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‘Do mesmo autor: Livre-Troca (com Hans Haacke) Meditagies Paseatianas © Poder Simbético DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE ACOA » 24300133609 Pierre Bourdieu A DOMINACAO MASCULINA 2* EDICAO Traduciio Maria Helena Kahner SBO-FFLCH-USP 282273 sare Bonase Copyright © ditions du Seuil, 1998 “Titulo criginal: La domination masculme Capa: Sitnone Vitlss Boas Revisto da tradugao: Gustavo Sora Baitoragto: DEL, 2002 Inpresso no Brasit Printed in Brazil C1P-Brasi. Catalogagdo-na-fonte Sindicaio Nacional dos Fatiores de Livros, RE Bourdicu, Pere, 1934-2002 BITEd A dorninagao mascelina/Pieme Bourdieu; tradugdo Maria Helena Ped Kole ~2"ed. ~Riode Janeiro: Bernd Brasil, 2002 0p. “Tradngdo de: Ladomination masculine Inciancxo ISBN 45-286-0705-4 1. Paget sexual, 2. Domninagdo Psicologia. 3. Poder (Clémeias sociais) 4. Homem Pascologia. 1. Titulo. Dp ~3067 79-9353 . COU ~ 316.3462 ‘Todos os direitos reservatios pela: EDITORA BERTRAND BRASILLTDA. Rue Argentina, 171 ~ 1° andar— Sto Crist6vao 20921-380— Rio de Janciro~ RJ ‘Teh: (OXX21) 2585-2070 — Fax: (OXX21) 2585-2087 ‘Nao ¢ permitida a reprodugto total oa parcial deste obra, por quaisquer eis, sem a prévia autorizagio por eserito 6a Editor. Atendemos pelo Reembolso Postal AETERNIZACAO DO ARBITRARIO Eaetrosem an pute pein, fra con iss ses nein sobe 0 mse tenn apne ne pane piste de blo deeds ds are ae jn pac qucsimeaptroteaqucsao oben bata ed a eases crn prone ress onal ou ‘eee dnosfonmnd ete port ew deta terat ga eae ee naane gor vas peed con ods eras antago 43 con eas dacs smu doves toes do qa ssi rela como i a condivd © eter cosas aa e mediate ead = sen eis temo a sag dv muers), de agar «Ae connate aan ds ce. Se nee neces opr une gt, a eee team ¢ ser 6005 Seth, Sen vest pla era i ely san Ae lor er Go gnu sea peti pe fa cet em acim dese eying de aa socstne cae ulamere bes comcreads (emo 9 soi cb al como pate See kc dos ane Sosea) fret aararetcs gis pect compreender eer a anc iris Gago gu to es Fagen ts vos co deen are mantis cpmicmente reco eames egeiase qua soos ea cata pun pl deo « oa rangi is BE Beniejan ole dos nese svt evesponeres Cleat 0 problems soe ena rs pregrete mt lt eahcinento ge poe ea 0 prinlo Fee ro acsne ta tid ao Lee qe aqui a a Sue deo ere nur qe pret dam tube a eemsgn gece si servile ne cose» fn» ap, cl «tanh Ua oc eden, 9 ee fe nas ge ts wend Spends seins de sae eames, gr dv saab em et cro ate palode Meee ante hone, rare dever taco htc, tao eases sok de dtr ence de sanc (0 comme gusta Eat Se Sah rear nite opps agentes es, font tog itr ads orci da decker prince sent, ns ncn Sei ve ep cache 9 iri eurazana ne nal carn Eta mobili mandate poe, ques See ia cums a tn de evened ne sd ee Baar Pier ope anto 8 rego a gue enor as vies esenctaltt ee eta) uaa co sec to aera edu #8 Cre Sd nats hagpnrs we tempest goe pen ca indie Src etc ets rpius Rees ds tina eatin como “pend eee Ft woth De exes seaside, es param reso mo Einitoe demas ce. ar mn comprontn cama pin ec sents ov norco Se peur pop desided ie Pr er eet uns vate dois lia, 0 saa ira. D9 eS ae eee pecth sce eet coniSh st at sem ti fo € 5 Nosh mH arte cos reco dos vere abso copa et ovireiok cane ac papers vases eres eperios E dwt So is bu be ‘finsies ecm nose emo. ane ssl e apnnd sem grit ae a ractrcons edizrang nlc dae ens, jntamete Om ce Ce aude os pibeidos fora de nant cde aie cles ¢ {a nn ate sre capa ea ae, ee) Qe ‘Enver sobre PERE HOURDIEU Profclo deci ales PREAMBULO* Certamente 30 me teria confrontade com as- sunto tho dificil se nto tivesse sido levado a isso por toda a légi- ca de minha pesquisa. De fato, jamais deixei de me espantar diante do que poderiamos chamar de o paradoxo da déxa. 0 fato deque a ordem do mundo, tal como esta, com seus sentidos tini- cos ¢ seus sentidos proibidos, em sentido proprio on figurado, suas obrigagdes e suas sancies, seia grosso modo respeitada, que ‘nao haja um maior mimero de transgressdes ou subversOes, deli- tos e “loucuras” (basta pensar na extraordinaria coordenacio de mi-thares de disposigoes —- 04 de vontades — que cinco minu- tos de circulacao automobilistica na Praga da Bastilha ou da Concorde requerem); ou, 0 que é ainda mais surpreendente, que 2 ordem estabelecida, com suas relacoes de dominacao, seus di- reitos e suas imunidades, seus privitégios e suas injusticas, salvo uns poucos acidentes historicos, perpetye-se apesar de tudo tio facilmente, ¢ que condicdes de existencia das mais intoleraveis possam permanentemente ser vistas como aceitiveis ou até mes- ‘mo como naturais. Também sempre yi na dominacao mascutina, £no modo como ¢ imposta ¢ vivenciada, o exemplo por excelén- cia desta submissao paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violé” ia simbdlica, violencia suave, insensivel, invisivel @ suas pruprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas Vias pus ramente simbdlicas da comunicagao ¢ do conhecimento, ou, ~ Porn ther ramen + optecianos gonna vce banca ov nfo neo pesos © quem foster dos, contrtormnees am expe minh proied2 ‘ko a fodos onulos » scbrde @ todas amielos que me Fore fe uno documents, lets ceric, don, « minha esperonca de Gv oe ‘obetho vero a wr dgno obra em rau lator, do coniomo dak expecta os ue es ou dos nel depestron, “msi precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ‘ou, em altima instancia, do sentimento, Essa relagdo social ex- traordinariamente 6rdinavia oferece também uma ocasito th de apreender a l6gica da dominacao, exercida em nome de wm prinetpio simbelico conhecido e reconhecido tanto pelo domi-_ nante quanto pelo dominzdo, de uma lingua (ou uma maneira ‘de falar), de um estilo de vida (ow uma mancira de pensar, de fa- _ lar gu de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distinti- vva, erpblema ou estigma, dos quais 0 mais eficiente simbolica~ mente é essa propriedade corporal inteiramente arbitearia e no predicativa que é a cor da pele. “Torna-se evidente que, nessas matérias, nossa questo princi- pal tem que ser a de restituir & déxa seu carter paradoxal e, a0 ‘mesmo tempo, demonstrat os processos que sho responsaveis pela transformagao da historia em natureza, do arbitrario cultural em natural. E, ao (a2é-10, nos pormos @ altura de assumir, sobre nos- 50 prOprio universo e nossa propria visto de mundo, o ponto de ‘vista do antropélogo capaz de, ao mesino tempo, devolver & dife- renga entre‘o mascuilino e feminino, tal como a (des)eonhece~ ‘mos, seu cardter arbitririo, contingente, e também, simultanea~ ‘mente, sua necessidadle sécio-légica. Nao ¢ por acaso que, quando quis por em suspenso o que ela chama, magnificamente, de “o poder hipnético da dominacao”, Virginia Woolf se armou de uma analogia etnografica, religando geneticamente a segregagao das ‘mulheres aos rituais de uma sociedade ascaica: “Inevitavelmente, nés consideramos a sociedade um lugar de conspiragio, que engole o iemao que muitas de nés temos razdes de respeitar na vida privada, e impde em sex lugar um macho monstruoso, de voz tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril, inscreve no chao signos em giz, misticas linhas de demarcagdo, entre as quais 6s seres humanos ficam fixados, rigidos, separados, artificiai Lugares em que, ornado de ouro ou de puirpura, enfeitado de pla- ‘mas como um selvagem, ele realiza seus ritos misticos. wsufial ‘dos prazeres suspeitos do poder e da dominacao, enquanto.n6s, “Suas’ mutheres, nos vernos fechadas na casa da familia, sem at ios Sja dado participar de nenhuma das numerosas sociedades ‘iedade"1 “Linhas de demarcagao misticas", sagem ~~ a da transfiguracio magica e da conversio simbélica que produz a consagragio ritual, princi- pio de um novo conhecimento — estimuia a orlentar a pesquis para um enfoque capaz de aprender a dimensio propriamente simbélica da dominagao masculina, "Bard, por tanto, necessdrio buscar em uma anilise materialista dda economia os meios de escapar da ruinosa alternativa entre 0 “material” ¢ 0 “espiritual” ou “ideal” (mantida atualmente por meio da oposigao entre os estudos ditos “materialistas’, que expli- cam a assimetria entre os sexos pelas condigies de produgao, e os estudos ditos “simbdlicos’, muitas vezes notaveis, mas parciais). Mas, primeiramente, s6 uma utilizagao muito especial da etnolo- gia pode permitir realizar o projeto, sugerido por Virginia Woolf, de objetivar cientificamente a operacao, corretamente dita misti- ca, na qual a divisio entre os sexos, tal como a conhecemos, produg; ou, em outros termos, de tratar a analise objetiva de uma sociedade organizada de cima a baixo segundo o principio andro- céntrico (a tradigio cabila), como uma arqueologia objetiva de nosso inconsciente, isto é, como instrumento de uma verdadeira socioanilise? : Esse desvio, indo a uma tradigao exsitica, €indispensavel para enganosa familiaridade que nos lig >. As aparéncias biologicas € os efeitos, bem reais, iologizasio do social produziu nos corpos nas mentes conju- se para inverter a relacdo entre ascausas ¢ os efeitos e fazer ver ma constragao social naturalizada (os “géneros” como habitus sexuuados), como o fundamento in natura da arbitraria divisao que 1 WT gs a Fr, Fa Ele dF, 197 2. Nem que jo pare canprovar que meu propisio all nde rev de ume com ‘cio acl, ral de pgoor down inr o ania #m qua arise nolo de ‘9, quando asicada @ diisieaneal do mondo, arclogis pode “lomorse vets ome portcuarniais poderso ee socoaralee” (F. Bouian, le Sens protgoo, Por, Cone de Mini, 1980, pp. 246247), esté no princtpio nao s6 da reali {agdo da realidade e que se impoe por vezes & propria pesquisa.) ‘Mas serd que esse uso quase analitico da etnografia, que des- naturaliza, historicizando, 0 que € visto como o que hé de mais natural na ordem social, a divisto entre 0s sexos, ndo se arrisea a por em destaque constantes ¢ invarisvets — que esto no princi- pio mesmo da sua eficdcia socioanalitica ~~ e, com isso, a eterni zar, ratificando-a, uma representagio conservadora da relacio entre os Sex08, ‘a mesma que se condensa no mito do “eterno emi que ii se tentou ey ext ob forma de * ‘a historia serd que as invariéveis que se mantém, acima de todas as nmudan- «a8 visiveis da condicdo feminina,e sto ainda observadas nas rela- gies de dominagao entre os sexos, ndo obrigam a tomar como objeto privilegiado os mecanismos e as instituigaes hist6ricas que, no decurso da hist6ria, ndo cessaram de arrancar dessa mesma historia taisinvariéveist Essa revolugdo no conhecimento no deixa de ter consequén- iss na pritica , particalarmieme, na coucepeao das Gtratégias destinadas a transformar 6 estado atual da relagio de forcas mat _ Hale simbdlica entre os sexos. Se 6 verdade quo principio G2} petuagio’dessa relagio de déminagio nto 3. Asim, no & ove qu os patos tetanam por cont prio Wide como dos vero, come canines dialer spciados, sm apo, einorem 0 gray de recebrimeno ante 0 dtibicdas do performances moscvinas faninina,@ oF mas também porque 0 ato sexual 86. GB. Ehonrech, The Hears of Men, American Omens andthe Fight om Commitment, Devbiadoy Anciey, Gorden Cll, New Yor, 1983: E, Anderson, Sreowwse: Roce, Claw and Charge In on Ubon Conmariy, Chicoge, Cheaga Univer ies, 1960. ‘em sié concebide pelos homens como uma forma de dominacao, de apropriacdo, de “posse”. Daf a distancia entre as expectativas provaveis dos homens e das mulheres em matéria de sexualidade =~ € 05 mal-entendidos que deles resultam, ligados a més inter- pretagdes de “sinais’, as vezes deliberadamente ambiguos ou enganadores. A diferenga das mulheres, que estao socialmente preparadas para viver a sexualidede como uma experiéncia intima ¢ fortemente carregada de afetividade, que nao inclui necessaria~ mente a penetragio, mas que pode inchuir um amplo leque de ati- vidades (falar, tocar, acariciar, abragar etc.) os rapazes tendem a “compartimentar” a sexualidade, concebida como um ato agressi~ ‘vo, e sobretudo fisico, de conquista orientada para a penetragao ¢ © orgasmo.s? Embora neste ponto, como em todos os outros, as variagdes sejam evidentemente considesiveis, segundo a posicdo social, a idade — ¢ as experiéncias anteriores —, pode-se inferir, por uma série de entrevistas, que préticas aparentemente simétri- cas (como a felagio € o cunnilingus) tendem a revestir-se de signi ficacdes muito diversas para os homens (que tendem a ver nelas atos de dominio, pela submissao ou o gozo abtidos) e para as mulheres. O gozo masculino é, por um lado, gozo do gozo femini- no, do poder de fazer gozar: assim Catharine MacKinnon sem duvida tem razao de ver na “simulagao do orgasmo” (faking orgasm} uma comprovagao exemplar do poder masculine de fazer com que a interagao entre os sexos se dé de acordo coma visa dos homens, que esperam do orgasmo feminino uma prova de sua ‘Virllidadee do gozo garantido por essa forma suprema da submis- 820.4 Do mesmo modo, 0 assédio sexual nem sempre tem por fim BTM BocoZinn, 5 Fiver, Brersy i American Fans, Naw York Harper and Row, 1990, pp. 249254: Rabi, dinate Stongor, Now Vor, Bosc, 1988. 