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O QUEE ay. «™ Colegdo « » tp Primeitos Passos 286 Uma Enciclopédia Critica A histéria do ciéncia 6 como uma viagem c um labirinio: complexo e fascinante. Na vastidéo de caminhos do conhecimento humeno sobre a natureza, és vezes nos perdemos numa trilha que a historia apagou: Mas logo vem o deslumbramento com essa rota tracada per aqueles que enxergaram e construiram 9 mundo de maneiro diferente da nossa. Aceite o convite para redescobrir caminhos e atalhos, @ refletir sobre 0 passado, 0 presente e o futuro da Ciéncia. Areas de interesse: Ci8ncia, Filosofia, Historia brasiliense ISBN: 85-1 1-01286-9 Alfonso-Goldfarb Ana Mai HISTORIA DA CIENCIA 286 OQUEE HISTORIA DA CIENCIA Ana Maria Alfonso-Goldfarb | | Ana Maria Alfonso-Goldfarb a 4 O QUE E | HISTORIA 5 DA CIENCIA | | editora brasiliense Copyright ° by Ana Maria Alfonso-Goldarb, 1994 , Nevhust pore desta pubicas pads gcavata, “amazes abt on sstemar eetrOices,f.oeepiada, regnadts pooneios ecco; ou outs quasuer imzopso previa da editera Primera edo, 1984 Pveinpreso, 1995 Cour ienapo edcora: Florine Jonas Cesar ‘Revita: Agnado AOI : men TS. Costa { SUMARIO is Darian Dados tne ‘lino: sl, Ane Mar O que & histérin da ciéncin / Ana Mavia Alfonso- £ 2 Ss al So fle: Drea, 1986. — Introdugao ..... 7 eee Caminhos primeiros: uria imagem no Bb gain ad Ener espelho da propria ciéncia 15 i Caminhos contemporaneos: 1a. Ci Mil Se irleepencente de reflexdo sobra a ciéxcia.. 38 om SS ee Indicagdes para leitura ....... covers OF Indices yrs ctslagn sistem 1. Giéachs Pisivia S08 { ! wprfoxa aRASILIENSES A Ay Marguisesan Veen, 771 (01139-905~ Son Paulo SP ie (11) 81-2405 Fae $61 S024 \ "Finds SABDR : Ao mais que querido mestre dos mestres ‘or histéria da ciéncia, ‘Simac Mathias (rr memoriam) INTRODUGAO Complicando 0 que parecia simples Nao ceveria ser dificil entender do que trata a Histéria da Giéncia, pcis o proprio nome jé parece explicar tudo. A‘i- nal, Ciéncia e Histéria sao formas. de conhecimento sobre as quais quase todos tém alguma intuigéo. Vocé pode nao saber nada sobre Ciéncia, mas com- preende quando alguém diz que a cura para tal e tal doenga esid serdo cientificamente estudada. Qu que néo sxiste uma feoria cientifica para provar a'telepatia. Enfim, meso ndo sabendo dizer o que é Ciéncia, voc8 acrecita que todos 9s termos a ela relacionados — cientifcco(a), cierttficamen- te, cientista, clentificismo... — tém a ver com algo objetivo, sétio, exato, € quase sempre importante e verdadero. Aaciocinio semelhante acontece quando alguém pergun- 1.0 que 6 Histéria. Embora na cabega das pessoas exis- am idéias muito diferentes sobre Histéria, tambsm, como e 41. MARIA ALFOHSO-GOLDFARE, no caso da Ciéncie, tados ecreditam saber por intuiedo 0 que seria Histétia. vocg pode confundir Alexandre Magno com Carlos Macne. Mas, pelo meros, vacé deve saber que ‘asses homens sao ersdnagens historicas, que existiran de wverdade e, portanto, ciferentas das personagens de ficgao. © problema é que intuindo o que é Ciéncia eo que & Historia, mas néo ccnseguindo esclarecer, o mais provavel 6 que vocé consiga menos ainda exemplificar c que é His- \oria da Ciencia. Ccorre que as coises nao sao tac simples assim. Ou seja, nav se trata de uma questao de saber ou ndo saber, e pronto! Nao basta juntar +1si6ria 2 Ciéncia para que o resultado final provavelments seja Historia da Ciéncia. E isso nao acontece $6 pcrque a jungao ou a combinagao de duas coisas diferentes quase sempre produz uma tercaira com catacteristices proprias, embora se parega com as que Ihe deram crigem. Isto é verdade para 0 caso de vocé, seu pal 2 sua mae; para a jlanta com enxerto do jardim; @ também para a ligagdo anite teorias. Mas, no caso da Historia da Ciéncia, a compliczgao 6 ainda maior, porque a Historia da Ciéncia, que se lesenvolveu no interior da Ciénoia, som- pre esteve mais prixima da Filosofia (Logica, Epistemolo- gia, Filosofia da Linguagem), do que da Historia, Para falar a verdade, até trinta ou quarenta anos atras, a Histéria da Ciéncia tinha bem pouco de istérico (dos métodos e dos procedimentos da |istéria). Cuando, finalmente, a Historia da Ciéncia passou a usar pra valer métodas e procedimen- tos proprics da Hisiora, ‘ela jé havia se desenvelvido muito, com defeitos e qualidades oréprias. © QUE E HsrOAA DF cin ° ‘A Histéria da Ciércia ficou assim durante algum tempo, cémo uma estranha no interior dos estudos hist6ricos. Aos pouces foi assimilando, filtrando e adaptando elementos da Histéria, que combinava com outros elementos da Sociclo- gia, ca Aniropologia e de varias ciencias humanas. A entra- da desses novos elementos no corpo da Histéria da Cién- cia deu também um novo sabor aos componentas da Cién- cia e da Filosofia que de longa data combinavam-se para formar essa Area de estudos. O resultado que temos hoje 6 uma Histdria da Cidncia complexa e com muitas faces, sem com isso ter se transformaco numa colcha de retalhos. Métodos € processos foram criados para que a His:éria da Ciéncia pudesse adapiar, de inaneira harmoniosa, es- ses conhecimentos variados vinlos das diversas ér2as. Formou-se assim um campo original de pesquisa com vida propria e tudo o mais, e, ao mesino tempo, em constante comunicagao com essas areas que emprestaram seus co- nhecimentos a Histéria da Ciéncie ‘A essa altura, voc deve estar nensando que agora nao tord como saber 0 que 6 Historia da Ciéncia. No comego parecia que 0 proprio nome ja explicave 0 assunte. Depois foi, descobrindo que essa aparente facilidade no nome escondia questées muito complicadas. Como entender algumas dessaé questées sem te’ que ler meia biblicteca, ou se transformar num especialista? Como sanar este pro- bléma? ‘Vou contar uma historia: @ histsria da Historia da Cién- cia, Desse modo vocé podera entender 0 longo processo hist6rico de ansformagao e mudangas que justifica a His- © NA MAGIA ALFONSD-GOLCFAF toria da Ciéncia levar esse nome. Com essa historia, voce tera a possib lidade d2 acompanhar os contornos do labi- Tinto que foram formando a Histéria da Ciéncia. E, assim, quando um dia vocé quiser cu presisar, sera mais facil en- contrer seu prépric camnhe nesse labirinto. Contando a histéria de uma histéria Filoscfia Natural, Magia Universal, Nova Ciéncia, Filoso- fia Exoerimertak esses foram alguns dos nomes com que se téntou batizar, entre os séculos XVI e XVII, 0 que hoje chamamos de Ciéncia Moderna. Muitas caras, além de muitos nomes, teve a Ciéncia naquela época. Ela estava nascendo e havia muita discussio e debates intermindveis a respeito de quais seriam seus pontos de apoio, seus te- mas principais etc. Por exemplo, alguns achavan que a Ciéncia deveria re- tomar os conrecimentos classicos. Aqueles que surgiram na Grécia anliga — por pensacoras que yao de Tales de Miletc © Aristé:eles — e passavam para a civilizagao helenistica e 9 mundo roranc (daf que alguns estudiosos chamem esse periodo de classico greco-romano). Ja outros pensavam que ¢ melhor setia acabar com os conhecimen- tos classicos, comecar da estaca zero © ouvir da propria natureze o que ela teria a contar. Entre esses dois casos exiremnos havia centenas de opi- nides intermediarias, levantades per gru9s — que normal- mente cramamos correntes, linhas ou escolas de pensa- mento — ou apenas por un tinico individuo. Essas origens 0 QUEE HSTERIADA od " complicadas da Ciéncia Modernaslevararr a muitos deba tes, em que todos queriam ter razéic e impor seu modelo para a Ciéncia que estava nascendo. Muitos usavam hist6- tias (ou estérias) bem singulares para justificar suas idéias. Outros contavam a histéria (ou a cr6nica) daquil cue esta- vam desenvolvenco em termos de ciéncia, e com isso acre- ditevam ter argumentos mais fortes no debate. ‘A Histéria da Ciéncia nasce, assim, ligada a propria Cién- cia. Muito mais do que uma histéria, ela é uma justificativa da Ciéncia que esiava se formando, @ tem, portanto, 0 per- fil do debate que esta gerando esta formagao. Entre os séculos XVIII e XIX, 0 debate vai chegando a seu final (pelo menos oficialmente...), 9 vao s3 tormando também oficiais as “regras do jago” em Ciéncia. A Ciencia vai criando um perfil nico, cada. vez mais parecido com aque'e que quase todos conhecam agora. E no século XIX que se cria o termo ciéncia em seu sentido moderno (a palavra ciéncia 6 muito antiga, tém origem latina, e quer dizer conhecmento em geral). E a palavre cientista pass: a sor usada para nomear aqueles que se dedicam a estu- dos especificos. Sao elas, portanto, especialistas que nao podem ser contundidos com filésofos ou técnicos que an- tas circulavam peas éreas mais amplas e indefinides de Filcsofia Natural ou da Filosofia Experimental. E esses outros passaram a se relacionar $6 indiretamente com a Ciéncia Moderma A Ciéncia desse periodo jé sabia para que veio e passa « influenciar desde a mudanga de curriculo des escolas até c desenvolvimento das nagdes (quem nao livesse uma Doa 2 [AN MARIA ALFONSO-GOLOFARS Ciéncia — como até hoje... — perdia 0 trem da Histéria) Nessa fase a Ciéncia nao precisava se: justificada; ela era oficia! e tinha 0 rosto do futuro do planeta. A Historia Ciéncia, semore ligada a Ciércia, passa também por essa transformagao. Novamente ela nao sera uma forma de His- ‘6ria, mas uma erénica intema da ciéncia. Essa espécie de crénica serviria para ajudar os mestres que ensinavam Ciéncia, tanto por meio de livros quanto ao vivo, a dar exemplos do que fora certo e do que fora errado no de- senvolvimento da Ciéncia. E certo era tudo aquilo qué se transtormara na Ciencia daquele momento; errado, tudo aquilo que atrapalhcua Ciéncia para chegar aquele estagio 2, portant, deveria ser evitado, ou ro minimo esquecido. A Historia da Cidiicia sera assim exemplo edi‘icante para 0s jovens estudantcs e motivo de orgulho para os cientis- tas, Fois, por meio cela, era possive saber como a ciéncia ganhou muitas batalhas contra a grorancia, a religio e o misticismo, seus etemos inimigos. Mas come a Ciéncia era 9 futuro, esse passado glorioso foi ficando cada vez mais para irds, Como s2 iosse um enfeite, aquilo que os profes- sores chamam de perfumnaria, a Historia da Ci8ncia foi se tomando poucc importante para quem quisesse aprender ciéncia de verdad. Mas a Ciéncia que parecia um corpo de conhecimentos quase prontes e acabados passou ainda por sérias trans- formagdes no sécuio XX. De lado de dentro da Ciéncia, novas teorias que ndo erar simplesmente o complemento de anteriores surgiram, E também do lado de fore aumen- tou a pressao. Guet’as que se fornavam cada vez mais ter- 6 QUE EHaSTORK ca CENA a rive's com auxilic dos conhecimentos cientifcos, a poluigao que aumentava com os avengos de Tecnologia, tudo 'sso fazia com que fosse necessatia uma critica, sma revisdo dos eritérios da Ciéacia. Griticar, alids, quer dizer analisar os criiérios (normes, regras, principios) de alguma coisa. E se alguns cesses cri- térios tiverem problemas, incluir sugestées para sua modi- ficago. Criticar, portanto, nao é simplesmente pichar algo de que nao estamos gostando, Sendo assim, cs instrumen- tos mneis aflados para se fazer ura critica da Ciéncia esta- vam coma Historia da Ciencia. Tenco convivido intimemen- te corr a Ciéncia e suas transformagées durante séoulos, a Historia da C éncia conhecia como quase nenhuma outra rea de estudos os processes inizmos dels. Era preciso, agora, que a HistSria da Ciéncia ganhasse uma dimensdo verdadeiramente nistorica para que ela pu- desse fazer sua critica ao longo processe, ro tempo, vivido pola Ciéncia. Contando e recontando as muitas h stérias de que se fez a Ciéncia, foi aossivel entender orcblemas, sal- tos 9 falhas que haviam ficado apagados pela aparente con- tinuidade do progresso cientifico. _ Embora envolva muitos problemas, gostaria que ficasse a imagem de uma Histéria da Cidneia comalexa mes inte- ressartissima, Interessante porque recuperou sonhec man- tos soore @ natureza que pareciaim erados palos critérios cientificos; porque recuperou outras formas de ciéncia que a Ciéncia Modema apagara; porque recupercu para a Cién- cia seu papel de conhecmento prroduzido pela cultura hu- mana. Um conhecimento especial, sim, mas que, como 7 14 AN MAPK A.FONSO-GOLDFARES outros conhecimentos, fei constraico e inventado pelo ser humano e, portanto, cheio de idas e voltas. E dai serd pre- ciso apagar aquela imagem da Ciércia como um processo de grandes descobertas de grandes génios que pairam aci- ma da capacidade dos pobres mortais. CAMINHOS PRIMEIROS: UMA IMAGEM NO ESPELHO DA PROPRIA CIENCIA Todos os caminhos levam a Roma. Todos os caminhos levam as India Era ama vez uma Europa que, até 0 séoulo KV, vivia aperaca entre seus muros. A ocidente tinha o grande mar onde ninguém se aventurava, que para eles devia ser ¢ li mite da terra, pois acabava no vazio. A navegagao até 0 século XIV era costeira. Ou seja, contornava-se a terra por mar, sem perder muito de vista a linha da costa. As histé- fias que hoje se contam sobre vikings que chegaram a ‘América e chinesas que navegavam em mar aborto antes de Colambo nao eram nada connécidas na época, Em com pansagéio, ouviam-se muilas histérias de marinheiros que foram e nao voltaram, provavelmente engolizos por algum manstro cu pelo vazio do fim do mundo. A criente ¢ a sul, espreitava o grande mundo érabe, as vezes nals de perto, as vezes mais de longs, mas sempre uma ‘onteira cific! 16 ANE MARI ALFONSO. GOLOFANS de conquistar. A nor, numa época en que nao havia ele- ‘ricidade nem rada, e os combustiveis eram so para lampatinas, existiam os gelos eternos. Estou contando e:.sa historia porque foi no mundo euro- peu, cercado por tocios os lados, onde comegou a fermen- tar as sementes da Viéncia Moderna. Ninguém conseguiu até hoje provar com verteza se essas sonentes da Ciéncia foram 9 que aludou «'s europeus a arrebentarem sous mu- Tos @ se axpandirem por todc o dlaneta. Ou se, ao contra: fio, por terem comeg.ado a arreventar os muros, eles pude- ram trazer, de outras partes para a Europa, as idéias (ou mesmo os materiais 2 0 vil metal) com que regaram e fize- ram brotar 2ssas semertes. Comega ai o labirinto que os historiadores ca ciéaia, dedicados aos estudos das origens da Ciéncia Vicderna tém de enfrentar. O século XV, que quando essa movimentagao toda para destruir muros co- mega a acontecer um forga, fl um século de descoberta dos mais agitados 11a Europa. E um perfodo de redesco- berta da cultura classica e de novas culluras. ‘A redescoterta omega a acon‘ecer em grande escala ‘quando, 10 meio do século XV, 0 Impéric Otomano (que era isl4mico) domina Bi -Ancio (Imaério Romano Oriental, que era cristo), Os biza' tines que fogem para o ocidente euro- peu sabem traduzir diretamente do grego clissico para latim. Acontece que hd muitos séculos c europeu ocidental tinha desaprenddo a ergrego (as tradugoes para o latim eram feitas a partir cas tradugdes arabes dos textos classi- cos), Enlusiasmado:; com essa possibilidade de acesso di- reto & ctltura cléssica. ds europeus iniciam um verdadeiro O QUE E HIS7ORA CA GENCIA 7 festival ce recuperagao de trabaihos perdidos ou esqu dos, e que um dia j4 haviam feitc a gloria da Europa. Essa retcmada ca inicio ao periodo vonhecido come Rena mento (porque renasca a cultura slassiza}, ro qual yao ‘am- bém acabar acontecendo muitas descobertas. Igualmente, a descoberta de novas culturas tem, de al- guma forma, a ver com o abale das frontziras eurcpéias com o mundo islmico. A rota pera as indies, por onde en- travam as maravilhas do Oriente (sedas, percelanas, espe- ciatias e tudo mais} para a Euroja, foi um caminho contro- lado pelos mugulmanos durante séculos. Os mugulmanos dominavam também uma parte 4a peninsula Ibérica (Por- ‘ugal e Espanha) em territério ewiopau. Era ur velho sonho da Europa cristé tomar dos muculmanos essas fronteiras. E, se possivel, estender-se para além delas, procurando um saminho préprio para as Indias que Ihes desse riqueza & forga pava competi- com 0 munc'o islamizo Os cristaos portugueses e esvanhois realizam esse du- plo sonto até finais do século } V. A rota lusitana para as Indias desce pea costa africana (descoorindo lugares por onde nethum europeu havia pisado antes, nem mesiro os. ‘sabios antigos), cruza 0 oceanc Indico e chega a Calcuta, fa India, A ro:a hispanica toma © caminho do nar aberte e, seguindo sempre para o Ocidente, chega as outras Indias: as Américas, \ De uma e de outra rota vo jorrar inameras novidades diante dos olhos surpresos do’: europeus. Para explorar esse mundo que se abria, cheio de novas fonteiras, outros: povos ¢ tantas novidades, era também precise descobrit 6 AN NAC ALFONSD.GOLDFAN, uma outra forma ce conhecimento: uma nova ciéncia. Acon- tece que, para alcurs, essa ciéncia deveria nascer dos co- nhecimentos classicos, da ciéncia des antigos. Afinal, a redescoberta dos antigcs ja havia trazido muitas coisas no- vas e telvez fosse sé edapta-las as rovidades descobertas. Para outros, poréin, as novidades de um mundo com 0 