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Narratividade e objetividade na Ciéncia Histérica Jérn Riisen* Resumo — Q artigo procura mostrar como no decorrer do tempo se deu o confronto entre tendéncias objetivistas ¢ subjetivistas no pensamento histérico, resultando na ambicio de elevar a Historia 4 categoria de uma ciéncia objetiva, por um lado, ¢ na tentativa de reduzi-la a uma aarracio puramente subjetiva, por outro lado. O autor procura intermediar entre essas duas tendéncias aparentemente irreconcilidveis. Abstract: The article describes the confrontation belween objectivistic and subjectiv- istic tendencies in historical thought, where the first tried to give to History the status of an objective science, and the later reduced it to an act of poetry. The author tries to intermediate between the two tendencies apparently irreconcilables. Palavras-chave — Ciéncia Histérica — Objetividade histdrica — Narracdo hist6rica, Key words — Historical science — Historical objectivity — Historical narration 1 Oproblema Nartratividade e¢ objetividade sfo caracteristicas do pensamento hisirico que parecem exeluir-se mutuamente. A categoria da narrati- vidade aproxima o pensamento histérico — e com ele a Ciéncia Hist6- rica — da Literatura. Ela se refere ao cardter literario da escrita da Histéria e aos fendmenos e princfpios lingiifsticos que transformam a * Ex-professor das Universidades de Bochum e de Bielefeld. Desde 1997, Presidente do Kulturwissenschaftliches Institut no Wissenschaftszentrum Nordrhein-Westfa- len, em Essen, Alemanha. A tradugao do texto é de René B. Gertz. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIV, n. 2, p. 311-335, dezembro 1998 312 Estudos ibero-Americanos, XXIM(2) — dezembro, 1998 Histéria numa representagado do passado com sentido para as praticas culturais da meméria histérica. A categoria da objetividade se refere, em contrapartida, a um determinado tipo de conhecimento histérico que é buscado através de procedimentos de pesquisa regulamentados, Ihe garante um alto grau de validade e 0 coloca acima das opinides arbitrarias. A Historik' — a reflexio sobre os fundamentos do pensamento hist6rico e da escrita da Histéria — se preocupou ha muito tempo com esses principios e desencadeou discussdes em torno deles.2 Numa perspectiva historica, seu discurso meta-histérico pode ser classifica- do de acordo com a seguinte distingdo, mesmo que pouco nuangada: na tradicao pré-moderna da Retérica a obra dos historiadores foi dis- cutida como pi ‘a lileréria da narracdo orientada por critérios de verdade; no processo modernizante da racionalizacao, no qual a His- loria se transformou numa disciplina académica, esses critérios de verdade adquiriram a forma claborada de um sistema de regras de pesquisa que garantem a objetividade do conhecimento histérico con- quistado através delas (por objetividade entende-se uma validade ge- ral do conhecimento historico baseada em sua referenciacio A vivén- cia da vivéncia ¢ a racionalidade do tratamento cognitivo dessa viv cia); no discurso da pés-modernidade esse posicionamento foi critica- do como falsa consciéncia (o fato de se atentar primordialmente para a racionalidade do conhecimento manteria ocultos os processos lin- giifsticos da narrag&o, que constituem a peculiaridade da Histéria como construgéo mental e mediante os quais 0 passado é representado para fins culturais da vida contemporanea).* Na auséncia de uma palavra adequada em portugués, mantém-se a palavra original, cujo significado & explicado pelo prépric autor. Este sugeriu como alternativa “Meta-Hist6ria” (Hayden White) (N. T.) Cf. Blanke, Horst Walter. “Von Chrytaeus zu Gatterer. Eine Skizze der Historik in Deutschland yom Humanismus bis zur Spatautklirung”. In: Blanke, Horst Walter & Fleischer, Dirk (eds.). Aufklérung und Historik. Aufsdtze zur Entwicklung der Geschichiswissenschaft, Kirchengeschichte und Geschichustheorie in der deutschen Aufklérung. Waltrop, 1991, p. 113-140, Pandel, Hans-Jiirgen. Historik und Didaktik. Das Problem historiographisch erzeugten Wissens in der deutschen Geschichiswissenschaft von der Spéitaufklérung zum Friihhistorismus (1765- 1830). Stultgart-Bad Cannstatt, 1990 (Fundamenta Historica, y. 2). Agradego a Jan-Holger Kirsch pelo valioso auxilio na elaboragdo redacional do texto. Um texto central a respeite é o de Barthes, Roland, “O discurso da Histéria”. In: Barthes, Roland. O rumor da lagua, Sao Paulo, 1988, p. 145-157. Narratividade ¢ objetividade na Ciéneia Histérica 313 O discurso pré-moderno dedicava atengio especial a relagao entre os historiadores e seu publico. Ele destacava os principios morais que orientam a visao histérica e tornam o passado significative para o presente. Esses principios transformavam a representagao do passado em uma mensagem moral, que colocava seus destinatarios em condi- oes de compreender e aplicar as regras da vida humana na pratica. O discurso moderno sobre a Histéria bascia-se na critica dessa concep- cao moralista e concentra sua atengao na relagao entre os historiado- res como sujeitos do conhecimento e a vivéncia do passado, a qual se encontra disponivel para a pesquisa nas fontes. A Historik — 0 meio de autocertificacao reflexiva do pensamento hist6rico que se transforma- ra em ciéncia especializada — destacava a competéncia profissional dos historiadores em explorar a vivéncia histérica através da raciona- lidade metodolégica da pesquisa. A conhecida expressio de Ranke indica essa mudan¢a de interesse na autopercepgado dos historiadores: ele pretendia “apenas mostrar como realmente foi”. Com 0 surgimento da Ciéncia Histérica como disciplina académi- ca e com sua ambicao de introduzir padrées cientificos no conheci- ela deveria legitimar © carater académico da profissio dos historiadores, explici- tando a configuracao “cientifica” do conhecimento histético através da pesquisa, destacando ao mesmo tempo a peculiaridade da Ciéncia Histérica, que a diferenciava das outras disciplinas académicas, em especial das Ciéncias Naturais. FE verdade que houve, sempre de novo, tentativas de medelar a Ciéncia Histérica de acordo com o padrao das Ciéncias Naturais. Mas a maioria dos historiadores elaborou e cullti- vou uma autocompreensao de sua condigao de cientista e de sua dis- ciplina que airibufa importancia fundamental 4 peculiaridade ¢ ao cardter tinico do pensamento histérico. O principio da natratividade iniciou seu caminho vitorioso na Historik como critério dessa peculia ridade ¢ diferenciagio. Através desse principio podia-se (¢ ainda se pode) mostrar ¢ fundamentar que e por que o pensamento histérico persegue uma outra estratégia de explicagio do que aquele modo de pensar cientffico pelo qual, para dar-se uma explicagao, deve-se pas- sar pelo desenvolvimento e pela aplicagao de regularidades. mento histérico, a Historik adquiriu uma fungao dupla*: * Ranke, Leopoldo van. Geschichte der romanischen und germanischen Vélker von 1414 bis 1514. Leipzig, 1885, p. VII (Samliche Werke, v. 33). CE. Riisen, Jim. Konfigurationen des Historismus. Studien zur deutschen Wissens- chafiskultur, Prankfutt/M, 1993, p. 29-94. 314 Estudos !boro Americanos, XXIV(2) ~ dezernibro, 1996 Essa tematizacao do pensamento histérico focando a narrativida- de, no entanto, levou simultaneamente a uma quase perda total do tradicional principio de objetividade da Ciéncia Histérica. Fazao principal por que historiadoras ¢ historiadores profissionais acompanharam com relativa desconfianga a fundamentacao ¢ explica- gao histérico-tedricas do cardter narrativo do conhecimento historico. E verdade que nunca conseguiram substituir 0 principio da narrativi- dade por algum outro que permitisse que a mesma diferenciagéo pu- desse ser feita, mas com maior plausibilidade. Mas eles nao consegui- ram convencer-se de que as conquistas cognitivas que a Historia apre- senta como ciéncia pudessem ser suficientemente explicitadas e fun- damentadas através de uma teoria da Hist6ria que enxergava no ato de narrar uma hist6ria 0 paradigma do conhecimento histérico.