se
inaugurariam com as primeiras formas de vida. Eles não esperaram
o homem para serem vivenciados e sentidos e, nesta significação
precisa, entendidos. Este pré-entendimento, ou esta precompreensão,
nossa carne se lembra e testemunha enquanto estamos vivo. Embora
ela não fale a língua da consciência, ela se escuta a todo momento
dizer sim e dizer não ao que acontece.

É a atenção dada a essa escuta fundamental, situada no mais


profundo da carne, que leva Nietzsche a manter a linguagem
humana e sua cópula – « o ser » –, para as formas tardias e derivadas
de um logos animal – e até celular –, mais original que o da razão ou
da consciência. Assim, neste fragmento capital (FP 1887 5 [65]) :
« Tudo pensar, julgar, perceber, no que respeita a comparar
(vergleiche), tem como pressuposto um « fazer-idêntico »
(gleichmachen) e, mais cedo ainda, um « tornar-idêntico »

6
(gleichmachen). O tornar - idêntico é a mesma coisa que a
incorporação da matéria apropriada na ameba ».

O homem tendo o logos aparece aqui e pela primeira vez como


um animal entre outros, todos os animais tendo já elaborado, antes
do homem e talvez melhor que ele, o logos e sua lógica. A definição
canônica é da mesma maneira destruída, o animal humano
compartilhando o logos com todos os animais. Será que ao afirmar,
contudo, o estatuto pré-humano do logos, Nietzsche não se condena
do mesmo modo a bestializar o homem e, assim, a perder de vista ao
mesmo tempo seu estatuto e sua destinação ?

É em Zaratustra que Nietzsche dá a mais clara reposta a esta


questão. A diferença específica do humano, segundo Nietzsche, não
é de fato mais prioritariamente logos ou a ratio. Mas este
questionamento da definição canônica do homem não leva, todavia,
a dissolver sua diferença na animalidade dos brutos. O humano
segundo Nietzsche permanece um ente notável, um vivente a parte,
um animal fora do mundo. O que se atesta por três superlativos que
são também redefinições nietzschianas do homem : o homem é « o
animal mais corajoso » (AFZ, « Da visão e do enigma » § 1), o
animal « mais cruel » (AFZ « o convalescente » § 2) e o animal «
mais sofredor » (FP 1884 26[243]).
Retomando a estrutura da definição canônica, Nietzsche
reinscreve a cada vez o homem na animalidade para dizer sua
diferença, o que o permite conciliar o estatuto notável, famoso do
homem e sua continuidade com o vivente. O homem é « o animal o
mais corajoso ». O superlativo indica que o homem herdou essa
disposição dos animais. Do ponto de vista da incorporação
(Einverleibung), pode-se considerar com efeito que toda carne viva
é corajosa. In-corp-orar-, ein-ver-leiben, significa em alemão : fazer
entrar [algo diferente ou estrangeiro] -em-sua-própria-carne. Porque
toda carne viva (Leib) incorpora (einverleiben) possibilidades
estrangeiras ao interior dela mesma (pela nutrição, pela percepção e
pela memória), porque toda carne se expõe a receber e a ingerir nela,

7
em sua própria memória, aquilo que lhe acontece, toda carne é
corajosa – a coragem sendo definida por Zaratustra como a
capacidade a apreender as possibilidades do fluxo.

Como « predadora », a carne animal é mais corajosa ainda : em


vez de esperar passivamente as possibilidades de fluxo se limitando
àquelas de seu Umwelt já constituído (como por exemplo os
vegetais), ela parte a sua procura e vai ao encontro delas, ampliando
ativamente seu mundo próprio. O homem enfim é «o mais corajoso
de todos os animais ». Porque ele é « o animal histórico » por
excelência, por que ele se humanizou hipertrofiando sua memória
até incorporar em sua própria carne um passado que ele mesmo não
viveu (signos e símbolos, transmissão dos traços, cultos dos
ancestrais), sua carne é a mais aberta de todas ao passado e ao
estrangeiro, susceptível da incorporação a mais vasta das
possibilidades de fluxo que lhes são ainda estrangeiras.