qual os antigos nao haviam nem sonhado deveriam ser conhe- cidas de uma forma tambSm inteiramente nove. Mas era dificil decicir quem estava com a razio. Por uh lado, de fato. as navegagdes, que vao se intensificar muito no século XVI, trezemn para toda a Europa cada vez mais, novidaces que os textos dos antigos cldssicos nao haviam previste. Por exemplo, o céu do hemisfério sul, guia das novas rotas maritimas por cnde outros povos europeus além dos ibéricos vo se aventurar, néo constava em ne- nhuma carta astrenémica dos antigos. Também foi desco- berto que pessoas, animais e plantas existiam em numero consideravel nas zonas térridas da terra (na linha do Equa dor), onde os sabios antigos acreditavam que, por causa do forte calor nada pudesse viver. £ das Américas chegavam noticias de povos, coma os astecas, que, sem usar a roda ‘ou instrumentos de metal (basicos para dar inicio as civili- zagOes qua cs europeus haviamn conhecido até entio}, con: seguiram desenvelver enormes e ccmplexas culturas. En- fim, tudo era tao inédito e diferente que, para poder entendé-lo, parecia necessdrio inventar una maneira tam- bém inédita e diferente de conhecer as ccisas, na qual pu- desse caber tanta nevidade. Por autro lado, os velhos 2 bens textos dos classicos, apesar de nZo mencionarem nerhuma dessas novidades, (©.QUE € HaStOHIA OA CIENCIA 9 tinham servide como guias para’se chegar a outras incva- des iqualmente importantes. Algumas delas aconteseram sem que fosse prec'so sequer colocar um pé fora da Euro- pa. Por exemplo, os pintores renascenlistas serao grandes estudiosos das normas da arte classica, mas véo a parlir elas criar rovas fo‘mas de olhar 0 mundo. A perspectiva, entre outras, foi uma invengao deles: uma técnica para representar a profundidade de uma cena ou um objato pintados 1um tinico plano. No fim, a perspectiva acabou sendo muito mais do que uma simples técn ca de pintura, Ela foi edusando as pessoas a olharem pata as co'sas de una forma diferente. E, assim, hoje vooé clha para uma fo‘o {que tem a superficie plana) e enxerga auto- maticamente os varios planos em que as coisas foram retra- tadas com a maor naturalidade do mundo. Mas néo foi sempre dessa maneira. Povos tao interessantas como os chineses, os gregos e os astecas néo enxergavam en pers- pectiva. Talvaz uma das maiores novidades que 0 textos cléssi- cos ajudaram a produzir foi a propria descoberta da Améri- ca, Parece que Colambo, lendo um desses :extos, shegou € conclus4o de que navegando para o Ocidente ele chega- ria ao Orienta (as Indias), porque a terra era redonda. E isto ara algo em que poucos europeus acreditavam raquela Spoca, mas que varios pensadoies antigos jé tinham ime- ginado. Colembo mirou para as Indias 2 chegou' as Amér- as. Ero de céiculo dos textos consultados por ele? Pare- ce que sim, Mas foram esses mesmos textos que Ihe deram a idéia da viagem que mudaria para sempre os velhos limi- es co mundo. Errados ou certos, mirando aqui e acertan- 20 [ANA {ARIA ALFONSO-GOLOFARB do Ié, os textos dos sdbos clissicos poderiam ser, pelo menos, um bom comugo para um novo conhecimento. E facil perceder po” cue aqueles que retomaram 0 cami- nho iniciado pelos cle'ssicos feram chamados de antigos @ os que buscavam novos conhecimentos para a ciéncia, modernos. Porém, a; vezes, 08 moderros nao eram tao modernos assim nem. os antigos tao antigos, mas se mis- turavam. E dessa mat eira'que ertre os séculos XVI e XVII, vai se formando a cieneia modema. E a Historia da Cién- cia? Que ligagao ela lem com tudo isso? Como ela surge ne meio desse emeranhado de opgdes? Que uso fazem dela antigos e moder''os pera justificar sua opgao? Normalmente, quando se fala de entigos ¢ mocernos, logo se pensa em exemplos da aistéria da astronomia e da mecdinica e em name: revolucionérios como Kepler, Galileu Newton, Todavia, t:lvez seja uma boa ocasiac para co- magar por um exempio rrenos tradicional e possivemente até mais adequaco pura se discutir a questo de antigos e modernos: a medicin de séculs XV, quando surge Para- celso, uma figura das mais polémicas do periodc. Aconte- ce que a medicina ne épaca de Paracelso 6 um dos exem- plos mais complicadcs da Histéria da Ciéncia. Mas, talvez até por isso mesmo ambém um dos mais ricos para falar sobre a Historia da Ciéncia (cu pelo menos sobre como ela jaera usada naquele ‘2mpo). Trata-se de um exernplo com: plicado na Historia di: Ciencia porque, desce os princ{pios da medicina classice,, discutia-se se ela era uma técnica (preocupada com as iomas de curar) cu uma ciéncia (preo- cupada em teorias solxre a doenga e sua ligagdo com outras teorias). Mais complic.ado ainda porque paucas areas do co- (© QUE E HISTORIA OA CIENCIA a nhecimento haviam avangado e se intrometido tantc no ter- ritério das outras ciéncias. Num processo que comegou m tos séculos antes de Paracelso, saberes farmacéut alquimicos, astrolégicos/astrondinicos (que eram equiva tes), @ alé mineralégicos e metenrolégicos, crescam a som- bra da medicina @ pelas maos ¢@ médicos, Essa medicina exagerada —- crea de conhesimentos que, em principio, nao deveriarn fazer parte, diretamente, de sua area de estudos — formava um leque de tendncias ‘as mais variadas. No século XVI, essa aspécie de ciéncia feita de ciéncias nos oferece mastras que vao co caminho extremamente mais antigo (ligaclo a dois mil anos de sradi- cdo médica e filos6fica) até 0 ridicalment2 mais moderno (que dizia nao precisar dessa tradigéo para coisa algurra) Este ultimo seria um caso extremo. E garece ter sido 0 de Theophrastus Bombastus vor Hohenheim alatinado autoralmente Philippus Auteolus: Theaphrastus Paracelsus (c. 1490-154"), ou simplesmente Paracelso, como gostava ce ser chamado aquele que rejvitou toda tradigaa classica conhecita pelos europeus em medizina. Mas antes de qual- cuer consideragao precipitaca sobre como a Hisiéria da Ciencia entrou ou deixou de entvar neste caso, sera neces sdtio formar um rapido quadro de como cada um dos ca: sos extremos (Paracelso versus: dois mil anos de tradigao} construiu sua medina. Pausa para contar ume histéria sauddvel Costuma-se dizer que a mecicina cons derada classice nasceu entre os gregos, mais cu menos, ent’e os séculos a 2 [ANA MAR ALFONSD GOLDFARE Vie Vantes de nossa era, Teria sido Hipécrates (c. 460 A.C. 2) um des seus principais iriciadores e, séculos de- pois, com varias transfoimagées e mudangas, ela passa vo mpétio Romane, influenciando grandes obras mécicas Gomo a de Galeno (c. 130-201 dC). Também para os Tauamicos, na epoca de ouro da sua cultura, essa forma de modicina teve a maior importéncia, gerando trabalhos com> ode Avicena (980-" 097 C.C.), cuja tradugao do arade para Ofatim ere ainda usada pelos europaus na época de Paracelso (urna época em que s6 os textos originals gre- gos ¢ latines parecar ‘er valor. ) Claro que essa longa tradigo, que havia durado quase dig mi anos, tove muitos oporen‘es e inumares versdes, vvariando d3 epoca para égcca, de cultura para cultura o, as vezes, de autor para aulor. Mas, basicamente, ensinev jue a sade era produto do equlorio entre os qualia Mune: tee ou tluidos do corpo: cangue, catarro, bls amarela © né- gra. Cada um dasses humores era © equivalente, no orga- nismo, aos cuatro principios materiais que —— de acordo com os gregos — formavam 0 mundo: ar, Agua, fogo & fora, Cs humeres, assim como os principios materiais possuiam qualidades (quente, ‘ia seca e timida) combina: vias duas a cus.’ © sangue serie quente e umido como © (1) As qualicades eram opostas duns a duns: quonte 2 no. § ‘imide: (1) Ae neh priniio material © aentum tian ora ase frio ou Bor sso roto mes tape. Nos textos hirocraicos, pot exer cada feet stom apenas uma qualidade, enquarto Galeno usa Une ‘combinagao Pam mrlexa d2 qualidades que chega a falar de “Sangue Som ccaracierls- Xa coe gu Haurdtioas (do cata)” O ssqveme aa apvessnicne 6 Meas otal apenas fare que possam sar entendidas a8 questoS também mais gerais do proolema. 0 OUEE HISTORIA DA CIENCIA a ar; 0 catarro, tio e timido como a agua; a bills amarela, quente @ seca como o fogo; @ a bills negra, (ria @ sera como a terra. 1D aumento ou diminuigao de uma qualidace em relacae a culra num humar, produzindo um desequil brio, gerava & doenga. Gomo a doenga era um desequilibrio intemo do or ganisrro, acreditava-se quo era da natureza do proprio Srganismo combater tal desequilbrio, Por exemplo, wna pida fobre ou evacuagdo que queimasse 05 exc28sos de tum numor, ou liquids e alimentos que repusessem as faltas. Cada organismo tinha necessidades Frozrias, inclusive quanto a idade, ao sexo 0 & consttuigao, para recuperageo cemranutengao do equilbrio. Por isso, recomendaya-se dP ta exerciclo e condigées climaticas @ de sono individual Zadas para auxiliar o processo de cure. $6 er ultimo ease jmédico deveria intervir, forgando a eliminagao de exceS- sos com um purgante, uma sangria (t ebotomia) ou mnis- trarde remédios contrarios & manifestagao da doenga. Por axemplo, uma doenga de manifestagao quente era sintoma. Je fala de tris no organismo; portanto, o rerrédio deveria Ser de natureza fria. 0a masma forma, no caso de docn- gas que se manifestam tmidas, os remédios deveriar & var a secura do organismo. (Quase sempre esses remeédios eram feitos de ervas costunavam nao ser muito fortes, pois, como ja dissemos, © objetivo era apenas auxiliar 0 organismo a encontrar seu préprio equilibrio, Tal foi a medicina humoral (que dowwa da falavra humor), que usava o método dos contrelias (romé- Free de qualidades concrarias & manifestacao da decnea) para repor o equilforio e a satide do orgarismo, Pois bem, Peracels9 rejeitou essa longa nistéria. Alias, fez questa de nunca corté-la, chegando mesmo a quei- mar livros de Galeno ¢ Avicena em praca otiblica para pro- var que nao precisava de seus ensinamentos nem de sua tradigao, Para ele, a sibecoria sera encontrada apenas no livro sagrado (a Biblia) @ no livro da natureza (com a obser- vagao direla e atenta ciesta) Segundo Paracalso, qualquer curandeiro deveria saber mais sobre as doeng: os grandes doutores (19 passado, tao afastados no tempo. eno espago dessas realidades. Minal, nada estava escrito nas paginas dos c'dssicos sobre os meles que assolavam a Europa naquele perfcxio, como a siflis (que parecia entrar pela rota das Indias Ocidentais) ou os ferimentos causados por pdlvora (cue se to! neram comuns nos campos de bata- tha depcis da invengav: de armas portateis no século XV) Mais ainda Paracols9 ndo acteditava que a pouca eficién- cia da medicina classiva na cura das doengas fosse s6 um problema de mé:oco auitiquade. A propria nogao de doenga, pensava ele, esiaria e:rada nesses textos. Nao seria o de- sequilibrio do organismo a causa da doenga, mas uma agresso externa, um. espécie de envenenamento que o corpo néo consegtia combater. E, para um envenenamen- fo, nada melhor que wm antidota: uma pequena dose do proprio veneno, A idéiz era dar ao compe as mesmas armas do mal que Ire atacava, para cue ele tivesse condigao de vencer 0 combate, Perianto, iguais curam iguais— este era © principio da mediciria popular usada pelos curandeiros. Paracelso acreditava que esta eva a forma correta de com- bater e curar as doengas, e néo a maneira da medicina humoral, na cual a cura viria por msio dos contrérios. Remeédios fortes, com base ein minerais (que era con- siderados pelos médicos da época como venenos que deviam ser evitacos), foram usacios por Faracelso. Algumas vezes 0 doerte ficava ainda mais envenenado e morria... mas, em outras ocasides, doentes que pareciam incuraveis axperimentavam melhora... @ ate cura. Doentes com sifiis, por exemplo, eram tratados con’ mercuirio, uma das subs- t€ncias mais tarde usada no reinédic que hoje cura esse mal. Retomando o fic da meada Ficou fécil, por exemplo, perceber como os anticos {aque es ligados 4 medicina classica de dois mi ences) de- viam usar a historia dessa tradi¢So para justificar suas déias. Ainda mais no século XVI, quando uma enorme quentidacle das obras cldssicas haviam sido traduzicas (Ira- dug6es das tradugdes drabes jd faziam parte dos estudos universitérios desde os séculos XI! e XiIll), @ seu estudo fa- zia parte do curriculo das escolas de medicina. Grandes trabalhos em anatomia foram ‘eitos nesse sé- culo, usando a dissecagao de cadaveres, mas seguindo déias da medicina classica pari se justificar. Entre esses rabalhos, talvez 0 mais notave! seja 0 tratado De fabrica humaal corperis (1543), feito por Andreas Vesa ius (15°4- 1564) mécico belga que estudou em Paris e lecionou em Padua, figura representativa do periodo. Nas belissimas 26 [ANY NAFIA ALFONSO-GO_OFARE ilustragdes de seu De fabrica, Vesalius corrige alguns dos principais erros em anatomia que haviam oregado até sua 6poca. Por exemplo, a falta ce uma costela no sexo mas- culino (gerada pela idéia de que Acao perdera uma coste- Ia) cu a presenga de cinco ldaulos no figado humano (ge- rada a partir das dssecagies de Galeno em figados de porco). Apesar disso, Vesalius contiauaria sendo um antigo {na nossa diviséo entre antigos e modernos}. Sua maior ambig&o no De fabrica era alualizar ¢ aotimorar as obras de mestre Galeno. Assim, as idéias do grande médico do comego de nossa era, ndo so criticadas mas cortigidas por Vesalius. Nes paginas do De fabrica essas idéias so 0 mo- delo sobre 9 qual Vesalius justifica seus avangos (€ alé seus equivozos) em relagao a uma tacigéo médica milener. Nessa mesma linha, um exemplo ainda mais explicito & ode Georgius Agricola (1494-1555) em seu De re metallica, publicado um ano epés a sua merte. Agricola (alids, uma tradugao latina, coniorme a moda da época, de seu verda- dairo sobrenorre: Baur, ou seja, agricultor/camponés) fez estudos fiosdficos en ‘erras geimanices e mécices, nas ita- lianas, fixando-se dapois na rego de Freiserg, entéo um dos distritos mineircs mais mportantes da Europa central. Aji, em meio @ sua pratica médica, Agrico'@ aprendeu os segredos dos tratalhos nas minas. E digo segredos porque, até entio, pouco havia sido escrito cu publicado a esse res- peito, A nao ser, é claro, que consideremos os trabalhos dos grandes classicos que, seguinco a crientagao da obra do Aristétales, costumavam dedicer uma parte de suas teo- rias sobre a matéria para explicar a formagao dos minerais edo que chamavam materia subterranea. ©0.QUE € HSICRIA DA citric 2 Agricola, de fato, lava em consideragao esses trabalhos. E, na seqiéncia de seus varios livros sobre 0 tema, que culmina com De re metallica, ele parte dessa tradigao tear. ca, conla mesmo um pouco de sua histéria, para depois introduzir novidades, Essas novidades (au segredos dos mireiros, que 0 puiblico en geral ndo conhecia) eram as formas de encentrar e trabalhar as minas (incluindo mélo- dos, instrumentos e gerenciamento), assim 30mo separa- G0 e purilicagao dos metais e até as doengas dos minei: 10s. Algumas obras de Agricola ‘alam também das aguas ¢ dos animais subterréneos. Mas em todas, de alguma ma- seu diélogo com a cultura dos classicos esta presen- te. = como se as novidades ganhassem mais pesc quando ligadas a uma onga tradigéo. Para Agricola, assim como para Vesalius, os classicos foram a base tedrica de uma ciéncia que eles estariam ajudando a deservolver e apri- morar com observagSes e praticas noves. ‘A histéria dessa ciéncia, sempre que contada ou mencio- nada por eles, jusiificaria suas novas idéias. As novidades por eles descoberta se encaixariam com perfeigao resse velho, longo e kom caminho do conhecimento hurano: se- tiam seu prolongamento, sua seqiiéncia e sua conseqién- cia natural Vesalius e Agricola sao, portanio, exemplos de antigos porque retomaram caminho iniciaco peos olissicos. Mas. come a maioria dos antigos, eles nao foram tao entigos assim, pois retomavam os antigos para explicar coises re- almonte novas. Alinal, essa forma de pensar que tinham essa vontade de atualizar @ cortigir os cldssicos era, por si mesma, algo de novo no horizonte eurapeu! 