* A situagao atual da Ciéncia Historica caracteriza-se, portanto, por uma relagio perturbadora entre os padrécs disciplinares do conheci- mento hist6rico na autocompreensao das historiadoras e dos historia- dores profissionais e a explicacio hist6rico-tedrica dos principios desse conhecimento. De um lado, estio a clareza historico-tedrica e a nio-ambivaléncia da nartatividade como principio do pensamento hist6tico que precede e fundamenta a objetividade cientifica da repre- sentagao do passado como Hist6ria ¢ que faz parecer problemiticas as ambigGes de validade ligadas ao principio da objetividade. Por outro lado, a pratica da Histéria académica esté determinada por posicio- namentos Cientificos e procedimentos epistemol6gicos que fazem com que as historiadoras e os historiadores profissionais desenyolvam seu trabalho de pesquisa ¢ sua escrita da Histria comprometidos com uma rigida racionalidade metodoldgica, E essa racionalidade do mé- todo que confere ao conhecimento histérico, conquistado através da pesquisa e apresentado na historiografia, sua validade objetiva. As reflexdes que seguem pretendem estabelecer uma intermediz Gao entre essas duas concepgées e perspectivas do pensamento histé- Tico. Para isso gostaria de delinear primeiramente os argumentos ma importantes que acentuam a estrutura narrativa do conbecimento his- térico © com isso criticam concepgées insustenlaveis de objetividade Exemplo tipico é Kocka, Jiirgen. “Um retorno A narracio? Em defesa de uma argumentagao hisisrica”, Histéria: questoes e debates, v. 13, n. 24. 1996, p. S6= We Narratividade e objetividace na Ciéncia His 315 histérica. E, num segundo momento, gostaria de tentar mostrar que objetividade hist6rica pode ser reformulada e fundamentada no 4m- bito de uma teoria narrativa da Ciéncia Histdrica e assim transformar- se em um pensamento historico com ambigées tipicamente cientifi 2 O que é objetividade? Objetividade representa uma limitagao & interpretacdo histérica Ela constitui um critério de validade que torna o pensamento histérico ¢ a historiografia plausfveis, isto é, ela pressupde uma ambicao de verdade intimamente relacionada com a racionalizagao do pensamento histérico e com seu carater cientifico. Verdade sempre se constituiu em um dever da historiografia. Na tradicao retérica pré-moderna da Historik, verdade era entendida como posicionamento moral daqueles que escreviam Historia e como principio retérico de sua escrita da Hist6ria, prescrita de forma normativa para os historiadores. Verdade era apresentada como antidoto de preconceitos ¢ deformagdes da perspectiva histérica tal qual ela se apresenta nas representacdes do passado que partem de um partidarismo unilateral em favor de um grupo ou também de um sujeito agindo individualmente. Além disso, ela se opunha 4 utilizagio de elementos ficcionais na representagaio histérica. Dizer a verdade sobre 0 passado aparecia como assunto exclusivo do livre arbitrio de quem se manifestasse sobre ele. Limit: g6es eram impostas pelas regras morais. Elas exerciam simultanea- mente o papel de diretrizes para o trabalho historiografico, para o entendimento do passado e para a aplicagao do saber histérico 4s cir- cunstincias contemporaneas da pratica de vida humana e as expecta- tivas em relagio ao futuro. Em seu livro Como se escreve Histéria diz Luciano de Samosata (ca. 120-180) que a Histéria sé teria uma tarefa 7 Ch. Ritsen, Jorn (€d.). Historische Objektivitét. Aufscitze zur Geschichistheorie Gottingen, 1975. Risen, J6rn. Historische Vernunft. Grundzige einer Historik I: Die Grundlagen der Geschichiswissenschaft. Gdttingen, 1983, p. 85 ¢ segs. Ni- pperday, Thomas. “Kann G sein?” In: Nipperday, Thomas. Na- chdenken iiber die deutsche Geschichte. Essays. 2. ed., Munique, 1986, p. 218- 234. Risen, Jém. Studies in Meiahistory, Pretétia, 1993, p. 49 © segs. (Human Science Research Council). Megill, Allan (ed.). Rethingking objectivity 1, I (An- nals of Scholarship, v. 8, n. 3-4; v. 9, n. 1-2). Webcrmann, David. Historische Objektivitét, Frankfurt/M, 1991 316 Estudos Ibero-Americanos, XXIV(2) ~ dezembre, 1998 e um objetivo, isto é, ser util, e que o historiador s6 poderia alcancar esse objetivo apresentando a verdade.* Lssa utilidade, que a Histria tem por causa do compromisso com a verdade de parte daqueles que a escrevem, € totalmente pratico-moral: historia vitae magisira. A His- toria ensina as regras da vida humana, acumulando vivéncias que vio muito além do horizonte das vidas individuais, contextualizando-as ¢ gerando a partir delas regras de agir impregnadas pela experiéncia pratica. A representacdo da Historia conduz a “sabedoria” (prudentia, frénesis), isto &, A competéncia para organizar a pratica de vida de acordo com regras gerais derivadas de vivéncias acumuladas. Conhe- cimento histérico produz competéncia para estabelecer regras. A his- toriografia € capaz e esté comprometida em produzir essa competén- cia pragmitica e moral, organizando a vivéncia do passado na forma de uma narracio que teaha uma “moral”, uma mensagem na forma de tegras gerais e principios embasados na vivéncia do agir humano. O pensamento histérico ambiciona a verdade a fim de coneretizar essa telagdo com a vivéncia. Esse paradigma que se referencia 4 vivéncia esta na sabedoria de pessoas idosas em sociedades pré-modernas: como elas, no decorrer de suas vidas, passaram por e se confrontaram com muitas vivéncias, esto qualificadas a presidir e orientar a vida atual de seu grupo soci- al. Orientar significa: compreender e lidar com problemas priticos através do conhecimento de realidades humanas acumuladas na vi- véncia de uma longa vida, Histéria é vista como uma tal forga orien- tadora da vida humana e o historiador € um especialista da vi acumulada nos arquivos da memdéria coletiva. Assim, Historia pode, por exemplo, ser definida da seguinte forma (por Viperano, no discur- so dos humanistas): “rerum gestarum ad docendum usum rerum syn- cera illustrisque narratio” (uma narrativa aul€éntica e iluminada de agdes humanas com 0 objective de ensinar como lidar com elas).” éncia Samosate, L. Wie man Geschichte schreiben soll. Munique, 1905, § 9, p. 107 (editado por I. Homeyer). Kessier, Eckhard. Theorenker humanistischer Geschichisschreibung. Munique, 1971, p. 19, nota 57 (Viperano I, 7A, p. 13, 10 © segs.). CL. a excelente introdugao de Kessler em “Geschichte, menschliche Praxis oder kritische Wissenschait? Zur Theorie humanistischer Geschichisschreibung”, In: ibid, p. 7-47. Kessler, ‘hard. “Das thetorische Modell der Historiographic”. In: Koselleck. Reinhard & Lutz, Heinrich & Risen, J6m (eds.). Formen der Geschichtsschreibung. Munique, 1982, p. 37-85 (Beitrage aur Historik, v. 4). ° Narratividade e objetividade na Giéncia Histor 317 Objetividade é algo diferente do que essa verdade pratica de His- tOria til. Ela se refere a uma determinada relagao da representagao historica com a vivéncia do passado. A citada frase de Ranke exprime claramente que essa relagio nao se organiza em primeiro lugar de acordo com os principios da prudentia (competéncia para estabelecer regras), mas de acordo com o principio metodolégico da pesquisa como processo de conhecimento. Ranke se empenhou por uma mu- danga fundamental na concepgao dos critérios bésicos da verdade na historiografia. Essa mudanga faz parte das transformagées estruturais do pensamento hist6rico ocorridas na segunda metade do século XD Aqui comega a modernizagio do pensamento histérico que, a nivel dos seus principios, se processa de duas formas: por um lado, ela ocorreu ali onde a vivéncia do tempo se organiza como Histéria no nivel das categorias; foi desenvolvida wma nova categoria de Histéria. Histéria passa a ser entendida como um processo abrangente da mu- danga temporal do mundo humano."' Em segundo lugar, 0 moderno pensamento hist6rico surge através do desenvolvimento da racionali- dade metodoldgica como estratégia de conhecimento no trato com a vivéncia do passado. A nova categoria “da” Histéria define o Ambito do objeto do conhecimento histérico e da historiografia como um Ambito especial da realidade: a Histéria é 0 verdadeiro mundo huma- no na dimenso do tempo. Isso é mais do que uma hist6ria no sentido de uma narracdo, ou seja, uma pré-figuragio do mundo humano que possibilita ao historiador tornar presente 0 passado na forma de uma histdria. Objetividade significa que a prudentia, que no periodo pré- moderno era narrada nas verdadeiras historias dos historiadores, iransformou-se agora em uma realidade do mundo dada Riise, Konfigurationen.... p. 29 € segs. Blanke, Horst Walter, Mistoriographie- geschichte aly Historik, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1991 (Fundameata Historica, vol 3). Kiitier, Wolfgang & Riisen, Jam & Schulin, Ernst (eds.). Anféinge nradernen historischen Denkens, Frankfurt/M, 1994. A esse respcito cf. sobretuclo Koselleck, Reinhardt. “Historia Magistra Vitae. Uber die Auflésung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegler Geschichte”. Tn: Kose- licck, Reinhardt. Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt/M, 1979, p. 38-66. Koselleck, Reinhardt & Meier, Christian & Engels, Odilo & Giinther, Horst, “Geschichte, Historie”. In: Bruamer, Oto & Conze, Wer ner & Koselleck, Reinhard (eds.). Geschichiliche Grundbegriffe. Historisches Le- xikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart, 1978, p. $93-717 (v2) 318 Estudos ibero-Americare , XKIV/2) — aezernbro, 1998 O lema de Ranke, que exprime a nova ambigdo de objetividade do pensamento histérico, pressupde uma determinada Filosofia da Hist6- tia: Hist6ria é a realidade temporal do mundo humano; ela é uma rela- ¢g4o interna das transformagées temporais, a qual constitui um ele- mento dado para os historiadores como parte da vivéncia. Os historia- dores devem representar em sua escrita da Historia essa estrutura hist6rica dada do mundo humano. Eles relatam “como realmente foi”. Essa “verdadeira” realidade é mais do que uma seqiiéncia de aconte- cimentos e transformagGes no passado, tal qual sao relatados nas fon- tes — cla constitui um sentido real em si mesmo perpassando a mudan- ca temporal do homem e de seu mundo no passado, presente e futuro. Essa “verdadeira” Historia ¢ desbravada pelos historiadores na forma de um processo cognitivo que exige competéncia profissional através de um procedimento de pesquisa com as fontes, No transcurso tempo- ral dos acontecimentos e das transformagées no passado manifesta-se uma estrutura histérica de profundidade do mundo humano. Essa e: trutura — chamada Histéria — € constituida por “causas motivadoras’ da mudanga temporal do mundo humano.’* Sao essas “causas motiva- doras” que ontologicamente constituem a realidade da Historia. realidade da Histéria esta dada na vivéncia histérica © pode ser trazida a luz pela pesquisa hist6rica a partir dos residuos do passado. A categoria “da Histéria” ¢ a racionalidade da pesquisa histérica estio, portanto, intimamente ligadas. A primeira constitui o pressu- posto ontolégico para os procedimentos cognitivos da segunda. A ambigdo de objetividade, muito prestigiada, com que os hisioriadores exerciam sua profissio como sacerdotes da nagio” baseava-se na confianga semi-religiosa e metafisica de que 0 intelecto humano pade, através de procedimentos racionais, apreender a Histéria como estru- tura real do mundo humano na seqiiéncia temporal dos acontecimen- tos € das transformacées no passado.'* Cf. Humboldi, Wilhelm von. “Betrachtungen uber die bewegcnden Ursachen der Weligeschichte”. In: Humboldt, Wilhelm von. Werke (vol. l: Schriften zur An- thropologic und Geschichte). Darmstadt, 1960, p. 578-584 (editado por Andreas Flitner e Klaus Giel). (Na Akademicausgahe I, p. 360-366). Weber, Wolfgang. Priester der Clie, Historisch-sozialwis, zur Herkunft und Karriere deutscher Historiker, 1800-1970. 1987. Rusen, Jor, “Historische Methode und teligidser Sinn — Voriiberlegungen zu einer Didaktik der Rationalisierung des historischen Denkens in der Modeme Kiittler & Riisen & Schulin, op. cit., p. 344-380. aschafiliche Studien ed., FrankfurvM, Narratividade e objetividade na Ciéncia Historica 319 Um famoso documento concebido dentro do espirito dessa ambi- cao de objetividade é 0 discurso de posse de Humboldt na Academia com o titulo “Uber die Aufgabe des Geschichtsschreibers” (Sobre a tarefa do historiador) (1821). Aqui a ambigio da objetividade é ex- pressa em sua forma histérica como “uma coincidéncia original e pré- existente entre 0 sujeito e o objeto”. “Coincidéncia pré-existente” significa que a Histéria como ess€ncia do objeto do pensamento histé- rico — a realidade temporal do mundo humano ~ é constituida ontolo- gicamente através de forgas espirituais (“id que atuam porque o agir humano esté determinado por um sentido. E a mesma forga men- tal que, do outro lado, impulsiona o espirito humano nos seus interes- ses epistemoldgicos em sua aproximagio cognitiva da vivéncia do passado, transformando-a em conhecimento histérico. O espirito do conhecimento presente na vivéncia constitui, portanto, uma parte do espirito da realidade histérica dada pela propria vivéncia. Os interes- ses epistemolégicos constituem uma parte das for: mentais que representam a Histdria que € objeto do conhecimento. Pode-se, por isso, afirmar que a propria Histéria fala através dos historiadores, que a escrita da Histéria representa a realidade interna da Histéria como uma forma dada e abrangente da vida humana. Essa concepcao da telagao entre conhecimento historico e Histéria reconhecida esté na base da tradicional ambigio de objetividade da Ciéncia Hist6rica (em sua variante hist6rica). A epistemologia dessa ambicao, que unifica o sujeito e 0 objeto do conhecimento histGrico na forca motriz universal do espirito humano, baseia-se numa Filosofia da Histria que permite vet a Historia como movimento temporal do espirito humano na teali- dade do mundo humano. A ambigao tradicional de objetividade da Ciéncia Histérica ba- seia-se, portanto, numa Filosofia da Histéria com implicagdes voltada para a epistemoldgicas. Ela estabelece que os limites que a interpreta cao deve observar no trato com o material encontrado nas fontes constitui a diretriz basica das regras metodoldgicas da pesquisa histé- rica, estabelecendo que a Histéria € um movimento temporal do mun- do humano construido através das forgas mentais do agir humano. O vonhecimento histérico com essas ambicGes de objetividade pode * Humboldt, Wilhelm von. “Uber die Aufgabe des Geschichtsschreibers”. In: Hum- boldl, op. cit., p. 385-606 (na Akademieausgabe IV, p. 35-56). © Yid., p. 596 © segs. (na Akademieausgabe IV, p. 47). 320 Estudos Ibero-Americanos, XXIV(2) — dezembro, 1998 exercer fungdes de orientagéo cultural da vida pratica — em geral, politica. A partir dele pode-se desenvolver uma perspectiva de futuro, que projeta a direcéio da mudanga temporal do passado e, assim, apre- senta a politica — a ago direcionada para o futuro — como o outro lado do conhecimento histérico voltado para o pasado." Ao mesmo tem- po, a identidade coletiva daqueles a quem se dirige tal conhecimento histérico se fundamenta nas profundezas da propria realidade histéri- ca em que as forcas espirituais do agir humano atuam e representam 0 verdadeiro contetido de realidade da Hist6ria. 3. Narratividade como dissolugdo de objetividade Mesmo no contexto de uma concepgao objetivista do conheci- mento hist6rico, os clementos constitutivos da subjetividade, para os quais nfo havia lugar na concepgio simplista do cardter puramente objetivo da Historia, nao deixaram de aparecer. Muitos historiadores tinham plena consciéncia de que seu trabalho académico influia na politica — eles até participavam da politica especificamente como historiadores. Para cles, essa participagdo nao constituia um simples adicional externo as suas tarefas académicas, mas eles a encaravam como fator constitutive do préprio trabalho histérico, como elemento formador da estrutura cognitiva interna de sua eserita da Histéria indissociavelmente ligada a racionalidade metodolégica de sua di plina. O termo com que se designava a negacao da objetividade pura e nao afetada pela subjetividade era: partidarismo.”