A redefinição nietzschiana do homem precisa além disso que


ele é « o animal o mais cruel para com ele mesmo » Esse segundo
superlativo se esclarece pelo primeiro, Nietzsche, retomando a
definição do vivente por Virchow lembra como : « Toda atividade
vital supõe [...] uma irritação. A irritação consiste numa alteração
passiva (passio, pathos) que o elemento vivo prova por uma
influência estrangeira suficiente para atrapalhar sua organização
interna » (Virchow, Pathologie cellulaire).

A entrada de possibilidades do fluxo na carne própria de um


ser vivo (primeira definição), porque ela é a irrupção de um
elemento estrangeiro que afeta e transtorna sua organização interna,
provoca então necessariamente sofrimento, e aqui um sofrimento
almejado, logo cruel (segunda definição). Enquanto a carne é a mais
corajosamente exposta ao fluxo, o homem é, pois, naturalmente
também o animal o mais cruel « para com ele mesmo » .

8
A terceira definição deriva das duas primeiras. Porque ele é « o
mais contraditório », o homem é também o animal « o mais
sofredor », aquele que sofre mais possibilidades estrangeiras e
contraditórias que nele se comprimem. O homem, definido agora
« em oposição ao animal » parece susceptível de se elevar a
determinações até então inéditas ; « O homem, o mais sábio será o
mais rico em contradições », « aquele que terá a maior diversidade
de pulsões », « o homem [...] no qual se comprimem todas as
potências formadoras » - [...] o mais criador enquanto o mais
sofrido » (respectivamente FP 1884 26[119], 27[59] e 26[243).

Eis porque, de todos o entes, o humano é o melhor colocado


para perceber o excesso do fluxo e dele encher-se. Primeiro porque
como todo outro vivente, e à diferença dos entes sem vida, ele é
capaz de « acolher » em si, por incorporação, o fluxo do que lhe
acontece. A seguir porque como animal « o mais corajoso », « o
mais cruel » e « o mais rico em contradições », ele é a carne a mais
aberta ao excesso do fluxo. Vê-se bem que aqui a diferença do
homem não passa mais nem pelo « ser », nem pelo logos, nem pela
ratio, mas por uma capacidade excepcional de incorporar o excesso
de fluxo na sua própria carne. Será que as múltiplas definições do
homem contempladas por Nietzsche não poderiam desde logo se
sintetizar por esta definição única: o homem como o animal que
recebe o excesso do fluxo ?

Na realidade, esta definição permanece insuficiente. Pois o


homem é ao mesmo tempo o animal o mais aberto ao fluxo e aquele
que, mais que qualquer outro, corre sempre o risco de absolutamente
se fechar resolutamente. Incorporar, mais que qualquer outro animal,
as contradições do fluxo, não constitui a essência do homem, mais
antes sua destinação ou sua tarefa, que a espécie humana corre
sempre o risco de perder e que na época do « niilismo » tende
constantemente a perder. Pois hipertrofiando sua memória, a
hominização tem conjuntamente desenvolvido patologias inéditas,
ameaçando-a continuamente de se fechar às possibilidades do fluxo.

9
Para dizer de modo diferente, se a hipertrofia da memória é de
fato aquilo que abriu a carne humana, mais que qualquer outra, ao
excesso de fluxo, ela é também aquilo que a levou a se fechar. Ora, é
precisamente sobre este ponto difícil, sobre o estatuto ambíguo da
memória humana, segundo Nietzsche, que gostaria de discutir a
interpretação de Deleuze. O texto central se encontra no começo da
segunda dissertação da Genealogia da moral, intitulada « Culpa, má
consciência e coisas afins», em que justamente o homem é
redefinido como o animal que promete.

O « paradoxo » ou o « problema » do homem, explica


Nietzsche neste texto, é que ele deve ser um animal que promete.
Nesta redefinição como na definição canônica, a palavra está ainda
implicada : prometer se diz em alemão « versprechen », termo que
retoma o verbo « sprechen », falar. Mas aqui o homem não é mais o
animal que tem a palavra (ele não é mais o zoon logon ekon), ele é o
animal que deve dar sua palavra, o que é muito diferente.