32 D. Resil, The Poti of Bape, New York, vin and Day. 1975, p. 272; D. Rosa, Senso Explioson, Bavely Hil, Sage, 1984, p. 162 23. Embore,poreazdee de patito, evtarhatdalvado 0 olor de mulhees ou do homens som fazer cfeténcio a ava posi soca, esho consiéncio do que saria noceeixa over em cont, em coda oto, como fo repeal na vcd des talino, oF erpaccarder que. pincipie de daranciao wail inp 00 principio a diareniogée sexl fu viceres} 3L.C. A MacXionon, Fenian Unmadifed Daur on te and law, Cambridge (Wose) Lode, Honerd Uivery row, 1987, p 58. exclusivamente a posse sexual que ele parece perseguit: 0 que acontece € que ele visa, com a posse, a nada mais que a simples afirmacio da dominacdo em estado puro.*5 Se a relagdo sexual se mostra como uma relacao social de dominacdo, é porque ela esté construfda através do principio de divisdo fundamental entre o masculino, ativo, ¢ 0 feminino, passi- vo, € porque este principio cria, organiza, expressa e dirige 0 dese- jo— 0 desejo masculino como desejo de posse, como dominagao erotizada, eo desejo feminino como desejo da dominagao mascu- lina, como subordinagio erotizada, ou mesmo, em time instan- cia, como reconhecimento erotizado da dominagao. No caso em que, como se da nas relagtes homossexuais, a reciprocidade é pos- sivel, 08 laos entre a sexualidade e 0 poder se desvelam de manei- a particularmente clara, ¢ as pasigdes e os papéis assumidos nas relagbes sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociaveis das relagdes entre as condigbes sociais que determi- ‘nam, 20 mesmo tempo, sua possibilidade e sua significagao. A penetracao, sabretudo quando se exerce sobre um homem, é uma das afirmagoes da libido dominandi, que jamais esta de todo ausente na libido masculina. Sabe-se que, em inimeras socieda- des, a posse homosexual € vista como uma manifestagdo de “poténcia’, um ato de dominacao (exercido como tal, em certos ‘casos, para afirmar a superioridade “feminizando” 0 outro) ¢ que 2 este titulo que, entre os gregos, ela Jeva aquele que a sofre & desonra ¢ a perda do estatuto de homem integro e de cidadio;36 40 passe que, para um cidadao romano, a homossexualidade “passiva” com um escravo é considerada algo “monstruoso"37 Do ‘mesmo modo, segundo John Boswell, “penetracdo e poder esta- ‘Yam entre as inimeras pretrogativas da elite dirigente masculina; ceder & penetragao era uma ab-rogagio simbolica do poder e da a 35. CL & Chin “lo possession” am P Bodin ot a, Lo Mite dv monde, Pst, Eahions do Sa, 1998, 3p. 36:01 36 Cl, por exemple, K.] Dover, Homesmhis gece, Foi, Lo Perse swage, 1982, pp 130 0106. 97. P.Yayve, “Chomororstte 6 Rome", Communications, 35, 1982, pp. 2692. autoridade”:® Compreende-se que, sob esse ponto de vista, que tiga sexualidade a poder, 2 pior humilhacdo, para um homem, consiste em ser transformado em mulher. E poderiamos lembrar aqui os testemmunhos de homens a quem torturas foram delibera- damente infringidas no sentido de feminilizd-ios, sobretudo pela humilhagao sexual, com deboches a respeito de sua virilidade, acusagées de homossexualidade ou, simplesmente, a necessidade de se conduzir com eles como se fossem mulheres, fazendo desco- Drir “o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de estar sempre exposto & humilhacio ow ao ridiculo e de ‘encontrar um reconforto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos”? A INcORPORAGAC DA DOMINAGAO Emibora a idéia de que a definicto social do corpo, ¢ especial- mente dos érgtos sexuais, é produto de um trabalho sociat de construgo se tenkra banalizado de todo por ter sido defendida por toda a tradigao antropolégica, o mecanismo de inversio da rela- a0 entre causas ¢ efeitos, que eu tento aqui demonstrar, e pelo qual se efetua a naturalizacao desta construsao social, nao foi, a meu ver, totalmente descrito, O paradoxo estd no fato de que sto as diferengas visiveis entre o corpo ferninino eo corpo mascutino que, sendo percebidas ¢ construidas segundo 0s esquemias priti- cos da visio androcéntrica, tornam-se o penhor mais perfeita- mente indiscutivel de significagdes e valores que estao de acordo com os prineipios desta visio: nao 6 falo (ou a falta de) que ¢ 0 fundamento dessa visto de mundo, e sim é essa visto de mundo gue, estando organizada segundo a divisao em géneras relacionais, 36. 1. Boswell “Sewct ond Eliot Categoria imPromedeen Eutope", am P Me Whine, $ Senders, | Renich, Plemosencalfy/Hefeosenslty: Cnceps ef Sent Onentaen, Now York, Onord Univrsiy Fre, 1990. 29.45. Fameo, "Gender, Doak and Rosstance, Fcing te Ethel Voewm’, am J E. Cortadt, P. Weiss Fagen, M.A. Goren, Fer a he Edge, tote Teror ond Resistance in Ltn Americ, Betiley, Urversty of Colon Pres, 1992. masculino e feminino, pode instituir o falo, constitaido em sim- polo da virilidade, de ponto de honra (nif) caractezisticamente masculino; e instituir a diferenga entre os corpos biolégicos em fandamentos objetivas da diferenca entre os sex0s, no sentido de gtnetos construtdos como duas esstncias sociais hierarquizadas, Longe de as nevessidades da réprodugio biol6gica determinarem ‘a organizacio simbotice da divisio social do trabalho e, progress: vvamente,de toda a ordem natural e social, é uma construgao arbi- tréria do biol6gico, e particularmente do corpo, masculino € ferninino, de seus usos ¢ de suas fuungdes, sobretudo na reprodu- ao biologica, que dé um fundamento aparentemente natural & visto androcéntrica da divisdo de trabalho sexual e da divisio sexual do trabalho e, a partir dai, de toda o cosmos. A forca parti- cular da sociodicéia masculiva Ihe vem do fato de la acumular =, condenser duas operagoes: ela legitima una relacito de dominagao- ‘HiserevEMAEA Fm uma naturcea bidligica que 6 por sua vez ela répria una construcio social noturalizada, “O trabalho de construgio simbolica nio se reduz a uma ope- ragdo estritamente performative de nominagdo que oriente ¢ estruture as representagées,a comeyar pelas representaghes do cor- po (0 que ainda nfo é nada); ele se completa e se realiza em uma transformagio profiunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto 4, em um trabalho e por um trabalho de construgio pratica, que impoe uma definigao diferencial dos usos legitimos do corpo, sobretudo os sexuais, ¢ tende a exclair do universo do pensével e do factivel tudo que caracteriza pertencer ao outro género— e-em Particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no “per- verso polimorfo" que, se dermos crédito a Freud, toda crianga & — para produzir este artefato social que € um homem viril ou Juma mulher feminina. O ndmos arbitracio que institu as duas classes na objetividade no reveste as aparéncias de uma lei da ‘atureza(fale-se comumente de sexualidade ov, hoje em dia mes- ‘mo, de casamento “contra a natureza”) sendo ao término de uma somatizagdo das relacdes sociais de dominagdo: 64 custa, ¢a0 final, de um extraordinario trabalho coletivo de socializagao difusa e continua que as identidades distintivas que a arbitrariedade cultu- ral institui se encarnam em habitus claramente diferenciados segundo 0 principio de divisio dominante ecapazes de perceber 0 mundo segundo este principio, ‘Tendo apenas uma existéncia relacional, cada um dos dois _gineros é produto do trabalho de construcio diacritica, 20 mesmo Tempo tedricae pratica, que ¢ necessdrio Asa produgdo como.car— ‘po socialnrente difercrciado do ynero oposto {sob todos os pontos de vista calfirtalinénts pertinentes), isto é como habitusviril,¢ por- tanto nao feminino, ou feminino, e portanto nao masculine. Aagao de formacio, de Bildung, no sentido amplo do termo, que opera esta constrgao social do corpo nao assume serio muito parcial- ‘mente a forma de ama agio pedagdgica explicita e expressa. Bla em sua maior parte, 0 efeito automatico, e sem agente, de uma ‘ordem fisica e social inteiramente organizada segundo o principio de divisto androcéntrico {o que explica a enorme forga de pressio aque ela exerse). Inscrta nas coisas, a order masculina se inscreve ‘também nos corpos através de injungoes técitas, implicitas nas roti- nas da divisto do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados (bas- ta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginalizagao impostas as mmudheres com sua exclusto dos lugares masculinos) AS, regulatidades da ordem fisica eda ordem social impoemeinculeam as medidas que exeluem as malheres das tarefas mais nobres (con~ ‘duzie a chaéraa, por éxemplo), assiialando-thes lugares inferiores (a parte baixa da estrada ou do talude), ensinando-Thes a postara correla do corpo (por exempio, curvadas, com os bragos fechados sobre o peito, diante de homens respeitaveis), atribuindo-Ihes tare fas penosas baixas e mesquinhas (s4o elas que carregam o estrumes ena colheita das azeitonas, sio elas que as juntam no chao, com as ccriangas, enquanto os homens manejam a vara para fazé-las cair das arvores), enfim, em geral tirando partido, no sentido dos pres supostos stais, das diferengas biolégicas que par em) ‘assim estar d base das diferencas sodais. == [Na longa seqiéncia de mudas chamadas a ordem, os ritos de instituicao ocupam tm lugar 2 parte, em virtude de sew carter solene e extra-ordinario: eles visam a instaurar, em nome e ém presenga de toda a coletividade para tal mobilizada, uma separa ao sacralizante, nao s6 como faz crer a nogdo de rito de passa- gem, entre 0s que jé receberam a marca distintiva e os que ainda Boa receberam, por serem ainda muito jovens, como também, & gobretudo, entre os que sdo socialmente dignos de recebé-ta e as aque dela esto definitivamente excTutdas, isto é,as mulheres.# Ou, como no caso da circuncisto, rito por exceléncia de instituigao da masculinidade, entre agueles cuja virilidade ele consagra ao pre- pari-los simbolicamente para exerce-ta, ¢ aquelas que nao estdo em condighes de ter fal iniciagdo, e que nao podem deixar de se sentir privadas daquilo que aocasiao eo suporte do ritual de con- firmacao da virilidade representam. ‘Assim, o queo discurso mitico professa de maneira, apesar de ‘tudo, bastante ingénua, os ritos de instituigao realizam da forma ‘mais insidiosa, sem diivida, porém mais eficaz simbolicamente. les se inscrevem na série de operagdes de diferenciagao visando a destacar em cada agente, homem ou mulher, os signos exteriores ‘mais imediatamente conformes a definigdo social de sua distingao sexual, ou a estimular as préticas que convém a seu sexo, proibin- do ou desencorajando as condutas impréprias, sobretudo na rela- <0 com o outro sexo. £, por exemple, 0 caso dos ritos ditos “de separacio”, que ttm por funsao emancipar um menino com rela- goa sua mie e garantir sua progressiva masculinizagao, incitan- do-o ¢ preparando-o para enfrentar o mundo exterior. A pesqui- ss antropologica descobre, realmente, que o trabalho psicolégico que, segundo certa tradicio psicanalitica,st os meninos tém que “20. A conn boa ue ox tnd rst do & nai da viiidode ns em poe moeiney, tadanor que ecrscao adores jos Wats, sebetude aqieles 190 fn conlarde sexuck mais ov moves evdete am © que corsita am mr © Thos loge pone a 08 ogee homewowsis dos puquers padres qu, om Ho cearete Ingndedreie, Be salreconegedcs de exotorSo: ékcot. mas waxes Insedon oo Unguagem [por senso, pichepin, © que fem made aca, agin, fem heomis,avro, poueo gerwoto) Gute 4 zoahes qu me lvarom a ubsitt oro do insvieso fsprano que dave sr eompreendiéa ap mee tp 0 {edo daquio que o¥ istieschzode — 6 insagea de caramento —e do fo insti —o naiuedo dem bards)" nooo doris de postage, que vem dv: do davas somal cuois ao Fao da que wo nZo mes que me proto do senso comim converse om eenenia de feigio oncto, ver P. Bouau, “Les Hee Sirwiton® form Co gue para veut im, Pei, Fayed, 1982, pe. 121-134. 