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Te se LNT (ERC CRTC tC) Tomas ee ON een RL EAE) COUT R CLs Cran ira POC u eu ke aventura de se descobrir 0 Brasil, WESC Cues PC oom ake} RT Nout ret E e c eee ey aiuto) nacionalista autoritario PETE Me Tar ue IC} passado ov ainda tem incidéncia na vida sociopolitica brasileira? Boris Fausto analiso pensamento autori- CUO. Te iG Lei on Len es ‘mois representativos ¢ a partir do con- texto histérico que favoreceu a emer- géncia de uma ideologia e de rogimes Coe COSTS OR acs cla vwre-docente em ciéncia politica pela USP. UZE) Bley A-l ete) el icoe Tiwi OSASEIL BORIS FAUSTO Copyright © 2001, Boris Fausto Copyright © 2001 desta edigo: We valea babe Uh rua México 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 240-0226 1 fax (21) 262-5123 ‘e-mail: jee@zahat.com.br site: worw.zahar-com.br Todos os direitos reservados. [A reprodugsa nao-sutorizada desta publicagio, ‘no todo ou em parte, constitui violagio do copyright. (Lei 9.610) Capa: Sicgio Campante Mstragio da capa: Arquivo Clemente Mariani (cM023), “Arquivo Gustavo Capanema (6¢267), Arquivo Augusto do Amaral Petcoto (aArO29). CPDOC/ECY. Vinheta da colegio: ilustrasio de Debret Composigio cletOnica: TopTextos Ediges Graficas Ltda. Tmpressio: Cromosete Griliea e Editora CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Fausto, Boris, 1930- F222p —O pensamento nacionalista autoritério: (1920- 1940) / Boris Fausto. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001 (Descobrindo o Brasil) Inclui bibliografia ISBN 85-7110-600-2 1, Autoritarismo. 2. Autoritarismo ~ Brasil. 3. To- talitarismo. 4. Toralitarisme — Brasil. I. Titulo. TI. Série. DD 321.9 00-1488 DU 321.64 | | | Sumario Introdugio_ 7 Constituicao do pensamento autoritério 20 Visao do processo histérico 30 Autoritarismo e racismo 38 Critica do presente e propostas de mudanga 45 Conclusies 66 Cronologia 74 Referéncias e fontes 76 Sugestoes de leitura 79 Sobre 0 autor 81 Introdugao O tema deste pequeno livro pressupée 0 esclarecimen- to prévio de alguns pontos. Em primeiro lugar, deve- mos tragar 0 conceito de autoritarismo, distinguindo-o de outros conceitos, em especial 0 de totalitarismo. Depois, € necessério tentar analisar os casos distintivos conctetos, tanto no Brasil quanto no mundo em geral. A ctiagao do conceito de totalitarismo nasceu da necessidade de identificar a nova forma de regime que surgiu no século XX, nao-enquadravel nas an- tigas designacées de “despotismo” ou de “tirania”, de tal modo que a palavra nasceu da coisa. A coisa corresponde & instituigio de regimes que visam a sujeitar a sociedade nos moldes de um Partido-Es- tado, cujo chefe é fundamental, seja no sentido da referida constituigio do Partido-Estado, seja no es- tabelecimento de lagos emotivos com as massas, a partir de uma figura carismatica. Daf a afirmagio de que os regimes totalitérios tém caracterfsticas revoluciondrias, ao contrario do tradicionalismo, ou das varias formas despéticas. BoRIS FAUSTO Por sua vez, o regime autoritério — produto tam- bém das condigdes politicas vigenzes no século XX — caracteriza-sc, negativamente, por menor investimento em todas as esferas da vida social; pela inexisténcia de uma simbiose entre Partido e Estado, sendo 0 primeiro, quando existente, dependente do siltimo; pelas restri- es & mobilizacio das massas. Um dos tracos basics do autoritarismo consiste na relativa independéncia que preserva a sociedade em relagio ao Estad. autonomia de algumas instituigGes, em especial as religiosas, e de uma esfera privada de pensamento e de crenga, embora apenas tolerada. O autoritarismo tende aser mais conservador, ligado 4s tradig6es do passado, enquanto os regimes totalitarios buscaram, nesse mes- mo passado, seus elementos miticos ¢ herdicos, como €0 caso das lendas germinicas sobre os heréis guerrei ros, ou dos tempos gloriosos do Império e da pax romana. Passando do conceito a pritica, convém ressaltar que nao ¢ fécil distinguir entre regimes totalitdrios ¢ auto- ritdrios. Isto porque, como diz Frangois Furet, em ambos os casos, lidamos com tipos ideais, cujos tragos nao cstéo integralmente presentes nas varias situacoes coneretas. Se percorrermos os principais autores que discu ram, na pratica, a natureza dos regimes antidemocritti- cos que imperaram no século XX, constataremos que a 18. (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO existe apenas uma unanimidade: a de conferir ao na- zismo a caracterizagao de regime totalitdrio. A propé- sito do fascismo italiano, um bom ntimero de autores sustenta que, se ele teve caracterfsticas de um movi- mento totalitdrio antes da tomada do poder, acabou se transformando em um regime autoritério mobilizador. Com relagao & Unido Soviética, cabe lembrar a ressalva, ao que me parece solitaria, de Eric Hobsbawm. Para o historiador inglés, é no minimo duvidoso falar-se nesse caso em totalitarismo, pois o regime nao sé nfo teria exercido 0 controle do pensamento como teria despo- litizado a cidadania, em grau surpreendente. E obvio que a dificuldade em se identificar os regi- mes totalitdrios tem incidéncia na identificagao dos regimes autoritérios. Estes, além disso, podem ser dis- tinguidos por suas caracterfsticas mais ou menos con- servadoras, constituindo um amplo agrupamento em que se incluem, com marcas préprias, 0 salazarismo, © franquismo, o regime de Pilsudski na Poldnia, o breve governo de Dolfuss na Austria etc. No caso brasileiro, a distingao entre totalitarismo autoritarismo foi afirmada claramente, tanto no terre- no das idéias, quanto no da agao. Em um livro desti nado a ressaltar as virtudes do autoritarismo ¢ do Estado Novo, intitulado O Estado autoritdrio e a reali- dade nacional, um dos mais significativos ideslogos autoritérios — Azevedo Amaral — concentrou, em BORIS FAUSTO termos candentes, a principal diferenga entre os dois regimes, nas relagdes entre a pessoa individual ¢ Esrado. Vale a pena ouvi-lo: © Estado autoritério nao é, como se poderia julgar & primeira vista, aquele em que a organizagao estatal abrange na sua esfera de atuagéo © conjunto da vida coletiva da nagio ... O que define o totalitarismo, no sentido peculiar que 2 essa expresso Ihe deu o fascis- mo, nio é portanto a extenséo do poder estatal, mas a natureza compressiva, absorvente, aniquiladora da personalidade humana, que imprime as instituig6es fascistas um aspecto repelente, tornando-as téo incom- pativeiscom todos que prezam a dignidade do espirito Em contraste, ainda nas palavras de Azevedo Amaral, “o Estado autoritério baseia-se na demar- cago nitida entre aquilo que a coletividade social tem © direito de impor ao individuo, pela pressao da maquindria estatal, ¢ o que forma a esfera in- tangivel de prerrogativas inaliendveis de cada ser humane”. “‘Também escrevendo no curso do Estado Novo, em O idealismo da Constitui¢do, Oliveira Viana demarcou as esferas do totalitarismo ¢ do autoritarismo, manifes- tando-se contra a criagéo de um partido tinico no Brasil, dadas as caracteristicas psicossociais de sua po- pulagac +10+ (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Nao hé em nosso povo, na sua psicologia coletiva, condig6es para a constituigao de uma mistica viva € organica, uma mistica que se apodere da alma nacional a mova em um sentido nitidamente determinado, para um objeto preciso — como o nacionalismo im- petialista dos italianos de Mussolini ou o nacionalismo racista dos alemées de Hitler, Uma pequena coorte ou falange de homens de elite poderd, aqui, tomar-se de uma mistica e agir no sentido dela; nao um partido, mesmo que ele represente uma minoria da Nagio eseja © tinico partido militante. Mais adiante, Viana oferece a formula ideal para as condigées brasileiras dente tinico. Isto é, do Presidente que nao divida com ninguém sua autoridade; do Presidente soberano, exer- cendo, em suma, seu poder em nome da Nagao, s6 a ela subordinado e sé dela dependente.” A insisténcia na diferenciago entre regimes totali- tdrios e autoritdrios nao ocorreu apenas em conseqiién- cia de uma espécie de maturagao ideolégica, ou da influéncia de pensadores europeus, mas foi também uma imposi¢a0 dos acontecimentos politicos. A im- plantacao do Estado Novo, em novembro de 1937, por meio de um golpe que transformou Getilio Vargas de presidente da Reptiblica em ditador-presidente, impul- sionou os idedlogos do regime a estabelecer distingées, “Do que precisamos é do Presi- com objetivos praticos. Tratava-se nao sé de esclarecer “We BORIS FAUSTO os métodos ¢ as finalidades da ditadura estadonovista como também de separar 0 governo Vargas do movi- mento fascista, encarnado pela Alianga Integralista Brasileira (AIB). Note-se, de passagem, que, apés uma aproximagio ditada por interesses comuns, entre 0 governo ea AIB, Vargas negou o acesso dos integralistas acargos ministeriais — o lider Plinio Salgado almejava principalmente o Ministério da Educago — e cortou as asas das mobilizagées fascistas. Como resultado, em margo de 1938, um grupo desesperado de integralistas tentou, sem éxito, desfechar um golpe contra o Estado Novo. Além dessa circunstancia, convém notar 0 contexto das relagées internacionais. Apesar da atitude franca- mente germandfila de alguns de seus expoentes — 0 caso mais tipico € 0 do entao general Dutra —, 0 govern Vargas nunca apoiou abertamente nazi-fas- cismo, seja no plano doutrinario, seja na pratica. No Ambito interno, a “germanizagio” do sul do pais, onde se fundara um partido nazista e onde proliferavam escolas ¢ uma imprensa de Iingua alemé, foi duramente reprimida, a ponto de dar origem a queixas do embai- xador alemao. De fato, 0 Estado Novo equilibrou-se por algum ‘tempo entre dois campos, até a entrada do Brasil na guerra, a0 lado dos Estados Unidos ¢ da Inglaterra, em agosto de 1942. Marcadas as diferengas entre autoritarismo e fas- cismo, passemos a examinar 0 contexto sociopoli- +12- (© PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO. tico da emergéncia € ascensio de um pensamento autoritério no Brasil, com implicagSes no terreno politico. Como se sabe, no mundo europeu, o pres- ugio das idéias “revolucionétias” de direita ¢ a im- plantagao de regimes autoritérios ¢ fascistas tiveram origem nas novas realidades que se desenharam na Europa, apés a Primeira Guerra Mundial. O res- sentimento dos derrotados — a Alemanha em pri- meiro lugar — ¢ 0 espectro das mobilizagées ope- rétias ¢ do comunismo na Ikélia ¢ na Alemanha facilitaram a circulagao € o prestigio das ideologias de direita, em seus diferentes matizes. Apenas a Inglaterra e alguns poucos pafses de menor expresso estiveram imunes a essa vaga ideolégica, gragas ao enraizamento de suas instituigbes democré- ticas. Na Franga, a Revolugao Francesa, que sacudiu 0 pafs ¢ o mundo, universalizando os ideais de liberdade © igualdade, teve como resposta o surgimento de cor- rentes tradicionalistas ou revoluciondrio-conservado- ras. E 0 caso de pensadores como Bonald ¢ Joseph de Maistre (que alids nao era stidito francés), e sobretudo de Charles Maurras. Maurras foi a figura principal da “Action Frangaise”, fundada em 1889, movimento que teve papel importante nas mobilizagées de direita, 20 longo das primeiras décadas do século Xx. Muito in- fluente entre os autoritérios argentinos, Maurras nao eve entretanto influéncia tio pronunciada em nosso meio. 13+ BORIS FAUSTO No caso de um pajs periférico como o Brasil, a emergéncia de idéias autoritérias se deu, nos anos 1920, na vigéncia de um regime oligérquico-liberal, que ganhou forma com a proclamacao da Reptiblica (1889). O liberalismo foi associado as praticas oligdr- quicas, que pressupunham a fraude eleitoral, a escassa participacao politica da populacao ¢ 0 controle do pais pelos grandes estados, enfraquecendo 0 poder da Unido. Correntes criticas, com contetido ¢ objetivos diver- sos, opuseram-se ao sistema politico dominante. Com o risco de incorrer em simplificagdes, poderfamos iden- tificar, em grandes linhas, a corrente de esquerda, inspirada na Unido Soviética, a liberal-democratica, tendo por objetivo instaurar instituigées verdadeira- mente representativas no Brasil — pela via do voto secteto, da constituigéo de uma Justica Eleitoral ¢ da educaso do povo — , ea corrente da direita, com suas ramificagSes, que nos interessa de perto. Uma questao prévia deve ser enfrentada, apesar da dificuldade da resposta. Serao “direita” € “esquerda” nogdes que fazem sentido para diferencar regimes po- Iiticos, tendo portanto uma consisténcia que vai além da retérica? A resposta me parece ser afirmativa, com a ressalva de se fazer algumas qualificagoes. ‘Comecemos lembrando que essas nogdes nao cons- tituem abstragées imutdveis, aplicaveis a qualquer si- tuagao histérica e a qualquer pais. Mais ainda, pelo 114. 