Como eu lembrava anteriormente, os animais também têm algo


como uma linguagem, e essa linguagem se ocupa também de
recortar no fluxo, segundo ligações pré-humanas que também têm
sua significação: neste sentido, pode-se dizer que os animais
também « têm a palavra », e é, por sinal, o que autoriza Nietzsche a
falar de um logos animal, carnal ou pré-humano. Mas, em
compensação, nenhum outro animal que o homem pode dar sua
palavra. O homem é o único que se engaja no ser fiel ao que ele
disse, e se mantêm aí, para fazer permanecer no tempo o sentido de
sua palavra

Esta aptidão a prometer passa pela constituição de uma certa


memória (se lembrar daquilo que dissemos ou daquilo que nos
disseram) e, mais precisamente, pela constituição de uma memória
consciente. Em que existe aqui um « paradoxo » e por que Nietzsche
considera esta tarefa como « paradoxal » ? O paradoxo tem a ver

10
com o fato de que o animal, diz ele, é necessariamente esquecedor.
Memorizando o passado em seu corpo (Nietzsche disse diversas
vezes, em importantes fragmentos, que a memória é o critério do
orgânico), ele esquece esse passado ou (se prefere) o recalca no
mundo de sua carne graças ao aparelho de recalcamento que é a
consciência animal. Se seu corpo carrega sempre a memória de um
passado, sua consciência em compensação se isola deliberadamente
do passado para se tornar disponível ao presente. O esquecimento
animal é aquilo que o permite « fechar temporariamente as portas e
as janelas da consciência », aquilo que o permite se tornar presente
ou atento ao mundo tal como ele se dá agora : « sem esquecimento
não poderia ter [...] presente ». Mas é isso também o que fecha a
consciência animal no presente vivido. Se seu corpo carrega sua
própria memória vivida (somática) e a memória de sua espécie
(genética), a consciência do animal permanece fechada na atenção
do presente vivido.

Com a hominização, em compensação, aparece pela primeira


vez na terra, não a memória em geral (essa começa, repete muitas
vezes Nietzsche, desde as primeiras formas de vida), mas a memória
como consciência tornada memória : a consciência que se lembra do
passado, não só próximo ou apenas passado, mas também
longínquo e mesmo não-vivido (o passado dos ancestrais). E é
justamente essa memória consciente, ou essa consciência
memorizante que vai tornar possível a promessa, isto é o
engajamento compreendido como fidelidade a si mesmo e, de
chofre, a responsabilidade.
Pois aqui não se trata mais somente de ter a palavra ou de
saber responder (o animal, mais e talvez melhor do que o homem, já
sabe responder a uma excitação ou a um sinal). Trata-se de dar a
palavra e responder por si : de reapoderar-se, no presente mesmo da
consciência, simultaneamente como passado, presente e futuro, o
que só a « responsabilidade » permite. Só a memória consciente
permite responder de si como passado, presente e futuro, e ao
mesmo tempo de ligar-se às três dimensões do tempo. Ampliando-se

11
até a consciência, a hipertrofia da memória tem, então, aumentado a
individuação tornando possível um indivíduo livre, soberano e
mestre de si mesmo : um indivíduo capaz de responder de si.

Ora, este processo, o mesmo que tornou possível a


hominização é eminentemente ambíguo. Para fazer para si essa nova
memória, Nietzsche explica que o homem deveu (deve ainda)
infligir-se terríveis sofrimentos: é o fenômeno da punição ou do
castigo necessário tanto para a hominização como para a educação.
Para fazer para si uma memória consciente, ele teve que e deve
ainda se ferir ou marcar a sua consciência, se auto-impressionar pela
dor, fazer de sua consciência um sistema de traços no qual possa
exprimir o passado :

« Como formar uma memória no animal humano? Como


imprimir alguma coisa que permanece presente nesse entendimento
instantâneo....nesse esquecimento na carne e nos ossos ? Se grava
alguma coisa no ferro em brasa que permanece na memória : só o
que não cessa de fazer mal permanece na memória » Insistindo
sobre o papel constitutivo do sofrimento na hominização, esse texto
capital afirma então que com o homem apareceu não somente a
consciência como memória, mas também a má consciência que faz
sofrer, a consciência como órgão da culpabilidade. Daí, a conclusão
de Nietzsche : quanto de sangue e horror (aqui : má consciência) se
encontra no fundo das boas coisas (aqui : a consciência como
responsabilidade)