23 NK MABIA ALFONSO. GOLDFARB Ahistoria da ciénei:, do corhecimento e da filosofia dos classices nao haviam servide, na Eurcpa cristd, para falar ou justificar a transtomagao de coisa alguma no conhe- cimento: eram a prépria ciéncia, 0 préprio conhecimento, Pausa para contar uma histéria As avessas Os renascentistas no foram os primeiros a estudar os clissicos. Muito embora eles acveditassem que eram os prmeiros, apds daz s3culos, a entender de verdade essa cultura e, portanto, os Jnicos que podian fazer com que ela renascesse. Até invantaram o termo idade Média (lempo intermediério ou tempe: de espera) para der nome, de forma meio depreciativa, a esses mi anos que eles consideravam indteis em termos de contecimento e que se localizava entre a Juz da cultura jreco-romana e a luz de sua propria cultura, Isto porque os renascantistas cansidaravam que os bizantinos tinham apeuias arquivado os classicos; 0s arabes haviam corrompido st as idgias; e os europeus medievais mal entendido seus te «tos (pais usavatn cuase sempre tra- dugdes} e amarrado sas idéies com preceitos religiosos. (0 tempo revelou outia hisiévia sobre a idede Média que vale a pena conterir). Mas, conlorme tive oportunidade ce explicar anterior- mente (p. 25), 0s mecievais europeus jd haviam estudado 0 classicos e, pelo manos desde o século XII, um bom vo- ume deles. Acontece que a cultura mediaval européia foi, quase sempre, uma culture crista, organizada pela Igreja Catdlica. Era, portant, uma cultura religiosa guiada pelo C.QUE E Histor 0» CIENCIA 20 texto biblico em cue estariam as vorcades que deveriam ser sequicas como leis. Quaiquer idéia, qualquer teoria que i- vesse sido preduzica fora dessa realidade deveria ser ena- lisada cuidadosamente para ver se nao entrava em conflito com 0 texte sagrado ou pelo menos deveria ser adaptada a ele, Os classicos vindos de uma cultura paga tinham que passar por uma espécio de selegio e sncaixe. Verdadeiras maravilhas e malabarismos foram praticados pelos medievais para cristianizay varios desses trabelhos. Dasta forma, Aristételes, o granile sdbic greco do século V a.C,, sofreu uma das obras de engenharia de or'tian'- zagao das mais complicadas. A Yerra que ele considerava ‘centro do universo (alias como a maioria dos gregos) foi associada 4 icéia biblica de que © ser humano era 0 centro da criagao. Dai se concluiu que ala davia ser 0 centro do universo, coro dissera Arist6teles. Claro que sempre so- bravam alguns preblemas. Por exemplo, Aristételes nao dera data para o comego do muntlo (alls, no esiava preo- cupado com nenhum tipo de cronologia soore a formagao do mundo, mas no porqué dese processo), enquanto para 9s cristéos a cronologia da criagao era uma questado biblica fundamental. Mesmo assim, Arisiételes faz enorme suces~ 50 entre os mediavais, Gom o tempo acabou por ser cha- mado de O Fildsofo, e seus textos considerados tao dentro das normas que quase eram a pidpria le! Geralmente em menor escala (porque a obra aristotélica corhecida pelos medievais teve especiais privilégios) a questao da cristianizegao dos clissicos girou nesse eixo. Os falos novos eram comparados a exemalos dos textos 20 ANA MARIA ALFONSC.COLOFANS classicos (perdendo assim seu carater de novidade), que por sua vez eram comparacics & exemplos biblicos que tam- bém eram verdades atainas e intocaveis. Dai que, se toda a verdade ja asiava na Biblia e os textos classicos serviam apenas para torné-le mais evidente e compreensivel aos comuns mortais, c1ejamos ao panto de partda. Esses textos nao eram vistos como um processo de co- nhecimento com sua histéria de translormagées e possiveis evolucées: eles eam o préprio conhecimento, a propria iéncia. Suas paginas, escritas ha centenas de anos, eram avidaments consultades & procura de respostas para pro- blemas da época. Nas universidades, eram estudados @ debatidos os sistemas de verdades dessas obras, mais do que suas questdes especificas, 2 08 curriculos aumentavam com teorias cléssicas em geral. Em campos como a medi- ina, em que, além do mais, havia também que se traba- Ihar os sistemas das grandes autoridades médicas do pas- sado, esses aumentos eram um exagero. Os estudantes salam versados nuna verdade ra ciéncia das ciéncias, eram mais fil6sofos do cue clinicos € (camo a maioria no perio- do} mais antigos do que os proprics antiges. Claro que asta ¢ uma espécie de caricatura do medievo cristo, quando algumas das m2is bolas obras de pensa- mento humano foram feitas, n2m sempre sob a ditadura dos classicos. Por exemple, no séculc XIV, saltando as teo- rias aristotelicas (e até resclvandc suas questdes problema- ticas), um grupe de pensadares criou teses bastante or rnais sobre somo 0 evimento podia continvar mesmo tendo dosaparecido a causa de sta ovigem (a chamada tooria do © QUE E HSTeRIA DA CIENCIA 31 impeto) Assim, nc caso de langamento de urra flecha (algo poucs claro em Aristételes), 0 arqueiro teria imprimide cor- to impeto que iria se gastando até acabar. O que explicaria a gradual diminuigao de movimento ® a queda da tlecha Esta teoria e vérias outras nessa século criaram um movi- mento que foi até balizado como via nova, Mas ha que se tomar cuidado com isto. Os autores de tais teorias tinkam 08 olhos fixos na solugao de cartas questbes teolégicas para melhor entendimento do texto sagraco, ndo na criagac de teorias sobre a natureza simplesmente para aumentar 0 conhecimento humano. Existiam, poranto, antigos verdadeiramente antigos, para quem a Histérie servia apenas para provar quéo ignorante era.o ser humano sobre as verdades divas. Mas nao pen- se que foi 6 comegar 0 movimento renascentista e, num. passe de magica, tudo mudou. Os primeiros renascentistas {também chamados humanistas) costumavam pensar que o mode’o greco-romano era perfeito, @ cue devia ser imita do tal e qual. Nada havia a corrigir ou acrescentar se a tra- dugaio dos originais fosse perteita. Alguns estudiosos cizemt que teria ocorrido um deslocamento das verdades, do ola- no divino para o plano humano, ¢ com isso 0s primeiros bro- tos co conhecimento humano como processe histérico Som diwida, hd no periodo uma grande valotizagaio do co- nhecimento humano, mas esta questéc continua dificil de resolver. Prefiro, assim, me referir aos humanistas ainda como antigos ro espelio. Ou seja: eles gostariam de po- der olher a imager dos cléssicos e ver sua propria imagem tefletida. Com 0 passar do tempo, a imensidao de verda- x AN? MARIA ALFENSO.GOLDFARE, des foi mudando esse enfoque A medida que mais e mais textos antigos eram descovertos e traduzidos, foram cres- cendo as evidénzias de que, talvez, as teorias ali presen- tes ndo fossem t4o | efeitas assim, Na maoria das vezes, “ mesmo de posse de originais completos @ bem traduzidos, no era facil nem diveto o uso dessas teorias para enten- der as questdes de tima Europa a cada dia mais complica da, Talvez fosse 0 momento de virar a Historia as avessas em vez de corrigir a. anligas tecrias... Retonandc 0 fio da meeda ‘A medicina, ume das araas mais atetadas por essas complicagdas — novas dcengas, novas concigées para corpo humane a‘é de nutriga, de trabalho —, foi também uma das primairas «m que a recessidade de repensar as velhas teorias ird ‘omando forma. Até orque poucos deviam estar mais lem equipados para esse trabalho do que os mécicos: intimos dos olassizos @ curiosos de dreas alheias havia séculos: e sécules| Dai que Vesalius e Agricola fosser tio bons exe-mplos de antigos que estéo comegan- co a se afaster da tiacigao. = = Corrigindo e atuaizanco essa tradigéio, estao dizendo cue ela nao esta pronta e acabada desde a época dos clds- sicos. Mas que 0s conhecimentos ali contides podem so- frer um processo, prdem ser complementados, podem se transformar com o \empo; tém uma hist6ria. Uma historia que se move, aceiti € justifice novas descobertas. Enfim, esses antigos nem {io antigos do sécule XVI, ao pensarem © CUE E HISTORIA Da cl assim, ajudaram a criar uma das primeiras formas moder- nas de Hist6ria da Ciéncia conhecida pela Europa cr sta. Agora, uma coisa era corrigir e outra bem diferente era contestar. E a medicina, como protetora dé aiéncia que continuava sendo no século XVI, tumia os excessos. Claro que no meio desse temor havia a3 autcridaces religiosas (que a essa altura nao eram s6 caldlicas) € aié civis. Pois, Zelosas de seu poder, elas estavain sempre as voltas com qualquer novidade estranha que pudasse pér e perder a alma de seus figis ou a cabega de seus pagado-es de im- postos. E claro também qua uma parte vlessa vontade de justifi- car as novas idéias esté relacionacla eo temor de it contra essas autoridades, Mas por sobr tado esse panorama complcado havia uma espécie de rede do persamento. Uma forma de olhar e entender o mundo e a natureza q influia tanto sobre cs reis € os bispos como sodre os médi Cos © 08 teceldes. E essa rede do pensamento que, coro jd foi visto, vinha de séculos e séculos na Europa cris:d, estava comegando a se romper en muitos fontos. Sera scbre esse processo de substituigdo e reforma da velha rede por outras maneiras de pensar a natureze que vamos falar (@ que ja temos falado). Porque sera neste proceso que irdo tomar forma as varias perspectivas de Hstoria da Cikncia. Quanto aos problemas religiosos, politicos ¢ séci-eco- némices que, sem divida, sé0 muiio volumosos e compli- cados nesse século XVI europeu, stigiro, até para que sea mais bem entendida sua importancia, que vooé consulte a enorme bibliografia sobre esse periods, feita nos dias de [ANA MATA ALFONSO GOLDFARD hoje por excelentes especialistas. Continuaremos, como ja temos feito com outros periodos, introduzindo aqui e all al- umas explicagées répidas desses problemas quando eles forem diretamente ligados ao nosso tema. Pois bem, a medicina do século XVI era a ciéncia da vida e da morte, © ha muilo tempo estabelecida como um dos poderes, um pélo de conhecimento autorizado na Europa. Tinha, portanto, esse pdlo seus proprios mecanismos de detesa contra 08 excessos no conhecimento. Assim, por exemplo, um certo Dr. John Caius, humanista de algum prestigio na Inglaterra @ por isso presidente do Colégio de Médicos ingleses, ordenou que fosse preso um jovern dou tor de Oxford. E isto porque haviam Ihe informado que o tal jovem contestava a obra de Galeno, apontando varios erros que a tomatiam invalida. Dessa prisao ele s6 sairia quando fizesse uma retratagao publica reconhecendo os excessos que havia cometido. Nada de excessos portanto... A medi- cina nao estava preparada para mudangas radicals. Dai, como eslariam os modemos nesse quadro? Ainda mais se 0 moderno fosse um caso extremo como Para- celso, que, além de arrasar 0 conhecimento dos classicos (chegando a queimar os livros destes), propunha sua intel- ta substituigao pela estranhissima filosofia quimica (uma forma de conhecimento que atingiria nao s6 a medicina mas todas as ciéncias)... Seja IA pelo que tenha sido — ¢ até hoje nao se sabe qual desses dols falus ‘escandalizou mais 9 meio universitario —, 0 caso é que ele acabou expulso © execrado, Nao havia, entéo, uma esperanga para os mo- demos? A curto prazo ndo, mas a Historia se encarregou de mostrar que eles acabaram Jevando a melhor. Certamente que para conseguir isso os modemos tive- ram que se justificar, convencer aos demais (@ as vezes a si prdprios) que suas teorias valiam a pena, Uma das ma- neiras foi usar a Historia (mas claro que uma Histéria dlife- rente da que usavam os antigos), criando assim sua pers- pectiva de Histéria da Ciéncia. E natural, entretanto, que alguém como Paracelso (aparentemente um moderno raci- cal) néo julgasse necessario introduzir nenhum tipo de his- t6ria para se justificar. Ao contrario, seria melhor negar to- das para que as novidades ficassem ainda mais evidentes, mais claras por elas mesmas. Talvez esteja justamente ai um dos motivos para a falta de aceitagao inicial de sua teo- tia. E, de fato, no ha sequer um esforgo hist6rico em sua obra, a menos que sejam consideradas suas meng6es pou- co honrosas aos classicos para citar inutilidade e ignoran- cia deles. Isto nao deixa de ser uma forma muito especial de fazer Historia da Ciéncia: falar dos erros do passado e assim des- tacar os acertos do presente. De certo modo ja existiu essa Historia da Ciéncia muito peculiar. Mas isso foi na época em que a ciéncia modema nao precisava mais ser justifica- da. Além do mais, tratava-se de um trabalho histdrico que geralmente se resumia a andlise das questées ldgicas e afins das teorias antigas. Era, portanto, considerada como uma forma isenta de tratar 0 passado, ou pelo menos nado lo ofensiva como a de Paracelso. Outra era, na verdade, a questo histdrica em Paracelso. Pois mesmo parecendo extremamente moderno ele nao era tao moderno assim. Antes de mais nada, ele criticava com dureza a tradi [hn \ MARU ALFONSO-GOLDFARB, classica por acredit.r que outra tradigéio — considrada na época ainda mais antiga — fosse a verdadeira: a biblica. © Génese princigalmente, dizia Paracelso,trazia mals verdades sobre a iormagdo da matéria do mundo e dos humanos, por obra de Deus, do que as teorias pagas dos quatro elementos (Agua, tera, fogo e at) © dos quatro humores (sangue, watarro, bilis amarela e negra). Agora, mais interessante «ra que, depois de fazer muitos elogios aos conhecimento:. da Biblia sobre os quais deveriam se basear os novos conhecimentos observados diretamente na natureza, de fato, « modelo seguido por ole foi outro. Paracelso usou de trés prinopios basicos: moratiio, en xotre, sal (respectivament, principios quldo, fogoso © °° lido ou espirito, ala @ materia) para explicar a natureza & © ser humano conio um destilado desta. Acontoce que 4 teoria do enxotre ¢ merctrio era uma teoria criada pelos al- quimistas arabes j»elo menos desde o século 1X ou : para explicar 0s minera's. Além disso, Razes (também um famo- 50 alquimista ¢ m5dico mugulmano do século X) iat i considerado 08 seis como da maior importancia, tend fe to um longo estudo destes. E, mais ainda, usava férmulas com minerais na ‘ura de seus pacientes, ajudando a criar a iatroquimica (quimica médica) que Paracelso dizia te i ventado... Para completar, foi Amaido de Villanova (4 - 1311), nascido en) Valencia pouco depois dessa regido tor sido conquistada dos arabes pelos cristéos espanhdis muito antes de Paracelso, quem defendera e comegara 7 fazer uso dos piincipios da chamada medicina popula (iguais curam iguits). © .QUE E HISTORIA NA GitNCIA a Com tudo isto, Paracelso nao sé esta seguindo uma an- tiga corrente alquimica e médica. como, também, perpetti- ando um velho hébito da medicina: ampliar seu campo tra- zendo para si outras areas do conhecimento. Pois sera partindo da alquimia e tomando ampréstimos da mineralo- gia, da astrologia etc. que Paracelso ira construir sua visio de natureza, ser humano e satide, Nao deixou, entretanto, de ser interessante a nova obra de nosso moderno nem tao moderno. Ja que ele acabaria remodelando e até dando uma nova perspectiva a conhecimentos que, por serem quase todos medievais, e principalmente arabes, teriam do- saparecido em siléncio, engolidos pelo rio renascentista. De qualquer forma, esta historia nao ioi contada por Paracelso, Mas sera, em parte, recuperada por alguns de seus futuros seguidores, para justificar (exatamente como faziam na mesma época os antigos) as transformagdes que eles con- sideravam estar introduzindo nuina antiga tradigéo alqui- mica @ médica que partird do len«lério Hermes Trismegisto @ do Moisés biblico (e nao de Aristételes nem de Galeno). Como isso no vai ter nenhuma influéncia em Paracelso (pois seus seguidores surgem dévadas apés sua morte), 6 preferivel continuar pensando nel como um moderno, ain- da quo sorrateiramente antigo. Na medicina, provavelmente pela iqueza de temas que envolvia e pela complexidade de seu objeto de estudo (a satide), 0 debate antigos versus modemos continuou ani- mado por muito tempo. Cada vez inais uns e outros se con- fundiam, tomando também cada vez mais dificil distingui- los pois, de lado a lado, chegan: contribuiges novas e 8 ANA MARIA ALFONS justificagdes antigas (embora diferentes). Tanto que, em 4631, num livro sobre 4guas minerais, tema na época do maior interesse tanto para a quimica como para a medicina, ‘9 médico inglés Edward Jorden fica a meio caminho, ape- sar de sua declarada intengao de pertencer aos modemos. ‘Assim, {az criticas decididas aos classicos, adverte sobre a necessidade de se manter uma posigao independente a es- tes © apresenta resultados verdadeiramente modemos de suas andlises sobre as Aguas. Mas, ao mesmo tempo, néio consegue deixar de citar pesadamente os textos clissicos @ acaba reconhecendo que, errades ou certos, os antigos abriram muitos caminhos sem os quais nao se teria chega- do a ciéncia daquele periodo. De qualquer forma, ao longo dos séculos XVI e XVII, essa situagdo estara presente em quase todos os campos do conhecimento. Talvez com exemplos menos ricos em nuances do que a medicina, mas em algumas areas de ma- neira mais radical. Assim, na astronomia, em que as cartas dos movimentos celestes serviam para fazer desde 0 mapa astral de um doente ou de todo um reino até o calendrio ou ainda a rota maritima dos viajantes, a situagao vai se tomar aguda. Ai existe uma quebra radical entre antigos (no caso, 05 que seguiam a linha tradicional da astronomia clés sica) modemos. A questdo era a seguinte: Cldudio Ptolo- meu, um helénico do século I! d.C.., partindo de alguns dos sistemas astronémicos da antiga Grécia, aprimorou-os e fez ele também um belissimo sistema para explicar os movi- mentos dos céus que, com pequenas modificagdes, era ainda usado no século XVI. 0 QUE E HISTORIA DA CIENCA 2 Tratava-se de um modelo de universo geocéntrico (com a Terra no centro) como quase todos os pensadores gre- gos diziam que devia ser (mas veja bem, nao todos...). Em volta da Terra, que era fixa, giravam as érbitas dos plane- las, das estrelas fixas (por isso usa-se o termo firmamento), até as titimas esferas que fechavam 0 