* Droysen polemizou contra a “objetividade eunuca”” de uma Ciéncia Historica que procu- Tava assumir uma posigio de neutralidade frente As lutas politicas que no seu tempo se descnvolviam em torne da identidade coletiva (em CI. a respeito o discurso de posse de Ranke em Berlim: “Uber die Verwandtschatt und den Unterschied der Historie und der Politik”. In: Rank Leopold yon Abhandlungen und Versuche (Simtliche Werke, v. 24). Leipzig, 1877, p. 280-20 Ali é dito, em resumo: “Assim, a tarefa da Historia consiste em apresentat a © cia do Estado a partir das realidades anteriores € tomé-lo compreensivel; a tarefa da politica, no entanta, é a de, apés a compreensio € 0 conhecimento, descnvalve- ae levé-la a bom termo” (p. 288 e seg.). Porteilichkeit, em aleméo (N. T.). Dioysen, Johann Gustav. Historik. Stuttgart-Bad Cannsiati, 1977, p. 236 (v. 1) Edigao histérica feita por Peter Leyh. 0 Narratividade e objetividade na Cidncia Histérica 324 geral: nacional) ¢ nas quais a historiografia representava uma impor- tante estratégia argumentativa. O mesmo valia para Sybel, Gervinus ¢ outros.” Eles nao detectavam qualquer argumento contra a ambigio de objetividade de sua ciéncia n seu partidarismo em favor da luta politica pela formagio de identidades coletivas por intermédio da memoria histdrica. Pelo contrario, eles enxergavam nisso uma condi- cao necessaria da objetividade historica. Para eles, 0 posicionamento dos historiadores na luta politica de seu tempo era a condicao para a abertura da perspectiva dentro da qual as eficientes forgas mentais elaboram a Historia como forma temporal da realidade humana, a tornam visivel ¢ palpavel, isto é, a tornam passivel de uma abordagem cognitiva por parte de sua ciéncia. A concepgio de que objetividade pode ser constituida através de partidarismo esta fundamentada na Filosofia idealista da Histéria, que identifica as forgas motoras mentais no interesse histérico dos histori- adores com as forcas mentais do agir hamano que constréem Histéria como realidade temporal da vida humana. A concepcio marxis leninista de objetividade através de partidarismo esta comprometida com uma Filosofia de Histéria e uma Teoria do Conhecimento seme- Ihantes. Partidarismo na luta de classes constitui aqui condigao neces- sdria para um conhecimento objetivo da sociedade humana em geral ¢ de seu desenvolvimento histérico em particular. Nas duas concepcdes de objetividade, porém, tanto na “burguesa” quanto na marxista, nem todo partidarismo conduz a objetividade, e sim apenas aquele sabre o qual se reflete, no qual os historiadores ulilizam de uma maneira es- pecial as possibilidades cognitivas do espirito humano: cles generali- zam seu ponto de vista de tal forma que, no contexto politico de sua obra, conseguem integrar os diversos interesses conflitantes num tni- co interesse abrangente. Analogamente, as diferentes perspectivas decorrentes de posicionamentos diversos sio integradas numa tnica perspectiva abrangente. Dentro desta perspectiva, a transformacio do mundo humano no passado indica uma diregio politica que pode ser seguida em direg&o ao futuro. O reconhecimento dessa perspectiva ae * Sybel. Heinrich, “Uber den Stand der neveren deutschen Geschichtsschreibung” (1856). In: Sybell, Heinrich. Kleine historische Schrifien (1863). 3. ed., Stuttgart, 1880, p. 355 ¢ segs. Gervinus, Georg Gottfried. “Grundziige der Historic” (1837). In: Gervinus, Georg Gottfried. Schriften 2ur Literaur. Betlim, 1962, p. 49-103 (editado por G, Erler), Cf. Risen, Jém. “Der Historiker als ‘Parleimann des Schi- cksals’ — Georg Goitfried Gervinus”. In: Risen, Konfigurationen..., p. 157-225 322 Esiudos Ibero-Americanos, XXI{2) — dezembro, 1998 abrangente © da diregdo do desenvolvimento possibilita aos historia- dores superar o partiderismo cego na luta pelo poder em seu contexta presente, neutralizando essa Iuta através de uma orientagio comum das partes. Na concepeao historica classica da Ciéncia Hist6rica esse posicionamento abrangente ¢ a perspectiva que dele decorre foram concretizados na nagio, que, com maior ou menor énfase, era inter- mediada pela idéia de humanidade como principio de comunica internacional. Dentro desse modo de pensar, 0 conhecimento histérico podia ser entendido como um processo mental com duas faces: uma face objeti- va, que se refere as vivéncias do passado tal qual elas s\ apresentam nos residuos, isto é, nas fontes, e uma face subjetiva, que se refere aos problemas de orientagio da vida pratica no presente. A uma dessas faces corresponde 0 objetivismo da critica das fontes e ao outro o subjetivismo da participacao dos historiadores na luta politica do pre- sente em torno da identidade coletiva no ambito da memiria hist6rica. As duas faces sto intermediadas pela opera cognitiva da interpre- tagao historica. S6 através da interpretacdo é que as informagées segu- tas sobre as vivéncias obtidas por intermédio da critica as fontes ad- quirem sua forma especificamente his| ae sao integradas na cs- trutura lingiifstica de uma narragao historica, dentro da qual podem exercer seu papel na orientacao cultural. Como operacio metodolégi- ca da pesquisa hist6rica a interpretacio representa a objetividade, Mas, por outro lado, ao representar uma perspectiva histdrica na qual a vivéncia do passado est relacionada a problemas de orientagao do presente, a interpretacio traz, ao mesmo tempo, a subjetividade como contribuigao constitutiva do conhecimento para dentro da construgao essa narragio. Objetividade € subjetividade sao duas faces da mesma coi m essa orientacio bidirecional a interpretagio histérica, como operagdo cognitiva decisiva da Ciéncia Histérica, se apresentava am- bivalente ¢ diibia. No decorrer do seu desenvolvimento e na reflexio tedrica e metodolégica sobre as bases do conhecimento histérico sempre de novo se encontram duas tentativas diferentes para eliminar essa ambivaléncia € as diividas que ela originou: 1. Uma abordagem objetivista procurou direcionar a interpretacao hist6rica para uma forma de conhecimento na qual a subjetividade dos historiadores (isto €, seu interesse no passado) pudesse ser superada ou neutralizada através de uma determinada concep¢ao de Historia. Narratividade e objelivicade na Ciénote Historica 323 Essa concepgio colocava a transformagao temporal e o desenvolvi- mento do mundo humano no passado em categorias de uma situacao empiricamente dada, que pode ser apreendida através de um conheci- mento que é verdadeiro independente de qualquer interesse pratico, de qualquer ponto de vista e de qualquer partidarismo. Muitas vezes os historiadores buscavam a estrutura cognitiva dessa Histéria “objetiva” nas Ciéncias Sociais ¢ ambicionavam, juntamente com as ambigées dessas ciéncias, seguir as pegadas da légica das Ciéncias Naturais, e com isso participar de sua eficiéncia e (mais tarde) também de seu presifgio cultural. Através desse procedimento, os historiadores pre- tendiam ter assegurado, no campo epistemoldgico, um sélido carater cientifico para a Ciéncia Histérica. Exemplos desse tipo de estratégia so as tentativas de Lamprechi de superar o Historismo através de uma nova forma de Ciéncia Histérica entendida como Ciéncia Social; tentativas semelhantes encontramos no inicio da Fscola dos Annales, e naturalmente também no marxismo e nas diferentes concepgoes positivistas; todos eles tentaram elevar a Histéria ao “nivel de uma ciéncia”.” 