A hominização, que tornou possível uma forma superior de


individuação, foi também inteiramente um processo patológico. Esta
solidariedade de fundo entre a maior espontaneidade e a passividade
de sofrer, Nietzsche anunciou-a em Zaratustra quando falou do
homem como o animal mais corajoso, e logo o mais cruel consigo
mesmo, isto é, também o mais sofrido. O erro da metafísica
consistiu justamente em opor a razão espontânea e a parte patológica
do homem, foi não compreender que a superioridade da razão

12
humana era solidária de um processo patológico.
A ambigüidade do processo é tão produnda que a hipertrofia da
memória, que tornou contudo possível a incorporação do mais
longínquo passado e a maior responsabilidade diante do futuro, é
também o que ameaça sem trégua o humano de ser fechar à
totalidade do fluxo. Os dois grandes fenômenos que melhor o
ilustrarão são a história da metafísica por um lado e a do
cristianismo por outro, formando ambos aquilo que Nietzsche chama
« a época do niilismo ».
A história da metafísica em primeiro lugar se funda
inteiramente sobre o ódio do passado como passado, isto é sobre o
ódio da passagem: aberta ao passado e através dele à passagem do
fluxo, a consciência humana sofreu tanto da passagem – da
destruição e da morte que carrega sempre consigo –, que a ela
tornou-se finalmente metafisica : seu sofrimento do fluxo tornou-se
ódio e seu ódio levou-a a inventar, contra o devir, a esfera ficticia do
sempre-presente (« O ser » ou « a substância » compreendidos como
permanentes e opostas ao mundo do devir). A história do
cristianismo, por sua vez, testemunga do mesmo ressentimento
contra o fluxo embora sob uma forma diferente. Com são Paulo, e
diferentemente do metafísico, não é o devir como tal que é negado
em proveito de um mundo intemporal, é o devir (é o que são Paulo
chama o « novo éon ») que é encarregado de anular ou de destruir
(katargein) todo o passado e com ele o sofrimento e a morte próprias
ao « antigo éon » (Corintios, XV, 24-26).

Nos dois casos, o homem que sofre mais do peso do passado (o


metafísico, o cristão) é também aquele que termina por se fechar o
mais radicalmente, tornando-se incapaz de incorporá-lo, seja
negando-o pelo pensamento (a metafísica) seja esperando sua
abolição no futuro (o cristianismo). Eis quem, para Nietzsche,
inaugura a época do niilismo, época em que a espécie humana
destrói todos os seus meios de incorporar o fluxo, embora ela tenha
se constituido pela intensificação dessa incorporação.

13
Todo problema vem, pois, do estatuto eminentemente
patológico da memória humana. Toda memória, porque ela implica
sempre sofrer da irrupção do outro ou do estranegrio em si
(« passio » ou « pathos » como dizia Virchow) é por essência
patológica ou patética. Mas, a memória propriamente humana é uma
das patologias as mais graves que surgiu sobre a terra, pois que
implica um sofrimento infligido a si mesmo e por si mesmo, um
sofrimento de si para si, que conduz a sofrer, não somente do outro,
porém, de si mesmo como de uma doença. Do mesmo modo, a
animal humano é o animal doente por excelência : o animal que se
inflige a si mesmo os mais terríveis sofrimentos, o sofrimento de sua
(má) consciência e sua imensa memória.
Apoiando-se nestes aspectos indiscutivelmente patológicos da
memória, Deleuze acreditou poder opor a memória ativa do homem
soberano e responsável à memória passiva do homem em estado de
sofrimento e sua má consciência. Era perder de vista aquilo que
justamente Nietzsche havia enfatizado : a solidariedade de fundo
entre a parte ativa e espontânea do homem e sua parte passiva ou
patológica. Assim aparece nessas linhas de Nietzsche e a filosofia
em que Deleuze retoma, suavizando-a, a oposição katiana entre
atividade e passividade : a memória do animal que promete, afirma
ele, não é « a memória da sensibilidade, mas da vontade. Ela não é
memória dos traços, mas das palavras [...] Somente o homem (dessa
memória) é ativo ». (p. 153-154).