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO ‘menos uma parte de seus contetidos transita da direita para a esquerda e vice-versa, o que significa a impossi bilidade de se estabelecer fronteiras rigidas do espectro politico. Tendo em vista essas ressalvas, autores como René Rémond, ao lidar com a questo, preferem falar em “direitas” no plural, distinguindo umas das outras para maior clareza. Rémond introduz pontos de grada- s40 — 0 centro, o centro-direita, 0 centro-esquerda—, recusando um esquema binario que lhe parece nao dar conta da fisionomia das diversas correntes politicas. Passando ao contexto brasileiro, a partir das primei- ras décadas do século XX, para estabelecer uma data, podemos identificar alguns princfpios comuns a um leque de correntes que, por suas concepgées, formam © espectro politico da direita. Os principais deles me parecem ser a defesa de uma ordem autoritéria, a repulsa ao individualismo em todos os campos da vida social ¢ politica, o apego as tradigées, o papel relevante do Estado na organizagao da sociedade. Esse recorte exemplificativo deixa portanto de incluir a ideologia liberal, mesmo a mais conservadora na “familia da direita’, dadas suas concepgées sobre a soberaniae a representacao. O nacional mo merece uma consideragao especial, tendo em vista a designagio de nosso objet lismo autoritério. As razdes de sua auséncia entre os elementos que constituem o campo da direita no Brasil devem ser explicitadas. Convém lembrar, desde logo, naciona- +15 + BORIS FAUSTO que a ideologia nacionalista representou_na Europa ocidental um claro exemplo de passagem de um ele- mento definidor que circulou de um campo para ou- tro. A idéia de nagao integrou as correntes revolucio- nérias européias, entre as iltimas décadas do século XVII € meados do século XIX, que lutavam contra 0 absolutismo mondrquico. Os ideais nacionais associa- vam-se assim aos novos princfpios de liberdade e igual- dade que deveriam defini as relagées entre os indivi- duos ¢ entre os poves. Completado o ciclo revolucio- nario, o nacionalismo tomou em grandes linhas outro rumo, sendo instrumentado por nagSes que chegaram mais tarde 4 mesa do banquete curopcu, como € 0 caso da Italia e da Alemanha. No Brasil ¢ em outros pases do que viria a ser chamado Terceiro Mundo, a questo nacional tinha outra dimensio, sendo apropriada tanto pela direita quanto pela esquerda, com diferentes matizes que vao do tradicionalismo ufanista a luta de libertacao nacio- nal contra o imperialismo. Daf nao ser possivel men- cionar 0 nacionalismo como um elemento tfpico da direita, pois ele transita, ainda que com marcas pré- prias, de um campo a outro do universo politico. Apés a diferenciacao geral dos campos da direita da esquerda, devemos responder a uma pergunta bésica para 0 nosso tema: € poss{vel recortat, no espectro da direita, uma ideologia nacionalista autoritéria, distinta de outras vertentes, entre as quais se incluem o fascismo 2166 (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO. € 0 tradicionalismo catélico? A resposta me parece ser afirmativa, embora os contatos ¢ reciprocas influéncias entre 0s idedlogos direitistas sejam visiveis. A identificacto do integralismo como uma versio brasileira do fascismo tem suscitado controvérsias. Em textos dos I{deres mais expressivos do movimento — Plinio Salgado ¢ Miguel Reale —, hé uma clara inten- so de distinguir a doutrina integralista das concepcSes totalitarias do fascismo italiano. Embora considere 0 integralismo um dos ramos do fascismo, distinguindo- se das concepgGes de juristas fascistas italianos como Alfredo Rocco, Reale sustenta que o integralismo de- fendia a existéncia de esferas auténomas de poder, insuscetfveis de serem absorvidas pelo Estado. Os ar gumentos de Reale tinham notével semelhanga com os utilizados por autores nacionalistas autoritérios, como Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, com 0 objetivo de distinguir 0 autoritarismo, dos regimes de partido tinico. Mas, entre as palavras e as coisas vai uma grande diferenga. Em primeiro lugar, o integralismo em seus objetivos ¢ em sua atuagio, a exemplo do fascismo, representou um movimento de massas, alids um dos maiores do pafs, ainda que efémero. A AIB foi na realidade um partido, com sua hierar- quia, seus quadros, seus simbolos, visando a tomada do poder. Mais ainda, 0 enquadramento das hostes integralistas em milfcias, por seus objetivos ¢ forma athe 57—————— SSS BORIS FAUSTO organizatéria, tinha nftida semelhanga com as mi- licias fascistas de Mussolini. Estes pontns revelam o cardter fascista do integralis- mo, com marcas nacionais especificas, assim como a distingao entre essa corrente ¢ os idedlogos autoritérios. Os autoritérios voltaram-se expressamente nao s6 con- tra a “partidocracia’, mas também contra os regimes de partido tinico ¢, preocupando-se com 0 enquadra- mento das massas, jamais defenderam a mobilizagao destas para alcangar seus objetivos. No que diz respeito a corrente catélica, é necessirio lembrar que os pressuipostos de andlise dos pensadores catélicos e dos nacionalistas autoritarios s4o divergen- tes, Em seus varios matizes, a corrente catélica, que teve em Jackson de Figueiredo ¢ Alceu de Amoroso Lima (Tristao de Ataide) seus nomes mais significativos, sustentou uma interpretagao transcendental da histéria e realizou um diagnéstico dos “males do presente”, a partir dessa visao. Isto independentemente do fato de que Jackson fosse um tradicionalista, idealizando 0 modelo da sociedade medieval e Amoroso Lima um modernizador, preocupado com o que chamava a rea- lizagdo da Idade Nova, convertido, mais tarde, em um defensor da democracia Os nacionalistas autoritérios no se afirmaram como espiritualistas, nem se preocuparam essencial- mente com os temas que cram ¢ ainda sio fundamen- tais para o pensamento catélico: a estabilidade da «Ags 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO familia, a repulsa ao divércio, ao aborto ¢ ao planeja- mento familiar, o reconhecimento de efeitos civis do casamento religioso, a luta pela adogio da ensina religioso nas escolas piiblicas. Ressalve-se apenas que Francisco Campos, uma das figuras principais dentre 0s autoritarios, foi quem promoveu o tiltimo tépico, por raz6es pragmaticas, quando ministro da Educagao. Em seu diagnéstico da formagio da sociedade bra sileira eem seu receitudrio, os nacionalistas autoritérios constitufram uma corrente cientificista, na oportuna denominagio de autores como Liicia Lippi Oliveira ¢ José Luis Beired. Pensadores como Oliveira Viana ¢ ‘Azevedo Amaral trataram de desvendar, com base nas ciéncias humanas, as razées da existéncia do Brasil de um povo, mas nao de uma nagao, buscando definir, a partir desse diagnéstico, os caminhos para a construgaio nacional. No pensamento dos autoritérios, a influéncia do cientificismo, assim como de autores repre- sentativos de outras correntes, era eclética, abrangendo nomes diversos, que influenciaram cada um deles com maior ou menor peso. Assim se combinavam o spencerismo, que deu fan- damento ao darwinismo social, transplantando para 0 plano social © principio de sobrevivéncia dos mais aptos, aplicado por Darwin ao meio natural; a teoria sociolégica de Le Play, destacando a importincia social da familia e sua dependéncia material do solo ¢ do clima; © racismo de Lapouge, Gobineau € outros 0 +19 eee eT BORIS FAUSTO positivismo comtianos as teorias sobre o cardter irracio- nal das massas ¢ 0 papel daselites, desde Le Bon e Taine a Mosca e Pareto; a psicologia de Ribot ¢ uma pitada de psicandlise, pelo que se pode inferir das citagaes de Oliveira Viana. Convém ressalvar que 0 cientificismo dos pensado- res autoritérios nao os induziaa uma leitura essencial- mente determinista do processo histérico, em que se destacasse a inexorabilidade desuas leis. Pelo contrario, © que quase sempre caracteriza suas interpretagdes é 0 papel da vontade, da agio humana, com base na clari- vidéncia dos grandes guias, apoiados na natureza ins- tintiva das massas de que eles seriam os intérpretes. Constituigdo do pensamento autoritério Podemos identificar duas fases na constituigio e in- fluéncia de um pensamento autoritério no Brasil, ten do como marco divisério a grande depressio mundial ¢a revolugio de outubro de 1930. Na primeira delas, situada na década de 1920, ocorreu uma espécie de maturagio ideoldgica dos autores, com relativa in- fluéncia na vida social e politica. Na segunda, 0 pensa- mento autoritério ganhou considerdvel prest{gio € os principais idedlogos da corrente tiveram papel signifi- cativo na criagao de instituigées ¢ na vida politica em geral -20- (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITAR!O De fato, a crise mundial ¢ a revoluséo de 1930 conduziram a critica ao liberalismo ao primeiro plano da luta politico-ideolégica. A crise parecia demonstrar a faléncia do capitalismo ¢ do regime politico liberal a ele associado. Entre os anos 1930-1 937, travou-se no pafs uma batalha entre as principais correntes politicas a que jd nos referimos. O pélo da direita que defendia acentralizagao do poder ea modernizacao do pais, com nuances mais ou menos nacionalistas, acabou prevale- cendo, nao sem atritos internos cujo maior exemplo foi a iniciativa bem-sucedida das Forgas Armadas, com 0 objetivo de enquadrar os tenentes. Os autoritérios defenderam o prolongamento do governo provisério de Vargas, pretendendo o adiamen- to da constitucionalizagio do pais ¢ de eleigées gerais para um futuro incerto. A contenda politico-ideolégica entre liberais e autoritérios resultou na revolucao de 1932. Entre os objetives da revolugao — uma revolta oligdrquica, para seus inimigos —, encontravam-se a garantia de autonomia dos estados ¢ a implantacao de um regime politico liberal, apés a realizagao de cleigoes livres. Apesar da derrota paulista, realizaram-se eleig6es para uma Assembléia Constituinte, em maio de 1933. que aprovou a Constituigio de 1934; seguiu-se a clei so indireta de Getilio para um periodo de quatro anos. Mas, como € sabido, a normalidade constitucio- nal durou pouco. Contando com o apoio das Forcas = 2s BORIS FAUSTO Armadas e da maioria das elites, Gewilio desfechou um golpe de Estado dando origem ao Estado Novo (1937- 1945). Assim nasceu uma ditadura autoritéria, consi- derada por seus lideres como o regime mais adequado as caracteristicas do pais, e nZo apenas como um expe- dicnte ditado pelas circunstncias. Isto nao obstante o fato de que, no discurso politico e nas formulagoes intelectuais, 0 autoritarismo fosse apresentado como a verdadeira democracia, liberta da paraferndlia de par- tidos c cleigées, tipica dos regimes liberais. A instituigao do Estado Novo representou a vitéria dos ideais autoritérios ¢ a derrota dos liberais, que concorreram desastradamente parao golpe. A aventura da insurreigao de 1935 marcara o fracasso dos comu- nistas ¢ 0 infcio de uma dura repressio, enquanto 0 integralismo, como movimento, desapareceria de cena com o arremedo golpista de 1938. Os intelectuais autoritérios identificaram-se com o regime por suas caracteristicas mais evidentes — supress4o da demo- cracia representativa, carisma presidencial, supressio do sistema de partidos, énfase na hierarquia, em detri- mento de mobilizagées sociais, ainda que controladas. Mais ainda, encontraram na figura de Vargas os tragos do presidente ideal, tanto mais que nunca foram de- fensores de uma solugao militar, encarnada em figuras como os generais Dutra e Gées Monteiro. ‘Antes do surgimento na cena intelectual e politica dos mais expressivos pensadores autoritérios, convém 22+ (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO mencionar a existéncia prévia de movimentos de carac- terfsticas nacionalistas, com marcas autoritdrias, ¢ de pensadores que se inclinaram a esta perspectiva. To- mando como marco inicial os primeiros anos da Re- piiblica, lembremos os grupos ou correntes que iden- tificaram na figura do marechal Floriano Peixoto a corporificagao da defesa dos interesses nacionais, em oposigao 4 “teptiblica dos fazendeitos”, oligdrquica ¢ liberal. Dentre eles, teve certa significagio 0 jacobinis- mo carioca, radical no seu discurso plebeu e em suas ages, tendo como alvo principal conspiradores mo- narquistas, reais ou verdadeiros, e a colénia portuguesa do Rio de Janeiro. No curso da Primeira Guerra Mundial, a preo- cupagao com os “destinos da nacionalidade” e as aspiragées nacionalistas ganharam terreno, abran- gendo movimentos de natureza diversa. Lembremos a fundagao da Liga de Defesa Nacional (1916), cujo paladino ostensivo foi Olavo Bilac, concentrando-se nos temas da educagao e da elevagio da consciéncia civica, por meio do servigo militar obrigatério. Essa organizacao inspirou a criagao da Liga Nacionalista de Si Paulo (1917), que incorporou o idedrio de sua antecessora ¢ formulou um programa politico liberal. © programa sustentava a necessidade de se alfabetizar a populacao, com 0 objetivo de forjar um eleitorado consciente, assim como de promover a chamada verdade eleitoral, pela via da instituigao 1236 BORIS FAUSTO do voto secreto e de outras formas de combate & fraude. Ao lado dessas organizagées, surgiram no Rio de Janeiro dois movimentos — a Propaganda Nativista a Aco Social Nacionalista — que nao se identi- ficavam