147-CkprincigloaonB) Chodorow, Th Roposcten af Materia: Poyhanclys nd he Socsagy of Gonder, Brel, Univary of Colforsic Fess, 1978. realizar para cortar a quase-simbiose original coma mae e afirmar uma identidade sexual propria ¢ expresso e explicitamente acom- panhado, ou mesmo organizado, pelo grupo que, em toda uma série de ritos de instituigao sexuais orientados no sentido da viri Bza¢do e, mais amplamente, em todas as priticas diferenciadas e diferenciadoras da existéncia didris (esportes e jogos viris, caga ete.) encorajam a ruptura com o mundo materno; ruptura da qual, as filas (bem como, para sua infelicidade, os “Athos de viva”) esto isentos — 0 que lhes permite viver em uma espécie de con- tinuidade com amie? A“intengao” objetiva de negar a parte feminina do masculino {esta mesma que Melanie Klein pedia & psicandlise para resgatar, ‘por uma operacio inversa 3 que realiza 0 ritual), de abo os Lagos € 05 vineulos com a mie, com a terra, com a umidade, com 2 noi te, coma natureza, manifesta-se, por exemplo, nos ritos que se sealizam no momento denominado “a separacao ert ennayer” (el dazla gernayer), como o primeiro corte de cabelos do menino, € ‘em todas as cerimonias que marcam a ultrapassagem do limiardo mundo masculino e que tero sen coroamento na circuncisio. Seria infindavel a enumeragao dos atos que visam a separar 0 menino de sua mae — pondo em ago objetos fabricados pelo fogo ¢ adequados a simbolizar 0 corte (e a sexualiiade viril) faca, punhal, relho etc, Assim, depois do nascimento, a crianga é colo- cada & direita (lado masculino) de sua mae, que esté por sua vez deitada do lado direito, e colocam-se entre eles objetos tipicamen- te masculinos, tais como um pente de cardar I, uma grande faca, uum relho, uma das pedras do lar, Dai a importincia do primeiro corte de cabelos, que est, jgualmente, ligado 20 fato de que a cabeleira, feminina, € um dos elos simbélicos que unem o menino 40 mundo materno, E ao pai que incumbe dar este corte inauga- “AD. Ew spose cos que wo chamsdes yor vezer na Caio de “hos dee homens, ee edicayao compete @ vaca homens, cx “Thos de wee” abo Wiles corrauspeigde de lee eseapads 00 abelhs de todos ot Intafes que nsessr2 pata evo aus 0s mextns @ ornem mules @ ce aa sido abendonados ago fenpizame do gedprio nto ral, com a navalha, instrumento masculino, no dia da “separagio “en ennayer” ¢ pouco antes da primeira entrada no mercado, isto em uma idade situada entre os seis ¢ os dez anos. E 0 trabalho de virilizagao (ou de desfeminizagao) prossegue por ocasiao desta introdugo no mundo dos homens, do ponto de honra (nif) ¢ das Jatas simbélicas, que ¢ a primeira entrada no mercado: a crianga, em trajes novos e com a cabeca enfeitada com um turbante de seda, recebe uma espada, um cadeado e um espelfo, enquanto sua rite depée um o¥o fresco no capuz de seu capote, Na porta do riercado, ele quebra 0 ovo e abreo cadeado, atos virs de deflora- Ho, ese otha no expelno, que, tal coma o limiar, éum operador de jinversio, Seu pai o guia no mercado, mundo exclusivamente mas- culino, apresentando-o aos outros homens. Na volta, eles com- pram uma cabega de boi, simbolo fico — por seus cornos — associado a0 nif ‘© mesmo teabalho psicossomtico que, aplicado aos meni- nos, visa a virilizé-los, despojando-os de tudo aquilo que poderia neles restar de ferinino -~ como no caso do “filho de vita" — assume, n0 caso das meninas, uma forma mais radical: 4 mulher ‘estando constitwida como uma entidade negativa, definida apenas por falta, suas virtudes mesmas s6 podem se afirmar em uma dupla negagdo, como vicio negado ou superado, ou como mal menor. Todo o trabalho de socializacao tende, por conseguinte, a impor-hhe limites, todos ees referentes a0 corpo, definido para tal como sagrado, Haran, e todos devendo ser inscritos nas disposi- g0es corporais, £ assim quea jovem cabila interiorizava os princ!- pios fundamentais da arte de viver feminina, da boa conduta, inseparavelmente corporal e moral, aprencendo a vestir e usar as Giferentes vestimentas que correspondem a seus diferentes esta- dos sucessivos, menina, virgem nubil, esposa, mae de familia, e, adquirindo insensivelmente, tanto por mimetismo inconsciente quanto por obediéncia expressa, a maneira correta de amarrar sua cintura ou seus cabelos, de mover ou manter imovel tal ou ual parte de seu corpo 2o caminhar, de mostrar o rosto e de diri- giro olhaz. Essa aprendizagem ¢ ainda mais eficaz por se mapter, no ceseencial, icita: a moral feminina se impoe, sobretwdo, através de ‘uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, € aque se faz lembrar ese exerce continuamente através da eoag20 quanto 20s trajes ou aos penteados. Os principios antagonicos da identidade masculina ¢.da iden jade feminina se inscrevern, “asim, sob forma de maneiras permanentes de se servir do corpo, ou, iey_a postu ‘como, que a realizacao, ou me- Thor, a naturalizagdo de uma ética. Assim como a moral da honra ‘mascillina pode ser resumida em uma palavra, cern vezes repetida pelos informantes, gabe, enfrentar, olhar de frente e com a postu- a ereta (que corresponde & de um militar perfilado entre nés), prova da retidao que ela faz ver do mesmo modo a submissi0 femminina parece encontrar sua tradugio natural no fato de se in- dinar, abaixar-se, curvar-se, de se submeter (0 contrério de “por- se acima de"), nas posturas curvas, Dlexivels, ¢ na docilidade cor- relativa que se jlga convir a mulher. A educagso elementar tende, a inculcar maneiras de postar todo 0 corpo, ou tal ou qual de suas “partes (a méo direita, masculina, ou a ma. esquerda, feminina), a ‘manera de andar, de erguer a cabega ou 0s othos, de olhar de frente, nos alhos, ou, pelo contrério, abaixs-los para os pés etc maneitas que esto prenhes de uma ética, de uma politica ¢.de ‘uma cosmologia (toda a nossa ética, sem falar ema nossa estética, assenta-se no sistema dos adjetivos cardeais, elevado/baixo, direi- to/torto, rigido/flexivel, abertoffechado, uma boa parte dos quais signa também posigdes ov disposigdes do corpo on de algumna de suas partes — ag. a “fronte alta” ou a “eabega baixa”). ‘A postura submissa que se impoe as mulheres cabilas repre- senta o imite méximo da que até hoje se impoe as mulheres, tan- to nos Estados Unidos quanto na Europa, e que, como intimeros observadores j& demonstraram, revela-se em alguns imperativos: Gi Sobis oo gab qm ot le prio geo &s vonage bbscen do espe- ‘ore dodo a vsbo de mundo, cP Bourdieu le Sos prague, op cite p-151 ’ sortir, baixar os olhos, aceitar as interrupgoes eté. Nancy M.- Henley mostra como se ensina as mulheres ocupar 0 espago, caminhar e adotar posigdes corporais convenientes. Frigga Haug. também tentou fazer ressurgir (com um meétodo que chamou de memory work, visando a resgatar historias de infancia, discutidas ¢¢ interpretadas coletivamente) os sentimentos relacionados com as diferentes partes do corpo, com as costas a serem mantidas retas, CoM as pernas que ndo devem set afastadas etc. e tantas ‘outras posturas que estdo carregadas de uma significagio moral (sentar de pernas abértas 6 vulgar, ter barriga é prova de falta de vontade etc.). Como s¢ a feminilidade se medisse pela arte de “se faver pequena” (0 ferminino, em berbere, vem sempre ema diminu- tivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisfvel (do qual o véu nao ¢ mais que a manifestagao visivel), limitando 0 territ6rio deixado aos movimentos e aos deslocamen- tos de seu corpo — enquanto os homens tomam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares piiblicos. Essa espécie de confina- mento simbélico é praticamente assegurado por suas roupas (0 ‘que ¢ algo mais evidente ainda em épocas mais antigas) e tem por efeito nio sé dissimular o corpo, chamé-lo continuamente & ordem (tendo a saia uma fungdo semelhante a sotaina dos padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente (‘minha mae nunca me disse para nao ficar de pernas abertas”): ‘ora. com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mios, e sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de ativi- dades (a corrida, algumas formas de se sentar etc.); ora $6 as per- Initindo a custa de precaugdes constantes, como no caso das jovens que puxam seguidamente para baixo uma saia demasiado GET tng Wo OW Botte, A Clr Wa of Hye So 109 etn cnr oc pan ane cen 2 ape eens ese cele n hors wer Bete ore ce attaataeen se cooe Sr Ticntnc moh ne meee oe re snl ee ee ae cas eee eee ee ree eS eee ccurta, ou se esforgam por cobrir com o antebrago uma blusa exces- sivamente decotada, ou t&m que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chio um objeto mantendo as peas fechadas!® Essa8_ _maneiras de usar 0 co"po, profundamente associadas a ativude morale a contencag que convém ds mulheres, cootinuam a Ths ‘ser impostas, como que sta revelia, mesmo quando defxaram de thes ser impostas peta roupa (como 0 andar com passinhos rpi- dos de algamas jovens de calgas compridas ¢ sapatos baixos).E as poses on as posturas mais relaxadas, como 0 fato de se balangarem na cadeira, ou de porem 0s pés sobre a mesa, que sio por vezes vistas nos homens — do mais alto escalio — como forma de demonstracio de poder, ou, 0 que dé no mesmo, de afirmagzio sio, para sermos exatos, impenséveis para uma mulher ‘Aos que objetariam que intimeras mulheres romperam atual- mente com as normas formas tradicionais daquela conten¢io, apontando sua atual exibigao controlada do corpo como um sinal de “liberagao”, basta mostrar que este tiso do proprio corpo conti~ nua, de forma bastante evidente, subordinado ao ponto de vista masculino (como bem se vé no uso que a publicidade faz da mulher, ainda hoje, na Franca, apos meio século de feminismo): 0 corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido ¢ recusado, manifes- ta.a disponibilidade simblica que, como demonstraram inime- 10s trabalhos feministas, convém & mather, e que combina um poder de atracio e de sedugio conhecid ¢ reconhecido por todos, homens ou mulheres, € adequado a bonrat os homens de quem ECLNM Hesley_op oho pp. 99, 8991 a tombben pp. 421249 reproduce ‘dein toon inieda Exacion pore Homons", que ose "oeburdo des pos twas" geet wlga cori hoes. 146 Todo que ice em aiado npicto na aprorzogam do fannie levado @ ter argieade nas “eres de recepersts” «sv coos de preporeiba «de boos Tanatosconde, cura cbsevos Yasha Deliv. operdese comer. martes d6 pe leom os dos ots dos canon ops poalioth,@ vor, « wbir @ dncer oma ‘ca oe has pora cn pl a satorze drs fcacapelonito om que fozet com Ge ido tae eaato, vr em pesca. otros hispads/chaos oso se ‘Sm, “responder gonimero"), ote "eampostire.nadopl sentido, dese por tense n do meneia de e vt [er caves berones, domosiodo fates ev ogre et] ode ve meer. «ela depende ou aos quais esta ligada, com um dever de recusa sele~ tiva que acrescent, 20 efeito de “consumo ostentatdrio’ 0 prego ‘As divisoes constitutivas da osdem social e, mais precisamen- te,as relagbes sociais de dominasao.e de exploragdo que estao ins- tituidas entre os generos se inscrevem, assim, progressivamente . ‘em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexiscorpo- ais opostos e complementares ¢ de principios de visto e de di ‘s40, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as praticas segundo disting®es redutiveis a oposigao entre o masculi- 1no¢ 0 feminino. Cabe aos homens, situados do lado do exteriors, do oficial, do publico, do direito, do seco, do alto, do descontinuo, realizar todos as atos a0 mesmo tempo breves, perigosos e espeta- cular, como matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicidio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordindrio da vida. As mulheres, pelo contririo, estando situadas do tado do ‘imido, do baixo, do curvo e do continuo, veer serthes atribui dos todos os trabalhos domésticas, ou seja, privadose escondidos, ow até mesmo invisiveis € vergonhosos, como o ctidado das eriangas e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores «que lhes sao destinados pela razio mitica, isto é, os que levam a Jidar com a agua, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o leite, com a madeira e, sobretmdo, ‘0s mais sijos, 08 mais mondtonos ¢ mais humildes, Pelo fato de o