O texto de Nietzsche diz, contudo, rigorosamente o inverso.


Geneticamente produzida por traços « [gravados] com ferro em
brasa» na carne, a memória do animal que promete é de fato uma
‘memória dos traços’, e nestes sentido uma memória de tudo o que a
carne passivamente sofreu, não apenas na « sensibilidade », todavia,
no sofrimento. Do mesmo modo, parece inútil querer opor, como fez
Deleuze, o homem ativo (do lado da livre vontade, da palavra e da
afirmação) e o homem passivo (do lado dos traços, do sofrimento e
do negativo).

14
O que Deleuze não vê, herdeiro nisto da segunda Critica de
Kant, é que só o animal o mais sofrido, ou o mais patologicamente
afetado pelo excesso de fluxo, pode tornar-se o mais prometedor e o
mais soberano: o mais apto a organizar o fluxo de maneira própria e
singular, organizando sua memória. Em vez disto, Kant acredita
poder sustentar, e Deleuze fica prisioneiro do mesmo dualismo, que
a livre vontade é necessariamente indene da sensibilidade, ele
mesma rejeitada do lado da parte passiva e patológica da
subjetividade. A oposição kantiana entre as duas partes da
subjetividade torna-se, na leitura deleuziana de Nietzsche, a
oposição entre dois tipos de homem, ativo ou reativo, que não tem
aparentemente nada em comum.

Resta saber porque Deleuze reintroduziu tal dualismo,


enquanto Nietzsche o havia combatido constantemente. Talvez a
resposta se encontre do lado de sua leitura de Bergosn e do
tratamnenteo muito diferente que ele deu do problema da memória.
Dois índices, pelo menos, vão neste sentido. Primeiro, a insistência
contínua de Deleuze acerca da crítica bergsoniana do « negativo »,
outro eco de sua hostilidade à dialética hegeliana – assim
encontramos em Bergsonismo, p. 41 : « O essencial do projeto de
Bergson é pensar as diferenças de natureza, independentemente de
toda forma de negação: há diferenças no ser, e no entanto nada de
negativo ». Aqui como em Nietzsche e a filosofia, Deleuze põe a
diferença contra o negativo, ou o movimento da diferenciação
contra o da negação. Enquanto Nietzsche interpreta sempre a
memória como a prova patológica das contradições do passado,
Deleuze quer promover, com Bergson, uma concepção da memória
não psicológica e não patológica, purgada do negativo e de suas
contradições. Daí o segundo índice: o que domina o comentário
deleuziano de Bergson (e que se encontra em Imagem-Tempo) é a
insistência contínua acerca da idéia de que a memória não é uma
faculdade psicológica porque o passado se conserva em si, na
« duração » compreendida como a coexistência de todo o passado
com ele mesmo.

15
O erro das teorias clássicas é por a memória do lado do vivido,
acreditar que o passado se produziria mediante uma duplicação (ou
uma re-presentação) do presente pela consciência ; em síntese : de
manter que a consciência do sujeito que produz o passado ou que o
passado é na consciência. Bergson demonstra o inverso: a
possibilidade mesmo de uma meória psicológica atesta que não é o
passado que está « na » consciência, contudo, é a consciência que
deve ir no passado para se lembrar dele, sem o que ela permaneceria
sempre fechada no presente e não poderia se lembrar de nada. A
memória psicológica tem, pois, como condição uma memória « em
si » (não psicológica) do passado, um passado que se conserva em si
mesmo, sem ajuda de nenhum cérebro, nenhum vivente, nem de
nenhuma psiquê – conservação em si do passado que Deleuze chama
também « memória-mundo » ou « memória ontológica » e q ue
Bergson chama « a duração ». A medida desta memória ontológica,
que Deleuze interpreta como a coexistência em si de todo o
« virtual », a memória psicológica e suas afecções aparecem
necessariamente como secundárias e tardias: a memória ontológica
recebe tão-somente « pouco a pouco uma encarnação, uma
psicologização » (Bergsonisme, p.52), o passado não necessitando
nem da carne nem da alma para se conservar e se organizar em uma
« memória » em camadas e níveis claramente diferenciados.
Citemos, a este respeito, o texto exemplar de Deleuze : « a duração é
a diferença consigo mesmo; a memória é a coexistência dos graus da
diferença ; o elã vital é a diferenciação da diferença ». (« La
conception de la différence chez Bergson », L’île deserte, p.61).