com o figurino liberal ¢ postulavam um nacionalismo bem mais agressivo, definindo-se, no plano externo, pelo combate ao imperialismo das grandes poténcias ¢, no plano interno, pela “valo- rizagéo do povo brasileiro”. A valorizagao tinha como tragos principais a critica ao preconceito racial contra negros e mestigos, e uma xenofobia voltada especialmente contra os portugueses. Enquanto uma organizago como a Liga Naciona- lista demonstrava o peso histérico do liberalismo em Sao Paulo, os grupos nacionalistas da capital da Repti- blica, em meio a algumas variantes, seguiam uma linha que, tomando como matriz o florianismo, combina- vam tendéncias autoritarias, as vezes mescladas por doutrinas catélico-tradicionalistas, com um naciona- lismo agressivo que se projetava inclusive no campo da economia, Dentre os pensadores, devemos realgar a figura de Alberto Torres (1865-1917). Natural do estado do Rio de Janeiro, bacharel em dircito, foi um republicano histérico moderado. Seguiu carreira na politica e na magistratura, tendo sido deputado federal, ministro da Justiga no governo de Prudente abae © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO de Morais, presidente de seu estado ¢ ministro do Supremo Tribunal Federal. Seus livros mais signifi- catives para 0 nosso tema foram publicados em 1914, com os titulos de O problema nacional bra- sileiro © A organizagao nacional. Sem esposar ine- quivocamente uma concepcio autoritéria, pode ser considerado um precursor da corrente, sobretudo por suas criticas 20 artificialismo das doutrinas li- berais quando aplicadas ao Brasil, pela crenga no Papel primordial do Estado na constituiczo da na- 40 brasileira. Torres foi um dos primeiros autores que expressaram a passagem de um “nacionalismo naturalista” a um nacionalismo voltado para uma temitica politico-so- cial. Em vez de exaltar a pujanga de nossa natureza, tomou-a como dado de um problema, na medida em que procurava identificar a influéncia do meio na formaséo do homem brasileiro. Condena com vee- méncia um pattiotismo “oficial ou liturgico”, apegado a idolatria dos simbolos ¢ avesso & triste realidade do pats. Em suas palavras, “nao se admira que esse patrio- tismo evite contemplar a verdadeira situagao da Patria € corra & invocagao lituirgica da bandeira; que esqueca © Cristo ¢ apegue-se 4 cruz; que abandone a terra ca gente e condenea prole & miséria, delirando de éxtases misticos ao som do hino nacional...”. © nacionalismo de Torres se corporificava, princi palmente, no ataque ao dominio econdmico das gran- +255 BORIS FAUSTO des poténcias ¢ dos monopélios internacionais, na defesa do trabalhador brasileiro, que tinha como coro- lirio uma avaliagio negativa da imigragdo. Ecoando pensadores da dircita européia como Barrés e Maurras, contrapunha campo e cidade, respectivamente, com sinais positivo ¢ negativo. Defendia um programa de volta do migrante da cidade para o campo, que lhe parecia possivel, se 0 poder puiblico garantisse ao pro- letariado urbano o acesso & propriedade da terra para a produgao de bens de consumo que a grande cultura abandonara. Pile ‘A avaliagao critica de Torres no tocante 4 op¢ao imigratéria surgi. muito cedo. Logo apés a procla- magéo da Reptblica, dizia que havia um grande equivoco em louvar a experiéncia paulista. A imi- gracdo produzira ali resultados negativos, dando origem ao “operariado flutuante, boémio, que pro- duz sem fixar-se ¢ sem consumir, que serviu & la~ voura paulista na obra do aumento exagerado de produgio do café; e no momento da crise emigra para outras regides, onde novas indtistrias oferecem melhores ¢ mais faceis proventos”. A imigragao es- trangeira s6 se justificaria apés a constituigzo no Brasil de “um verdadeiro povo de homens, estabe- lecidos, produtores, dignos”, capazes de atrair € assimilar 0 colono estrangeiro. i Para se alcangar os grandes objetivos nacionais, Tor- res propde um caminho tradicional: a revisio da Cons- -i26" (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO tituigao de 1891. Suas principais propostas, em A organizagizo nacional, sao acompanhadas de longos co- mentdrios, Neles, justifica a necessidade de dotar a Unio de maiores poderes, embora defenda a autono- mia provincial (significativamente propde a volta da antiga denominagio constante da Constituigao impe- rial), dadas as peculiaridades regionais do pais, define + @ Poder Executive como “poder por exceléncia”, na trilha do ex-presidente Campos Sales. Critico da re- presentagio exclusivamente individual, propde o crité- rio de representagao mista, individual ¢ por categorias no Senado, ¢ introduz 0 Poder Coordenador entre os poderes da Reptiblica, que deveria representar o papel do Moderador durante 0 Impétio. Haveria porémn diferencas entre ambos, na medida em que o Executivo © 0 Poder Moderador se confundiam na pessoa do Imperador, enquanto o Coordenador seria um érgio autdnomo, dotado de extensos poderes. A inspiragao dos idedlogos autoritérios no pensa- mento de Alberto Torres é nitida. O jovem Oliveira Viana saudou os textos de Torres quando de sua publi- cago ¢ eles foram uma referéncia constante no discurso da direita, ao longo do tempo. Mais ainda, figuras ligadas as correntes autoritérias ¢ ao integralismo fun- daram em 1932 a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, destinada a difundir suas idéias ¢ a promover debates sociopoliticos. A sociedade atravessou o Estado Novo, desaparecendo quando este caiu, em 1945. 02h i BORIS FAUSTO A corporificagao plena de uma ideologia nacionalis- ta autoritéria ocorreu a partir da década de 1920, tendo como expressdes maiores Oliveira Viana, Azevedo Amaral ¢ Francisco Campos. A origem desses autores € suas carreiras so distintas; suas concepgies nao sio idénticas, sendo necessdrio ainda levar em conta que 0 pensamento de cada um deles, em maior ou menor grau, variou ao longo do tempo, nao tanto quanto ao niicleo de suas idéias, mas quanto & énfase posta em determinadas questdes. Entretanto, hd um conjunto de principios comuns unindo esses autores, de tal forma que a referéncia a seus textos permite estabelecer 0 contetido essencial do pensamento autoritério no Brasil. ‘Tal como Alberto Torres, Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951) nasceu no estado do Rio de Janei- ro, tendo-se diplomado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, da qual foi professor. Destacou-se como autor de uma vasta obra sociolégica e foi o principal expoente intelectual da corrente autoritéria. Nao teve participacéo politica ostensiva, mas formulou, apés 1930, programas de revisio constitucional e, principal- mente, 0 arcabougo da legislacao trabalhista e sindical, na qualidade de consultor juridico do Ministério do Trabalho. Dos trés nomes citados, Anténio José do Azevedo Amaral (1881-1942) é talvez o menos conhecido. For- mado em Medicina, foi essencialmente jornalista, co- +28 © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO laborador e diretor de varios jornais cariocas. Sua mor- te, ainda no curso da Segunda Guerra Mundial, con- correu para que ele ficasse na obscuridade até ser descoberto ou redescoberto em anos mais recentes Destacam-se seus livros escritos na década de 1930: Ensaios brasileiros, A aventura polttica do Brasil; O Brasil na crise atual e O Estado autoritério e a realidade nacional. Francisco Campos (1891-1968) nasceu em Mi- nas Gerais, pertencendo a uma familia tradicional. Advogado e politico, foi deputado federal antes de 1930 ¢ ministro da Educagao e Satide (1930-1932). Nesse cargo, preparou uma reforma do ensino sc- cundirio € superior, que possibilitou a estruturagao do primeiro ¢ das universidades. Foi consultor geral da Republica (1933-1937) e ministro da Justiga na fase mais repressiva do Estado Novo (1937-1941). Tornou-se célebre por ter seu nome ligado & insti- tuigao dos regimes autoritdrios no Brasil. Envolvido nas articulagbes preparatérias do Estado Novo, re- digiu a Carta constitucional de 1937. Apés um interregno até certo ponto liberal, reassumiu ple- namente seu papel de formulador de instituigdes autoritdrias, ao elaborar em 1964, juntamente com Carlos Medeiros Silva, os primeiros decretos bdsicos de excegao do regime militar: os Atos Institucionais. Nos uiltimos anos de vida, defendeu a inflexibilidade do chamado processo revolucionério. +29. BoRIS FAUSTO Visdo do processo historico As décadas de 1920 ¢ 1930, até a implantagao do Estado Novo, foram décadas de intensa fermentagio idcoldgica, refletindo a percepgao de que a Primeira Republica vinha esgotando ou esgotara as expectativas que cercavam sua fundagao. A grande depressio mun- dial e, no plano interno, a revolucao de 1930 deram aos intelectuais da época a sensacao de que chegara 0 momento de “explicar o Brasil”; ou seja, para se desco- brir novos caminhos, em busca da realizacao de dife- rentes ideais, tornava-se necessdrio interpretar 0 passa do. Exemplos dessa tendéncia sao as obras de Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado finior e de outros nomes menos conhecidos. Os pensadores autoritérios, com marcas préprias, inserem-se nessa moldura geral. Oliveira Viana, com uma obra extensa, e Azevedo Amaral abandonaram o descritivo, a histéria politica, com raras excegbes, tra- tando de realizar uma leitura histérica estrutural, que Ihes permitisse identificar 0 que seria a verdadeira fisionomia do pais, com 0 auxilio dos conhecimentos proporcionados pela geografia, pela antropologia, pela psicologia, assim como por uma pseudociéncia deci fradora da natureza das ragas. Osdois autores coincidiram em uma visio pessimis- ta de nossa formacio, na critica cerrada ao liberalismo, nas propostas de construgéo nacional. Um e outro =30- (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO conferiram grande importincia ao peso do passado, a0 que hoje se chamaria a longa duragio. Ecoando uma frase de Augusto Comte — os vives sero cada vez mais governados pelos mortos — Oliveira Viana afirmava: “Nés no somos sendo uma colesao de almas, que nos vém do infinito do tempo ... O passado vive em nés, atente, obscuro, nas células de nosso subconsciente. Ele € que nos ditige ainda hoje com sua influéncia invisfvel, mas inelutével e fatal.” A visio que Oliveira Viana tinha do processo hist6- rico era coerente com suas opgées politicas e com sua leitura do passado brasileiro. Assim, valorizava as mu- dangas evolutivas, as instituigdes que promoviam o equilibrio na ciipula dos regimes ¢ censurava 0 radica- lismo na ago politica, pois “en politica —em que tudo é adaptagio, oportunismo, relativisme — radicalisrzo significa apenas inferioridade de observagao, inferiorida- de de idéias e, as vezes mesmo, inferioridade de espirito” (grifo do autor). Azevedo Amaral assumiu pressupostos bem diver sos, como demonstra um de seus livros mais sugestivos, A crise do Brasil atual (1934). Nele, contrapée as inter- pretagbes evolucionistas ¢ revolucionarias do processo histérico, optando pelo papel progressista das revolia- Ses na evolucao dos povos. Entre Marx e Sorel, destaca a figura do socidlogo francés, cuja obra foi lida tanto por Lenin quanto por Mussolini. Para Amaral, Sorel encarna “a primeira sistematizagao légica da ideologia “31. BORIS FAUSTO revolucionsria’. As trés idéias fundamentais de Sorel —cariter descontfnuo do progresso social, fungao da vontade na determinagio das diretrizes do progresso e © papel da ilusdo mftica como propulsora das ativida- des revolucionétias — formariam a trilogia ideolégica do revolucionismo contemporaneo. Convém esclarecer a essa altura o que Amaral enten- de por revolugao. Para ele, nao podem ser chamadas de revolusao as insurreigbes desordenadas das massas, ou aquelas em que hd um forte predominio das forcas militares, em detrimento da populacao civil trabalha- dora, A verdadeira revolugio é deflagrada por uma minoria superior, que desperta a forca clementar das massas, em sua inerte sonoléncia Escrevendo em 1934, quando se refere a0 exemplo brasileiro, Azevedo Amaral vé na revolugao de 1930 uma oportunidade perdida, na medida em que gerou uma crise ¢ acabou se restringindo a uma mudanga pura ¢ simples da “turma governante”. Se o Estado Novo nao € claramente vislumbrado no horizonte, sem divida seria légico para o autor encard-lo, poucos anos mais tarde, como a expressio mais alta da vertente revoluciondria que emergira em 1930. Oliveira Viana ¢ Azevedo Amaral tomaram como balizas cronoldgicas a diviséo tradicional entre Colé- nia, Impétio ¢ Reptiblica. Cocrente com a importincia atribuida as rafzes de nossa formacao, Viana ressaltou © significado do periodo colonial para a compreensdo 7822 (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO. do Brasil. Tendo em vista fatores mesolégicos como a extensio da colénia, a caréncia de vias de comunicacio, a América portuguesa se caracterizaria pela fraqueza de instituiges sdlidas ¢ abrangentes, no plano social ¢ no plano politico. Isto redundara no isolamento das po- pulagécs, na auséncia de solidariedade social, na supre- macia da vida