snundo limitado em que elas esto confinadas,o espago do vile jo, a casa, a linguagem, os utensilios, guardarem os mesmos ape- Jos & ordem silenciosa, as mulheres nde podeme sendo tornar-se 0 {que elas sao segundo 2 razao mitica, confirmando assim, ¢ antes de ‘mais nada a seus préprios olhos, que elas estdo naturalmente des- tinadas a0 baixo, a0 torto, a0 pequeno, ao mesquinho, ao fétit etc. Hlas esto condenadas a dar, a todo instante, aparéncia de funda mento natural 3 identidade minoritéria que thes ¢ sociaimente designada: é a elas que cabe a tarefa longa, ingrata e minuciosa de catar, no chido mesmo, as azeitonas ow achas de madeira, que os homens, armados com a vara ou com 0 machado, deitaram por terra; sao elas que, encarregadas das preocupagdes vulgares da gestto quotidiana da economia doméstica, parecem comprazer-se ‘com as mesquinharias do calculo, das contas e dos ganhos que 0 homem de honra deve ignorar. (Eu me lembro, assim, que em minha infancia os homens, vizinbos ¢ amigos, que haviam mata- doo porco pela manha, em uma breve exibigdo, sempre um tanto ostentatéria, de violencia — gritos do animal fugindo, grandes facies, sangue derramado etc. — ficavam a tarde toda, ¢ &s vezes atéo dia seguinte, jogando tranquilamente baratho, interrompen- do apenas para erguer algum caldeirio mais pesado, enquanto as mulheres da casa corriam para todos os lados preparando 0s chourigos, as salsichas, os salsichdes e 0s patés.) Os homens (e as, préprias mulheres) nao podem senao ignorar que € a légica da relagdo de dominagao que chega a impor e inculcar nas mulheres, ao mesmo titulo das virtudes ¢ da moral que hes impdem, todas as propriedades negativas que a visio dominante atribui a sua natureza, como a astiicia ou, para lembrar um trago mais favord~ vel, a intuigao, Forma peculiar da hucidez. especial dos dominados, 0 que cha- amos de “intuigao feminina” é, em nosso universo mesmo, inse- parivel da submissio objetivae subjetiva que estimuls, ow obriga, atengio, as atengdes, a observacdo ¢ 8 vigilancia necessarias para prever 0s desejos ou pressentir os desacordos. Muitas pesquisas puseram em evidéncia a perspicécia peculiar dos dominados, sobretudo das mulheres (e muito especialmente das mulheres ddupla ou triplicemente dominadas, como as donas de casa negras, de que fala Judith Rollins em Between Women): mais sensiveis aos sinais ndo verbais (sobretudo a inflexdo) que 0s homens, as mulhe~ res abem identiffcar methor uma emogio nao representada verbal- mente e decifrar 0 que est implicito em um didlogo:*? segundo uma pesquisa realizada por dois estudiosos holandeses, elas sio capaves de falar de seus maridos dando uma série de detalhes, a0 G7._GL WN Thompuon, Quant Ensowch & Pebile Address and Comment ‘lon, New York, Rondo Howe, 1967, pp. 478, que 0s homens ndo conseguem descrever suas mulheres Fondo com esterestipos muito vagos, vides para “as mulheres em geral’s8 OS mesmos auitores sugerem que os homossexuais, tendo ‘necessariamente sido educados como heterossexuais,interiariza~ ram o ponto de viste dominantee podem assumir este ponto de vis- taarespeito desi mesmos (o queos inclina a uma espécie de discor- dincia cognitiva e avaliativa capaz de contribuir para sua especial dlarividéncia), bem como compreender o ponto de vista dos domi- pantes melhor do que eles podem compreender 0 seu, Simbolicamente votadas & resignagao e discrigio, as mulhe- res s6 podem exercer algum poder voltando contra o forte sua propria forca, ox aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas s6 podem exercer por procuragio (como eminen- cias pardas). Mas, segendo a lei enunciada por Lucien Bianco a0 falar das resistencias camponesas na China, “as armas do fraco sio sempre armas fracas"*® As proprias estratégias simbélicas que as mulheres usam contra os homens, como as da magia, continuam dominadas, pois o conjunto de simbolos ¢ agentes miticos que elas poem em agao, ot os fins que elas buscam (como 0 amor, ou a impoténcia, do homem amado ou odiado), tém seu principio ‘em uma visio androcéntrica em nome da qual elas sto domina- das, Insuficientes para subverter realmente a relagao de domina- ‘lo, tais estratégias acabam resultando em confirmacao da repre- sentagio dominante das mulheres como seres maléficos, cuja ‘dentidade, inteiramente negativa, é constituida essencialmente de proibigdes, que acabam gerando igualmente ocasides de trans- Bressio, £ 0 caso, sobretudo, de todas as formas de violéncia nao declarada, quase invisivel por vezes, que as mulheres opdem a vio- lencia fisica ou simbslica exercida sobre elas pelos homens, e que ‘io da magia, da asticia, da mentira ou da passividade (principal- “8. CEA. Von Sto « Wades, “Power Changes ae Sliespect: Comparison of Two Cases of EstablehadOutsdor Relators, Theory, Clie and Saclay, 4 (23), 1987, pp. 477-188, 49.1 Bianco, “Risstace peysonne, Act Mak, 22, ° semadre, 1997, pp. 19 182. i mente so ato sexual) ao amor possessivo dos possessos, como 0 damae mediterranea ou da esposa maternal, que vitimizae culpa biliza, vitimizando-se e oferecendo a infinitude de sua devogao e de seu softimento mudo em doagéo sem contrapartida possivel, ‘ou tornadd divida sem resgate. As mulheres, fagam o que fizerem, est2o, assim, condenadas a dar provas de sua malignidade ea jus- tificar a volta as proibigdes ¢ ao preconeeito que thes atribui uma ‘essénncia maléfica —~ segundo a l6gica, obviamente trégica, que ‘quer que a realidade social que produz a dominagdo venha muitas ‘vezes a confirmar as representagdes que ela invoca a seu favor, para se exercer e e justficar. ‘A visto androcéntrica é assim continuamente legitimada pelas _proprias priticas que la determina: pelo fato desuas disposigoes re- ssultarem da incorporagao do preconceito desfavordvel contra o femi- nino, instituédo na order das coisas, as rmulheres nao podem senao confirmar seguidamente tal preconceito. Essa légica éa de maldigao, no sentido profundo de uma self fulfilling prophecy pessimista, que prowoca sua propria verificagdo ¢ faz acontecer o que ela prognosti- 2. Blaesta em curso, quotidianamente, em inimeras trocasentee os sexos: as mesmas disposigées que levam os homens a deixar &s mulheres as tarefas inferiores e as providéncias ingratas e mesqui- _nhes (tais como, em nosso universo, pedir press, verificarfaturas e solicitar um desconto), desembarayando-se de todas as condutas pouco compativeis com a idéia que eles tém de sua dignidade, Jevarn-nos igualmente a reprovar a “estreiteza de espirito” delas, ou sua “mesquinharia terra-a-tetra’, ouaté a culpé-las se elas fracassam ‘nos em preenclimentos que deixaram a seu cargo — sem no entanto 4 cchegar a lhes dar crédito no caso de um sucesso eventual 5° engage ests ede mpi tn ees pel arses shone on pecan rr SotiuiSgSons sens he w deo ew pac ao Ett Bon Sty Secon enews oer ce 8182 nas "Whe Sua Ente tna at omens sep ren Jeoe pes psa opera gos de eae, ng fanguedae {17751780}, Fos, Sen, 1974, op. W716, 8B, Nye, Masolinty and Mole Cases of Honor 'n Modor France, New ‘Yor, nord Universay Press, 1993. VimitibAbE E VIOLENCIA Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socializa¢ao que tende a dimimut-las, a negé-las, fazem a aprendizagem das virtu- des negativas da abnegacio, da resignacdo e do silencio, os ho- mens também est&o prisioneiros e, sem se aperceberem, vitimas, a representacio dominante. Tal como as disposigdes & submis- sto, as que levama reivindicar ea exercer a dominago nfo estdo inscritas em uma natureza € tém que ser construidas ao longo de todo um trabatho de socializacdo, isto &, como vimos, de diferen- ciagZo ativa em telagao ao sexo oposto. Ser homem, no sentido de vir, implica um dever-ser, uma virtus, que se impde sob a do “Bevidente por si mesma’, sem discussio. Saivalhante 22, @ honra — que se inscreveu no corpo sob forma de um con- junto de disposigdes aparentemente naturais, muitas vezes visivels rna maneira peculiar de se manter de pé, de aprumar 0 corpo, de erguera cabega, de uma atitude, uma postura, as quais correspon- de uma maneira de pensar e de agir, um éthos, uma crenga etc, governa o homem de honra, independentemente de qualquer pressio externa, Ela dirige (no duplo sentido do termo) seus pen samentos e suas préticas, tal como uma forga (“é mais forte que ele") mas sem o obrigar automaticamente (ele pode fartar-se ¢ rio estar a altura da exigéncia); ela guia sua agdo tal qual uma necessidade logica (“ele no pode agir de outro modo”, sob pena de renegar-se), mas sem se impor a ele como uma regra ou como © implacavel veredicto légico de uma espécie de célculo racional, Essa forca superior, que pode faré-lo aceitar como inevitéveis, ou bvios, isto é sem deliberagao nem exame, atos que seriam vistos pelos outros como impossiveis ou impensiveis, éa transcendén- ia social que nele tomou corpo e que funciona como amor fat, amor do destino, inclinagao corporal a realizar uma identidade constituida em esséncia social eassina transformada em destino. A nobreza, ou a questo de honra (nif), no sentido do conjunto de aptidoes consideradas nobres (coragem fisica e moral, generosi- dade, magnanimidade ete.), 6 produto de um trabatho social de nominagao e de inculcagao, ao término do qual uma identidade social instituida por uma dessas “linhas de demareagio mifstica’, conhecidas e reconhecidas por todos, que o nrundo social dese- nha, inscreve-se em wma natureza biolégica ese torna um habitus, Jei social incorporada, © privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensio e contensio permanentes, levadas por veues ao absurd, que impde a todo homem o dever de afirmar, ‘em toda e qualquer circunstincia, sua virilidade.7* Na medida em que cle tem comp sujeito, de fato, um coletivo —a linhagem ou a casa —, que esta, por sua ver, submetido as exigencias imanentes 4 ordem simbolica, o ponto de honra se mostra, na realidade, como um ideal, ou melhor, como um sistema de exigtncias que esta votado a se tornar, em mais de um caso, inacessivel, A virili- dade, entendida como capacidade reprodutive, sexual e social, mas também como aptidao ao combate ¢ao exercicio da violencia {sobretudo em caso de vinganga, é acima de tudo, uma carga. Em oposic2o & mulher, cuja honra, essencialmente negativa, 56 pode ser defenclida ou perdida, sua virmde sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” Saquele que se sente obrigado a estar & altura da possibilidade que She é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a gloria ea dis- tingdo na esfera piblica. A exaltacio dos valores masculinos tem sua contrapartida tenebrosa nos medos e nas angustias que a fe- iinilidade suscita: fracas e principios de fraqueza enquanto en- carnagoes da vulnerabitidade da honra, da Furma (0 sagtado es~ querda ferainino, oposto ao sagrado direlto, masculino}, sempre expostas & ofensa,as mulheres so também fortes em tudo que te- presenta as armas da fraqueza, como a asticia diabélica, thabrray- 76. Ev praca hgar, pala merce no core ds rxiedrosmotzcrcanes, 1 lane tewal coma o compa, cam ecmnha de um Formarsuco, robs tex anes £20, ¢rairao hjiene «mato comm doa homens 0 ohedsioes. A viitdade & da fot, sata & pve da ume forma meis ov menos dvds plgoment cle Fro, por ccsiia des res de defexorSo da ioctmeosada, 8 lanbtm olewés doe convene Fanning, qe 80 cuits Meigen 2s clues seo’ @ eos facowos de idoda. 8 conde que src, ttre Eure eamro nos Estdes Unidas, © op ‘ecimenio, em principe de 19%, de pide Viagra cee, jatimiatecom inmeloe ston de pictecpesan © de dias, qu 8 onsedscle 0 pigpése dos moe ‘exter ince do varidode nade tr de peesiamsnte ext, mith, € a magia”? Tudo concorte, assim, para fazer do ideal jmpossivel de viritidade o principio de uma enorme vulnerabjli- dade. E esta que leva, paradoxalmente, ao investimento, obrigat6- rio por veres, em tados os jogos de violéncia masculinos, tais como em nossas sociedades os esportes, ¢ mais especialmente os ‘que sfo mais adequados a produzir os signos visiveis da mascult- nidade’® e para manifestas, bem como testar, as qualidades ditas viris, como 0s esportes de huta.?? ‘Como a honra—owa vergonha, seu reverso, que, como sabe- mos, a diferenga da culpa, é experimentada diante dos outros—,a virilidade tem que ser validada pelos outros homens, em sua ver- dade de violencia real ou potencial, eatestada pelo reconhecimen to de fazer parte de um grupo de “verdadeiros homens”: Intimeros ritos de instituigdo, sobretudo os escolares ou militares, compor- tam verdadeiras provas de virilidade, orientadas no sentido de reforgar solidariedades viris, Priticas como, por exemplo, os esta pros coletivos praticados por bandos de adolescentes — variante ddesclassificada da visita coletiva ao bordel, tio presente na memé- ria dos adolescentes burgueses —, tém por finalidade por os que 77. Cer a pods vr a mio de a, am ee ale descobric com enepelonBo 1210 do muher 90 prozer (am recprocd) gue ea Iw reel, 0 homer cals, ne sblome ds opescdes que 9 lean 8 mulher, do lado de booth « dong idee (op) enitesos woh do once slabs (hab Toyah). See exo ops 600, wr F. Bemniau 8 A. Soy, Le Divecinement (a ie de Fogrente toditon rele on Alvis, Por, Editions de Mint, 1968, ep. 9092. 