O movimento da diferença parece fazer-se sem luta, sem


sofrimento e sem combate: todo o aspecto polémico e patológico
próprio à individuação carnal, e sobre o qual Nietzsche por sua vez
muito insistiu, é aqui deixado em silêncio.

Em relação às análises de Nietzsche, a reconstituição


deleuziana da teoria de Bergson releva as maiores divergências

16
sobre as quais Deleuze infelizmente não se pronunciou (pelo menos
segundo meu conhecimento) :

1/ Enquanto Deleuze insiste acerca da Memória em si do


passado, Nietzsche afirma muito claramente que a memória começa
tão-somente com as primeiras formas de vida, que ela é inclusive o
critério do vivente e assim toda memória é necessariamente carnal.

Se nos lembrarmos do sentido grego da psychèn (aquele usado


por Aristóteles em Péri Psuchès: a anima ou o princípio da vida que
anima todos os viventes), isto significa que toda memória é
necessariamente, segundo Nietzsche, psicológica. Cabe, então,
dirigir a Nietzsche a pergunta de Bergson : será que não há mais
sobrevivência em si do passado, « em que » mergulha a carne
quando ela se lembra ? Deve-se considerar que ela cria o passado ex
nihilo (o que leva a por no mesmo plano as lembranças e
alucinações) ou, como nas teorias clássicas da memória que ela
produz o passado duplicando o presente pela re-presentação ?
Nietzsche sustenta outra coisa bem diferente: a carne que se lembra
mergulha não no « passado em geral » (Bergson), mas no « fluxo
absoluto » e no caos de suas contradições. E tal é justamente a outra
grande divergência com a teoria bergsoniana :

2/ Enquanto que a duração bergsoniana já está organizada em


« níveis », em « graus » e em « estratos », o fluxo nietzchiano é
sempre descrito como caos, não apenas saturado de tensões (é
também caso da duração segundo Deleuze), mas também cortado
por suas próprias contradições. Enquanto Deleuze insiste sobre uma
duração que se diferencia sem negação nem contradição, nem luta,
enquanto ele lembra a desqualificaçao bergsoniana da idéia de
« desordem » (em L’île déserte, p.59), Nietzsche sublinha ao
contrário, e com constância, a negatividade que rasga o fluxo e que
faz dele um caos e uma luta. Assim, por exemplo, neste texto sobre
Dionisio, nome próprio do fluxo absoluto : o deus deve « se livrar
(...) de seu excesso de plenitude, e do sofrimento das contradições

17
que nele se comprimem. (Nascimento da tragédia « Ensaio de
autocrítica » § 5) que retoma o § 4 do Nascimento da a tragédia :
« a arqui-unidade como eterno sofrimento e contradição ».

Eis porque, desde o Nascimento da tragédia, Nietzsche


percebe que Dionisio necessita de um outro além dele: em 1872,
Nietzsche nomeia esse outro « Apolo », príncipe da individuação,
único a permitir organizar este caos no tempo e no espaço, o que
invalida de chofre toda idéia de uma auto-organização do virtual. A
partir dos anos 1880, com a figura de « Ariadne », a noiva desejada
por Dionisio, ele evocará mais claramente ainda a carne e sua
memória como única capaz de organizar o caos do fluxo [Para maior
desenvolvimento desta dupla relação (com Apolo e a seguir com
Ariadne) remeto a meu livro Nietzsche et la critique de la chair].
Ora com a figura de Ariadne justamente se afirma uma última
divergência :

3/ O desejo de Dionisio por Ariadne atesta que o fluxo não tem


apenas necessidade da carne ou das primeiras formas de vida para se
organizar. Como atesta o § 295 de Para Além do bem e do mal,
Ariadne é o nome próprio da memória hipertrofiada do homem,
aquela que é a mais exposta ao labiritno do fluxo e a mais apta a
nele se encontrar (a « encontrar seu caminho », diz o texto aludindo
ao artifício do « fio de Ariadne ». Amando Ariadne e sofrendo de seu
próprio caos o fluxo necessita não só da memória carnal, mas da
memória hipertrofiada da consciência humana capaz da mais alta
incorporação e da mais vasta organização do fluxo em uma mesma
carne.