2. Na outra estratégia, a interpretacéo histérica € reconstruida epistemologicamente de tal forma que suas raizes na participagao pratica e nos interesses dos historiadores na vida de seu presente sio aceitos, ¢ com isso se admite um inevitével elemento de subjetividade. Ao mesmo tempo, porém, se da destaque as regras metodoldgicas ¢ aos instrumentos tedricos da interpretagao histérica como garantia de validade intersubjetiva do conhecimento histérico. O exemplo mais conhecido dessa estratégia é representado pela interpretagao de Max Weber sobre a objetividade ¢ sua metodologia dos tipos-ideais.” A concepgio objetivista do conhecimento histérico perdeu sua credibilidade. Sua fungio ideolégica nao pdde mais ser ignorada: eva muito facil apontar para os interesses subjetivos e a luta politica que se escondiam por trés da Histéria objetivada. Assim, objetividade como regra constitutiva da Ciéncia Histérica se tornou bastante se- cundaria e foi substituida por narratividade como principio do conhe- cimento e da consciéncia histéricos dentro da discussio metodoldgica da Historik, Narratividade é uma concepgio do pensamento histérico 2! Droysen, Hisiorih, p. 451. 2 Weber, Max. “A objetividade do conhecimento nas Ciéncia ¢ na Politica Sociais In: Weber, Max. Sobre a teoria das Ciéncias Sociais, Lisboa, 1979, p. 7-111. 324 Estudos loero-Americanos, XXIV(2) - dezembro, 1998 que explicita sua relagéo constitutiva com a pritica cultural da mem6- tia e da formagao de identidade coletivas. Ela mostra que 0 conheci- mento hist6rico, por intermédio de sua forma narrativa, se encontra numa relag&o constilutiva com a vida pratica e que ele apresenta pe- culiaridades em relagdo a outros tipos de conhecimento. A interpreta- cao hist6rica esté basicamente comprometida com a seguinte forma ela deve enquadrar a informagio empiricamente segura sobre 0 passa- do em uma narragao, transforma-la em Historia. Somente sob essa forma a informagao sobre 0 passado é especificamente “histérica” e somente sob essa forma 0 conhecimento hist6rico pode exercer sua fungao cultural. O conhecimento histérico que é adquirida através do procedi- mento cognitivo que é a pesquisa metodologicamente regulamentada deve a narratividade qualificagGes que, no senso comum, sao conside: radas como negacio evidente da objetividade: a saber, retrospectivi- dade, perspectividade, seletividade e particularidade. Retrospectividade significa que 0 acesso a vivéncia do passado é deicrminado por projegdes do futuro que tendem a ultrapassar o hori- zonte dessa vivéncia do passado. A retrospectividade do pensamento histérico € como que a perta aberta através da qual elementos nao- empiricos, interesses subjetivos, normas e valores, esperancas ¢ me- dos entram na relagao entre passado e presente, exercendo assim uma influéncia sobre a estrutura cognitiva do pensamento histérico que é determinada pela racionalidade metodolégica. Perspectividade convalida a relagio constitutiva entre passado € presente representada na Historia, ela constitui o amalgama da pers- pectiva histérica com os problemas praticos de orientagio que o histo- riador compartilha com seu tempo. Ela determina que o sentido e 0 significado histéricos do passado dependem da posigao dos historia- dores na vida social. Seletividade designa as conseqiiéncias da retrospectividade no que se refere ao contetido vivencial do conhecimento histérico. S6 determinado tipo e determinadas quantidades de informagdes exis- tentes nas fontes sio relevantes para a pesquisa, isto 6, s6 aquilo que * Cl. Flissmann, Klaus. “Historische Formungen. Dimensionen der Geschichtsdars- tellung”, In: Piissmann, Klaus & Griitter, Heinrich Theodor & Risen, JUm (eds.) Historische Fuszination. Geschichtskultur heute, Colénia, 1994, p. 27-44, em es- pecial, p, 32-35, Nairatividade e objetividade na Ciéncia Histérica 325 corresponde aos elementos subjetivamente dados de sentido ¢ signifi- cado do passado para os problemas de orientagio do presente. Os ctitérios seletivos provém de normas e de valores que conferem senti- do ¢ significado ao passado e com isso o transformam em Historia. Somente no ambito desse tipo de atribuigéo de sentido e de qualifica- gao de significados 0 passado pode ser reconhecido como Histéria. Particularidade refere-se aos limites de acesso da interpretacao hisidrica 4s vivéncias do passado. Ela liga de forma incisiva 0 conhe- cimento histérico aos objetivos de criagao de identidade atrav mem6ria historica. Como a identidade é fundamentalmente particular ~ ela sempre apresenta uma diferenciacdo em relacdo a outros —, tam- bém o conhecimento histérico como reflexo criador da constituicio de identidade sempre € particular e exige, por isso, uma pluralidade de aproximagGes ao passado. Por isso ela corresponde a pluralidade de identidades © de dimensdes de identidade € aos interesses € diferen- ciagdes da vida pritica que lhe correspondem. Através de sua retrospectividade, perspectividade, seletividade e particularidade o conhecimento histérico participa do discurso cultu- ral, através do qual se procura obter elementos comuns e elementos diferenciais como resultados fundamentais da orientagio cultural no mundo humano. Isso € vilido sobretudo para relagdes sociais & para dominagio politica. Pode-se falar, por isso, de um principio de comu- nicatividade, que estatui o conhecimento histérico como elemento desse discurso cultural. Ele organiza 0 discurso académico no con- texto politico publico como parte da luta cultural pelo poder. Em sua extensio comunicativa o pensamento histérico é determinado por poder e dominagio. Fle os reflete da forma como a meméria histérica percebe © interpreta 0 mundo humano. Somente no contexto dessa comunicagio, a Histéria, como passado presentificado, recebe vitali- dade © poder como parte da vida presente. Se a gente confrontar a objetividade hist6rica com essa integrago inevitdvel da Histdria na vida pratica dos homens, ela se transforma praticamente em sen Oposto e aparece como meio cultural da luta politica pelo poder com a forga simbolizadora da cultura. Qualquer histéria da historiografia constitui um comprovante empirico para esse papel da Ciéncia His rica.4 Isso € mostrado muito claramente (com uma tendéncia decididamente anti- objetiva) por Novick, Peter. That noble dream. The “objectivity question” and the 326 Estudos ibero-Aimenicanos, XxXIV(2) — dezembre, 1998 Existe um conceito-chave na discusso mais recente da Historik que indica para esse recuo da objetividade do campo da Ciéncia His- {orica (ac menos na perspectiva da reflexao meta-hist6rica sobre os principios constitutivos do conhecimento histérico): ficcionalidade. Ficcionalidade € 0 contra-conceito de objetividade no contexto se- mantico de uma tcoria positivista do conhecimento. Objetividade tem a ver, em termos epistemoldgicos, com seguranga empirica das infor- macoes obtidas através de operagées de pesquisa criticas em relagio fontes. Essas informagdes sao constituidas pelos assim chamados fatos: elas dizem que num determinado momento, num determinado. lugar, algo aconteceu de determinada forma, por determinadas razdes. Um fato € uma resposta.as perguntas “~ quando? — onde? — o qué? — como? — por qué?” Tal fato nao possui nenhum sentido histérico es- pecifico em si mesmo, mas s6 0 adquire num relagio temporal e si- multaneamente semantica com um outro fato. Essa relagio se concre- tiza através da interpretagao hist6rica. Para concretizar essa historiza- cao dos fatos a interpretagio histérica utiliza principios de sentido que tém um status ontologico totalmente diferente do que os préprios faios, Comparados com a pura facticidade do contetido informativo das fontes, eles constituem algo mais ¢ algo diferente do que © pura- mente factico dentro da relagao narrativa temporal, que s6 entio con- fere aos fatos sua qualidade especificamente histérica. Para designar essa diferenga, esse outro e esse plus, utiliza-se 0 termo ficcionalida- de. Como a interpretagao apresenta as relagdes especificamente histé- ticas entre os fatos em uma forma narrativa, ela, como processo cog- nitivo, esté muito préxima do processo de narracaéo de uma histéria. Também isso se exprime através do termo “ficcionalidade”. O proces- so criador de sentido da interpretagdo historica aparece sob o dominio dessa categoria como “um ato essencialmente poético”,* aproximan- do-se na sua esséncia da Literatura ¢ das Artes Plasticas.