78. Ch 8, W. Fuso}, Musdor Cofasions of a Unity Body Buller, New York Poziden, 1993, eL Wonsuom, "A Body Wo Bi Fel, Merci, 2 (1), pet rcrora 1994, pp. 7886. lac Wecquan tal, «eam caso, no petedevo do rose Unio ol! ecveta no bod bung”. “ae enctrgade, come diz B, Gloano, ora santero de vlserdbidads", 0 “proce comple atexts do qual fie slowesciine 6 islands # insert en vw ladvdua Maligen pote” 79. A eantrogio do abi juice aditenel nas pies do Earp Cane, om fs de sho XK, roarose como ma inversdo tilda ploceio econo do abt tux mesetnats came goal dost; erecta explo ca uho da vel, wor ‘0 em was formcs mais vvolzadzs, como © diols eva espore, lows 2 desaerzor ‘os eneacos ios, sobre ox aie rales, efor dos wsecosinlaciin@ ‘spl, que overscan o deerseluinaie de posgoas nos “paccos com: provodas pel aidade de espe avo nas de songun ro comunidad ui lV. Kevody, “es uit a viene sieme", Actes de recherche an scanens sia Jes, 120, dozens 1977, pp. 331). esto sendo testados em situagio de afirmar diante dos demais sua Virlidade pela verdace de sua violencia, isto &, fora de todas as ternuras e de todos os enternecimentos desvirilizantes do amor, € manifestar de maneira ostensiva a heteronomia de todas as afir- magées da virilidade, sua dependéncia com relagio ao julgamen- to do grupo viril. CCertas formas de “coragem’, as que sao exigidas ou reconheci- das pelas forgas armadas, ou pelas policias (e, especialmente, pelas “corporagiies de elite”), e pelos bandos de delingiientes, ou tam- bém, mais banalmente, certos coletives de trabatho --- como as que, nos oficios da construgio, em particular, encorajam e pres- sionam a recusar as medidas de prudéncia e a negar ou a desafar © perigo com condutas de exibigio de bravura, responsiveis por mumerosos acidentes — encontram seu principio, paradoxaimen- te, no medo de perder a estima ou a considerago do grupo, de “quebrar a cara” diante dos “companheiros” e de ser ver remetido 4 categoria, tipicamente ferminina, dos “fracos”, dos “delicados’, dos “mutherzinhas’, dos “veados’. Por conseguinte, 0 que chama- mos de “coragem” muitas vezes tem suas raizes em uma forma de covardia: pasa comprovi-lo, basta lembrar todas as situagdes em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de dominagio, de exploragio ou de opressao baseou-se no medo “vir” de ser exclutdo do mundo dos “homens” sem fraquezas, «dos que sio por vezes chamados de “duros” porque sio duros para com o préprio sofrimenta e sobretudo para com o sofrimento dos ‘outros — assassinos, torturadores e chefetes de todas as ditadnras ede todas.as “instituigdes totais, mesmo as mais ordinarias, como as prises, as casernas ou os internatos —, mas, igualmente, os novos patrdes de uma luta que 2 hagiogzafia neoliberal exalta que, no raro, quando submetidos, eles proprios, a provas de coragem corporal, manifestam sea dominio atirando ao desem- 10 -A Tigeaio wns @viidbde ea Valencia & expcts ne dao besa, ave deserve 0 pints como ume ava FRG. Peer, Bodies, Pasir ond Passions Sowa! Culviein Conopeary Braz, Boson, Beocon Pres, 199%, p. 37). A come Topic & tomb axlict ene 2 panwagao (oder 0 dominaeo ip. £2) prego seus empregados excedentes. A virilidade, como se ve, é uma no¢do eminentemente relacional, construida diante dos ‘outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do ferinino, e construtda, primeira- mente, dentro de si mesmo, CAPITULO HI ANAMNESE DAS CONSTANTES OCULTAS, A aeserisgo etnoligica de tun mondo soca, a0 mesmo tempo suficientemente distanciado para se prestar mais facilmente a objetivagao ¢ inteiramente construide em torno da dominagio masculina, atua como uma espécie de “detector” de tragos infinitesimais e de fragmentos esparsos da visto androcén- tricado mundo e, por isso, como instrumento de uma arqueciogia histérice do inconsciente que, originariamente construida, sem chivida alguma, em um estégio muito antigo e muito arcaico de nossas sociedades, permanece em cada um de nés, homem ou mulher. (Inconsciente histérico ligado, portanto, nao a uma natu reza biolégica ou psicolégica, ea propriedades inscritas nesta natureza, como a diferenga entre os sexos segundo a psicanalise, ‘masa uin trabalho de construgdo propriamente histérica— como aquele que visa a produzir o desligamento do menino do universo feminino — e, por conseguinte, suscetivel de ser modificado por uma transformagio de suas condigbes historicas de produgio.) E preciso, portanto, comecar destigando-nos de tudo aqailo que 0 conhecimento do modelo acabado do “inconsciente” androcéntrico permite detectar e corapreender nas manifestagbes do inconsciente que & 0 nosso, e que se entrega ou se trai, em relances, nas metiforas do poeta ou nas comparagées familiares, destinadas, por sua evidéncia mesma, a passar despercebidas. A experiéncia que um leitor desprevenido pode ter das relaghes de oposigao ou de homologia que estruturam as priticas (sobretudo as rituais) eas representagdes da sociedade cabila — gragas prin- ipalmente ao diagrama destinado a dela oferecer uma visto de conjunto, totalmente ausente na pritica indigena — pode ir de ‘um sentimento de evidéncia (que, se nele pensamos, nada tem de evidente ¢ que repousa no fato de partilharmos desse mesmo inconsciente) a uma forma de desconcerto, a que pode seguir-se uma impressto de revelacdo, ow melhor, de redescoberta, em tudo semelhante a que traz.o inesperado necessério de certas metaforas poéticas. E a familiaridade que ete pode muito rapidamente adquiri, tal como a que o etndiogo obteve, mais laboriosamente, antes dele, com cada uma das relagSes de oposi¢ao e coma redede rolagbes de equivaléncia direta ou mediatizada que une cada uma dolas a todas as demais em um sistema, conferindo-Ihe assim sua necessidade objetiva ¢ subjetiva, nto € a que traz a aquisigao de um. simples saber, mas a que advém da reapropriacao de um conheci- mento, a0 mesmo tempo possuido e perdido desde sempre, que Freud, seguindo Platdo, chomava de “anamnese” Mas essa anamnese nao se refere apenas, como em Plato, a contetidos eidéticos; nem apenas, como em Freud, a um proceso individual de constituicio do inconsciente, no qual o aspecto social, sem chegar a estar excluido, reduz-se a uma estrutura fami liar genérica e universal, jamais caracterizada socialmente, Essa anamnese se aicerga na filogénese e na ontogénese de um incons- Giente ao mesmo tempo coletivo e individual, trago incorporado cde uma historia coletiva e de uma historia individual que impoe a todos os agentes, bomens ou mulheres, sen sistema de pressupos- tos imperativos — do qual a etnologia constrdi a exiomatica, potencialmente fibertadora. © trabalho de transformagio dos corpos, ao mesino tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciador, que se rea- liza em parie através dos efeitos de sugestao mimética, em paste através de injungbes explicitas, e em parte, enfim, através de toda aconstrugao simbdlica da visao do corpo bioldégico (e em particu- lar do ato sexnal, concebido como ato de dominagio, de posse), produz habites automaticamente diferenciados e diferenciadores. A masculinizagao do corpo masculino e a feminilizagao do corpo feminino, tarefas enormes e, em certo sentido, interminéveis que, sem diivida, hoje mais do que nunca, exigem quase sempre um. gasto considerdvel de tempo e de esforgos, determinam uma somatizagao da relagao de dominagao, assim naturalizada. E atra- vyés do adestramento dos corpos que se impdem as disposicoes mais fandamentais, as que tornam ao mesmo tempo inclinados e aptosa entrar nos jogos sociais mais favoriveis 20 desenvolvimen- to da virilidade, a politica, os negocios, a ciéncia etc. (A educagao priméria estimula desigualmente meninos e meninas a se engaja- rem nesses jogos efavorece mais nos meninos as diferentes formas da libido dominandi, que pode encontrar expressdes sublimadas nas formas mais “puras” da libido social, como a libido sciendi!) A MASCULINIDADE COMO NOBREZA. Embora as condigdes “ideais” que a sociedade cabila oferecia as pulstes do inconsciente androcéntrico tenham sido em grande par- teabolidas, ea dominagio masculina tenha perdido algo desuaevi- déncia imediata, alguns dos mecanismos que fuandamentam essa dominagao continuam a funcionar, como a relagio de causalidade Gieular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espaco social eas disposigSes que elas produzem, tanto nos homens como nas mulheres. Asinjungtes continuadas sitenciosas einvisiveis, que o mundo sexualmente hierarquizado no qual elas sao langadas thes dirige, preparam as mutheres, 20 menos tanto quanto os explicitos apelos a ordem, a aceitar como evidentes, naturais ¢ inquestiona- vveis prescrighese proserigdes arbitrérias que, inscritas na ordem das ‘coisas, imprimem-se insensivelmentena ordem dos corpos. Embora o mundo hoje se apresente como que semeado de Indicios e de signos que designam as coisas a serem feitas, ou no factiveis, desenhando, como que em pontilhado, os movimentose deslocamentos possiveis, provaveis ou impossiveis, os “por fazer” 1 Deveromes mencionar ogi das os dbuaragBee qv oktom ave, desde 0 wai forza infoeie, ox cron x80 objeto de expats ealebrar a dient 2. gordo ea sexo 8 que, am oro analy, rnin a chls da om Peano Prvlgiede feabeas qua os professors hos dad mom Yompo, le a8o mals se ‘gidonare ergidot, mle ‘oromanta rlezompidos @ prtlpam max nor dzue es goal ‘ou Os “por vir” propostos por um universo a partir daf social e economicamente diferenciado, tais indicios ou signos nao se diri- gem a um agente qualquer, uma espécie de x intercambisvel, mas especificam-se segundo as pasictes e disposicées de cada agente: eles se apresentam como coisas. serem feitas, ou que nao podem ser feitas, naturais ou impensdveis, normais ou extraordinérias, pana talon qual categoria, isto é, particularmente para um homem ou para wna mulher (e de tal on qual condigdo). As “expectativas coletivas’, como diria Marcel Mauss, ou as “potenciatidades obje- tivas’, na expresso de Max Weber, que os agentes sociais desco- brem a todo instante, nada tém de abstrato, nem de te6rico, mes- mo quando a ciéncia, para apreendé-las, tem que recorter estatis- fica, Blas estio inscritas na fisionomia do ambiente familias, sob a forma de oposigdo entre 0 universo pitblico, masculino, ¢ os mun- dos privados, femininos entre a praca paiblica (ou a rua, lugar de todos os perigos) ea casa (i foi imtimeras vezes observado que, na publicidade ou nos desenhos humoristicos, as mulheres esto, na maior parte do tempo, inseridas no espago doméstico, a diferenca dos homens, que raramente se veer associados & casa ¢ sio quase sempre representados em lugares exéticos), entre os lugares desti- nados sobretudo aos homens, como os bares e os clubes do univer 80 anglo-saxdo, que, com seus couros, seus maveis pesados, angu- Josos e de cor escura, remetem a uma imagem de dureza ede rade- 2a vitl, €0s espacos ditos “femininos’, cujas cores suaves, bibelds ¢ rendas ou fit falam de fragilidade e de frivolidade, £, sem diivida, no encontro com as “expectativas objetivas” que esto inscritas, sobretudo implicitamente, nas posic&es oferecidas asmmulheres pela estrutura, ainda fortemente sexuada, da divisio de trabatho, que as disposigbes ditas “femininas”, inculcadas pela familia e por toda a ordem social, podem se realizar, ou mesmo se expands, e se ver, no mesmo ato, recompensadas, contribuindo assim para reforgar a dicotomia sexual fundamental, tanto nes car- 805, que parecem exigit a submissdo e