universo: uma esfe- ra de cristal, que dava o limite; e outra que imprimia 0 mo- vimento inicial ao sistema como um todo. Explicando de for- ma sofisticada os ziguezagues dos planetas que parecem ter movimentos de ida e volta em torno de suas érbitas, ele mantinha o movimento circular das rbitas, que era um dos ctitérios de perfeigao dos gregos. O céu era perfeito, por- tanto, devia ter 0 movimento mais pereito, que para eles era o circular. Além, 6 claro, da Terra no centro, do univer- so fechado e movido pelo Primum mobile (0 primeira ‘movedor), um dos preceitos de Aristételes que, como vimos, era um dos principais representantes do pensamento gre- go antigo. As idéias de Ptolomeu tinham, portanto, tudo para durar. E duraram mesmo quando as posigdes dos corpos celes- tes nao coincidiam com as previsées feitas por sua astro- nomia. Problemas com o calendario e os mapas dos navegantes foram ficando cada vez mais sérios por conta de toda a movimentago européia desde o século XV. Mas, como 0 sistema de Ptolomeu era muito ligado as teorias de Aristételes, e estas tinham virado lei na Europa, nao era facil modificar esse sistema. A questo do movimento perteito no céu @ da Terra no centro do universo, além de tudo, eram preceitos religiosos intocdveis. Mas, diferente da me- dicina, estava-se trabalhando com um sistema matematica- mente calculado, e inuito bem calculado, que quase nao admitia corregées. Nao havia muitas possibilidades para que 0s antigos fizessem as poucos corregdes e mudangas sem amassar totalmente Ptolomeu, Aristételes e os preceitos religiosos. Dai que aqueles que tentaram, acabaram mudando com- pletamente o sister. do mundo. Foi um trabalho de mo- demos, de quebra quase total com idéias anteriores. E tal- vez por isso seja o campo no qual historicamente mais se buscou os herdis revalucionarios da ciéncia moderna. (O mais interessanie de tudo isso é que 0 movimento de ruptura com os antiqos foi patrocinado pela teoria de um mais que antigo. Unr superantigo que acabou se transfor- mando numa espécie de pai dos modemos. Seu nome era Nicolau Copémico (1473-1543), um contemporaneo de Pa- racelso. Fora um religioso polonés que havia estudado na Itdlia e tinha sido influenciado pelo humanismo. E ficou tao encantado com essas idéias que acabou querendo cortigir © que ele considerava um erro de Ptolomeu em relagao as verdadeiras idéias clissicas. Ptolomeu explicava 0 zigueza- gue dos planetas por um esquema sofisticado em que a orbi- ta continuava em mo /imento circular perfeito, mas o planeta no (ele fazia uma e:pécie de parafuso em torno da érbita) Pois ben, Copémicw: considerava isso uma corrupgao dos principios classics, & saiu procurando uma maneira de fa- zer com que 0 prépiia planeta tivesse movimento circular, portanto, que esse movimento coincidisse com o da sua or- bita. A opgao foi abiindonar 0 modelo geocénttrico (com a Terra no centro), que jd havia sido explorado quase ao mé- ximo pelo sistema de Ptolomeu. !Provavelmente, Copémico encontrou sua inspiragao em textos de outro ou outros clas- sicos (de Aristarco de Samos, um grego do século Il a.C., ou textos posteriores falando sobre sua teoria), em que se dizia que © Sol (@ nao aTerra) 2ra 0 centro do universo Logo, se a Terra era mais um dos planetas, ela deveria gi- rar em tomo do Sol, ou seja, esteva em movimento. Esse modelo de cosmos heliocéntrico (com 0 Sol no cen- tro) onde a Terra se movimentava — que até hoje é 0 mo: delo de nosso sistema planetario, embora nao mais do uni- verso — jé nao fora aceito na Grécia antiga. E, na época de Copémico, foi um choque que provocou muita polémica ¢ fez com que a maioria dos que quisessem falar de novi- dades sobre este tema passassem ao lado dos modemos. Assim, Copémico, um superantiqo, porque queria cortigir aqueles classicos que, no entencler dele, nao haviam usa- do corretamente as normas cléssicas, acabou sendo um ‘exemplo para os modernos. Talvaz fosse o caso de buscar outros classicos que tivessem respeitado 0 verdadeiro co- nhecimento da Antiguidade. Um conhecimento mais puro, que partisse de verdades mais gerais, como as matemati- cas, @ que pudessem em seguica ser aplicado, sem erro, sobre os fendmenos da natureza Desde 0 inicio do humanismo, muitos estudiosos haviam dado preferéncia a textos pouco explorados ou mesmo des- conhecidos dos cristaos medievais. Brilhavam com es- pecial destaque os que explicavam o universo a partir das inconfundiveis verdades matematicas ou mesmo do poder re [ANA MARIA ALFONSO-GOLOFARE magico dos numeros. Os primeiros sao seguidores de Pla- tdo, 0 grande geémetra grego, que apesar de ter sido mes- tre de Aristételes, teve muitas teorias diferentes deste. Os segundos sao seguidores de Pitégoras, sabio grego que teria vivido no século VI a.C. Entre os helénicos estas idéias muitas vezes se misturavam gerando 0 que se conhece por neoplatonismo e neopitagorismo, Na virada do século XVI para o XVII, muitos julgavam que essa devia ser a solugao do problema que Copémico deixara como heranga. Era preciso se afastar o mais poss{- vel de classicos como Aristételes e afins, e escolher outros clissicos como guia: os grandes mateméticos da Antigui- dade. Eram modernos daquele género jd conhecido nosso: nem téo modernos assim. Nessa lista estavam nomes como os de Galileu Galilei (1564-1642) e de Johannes Kepler (1571-1630) Eles foram um tipo de moderno muito especial. De fato, eles estudaram bastante os mateméticos classics e se esforgaram para provar que eram herdeiros dessa tradigao, justificando suas idéias a partir dela. Galileu até usou a for- ma de didlogo para escrever suas obras principais — um estilo platénico que influenciou muito os humanistas. E Kepler passou anos tentando fazer caber as érbitas dos pla- netas do modelo heliocéntrico nos poligonos regulares ({i- guras de lados iguais) que os antigos matematicos diziam ser 0 esqueleto do universo. Mas as novidades que cada um acabou descobrindo, na verdade, terminaram por implodir esse esquema de corre © QUE E HIStCRIA Da CENCIN “a 40 @ acréscimo aos modelos classicos. Pois a questo toda ndo foi sé a de substituir a Terra pelo Sol. Uma vez posta em movimento a Terra, ¢ sendo ela um planeta como 0s demais, criavam-se problemas de movimento no céu na terra que nenhum classico havia sequer sonhado. ‘Afinal, por que nao caiamos da Terra se ela se movia? De que Angulo estévamos enxergando 0 céu, qual nosso ponto de referdncia? Participariamos do movimento perfei- to do céu aqui na Terra? Ou seria 0 movimento do céu me- nos perfeito do que se havia acreditado? E se fosse assim © que justificaria seu eterno movimento? Nao seriam, entao, 08 céus feitos da mesma matéria imperfeita e sujeita as mesmas mudangas que a Terra? Para respondor a essas, perguntas que implicavam igualar matéria e movimento na terra e no céu, foram surgindo novas leis da fisica, cada vez mais precisas. Até chegar & mecdnica de Sir Isaac Newton (1642-1727), em que as condigSes para essa igualdade fo- ram criadas matematicamente. Como um pano de fundo palido, cada vez mais desbota- do e distante, as histérias dos matematicos classicos foram sendo contadas, mais como uma maneira de exibir cultura, @ menos para justificar a linhagem antiga a que pertencem as novas idéias, Estudiosos como Galileu ou Kepler foram, portanto, a inicio de uma virada em que os modernos fo- ram s¢ tomando cada dia mais modemos. E 0 principio do fim de uma Histéria da Ciéncia que ajudou a justificar a pid- pria ciéncia. A Igreja, um dos guardides da antiga visio da natureza “ [ANA ABU ALFONSO-GOLDFARB e do mundo, vai fazendo entre os séculos XVI e XVII uma espécie de jogo duply, as vezes freando, as vezes toleran- do (ou até incentivaido) alguns campos da ciéncia. Por exemplo, enquanto s3 discutia acaloradamente o heliocen- trismo na Europa, @ rios tiveram que responder a duros processos diante da:. autoridades da Igreja, esse sistema era ensinado pelos jesultas missionérios no Extremo Orien- te como prova da superioridade do pensamento ocidentall Enquanto isso, 0 prot astantismo se firmava @ reconhecia na ciéncia um dos melhcres aliados possiveis para garantir seu futuro. A ciéncia era enfim, um projeto com futuro, @ nao havia grande necessidade de histérias para justificar sua existéncia. 6 resta dizer umi: titima coisa, antes de entrar na nova fase da Historia da Ciéncia. Na introdugao foi colocada a estreita ligagao entre a filosofia e a nova ciéncia. Alias, uma pretendia ser a conti uagao da outra, ja que a maioria dos grandes classicos er fildsofa, Assim também a histéria que foi feita nesse perioclo para justificar a oiéncia que nascia era bem pouco histéviea: foi puro exercicio de filosofia, Pos nada mais filoséfico «io que comparar teorias para ver como uma deriva, ou derivou, da outra. E nada menos historic do que contar uma l.istéria sem tempo, montada para dar ‘a impressao que um renascentista do século XV poderia ser © vizinho do lado de um grego do século V a.C. Na proxi- ma etapa, mais que nunca, a Histéria da Ciéncia foi um apéndice da filosofie e da prépria ciéncia, e nao uma das areas da Historia. © QUE E HISTORIA D. GIENOIR 4s O diploma de honra ao mérito: uma historia para glorificar a ciéncia-rainha A divisdo entre antigos e modemos foi se tornando cada vez mais confusa ao longo do século XVII, até praticamen- te desaparecer. A ciéncia nao precisava de grandes justif cativas @, quando era atacada, sua resposta mirava o futu- ro @ nao o passado. Nem todas as teorias dos entao chamados fildsofos naturais eram absolutamente modernas, mas a maioria indicava uma aberiura para a modernidade Se o Renascimento fora a époce dos mecenas das artes (aqueles que ajudavam dando dinheiro e protegao aos ar- listas), agora era a época dos mecenas das ciéncias. Nao em todos os lugares, nem em todos os momentos, mas auxiliar a nova filosofia da natureza comegou a dar pre: gio. Ela havia se tornado a promessa de uma nova era para a humanidade. Se os antigos espagos dedicados ao estu- do, inclusive as universidades, muitas vezes resistiam,a seu avango, criavam-se mecanismos alternativos para continuar 0 trabalho. Essa foi a época em que a Europa viu nascer grupos, academias e sociedades onde estava sendo gerada, de fato, a ciéncia modema. Foi crescendo, entéo, a necessi- dade de atrair adeptos e conseguir porta-vozes, propagan- distas que convencessem a sociedade a ter simpatia pela nova causa da ciéncia e Ihe dessem apoio. Ficaram tamo- sas ja desde o século XVI até parte do século XVIII as de- monstragdes puiblicas de experimentos cientificos curiosos ou instigantes e até mesmo polémicos. Assim, embora nao tenha sido verdade que Galileu subiu a torre de Pisa para jogar, diante de meia cidade, uma bola de ferro e outra de igual peso, de algodao, essa lenda foi criada gragas & moda cientifica da época William Gilbert (1540-1603), médico e naturalista inglés, famoso por seus trabalhos sobre magnetismo, teria sido um dos primeiros nessa espécie de teatro cientifico, ao fazer domonstragdes em praga piiblica tentando provar a rotagao da Terra. JA no século XVII, o matematico francés Blaise Pascal (1623-1662) foi um dos varios a apresentar um gran- de show de ciéncia ao ptblico: subiu e desceu uma colina, com uma grande massa de curiosos atras dele, para modir a pressao atmosférica cam o barémetro recém-descoberto. Havia uma disputa sobre a invengao do barémetro entre ita- lianos e franceses, ¢ 0 evento em que Pascal mostraria 0 aparalho foi divulgado pelos quatro cantos de Paris. Como forma de divulgagao, também foram surgindo obras escritas numa linguagem mais facil para o publico, em que as maravilhas da nova ciéncia eram apresentadas. Eram textos que tanto podiam tratar de temas astron6mi cos quanto médicos. A populagao estava igualmente inte- ressada em saber sobre a Lua, que agora se dizia ser um satélite da Terra. Ou sobre as novas idéias a respeito do sangue circulando no corpo. Existia uma predilegao espe- cial pela parafernalia de méquinas ¢ equipamentos que es- tava sendo inventada ou aprimorada pelos filésofos natu- rais. Embora houvesse muita ignordncia e analfabetismo, isso nao diminuia a curiosidade pelos conhecimentos que prometiam virar 0 mundo de ponta-cabega que én o Assim, em alguns lugares como a Inglaterra, formavam- se grupos para que, depois do trabalho, a pessoa culta da comunidade, muitas vezes 0 professor ou o farmacéutico, lesse trechos dessas obras, como quem 1é um conto de fadas para criangas antes de dormir. Com o tempo, textos especiais para pessoas de certa cultura mas que nada sou- bessem da nova ciéncia foram tamanho sucesso que aca- baram criando obras para setores especificos desse publi- co, tais como: ciéncia para damas; ciéncia para nobres cavalheiros rurais; ciéncia para artesaos etc. Criou-se o habito de oferecer aulas puiblicas regulares e, na Franga, onde elas foram muito concorridas, torou-se chique assistir a essas aulas. Sem divida, a educagao era uma das bandeiras da nova ciéncia e uma das suas me- thores formas de propaganda. Entre os fildsofos naturais havia muito empenho para que se mudasse o sistema de ensino, E, em vez do curriculo cheio de textos classicos, eles pediam que as novas formas de conhecimento sobre a natureza fossem ensinadas, 0 que demorou na maioria das universidades até o século XIX. Acontece que essas novas formas de conhecimento ain- da estavam sendo muito debatidas pelos fildsofos naturais, @ precisavam ser justiicadas com uma histéria do futuro @ nao com uma histéria do passado como se fez durante muito tempo. F a Histéria da Ciéncia foi se transformando numa mistura de ficeéo cientifica (as maravilhas do futuro) com as crénicas ou relatérios do que estava sendo feito na nova ciéncia (as maravilhas do presente). Essa espécie de historia com as costas viradas para o passado pode pare- “0 [AK \ MARA ALFONSO GOLDFARB cer estranha, Ou seja, numa o presente se justificava com 0 passado e, na oul’a, com Oo futuro. Certamente nenhuma das duas foi histéria pra valer mas, como jd disse, essa era ‘a maneira de a ciéticia enxergar sua propria hist6ria até 0 nosso século. Essa guinada de uma histéria do passado para uma do futuro, que ajudaria a dar popularidade e forga a nova cién- cia, foi prevista por um inglés de nome engragado e idéias até um pouco estranhas: Lord Francis Bacon (1561-1626). Bacon era um diplomata que praticamente no desenvol- yeu nenhum trabalio especifico em qualquer das novas ciéncias. Acreditave que a Terra era o centro do universo @ chegou a estudar uin pouco de magia. Quer dizer, ele tinha tudo para que os fiidsofos naturais nao Ihe dessem muita tengo. Entretanto. sua obra foi o verdadeiro programa da ciéncia inglesa, um dos carros-chetfes da ciéncia européia a partir da metade do século XVII. Nos planos de Bacon, para que a cléncia se tornasse o instrumento da civilizagao ‘e do bem-estar futuro da humanidade, estavam a educa- (40, a criagao de instituigdes, fortes 0 suficiente para que a Giéncia pudesse se: desenvolvida, até o método que ela de- via seguit Esse método, divia ele, nao poderia ser como o dos fild- sofos antigos, que 2omo aranhas teciam fantasias do pen- samento sem nenliuma base ou uso concreto para suas idéias. Mas, também, nao podia ser o do artesao, que por tentativa e erro ia como as formigas, empilhando dados sem conseguir tirar neniium conhecimento geral deles. O verda- deiro fildsofo natural devia, segundo Bacon, agir como as (O.QUE E HISTORIA Ca CIENCIA « abelhas, que retiram sua matérin-prima do contato com a natureza, para depois processi-la, transformando-a em mel. As ciéncias deviam, portanto, ser especificas, como especiticas eram as coisas @ 0: fenémenos da natureza que cada uma tratava, Embora pudessem existir métodos comuns a todas de como obter » processar os dados que a natureza oferecia ao bom observador. Nesse sentido, a Unica historia que deveria existir era a histéria da propria natureza. Ou seja, a Historia Natural, for- mada pelas varias historias especificas como a Histéria das cores, a Historia dos ventos @ ares, a Historia do calor © assim por diante. Com o tempo, todas essas historias iriam sendo feitas @ 0 verdadeiro conhacimento, que para ele era ‘co conhecimento e a exploragao cia natureza, avangaria, tra- zendo a prosperidade a todos. E'acon até se da ao luxo de prever como seria essa era futura em seu Nova Atlantida Uma espécie de exercicio de ficc&o cientifica antes do tem- po em que essa forma literdria se tornasse oficial. Ou uma epopéia moderna, em que navegantes perdidos vao parar numa terra de ouro e mel onde todas as maravilhas tenham sido conseguidas gragas a ciéncia. ( esquema tragado por Bacon acabou repercutindo ndo s6 na Inglaterra, mas em outras partes da Europa. Princi- palmente no que dizia respeito 1 organizagao de grupos @ instituigdes em que se pretendia trabalhar com a nova cién- cia, JA quanto ao método de Bacon, no continente europeu existiam outras formas de proceder e pensar. René Des- cartes (1596-1650), um dos mais importantes pensadores dessa época, via 0 método de mianeira distinta. Nao se de- s0 ANA MARA ALFONSO.GOLOFARR via, segundo ele, partir diretamente dos fendmenos da na- tureza se o objetivo era tirar conhecimento deles. Nossos sentidos, nossa imaginagao ¢ tantas outras coisas podiam nos enganar. Pois a razo era 0 ponto de pattida (dat a afir- magao de Descartes: Penso, logo existo). E a certeza titima a partir da qual, de forma clara e distinta (ou seja, principal- mente por meio da matematica), poderiamos nos aproximar dos fenémenos naturais e observé-los. O que quer dizer que Descartes propunha um método dedutivo (do racioci- nio para a observagao) e nao indutivo (da observagao para 0 raciocinio) como era 0 de Bacon. ‘As muitas polémicas que aconteceram por conta dessas diferengas, apesar de serem muito estudadas pela atual Historia da Ciéncia, nao vém ao caso neste nosso estudo. O que nos interessa aqui 6 perceber que também Descar- tes, ao colocar a razao humana como ponto de partida para fazer a ciéncia, esta dando as costas ao passado e propon- do uma histéria do futuro. Assim, fosse qual fosse 0 méto- do, a ciéncia produzida através dele teria uma historia cada vez mais parecida com ela mesma: a histéria do fazer cien- lifico. E bem verdade que quando Newton fascinou 0 mundo intelectual com sua teoria da gravitagao, ele teria dito que sé chegara até aquele ponto do conhecimento porque tinha subido sobre ombros de gigantes. Embora hoje se discuta muito quem eram esses gigantes (estudos sobre as possi- veis influéncias em Newton estao sendo feitos), seus con- tempordneos acreditavam firmemente que essa referéncia era a estudiosos préximos. A ciéncia modema, pensavam, comegava a distancia de uma ou duas geragies. Essa era (© QUEE HISiCRA Da CCAR a ciéncia que valia a pena para a humanidade. Milton (1628- 1674), o poeta inglés que to bem expressou em versos 0 clima da nova ciéncia, escreveu: “E Deus disse ‘Soja Newton’ e a luz se fez...”