privada cujo nticleo era o cla rural, constituido pela famflia patriarcal. Apesar de todas essas caréncias, a leitura que Oliveira Viana fazia do periodo colonial nao era propriamente negativa, podendo ser encarada, sob muitos aspectos, como contraditéria. Ela vislumbra- va aspectos positives na formacio de uma aristo- cracia rural, assim como no cla familiar. Este seria ao menos uma forma bisica de solidariedade cujas vireudes, centradas na familia tradicional, deveriam set ressaltadas, ainda que, no correr do tempo, ti- vesse dado origem a uma “oligarquia bronca” Viana exaltou as virtudes do perfodo mondrqui- co, ressaltando, em contraste com o que viria depois, a prudéncia e a visdo pratica de seus politicos. O maior mérito da monarquia consistira, em seu en- tender, em assegurar a unidade do pais, por meio da centralizagio do poder. O esforgo institucional fora possivel gragas A criagio de érgéos como o Poder Moderador, encarnado por um imperador do porte de Pedro II, que exercera, durante meio século, “a mais nobre das ditaduras”. ee BORIS FAUSTO Pouco antes da proclamacao da Republica, diziam Oliveira Viana e Azevedo Amaral, a abolicao da escra- vatura tivera repercussoes negativas, nos planos econé- mico € politico. Essa linha de relativizagao da critica a0 escravismo e da inoportunidade da aboligao tinha em Alberto Torres um antecessor de prestigio. ‘Torres sus- tentava a inexisténcia de preconceito contra o negro, 0 fato — segundo ele — de que a escravidao fora “uma das poucas coisas com visos de organizagio que este pais jamais possuiu”, acentuando o paternalismo dos senhores brasileiros, cm contraste com a moral desa- piedadamente crua dos anglo-saxénicos. A Repiiblica viria arrasar a obra ainda inconclusa da construgao nacional, ao trocar 0 realismo politico, que tinha em conta a natureza de nossa formagio, pelo exotismo do modelo liberal. O federalismo repre- sentaria um retrocesso na marcha da integra¢ao do pats, introduzindo a guerra entre os estados ¢ um retorno generalizado, em direcao ao predominio dos clas rurais, em: detriment do poder estatal. Os prinefpios da soberania popular, da representagao parlamentar, do voto universal e o abolicionismo eram vistos como imposig6es do racionalismo dos liberais, sem sintonia com a realidade nacional. Na leitura do passado, Azevedo Amaral partia de premissas diferentes das estabelecidas por Oliveira Via- na. O socidlogo fluminense valorizava essencialmente fatores geogréficos, psicossociais ¢ étnicos; Amaral 34. (© PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORTARIO também conferia importancia a estes fatores, enfatizan- do mesmo o papel das etnias, mas introduzia no quadro 9s elementos econdmicos, que tinham escassa impor- tancia na leitura de Viana. Sob inspiragao bioldgica, sustentava a predominncia, nas sociedades humanas, dos instintos militar, econdmico ou politico. O Brasil estava destinado a ser um “Estado econdmico” devido as caracteristicas mercantilistas do colonizador portu- gués, bem diversas do instinto politico dos espanhéis. Entretanto, ao contrario de Oliveira Viana, o autor nao valorizava a colonizagio portuguesa, considerando-a responsdvel, entre outras coisas, pelos embaragos opos- tos ao progresso econémico da colénia. A leitura que Azevedo Amaral realiza do periodo colonial e da monarquia é negativa. Ao mesmo tempo em que colocava o Estado no centro da construgao da nacionalidade nos anos 1930, nao tinha uma visio a-histética de seu papel. Desse modo, via no organismo estatal, tanto na Colénia quanto no perfodo monér- quico, a condensagao das tendéncias retrégradas e do parasitismo social vigentes na sociedade. Um momen- to — nao por acaso um momento econémico — constitufa relevante excesio: a época mineradora, que possibilitara a criagao de riquezas ¢ esbogara o surgi- mento de uma consciéncia nacional. O perfodo monérquico teria representado o advento de instituigGes artificiais, inspiradas no liberalismo, assim como a consolidagao de uma economia ageéria adit BORIS FaUSTO que se refletia no dominio politico dos grandes pro- ptictérios rurais. A unica excesio — e por af se pode vislumbrar para onde se encaminhava 0 raciocinio do autor — era constituida pelas arrojadas iniciativas do Bario de Maud. Na apreciagzo da Primeira Reptiblica, Azevedo Amaral representa uma voz destoante. Ao contrario de quase todos os intelectuais do amplo arco de direita e de figuras fora desse ambito, como ¢ 0 caso de Sérgio Buarque de Holanda em Ratees do Brasil, cle faz uma interpretagdo matizada ¢ menos negativa do perfodo, contendo algumas afirmagées surpreendentes. Encara a Primeira Repiiblica como um perfodo de acentuado progresso econédmico, a partir do cumprimento do _funding-loan assinado pot Campos Sales em 1898 com os credores externos do pais. Curiosamente, nao repele © acordo, atacado frontalmente por qualquer historia~ dor brasileiro de inspiragao nacionalista, pois cle teria aberto caminho para o crescimento da economia, na medida em que fora cumprido, permitindo o reergui- mento de nosso crédito externo ¢ a facilidade de im- portacao de capitais estrangeiros. ‘Outra razao pela qual Azevedo Amaral matizava sua apreciacdo da Primeira Republica tinha a ver com a constatagéo de que, a0 longo dela, ocorrera uma con- centragao dos poderes do Executivo. Neste aspecto, sua andlise era contraditéria pois, se criticava 0 estrangula- mento dos pequenos estados, via na referida concen- 2 BGs 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO tragao de poderes uma tendéncia salutar e reflexo da perda necesséria de fungoes do Congresso ¢ da desmo- ralizagao deste. Tanto assim que, sustentava ele, nos tiltimos anos do periodo, a animosidade popular néo se voltava mais para o Presidente da Reptiblica, con- centrando-se nos membros do Congresso. Azevedo Amaral néo participa de uma critica demo- lidora das oligarquias, como foi comum no pensamen- to dos intelectuais, dos chefes militares ¢ dos politicos de oposigao de seu tempo. Embora nao chegasse a defendé-las, tal como Oliveira Viana, trata de demons- trar sua utilidade e de identificar um mal maior: 0 artificialismo da democracia liberal. As oligarquias te- riam sido a maneira tinica de 0 organismo nacional reagir a essa fantasia, que representaria uma verdadeira ameaga de morte. Em uma apreciagao geral da leitura do passado, respectivamente, na obra de Oliveira Viana e Azevedo Amaral, constatamos outras diferengas entre ambos. O primeiro era, em principio, um conservador moderni- zante, desejoso de manter tradigoes e caracteristicas do homem brasileiro, no ambito de um Estado de novo tipo cuja misséo seria a de fundar uma verdadeira nacio. Nesse sentido, ecoa nos textos de Oliveira Viana uma espécie de saudosismo rural, que lembra Alberto Torres. Sé que Viana, escrevendo anos depois de seu conterraneo, jé nao podia pensar em retroceder no tempo. Reconheceu, gradativamente, a realidade de .375 BORIS FAUSTO um Brasil urbano que implicava a existéncia de uma classe trabalhadora. Para esta voltou muito de sua atengio, tratando de evitar que se tornasse fator de desordem, buscando as vias de sua integragao no orga- nismo social. A dedicagao de Oliveira Viana ao objetivo de claborar uma legislacéo trabalhista, como consultor juridico do Ministério do Trabalho, é uma prova elo- qiiente disto. Autoritarismo e racismo. Um trago comum aos nacionalistas autoritérios foi 0 papel por cles atribufdo a chamada questao racial. Nisso eles nao estavam sozinhos, na medida em que 0 papel a ser atribuido a determinagées raciais na forma- io da sociedade e do homem brasileiro foi objeto de uma preocupagio constante de nossos pensadores, des- de meados do século xIX. Essa preocupagio, em si mesma, nio poderia scr tida como “importada”, pois, como é sabido, o Brasil era um pais majoritariamente formado por negros e pardos, no qual o sistema escra- vista perdurou até 1888. Desse modo, a defesa da separacao de ragas seria, no minimo, muito dificil de ser sustentada. Os pensadores brasileiros, mesmo quando influen- ciados pelas idéias de Gobineau, Ratzel, Agassiz outros, nao podiam defender pura e simplesmente a +38. ‘ssa enemies smanenencenennaeniee (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO separagao de ragas ¢ a superioridade da raga branca. Tinham de enfrentar a realidade de um pafs em que ocortera a miscigenacao entre brancos, negros ¢ indios, a ponto dea populacao branca ser minoritdria. A partir dessa realidade, com diferentes enfoques, muitos deles sustentaram a desejabilidade do branqueamento, fan- dada na suposta superioridade da raga branca. Com base cm conviesées sociobiolégicas, defenderam a ne- cessidade de aumentar 20 maximo o influxo do sangue branco, contando para isso com a contribuigio de imigrantes europeus, dadas as suas qualidades raciais culturais. No ambito dessa perspectiva, os pensadores valorizavam (ou melhor, desvalorizavam) de forma diversa a contribuigo de negros, indios e mestigos, na formacao do pais. Até por volta de 1910, as teorias que sustentavam a existéncia de uma raga superior foram contraditadas apenas por vozes isoladas, como é 0 caso de Araripe Jénior ¢ Manoel Bonfim. Bonfim foi autor de uma obra consistente, redescoberta em anos recentes, tendo se convertido em um dos cones do nacionalismo de esquerda, Ambos criticavam a falsa base cientifica da tese da superioridade racial, denunciando-a como ins- trumento do expansionismo das nagées dominantes, responsaveis também pela difusio de uma etnologia colonialista. Na década de 1910, Alberto Torres veio juntar-se 3 corrente que encarnava a critica ao racismo, afirmando +39. BORIS FAUSTO ainda que os fatores mesolégicos ¢ sociais sé0 mais importantes do que os raciais na explicagao das socie- dades. Ao mesmo tempo, cle nao fugia inteiramente a uma apreciacao biolégica do tema. Defensor entusids- tico da miscigenagao realizada no Brasil, afirmava que os indigenas representavam a etnia mais adaptada a0 meio brasileiro, vindo a seguir os negros e, afinal, os colonizadores brancos, quando “jé fizeram um longo estadio de aclimacéo”. Esses troncos — dizia ele — equilibram-se tio positivamente que uma politica eu- génica bem inspirada deve recusar novos cruzamentos raciajs. Trata-se, como se vé, de uma curiosa versio do mito das trés ragas formadoras do homem brasileiro, em que o elemento branco é definide como © mais problemético. ‘Além de Alberto Torres, dentre os precursores do pensamento nacionalista autoritério que se preocupa- ram com a questo racial devemos destacar Alvaro Bomilcar, uma das figuras pioneiras no ataque 20 preconceito contra o negro € na valorizagao da mesti- sagem. Nas paginas da revista Braztlea, que fundou em 1917 com Arnaldo Damasceno Vieira, defende um. nacionalismo antilusitano, anticosmopolita, apoiado na religiio ¢ na moral. Aproxima-se das idéias de Alberto Torres, tratando porém de dar a seus escritos uma inspiragao popular. Sob este aspecto, critica 0 pensador fluminense, de quem diverge também, res- peitosamente, pelas ilusdes deste em acreditar na via de +40- © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO uma reviséo constitucional para enfrentar os problemas brasileiros. No livro A politica no Brasil ou 0 nacionalismo radical (1920), dedicado significativamente @ meméria do marcchal Floriano Peixoto, Bomilcar diz escrever pen- sando nos “parias desclassificados nacionais”, vadios ¢ ociosos, ex-pragas das corporagées armadas, pescadores € pequenos diaristas rurais. Nao esquece porém daque- les que tém algum estudo mas esto “fora do ambiente convencional ¢ livresco dos gabinetes ¢ academias”, como elementos sociais importantes para integrar a luta nacionalista. Oliveira Viana e Azevedo Amaral conferiram 20 fator racial papel relevante nas respectivas explicaces do Brasil. O primeiro, desde scus primeiros trabalhos, foi um defensor da necessidade de se “arianizar” o pais, pela via do brangueamento, para doté-lo de um povo capaz de dar suporte a tarefa da construgao nacional. Em Populagées meridionais do Brasil (1920), baseado em uma concepgao psicorracial, Oliveira Viana iden- tifica trés categorias sociais existentes no Brasil. No alto da piramide, estariam os arianos brancos da classe supetior cujo cardter, “tao valentemente preservado na sua pureza pelos nossos antepassados dos trés primeiros séculos, salva-nos de uma regresséo lamentivel”. De- pois, viriam os mestigos que venceram e ascenderam a0 longo do tempo por terem se arianizado ¢ deixado de ser “psicologicamente” mestigos. Embaixo, ficariam ad) BORIS FAUSTO os negros, os indios e a maioria dos mestigos que entram na formagio de nosso cardter coletivo como “forca revulsiva e perturbadora”. Para Viana, as fungies superiores da civilizagdo brasileira cabem aos arianos puros, contando com o importante concurso dos mes- tigos “vencedores”: “Si estes os que, de posse dos aparelhos de disciplina ¢ de educagéo, dominam a turba informe e pululante de mestigos inferiores e, mantendo-a, pela compressao social jurfdica, dentro das