Tal é a razão profunda não percebida por Deleuze, dos amores


de Dioniso e de Ariadne. Não que a afirmação exija ser repetida por
uma segunda afirmação, como um espelho repete refletindo um
primeiro visível (Nietzsche et la philosophie, p.215 : « o universo
dionisíaco, o ciclo eterno, é um anel nupcial, um espelho de núpcias
que espera a alma (anima) capaz de nele se mirar, mas também de

18
refleti-lo em se olhando. Eis porque Dioniso quer uma noiva »).
Trata-se, antes, do fato de que a consciência sofre as contradições do
fluxo (é a dimensão passiva ou patológica de Ariadne e de sua
« Lamentação »), ao mesmo tempo esforçando-se em organizá-los
pelos seus próprios artifícios nas dobras de sua carne, de sua
memória (e trata-se aqui de sua dimensão ativa e inventiva). Aqui,
como na sua leitura da Genealogia da Moral, Deleuze não vê que o
movimento ativo e afirmativo da diferença requer a atitude passiva,
e mesmo patológica, sofrendo do fluxo e de suas contradições.

Estas obervações podem parecer puramente internas ou


textuais. Acredito, por minha parte, que são filosoficamente cheias
de conseqüências. Pois a partir do momento em que se compreende
que o fluxo precisa de nós para se organizar, se individualizar e se
diferenciar, isto significa que a possibilidade mesmo da diferença
está em nosso poder e de nossa responsabilidade. Em vez de refletir
somente ou repetir uma duração de antemão organizada e
diferenciada por ela mesma, é sobre a carne em geral, e sobre a
carne a mais aberta à totalidade do fluxo em particular, a saber,
sobre nós mesmos que repousa toda a responsabilidade de organizar
o fluxo. Se se acrescenta que essa responsabilidade provoca
inevitavelmente conseqüências patológicas (expor-se ao caos do
fluxo implica com efeito dele sofrer e em uma certa medida, de
correr o risco de ficar doente), compreende-se que o problema da
memória – nesse caso: da incorporação do excesso de fluxo nas
carnes – torne-se em Nietzsche o objeto de uma luta ou de um
combate. A este respeito, pode-se sustentar que a análise da memória
bergsoniana feita por Deleuze conduz a uma ontologia
essencialmente descritiva, que por esta razão mesma desqualifica a
luta, o problema da memória desemboca, ao contrário, com
Nietzsche, na necessidade de um combate ou de uma praxis, de uma
luta política em vista da melhor incorporação possível do fluxo pelas
carnes.

Tal é, aliás, o objeto da primeira questão política de Nietzsche:

19
a da formação, da cultura ou da educação (Bildung, Züchtung ou
Erziehung) que tem tão-só, segundo ele, o sentido de garantir a
incorporação a mais vasta possível das possibilidades do fluxo na
memória do animal humano. Enquanto que ao ler Deleuze, parece
que o movimento da diferença se passa ao largo de toda política da
memória (o passado se auto-organiza por ele mesmo e o movimento
da diferença jorrando espontaneamente do passado como sua mais
íntima tendência), para Nietzsche, ao contrário, o primeiro combate
político a traçar consiste em educar a espécie, isto é, inicialmente
transmitir-lhe uma memória a altura das contradições do fluxo. Só
isto permite garantir a diferença e a individuação, uma e outra
estando sempre ameaçadas tanto do lado do fluxo, pelo caos, quanto
do lado da espécie humana, pela fechamento ao fluxo e pela perda
da individuação que ela engendra, produzindo aquilo que Nietzsche
chama o « nivelamento » da espécie.