. Nao havia, portanto, necessida- de de uma historia de fato. A crdnica do que estava acon- tecendo na ciéncia era suficiente para os objetivos dos fild: sofos naturais. Essas crénicas foram inicialmente de dois tipos basicos. Um deles incluia varias historias naturais, re- latos de experimentos e novas formas de explorar a natu- reza, Essa produgao vinha sobretudo das sociedades e aca- demias cientificas, onde, como jé foi dito, se desenvolveu inicialmente com mais forga a ciéncia modema. Seguindo as idéias de Lord Bacon a esse respeito, embora discordan- do no geral de seu método cientifico, estudiosos como 0 destacado holandés Christin Huygen (1629-1695) estimula- ram seus colegas a desenvolverem pesquisas para montar uma grande Histéria Natural. A principio, esses trabalhos formavam parte dos anais das agremiagées e circulavam de um lugar a outro na correspondéncia de seus membros. Com 0 tempo (ainda no século XVIl), os primeiros periédi- cos cientificos foram sendo criados. E, claro, para 0 gran- de publico que ainda devia ser conquistado e convencido sobre o valor da nova ciéncia, existiam versdes simplificadas dossas cronicas, © segunda tipo de crénica, ou Histéria da Ciéncia, era uma espécie de histéria de como se desenvolviam as his- t6rias naturais, uma crénica das-crénicas. Assim, por exem- plo, quase todas as associagdes cientificas tinham seu cro- nista, que podia ser 0 secretario ou mesmo um literato 8 AN. MARA ALFONSO.GOLDFARB interessado nas novus idéias. Esse cronista era encarrega- do de escrever uma histéria dos sucessos do grupo, seus feitos e suas descovertas. E, de vez em quando, era de bom-tom introduzir nessas histérias pequenas estérias so- bre antigamente, isto 6, a 6poca em que a nova ciéncia nao existia, Eram histérias extremamente simplificadas, algumas vezes misturando é):0cas e personagens lendarias a per- sonagens reais. Ou sea, pinceladas de cultura para ilustrar ou divertir brevemenie 0 leitor. Poderiam ser simplesmente excluidas, ¢ a histéra daquele grupo ou sociedade ficaria na mesma Vérias obras que, nessa época, tinham intengdio de tra- tar dreas mais gerais da ciéncia (astronomia, mecanica etc.) usaram 0 mesmo es\juema de crénica das associagoes ci- entificas: 0 que inter2ssava era unicamente o caminho tri- thado pela nova ciéicial Embora deva ser lembrado que excegdes a regra existiram @ nem todos descartaram o pas- sado com tanta facilicade. Por exemplo, John Wilkins (1614- 1672), ele proprio furidador da Sociedade Real de Londres (que teve varias histirias produzidas no estilo acima des- crito), fez trabalhos sobre ciéncia em geral que alcangaram grande popularidade E a tonica de sua obra ¢ a de tentar, enquanto apresenta 1 nova ciéncia, dialogar com o passa- do de forma mais itic. da e ponderada do que sera feito nos séculos seguintes. D. lado oposto, alguns tentavam outro tipo de didiogo com o passado, um didlogo ao estilo de Galileu, em que a figura de Simplicio (representando o pen- samento aristotélico) 3 completamente ridicularizada diante da nova ciéncia. (O.QUE EMISTOMA DF GENOA sa Mas seré na quimica onde vai iebentar 0 novo ponto de ebuligdio. Nao de maneira tao forte e devastadora como fora ina astronomia e na mecanica. O sculo avangara e com ele a situagao da filosofia natural. Mes até por isso a quimica queria ganhar seu espago. E queria ser independente da medicina e se tornar também ume filosofia natural, com di- reito a usar seus métodos @ a alcangar seus éxitos. Por isso, seus cronistas nao podiam se dar ao luxo de esquecer © passado. O filésofo natural inglés Robert Boyle (1627- 1691) copia, inclusive, a idéia do didlogo de Galileu em uma de suas obras mais populares sobre a nova quimica. Mas vai além: dinamita ndo s6 Aristételes como Paracelso. Elo queria absoluta modernidade para sua drea. Depois dele, jd na virada do novo século, Hermann Boerhaave (1668- 1738), um renomado médico e professor holandés, volta a carga. Chega mesmo a escrever uma histéria da quimica na qual seu repidio ao aristotelismo © as idéias de Pa- racelso fica claro. ‘As duas crénicas tm em comum alguns pontos impor- tantes. Ambas tém a intengao de mostrar a ignordncia do passado a fim de destacar 0 conhecimento do presente (num momento crucial em que a cuimica precisa muito dis- 50). E esse modelo de crénica passard aos séculos futuros (diferentemente da de Wilkins). A segunda coisa em comum, 6 que as duas so feitas por quinicos mecanicos. O que ser uma heranga que 0 sucesso da mecdnica acabaria deixando a todas as futuras ciéncias: 0 modelo da ciéncia que deu certo... E, portanto, ndo precisa mais nada para se justificar, nem sequer da histotia. 84 [ANA MARI ALFONSO-GOLDFARE O abrasador século XVIII, século das luzes como é cha- mado até hoje, em que a Historia da Ciéncia quase foi ofus- cada, esta diretamente ligado a esse modelo de ciéncia. ‘ausa para contar um pequena hist6ria sem tempo A filosofia natural nascera como uma mistura de velhas formas de explorar e conhecer a natureza. Mas ao mesmo tempo era nova, porque nova era a maneira de montar @ combinar esses antigos conhecimentos. Desde sempre o ser humano quis dominar @ conhecer o universo. Entratan- to, a exploracao das novas terras, as grandes viagens © uma disputa entre as varias regides européias para ver quem tomaria a dianteira nesse processo exigiam que 0 dominio da natureza fosse muito bem organizado para se tomar eficiente, pois os dados eram muitos. Essa eficiéncia, um dos pontos centrais da nova filosofia natural, sera também um dos pontos que iré distingui-la das antigas ciéncias. Ela sera conseguida principalmente da unio de trés antigas raizes. Foram elas, precisao técnica (do antigo artesao, construtor de ferramentas e explorador dos meios naturais); 0 poder de previsdo da astronomia (em que, por meio de calculos, podia-se prever, antecipar resultados sobre os fendmenos naturais); e a necessidade do oxperimontar ou testar 0 novo (essa tem a origem mais discutida até hoje; mas parece que as velhas praticas de laboratério dos alquimistas e as operagées da ainda mais antiga magia operativa estiveram por trés disso). Precisao, previsao e experimentagao gerando eficiéncia: esse era 0 QUE E HISTORIA Da CIENCIA ovo de Colombo descoberto pela nova filosofia natural. Desde 0 século XVII, quando esta ciéncia estava em for- magao, ja se sabia que ela era constituida pelo velho pen- samento humano sendo usado de uma nova maneira. Com © tempo e a necessidade cada vez menor de justificar essa ciéncia, deixou de interessar se esse pensamento era gre- go, chinés ou afegane. Mas, também com o tempo, os pen- sadores dessa nova ciéncia comegaram a acreditar que sua forma de desenvolver 0 pensamento humano, apesar de nao ser a Unica, era a melhor. A melhor maneira de olhar para a natureza, a melhor maneira de arrancar seus segre- dos e exprimir suas verdades. E como essas verdades eram regidas por leis eternas (o Sol estava ai desde sem- pre; 0 ouro sempre reagia com a dgua régia; 0 coragao sempre pulsava sangue etc. etc.), entéio a nova ciéncia era a melhor forma de entender essas verdades e explicar suas leis. Essas leis eram universais, ou seja, aconteciam em qualquer lugar, a qualquer hora. Dai que a ciéncia, ao des- cobri-las e explicé-las, fosse também universal Acreditando ser a base para um novo conhecimento, a ciéncia moderna criou para si a imagem de um edificio em construgao. Ja na planta podia-se saber quais as regras para sua edificagao e imaginar mais ou menos qual seria sua aparéncia quando pronto. Cada uma das etapas desse edificio cientifico naturalmente incluia a etapa anterior, bem como indicava qual seria a etapa seguinte. Dai foi sendo criada a idéia de acumulagao e sequéncia no conhecimen- to. Essa sdlida construgao deveria ordenar e colocar de for- ma cada vez mais clara as verdades sobre a natureza. 36 {68 MAFUA ALFONSO-GOLDFARB Era esperado que seu material fosse retirado das obser- vagées sobre a naiureza e testado experimentalmente an- tes de ser colocads de forma matematica em seus muros, Por isso era solicitda preciso e coeréncia de seus cons- trutores, pois a editicagao deveria ser feita de forma rigoro- sa @ légica, som saltos ou falhas. Também era exigido de- les objetividade e isengao (ou soja, que fossem neutros ao estudar um fenémeno), pois estavam trabalhando numa editicagdo de verdades sistematicas e duraveis sobre a na- tureza. E estas eram bem diferentes das cadticas e relati vas verdades humanas Em compensagivo, os construtores do edificio cientifico tinham a sensagao de estar no ponto mais alto e firme do conhecimento. No estagio de conhecimento em que sua 6poca thes havia permitido chegar, se resumia 0 melhor dos saberes do passacio e a melhor visdo do futuro. O que garantia <. continuidade acumulativa ¢ linear des- sa grande obra erem as seguintes hipdteses: 1. O ser hu- mano tinha uma capacidade quase infinita de ir conhecen- do cada vez mais e com maior preciso a natureza; 2. quando tomasse pusse desses conhecimentos poderia ex- perimentar (testar) @ prever. E, assim, teria instrumentos para planejar suas intervengées na natureza, seu controle © uso desta, de maneira eficiente e organizada. ‘A equagao precio, experimentagao, previsao = eficién- cia havia gerado 0 modelo da nova ciéncia e, agora, gera- va 0 edificio cientifico que aproximaria o ser humano cada vez mais das verdades sobre a natureza. Por trés do apa- rente caos dos fenémenos, esse edificio garantia que a na- © QUE E HISTORIA OF CIENCIA sr tureza funcionava de forma precisa, regular, previsivel ¢ unificada, como uma maquina. As mesmas leis que regiam ‘0 movimento dos planetas deviam reger 0s movimentos na terra. Matéria e movimento, eis os Unicos prinoipios univer- sais, dizia Boyle. ‘A bem da verdade, esse modelo de mundo maquina ti- nha sido retirado da mecénica. Aquele campo de conheci- mento que havia rompido mais violentamente com 0 pas- sado @ langado a ciéncia para uma nova era. E, portanto, 0 modelo de ciéncia que mais rapidamente havia dado certo € 0 que mais prometia sucesso futuro. Era natural que se quisesse estender esse modelo aos outros conhecimentos sobre a natureza. Afinal, a propria imagem da natureza ti nha sido ajustada ao modelo da maquina. O problema da ciéncia devia sor, entéo, estudar os me- canismos dos seres vivos e brutos. E aprender as leis de funcionamento, 0 conserto, 0 uso 2 a construgaio, como um bom relojoeiro aprende com seus relégios. A comparagao esté um pouco simplificada, mas posso garantir que’ gran- des pensadores da nova ciéncia entre os séculos XVII e XVIII diziam coisas parecidas. Por isso Boyle e Boerhaave se esforgam tanto para fazer uma quimica mecanica, pois 86 assim ela poderia entrar para » edificio cientifico. Ahist6ria acabou provando, no lim das contas, que essas mattizes tao bem ajustadas & mecanica nao se adequavam muito a outros estudos sobre a natureza. Esse foi o caso da quimica © certamente o das ciencias da vida, entre elas, a medicina. Entre remendos desse modelo e adaptagdes a ele houve um longo processo (para umas ciéncias maior do que para outras), ao fim do qual a ciéneia se abriu para outros caminhos. Retomando o fio da meada ‘A ciéncia mecanica era moda na virada do século XVIIl E todos queriam participar dessa moda, langada por Des- cartes mas depois trabalhada de varias maneiras por diver- sas correntes do pensamento. Acontece que essa moda ti: nha seus problemas. Enquanto isso, a nova filosofia natural entrava no Sécu- Jo das Luzes, impulsionada principaimente pela fisica. No interior da nova ciéncia ocupavam um lugar central a cha- mada filosofia matemdtica @ a filosofia experimental, @ ia cada vez mais para a periferia a hist6ria natural. A velha Historia da Natureza de Lord Bacon foi mudando de senti- do até se transformar em algo bem diferente ao longo do século XVIII. Uma rica e minuciosa colegao de dados so- bre os trés reinos da natureza (animal, vegetal e mineral), uma complexa classificagao desses dados e uma interes- sante discussao sobre eles (diferengas, separagéo da ma- \éria viva e bruta, origens da vida e até origens da terra) formavam a antiga historia natural. Mas, apesar dos debates, apesar das novas descobertas nasse campo, nao havia nele a forga filoséfica e argumen- tativa da fisica. Explico: neste campo nao havia como intro- duzir facilmente 0 modelo matematico, nem como passar com velocidade da observagao a experimentagao, a exem- plo da fisica. A histéria natural tratava de questées intrin- (© UE E HISTORIA DA CIENCIA so cadas, como populagao de seres € coisas, ou varia enormes, dificeis de serem flagradas, como um todo, no tempo @ no espago. Portanto, era também dificil tirar dela grandes leis gerais, como na fisica. Para cada pequena familia de animais ou plantas estudadas, para cada pesqui- sa sobre as idades geoldgicas ou sobre os minerais podia fa qualquer momento surgit um contra-exemplo que des- montasse toda uma teoria. Na segunda metade do século XVII, quando Antoni van Leeuwenhook (1632-1723), famoso @ habil microscopista holand@s, comegou a enxergar as minticias dos organismos nos microscépios, pensava-se que o enigma'tinha sido re- solvido. Talvez um padrdo pudesse ser encontrado no apa~ rente caos dos seres dos reinos mineral, vegetal e animal Um padrao interno que tivesse escapado da observagao a colho nu e que criasse uma relagao matematica entre eles. Seria possivel entéo fugit das comparagbes que geravam as etemas classificagdes desde a época de Aristételes. Mas ‘© sonho acabou rapido, 0 microscépio nao era tao possan- te, ou pelo menos nao era o suficiente para langar a hist6- ria natural no reino da filosofia matematica. Ela continuaria sendo histéria, como crénica, um longo e minucioso relato organizado pela classificagao. Nao obstante, a filosofia na- tural queria modelos € teorias matemaiticas, experimentos controldveis e leis gerais. ‘Assim, apesar de esse seculo ter sido 0 da monumental classificagéio de Carl Lineo (1707-78), ou Linnaeus, como gostava de ser chamado 0 grande naturalista sueco, 0 cli ma do periodo estava mais para Newton e depois para ey 2A MAFIA ALFONSO-GOLOFARD, Pierre Simon Laplace (1749-1827). Este ultimo, um bem conhecido matemaitico e filésofo natural francés, fora autor de uma mecanica seleste tao perfeitamente previsora dos fenémenos que, dizia-se, nao tinha necessidade nem da presenga de Deus vara justificar a existéncia do universo. E a Historia da C iéncia nisso tudo? Quem precisaria dela para justificar a ciéncia se nao havia nem sequer necessi- dade de Deus para justifica-la? Cada vez mais tratando de problemas candenies da realidade, a ciéncia se entregava de corpo e alma para ser analisada pela filosofia. Que po- deria a histéria dizur de problemas que (apesar de muitas vezes tratarem da questéo espago-temporal na fisica) nao tinham lugar nem hora para acontecer? Eles eram univer- sais, podiam estar ocorrendo em qualquer lugar do mundo... © em qualquer époxa... Para reforgar essa sensagdo, mais ou