a necessidade de seguranca, quanto em seus ocupantes, identificados com posigées nas quais, encantados ou alienados, cles simultaneamente se encontram e se perdem. A légica, essenciaimente social, do que chamamos de “yocagao”, tem por efeito produzir tais encontros harmoniosos nite as disposigUes e as posigdes, encontros que fazer com que as yitimas da dominacdo simbélica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do termo) as tarefas subordinadas ou subalternas aque lies sto atribaidas por suas virtudes de submissto, de gentile~ za, de docilidade, de devotamento ede abnegicio. A libido socialmente sexuada entra em comunicagao com a institaigao que Ihe censura ow Ihe legitima a expressio. As “voca- «0es" sdo sempre, por um lado, a antteclpagao mais ou menos fan- tasiosa do que o posto promeie (por exemplo, a uma secretiria, datilografar os textos) e do que ele permite (por exeraplo, manter ‘uma relaggo maternal ou de sedugio com 0 patrio), O encontro com o cargo pode ter um efeito de revelacao na medida em que autoriza e favorece, através das expectativas explicitas que ele encerra, certas condutas, téenicas,sociais, mas também sexuais ou sexuaimente conotadas. O mundo do trabatho est, assim, reple- to de pequenos grupos profissionais isolados (servigos de hospi- tal, gabinetes de ministérios etc.) que funcionam como quase- familias, nos quais o chefe do servigo, quase sempre um homem, ‘exerce uma autoridade paternalista, baseada no envolvimento afe- tivo ou na sedusao, e, a0 mesmo tempo, sobrecartegado de traba- Tho tendo a seu encargo tudo que acontece na instituiao, ofere- ce uma protegao generalizada a um pessoal subalterno, principai- mente feminino (enfermeiras, assistentes, secretdrias) assim enco- rajado a um investimento intenso, muitas vezes patolégico, na Instituicao e naquele que a encarna. ‘Mas essas possibilidades objetivas se fazem lembrar também, de maneira bem concreta e bem sensivel, nto apenas em todos os signos hiecirquicos da diviséo do trabalho (médicofenfermeira, chefe/secretatia etc.), bem como em todas as manifestagdes vist- veis das diferengas entre os sexos (atitude, roupas, penteado) ¢, mais amplamente, nos detalhes, aparentemente insignificantes, dos comportamentos quotidianos, que encerram indmeros ¢ imperceptiveis apelos & ordem.? Assim, nos tablados das televi- 7, Sere necro ara og fades ot afios socks anus que os xsicos tegirom come indlne de fanintizagde, Sabase, por example, sv © perspestea do sbes, as mulheres estéo quase sempre acantonadas nos papéis menores, que si outras tantas variantes da fungao de “anfitrias?, tradicionalmente atribuidas a0 “sexo frdgil”s quando elas nio estio a frente de um homem, a quem visam a valorizar e que joga mnitas vezes, por meio de gracinhas ou de alusdes mais ow menos insistentes, com todas as ambigtidades inscritas na relagao “casal”, elas tem dificuldade de se impor, ou de impor a propria palavra, ¢ ficam relegadas a um papel convencionado de “anima- dora” ou de “apresentadore”, Quando elas participam de um debate publico, elas tém que lutar, permanentemente, para ter acess0 & palavra e para manter a atengao, e a diminuigdo que elas sofrem é ainda mais implacavel por ndo se inspirar em ma vonta~ de explicita e se exercer com a inocéncia total da inconsciéncia: cortam-thes a palavra, orientam, com a maior boa-fé, a um homem a resposta a uma pengunta inteligente que elas acabam de fazer (como se, enquanto tal, ela nao padesse, por definicao, vir de ‘wma mulher). Esta espécie de negagao a existéncia as obriga, mui- tas vezes, a recorter, para se impor, as armas dos fracos, que sO reforgam seus esteredtipos: o brilho, que acaba sendo visto como capricho sem justificativa ou exibicao imediatamente qualificada de histéricas a seducio que, na medida em que se baseia em uma forma de reconhectmento da dominagao, ver reforgar a relagio estabelecida de dominagao simbélica. Seria necessdrio enumerar todos os casosem que os homens mais bem-intencionados (a vio- leneia simbolica, como se sabe, ndo opera na ordem das intencdes conscientes) realizam atos discriminat6rios, exciuindo as mulhe- res, sem nem se colocar a questao, de posigoes de autoridade, reduzindo suas reivindicaydes a caprichos, merecedores de uma Ferinlaacbe de uno profuse redie 10 deetildede © prantgo Kf. J.C. Toohey, “lock of Seiad Women Profesional on Rating of Occupational Pre ord Devic’, four of Prsenali ond Sociol Paychology, 1974, 29 Po. S289). E port meas sobide quo senza etic px ame oes, far Tecende, por arp, « igo de mn canjzto da dspoiges qu, em eorem insctos aepistarene nos progres ois, so inesleadas do mancia doo MM, Doetioll, cle des files. Goole eration pour gues bs sociun, Par, UUHorratan, 1990, p27). E obverse, siclsve, que ot mogat tarda 0 $0 sar por nas expecaiedes de ontine tence, om que ls #9 minorvion ff. Ma Dire Belay op-ed) palavea de opaziguamento ou de um tapinha na face,’ ou enti, ‘com intengao aparentemente oposta, chamando-as e reduzindo- as,dealgum modo, & sua feminilidade, pelo fato de desviar aaten- ‘q20 Para seu penteado, ou para tal ou qual trago corporal, ou de ‘usar, para se drigir a elas, de termos familiares (o nome proprio} ou intimos(“minha mening’, “querida” etc.) mesmo em uma. situagio “formal” (uma médica diante de seus pacientes), ou outras tantas “escolhas” infinitesimais do inconsciente que, acu- mulendo-se, contribuern para construir a situag2o diminujda das mulheres e cujos efeitos cumulativos estao registrados nas estatis- ticas da diminuta representagao das mulheres nas posigdes de poder, sobretudo econdmico e politico. Realmente, nao seria exagero comparar a masculinidade @ uma nobreea, Para convencer-nos disso, basta observar a légica, bem conhecida dos cabilas, do double standard, como dizem os anglo-saxdes, que instaura uma dissimetria radical na avaliagio das atividades masculinas e femininas. Além do fato de que o ho- mem nao pode, sem derrogagio, rebaixar-se a realizar cettas tare- fas socialmente designadas como inferiores (entre outras razbes porque esta excluida a idéia de que ele possa realizé-tas), as mes- mas tarefas podem ser nobres e dificeis quando sto realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptiveis, faceise fiteis, quan- do sto realizadas por mulheres, como nos fz lembrar a diferenca entre um cozinheiro ¢ uma cozinheira, entre costureiro ea cos- tureira; basta que os homens assumam tarefas reputadas femini- nas eas realizem fora da esfera privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e transfiguradas: “E.0 trabalho, observa Margaret Maruani, que se constitui sempre como diferente segundo seja efetuado por homens ou por mulheres”. Sea estatistica estabelece ‘que as profissdes ditas qualificadas caibam sobretudo aos homens, ‘a0 passo que os trabalhos atribaidos as mulheres sejam “sem qua- lificagao”, & em parte, porque toda profissto, seja ela qual for, vé- 3 nda observer regihaiam a disimavio anne os homens 209 mlhares 90 ‘9 Noney Hevly chavow de “a plitea do que", , o fdade wo heise <2 dos conoies corporis [dr um opinho no os, pasar bre nos bres ov la cite oe se de certo modo qualificada pelo fato de ser realizada por homens (que, sob este ponto de vista, sfo todas, por definigio, de qualidade) + Assim, do mesmo modo que a mais perfeita mestria da esgrima nao bastava para abrir a um plebeu as portas da nobre- 2a de espada, do mesmo modo, as digitadoras, caja entrada nas profissdes grificas suscitoa enormes resistencias por parte dos homens, ameagados em sua mitologia profissional do trabalho altamente qualifcado, nfo sto reconbecidas como tendo a mesma profssdo que seus companheiros masculinos, do qual esto sepa- radas apenas por uma simples cortina, se bem que realizem mesmo srabalho: “Fagam elas o que fizetem, as digitadoras serio datilografas e, portanto, sem qualificagfo alguma. Fagam eles 0 que fizerem, 0s revisares serio profisionais do livro e, portato, ruito qualificados’? E, depois de longas lutas das mulheres para fazer reconhecer suas qualificagbes, as tarefas que 2s mudancas tec- nol6gicas radicalmente edistribuiram entre os homens ¢ as mulheres sero arbitrariamente recompostas, de modo a empo- brecer 0 trabalho feminino, mantendo, decisoriamente, 0 vator, superior do trabatho masculino 6 Vemos que o principio cabila que quer que o trabalho da mulher, destinado a se efativar na casa “como a mosca no leite, em que nada apareca fora’, fique conde- nado a permanecer invisivel continua a aplicar-se em um contexto {gue parece terse modificado radicalmente, como o atesa também 0 fato de que as mulheres esito ainda muito comumente privadas do titulo hierarquico corresposdente a sua fang real “Através das esperancas subjelivas que elas impoem, as “expec- tativas coletivas’, positivas ou negativas, tendem a se inscrever nos ZIM aan’ « G, Nevo, A fobow des frmes, Métrs mass amp fm ‘in Poss, Syon/aerestes, 1989, pS 5 ibid, pa 477. {6 A perpen de cifeargos abies pode Howaorse ew disor dos eis ven ‘osda vsto mites porevenel are cqvonie eo a, came seve eo cae dads tod visio, om aia v2 cbscra une reporcda enka o star avania foro fabrico- 1), mataiivo, considera come net, #6 eer ho (acalza;én, oe, enbala. (ger), menos tebe 6 dead cargo dos mulheres ft. Suiko Huta, Forcignes Corgerisoon idee rogper scien Comporozon Bra! onzelopen, RES 019901 7.8. Bouche Le Sens Profane op ct 450. corpos sob forma de disposicoes permanentes, Assim, segundo a Jei universal de ajustamento das esperangas as oportunidades, das aspiragoes as possibilidades, a experiéncia prolongada e invisivel- mente mutilada de um mundo sextado de cima a baixo tence a fazer desapatecer, desencorajando-a, a propria inclinagao a reali- Zar atos que no sio esperados das mulheres — mesmo sem estes thes serem recusados. Como o demonstra o seguinte testemunho sobre as mudangas nas disposigdes que vao acompanhando a mudanga de sexo, aquela experiéncia favorece 0 aparecimento de uma “impoténcia aprendida” (learned helplessttess): “Quanto mais, ev era tratada como uma muther, mais eu me tornava mulher. Eu me adaptava, com maior ox menor boa vontade, Se acreditavam que eu era incapaz de dar marcha a ré, ou de abrir garrafas, eu sentia, estranhamente, que me tornava incompetente para lal, Se achavam que uma mala era muito pesada para mim, inexplicavel- mente, eu também achava que sim."8 Magnifica recordagao, tor- nada possivel pela comparagao com esta espécie de afeito Pigma- Jiao invertido ou negativo, que se eXerce tio precoce e tao conti- auamente sobre as mulheres e que acaba passando totalmente despercebido (penso, por exemplo, na mancira pela qual os pais, professores e colegas desestimulam — ou melhor, nao estirmulam a orientagao das mogas para certas carreiras, sobretudo as tée- nicas ou cientificas: “Os professores dizem sempre que somos ais frageis ¢ entao... acabamos acreditando nisso”, “Passam 0 tempo todo repetindo que as carreiras cientificas sto mais faceis ara os meninos, Entao, forgosamente...”). E compreendemos que, por essa logica, a propria protegdo “cavalheiresca’, além de poder conduzir a seu confinamento ou servie pata justifica-lo, pode igualmente contribuir para manter as mulheres afastadus de todo contato com todos os aspectos do mundo real “para os quiais las nao foram feitas” porque nao foram feitos para elas. 3. The move won rnoied ts @ woman, the move woman I became. tasted wile nip wos assed 0 be inconpat of evetsig ca% of eparlng tle, edly incompetent oun myzlf becoming: case we ght oo bea fx me ound itso mpl. Mons, Conurdbr, Naw York, Harcourt, Brace, ovacvich, #97 pp. 165166) “Todas as chamadas 4 ordem inscritas na ordem das coisas, todas as injung6es sitenciosas ou as surdas ameacas inerentes & marcha normal do mundo especificam-se, evidentemente, segun- do 08 campos, ¢ « diferenca entre os sexos se apresenta para as utheres, em cada um detes, sob formas especificas, através, por exemplo, da definigao dominant da présiea, que & corrente € que ninguém penst em aprender como sexuads e, portanto, pér em questo. £ caracteristico dos dominantes estarem prontos a fazer feconhecer sua maneira de ser particular como universal. A defi- nigao de exceléncia est, em toclos os aspectos, carregada de impli- cagdes masculinas, que tém a particularidade de nao se mostra rem como ais. A definigo