* Ficcionalidade designa, portanto, 0 status ontoldgico ¢ epistemo- ldgico daqueles elementos do conhecimento histérico e da escrita da American Historical Profession. New York & Cambridge, 1988. Cf. a respeito Waechter, Mathias. “Die Objektivititsfrage und die amerikanische Geschichtswis senschafl. Zur Debatte um Peter Novicks Buch”. GWU, n. 44, 1993, p. 181-188, * White, Hayden. Meta-Histéria: a imaginagiio histérica do século XIN. Sio Paulo, 1995, p, 12. ® Peter Burke escreveu sobre essa quesido numa perspectiva histérica em “Ge: chichtstakten und Geschichtsfiktionen”. Freibeuter, n. 62, 1994, p. 47-68. Narratividade e objetividade na Ciéricia Histérica 327 Histéria que vao além da pura facticidade do contetido informativo das fontes. O conceito s6 faz sentido sob o pressuposto inquestionado de uma epistemologia positivista. (O cerne dessa epistemologia é 0 de que somente fatos de facticidade pura de uma informagao sao “reais”. Tudo o mais €, conseqiientemente, algo diferente, isto é, “ficcional”). O termo ficcionalidade €, ao mesmo tempo, responsivel por uma con- cepcio amplamente difundida do método hist6rico que se restringe ao mecanismo e 4 tecnologia da erftica das fontes. Tudo aquilo que vai além desse procedimento metodolégico do conhecimento histérico passa a ser nao mais “racional”, mas algo diferente, isto ¢, ficcional. A operacio mental que transforma a informagao das fontes em uma segiiéncia narrativa com sentido ¢ significado, em uma narrativa his- térica, pode ser identificada como uma operagao do narrar. A Histo- rik, que pergunta pelos principios dessa operacao, vé-se, entao, forga- da a ir além da metodologia tradicional, que insiste (restrita a critic das fontes) na objetividade, indo até a Poética e a Retérica da escrita da Historia e da representacao histérica, que insiste na subjetividade. Quem poderia ficar surpreso se agora os principios constitutivos da sriagdo do sentido histérico passam a ser identificados como lingitis- ticos € estéticos? Essa poctizagio do conhecimento histérico esta intimamente rela- cionada com falta de uma metodologia da interpretagio hist6rica.”” A Historik nao se da conta de que a Ciéncia Historica continua a empre- gat modelos interpretativos teoricamente mais ou menos explicitados quando alinha os fatos obtidos nas fontes dentro de uma relacao hist6- rica carregada de sentido.” O processo poético de criagio de sentido narrativo inclui, no minimo, procedimentos cognitivos que estio comprometidos com as regtas metodolégicas da pesquisa histérica. A escrita da Histéria como processo do pensamento histérico que se distingue da pesquisa (mesmo que ambas estejam relacionadas de forma indissocidvel) nunca foi totalmente deixada de lado na reflexio tedrico-histérica da Ciéncia Historica, sempre que se tentava legitimar 27 Essa deficiéncia jd estd presente no petiodo-auge da autocompreensio cientffica da comparar as passagens mais significativas do Lelirbuch de Ber- torik de Droysen (Bernheim, Ernst. Lehrbuch der historischen Methode [1889] — 5 € 6 A: Lehrbuch der historischen Methode und der Ges- chichtsphilosophie. Leipzig, 1908 [reimpresso em New York em 1960]. Droysen, Historik). Risen, Jém. Rekonstruktion der Vergangenheit. Grundziige einer Historik Il: Die Prinzipien der historischen Forschung. Géttingen, 1986. 328 Estudos lbero-Americanos, XXIV{2) - dezembro, 1998 suas ambigées de objetividade, sua autocompreensao e€ seu prestigio como Ciéncia? Mas ela quase sempre foi vista na relagao, s como dependente, da racionalidade metodologica da pesquis ca € seu papcl constitutive na tentativa de criar um sentido para a vivéncia com © passado, que estava na linha de frente da reflexao sobre a escrita da Historia na Retorica, deixou de ser considerado. Agora acontece o inverso; os meios racionais de pesquisa — quando. ainda tematizados — aparecem como dependentes de procedimentos lingiiisticos basicos de constituigéo de sentido ao se transformar as informagées das fontes em uma histéria com sentido. Como se pode evitar a ambivaléncia desse ofuscamento recipreco entre racionalida- de € estética? 4 Aproximacio a um novo conceito de objetividade A fim de fazer retornar ao pensamento hist6tico as ambigGes de verdade relacionadas com a concepgio de objetividade, é necessario esclarecer primeiramente 0 significado do termo objetividade. Por objetividade pode-se entender duas coisas. Em primeiro lugar, trata-se de uma relagio constitutiva do pensamento historico com a vivéncia. Aquilo que é informado na histéria construida na forma de uma narra- cao, seu contetido factico, portanto, nfo pode ser simplesmente. in- ventado, mas sim esta dado e deve ser levado em conta pelos historia- dores com seu carater de algo “objetivamente” dado. As operagdes racionais da pesquisa hist6rica baseiam-se nessa relacdo entre o pen- samento histético e os dados tendencialmente objetivos da vivéncia Na interpretag4o histérica. Vivéncia constitui um limite definitive da istorica: a interpretagao historica nao pode ultrapassar os limites da vivéncia ao fazcr afirmacées sobre 0 que aconteceu no passado, quando, onde, como e por que algo se deu ou nio. Essa rela- go com a vivéncia nao exclui, em absoluto, impulsos constitutivos subjetivos que os historiadores introduzem quando lidam empirica- mente com 0 passado, Cf. Riisen, Jon. Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurl/M, 1990, p. 135 e segs. Sobre o papel constitutive da Literatura e da Estética para proceso de surgimento de uma Hist6ria que se entende como ciéneia ct,’ Fulda, Daniel. Wissenschaft als Kunst. Die Entstehung der modernen deutschen Ges chichtsschreibung, 1760-1860. Berlim, 1996, Narratividade @ objetividade na Ciéncia Histérica 329 Num segundo sentido, objetividade chega a coincidir com esse lado “subjetivo” da interpretagio historica, Nesse caso, objetividade significa uma forma dessa prépria subjetividade, isto €, a validade intersubjetiva da interpretagio historica. Em primeiro lugar, essa ob- jetividade — entendida como intersubjetividade — significa que a inter- pretagao historica nado pode, no processo de interpretagio histérica, empregar de forma arbitraria elementos subjetivos de sentido histérico, ao colocar as informagoes das fontes numa relagio com sentido dentro de uma narragao hist6rica, estabelecendo que a Histéria é uma relacao com sentido entre passado e presente que, tendencialmente, se orienta em direcao ao futuro. Esse sentido de objetividade refere-se 4 relacao da interpretagao histérica com o discurso cultural da respectiva vida social dentro da qual a narragao histérica € gestada € definida, 4 qual ela se refere e dentro da qual ela exerce o seu papel de orientagio da vida pratica. Objetividade significa que a vivéncia hist6rica pode ser interpretada em relacdo a esses trés aspectos (constituicdo, deslinagdo e fungaio pratica), de tal forma que haja bons motivos para aceitar determinada narragio hist6rica e rejeitar outra. Ha bons motives para que aqui se fale de “Razao”: existem principios de interpretagio com os quais todo ¢ qualquer historiadora ou historiador esté comprometi- dao] enquanto ela ou ele quer consirair uma narrag&o histérica que seja valida para além do puro arbitrio ou de um vale-tudo." A ambigao de objetividade que se refere 4 relac&o constitutiva do pensamento histérico com a vivéncia pode ser facilmente fundamen- tada com o recurso as estratégias definidas pela disciplina em sua pesquisa historica. Indubitavelmente, porém, a metodologia histérica € simultaneamente influenciada — sim, até depende — de aproximagoes heuristicas em relagio 4 vivéncia histérica e que incluem elementos constitutivos de subjetividade. Trata-se, nesse caso, em especial, de pontos de vista sobre o sentido da relagio especificamente histérica entre passado € presente. Isso, no entanto, de forma alguma impede que se reivindique, mediante a racionalidade da pesquisa, uma valida- de que nao deixe diividas de que 0 contetdo das informagées busca s basicas de Welsch, Wolf- und das Konzept der transver A respeito do conceito de Razao ef. as considera gang, Vernunft: Die zeitgendssische Vermunjtkritik salen Vernunft. FrankfuryM, 1996. 