normas da moral ariana, a vao afeigoando, lenta- mente, 2 mentalidade da raga branca.” Doze anos mais tarde, em 1932, Oliveira Viana publicou Raga e assimilagéo, um texto dedicado exclu- sivamente & questio racial, como seu titulo indica. “Trata-se de um escrito pretensamente cientffico, em que procura fixar critérios demonstrativos da pureza da raca ariana, composta de diferentes etnias, que vinham resistindo, no Brasil, & contaminagao dos “sangues barbaros” de negros ¢ indios. A resisténcia estaria ocor- rendo, principalmente, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina ¢ Sio Paulo, gragas & imigragéo curopéia € & formacio de sélidos nticleos coloniais. Viana néo chegava a sonhar com uma raga de dolico- céfalos louros, mas, aceitando a realidade de um “Brasil moreno”, esperava quc 0 tipo nacional acabasse por ter sangue predominantemente branco. Respondendo as muitas criticas, Oliveira Viana ne- gou que estivesse tratando de demonstrar a supe- +425 (© PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO rioridade de uma raga com relagio a outras, pois qui- sera apenas expor o fundamento cientifico da diferenga das ragas, sem estabelecer uma escala de qualidade. O autor nunca renunciou expressamente a esses pontos de vista, mas, no correr dos anos, eles deixaram de estar na linha de frente de seu pensamento. Muito embora tenha se tornado conhecido por encarar 0 regime autoritério como instrumento da industrializagao do pats, Azevedo Amaral conferiu & questo étnica um papel central em suas formulagées. Esse aspecto de sua obra ficou meio esquecido, pou- pando-lhe a identificagao com a teoria racista do bran- gqueamento. Segundo Amaral, a formagio de um tipo étnico brasileiro, @ altura da tarefa de construcao na- cional, era um dever do Estado, a quem caberia, para tanto, promover a eugenia, incentivando as unides convenientes € a selegao das etnias imigratérias dese- javeis. Em O Estado autoritario ¢ a realidade nacional 0 problema étnico é considerado “a chave de todo o destino da nacionalidade’, subordinando todos os de- mais. Amaral sustenta enfaticamente a necessidade de garantir 0 branqueamento — um objetivo que s6 seria alcangado pela continuidade da imigracéo curopéia, representante de uma raga e de uma cultura superiores, garantindo a “vit6ria étnica” do elemento branco. A partir dessa visio, critica a Constituigao de 1934 ¢ mesmo a téo elogiada Carta de 1937 por terem fixado +435 BORIS FAUSTO um regime de quotas, impondo restrigées ao ingresso de grupos étnicos desejaveis no pais. Curiosamente, em uma época em que a ditadura, por meio de circulares secretas, proibira a entrada de imigrantes judeus no Brasil, o autor nao dé demonstragées de anti-semitis- mo. Pelo contrério, quando investe contra as correntes subversivas de esquerda e de direita que haviam se instalado no pafs antes de 1937, refere-se ao integralis- mo como um movimento fascista, cuja quase exclusiva finalidade consistia em promover uma estranha e inex- plicavel propaganda anti-semita. O alvo principal do racismo de Azevedo Amaral concentra-se na “classe dos mestigos”, em especial os mulatos, que, em suas palavras, desde a metade do século XVIII, constitufa um grupo ponderdvel da po- pulacdo. Esse grupo era considerado inadequado para © exercicio de fungées piblicas, embora muitos deles, ainda segundo Amaral, tenham sido figuras brilhantes, representando papel de primeira ordem no desenvol- vimento cultural do Brasil. Mas, mesmo esses indivi- duos brilhantes, para nao falar dos mestigos em geral, sempre se inclinaram a um parasitismo med{ocre, por forga dos fatores étnicos e do psiquismo gerado pelos cargos que exerciam, na burocracia estatal eno mundo ico. Coerente com sua visio autoritdria, Amaral poli afirma que os mestigos desenvolveram forgosamente uma tendéncia a insubordinagéo crénica contra todas as formas de autoridade disciplinadora. Embora o -44- nen (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO contraste entre o imigrante — expoente de uma ética de trabalho — ¢ 0 “mestigo parasitério” nao esteja cxplicitamente formulado, ele € implicito em muitas passagens de sua obra principal. Critica do presente e propostas de mudanca Quaisquer que fossem as diferengas interpretativas de Amaral, Viana ¢ Francisco Campos, eles tinham uma idéntica avaliagdo dos tempos em que viviam e propos- tas idénticas para os problemas brasileiros. Identifica- vam o grande problema do pafs na obra apenas esbo- sada da construgao nacional. No Brasil existia um Povo, mas nao uma nacfo e seu correlato: a identidade nacional. Nenhum deles afirmava em abstrato a supe- rioridade do regime autoritério. A necessidade de tal regime, nos tempos em que viviam, decorria do fato de que 0 passado histérico brasileiro nao gerara uma sociedade solidéria ¢ articulada, sendo as férmulas politicas liberais uma aberragio diante desse quadro. Oliveira Viana, por exemplo, se dizia um admirador das instituig6es representativas inglesas ¢ americanas, mas considerava que elas eram produto de uma socie- dade muito diferente da nossa; mesmo assim, tinham entrado em crise nesses paises. O regime autoritério era encarado como 0 caminho privilegiado para “criar” a nacao, com uma perspectiva +455 BORIS FAUSTO mais culturalista ¢ tradicional em Oliveira Viana e mais nitidamente modernizante em Azevedo Amaral, fican- do Francisco Campos a meio caminho entre os dois. Quando lidou, excepcionalmente, com quest6es de natureza econdmica, Campos defendeu © controle das induistrias bésicas, assim como dos investimentos es- trangeiros, por parte do Estado, por razées mais de seguranga nacional do que de ordem econémica. Ao se referir a0 tema do progresso do pais, oscilava entre a defesa do desenvolvimento agrario e a defesa do desen- volvimento industrial, com apoio do Estado, passan- do também por uma fase liberal, nos tiltimos anos de vida. J& Azevedo Amaral era 0 mais modernizante dos trés, sendo um declarado defensor do capitalismo in- dustrial, a ser promovido pelo regime autoritério-cor- porativo. De resto, era ele quem melhor se ajustava, nesse aspecto, as mudangas que vinham ocorrendo no pafs, na década de 1920 ¢ especialmente apés a revo- lugao de 1930. é ‘Apesar das diferengas de perspectiva, os naciona- listas autoritérios concebiam uma modernizagao do pais de cima para baixo, prescindindo das mobi zagies populares, especialmente quando nao-con- troladas. A instituigéo bésica destinada a realizar a transformagao, nas condigées brasileiras, s6 poderia ser o Estado autoritério, centralizador, dotado de extensos poderes. ade ey PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Ao lidar com o tema classico do equilfbrio entre a ordem € a liberdade, os nacionalistas autoritarios pri- vilegiaram sempre a primeira premissa. Nas palavras de Azevedo Amaral, ha muito mais perigo de desorganizacéo do todo pela rebeldia das partes do que da compressao excessiva destas por um poder desmedido da coletividade. As- sim, para que uma nagio se organize com probabili- dades de enfrentar vitoriosamente as vicissitudes com que futuro a pode surpreender, o conceito de liber- dade tem de ajustar-se aos imperativos da sobreviven- cia, que impdem a necessaria ascendéncia de um ritmo unificador expresso na idéia de autoridade. Ao mesmo tempo, a necessidade de manter a orden, de conter a agao dos agentes subversivos, justificava a repressao aos divergentes, assim como a criagio de tribunais especiais, destinados a garantir a seguranga nacional, a censura aos meios de comunicagao. Seo passado do pais impunha a rejei¢ao das formu- las liberais, o quadro sociopolitico do mundo, ao longo do século XX, tornava ainda mais imprescindfvel a adogio de um regime autoritario, segundo seus defen sores. Isto porque um fendmeno novo passara a inte- grar a vida social politica: a irrupgao das massas. Ao contririo dos fascistas e dos nazistas, os nacionalistas autoritdtios viam essa irrupg0 como um problema ¢ “47+ BORIS FAUSIO no como um trunfo para alcangar seus objetivos. Nas condigées brasileiras, tal viso cra reforcada pelo fato de que nao havia no pafs uma ampla mobilizagéo dos setores populares, como ocorrera na Itélia e na Alema- nha antes da vitéria do nazi-fascismo. Era pois realista — segundo eles — defender a implantagio de um regime autoritdrio, verticalmente, sem incorter no ris- co das agitagées sociais. Ao longo de sua vida, Francisco Campos insistiu no tema da integracao das massas, passando pela relagio vertical entre estas ¢ as clites. Em um texto de 1967, Atualidade de Dom Quixote, alude a este ¢ a Sancho Panga para definir as relagGes entre as massas e um guia iluminado. Metéfora curiosa, na medida em que, ape sar da relagio hierdrquica, na novela de Cervantes, Sancho — 0 homem do povo — tem os pés no chao, enquanto o Quixote vive no mundo da fantasia, ecoan- do o passado. A visio de Campos nio € essa, pois cle vé no “cavaleiro da triste figura” 0 espirito ¢ 0 ideal dominadores, 0 guiac redentor da humanidade, sendo ambos os personagens arquétipos ligados por um vin- culo milenar. © grande risco da atualidade consistiria no fato de que o vinculo estava prestes a romper-se, diante da “sinistra mascarada das revolugées”, quando os “seres noturnos”, movidos pela raiva da destruigo, teriam comesado a impor-se. Sancho — o bom homem fiel a seu amo — estava pois se transfigurando, pela acao +48. (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO recéndita dos “seres noturnos”, a ponto dese converter em um ser monstruoso — “El Colosso de Goya”. Em suas palavras, “nosso mundo de hoje, que é como Sancho abandonado por seu amo, reclama a volta de Dom Quixote, por sentir que sem ele sua vida nao teria sentido. De todos os lados, sob os mais diversos nomes ¢ as mais contraditérias apa~ réncias, 0 que o homem dos nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente espera, é 0 retorno de Dom Quixote.” A irrupgao das massas reforgava a critica dos pensa- dores autoritdrios a0 racionalismo dos liberais. © anti racionalismo foi uma das marcas da dircita européia, a partir das tiltimas décadas do século XIX, baseando-se nas teorias bioldgicas segundo as quais 0 comporta- mento humano era regido por fatores varios em que a hereditariedade representava uma premissa bdsica, no por motivasées racionais. Um precursor dessa teoria, com varias ramificacées, foi o historiador fran- cés Hipdlito Taine (1828-1893), cuja influéncia nos circulos intelectuais brasileiros foi consideravel. Em sua principal obra, As origens da Franca contemporinea, publicada em virios tomos, a partir de 1876, Taine — defensor da monarquia constitucional — tragou um quadro sombrio da Revolugao Francesa, dadas suas convicg6es ¢ o impacto profundamente negative que produzira a Comuna de Paris (1870) nos meios con- servadores. +49. BORIS FAUSTO A critica ao processo revolucionario como um todo, sem distinguir fases distintas — 1789 de um lado ¢ 0 Terror de outro, por exemplo —, coadunava-se com sua viséo frontalmente contraria as revolugSes em geral, Identificava a multidéo e seus manipuladores como protagonistas da revolugao, dirigindo a ambos violen- tas agressdes. Os jacobinos eram um bando que tirava proveito da multidao; esta seria um animal monstruo- so, uma besta sofredora, super-excitada, um macaco careteiro, sanguindrio ¢ librico, no qual se dissolviam as vontades individuais Um autor cujas idéias gozaram de grande prestigio em muitos paises, entre eles Brasil, prestigio alids conservado em certos circulos mesmo nos dias de hoje, foi o socidlogo Gustave Le Bon (1 841-1931). Embora muito influenciado por Taine, incorporou uma dimen- so psicolégica em sua anilise da sociedade, na linha proposta por figuras como ‘Tarde ¢ Ribot. Sustentava, em sfntese, que em decorréncia da natureza humana 0 homem isolado pode scr civilizado, mas em multidio retorna a barbérie, caracterizada pela espontaneidade, pela ferocidade e pelo heroismo. Diante desse quadro, Le Bon enfatizava o papel das elites na organizagio da sociedade, tanto mais que as massas combinavam a irracionalidade com uma grande e perigosa capacidade de ago. E. visivel a influéncia dessas idéias no limitado mundo intelectual brasileiro, abrangendo varias cor- 50+ © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO rentes de pensamento € nao sé 0s autoritdrios, Mas estes iriam ter, ao longo dos anos 1920, uma especial atragio por doutrinas que acentuavam o papel di- rigente das elites ¢ a natureza irracional das massas, que justificavam plenamente a hierarquizagio da sociedade. Para os pensadores autoritarios, a falta de realismo dos liberais se torna ainda mais grave, dada.a irrupgao das massas na vida em sociedade € as ilus6es racionalistas a sew respeito. Oliveira Viana, sempre disposto a dar fundamento cientifico a suas idéias, criticou © maior {cone de nosso liberalismo — Ruy Barbosa —, tomando por base a visio acima exposta, 4 qual incorporaa referéncia a dois grandes nomes da psicanilise: Ruy, orador prodigioso, pertencia aquela antiga escola do