menos desde o meio desse século. a industria vai abrir seu caminho, que todos acreditavam, entao, infinito para o futuro. E a nogao de progresso que estar se formando al: 0 caminho de ida sem volta e sem necessidade do passado. Toda uma rede tecnoldgica vai ligando a ciéncia & modemidade industrial. O que era um projeto desde o século XVI ira tornando-se realidade no séculc XVill. Por exemplo, a explicagao cien- tifica da calcinagao de urn metal, descoberta nesse século, péde abrir perspectivas de aprimoramento das técnicas em metalurgia. Enfim, um munco novo estava sendo construido pela intervengao e contiole da natureza. E a palavra sindnimo desse proceso era a ciéncia. A enciclopédia francesa, que 0 QUE E HISTORIA D4 CIENCIA a jd no titulo tinha os nomes ciénoias, técnicas e oficios, dis- cutia e divulgava aos quatro cantos essas questées. Tendo também no titulo a expressao diciondirio raciocinado quan- do alguma migalha histérica escapava, ela era rapidamon- te devorada por um malabarismo filosdfico, Nesse periodo, também as obras de grandes filésofos naturais (sobretudo as de Newton) eram escritas em verso @ prosa e traduzidas ‘em varias linguas. Nao ha por cjue justifica-las; 0 publico pede por elas. Os comentarios sificilmente tem sabor de crénica histérica, Sdo a discussiio pura e simples do pro- cesso do conhecimento, ¢ nao a histéria deste processo. ‘A invasao da Histéria da Ciéncia pela filosofia vinha des- de 0 século XVI. Isso foi acontecendo de maneira cada vez mais forte. E foi pior ainda nesse periodo em que a ciéncia nao precisava mais prestar contas, em que ela esta para ser coroada a rainha dos saberes. Nunca a filosofia natural {oi tao filosofia, e nunca mais na modemidade as duas fica- ram tao juntas. E no clardo dessa pura analise da razao cientifica a His- t6ria da Ciéncia se tornou praticamente invisivel. Na cién- cia desse periodo quase nao havia espago para se contar histérias, pois havia o sentiment de que a histéria estava sendo feita. HA sempre as excegées a regra, ¢ claro. Na quimica do século XVIII que estava lutando por um lugar ao sol, algumas histérias foram faitas, sempre mantendo o tom da érea que esta se formanco e quer se justificar. Ten- do escrito dois desses trabalhos histéricos, Antoine-Frangois de Fourcroy (1755-1809) dizia que até bem entrado 0 sé- culo XVII nao se havia tentado dar um tratamento filos6fico 2 [ANA MANIA ALFONSO GOLDFARG a quimica. E, por isso, 0 que existia até entdo eram conhe- cimentos esparramados sobre a quimica. Fourcroy tentava colocar em destaque sobretudo a chamada quimica do oxi- génio, considerada como a verdadeira introdugao da area na ciéncia moderna. No entanto, Antoine Laurent Lavoisier (1743-94), principal descobridor dessa quimica, comentava que melhor seria esquecer a histéria quando se estivesse fazendo ou pensando a quimica, Ela era complicada o sufi- ciente para que ainda por cima fossem acrescentados as suas discussées os erros do passado... Eis ai um verda- deiro representante cientifico do lluminismo. interessante que, na virada para 0 novo século, na pré- pria filosofia e na histéria de maneira geral estivessem sen- do buscadas outras maneiras de enxergar a humanidade ‘seu processo histérico, completamente diferentes da viséo iluminista. Mas a Histéria da Ciéncia, mergulhada e quase desaparocida no corpo da ciéncia, conseguiu passar prali- camente imune a essas idéias que marcavam época. Ou- tro seria o sistema filoséfico a reanimar a Historia da Cién- cia: 0 positivism. Augusto Comte (1798-1857), seu autor, acreditava que a histéria podia ser dividida em trés estdgios 0 religioso, 0 filosético @, claro, por Ultimo, o glorioso esta- gio cientifico. Essas seriam as etapas do desenvolvimento: humano nas quais 0 conhecimento teria se tornado cada vez mais preciso e modelar. Principalmente a titima etapa, em que estariam incluidas as ciéncias da natureza, deveria servir como modelo para todas as outras formas de conhecimento. 86 assim a so- ciedade poderia tomar 0 rumo certo do desenvolvimento, (0 QUE € HASTORUA DA CIENCIA ws que seria cientificamente planejado. O curioso é que, quan- do Comte langou essas idéias nem todas as ciéncias tinham alcangado 0 estagio proposto por ele. Alids, ele sugere ca~ minhos que no s6 essas ciéncias como também as huma- nidades devem tomar para se transformarem em verdader- ras ciéncias. E até propée uma ciéncia da sociedade: a sociologia, Além disso, chama a atengao para as diferengas que devem existir necessariamente entre as ciéncias, pois cada uma delas teria seu campo @ seu objeto especifico de estudo. : Num primeiro momento, essas idéias repercytem na pro- pria ciénoia, embora nao se possa dizer que exatamente estas ou sé estas tinham tragado 0 rumo da ciéncia. E num segundo momento derivagdes dessas idéias refletirao so- bre a Historia da Ciéncia, Sendo vejamos. A medida que 0 século XIX avanga, campos como a quimica, a medicina @ mesmo a biologia comegam a ocupar lugares préprios @ alé espeeificos na ciéncia modema. E, se bem que nao tenham seguido as normas do modelo mecanico, as ciéncias natu- rais puderam, cada uma a sua maneira, ir entrando no edi- ficio cientifico. Havia pois a sensagao, na segunda metade do século, que a construgdo nao demoraria a ficar pronta. Com o tempo, a ciéncia seria o exemplo, a estrela guia para todos os saberes. i Os cientistas, no mais vagamente fildsofos naturais, vao se especializando. E donos de campos cava vez mais es peciticos e complexos, irdo cada vez menos permitindo que outros, sejam curiosos, filésofos ou técnicos, tenham aces- 0 a esse conhecimento sofisticado (lembre que sempre ha ot ASN MAB ALFONSO. GOLDFARB excegdes...). Portanito, serao eles os mais autorizados, se- do eles os mais preparados para falar da sua propria area. Surge entao uma espécie de cientista-fildsofo ou cientista- historiador (na maioria das vezes sem saber muito de filo- sofia ¢ absolutamente nada de historia) que decide mostrar 0 glorioso caminho «ta ciéncia e/ou dar o exemplo edificante desta a novas geravdes. Na cartiha positivista, e nas varias vers6es trabalhadas a partir dela, rezava que uma boa reflexdo histérica devia evidenciar as etapas do conhecimento humano de forma coerente, Ou seja: criando uma espécie de modelo dessa transformagao ou aprimoramento. E mais, isso deveria ser feito sobre 0 mai! numero de dados empiricos possivel documentos, originais etc. Entretanto, fazer essa dupla ta- refa mostrou-se dificil e, na maioria das vezes, dependen- do dos documento::, impossivel. Desta forma, 6 muito co- mum encontrar nusse século verdadeiras crénicas da ciéncia (no pior sentido da expressao). Um emaranhado de detalhes, minticias nao se sabe bem tiradas de onde e da- dos que néo se sabe para onde pretendem levar 0 leitor sao a tonica dessas ob:as. Mas, naturalmenite, sempre vai haver os que sabem co- mo executar a tarel. O destacado quimico francés Marcelin Berthelot (1827-197) publica entre 1885 @ 89 a tradugao de uma preciosa colegao de manuscritos alquimicos anti- gos. Ha também longas notas e comentarios feitos por ele, com os quais até s3 pode nao concordar mas nao ha diivi- da de sua qualidade, Por outro lado, sao também desse século os manuais: em Histéria da Ciéncia que estariam 0 .QUEE HSTORA OA SIENCA, 6 mais bem clasificados como ficgav, Nenhuma documenta- 0 devo tor passado pelas maos dosses verdadeiros ar- quitetos de catedrais de areia. Mas seus dados que sao pura fantasia, e suas histérias, que so pura lenda, serao montados com tamanha coeréncia, que, no fim, se tem um modelo do processo histérico (pena que nao tenha sido real...) Outra vez, sempre hé aqueles quie souberam como fazer aparecer 0 modelo usando dados mais confiaveis. Assim, 0 fisico austriaco Ernest Mach (1838-1916) ira apresentar um modelo de como teria ocorrid«: o desenvolvimento da ciéncia que foi muito respeitado, inclusive pelos cientistas do século XX. Mach procurava identificar nuicleos centrais, de conhecimento que teriam se mantido constantes através da histéria, muito embora fossem sendo aprimorados ao longo do tempo. Isso queria dizer que o conhecimento evo- luia, mas em tomo de verdades sobre a natureza que eram sempre as mesmas. Toda a histéria do conhecimento, por tanto, convergia para o momento presente, que era a etapa mais aprimorada. Mach fazia, sem dhivida, uma Historia da Ciéncia bem fundamentada. Mas, vor estar com os olhos firmes nas teorias do momento em que vivia, acabava sele- cionando sé 0 que considerava acertos e erros do passado que de alguma forma pudessem ser ligados ao presente. Um exemplo ainda mais primoroso, porque junta a coe- réncia do modelo & documentagao original, vai acontecer no comego do século XX. Trata-se da abra histérica ¢ filosdfi- ca sobre a ciéncia realizada pelo fisico francés Pierre Duhem (1861-1916). Duhem, um homem de vasta cultura, 6 [ANA MABUA ALFONSO:GOLDFAR consegue encontrar e traduzir mansiscritos originais antigos @ medievais, como fizera Berthelot. Mas seu objetivo com este material 6 provar uma tese sobre 0 processo do co- inhecimento parecida com a de Mach. Sé que essa tese tem a preocupagtio de demonstrar a continuidade nunca inter- rompida do processo. Com isso, pela primeira vez na His- toria da Ciéncia, em época moderna, 0 conhecimento me- dieval é valorizado. E, embora Duhem tenha feito também uma histéria seletiva do que the parecia ter gerado a cién- cia.modera (portanto, seu objetivo continua sendo a expli- cago desta forma de ciéncia), a divida da futura Histéria da Ciéncia para com ele sera eterna, Existem estudiosos que consideram mais como filosofia da ciénoia do que como Histéria da Ciéncia o que fol feito nesse periods. Isto porque os fatos histéricos serviam so- mente para ilustrar, muitas vezes de manelra apenas pito- resca, a discussao de como era produzido o conhecimento ciontifico. Portanto, pura reflexdo filosdfica a servigo da ciéncia. Mas acho que eles se esquecem do valor ¢ da de- finigdo de histéria que a prépria ciéncia teve desde sua or- gem. Nao uma histéria em geral, mas uma histéria muito especial, como especial era a propria oiéncia. Justificando, propagandeando, selecionando seus exemplos para a re- flexdo cientifica, essa histéria muilo especial era urna auxi- liar da ciéncia e nunca o contrario. ‘A hist6ria em geral algumas vezes havia tentado até co- piar os métodos da ciéncia, Para que entéo mudar uma his- toria que havia nascido afiada nesses métodos? Com isto os cientistas se esqueceram de que faziam parte de uma © QUE E HISTORIA DA CIENCIA or historia maior, de iéncia na , de que a ciéncia ndio co rea megava em Galileu Mas nao estariamos cometendo agora o mesmo engano ao considerar Histéria da Ciéncia sé aquela que comega a ser feita por nossos Newtons e Galileus? Nao estarfamos, inclusive, deixando de entender por que a Histéria da Cién- cla tem até hoje uma cara diferent le rade das outras formas de CAMINHOS CONTEMPORANEOS: _ SPACO INDSPENDENTE DE REFLEXAO SOBRE A CIENCIA A ciéncia sempre foi surpreendente. Galilou teria sido aconselhado por set pai a seguir carreira mais segura © com mais futuro co que pudessem ter as dlénaios arn sua @poca. Séculos depois, quando a cléncia parecla um ot cio quase acabaci, alguns professores aconselhaver © seguir outras caneiras com mais futuro do que on Glas... onde estava tudo pronto. Assim como no primaire aso, a histria de século XX mostrou que os con jo tambom estavam engan sro tado pareia estar se assentando, a5 peas décadas do nosy século sapling 2 ae po tears a cientifico por todos os lados. Comet a relatividade 4 pel. quantica, coe 7 Impressio orias de genética e da’ rol , a senvotveu rrneitas novas de fazer ciéncia Tamm oh o século espremido por duas terrivels grandes Coe ic ultras querras mis...) e intimeros desastres ambie! 0 QUE € HISTORIA Do CIENCIA « que a ciéncia e a tecnologia pareciam sempre estar envol vidas. Estava chegando para a cicncia a hora de se haver com a ética, com o ptiblico e consityo mesma. Chegou a ha- ver momentos de extrema tensao para a ciéncia, em que sua respeitabilidade esteve por um fio. A ciéncia estava deixando de oferecer exemplos oulificantes, embora conti- nuasse tendo grande presenga em quase todos os momen- tos da vida deste século. Como fazer sua reavaliagaio? Com que eritérios? De que Angulo ela deveria ser olnada? Se de dentro para fora (como vinha sendo feito havia séculos), corria-se 0 perigo de continuar como sempre, Se de iora para dentro, havia o risco de que a falta do conhecimunto especifico de seus problemas e seus critérios pudesse acabar causando mais estragos do que solugdes. Por exemplo, falava-se ja ha muito tempo dos horrores das quiinicas com que a ciéncia vinha bombardeando a humanidade, Mas que quimicas se- riam essas? Se vocé resolvesse fechar a boca para tudo 0 que tem quimica, com certeza iria morrer de fome. Ja que a quimica esta presente em todo ») universo, o que inclui 08 produtos naturais. Enfim, quem estaria preparado para fazer a critica a ciéncia? E para ser seu ouvidor diante da sociedade? A filosofia, sua antiga associade, ocupana um lugar im- portante nesse processo. Se bem cue justamente essa as. sociagao téo préxima podia trazer problemas, E a hist6ria? A historia vinha sendo lembrada cada vez menos. Desde quando as novas teorias do século XX comegaram a ame: gar a estrutura do edificio cientific, a Histéria da Ciéncia 70 ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARE estava perdendo seu papel, j4 néio muito grande, Havia pro- blemas légicos, e de tal maneira inéditos, que qualquer mo- delo historico parecia de pouca ajuda para sua solugao. A medida que as complicagdes na ciéncia, no correr da pri- meira metade do século, foram aumentando, os exemplos histéricos foram diminuindo nas discuss6es e textos dos que estavam preocupados com a reflexao cientifica. Outra vez, uma ciéncia preocupada com o presente nao precisava de passado. E a Historia da Ciéncia foi perdendo até mesmo o pequeno papel de auxiliar que tinha junto & ciéncia. Ou pelo menos o pequeno papel ativo. Em depar- tamentos @ escolas de ciéncias velhos cientistas davam aulas de Historia da Ciéncia para estimular os jovens estu- dantes. Era uma espécie de prémio para antigos professo- res, Pois se acreditava que ao alcangar a maturidade numa rea de estudos, se alcangava também 0 mérito de poder falar sobre sua historia, Caso semelhante acontecia com os grandes cientistas, que, como Albert Einstein, publicavam textos ou davam as vezes conferéncias sobre a evolugéo dos conceitos cientificos. Mas tanto as aulas quanto os tex- tos ou conferéncias eram vistos apenas como curiosidade ou até mesmo perfumaria, Uma forma de descanso ilustra- tivo para a vida dura do laboratorio e da mesa de trabalho, onde a ciéncia acontecia de fato. Mas a culpa para o estado em que havia chogado a His toria da Ciéncia nao era exclusivamente das novidades ci- entificas ou da crise entre ciéncia e sociedade. Ao contra- io, tivesse a Histéria da Ciéncia desenvolvido uma estrutura robusta e propria, ela seria um espago dos mais. adequados para discutir essas questées, como se vit pos- teriormente. Colada ciéncia moderna desde seu nasci: mento, era dificil que ela tivesse forga para dar esse salto. E sua histéria seria uma eterna repetigao de idas e vindas, desaparecimentos ¢ aparecimentos, conforme o ciclo e 0 momento da prépria ciéncia. Essas questées ja eram con- sideradas por alguns estudiosos desde as primeiras déca- das do nosso século. Pesquisas exaustivas sobre o passa- do, como as de Pierre Duhem, exigiam uma continuidade. E talvez fosse necesséria a formacao de especialistas para melhor realizar essa tarefa. Era preciso criar uma area profissional para a Hist6ria da Ciéncia. A idéia era criar cursos, oferecer diplomas, comegar a publicar trabalhos que seriam lidos por cientis- tas, mas ndo necessariamente produzidos por eles. Natu- ralmente, as pessoas que primeiro tomaram essa iniciativa vinham da ciéncia. Pois se acreditava que para fazer esse tipo de historia era preciso um excelente conhecimento cientifico em primeiro lugar. Até por isso, 0 novos profissio- nais continuayam fazendo uma histéria & moda antiga, Eram historias lineares e progressivas, acumulando grande nime- ro de datas e nomes importantes. Eram, enfim, historias das grandes descobertas e dos grandes génios cientificos. As figuras de Copémico, Galileu e Newton continuavam brilhan- do como exemplos maiores, pois haviam conseguido criar a ciéncia que serviu como modelo as demais ciéncias. As- im, fosse qual fosse o t6pico ou o campo da ciéncia abor- dado, nomes como o de Newton acabavam aparecendo quase obrigatoriamente. O modelo da fisica, como um fan- tasma, assombrava todas as outras histérias da ciéncia. n [ALA MAFIA ALFONSO GOLOFARS Continuava havendo, por outro lado, uma busca seletiva em épocas antigas de idéias @ teorias que tivessem evolur- do até chegar & ciéncia moderna. Essas formas de conhe- cimento sobre a natureza