330 Esiudos ibero-Americanos, XXIV(2) ~ dezernbre, 1898 das nas fontes exerce um papel importante como limite do jogo sub- jetivo na interpretacao histérica.” No que tange ao sentido de objetividade como intersubjetividade as coisas sao diferentes. HA uma questio aberta, e se discute muito se, de forma semelhante, existe uma racionalidade estritamente metodo- logica nos processos através dos quais as informagSes das fontes sao colocadas numa telagio narrativa com sentido de uma hist6ria. Mas nado se deveria esquecer que existem, no minimo, critérios racionais de intersubjetividade que garanlem a consisténcia e coeréncia de uma narrativa histérica. Essa consisténcia deve ser averiguada em relacao aos principios de intersubjetividade como condigao neces: para a plausibilidade ou “verdade” de uma narracao histérica. Para que se possa chegar mais perto dessa verdade ¢ conveniente distinguir entre duas dimens6es de consisténcia de uma narracao his- t6rica: uma tedrica © outra pratica. Coeréncia tedrica refete-se ao modelo de atribuigio de significa- do na interpretagao historica e de sua relagao com o contetido das fontes. A teoria pés-moderna da Histéria tem-se concentrado, princi- palmente, em descrever metdforas como elementos bisicos da consti- tuigao do sentido histérico. Através delas a vivéncia do passado é transformada em uma historia do presente com sentido. A racionali- dade metodolégica da Ciéncia Histérica, no entanto, j4 produziu uma transformagao, sim, uma superagdo de metaéforas em conceitos e teo- rias.° Com uma cenceitualizagao dessas, a interpretacao histérica Appleby, Joyee & Hunt, Lynn & Jacob, Margaret. Telling the thruth about His- tory. New York, 1994. Bevir, Mark. “Objectivity in History”. History and Theory, n. 33, 1994, p, 328-344. Gossman, Lionel. Between History and Literature. Cam- bridge/MA, 1990, Kocka, Jurgen. Sezialgeschichte: Begriff ~ Entwicklung — Pro- bleme. 2. ed., Gdttingen, 1986, p. 40-47 (“Objektivitatskriterien in der Geschi- chiswisscnschaft”). Kosclleck, Reinhardt & Mommsen, Wolfgang & Riisen, Jorn (cds.). Objektivitét und Parteilichkeit, Aufséitze zur Geschichtstheorie. Gottingen, 1975. Cf. Ankersmit, Frank. History and Tropology. The rise and fall of metaphor. Berkeley, 1994, Infelizmente os debates mais centrais no Ambito da Hisforik cessaram. Cf. Kocka, Jurgen & Nipperday, Thomas (eds.). Theorie und Erzuhlung in der Geschichte (Theorie der Geschichte. Beitrige zur Historik, v. 3). Munique, 1979. Kocka, Jiir- gen (ed.). Theorien in der Praxis de Historiker. Forschungsheispiele und ihre Diskussionen. Gottingen, 1977. Meran, Josef. Theorien in der Geschichtswissens- chaft. Die Diskussion iber die Wissenschaftlichkeit der Geschichte, Gotlingen, 1985, x2 Narratividace e objetividade na Ciencia Historica 337 adquire uma certa qualidade que caracteriza sua validade inter subjeti- va. Gostaria de chamé-la sua reconstrutibilidade. Com isso quero, dizer que a interpretagao historica, através de sua conceitualizagao, adquire uma transparéncia e uma clareza que possibilitam que a qual- quer momento a argumentagao que conduz a ela seja passivel de ser testada, confirmada, refutada ou modificada através de uma argu- mentacao superadora. E isso que Max Weber queria dizer com a co- nhecida frase: “Ee continua sendo verdade que uma demonstragio cientifica ¢ metodologicamente correta no campo Gas Ciéncias Sociais — quando quer atingir seu objetivo — deve ser reconhecida como cor- reta inclusive por um chinés”.** Essa transparéncia pode ser traduzida em uma regra metodolégica da pesquisa histérica: a interpretacao deveria ocorrer dentro de um contexto conceitual explicitado. Através de instrumentos conceituais localizados dentro de um formato mais ou menos te6rico a interpretagao histérica adquire um determinado grau de reflexibilidade, que fortalece os elementos de racionalidade expla- natoria no narrar de uma histéria sobre o passado e com isso di ao sentido dessa historia uma forma argumentativa na qual ela é endere- gada 4 competéncia racional daqueles a quem cla é narrada. Os pro- cessos mentais criativos da narratividade histérica adquirem a quali- dade de uma estrutura narrativa e enriquecem 0 jogo mental da cot tituigdo do sentido histérico com as forgas racionais da verificabilida- de através da vivéncia, da coeréncia légica e da forga explicativa, Coeréncia pratica € uma qualidade da narracao histérica através da qual ela se torna plausivel ao cumprir sua fungao pratica de orien- tacao cultural da vida humana.** Mas, é possivel encontrar coerénc. imiersubjetividade — isto 6, sinais de Razdo — nas profundezas da vida humana, onde os interesses, os conflitos, a Ansia pelo poder e a esma- gadora forga da aflig&o para granjear prestigio e reconhecimento soci- al exercem um papel decisivo e onde as imagens do passado s4o con- figuradas de acordo com os fins do presente © as perspectivas com * Weber, loc. cit., p. 23. * Chris Lorenz di esse passo da intersubjetividade tedrica para a pratica dentro de uma argumentagao epistemolégica em favor de um “realismo interno” do conhe- cimente hist6rico, que inclui a dimensdo de valor do significado histGrico. Lorenz, Chris. “Historical kwoledge and historical reality: a plea for ‘internal realism’. History and Theory, n. 33, 1994, p. 297-327. Ci. também Lorenz, Chtis. De con: tructie van het verleden, Ken inleiding in de theorie van de deschiedenis, 4. © Amsterdam, 1994, p, 282 ¢ segs. (tradugao alema: Bine Linfihrung in die Ge- schichistheorie. Colonia, 1997). 332 Estudos Ibero-Americanos, XXIV(2) ~ dezembro, 1998 vistas ao futuro? A resposta € simples e clara: sem elementos discur- sivos de intersubjetividade uma vida humana pritica seria simples- mente impossivel. Estou pensando nos fatores culturais que habilitam seres humanos a resolver seus conflitos de forma pac: enfrentar as vivéncias, convencer-se através de argumentos e no pela violén- cia, desenvolver e aceitar motivos que devem ser arrolades quando se pretende apresentar orientagdes para o Ambito da acao cultural. Esses elementos podem ser especificados com vistas As mais sen- siveis fung6es praticas do pensamento hist6rico: seu papel no proces- so de formagio de identidade pessoal e social. Fm analogia com a racionalidade metodologica que é produzida pela coeréncia tedrica de uma nartagao histérica, existem também uma razao e uma racionali- dade praticas na regulamentacao de difcrengas © tensées no processo de formagao de identidade. Essa raziio pode ser comprovada na luta politica pelo poder e na estratégia conflituosa da formacao de identi- dade como tentativa de atingir um equilibrio vidvel entre autovalori- zagio e reconhecimento social dentro da concepgao da identidade histérica. Existe um meio cultural eficiente para que individuos e grupos possam encontrar seu lugar social em relacao aos outros: estou pensando (nas sociedades modernas) na categoria de igualdade e na concepeao, que The é préxima, de humanidade, que funcionam como regras para lidar culturalmente com as diferengas. Essa categoria constilui uma contrapartida pratica as forcas tedri- cas de construgio de sentido e que confere A narracao histérica a ja citada transparéncia argumentativa. Com a categoria da igualdade pode-se produzir uma tal transparéncia no campo pratico da constru- cao de identidade. Todo 0 moderno sistema de direito ¢ de leis baseia- Se nisso. Isso soa muito tedrico diante dos problemas priticas de que se trata, mas € facil mostrar quio relevante € essa argumentagio abs- trata para a vida pratica. Pois, o que significa falta de intersubjetivi- dade nos processos de construgio de identidade histérica? F a falta do Teconhecimento, uma marginalizagiio, uma relacio assimétrica entre comunidade® ¢ alteridade. lgualdade como idéia reguladora supera essa deficiéncia de intersubjetividade, Mas, para os fins de consirucao de identidade através da memoria historica a igualdade como categoria de intersubjetividade é, em prin- cipio, insuficiente. Ela poe em movimento uma universalidade abs- Gemeinsamkeit, em alemao (N. T.). Narratividade e objetwicace n2 Ciéncia Histérica 333 tata de humanidade como principio de constituicao do sentido histé- tico que se encontra além da multiplicidade de diferengas dentro da qual a cultura concretiza a identidade humana. Nesse sentido, é neces- sario um principio que v4 além e que leve em conta essa multiplicida- de sem abstrair dela, e que leve, portanto, em consideracao os desa- fios da distinedo como procedimento cultural necessario na constitui- cao de identidade. Como toda identidade € particular, intersubjetivi- dade com vistas 4 diferenga de particularidades é uma questio de como essas particularidades podem e devem ser colocadas numa rela- gio recfproca. Uma resposta estaria numa regra que regulamentasse a diferenga entre identidades particulares segundo o principio de que aqueles que estado no jogo devem reconhecer sua diferenga em relacao as outras dentro de si mesmas ¢ que esse reconhecimento deve ser reciproco. A idéia reguladora da intersubjetividade como principio metodoldgico de coeréncia pratica na interpretagio histérica ¢ a do reconhecimento reciproco.” Essa idéia reguladora pode ser aplicada a operagio cognitiva da interpreta¢ao histérica. ‘Trata-se, nesse caso, do cardter perspectivisti- co de toda narracao histérica. Interpretacdo histérica compromete-se entio com uma perspectiva que, ou inclui a diferenca de posigdes na qual se manifestam diferentes identidades, ou que utiliza outras pers- pectivas como complementares sua, relacionadas a outras posicdes. A multiplicidade de posicdes e perspectivas, nesse caso, no constitui mais um argumento contra a objetividade, mas constitui, pelo contré- Tio, Sua concretizagio em vista da necessidade de coeréncia pratica. Essa tese € controvertida. E que se pode tomar a pluralidade de pers- pectivas como negagio estrita de objetividade, desacreditando-a como “noble dream”. Nesse caso, realmente nao existe princfpio regulador no qué tange aos conflitos e coagdes entre perspectivas diversas, mas apenas um “bellum omnium contra omnes* ou um “clash of civiliza- tions”,* que € decidido com as armas da narratividade histérica. No * Cf, Taylor, Charles. Multikulturatismus und die Politik der Anerkenmung. Frankfurt/M, 1993. Riisen, Jom. “Vom Umgang mit den Anderen — Zum Stand der Menschenrechte heute”, dnlernationale Schulbuchforschung, n. 15, 1993, p. 167- 178, Riisen, Jom. “Human Rights from the perspective of an Universal History”. In: Schmale, Wolfgang (¢d.). Human Rights and Cultural Diversity. Burope — Arabic-Islamic World — Africa — China. Frankfurt/M, 1993, p. 28-46. * Huntington, Samuel. O choque de civilizagdes ¢ a recomposicito da ordem mun- dial, Rio de Teneito, 1997. 334 Estudos lbero-Americanos, XXIV(2) - dezembro, 1998 entanto, também existe uma outta concepgio de pluralismo que é determinada pela regra geral da complementaridade, pela critica recf- proca na forma de uma argumentagSo transparente que apresente ra- zOes € que vise 0 reconhecimenito recfproco. Creio que nao ha divida de que somente esta tiltima concepgio de pluralidade pode prevalecer como sensata como objetividade no sentido da coeréneia pritica das interpretacGes historicas. Essa idcia reguladora da coeréncia pratica tem conseqiiéncias para © acesso heuristico 4 vivéncia hist6rica. Esse acesso sempre é viabili- zado através de normas ¢ valores voluntaristas que constituem o sen- tido histérico. Intersubjetividade pratica é um desses valores e ela tem seu eco, sua resposta, na propria vivéncia do passado, ja que Histéria pode ser concebida como um processo através do qual esse principio buscado nas formas ce vida humana, nas conslituigdes, nos sistemas juridicos e no comportamento social. O eco da vivéncia histérica acrescenta A intersubjetividade, en- tendida como coeréncia teérica e pratica de narragdes histéricas, a qualidade de objetividade no sentido de uma relacao verdadeira com a vivéncia. Histéria como vivéncia ndo € algo que seja externo aos su- jeitos que narram. A vivéncia histérica simplesmente nao esti sé ob- jelivamente presente nos residuos do passado com que os historiado- res lidam em suas pesquisas nas fontes. A Iist6ria ja esté dada na propria subjetividade da consciéncia histérica®’, ¢ isso mais do que nos simples residuos, pois os proprios sujeitos, suas formas reais de vida, nao sao outra coisa do que o resultado de um longo desenvolvi- mento temporal. Antes de se comegar a pensar em Historia ¢ antes que se desenvolva uma meméria sobre ela, ela ja est af — dentro dos pré- ptios sujeilos do pensamento e da memoria histéricos e de seus mun- dos de vida. Antes de o passado ser passado como passado — ¢ essa & uma condicao necess4ria para a construgio cultural de orientagao — o passado ja € presente. FE nesse presente do passado convergem a inter- subjetividade como coeréncia pratica ¢ a objetividade no sentido de ter uma relagio com a vivéncia. Nessa sua condigéio de algo dado o passado ainda nao se tornou historia; ele ainda nao € passado; como * Cf. a respeito sobretude Cart, David. “Narrative and the real world: an argument for continuity”. In: History and Theory, n. 25, 1986, p. 117-131. Carr, David. “Die Realitit der Geschichte”. In: Miiller, Klaus E. & Rusen, Jom (eds.). Historische Sinnbildung — Problemstellungen, Zeitkonzepte, Wahrnehmungshorizonte, Dar- stellungsstrategien. Reinbeck, 1997. Narratividade © objetividacte na Ciencia Historica 335 histéria e passado — pode dizer-se — ele é invisivel. Para tornd-lo visi- vel, deve-se estabelecer uma distingao entre as trés dimensdes de tem- po € as operacgdes mentais de consciéncia histérica devem ser postas em movimento. O resultado desse trabalho constitui entéo a repre- sentacio histérica do passado. Esse, no entanto, sé pode cumprir suas fungdes de orientagao se nao perder de vista a Hist6ria invisfvel que somos nés mesmos. Sé uma representagéo histérica do passado que leve mentalmente em conta essa Histéria invisivel possui a qualidade da objetividade, no qual o aspecto da vivéncia e 0 aspecto da interdis- ciplinaridade estio sintetizados e com isso também estio sintetizadas as dimensées tedrica e pratica da constituigio do sentido histérico na relacao entre passado e presente. A ambicao de objetividade contida nos procedimentos disciplina- res do conhecimento histérico muitas vezes € encarado como se tives- se algo de necrolégico. Muitos historiadores pensam que sua contri- buicao para a verdade s6 pode ser concretizada quando neutralizam sua t Fe presentayas do passado frente as lutas da vida de secu tempo. idade, no entanto, é um absurdo. Nenhuma narragio hist6- rica é possivel sem uma perspectiva e sem os correspondentes crité- trios desse sentido. Esses critérios vém da orientagéo cultural viva ¢ cficaz da vida pratica. Eles podem ter adquirido uma forma conceitual na qual uma boa parte de sua vitalidade se tenha perdido em favor da facticidade“' da vivéncia histérica, mas mesmo assim eles carregam consigo tragos dessa vida. Dessa forma, a objetividade histérica néo exclui os tragos coloridos da vida pritica na representagao historica, mas pode ser entendida como um principio pelo qual esses tragos sac organizados na sua vitalidade. EmogGes, imaginagéo, poder ¢ vontade sio elementos necessdrios da constituigio do sentido histérico.” A ambicao de obdjetividade nao Ihe rouha a vitalidade, mas pode fortale- cer a vivéncia e a intersubjetividade na orientacdo cultural. Se o pen- samento hist6rico oferecer isso, pode ajudar a tornar o fardo da vida um pouco mais suporiével. Gegestindlichkeit”. © autor sugeriu como alternativas: “erp sche Gegebenheit”. “faktische Vorgegebenheit”, “Dinghaftigheit” ou “Seinsweise eines Dinges” ~ dai a opgio por “facticidade” (N. T.) Cf. a esse respeito Schdrken, Rolf. Historische Imagination und Geschichisdi- daktik, Paderborn, 1994. Além disso a exposicio rica em material de Borties, Bo- do von, Imaginierte Geschichte, Die biographische Bedeutung historischer Fikti onen und Phantasien. Col6nia, 1996.

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