bovarismo politico, que vem inspirando nossas atividades partidérias desde 0 primeiro dia da Inde pendéncia. Era em politica 0 que Graham Wales chama um intelectualista; acreditava na forga légicado raciocinio e da dialética, como agentes determinantes da conduta das multidées, ¢ pedia ao primitivismo e& instintividade das massas populares 0 que a psicologia politica contemporinea, que Ié Freud e Jung, reconhe- ce que elas ndo podem dar. Em uma passagem em que faz a apologia do regime hitlerista, diz. Francisco Campos que 51 BonIs FAUSTO somente 0 apelo as forsas irracionais ou as formas elementares de solidariedade humana tornar4 possivel, a integracéo total das massas humanas em regime de Estado ... O mito € 0 meio pelo qual se procura disciplinar e utilizar essas forgas desencadeadas ... Quer quiser saber qual 0 proceso pelo qual se for mam efetivamente, hoje em dia, as decisdes politicas, contemple a massa alema, medusada sob a agio caris- matica do Filhrer, ¢ em cuja mascara os tragos de tensio, de ansiedade ¢ de angiistia traem 0 estado de fascinagao e de hipnose, Um dos argumentos centrais da cerrada critica que os pensadores autoritérios faziam ao liberalismo con- sistia em afirmar que o liberalismo era uma doutrina ex6tica, inaplicdvel & realidade brasileira. Notemos, de passagem, que a expressdo “doutrina exética” teve lon- ga vida no pafs, sendo um instrumento utilizado, com freqiiéncia, pclas forcas politicas conservadoras, em seu ataque ao comunismo de inspiragio soviética. Nao escapava porém aos autoritétios 0 fato de que poderiam ser acusados também de importar doutrinas tdo exdticas quanto as adotadas pela esquerda, variando apenas de tcor ¢ de procedéncia geogrifica. Ao apre- sentarem um programa de reforso ¢ centralizagao do Estado, representacao corporativa, supressio de liber- dades etc,, pensadores autoritérios como Oliveira Via- na e Francisco Campos (0 caso de Azevedo Amaral é 252s 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO. um tanto diverso, como veremos no final do livro) trataram de demonstrar que nao estavam imitando servilmente modelos estrangeiros, mas apenas levando- os em conta, na formulagao de um programa verdadei- ramente nacional, assentado nas condigées sociopoli- ticas e culturais do Brasil. A insisténcia na originalidade das férmulas foi alids um dos tragos mais evidentes dos idedlogos fascistas, na tentativa de demarcar-se dos modelos da Alemanha e especialmente da Ieélia. Combater 0 exotismo das doutrinas liberais signifi- cava atacar de frente suas concepgées ¢ suas institui- Ges: a soberania popular ¢ as formas de representacao. ¢m especial a parlamentar pela via do voto secreto ¢ universal. A critica A liberdade de pensamento e de expressfo, embora existente, provavelmente por ser embaragosa, ficava em segundo plano. Em uma passa- gem muito significativa, Azevedo Amaral assim expli- cava a fonte do poder politico: Agora que os birbaros safdos das trincheiras da grande guerra, para destruir iluses ¢ reavivar na consciéncia politica da Europa o senso das realidades, nos estao abrindo os olhos, podemos ver através da fantasmago- ria democrético-liberal e comecamos a descobrir de novo aquile que os nossos antepassados do perfodo proto-histérico reconheceram, logo que se formaram as primeiras coletividades humanas e de que ninguém duvidou durante dezenas de milhares de anos, até que a Baa BORIS FAUSTO a lucidez da inteligéncia francesa foi perturbada pelos encantadores entorpecentes fermentados no cérebro peculiar do grande Jean Jacques [Rousseau]. Esse pos- tulado, que foi a primeira nogao sociol6gica intuitiva- mente adquirida pelo homem, é 0 conceito de que 0 poder promana de quem governa e no pode portanto, sem flagrante absurdo, ter a sua origem atribufda & vontade dos que so governados. © sufrdgio universal, chamado depreciativamente de “sufrégio promiscuo” o sistema de partidos como instrumento forma de exprimir a vontade popular nao passariam de ilusGes perigosas. Jé antes de 1930, Francisco Campos condenava “o inocente ¢ imponde- rével voto secreto”, que constitufa uma das principais bandeiras da reforma politica sustentada pelos liberais. Investia também contra o sistema de partidos, nos quais prolifera a agitacao de “antagonismos violentos” ea “oposigéo de interesses transitérios”. Quanto aos parlamentos, Campos destaca seu ana- cronismo, como produto ultrapassado das revolugdes populares do século XVIII. Nos tempos de hoje, a administragdo publica deveria monopolizar, com pro- veito, o trabalho legislative. Oliveira Viana segue a mesma linha, ao assinalar a decadéncia dos parlamentos e justificar 0 reforgo do Poder Executivo, tragando um quadro do que vinha acontecendo em toda a Europa, inclusive na Inglaterra, - 5a | | (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO “o pais dos parlamentos onipotentes”. Ele vincula a critica aos parlamentos & auséncia de uma figura que encarne a nagao, afirmando: “Num pais como 0 nosso € num regime como © que temos, onde nao hé um rei para encarnar a Nagao, a preponderancia da Camara, quero dizer, asubordinacio do Presidente daReptiblica ala é absurda.” Azevedo Amaral, muito préximo neste aspecto a Francisco Campos, destacava que 0 trabalho legislativo vinha assumindo cardter mais complexo, envolvendo, em escala crescente, a solugao de problemas técnicos. Disso decorria a necessidade de atribuir ao Executivo a tarefa de elaborar as leis, com a colaboragio dos 6rgios técnicos da administracao, como jé vinha acon- tecendo em muitos paiscs. Caberia ao Parlamento examinar os projetos de lei “e quase sempre aprova- los”, dando um voto de confianga ao Executivo. Aos principios da democracia liberal, os pensadores autoritérios opunham, acima de tudo, o poder emana- do do Estado, a eliminagio dos partidos, assim como a representacao da sociedade organizada ¢ néo dos individuos. A fantasia liberal, que conduzira o pais aos confrontos dilacerantes, deveria dar lugar a um sistema corporativo, em que, essencialmente, as “classes econd- micas” (trabalhadores, comerciantes, empresétios in- dustriais etc.) estariam representadas. Desse modo, dar-sc-ia voz a sociedade, contrabalangando 0 poder do Estado que, como vimos, nao se desejava totalitario. 55+ BORIS FAUSTO Assim scria possivel alcangar 0 equilfbrio social, 140 necessirio & tarefa de reconstrugéo nacional, sob inspi- rago de um “idealismo organico”, em contraposicao a0 “idealismo utépico” da doutrina liberal, na expres- séo de Oliveira Viana. Os dois conceitos sintetizavam 0 pensamento de Oliveira Viana, em matéria de teoria e objetivos poli- ticos. Em suas palavras, idealismo utépico é todo e qualquer sistema doutrind- rio, todo e qualquer conjunto de aspiragées politicas em intimo desacordo com as condigées reais e organi- cas da sociedade que pretende reger ¢ dirigir. O que realmente caracteriza e denuncia a presenca do idealismo utdpico num sistema constitucional é a disparidade que ‘at entre a grandeza e a impressionante euritmia da sua estrutura ea insignificdncia do sen rendimento efetivo — ¢ isto quando néo se verifica a sua esterilidade completa. (grifo do autor) Em contraposicao, o idealismo orgénico nasceria da prépria evolucao orginica da sociedade ¢ nao seria outra coisa senao visio antecipada de uma evolugo fatura. Seguindo o percurso hist6rico, Oliveira Viana no- meava idealistas utépicos e orginicos. Utdpicos eram 08 jesuitas, no perfodo colonial; os homens que inspi- raram a politica sonhadora do Primeiro Reinado, como +56 - | | | 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Feijé, Evaristo da Veiga, Cairu e “a constelacao dos trés Andradas”. Utépicas cram instituigdes como as Facul- dades de Direito que transfiguravam rapazes provincia~ nos em letrados que se divorciavam da realidade nacio- nal ¢ a imprensa promotora de agitagies ¢ idéias exé- genas, especialmente no Primeiro Reinado. Idealistas organicos cram figuras que haviam resistido aos liberais da Independencia, como Abrantes, Vasconcelos — o Vasconcelos que abandonou o liberalismo, natural- Monte Alegre ¢ principalmente o marqués de Olinda. Eram também figuras de uma nova geragio, formada no Brasil — ¢ nesse ponto Oliveira Viana, contraditoriamente, exaltava 0 papel das academias nacionais fundadas em Sao Paulo, na Bahia e no Recife — pessoas como 0 marqués de Paran4, Rio Branco, Uruguai, Itaborai. © corporativismo, de inspiragao medieval, mas adaptado as novas realidades contemporaneas, ganhou crescente prestigio no mundo ocidental, apdsa Primei- ra Guerra. O fascismo italiano incorporou 0 modelo os regimes autoritdrios scguiram 0 mesmo caminho. No Brasil, um dos grandes defensores desse sistema politico tornou-se influente nos efrculos de elite, espe- cialmente entre os industriais paulistas. Trata-se do intelectual ¢ politico romeno Mihail Manoilescu, cujo livro O séctlo do corporativismo foi publicado na Europa em 1934 e€ quatro anos depois em nosso pafs, em tradugao de Azevedo Amaral. mente —, +57- BORIS FAUSTO Na verdade, no Brasil como em outras partes do mundo o corporativismo foi uma férmula prestigiosa, mas de pouca aplicacao pritica, no Ambito dos regimes rotalitdrios ¢ autoritarios. Houve sempre uma tensio entre o poder concentrado no Executivo eas tentativas de representagio corporativa, constituindo o primeiro © pélo decisive, seja sob a forma do Partido-Estado, seja sob a forma da figura presidencial. Em seus escritos, a0 defenderem o sistema corpora- tivo, os autoritérios brasileiros mostravam-se céticos no que diz respeito a sua implementagao imediata. Tanto Azevedo Amaral quanto Oliveira Viana assinalaram que, dada a inarticulagao de nossa sociedade — Viana dizia que talvez Sao Paulo constituisse a tinica excesa0 —, 0 modelo levaria tempo para concretizar-se. En- quanto isso, o Poder Executivo deveria assumir a p: mazia, uma opgao que se tornou mais nitida apds 0 golpe de 1937, quando Gettilio Vargas passou a perso- nificar © poder. A énfase do discurso de nossos autoritérios vol- row-se para a figura carismdtica do presidente, que assumira o papel de encarnar a nagio e de ligar os fios do tecido social, de baixo para cima, embora no sc desprezasse 0 papel intermediario das lide- rangas funcionais. Assim, em um dos muitos textos de combate ao sistema de partidos e principalmente ao partido unico, Oliveira Viana sustenta que o ideal do Estado Novo € ter um chefe de Estado que +58. (0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO nao seja um chefe de partido, mas uma autoridade que se coloque acima das faccées partidérias c gru- pos de qualquer natureza, de modo a poder dirigir a nagao do alto, agindo como uma forga de agre- gagdo € unificagao e néo como uma fora de desa- gregacao ¢ luta. A pratica politica do Estado Novo, sobretudo em seus primeiros tempos, correspondeu a essa pers- pectiva, tendo-se em conta o trabalho de construgo do personagem Gettilio, 0 reforcgo de poderes em suas mios, com apoio da elite militar ¢ civil, a inexisténcia, na pratica, de érgios corporativos au- ténomos. Ressalve-se que a representagao das “clas- ses econ6micas” existiu, mas sob a forma dos Con- selhos Técnicos, alguns dos quais j4 ctiados antes do regime de 37, como érgaos de canalizagio de demandas, junto ao Executive. Entretanto, 0 Geuilio populista do fim do Estado Novo, apoiado no movimento queremista ¢ por meio dele contando com © apoio do Partido Comunista, fugia ao modelo dos autoritérios. Se havia afinidades entre os pensadores autoritérios e as prdticas populiscas, quando se pensa na verticalidade das relagGes institu- cionais, no recurso a lideranga carismndtica, havia dife- rengas significativas no tocante a ordem social ¢ aos limites da manipulagao das massas. Os idedlogos autoritétios, como jé fizemos refe- réncia, promoveram 0 culto do Estado, como tinica oso BORIS FAUSTO instituigao capaz de elevar o pais a0 nivel de uma yerdadeira nagao. Em um texto de 1930, Oliveira Viana dizia: A subordinagao dos interesses dos individuos, do gru- po, do cla, do partido ou da seita ao interesse supremo da coletividade nacional — da Nacionalidade — ex- prime-se, para cada cidadao, na vida de todos os dias, pela capacidade de obediéncia e disciplina, pelo culro do Estado e da sua autoridade. Hi lugar aqui para este raciocinio: o sentimento nacional forte gera a subordina- $40 do individuo ao grupo; esta subordinaciio gera a obedlitncia ao Estado; a obeditncia ao Estado gera a forga, 4 grandeza, o dominio. (grifo do autor) Esse Estado grandioso seria um organismo novo, muito diverso do controlado por politicos profissio- nais, porta-vozes de oligarquias mesquinhas, presas a seus interesses especificos. Aparentemente, a renovagio passava pela emergéncia de elites esclarecidas, voltadas para o interesse geral, ¢ pela formacao de um muicleo mais amplo, representado pelos técnicos especializa- dos. Ao enfatizarem o papel dessas lites, os pensadores autoritérios estavam obviamente promovendo o estra- to social a que pertenciam: Porém, seria falso deduzir daf que eles fossem simples