seriam, portanto, pré-, proto- (quase) — ou pseurio- ciéncias (ciéncias que nao eram ver- dadeiras). Para vanar, elas serviam como exemplo dos er- fos que haviam atiapalhado 0 caminho até a ciéncia mo- dema. Ou ainda como exemplos dos acertos que levaram a ciéncia modema. O caminho histérico, portanto, era um 36 @ conduuzia até @ ciéncia moderna, pois sé ela consegui- ria produzir 0 verdiideiro conhecimento sobre a natureza, Documentos antigo que foram encontrados acabavam ser- vindo sempre para colaborar com essa tese. Naturalmente porque a forma de interpretar esses documentos era som- pre a mesma. Ou s@ja: lia-se neles o que parecia estar te- lacionado com a ciéncia moderna de algum modo e des- cartava-se 0 resto. Esse tipo de Hist6ria da Ciéncia foi chamado acertada- mente, por uma pesquisadora contemporanea, de Histéria- pedigree, Pois nela se procurava os pais da ciéncia e, quan- do possivel, os avis, bisavés etc, Por exemplo, Newton seria 0 pai da fisicr modema; Roger Bacon (que nao 6 0 Francis Bacon, ma‘: um inglés do século XIII), 0 avd da ex- perimentagaio; Euclides (matematico grego do século IV a,C), 0 avo da matematica moderna. E Aristételes era um chato que conseguiu atrasar, com suas teoria, em quase dois mil anos a chegada da ciéncia modern: Se um his- toriador da medicina estudava a obra de Arnaldo de Vi- lanova, vartia para debaixo do tapete suas possiveis obras 0 QUE € HISTORIA O» CIENCIA ns sobre alquimia, Ou ainda, 0 mais comum era que essas obras fossem qualificadas como apéerifas, ou seja, nao te- nham sido escritas por ele. Afinal. como poderia um médi- co tao brilhante ter estudado tamenha bobagem? O mesmo acontecia com a alquimia de Newton, ou com os estudos de magia de Francis Bacon. Ja em casos como 0 de Claudio Ptolomeu, autor ineg:ivel de uma obra em as- trologia, a desculpa era a seguinte: ou se usava 0 argumen- to de que antigamente astronomia @ astrologia eram a mes- ma coisa (0 que nao deixa de ser verdade, mas nao serve como justificativa para o que se pretendia); ou, pior ainda, se dizia que faltava clareza aos antigos para distinguir to- talmente 0 errado do certo, uma «lareza que 6 a ciéncia moderna iria alcancar. Mas, de preferéncia, sempre que possivel, a imagem gloriosa dos piiis e dos avés da ciéncia devia ser preservada. Havia, por conta da questao de origem ou paternidade das ciéncias, um distingao entre pré- ou protociéncia @ pseudociéncia. As duas primeiras pertenciam a linhiagem das ciéncias que haviam dado cerio (portanto, se transfor- mando em ciéncia modema, depois de separar 0 joio do tri- go). Esse era 0 caso da astrologia, que teria dado na as- tronomia, ou da alquimia, de onde teria saido a quimica etc. Ja a segunda forma, ou a pseudociéncia, nao teria dado em nada, fora apenas fruto de um engano, superstigao ou mes- mo ignordincia do passado. Alguns tipos de magia, medici- nas antigas etc. entravam para essa lista, que quase nun- ca era pesquisada em Historia da Ciéncia, Aqueles mais preocupados com o que era chamado ciéncia positiva pre- m [ANA MARIA ALFONSO.GOLDEARE feriam nem tocar no nome de algumas dessas ciéncias, assim como em pré ou protociéncias. Era preterivel discutir uma ciéncia incompleta, como a mecanica grega, que de- pois seria magistralmente completada pelos modernos, a uma balburdia como a alquimia. Por trds disso, estava também a idéia de que a fisica (@ porlanto a mecanica) era o modelo da ciéncia moderna. Sabemos que a coisa toda foi diferente. Mas é preciso lem- brar que quando eu conto essa historia, estou oferecendo uma versao atual que demorou certo tempo para ser aceita pela Histéria da Ciéncia. Assim, os precursores da ciéncia eram considerados aqueles que fizeram as teorias que melhor puderam ser aproveitadas pelos modernos. Grandes linhas que saiam dos gregos e chegavam ao século XVII eram tragadas, Sobre os arabes medievais, por exemplo, 56 interessava 0 que havia sido feito em astronomia, mate- matica e algo de medicina. Enquanto sobre civilizagdes como a chinesa comentava-se apenas seu avango técnico que, diziam, infelizmente nunca pudera ser transformado em ciéncia. Ou seja: além de tudo, a verdadeira cléncia vi- nha da teoria e nao da pratica. Enfim, além de ser uma histéria-pedigree, era também uma historia cuja origem estava na Europa. Apesar desse Ultimo no ter sido um problema exclusivo da Histéria da Ciéncia, 0 produto final desta forma de histéria chega a ser cOmico. Era como se toda a humanidade tivesse feito um concurso para ver quem chegava primeiro a ciéncia moder- na! Ou seja, essa ciéncia era o destino natural inevitavel do pensamento humano e, para sorte dos europeus, eles ha- 0 QUE € HISTOR Da CIENCIA 18 viam chegado primeiro. Mas essa ciéneia pairando acima dos comuns mortais era justamente a que precisava ser criticada e trazida ao nivel do fazer humano, que a historia nos mostra cheio de possiveis idas e voltas, ¢ de acasos. Assim, essa Histéria da Ciéncia inicial, embora feita por pro- fissionais, teria que mudar muito se quisesse ser chamada para participar, de fato, no debate sobre as ciéncias. Veja- mos como isto aconteceu. Nos primeiros trinta anos deste século, foram produzidas © que poderiamos chamar de obras monumentais de His- toria da Ciéncia. Colegdes as vozes de dez ou vinte volu- mes em que 0 modelo seguido era o da histéria-pedigres. George Sarton, um matematico belga de vasta cultura, foi um dos primeiros mestres dos novos historiadores da cién- cia, Além de ter fundado um curso, criou, em 1912, uma das primeiras revistas especializadas na area, a revista Isis, que, alids, existe até hoje. Mas, como é de se imaginar, a tdnica de sua obra é a ciéncia positiva. E n&io por acaso, seus primeiros estudantes eram especialistas em Newton. Também ele ird escrever uma obra monumental em cinco grossos volumes, destacando o papel da teoria sobre a pr tica e insistindo na evolugao natural do pensamento atra- vés das eras. Ha momentos em que ele chega a deixar ex- plicito que a Hist6ria da Ciéncia deve ser feita para que se ‘canhega melhor a infancia e a adolescéncia do conhesimen- to humano. So poucas as excegdes regra nesse periodo ©, ainda assim, de maneira relativa. Lynn Thorndike, por exemplo, escreve uma obra também monumental (aito volumes) que 16 APA MAMA ALFONSO GOLDFARG ele levara trinta anos para concluir (entre os anos 20 e os 50). Mas esta serd ma coletanea panoramica e riquissima de documentos oriyinais sobre a histéria da magia e da experimentagao, Ou seja, ele esta tentando destacar o valor de ciéncias que nav sao necessariamente tedricas e que nao tém como mocialo a fisica. Por isso 0 papel dos pre- cursores nao tem crande importancia nesta obra. Apesar de que Thorndike ‘nsiste em dizer que 0 conhecimento progride @ um exeniplo disso é a ciéncia experimental do século XVIL. Mas no seriam sas poucas excegdes 0 que mudaria para valer a Historia da Ciéncia a partir da década de 1930. Em primeiro lugar, 03 historiadores da ciéncia passaram por uma discussao sob!2 como e em que medida a ciéncia era influenciada por fatores sociais a sua volta. Tudo comegou num congresso de histéria da Ciéncia realizado em Londres ‘em 1931, Uma comitiva soviética tocou nesses problemas dificeis na apresentagao de seus trabalhos. Os cientistas, diziam, mesmo aqucles envolvidos com idéias tedricas alta- mente abstratas, nao tinham como deixar de ser influencia- dos pelo meio social. E as necessidades, proibigdes ou dis- cussdes desse mcio acabariam se refletindo na obra cientifica. O préprio Newton foi usado como exemplo e 0 impacto sobre os juv ens historiadores da ciéncia (principal- mente os ingleses) >i muito grande. Varios trabalhos foram produzidos a partir ‘lessas idéias, embora a nogao de que ha uma linha de progresso cientifico desde a Antiguidade tenha sido 0 tom de quase todas no comego. Mas também grandes e sofisticavios trabalhos acabaram saindo desse meio. Joseph Needham, por exemplo, passou vinte anos na China estudando essa civilizagao 9 tentando entender que tipo de ciénoia ela havia produzivio, Alids, uma forma de ciéncia téo especial que os ocidentais nem sequer a haviam reconhecido como ciéncia Essa corrente da Histéria da Cisincia chama-se extema- lista. Ou seja: esta preocupada em entender como fatores externos & ciéncia podem influir nesta, Ela seria o oposto ao internalismo, a corrente tradicional. Pois esta se preocu- paria com os problemas histéricos intemos a ciéncia, ou seja, a evolugao de seus conceitos e suas teorias, indepen- dente da sociedade ou do meio em que sao produzidos. O debate entre essas duas corrontes foi da maior impor- Lancia porque trouxe para a Historia da Ciéncia novos an- gulos para poder olhar a ciéncia. C's cientistas comegaram @ ser vistos pouco a pouco como seres comuns, mesmo que brilhantes ou inspirados. Eles estavam sujeitos, portan- to, a varios tipos de pressées e ate habitos préprios da so- ciedade em que vivem, 0 que de uma forma ou de outra estara presente em sua obra. Assim foi que, por exemplo, alguns seguidores da teoria da evolugao (uma teoria das mais revolucionarias produzidas pela ciéncia) usaram seus trabalhos para teses completamente racistas. E nao 6 se- yredo que, durante o século XIX, a questao colonial aumen- tara na Europa a tendéncia ao racisimo. A ciéncia, portanto, nao deixa de ser algo produzido per um tipo de sociedade. Dai que o debate entre internalismo e externalismo te- nha também ajudado a despertar interesse por outras for- mas de ciéncias nao ocidentais, ou que pareciam nao ter 7 [ANA MARIA ALFONSO- GOLDFARB contribufdo diretamente para a-ciéncia moderna européia. Trabalhos como 0 de Thomdike comegaram a ser mais va~ lorizados. E, gragas a isso, foi possivel que obras como a produzida a partir da década de 1950 pela historiadora in- glesa Frances Yates sobre magia renascentista tivesse grande numero de seguidores entre os historiadores da ciéncia, E mais ainda, trabalhos em ciéncia ou sobre cién- cia em civilizagdes do Extremo Oriente e do Oriente Médio séio hoje uma parte importante da Histéria da Ciéncia, Mas, na verdade, nao foi sé a discussao sobre o papel da sociedade na ciéncia o que ajudou para que essas obras surgissem na Histéria da Ciéncia. Para que a Historia da Ciencia se tornasse 0 espago adequado a uma reflexéo so- bre as muitas formas de fazer ciéncia em varias épocas e lugares, foi preciso romper também outro dogma: a idéia de que a ciéncia se desenvolve de forma continuada. Portan- to, sempre progredindo e se acumulando numa s6 diregao, que seria a diregao natural do pensamento humano. Apesar de ter colocado no lugar desse pensamento a so- ciedade como mola mestra do processo cientifico, 0 exter- nalismo manteve a idéia de progresso e continuidade. Assim fosse através do pensamento humano (como que- ‘iam os internalistas), fosse através da sociedade (como di- ziam os extemalistas), 0 caminho do conhecimento conti- nuava sendo um 86, que tinha progredido lentamente desde aIdade da Pedra até a ciéncia moderna européia! Portanto, todas as formas de ciéncia acabavam sendo comparadas @ ciéncia moderna. Haveria, assim, ciéncias melhores e ciéncias piores, ciéncias mais completas ¢ cién- cias incompletas. Mas, serd que a ciéncia chinesa podia ser considerada incompleta sé porque nao tinha teorias como a de Newton? Sera que a ciéncia da Grécia antiga podia ser considarada a infancia da ciéncia s6 porque nao desen- volveu os laboratérios e equipamentos dos modemos? Nao seria 0 caso de cada uma destas ciéncias ter seus objeti- vos préprios e, portanto, ser, a seu modo, completa nela mesma? Os indianos, por exemplo, nao precisaram das iddias modernas para ter nogdes de tempo e espago interessan- tissimas, mais préximas da ciéncia contempordnea do que aquelas do século XVII europeu. Por outro lado, quanto mais se encontravam e estudavam textos antigos de cién- cias, menos pareciam que esses textos haviam sido feitos por proto- ou pré-cientistas. Um alquimista, por exemplo, no era um quimico que néo tinha dado certo. Mas isso tudo era muito dificil de explicar. Primeiro, porque envolvia uma discussao sobre o tipo de histéria que vinha sendo fei ta sobre a ciéncia. Uma histéria anacrénica, da frente para tras, em que 0 passado era visto como mero exemplo do presente. Segundo, porque explicar essas dificuldades po- deria levar a discussdo filoséfica sobre como o ser humano conhece as coisas do mundo para longe do velho porto se- guro da ciéncia moderna que era tao familiar. Talvez, até por isso, um dos primeiros a se manifestar tenha sido um fildsofo da ciéncia. Gaston Bachelard era um francés que, como tantos outros cientistas-filésofos da pri- meira metade do século, estava no olho do furacao gerado pelas questdes cientificas. E isso queria dizer, entre outras ey ANA MARU ALFONSO.GOLOFAR coisas, esquecer aparentemente a inttil Historia da Cién- cia. Mas Bachelard comegou se perguntando, na década de 1930, se 0 conheciniento realmente acontecia de forma continuada e acabou chamando em seu auxilio a Historia da Ciéncia. Assim, ‘le posse de alguns bons exemplos sobre a histéria do culor, da estrutura da matéria etc., ele concluiu que 0 conhevimento ocorria por meio de saltos. Ou seja, nao era aprimorando @ continuando velhos saberes que se chegava aos novos. Ao contrario, era preciso rom- per com a forma de yensar anterior, que tivera seus pré- prios objetivos ¢ limites, para produzir outras formas de ciéncia, Por isso, ner o antigo mago era um pré-cientista, nem o naturalista do século XVIII, um pré-bidlogo. Havia nestas idéiz's a nogéio de que a ciéncia avanga (ainda que de forma descontinua), e mesmo assim foi mal aceito entre os filésoios da época. Mas a questao da des- continuidade no pens:imento cientifico estava aberta e, com ela, o papel da Histé1ia da Ciéncia precisava ser repensa- do. Pois, sem um boin trabalho histérico, no se podia fa- zer um bom trabalho iloséfico sobre a descontinuidade. Nao por acaso um de seus seguidores disse que a filosofia da ciéncia sem a Hist6ria da Ciéncia é cega; e que a Histéria da Ciéncia sem a filosofia da ciéncia é init Apesar da resistéiicia a essas idéias, nas décadas de 1940 e 1950, varios fiiésofos comegam a ver na Historia da Ciéncia um verdadeirs laboratério para seus estudos sobre © processo do conhecimento. Esse foi o caso de Alexandre Koyré, um professor russo estabelecido em Paris que se tornou famoso por sia obra sobre as origens da ciéncia moderna, Segundo sta tese, existiria uma descontinuidade QUE € HISTORIA Ds CIENCIA a no conhecimento & medida que coda época partiria de dife- rentes precursores. Assim, por exemplo, os medievais te- riam aceitado 0 aristotelismo, encuanto os renascentistas, © platonismo. Nao ha diivida de que a Histéria da Ciéncia ganhava espago com isso, mas a nogao de precursores de- monstrava que a ciéncia vinha avangando, mesmo que de forma descontinua, desde a Antiguidade. Nos anos 50, um grupo de historiadores ingleses tenta juntar os debates internalismo/extornalismo e continuismo! descontinuismo numa série de obras a respeito do surgi- mento da sociedade e da ciéncia moderna. Nesses traba- {hos vai nascer a importante nogao de revolugao cientifica como adaptagao do conceito de revolugao social. Pois teria havido uma quebra no pensamento a partir do século XVII, € 0 papel da sociedade e sua nova forma de ver o mundo teria destaque nesse processo. Mas a ciéncia modema sera mantida como o grande avango do pensamento humano, @ © passado, muitas vezes reduziclo a pd nestas obras. A nogao de descontinuidade ainda oxigia uma melhor defini- ‘Ao @ um maior cuidado para ser aplicada. ‘Também sao dessa época os trabalhos de Yates, que lo- go vao atrair os historiadores da ciéncia. Mas como a ques- to da descontinuidade se refere si uma quebra no proces- so do conhecimento, ninguém melhor do que um filésofo da ciéncia para fazer o ajuste que faltava. Thomas 8. Kuhn serd personagem central, com stias idéias sobre o toma, de uma verdadeira guerra entre filésofos, mas que faria as delicias para historiadores, socidlogos, antropslogos e até cientistas, 0 que acabaria atraindo muitos desses especia- listas para Histéria da Ciéncia. Velamos como isto ocorreu: we [ANA MAR ALFONSO.GOLOFARE E afim: vida propria! Boa parte dos filésofos e pensadores da ciéncia havia descartado a histéria da lista de prioridades em seus estu- dos. A oxplicagao teédrica para isso era que a transforma- do das teorias cientificas deveria ser entendida dentro do contexto da justificativa, em que se analisava sua coeréncia @ estrutura Idgicas. Tratava-se de um proceso acumula- tivo, cujo tempo era o tempo dos desenvolvimentos légicos, @ nao o da histéria. Ou seja, 0 processo do conhecimento se desenvolvia independente do processo da historia. Alids, © proceso da histéria vinha quase sempre atrapalhar, com suas guerras, suas histerias religiosas etc., 0 processo na- tural do ser humano, que era conhecer cada vez mais e me- Ihor 0 universo. A histéria era o espago somente