Ora, é de fato esta destruição da individuação que parece


prevalecer hoje na maioria dos sistemas educativos, desde muito
ocupados em destruir todos os antigos instrumentos de incorporação
do passado. A evolução da maioria das disciplinas o atesta : tanto no
ensino das línguas como no das ciências e mesmo, por mais
paradoxal que isto pareça, no ensino da história, é a adaptação ao
presente que prevalece (a língua como instrumento de comunicação
imediata, a ciência como formação dos procedimentos rápidos do
cálculo, a história como sensibilização às tarefas de casa impostas
pela « atualidade», enquanto que a relação com o passado e com
suas contradições é sistematicamente liquidada. Altamente
significativos são, a este respeito, o desaparecimento quase total do
ensino das línguas mortas e com elas do conceito de Antiguidade e
de suas contradições (os mundos grego, romano, bíblico, cristão
etc), o recuo da história antiga nos programas e ao mesmo tempo do
horizonte indispensável a uma memória ampliada, a ausência de
toda história das ciências (inclusive nas mais altas carreiras
científicas) e do mesmo modo o recuo de toda consciência das
contradições internas da história da verdade, e finalmente a distância

20
do ensino da literatura no sentido estrito (em proveito das ciências
da comunicação) e com ela de uma relação própria, singular e
individuante com a língua comum.

Na França, o ensino da filosofia continua uma das raras


disciplinas que parecem ainda ser exceção a este programa, mas
tudo leva a crer que se trata aqui de uma sobrevivência, mais ou
menos a longo prazo, ameaçada . Estas evoluções, bastante
antecipadas por Nietzsche, levam a produzir um indivíduo sem
memória, essencialmente ocupado em se adaptar ao presente e a
suas dificuldades, e cada vez mais incapaz de continuar a incorporar
o excesso de fluxo e suas contradições. Dito isto, é o movimento
mesmo que permitiu a hominização (e com ela as condições do
« animal que promete ») que se encontra pura e simplesmente
destruído.

Ao mesmo tempo em que se destrói a memória, é a capacidade


de suportar as contradições do fluxo que desaparece e, de repente, a
capacidade própria a espécie humana de « prometer »: isto é, de
inventar uma síntese altamente singular e individualizante dessas
contradições. Daí um nivelamento generalizado da espécie humana,
consequência direta da destruição de sua memória. Adaptando-se
docilmente aos constragimentos dominantes, renovando com uma
memória animal cercada no presente vivido (a memória nervosa), o
animal humano perde ao mesmo tempo toda capacidade de
prometer, isto é, de responder livremente por si mesmo como futuro
« contraindo » nele – para retomar um termo de Bergson – o mais
longínquo passado, o mais contraditório e o mais ampliado.

Tal é para Nietzsche o verdadeiro objeto da redefinição do


homem como animal que promete. Porque ele não é mais « o animal
que tem a palavra », mas o animal que deve dar a palavra e a manter,
e porque esta capacidade de prometer implica como primeira
condição uma hipertrofia da memória e de seus sofrimentos, o
homem pode tão-somente alcançar sua destinação pelo combate ou

21
por uma luta cuja cena principal é a educação em geral e a educação
da memória em particular. A análise nietzschiana dos amores (e do
desamor) entre a carne e o fluxo conduz, a este respeito, a fazer da
educação a primeira questão ou, se preferimos, a lançar os
fundamentos de uma filosofia primeira da educação. Ao contrário,
cabe se perguntar se um pensamento da diferença que cria um
impasse sobre suas condições carnais as mais originárias – como
Deleuze parece fazer aqui, atribuindo a duração ou ao virtual uma
tendência à diferença independente dos efeitos indesejáveis psico-
patológicos que afetam as carnes – não corre o risco de participar da
secundarização, por toda a filosofia contemporânea, da questão, no
entanto, eminentemente política, da educação.

Eis que correria o risco de criar o impasse sobre as condições,


ao mesmo tempo carnais e coletivas, e logo políticas da
individuação e com certeza sobre o próprio movimento da diferença
sobre a qual cabe realmente pensar.

Tradução :
Paulo Germano Albuquerque e Daniel Lins
(O presente texto, não ainda revisado, será publicado em maio de
2006, segundo autorização oficializada pela própria autora).

22

You might also like