arrivistas, buscando tao somente um nicho pessoal de poder, especialmente nos casos de Oliveira Viana ¢ Azevedo Amaral. +60- (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Por sua vez, a insisténcia na constituicio de uma verdadeira burocracia estatal, a servigo dos interesses coletivos, estava no ar do tempo ¢ nio cra apandgio apenas dos pensadores autoritérios. Os fatos viriam a se coadunar com tal visio, bastando considerar o papel que os quadros técnicos tiveram no processo de indus- trializagao, a partir dos anos 1930. O regime autoritério, por definigao, deveria ter uma face repressiva para garantir a seguranga nacional, dian- te de inimigos externos e internos. A ameaga subversi- va, superdimensionada, arrastou alids os liberais a con- traditar 0 nticleo de suas idéias, apoiando préticas atentatérias A democracia em varios momentos da histéria brasileira, como ocorreu entre 1935-37 «, ¢s- pecialmente, na eclosio do movimento militar de 1964, De qualquer forma, € preciso distinguir: en- quanto pensadores, os politicos liberais contraditaram suas idéias em nome de considcragées pragmaticas ¢ conjunturais; os autoritérios defenderam a implanta- sao de regimes de forga, como uma necessidade hist6- rica, em decorréncia de suas convicgées. Sob esse aspecto, Francisco Campos foi quem mais se destacou, seja como teérico, seja como formulador da legislagao repressiva ao longo de décadas. Oliveira Viana, quase sempre, deixou apenas implicito esse aspecto do regime autoritdrio ¢ Azevedo Amaral che- goua formular distingées que aparentemente nao agra- dariam a Francisco Campos. Ao tratar das relacoes ab] BORIS FAUSTO. entre 0 exercicio da liberdade ¢ a ago coercitiva repressiva do Estado, Amaral distinguiu entre ativida- des suscetiveis de gerar efeitos indesejéveis para a segu- ranga do Estado, tranqiiilidade e prosperidade da na- so, ¢ as manifestages do espirito que se dirigissem & inteligéncia, insuscetiveis de excitar paixdes sociais pe- rigosas. Exemplificando, o Estado deveria proibir a propa- ganda anti-religiosa, mas nao as consideragées filos6fi- cas com esse conterido; da mesma forma, deveria proi- bir optsculos incendiérios de inspiragao marxista, em tom capaz de excitar nas massas tendéncias & atuagio violenta, mas nao avenda ea leitura das obras de Marx. O recorte era francamente elitista: 0 postulado funda- mental na matéria — dizia Azevedo Amaral — podia ser sintetizado na constatagao de que o exercicio da liberdade para exercer 0 pensamento deve ser direta- mente proporcional a elevacao intelectual e ao grau de apuro cultural da forma dada ao pensamento expresso. Francisco Campos nao se entregou a muitas sutile- zas, em seu combate contra as “doutrinas exéticas”, como revelam os dois exemplos abaixo, que poderiam ser multiplicados. Em um discurso proferido em Belo Horizonte, ao passar em revista integrantes da Legiao de Outubro que ajudara a criar, dizia ele que defender a revolucio brasileira significa “combater seus trés ini- migos: os oriundos do velho regime (governadores depostos, os aderentes hipécritas, os viciados e corrup- tos de toda espécie); os existentes nas fileiras da propria 62+ (© PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO revolugao (céticos, sem convicga0) e os inimigos de origem externa pregoeiros de doutrinas politicas exé- ticas ¢ inaplicdveis para a solugao dos problemas brasi- leiros”. Em um texto de 1940, afirmava: Hi trés lagos que retinem os homens — a religiao, a familia ea patria. Mais do que ninguém, o comunismo sabe disso. Ele combate os trés a0 mesmo tempo ... As monstruosas ideologias internacionalistas visam ape- nas enfraquecer a humanidade no homem para trans- formé-lo mais facilmente em animal de um rebanho miserdvel, tangido pela fome ¢ pelo medo. A grande preocupagio com a seguranga nacional revelada por Francisco Campos encontrou plena cor- respondéncia no pensamento nacionalista autoritério- militar cujo maior representante foi o general Gées Monteiro, comandante militar na revolugao de 1930 € figura central do Estado Novo, presente tanto na ar culagio do golpe quanto na queda de Getiilio em 1945. Na realidade, os militares — dada a natureza da instituigao de que fazem parte — pouco teorizam sobre os “males do Brasil” ¢ suas solugdes. Nem por isso, como se sabe, deixaram de ter uma importincia deci- siva na vida politica brasileira, a partir de 1930, muitos deles articulando e dando sustentagio ao regime auto- ritério. No plano do discurso, Gées Monteiro repre- sentou uma excegao. 63+ BORIS FAUST O pensamento do general aproxima-se do formula- do por Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Francisco ‘Campos, mas nao se confunde com ele. As semelhangas sao notérias: ataque, alids em linguagem desabusada, ao liberalismo; horror ao federalismo; culto ao papel do Estado; insisténcia no tema da unidade com o objetivo de se construir a nagao brasileira. Sob este ultimo aspecto, Gées faz uma leitura em bloco do passado, opondo os tempos coloniais e do Império — que prepararam o Brasil para um destino & altura de suas possibilidades na América do Sul — aos tempos da Republica, regime malsinado, de tendéncias desa- gtegadoras. Entretanto, o general se aparta dos autoritérios civis em alguns pontos. Por exemplo, no plano das instituigbes representativas, a opsa0 pelo corpora- tivismo no aparece em seus escritos, nos quais transparece por vezes a defesa de um partido Gnico, como férmula ao menos temporaria para agregar os defensores dos interesses nacionais. Mas 0 ponto mais importante das diferengas localiza-se em uma visdo militar espectfica. Enquanto os autoritérios civis nao tinham maior simpatia por solug6es militares e nem se dedicaram a tematizar o papel das Forgas Armadas, Gées Monteiro insistiu na missdo central do Exército como poder __moderador, A institui¢ao nao deveria “fazer politica”, mas sim intervir diretamente na vida poli ica, sempre +64. 0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO. que houvesse ameaga de desequilibrio e de desordem na sociedade. O unitarismo no plano politico, o desen- volvimento econémico promovido pela instalacao de induistrias estatais de base, o reaparelhamento do Exér- cito, a ampliago em larga escala do sistema educative etc. tinham por objetivo a emergéncia do Brasil como poténcia média, tanto no plano externo quanto no interno. Para tanto, era necessdrio garantir a seguranga interna ¢impor-se em um mundo destinado a confron- tages armadas. Em suas propostas de construgio nacional, os pen- sadores autoritérios nao conferiram papel significativo a Igreja Catdlica, embora nao a hostilizassem. Apenas Francisco Campos, ao insistir na importincia da “re- cuperagao de valores perdidos”, ressaltou enfaticamen- te o papel da religigo. Por exemplo, ao destacar a legitimidade da introdugao, pelo governo Vargas (1931) do ensino religioso facultativo nas escolas pt- blicas, dizia Campos: ‘Ao passo que, sob a bandeira da doutrina liberal e em nome da liberdade de cétedra, era permitido 0 ensino das mais extravagantes e destemperadas teorias ¢ as escolas se franqueavam todas as superstigdes cientificas € todas as cosmogonias, teodicéias, sob o récule frau- dulento de ciéncia, fechavam-se & religido as portas das escolas como se se tratasse de uma expressio esptiria da natureza humana 65 BORIS FAUSTO Lembremos porém que, a0 mesmo tempo, Campos defendia a renovagio escolar proposta pela Escola Nova, integrada por nomes como Anisio Teixeira, Fer- nando de Azevedo ¢ Lourengo Filho, o que sugere 0 cardter essencialmente pragmitico da defesa do ensino religioso, por parte do autor. Conclusées No arco da direita, cada corrente teve éxitos e fiacassos em doses desiguais. O integralismo, como movimento de massa, caracterizou-se por uma vida ruidosa, mas cfémera, ficando imprensado entre catolicismo con- servador e os autoritarios, admitidas as afinidades reef procas. Os catélicos tiveram considerdvel éxito nos anos 30 © 40, contando com 0 apoio de um eético Gettilio que sabia, entretanto, instrumentalizar a religido. Isso ficou demonstrado logo apés a revolucao de 1930, por meio do espetaculo simbélico de inauguragao da estitua do Cristo Redentor no Corcovado e pela introdugao do ensino religioso facultativo nas escolas ptiblicas. A Liga Eleitoral Catdlica (LEC), criada em 1932, teve grande influéncia na eleigao a Constituinte de 1933-34, mais tarde, em eleigdes que se seguiram & democratizagio do pafs, A LEC tinha por objetivos principais sensibilizar 0s catélicos para os problemas politicos ¢ obter dos +66 - (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO partidos ¢ candidatos 0 compromisso de votar de acor- do com os prinefpios da Igreja, nas questdes bisicas da religiao, da familia e da educagao. Desse modo, a LEC distinguia entre candidatos que mereciam seu apoio ou pelo menos sua complacéncia ¢ entre candidatos que cram formalmente vetados. No que diz respeito aos pensadores autoritarios, cabe lembrar que, embora nio estivessem a frente de um movimento — até porque nao era esse seu papel —, tiveram considerdvel influéncia intelectual entre 1930-45, quando 0 quadro mundial ¢ os dilemas in- ternos do pais, como jé salientamos, pareciam dar raza0 a seus argumentos. A rigor, todos os atores sociais € politicos, com os militares a frente, e & excegao de um, punhado de liberais, ouviram a vor dos autoritétios. Afinal de contas, o “fetiche democratic” estava apa- rentemente desmoralizado e a afirmagio do pafs como nagdo, assim como o desenvolvimento econémico, pareciam depender de um sistema politico “forte”, © Estado Novo representou o apogeu dos ides- logos autoritdrios que cons: nao redutivel a suas principais estrelas. Eles estive- ram presentes nos campos mais diversos, da econo- tufam um grupo amplo, mia a cultura, ¢ tiveram canais de expresso em jornais e revistas controlados ou censurados pelo governo. E 0 caso da revista Cultura Politica, publi- cada entre margo de 1941 e outubro de 1945, sob a diregao de Almir de Andrade. Tratava-se de uma Boris FAUSTO publicagao oficial do regime, vinculada ao Depar- tamento de Imprensa ¢ Propaganda, com 0 objetivo de promover o debate dos problemas nacionais, ressaltando o idedrio estadonovista. Apesar de seu carater oficial, Cultura Politica obteve a colaboragao de intelectuais que faziam restrigdes e até se opu- nham ao Estado Novo. Por essa via, a revista foi um instrumento da cooptagdo que o regime tratou de promover, preferindo esse caminho, sempre que posstvel, a0 da repressio aberta aos intelectuais. A queda do Estado Novo teve como uma de suas conseqiiéncias a desvalorizagao do pensamento expli- citamente autoritétio. Mas a avaliagéo que alguns so- cidlogos ¢ historiadores vieram a fazer mais tarde do regime de 37 ea valorizagao da figura de Getiilio Vargas indicam que a via autoritdria vern sendo encarada com compreensio em muitos cfrculos. A tendéncia de se justificar 0 regime autoritério como caminho necessé- rio para se realizar, nos anos 30, 0 projeto maior de desenvolvimento econémico do pats, por meio da industrializagao, contrapés-se a outras interpretacées que tendem a dar relevo as violéncias praticadas no curso daditadura. Sem adotar 0 maniquefsmo de uma ou outra dessas interpretagées, parece claro o fato de que a tentagao autoritéria e, de certo modo, a “reabil tagio” de seus idedlogos esteve presente na cena brasi- leira desde a queda de Gettilio em 1945 até dias recentes. -68- © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Em que medida as instituigées criadas no Estado Novo perduraram apés sua queda? Deixando de lado as marcas de uma cultura autoritéria, anterior ¢ poste- rior ao regime de 37, podemos dizer que a permanéncia das instituig6es nascidas ou consolidadas durante o Estado Novo ocorreu principalmente no campo da organizasao sindical e das relaées entre capital e tra- balho. Apesar do cardter democritico-liberal da Cons- tituigdo de 1946, a estrutura corporativa manteve-se nessa area, chegando em parte a nossos dias. Os legis- ladores mantiveram as caracteristicas do sindicato, como um organismo representativo, ao mesmo tempo, de trabalhadores ¢ empresarios, ¢ como auxiliar do Estado. Perduraram também o regime de sindicato tinico € o imposto sindical — um instrumento desti- nado a sustentar 0 sindicato sem depender fundamen- talmente da contribuigao de scus associados O regime militar, cuja duragao (1964-85) foi bem mais longa que a do Estado Novo, representou uma recomada das priticas autoritérias e de influéncia de pelo menos um de seus principais idedlogos — Fran- cisco Campos, 0 tinico que estava ainda vivo naquele perfodo. Em muitos aspectos, assemelhou-se a0 Estado Novo, mas em um novo contexto em que, apesar da guerra fria, os regimes autoritérios, justificados como forma de combate ao comunismo, hesitavam em reco- nhecer explicitamente as supostas virtudes do autori- -69- Boris FAUsTO tarismo. A repressao, a violéncia e a tortura contra os inimigos ou adversirios do regime, a suspensao de direitos civis ¢ politicos, a censura aos meios de comu- nicago ocorreram em um grau de extensao inédito na histéria brasileira. Por certo, a legislagdo excepcional e a pratica do Estado Novo ecoaram na modelagem do regime militar. Mas, ao mesmo tempo, mantiveram-se algumas formulas préprias das instituigdes democrati- cas, ainda que mais na aparéncia do que na realidade. © Congreso Nacional funcionou na maior parte do perfodo, a existéncia de partidos foi aceita, embora nos estreitos limites do bipartidarismo, os generais se reve zaram no poder sob 0 manto das “cleig6es” indirctas. Se a proposta autoritéria deve ser repelida, ela toca em problemas sérios da democracia, ao tratar de des- trut-la, Estou me referindo & desqualificagao das regras democraticas, tidas como meramente formais, sendo incapazes de dar corpo a uma verdadeira representag40 popular, além de parecerem constituir um empecilho para a promocio da justiga social. Oliveira Viana, por exemplo, insistia em um tema com ressonancias atuais, guardadas as diferengas. Para ele, a garantia de direitos politicos tinha importincia secundéria em nosso pais, diante da necessidade de se promoverem os direitos civis. Em suas palavras, desde o primeiro dia da Inde- pendéncia, os politicos brasileiros tém etrado como homens de doutrina e como homens de agio. Sua obsessio, no sentido de concretizar a liberdade politica + 70+ © PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO. por meio de Constituigées, lutas, sistemas cleitorais diversos, nao faria sentido em um pais cujos cidadios, principalmente os das classes populares, néo consegui- ram ainda assegurar sua liberdade civil. Em nossos dias, se jd nao se discute a importancia do “formalismo democratico” — alvo no passado das investidas nao sé da direita como também da esquerda —, subsiste 0 problema do que se tem chamado de democracia sem cidadania, que se origina na caréncia de direitos civis, de uma parcela ponderével da popu- lao marginalizada. Ao tratarem de demonstrar 0 cardter anacrénico das instituiges democrdticas, os pensadores autoritérios apontaram para outra questao delicada: a da compati- bilizagdo de algumas de suas instituigGes com as neces- sidades ditadas por um novo tempo, em que novas ¢ complexas relages sociais e econémicas passavam ao primeiro plano. Se as solugées propostas pelos autoritérios para a divisio de poderes é inadequada, sendo na época um instrumento ideolégico para justificar o Estado Novo, nem por isso eles deixam de apontar para um problema real e contempordneo. A tendéncia a absorgao da com- peténcia bdsica do Poder Legislativo, por parte do Executivo, é comum aos regimes presidencialistas de- mocriticos, sendo justificada por razées de necessidade e urgéncia, Hoje parece claro que a divisio tradicional de poderes, em sua forma origindria, ¢ 0 lento ritmo 7 BORIS FAUSTO legislative jé néo se sustentam, dada a natureza das novas realidades do mundo. Nao se trata de converter © Legislativo em mero carimbo de iniciativas do Exe- cutivo, nem de politizar o Judicirio, ou, se quiserem, de “judicializar” a politica. Trata-se de encontrar uma nova férmula de atribuigées e um novo ponto de equilibrio entre os trés poderes, que ainda nao foram alcangados. Para terminar, em uma época em que se tornou moda a relativizacao de conceitos e de comportamen- tos, convém enfatizaro cardter antidemocritico, racista ¢ clitista dos pensadores autoritérios. Nao me parece porém que se deva ignorar seu significado histérico, assim como o valor de algumas de suas percepgées. Fico aqui apenas com um exemplo de Azevedo Amaral, que © distingue de scus confrades autoritérios e faz sentido aos nossos ouvidos. Escrevendo em 1934, dizia ele: Em um mundo que se torna de dia para dia menor pela multiplicagao dos meios de aproximagio interna- cional, ... somos forcados a examinar como nossos todos os problemas que surgem nesta fase de transigio e conflito de tendéncias contraditérias. Os problemas brasileiros so os problemas mundiais, 0 que nao implica em dizet-se que as peculiaridades do nosso ambiente nao refractem os aspectos nacionais daquelas questées, a0 ponto de dar-lhes por vezes uma fisiono- mia inteiramente diferente. 172+ (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORITARIO Em suma, temos boas raz5es para nao gostar dos nacionalistas autoritérios, mas, em varios aspectos, nao podemos consideré-los como simples reliquias do pas- sado. + 73+ Cronologia 1914 Eclosdo da Primeira Guerra Mundial, envolvendo as principais poténcias européias ¢ os Estados Unidos. 1917. Revolusao de Fevereiro na Russia, derrubando 0 regime czarista; em outubro, os bolcheviques comam 0 poder, sob a lideranca de Lenin Trotsky. Publicagéo dos livros de Alberto Torres O problema nacional brasileiro A organizacao nacional. 1918 Fim da Primeira Guerra Mundial, com a derrota da Alemanha e do Império Austro-Htingaro. 1920 Oliveira Viana publica o primeiro volume de Po- pulacbes meridionais do Brasil. 1922 Marcha dos fascistas sobre Roma. Mussolini toma © poder na Italia. 1927 Oliveira Viana publica O idealismo da Constitui- ¢ao, Uma nova edigio ampliada apareceu em 1939. 1929 Inicio da crise econdmica mundial, cujos efeitos se prolongarao pela década de 30. 1930 Revolugo de Outubro; Gertilio Vargas ascende ao poder, permanecendo como Chefe do Governo Provisé- tio até 1934. Publicagao dos livros Problemas de politica objeriva, de Oliveira Viana, ¢ Estudos brasileiros, de Aze- vedo Amaral. : (0 PENSAMENTO NACIONALISTA AUTORMTARIO 1932, Fundagao da Alianga Integralista Brasileira, mo mento fascista liderado por Plinio Salgado. Revolugio paulista contra governo federal, defendendo a constitu- cionalizagao do pats; é derrotada apés meses de combate. 1933. Hitler assume o poder na Alemanha. Eleig6es no Brasil para a Assembléia Constituinte. 1934 Publicagao de O Brasil na crise atual, de Azevedo Amaral. Promulgada a Constituigio da Repiiblica. Getti- lio Vargas eleito presidente pelo voto do Congresso. 1935 Insurreigao comunista sufocada pelo governo Var- gas. 1937 Golpe do Estado Novo; Getiilio assume poderes ditatoriais. 1938 Faccao integralista tenta um golpe fracassado con- tra o governo. Publicagao do livro de Azevedo Amaral O Estado autoritdrio ea realidade nacional. 1939 Em setembro, inicio da Segunda Guerra Mundial. 1940 Publicagao do livro de Francisco Campos, O E- tado nacional, contendo textos ¢ discursos dos anos 30. 1942 © Brasil declara guerra contra as poténcias do Eixo (Alemanha, Itélia e Japao), a0 lado das forgas aliadas. 1945 Termina a Segunda Guerra Mundial. Queda de Getilio Vargas; fim do Estado Novo. Referéncias e fontes Anténio José de Azevedo Amaral, de consulta bésica no assunto, contribuiu mais pontualmente com as obras Extudos brasileiros (Rio de Janeiro, 1930), que traz.a idéia de eugenia referida & pagina 43; O Brasil na crise atual (Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1934), de onde foi retirada a citagzo da pégina 72; e O Estado autoritario e a realidade nacional (Rio de Janeiro, 1938), de onde provém as citagées presentes as paginas 47 ¢53-4, bem como suas idéias sobre a Primeira Republica (p.36-7), racismo (p.43-4) e liberdade de pensamento (p.62) Alvaro Bomilcar. A politica no Brasil ou 0 nacionalismo radical. Rio de Janeiro, 1920. Francisco Campos teve citados seus livros Opinies € debates (Belo Horizonte, 1921), na pagina 553 O Estado nacional (Rio de Janeiro: José Olympio, 1940), na pagina 523 e Educagdo e cultura (Rio de Janeiro: José Olympio, 1940), nas paginas 63 e 65. Seu Arualidade de Dom Quixote, mencionado & pagina 48, é de 1967 (Belo Ho- rizonte: Imprensa Oficial). Todasas citagées, com excegao das de O Estado nacional, foram extraidas do livro Ideolo- gia autoritdria no Brasil, 1930-1945, de Jarbas Medeiros (Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1978). nae = 0 PENSAMENTO NACIONAUISTA AUTORITARIO. Fernando J. Devoto. Entre Taine y Braudel, Itinerarios de la historiografia contemporinea. Buenos Aires: Biblos, 1992. A citagdo sobre os trés inimigos da revolusao brasileira (p.xx) foi retirada do Diciondrio histbrico-biogrdfico brasi- keiro. Rio de Janeiro: Forense Universitéria/CPDOC- FGV/Finep, 1984. Frangois Furet. Le passé d'une Ilusion. Paris: Robert Laf- font, 1995. Eric Hobsbawm, A era dos extremos. Sio Paulo: Compa- nhia das Letras, 1995. Mihail Manoilescu. O século do corporativismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. Remond, René. Les droites en France. Paris: Aubier, 1982. Alberto Torres. O problema nacional brasileiro cA organi- 2a¢ao nacional (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, ambos), foram citados as paginas 25 e 34, o primeiro, ¢ 26-7, 0 segundo. Foi deste tiltimo titulo que se extraiu a idéia de racismo mencionada as paginas 39-40. Francisco José de Oliveira Viana foi citado as paginas 31 ¢ 42 (Populacies meridionais do Brasil. S20 Paulo, 1920), 55 e 56-7 (O idealismo da Constituigdo. Rio de Jancito, [1927] 1939. No caso das duas tiltimas paginas, 0 texto original é de 1922) e 31, 51 e 60 (Problemas de politica objetiva. Rio de Janeiro, 1930). E também deste tiltimo titulo que se extraem suas idéias sobre direitos politicos ¢ civis mencionadas &s péginas 70-1. Cabe lembrar ainda seu livro Raga e assimilagao (Rio de Janeiro, 1932). “77s BORIS FAUSTO O resumo do pensamento militar de Gées Monteiro baseia-se em “O pensamento politico e militar do general Gées Monteiro”, dissertagio de Mestrado de Marcelo José Ferraz Suano (Departamento de Ciencia Politica da FFLCH-USP, 1997). © resumo do pensamento militar de Gées Monteiro baseia-se em “O pensamento politico e militar do general Gées Monteiro”, dissertagao de mestrado de Marcelo José Ferraz Suano, Departamento de Ciéncia Politica da FFLCH-USP, 1997. -78- Hints ai a ny eee es soe peeanspmereesecsncheeseun Sugestées de leitura *# Bastos, Elide Rugai e Joio Quartim de Moraes (orgs.). O pensamento de Oliveira Viana. Sao Paulo: Unicamp, 1993. Bons ensaios, sendo a melhor sintese do pensamen- to de Oliveira Viana. * Beired, José Luis Bendicho. Sob o signo da nova ordern. Intelectuais autoritdrios no Brasil e na Argentina. Sao Pau- lo: Loyola, 1999. Excelente na abrangéncia do arco da dircita e como estudo comparativo. Marson, Adalberto. A ideologia nacionalista em Alberto Torres. Sio Paulo: Duas Cidades, 1979. Andlise bem equilibrada do pensamento de Torres. © Lamounier, Bolivar. “Formacao de um pensamento politico autoritério na Primeira Republica: uma interpre- tagao”, in Histéria geral da civilizagao brasileira (org. Boris Fausto), Tomo III, v.2. Sao Paulo: Difel, 1977. ‘Texto que se tornou cléssico na anélise de uma “ideologia de Es- tado”. * Medeiros, Jarbas. Ideologia autoritéria no Brasil, 1930- 1945. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1978. Muito dtil, sobretudo pela profiusao de andlise das citagbes. * Piva, Luiz Guilherme. Ladrilhadores ¢ semeadores. A modernizacdo brasileira no pensamento politico de Oliveira +79 Boris FAUSTO Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral € Nestor Duarte (1920-1940). So Paulo: Editora 34, 2000. Estudo inovador, enfatizando semelhangas entre 0s auto- res estudados. ¢ Oliveira, Liccia Lippi. A guestio nacional na Primeira Repiiblica, S20 Paulo: Brasiliense, 1990. Bastante signifi- cativo como andlise das varias correntes, sobretudo do “nacionalismo carioca’. © Ventura, Roberto. Estilo tropical. Histéria cultural e polémicas litentrias no Brasil, 1870-1914. Sio Paulo: ‘Companhia das Letras, 1991. Ver sobretudo a Parte 1, com um bom tratamento sobre a mesticagem. * Dado © formato da colecao, nao foi possfvel citar a cada passo autores em que me inspirei. Destaco 0 livro de José Luis Bendicho Beired o de Lticia Lippi Oliveira, este principalmente na parte referente aos nacionalistas ante- tiores 4 década de 20, assim como a obra coletiva sobre Oliveira Viana organizada por Elide Rugai Bastos e Joao Quartim de Moraes. +80- Sobre 0 autor Boris Fausto, nasceu em Sao Paulo em 1930. E bacharel em direito (1953) e licenciado em histéria (1967), pela Universidade de Sao Paulo (USP). Foi assessor jurfdico ¢ € professor aposentado do Departamento de Ciéncia Politica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade, onde obteve os tfeulos de doutor e de livre-docente, respectivamente, pelos De- partamentos de Histéria e Ciéncia Politica. ‘Vem lecionando em varias universidades e institui- s6es do exterior, como a Brown University, o St. Anto- ny’s College de Oxford, a Universidade Federal de Mar del Plata, o Instituto Ortega y Gasset de Madrid, 0 Wilson Center, do Smithsonian Institute. Foi bolsista da “Guggenheim Foundation” e do “Social Science Research Council”. Dentre suas publicagées destacam-se A Revolucao de 1930 (1970); Trabalho urbano e conflito social (1976); Crime e quotidiano (1984); Histéria do Brasil, (1994). Organizou os volumes relativos ao perfodo republica- no da Histéria da civilizagdo brasileira ¢ 0 livro Fazer a América (1999). -B1-

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