da descri- 40 do contexto das descobertas na ciéncia — um espago eventual, exterior ao processo natural e ldgico do conheci- mento, Para encontrar uma brecha no continuismo, alguns fil6- sofos juntaram os dois contextos, o da justificativa eo da descoberta. Talvez até encontrassem uma explicagao légica por que as teorias nao se acumulavam como mera seqiién- cia umas das outras, como no modelo de evolugdo cientifi- ca apresentado pelo filésofo Sir Karl Popper. Um modelo quo, alids, inspirou Thomas Kuhn e toda sua geragdo. Mas Kuhn tinha também outras influéncias, talvez mais radicais em termos de descontinuismo. Assim, no comego da déca- da de 1960, depois de uma série de outros textos, Kuhn pu- blica a obra em que suas teses contra o continuismo sao. © QUE € HISTORIA DA GENCA os explicadas, usando uma série de interessantes exemplos histéricos. Esse estudo tera um tom radical e apaixonante o em pouco tempo alcangara um publico nao especializado na reflexao filoséfica da ciéncia. Mas que, por motivos dbvios, ha tempo queria parlicipar do debate. Certamente nao sera a precisao das idéias de Kuhn o que vai atrair esse puiblico de néo-filésofos e, sim, as implicagdes que elas langam sobre os modelos da ciéncia. Assim, apesar de ter definido dos modos mais variados o termo paradigma (0 que 6 visto com horror pelos filésofos), Kuhn consegue, por meio des- sa nogaio meio vaga, justificar a descontinuidade na ciéncia como algo que necessariamente ocorre. De uma forma geral (@ juntando as varias definigdes de Kuhn), paradigma seria 0 conjunto de regras, normas, cren- gas, bem como teorias, etc. que direciona a ciéncia con- forme a época e as comunidades cientificas envolvidas no processo. A ciéncia, de fato, avangaria © se acumularia sofrendo aprimoramentos em torno de um determinado paradigma, E Kuhn chama esses periodos de ciéncia nor- mal. Por exemplo, 0 modelo mecanico (modelo de mundo- maquina) poderia ser considerado como um dos paradig- mas em torno dos quais a ciéncia se organizou por um periodo desde 0 século XVII. ‘Mas quando um paradigma comega a nao dar conta de explicar certos fenémenos, ou suas explicagdes ndo so salisfatorias, esse paradigma vai entrar em crise. Essa cri- se vai gerando instabilidades que podem se transformar em verdadeiras revolugdes na ciéncia, Durante esses periodos, oe ABU: MAP ALFCNSO-GOL.DFAR que Kuhn chama de ‘evolucionérios, varios novos paradig- mas concorrem na suostiluigao do anterior. So paradigmas incompletos, pois ainda nao incorporam a série de normas e explizagdes que se um paracigma estabelecido e aceito ala comunidad cies tilica vem a ter com o passar do tem- po. Por isso @ escolne de um entre 9s varios novos pa- radigmas (ou meio peredigmas) ciz Kuhn, nao ¢ tao certo @ linear como os livros didéticos au os compéndios de Hist6- ria da Ciéncia tinham feito crer. Como todos sao incomple- tos, a escolhia da comunidade vai ocorer por motivos esté- ticos, emoconais, @ até polftices, ou seja, razoes nada logicas entram na essclha do novo paradigma. Quando a crise passa, essa espécie de irracionalidade é esquecida. Ea historia, clhandio para o rove paradigma ja estabelecido, que parece explicar mais e melhor os fendmenos, acaba por colaborar com a mptessio gota’ de que o conhecimento cientifico se acumula de uma forma continuada e natural. Lede engano, atimva Kuhn, pois 0 novo paradigma nao explica mais nem mainor os fendmenos jA explicados pelo anterior. Alids, ele nao é nem maior nem melhor do que 0 paradigna anterior. E ai entra uma questo que 6 néio sé do procasso histérico. mas também da processo |égico do conhecimento. Porqu«,,no proceso de desmanche do an- ligo paracigma, no sero $6 suas normas, seus experi: mentos, € suas teorias que vo ser desmontadas, mas, muites vezes, a prop ie visa des fendmenos estudados passa @ ser oulra’ Po examplo, o conceito de movimento para um newtoriano n.ic é um aprimoramento, ou um avan- 0, sob’ 0 conccito «le mavimerto que tinham os aristo- OLE E HISTOR De CIENCIA 6 \élicos. Trata-se de conceitos completament2 diferentes: porque a viséio do que fosse movimento mudcu completa- mente, Fara os aristotélicos era iia qualidade do corpo; para 03 newtonianos, um estado «este. E'es nao tém como ser comparados, medidos um contra 0 outro: sio incomen- surdveis. Nao se pcde dizer qual + melhor, pois o que pas- scu de um para outto foi apenas 2 palavra movimento, mas n&o 0 sentido e as implicagdes logicas desta. Assim sendo, ccrro numa revolugéio social, nas revolugées cientificas, a unica certeza que fica 6 a da murlanga. Se esta mudarga foi para melhor ou para pior, nao sera através da logica (@ quase nunca através da histéria) que vai se poder avaliar. Umas vezes cumprndo seus objetivos reveluiciondirios ini- ciais melhor, outras vezes pi icia normal avanga, mais dentro de seu proprio paradigma, ou do projatc que tragou para si. Guanco este projeto ¢ desmoniado, ninguém poderd di- zer para onde os ncvos objetivos /ao levar. Porque 0 novo paradigma no engioba nem deriva do velhe, nada nos ga- rante a supericridade de um sobre outro. Portanto, a ciéncia moderna nao pode ser considerada como superior & cién- cia antiga. Ela pede ter sido com suas maquinas, seus ex- perimentos e suas teoras, mais operativa sobre a natureza, mas nao mais correta do que as ciéncias anteiores cu as ciferentes dela. Se o objetivo da ciéncia modema era o2e- rar sobre a natureza, ele foi cumprdc. Se o objetive ara conhecer melhor suas verdades, depende de que entendeu por verdade cada época e cada pansador, a6 ANAMARIA ALFONSO.GOLOFARE Thomas Kuhn teve que jusiificar muito, diante de sua propria comunidace, as idéias poucc ortodoxas que havia sugerido. Até voltou ats em algumas delas. Mas para a Historia da Ciéncia, ficava aberta a porta para vasculhar 0 passade e o presente numa nova busce. A busca de como sada cultura, cada comunidade ciertifica e cada época construiu, de acordo com seus odjetivos e suas formas de ver 0 mundo, 0s critérios das verdaces que regeriam sua ciéncia. = se as ciéncias de varias épocas e civersas cultu- ras terian, cada uma, seus préprios critérios do que fosse verdadetro ou falso, a céncia modema deixava de ser o padrao, Tornava-se tio-sé uma ciéncia ertre muitas, nem melhor nem mais completa, apesar de sua pujanga. A cién- cia moderna deveria, partir dai, ser estudada historica- mente para que se pudesse entender a constituigéic dos critérios que Ihe deram farmagao. Sem o peso da continuidads, a Histéria da Ciéncia dei- xou de fabricar seus encrmes compéncios, suas crénicas dos honordveis pais cu precursores da ciéncia. Podia ago- ra se dedicar, sem medo e com seriedade, a estudos so- bre 0 que fora a magia, a alquimia etc. Sabendo, por exem- plo, que em outras épocas e com cutros critérios estas haviam sido expressdes do conhecimento sobre a natura- za, Puderam também ser iriciados esiucos scbre ciéncia @ sociedads. Per exemplo, as etnociéncias, que se dedicam a pesquisar as ciSncias prdprias aos varios povos e culturas (principalmente aquelas qua antes nao eram consideradas cientificas), Ou cs estudos sobre génerc e ciéncia, que in- cluem a questo de ciéncia feita pelas e para as mulheres 0 QUE E HSTORIA OA CIENCIA » ou ainda as ciéncias de onde elas foram, ou ainda cluidas). Mém de pesquisas sobre influéncias mituas en- ‘re artes, humanidades ou técnicas, reconhecendo assim sua intera;ao com varios fazeres humaros. Ou, ainda, pes- quisas sobre ciéncias nacionais, difusao de ciéncia ou cién- cia colonial, em que mais ciretamente se pode observar que a ciéncia esteve e std mergulhada ro precesso histér'co. Entretanto, conforme jd foi dito logo no prine'pio do tex- to, as novas pesquisas em Histéria da Ciéncia nao perten- cem exclusivamente a historia. Nao falei a toa, e com tanta insisténcia, om critérios e verdades da siéncia. Peis, atrés das varias ciéncias, sempre houve uma complexa rede |6- gica 6 uma vocagao para criar verdades que parecem eler- nas mesmo que, de ‘ato, elas dependam da época e do |u- gar. Por exempla, para os pitagéricos foi ura verdade inquestionavel que 0 universo se constituia de narreros, da iresma forma como nds hoje acreditamos que ele seja f2i- tc de dlomos. Sao, enfim, quesiées muitos especais, que solicitam também um tratamento muito especial. Per isso. a Historia da Ciénciz contemporanea, ao deixar de ser um mero azéndice da ciéncia, nao se transferiu ciretamente para 0 campo cas disciplinas histéricas. Pois é preciso que se olhe para a ciéncia de forma histerica ¢ filosdfica; mas também para @ historia de forma filoséfica e cientifice; ainda, saber anxergar a filosotia de maneira histérica 2 cien: {ifica pera afinar os instrumentos de que s2 vale a HistSria da Ciéncia em seu trabalho. O que transformou nos ncs- sos dias @ Historia da Ciéncia num exemplo de estuce in terdisciplinar. on ANA ARIA ALFCNSO-GOLOFAR Assim, sem nunca abandonar 9 rigor filoséfico e cienti- fico, a Hisiéria da Cié 1c pocer interagir com outras areas de conhecimanto, sen ter se transformado numa coleha de relalhos. De falo, um espaco indapendente para a critica do conhecimento cientfico atravs da interdisciplinardade. Historia d's Ciéneia: modos de usar A Historia da Ciénc ia tem hoje uma vida propria e muito agitada, com dezenas de periddicos internacionais e cente- nas de publicagées, congressos, grupos e cepartamentos proprios em quase to.i0 0 mundo, Mas, por ser uma area interdiscipiinar, traballia também revertendo sua pesquisa em varios campos de conhecimento e aprendendo muito sobre eles. Existe, por exempl.,, grard2 contato entre historiadores da ciéncia e educadol es. Ja que a Histéria da Ciéncia ofe- rece em suas pesquiss discussées interessantes sobre os varios modelos de conhecimento 0 que sempre ajuda a repersar ¢ ensino em geral. Mas, particularmente no ensi- no @ na educagao zientifcas, a Histéria da Ciéncia tem ser- vido como grande estimulo. No que se refere aos profes- sores, um trabalho des ervolvido scbre a Historia da Ciéncia evita qu2 seus alunos sejam tratados como pequenos gre- gos que devem ser tvansformados em jovens Newtons. Quanto aos estudant2:s, rompendo com a adainha scbre a superioridade ¢ a oreclestinagao do conhecimento cientifi- co, torna-se possivel sua maior patticipagzo, colocando déias diferentes do livro-texto 2 dividas. O estudo da gé- © QUE E HISTORIA DA CIEVOIN @ nese das idéias cienlificas também ajuda a que se enterda melhor seus processos e convengies, evitando a velha téc- nica escolar de aprender de cor. Outra area em que a Histéria di, Ciéncia tem partcipedo atiyamente é a de planejamento e da politica cientifica. Em 6rgaos gevernamentais, instituigds e departarrentos dedi- cades ao planejamento ¢ ao desenvolvimento de politicas cenlificas, a pesquisa em Historia da Ciéncia tem sido usa- da e mesmc realizada em quantidades significativas. Isso porque, ao trabalnar com modelos de desenvclvimento, a politica cientifica tem necessidad» de compreender o pro- cesso histrico e interativo da ciéncia com o seu meo. Tor na-se, dessa forma, poss'vel repensar certos equivocos & aproveltar experiéncias bem-sucedidas no passado. Também em lugares como museus e ins‘ituigées afins, a pesquisa em Historia da Ciéneia tem sido muito utilizade. Nao sé na orgarizagéo de exposigdes sobre técnicas @ ciénoias das varias culluras, como para auxiiar na reupe- ragéio de gecas e obras antigas, cujo processo de elakora- ao § conheci¢o pela Historia da ‘viéncia. E, naturalmente, existe a interagao entre a Hist5ria da Ciéncia e os cientistas. Como sempre, uma parte destes contnua achando que ela é bom passatempo e ainda rao tomou conhecimento de que existe: uma area independents em Historia da Ciéncia, Mas, cada dia mais, existem cien- tistas preocupados em refletir e aprender sobre cs carninhos e descaminhos do conhecimenio cientifico. E séio com es- se cientistas que mais acabam aprendendo os historiado- res da siénca. 0 ANA MARIA ALFONSO-GOLEANG Para conclui, vale a pena dizar quem sac afinal os his- toriadores da ciéncia. Gu seja, como séia produzidos os que esto produzindo essa p2quisa, Antes de mais nada, ape- sar de ser uma area rolativamente nova @ sujeita a vanios @ fempestades externas, so historiadores da ciéncia cada vez mais os espesialistas ¢ cada vez menos apenas 0s diletantes. E isso porque leva um longo tengo a formago desses profissionais. Termpo e estudo suficiente para desa- nimar qualquer diletante. Para comegar, a pesquisa em His- ‘6ria da Ciéncia se desenvolve er nivel de pés-graduacao. Naturalmente, se a bass inicial de cardidato 2 se tornar um historiador da ciéncia sao as hurranicaces, 0 estuco de al- guma ciéncia é necessario. Mas o contrario também é ver- dadeiro, pois os que provém das areas cientificas deverao realizar estudos no minime em nisiéria e filosofia, Um bom historiador da céncia deve saber linguas. As moderas, para ter acesso a vasta vibliografia que deve percorrer. E de preferéncia uma ou mais linguas classicas, para quem pretende se embrethar nos documentos antigos. Enfim, esta é uma receita talvaz dificil de seguir e com uma possibilidade enorme de variagdes. Esse @ o proble- ma de querer se preparar para fazer uma pesquisa inter disciplinar de fato. Os historiadoras da ciéncia néo podem ser especialistas em generalidaces, juntando um pedaco deste com um retalho daquel2 conhecimento. Mas, sim, uma espécie de polimata renascentista, com sélidos e bem- articulados conhecimentos em vérias areas. Uma espécie de mago modermo dos labirintos do conhecimento. INDICAGOES PARA LEITURA Existe atualmente uma quantidade imensa de material bi bliogrdtico em e sobre Histéria da Ciéneia, embora aperas uma pequena em pertuguds. Vou me restringir aqui a essa pequena parte. Para uma melhor compreensao dos tipos de obras, ‘arei uma diviso da bibliografia em trés partes: | — Livros e textos em geral, em que os pensadores apresentam suas teorias e observagdes sobre a natureza, culas tradugdes e comentarios sdo, quase sempre, feltos por hisloriadores e filésofos da ciéncia. Exemplos dessas obras sé: — Copérnica, N. Commentariolus, introd., trad. e notas de R. de A. Martins, Sao Paulo/Rio de Jeneiro, MAST/ COPPE/Nova Stella, 1990. — Galilei, G. Duas novas ciéncias, introd., trac. da edi- ao de 1638 e notas de L. Mariconda & P.R. Mariconda, Sao Pzulo, Inst. Cul: [talo-Brasileiro/Nova Srella, 1985. ANA 4ABIA ALFONSO GO.OFARE — Newten, J. Pri cipia, trad. T. Rice et. al. da edigéo inglesa de 1729, Séo Faulo, EDUSP/Nova Stella, 1990. ‘Além de varias obias dess2 género, que estao na cole- a0 Os Fensadiores ca Abril Cultural ll — Obras em que os cientis‘as refletem sobre a cién- cia, muitas vezes fazendo sua pripria verséo histérica. Por exempio: — Einstein, A. @ L. Infield, A evelupao da fisica, 3° ed., trad, brasilera, Rio de Janeiro, Zahar, 1976. — Heisenberg, W. Fisica e Filosofia, 2° ad., trad. brasi- da JnB, 1987. — Jacob, F. O joge dos possiveis, trad. portuguesa, Lis- boa, Gradiva, 1985. — Schemberg, M. Pensando a Fisica, 840 Paulo, ed. pela Brasiliense em 1934 € reeditado pela Nova Stella em 1988. lll — Finalmente, trabalhos de pesquisadores especializa- dos om Histéria da Civmncia, ou aqueles produzides por fild- sofos cu socidlogos di ciénc’a scbre ¢ tema. Por exemplo: — Chalmers, A. F. 9 que 3'4 ciéncia afinal?, trad. brasi- leira, Sao Paulo, 3rasiiense, 1993. — D'Ambrosio, Ubiratan. Etnomatematica. S40 Paulo, Atica, 1989. — Feyarabend, P. Jontra o métede, trad. brasileira, Flio de Janairo, Francisco Alves, 1977. — Gama, Ruy. Engento e Tecnologia. Sao Paull, Livra- tia Duas Cidades, 1983. — hill, C, O mundo ae ponta-cabege, trad brasileira, S40 Paulo, Companhia da: Letras, 1987. QUE E HISTORIA DA SIENCA os — Koyré, A. Do mundo fechado ao universo infinito, wad. brasileira, Rio de Janeiro/Sa0 Paulc, EDUSP/Forense, 1978, ; — Kuhn, T. §. A estiutura dass revolugdes cienifticas, 3% ed., trad. brasileira, Séo Paulo, Perspectiva 1982. — Nascimento, C. A. Para ler Gaiileu Gaiilet, Sao Paulo, EDUCINova Stella, 1990 — Rossi, P. A ciéncia e a filosofia dos modemos, vad. brasileira, So Paulo, Ed, UNESP/Inst. Cult. falo-Brasilei- ro, 1992, — Vargas, Milton. Yerdade e ciéncia. Séo Paulo, Livra- “ia Duas Cidades, 1981. — Yates, F. A. O iuminismo tsa-cruz, trad. brasileira, 0 Paulo, Cultrix-Pensamento, 183. ‘Ouainda meu livro, Da alquimra & Quimica, S40 Peulo, EDUSPNova Stella, 1987. Como também as coletdneas de artigos de Stephen Jay Gould, que tem saido em forma de livros pelas ecitoras Martins Fontes e Companhia das Letras. Artigos em Histé ia da Ciéncia também podem ser encen- trados em revistas como Cigncia Hoje e Superinteressante. Ou ainda, em revistas de sociedices e grpos clen‘iticos que sempre reservam um espag® para o tema. Mas !am- bém existe publicagdes especificas como os Caderncs de Historia e Filosofia da Ciéncia (CLE'UNICAMP) e e Revista da Sociedade Brasileira de Historia da Ciéncia, além de Perspiciium (MAST/FU).

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