de um cargo, sobretudo de autoridade, inclui todo tipo de capacitagies e aptiddes sexualmente conota- das: se tantas posigdes dificilmente s20 ocupadas por mulheres & porque elas s4o talhadas sob medida para homens cuja virilidade ‘mesma se construiu como oposta as mulheres tais como elas sto hoje. Para chegar realmente a conseguir uma posigao, uma nther teria que possuir ndo s6 0 que é explicitamente exigido pela descrigao do cargo, como também todo um conjunto de atri- butos que os ocupantes masculinos atribuem usualmente ao car- 20, tina estatura fisica, uma voz ou aptiddes como a agressivida- de, a seguranca, a “distancia em relagio ao papel’, « autoridade dita natural etc, para as quais os homens foram preparados trei- nados tacitamente enquanto homens. Em outros termos, as normas pelas quais as mulheres sto medidas nada tem de universais. O feminismo dito universalisa, por ignorar o efeito de dominagao, e tudo aquilo quea universali- dade aparente do dominante deve sua relagio com o dominado —no caso, tudo que diz respeito & virilidade— inscreve na defi- nico universal do ser humano propriedades historicas do ho- mem Viril, construido em oposicgo as mulheres. Mas a visio dita Aiferencialisa, por ignorar, igualmente, 0 que a definigao domi- nante deve & relagao histérica de dominagao e 4 busca da diferen- ‘ga que Ihe ¢ constitutiva (o que é, apesar de tudo, a virilidade serio uma ndo-feminilidadet), nao escapa também, em sua preo- cupasao de revalorizar a experiéncia feminina, a uma forma abrandada de essencialismo: assim como a negritude & maneira de Senghor aceitava alguns tragos da definigio dominante do Negro, como a sensibilidade, ela esquece que a “diferenga” s6 surge quan- do se assume sobre 0 dominado 0 ponto de vista do dominante e que aquilo mesmo de que ela pretende se diferenciar (cxaltando, por exemplo, como Chodorow, a relatedness por oposigdo & sepa~ ratedness masculina ou, como certas advogadas da escritura femi- nista, uma relagio particular com 0 corpo) é produto de uma rela- ‘io histérica de diferenciagso. SER FEMININO COMO SER: PERCEBIDO Tudo, na génese do habitus feminino e nas condigées sociais de sua realizagao, concorre para fazer da experiéncia feminina do corpo 0 limite da experiéncia universal do corpo-para-o-outro, incessantemente exposto & objetivagdo operada pelo olhar e pelo discurso dos outros. A relagdo com o proprio corpo ndo se reduz auma “imagem do corpo”, isto & 8 representacdo subjetiva (self jmmage ou looking-glass self), associada a um determinado grau de self-esteem, que um agente tem de seus efeitos sociais (de sua sedu- ho, de seu charme ete.) ¢ que se constitui essencialmente a partir da representacao objetiva do corpo, feedback reenviado pelos outros (pais e pares etc.). Semelhante modelo esquece que toda a estrutura social esté presente no curso da interacio, sob a forma de esquemas de percepcao e de apreciacao inscritos no corpo dos agentes em interasdo, Estes esquemas, nos quais um grupo depo- sita suas estruturas fundamentais (tais como grande/pequeno, fortelfraco, grosso/fino etc.) interpdem-se desde a origem entre cada agente e seu corpo, porque as reagBes ou as representagies ‘que seu corpo suscita nos outros e sua propria percepgio dessas reagdes sfo elas mesmas construidas sobre tais esquemas: uma reagdio produzida a partir das oposicdes grande/pequeno, mascu- linoffeminino (come todosos juizos do tipo “ela é muito grande para uma menina’, ou “é aborrecida para uma menina’, ou “para ‘um menino isto nao é grave", variante da expressao cabila “nao ha nunca tara no caso de um homem”) é ocasiao de adquirir os esquemas referidos que, voltados pelo proprio sujeito sobre seu proprio corpo, produzirio a mesma reacdo e de experimentar a experiéncia pritica do préprio corpo que eles acarretam. Assim, 0 corpo petcebido é daplamente determinado social- mente. Por um lado, ele 6, até naquilo que parece mais natural (sen volume, seu talhe, seu peso, sua musculatura ete.), um pro- duto social, que depende de suas condigdes sociais de produgio, através de diversas mediages, tais como as condigdes de trabalho (que abrangem as deformagées e as doencas profissionais por ele gerades) e os habitos alimentares. O hexis corporal, no qual ‘entram, ao mesmo tempo, a conformagio propriamente fisica do corpo {0 “fisico”) ¢ a maneira se servir dele, a postura, a atitude, a0 que se eré expressa 0 “ser profundo’; a “navureza” da “pessoa” ‘em sua verdade, segundo 0 postulado da correspondéncia entre 0 “fisico" eo “moral nascido do conhecimento prético ou raciona- Tizado que permite associar propriedades “psicolégicas” e “morais” a tragos corporais ou fisiognomnicos (um corpo delga- do ¢ esbelto, por exemplo, percebido como sinaf de um controle viril de apetites corporais}. Mas essa linguagem da natureza, que ‘se acredita trair o mais oculto ¢ o mais verdadeiro a0 mesmo tem- O, 6 de fato, uma linguagem da identidade social, assim natura- Jizada, sob forma, por exemplo, da “vulgaridade” ou da “distin- 40", ditas naturais. Por outro lado, essas propriedades corporais sao apreendidas através de esquemas de percepgao cujo uso nos alos de avaliagao depende da posigdo ocupada no espaco social as taxinomias em vigor tendem a contrapor, hierarquizando-as, as propriedades mais freqdlentes entre os dominantes eas que sto mais frequentes entre os dominados (magro/gosdo, grande/pequeno, elegante/ grosseiro, leve/pesado ete.%). A representacao social do préprio corpo é, assim, obtida através da aplicagao de uma taxizomia 3. om mavens cma Pao ave Dominique Masti ap em Foro op sbmoler 8 cvélse 2 pecepro clewencinda cun os meninor © 9 merinas fam 6 arena na as esrtrar moseinos «finns ff D. Masi, ote social, cujo principio & idéntico ao dos corpos aos quais se apli- ca.!0 Assim, 0 olhar nao € apenas um simples poder universal e abstrato de objetivagio, como smpée Sartre; é um poder simbéli- co cuja eficicia depende da posicio relativa daquele que percebe e daquele que é percebido, e do grau em que os esquemas de per- cepgao ¢ de apreciagao podtos em agao so conhecidos e reconhe- cidos por aquele s quem se aplicam. A-experiéncia prética do corpo, que se produz na aplicasd0, a0 corpo proprio, de esquemas fundamentais nascidos da incor- poracio das estruturas sociais, e que é continuamente reforgeda pelas reacbes, suscitedas segundo os mesmos esquemas, que 0 proprio corpo suscita nos outros, é um dos prineipios de constr sfo,em cada agente, de uma relacao duradoura para com seucor~ po: sua maneira particular de aprumar 0 corpo, de apresenté-lo aos outros, expressa, antes de mais nada, adistincia entre 0 corpo praticamente experimentado ¢ o corpo tegitimo, e, sinmaltanea- mente, uma antecipagio pritica das possibilidades de sucesso nas interagées sociais, que contribui para definir esas possibifidades {pelos tracos comumente descritos como seguranga, confianga ‘em si,desenvoltura}. A probabilidade de vivenciar com desagrado © proprio corpo (forma caracteristica da experiencia do “corpo alienado”), o mal-estar, a timidez ou a vergonha so tanto mais fortes quanto maior a desproporgao entre © corpo socialmente exigido e a selagdo pritica com o proprio corpo imposta pelos. olhares eas reages dos outros. Ela varia nitidamente segundo 0 sexo e @ posigSo no espago social. Assim, a oposigdo entre o gran- de eo pequeno que, como imtimeres experiénetas demonstraram, € um dos princtpios fandamenttis da experiéncia que os agentes 1G. Aavn, 2 corps min lo os choneas de reeber we volo eslomante ear ponionel 8 poss be sas dates no epoca tool 38 © atonomnie do 6g sb heredionadate biibaica an tle & logice da haveiredade wcll do cay cedeize por worse, excepconnnie, ore mae detworeedor eanamice 9 roe inete ot sopliedades eaporcis ais res, como a bale, (que oxo 30 dz “oa porque craoza o orde esabalecida, 2s, pelo conto, os ockarten do gu Fo pvcni por raze os “groms” dos etn corpora de a0 pos, coma ‘2 belena ov ume otro sive ‘tem de seu corpo.e de todo o uso pritico que dele fazem, e princi~ palmente do lugar que the dao" (a representagao comum conce- dendo ao homem a posisao dominante, a do protetor que envol- ye, toma conta, olha de cima ete.'2}, especifica-se segundo os. sexos, que sao eles proprios pensadas através dessa oposigao. Segundo uma logica que se observa também nas relagdes entre dominantes e dominados, dentro do espaco social, e que faz. com {que uns e outros ponham em ago a mesma oposigao, mas dando valores inversos aos termos que ele contrapée, constatamos, com0 0 faz Seymour Fisher, que os homens tendem a se mostrat insatis- feitos com as partes de seu corpo que consideram “pequenas demais’, ao passo que as mulheres dirigem suas criticas sobretudo 2 regides de seu corpo que lhes parecem “demasiado grandes’: A dominagdo masculina, que constitul as mulheres como objetos simbolicos, cujo ser (esse) ¢ um ser-percebido (percipi), tem por efeito colocé-las em permanente estado de inseguranga corporal, ou methor, de dependéncia simbélica: elas existem pri _xiro pelo, ¢ para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponiveis, Delas se espera que sejam “femininas’, isto 6, sorridentes, simpéticas, atenciosas, submissas, diseretas, contidas ou até mesmo apagadas. Ea pretensa “fernini tidade” muitas vezes nao € mais que uma forma de aquieseéncia em relasdo as expectativas masculinas, reais ou supostas, princi- | palmente em termos de engrandecimento do ego, Em conseqitén- cia, a dependéncia em relagio aos outros (e nao sé aos homens) tende a se tomar constitutiva de seu ser: Esta heteroniomia é 0 principio de disposi¢des como 0 desejo de atrair a atencao ede agradar, designado por vezes como coque- teria, ow a propensao a esperar muito do amor, o tinico capaz, come diz Sartre, de fazer alguém sentir-se justificado nas particu 11-€h sabre one apace 5. Fisher © C. . Cleviond, Body image ond Parsi, Pineton, New Yer, Von Noshond, 1958. 12. Scr ela ea de evento proto, tl como vam express na publeidor da cf& Gent, “Le evalaton de oF", Actes def echercin a cca secaks, 14, 1977, pp. 8450. laridades mais contingentes de seu ser, ¢ antes de tudo de seu cor- ‘pou! Incessantemente sob o albar dos outros, elas se véem obriga- das a experimentar constantemente a distancia entre o corpo real, a que esto presas, ¢ 0 corpo ideal, do qual procuram infatigave- ‘mente se aproximar.'¢ Tendo necessidade do olhar do outro para se constituirem, elas esto continuamente orientadas em sua pré- tica pela avaliagto antecipada do apreso que sua eparéncia corpo- rale sua maneira de portar ocompo e exibi-lo poderio receber (dai ‘uma propensio, mais ou menos marcada, & autodepreciago © & incorporagao do julgamento social sob forma de desagrado do préptio corpo ou de timidez). £ na pequena burguesia, que devido a sua posigao no espago social estd particularmente exposta a todos os efeitos da ansieda- de em telagao ao othar social, que as mutheres atingem a forma extrema da alienagao simbélica. (O que significa que 0s efeitos da posiglo social poclem, em certos casos, como 0s citados, reforgar efeitos do mesmo género ou, em outros casos, atenud-los, sem nunca, ao que parece, chegar a anulé-los.) A contraria, a pritica intensiva de um determinado esporte determina nas mutheres uma profunda transformagio da experiéucia subjetiva e objetiva o corpo; deixando de existir apenas para 0 outro ou, o que di no mesmo, para o espelho (instrumento que permite n80 s6 se ver, ‘mas também experimentar ver como € vista ¢ se fazer ver como deseja ser vista) isto é, deixando de ser apenas uma coisa feita para ser olhada, ou que é preciso olhar visando a preparé-la para ser vista, ela se converte de corpo-para-o-outro em corpo-para-si- 13. Se os mulheres se mostom potielarenie inelnodas a0 amor rménica 20 vemaneteo, 6, som divide, por vm lodo, porque eas tm rele postr ilrase: colém do foo de prometrlisetias do deminayie masa, al he oeees, arta fs forma nis cami, como 0 carats, palo qual, nok sacadoden maser 0s, eas ciclo em loos 08 ligores, ea em was mas exocrine, umes io, de saat 0 ie, de oventn seciah 14, Or wotomentos 2 belaze que obscrom moto tempo, dikare ene fam 10 orn, segundo os css hm ou Srlwaxtemo ra chugs iea, ques fornou wre anarna indista nos Eset Unidos fom iho « mo de pettor recor timo endo ono © 20 srvcce ~ ch. §, Bordo, Unbearable Weigh, Feminism, ‘Waste Cube ond hs Body, Bataoy Univers of Calfomia Pr, 1993, p. 25). mesma, de corpo passivo ¢ agido em corpo ativo e agente; no entanto, aos othos dos homens, aquelas que, rompendo a relagan tacita de disponibilidade, reapropriam-se de certa forma de sua imagem corporal e, no mesmo ato, de seus coxpos, sio vistas como “nao femininas” ou até como lésbicas — a afirmagao de independéncia intelectual, que se traduz também em manifesta- 4g8es corporeis, produzindo efeitos em tudo semelbantes.! De maneira mais geral, o acesso ao poder, sea ele qual for, coloca as mulheres em situasao de double bind: se atuam como homens, clas se expoem a perder os atributos obrigat6rios da “ferninitida- de” e poem em questio o direito natural dos homens as posigdes de poder; se clas agem como mulheres, parecem incapazes e ins daptadas a situagao. Estas expectativas contradit6rias nao fazer mais que substituir aquelas as quais elas sio estruturalmente expostas enquanto objetos oferecidos no mercado de bens simb6- licos, convidadas, ao mesmo tempo, a fazer tudo para agradar e seduzir,¢ levadas a rejeitar as manobras de sedugio que esta espé- ie de submissio prejudicial 20 veredicto do olhar masculine po- de parecer ter suscitado. Essa contradit6ria combinagao de fecha mento e abertura, de contengao e sedusao, é tanto mais dificil de realizar quanto mais estiver submetida & apreciayao dos homens, ‘que podem cometer erros de interpretago, inconscientes ou inte- ressados, £ assim que, como observou uma pesquisada, diante das brincadeiras sexuais, as mulheres muitas vezes ndo tem outra escolha sendo a de se excluir, ou de participar, pelo menos passiva- mente, para tentar se integrar, expondo-se, entdo, a nao poder protestar se forem vitimas de sexismo ou de assédio sexual. Sandra Lee Bartky, que propoe uma das mais argutas deseri- 00s da experigncia feminina do corpo, erra, a meu ver, ao atribuir apenas & ago, sem dtivida muito importante, do “complexo moda/beleza” (fashion Beauty complex} a introjesao, nas mulhe- res, de “profundas ansiedades a respeito de seu corpo” e de um TS.CL CLA. Mackinnon, pc pp. 123 sag, “sentimento agudo de sua indignidade corporal”!6 Embora efei- to dessas instituigdes seja inegavel, nfo se trata mais que de um reforgo do efeito da relagio fundamental que institui a mulher na posisao de ser-percebido, condenadto a se ver através das categorias cominantes, sto & masculinas. E para compreender a “dimensao masoquista” do desejo feminino, isto é, esta espécte de “erotizacao das relagoes socizis de dominagaa’,7 que faz com que, como diz ainda Sandra Lee Bartky, “para muitas mulheres, a posi¢io domi- nante dos homens seja excitante’y é preciso Jevantar a hipotese de gue as mutheres pedem aos homens (¢ também, mas secundaria- mente, as instituig6es do complexo moda/beteza) que lhes ofere- cam subterfiigios para reduzir seu “sentimento de deficiéncia cor poral”, Ora, podemos supor que o olhar dos poderosos, que tem autoridade sobretudo sobre os outros homens, é particularmente apto a preencher esta fungio reasseguradora.!? AVISKO FEMININA DA VISRO MASCULINA A.strutura impe suas pressoes aos dois termos da relagao de dominagao, portanto aos préprios dominantes, que podem disto se beneficiar, por serem, como diz Marx, “dominados por sua dominagio” E isso porque, como j4 0 demonstram sobejamente todos 0s jogos associados & oposigao do grande e do pequeno, os dominantes nao podem deixar de apticar a si mesmios, isto &, a seu corpo e a tudo aquilo que sto e fazem, os esquemas do incons- ciente; esquemas que, em seu caso, engendram exigencias terriveis — como pressentem, ou reconhecem tacitamente, as mulheres 16. Ine Bay, Feninly and Comineton, Sats in he Phenomenology of pores. sion, Naw Yodk onde, Rouiedge, 1990, p41 17. tid 5. 18. a! For mony women, domnance ine sexing’) eebion 7 19.0 dominant em, prflpsinarie, © poder do mpar sua ved de xoxo como, igo objeto « colsive [sono su cuge representoda pelos abu: ears oF pels eloles mojedatcos, «de bier des autos aun th coe se dno amor x no (renga, ts obdiuon de wu poder onda do bjelverdo. ensieindase, sen, fom set abe, om exci, plenoent utlzade de exit come ox que ndo querem um marido menor do que elas. Temos, portanto, que analisar, em suas contradigoes, a experiencia masculina da dominagio, tomando como referéncia Virginia Woolf — embora menos a autora de seus cléssicos, incansavelmente citados, do feminismo, que sto A Room of One's Own (Um Quarto Sé Seu} ou ‘Three Guineas (Trés Guinéus), € mais a romancista de To the Lighthouse (Passeio ao Farol), que, gracas sem divida & anamnese propiciada pelo trabalho de escrever® oferece uma evocacato das relagies entre 0s sexos desembaracada de todos os clichés sobre 0 sexo, o dinheiro € 0 poder que seus textos mais tedricos ainda vei- culam, Podemos, realmente, descobrir, por sob esta narrativa, ‘uma evocagio incomperavelmente hicida do olhar feminino, ele mesmo particularmente liicido com relagao a essa espécie de esforso desesperado, e bastante patético, mesmo em sua triunfal inconsciéncia, que todo homem tem que fazer para estar a altura de sua idéia infantil de homem. Eessa hucidez inquieta e indulgente que Virginia Woolf evoca, desde as primeiras paginas do romance. E provavel, de fato, que, 2 diferenca da Sra. Ramsay, que teme que set: marido tenha sido escutado, a maioria dos leitores, sobretudo masculinos, ndo com- preenda, ou ndo perceba, a uma primeira leitura, a situagio estra- nha, ou até mesmo um tanto ridicula, em que se meteu o St Ramsay: “Sibito um grito violent, semelhante ao de um sonam- bulo semidesperto, no qual se distinguia algo como ‘sob as balas, sob os obuses, saraivada ardente) ressoou com extrema intensida- de em seus ouvidos ¢ a fez voltar-se, muito inquieta, para ver se alguém havia escutado seu marido™! E é provavel que eles ainda 20. Virginie Wook taka consiénca do paradaxe, ue x6 aoderd wspruende: oF se im da eraso # de uon wat po a veda mo Wado simpli “I pro. inbere fath & impo, to wre fet” Wool, Tho Pargion, Now Yor. Fotcoun Bose Joenonch, 1977, p. 0 Ou ave; “Plt hea i aly fo contin Inova ath thn face” (Wool, A Room of One's Own, lorie, leon ond Virginie Wo 1935, p. 7). 21. Weal, (a Promarade av phot, op. cp. 24 Ember, no ett do romana, ‘io 48 se compreanda poico 2 peo, & he Solar que 0 7. Romy um pofstor 0 vie coread de lor da cole. oi surpreacido ne momentz om gue asave ‘ciamando wn 4 of0« poss famoto de Tenayaen tad “A Carge do biga- de de cows iors” nao compreendam quando, algumas paginas adiante, 0 Sr. Ramsay € surpreendido por outros personagens Lily Briscoe e sett amigo. £ $6 pouco a pouen, através de visdes diversas que os dife- rentes personagens dele puderam ter, que eles compreenderdo a conduta do Sr. Ramsay e a inquietacio de sua mulher a seu respei- t0:“E seu habito de falar sozinho ou de recitar para si mesmo ver sos grandilogitentes, como ela temera, estava sendo crescente. E disso resultando situagdes embaragosas?2 O Sr. Ramsay, que ha- via surgido nas primeiras paginas do romance como um podero- so personagem masculino, e paternal, é pego em flagrante delito de infantilidade, ‘Toda a logica do personagem reside nesta aparente contradi- fo. O Sr. Ramsay, tal como 0 rei arcaico de que fala Benveniste em seu Vocabtelério das Instituigdes Indo-eurapéias, ¢ aquele cujas palavras sto veredictos; aquele que pode aniquilar com uma frase a “alegria extraordinéria” de seu filho James, de seis anos, inteira- -menie voltado para o passeio ao farol no dia seguinte (“Mas, diz 0 pai detendo-se diante da janela do salio, nao vai fazer tempo bom"), Suas previsdes tém 0 poder de se verem confirmadas, no sentido literal, ou seja, de se mostrarem “verdadeiras”: seja por aluarem como ordens, béncios ou maldigoes que fazem aconte- cer, magicamente, o que elas enunciam: seja porque, por um efei- to infinitamente mais temivel, elasenunciam o que se anuncia por signos acessiveis somente a presciéncia do visionsrio quase divi- no, daquele que é capaz de dar razio a0 mudo, de redobrar a for- ‘sa das leis da natureza natural ou social convertendo-as em leis da razao e da experiencia, em enunciados a0 mesmo tempo racionais € razodveis da ciéncia eda sabedoria, Previsto cientifica, a consta- tacdo imperativa da profecia paterna remete o futuro a0 passado; previdéncia da sabedoria, ela dé a este futuro ainda irreal a sangio dda experiencia e do conformismo absolute que ela implica. E principalmente por intermédio daquele que detém 0 monopélio da violéncia simbélica legitima (e ndo apenas da poténcia sexual) dentro da familia que se exerce a agdo psicosso- 22 bid.» oF is matica que leva & somatizagio da lei. As proposigdes paternas tem. um efeito magico de constituicto, de nominagao criadora, porque falam diretamente a0 corpo, que, como lembrou Freud, toma a0 pé da letra as metforas; ¢, se as “vocagties” parecem em geral tio espantosamente ajustadas aos lugares efetivamente acessiveis {Geguundo o sexo, mas também segundo o nivel do nascimento e de intimeras outras varliveis), isto se deve, sem diivida, em grande parte, ao fato de que, mesmo quando parecem obedecer apenas & arbitrariedade do prazer, os ditos e os juizos da paterna potestas ‘que contribuem grandemente para modeld-los emanam de um personagem que é, ele proprio, modelado por, € para, as censuras da necessidade ¢ levado, por tal, a considerar o principio de reali- dade como principio do prazer. ‘Adesie incondicional & ordem das coisas, o corte paterno se opde a compreensao materna, que objeta ao Veredicto paterno ‘uma contestagio da necessidade e uma afirmagio da contingéncia bbaseadas em um puro ato de f& ("Mas pode fazer tempo bom, eu acho que fard bom tempo"2) e acrescenta uma adesio de eviden- cia Bei do desejo e do prazer, mas dobrada de uma dupla conces- sho condicional ao principio de realidade: “Sim, com certeza, se 0 tempo estiver bom amanha, diz a Sra, Ramsay, Mas voce vai ter aque se levantar de madrugada’, acrescenta ela. O no do pai nao precisa ser expresso, nem se justificar: nao hg, para qualquer pes- soa sensata (“tena senso”, “mais tarde voct vai compreender”), coutra escolha a nao sera de se inclinar, sem frases, diante da forga maior das coisas. A palavra paterns é particularmente terrivel em sua implacével solicitude quando ela se coloca na légica da predi- ‘go profilitica, que s6 fala de um futuro temfvel para exorcizé-lo (*vocé vai se dar mal’, “voce vai desonrara todos nds’, “voce nun- ca vai conseguir se formar” etc.) ¢ cuja continua confirmacao nos fatos é motivo para um triunfo retrospectivo (“bem que eu dis- 32”), compensagio desencantada do sofrimento causado pela decepgao de nao ter sido desenganado (“eu esperava que vos me desmentisse”). tid, p 1 gilas ds Aa B esse reatismo desmancha-prazeres e cimplice da ordem do mundo que desencadeia 0 ddio ao pai, Sdio dirigido, como na revolta adolescente, menos contra a necessidade que o discurso paterno pretende desvelar ¢ mais contra a adesio arbitriria ao que © pai todo-poderoso Ihe exige, provando assim sua fragilidade: fragilidade da cumplicidade resignada, que concorda sem resis~ ‘éncias fragilidade da complacéncia que extrai satisfasao ¢ vaidade do prazer cruel de desiudir, isto & de fazer partilhar de sua pré~ pria desitusio, de sua propria resignacio, de sua propria dertota. “Se James tivesse a mao um machado, um aticador ou qualquer outro instrumento capaz de abrir o peito de sen pai e maté-lo ali mesmo, com um tinico golpe, ele o teria usado. Tais eram, e tao extremas, as emogoes que 0 Sr. Ramsay despertava no coragio de seus filitos apenas com sua presenga, quando se colocava de pé diante deles, como o fazia atualmente, magro como uma faca, fing como uma lamina, com o sortiso sarcéstico que nele provocava ‘pao 86 0 prazer de desiludir o flho e ridicalarizar a mulher, que Ihe era, no entanto, dez mil yezes superior em todos os pontos (aos olhos de James}, como também a secreta vaidade que tinha da justeza do proprio julgamento’?* As revoltas mais radicais da infancia e da adolescéncia sao, talvez, menos voltadas contra o pai que contra a submissio espontaneamente prestada ao pai que submete, contra 0 movimento imediato para lhe obedecer e ren der-sea suas razdes. Nesse aspecto, gracas a indeterminagao que 0 uso do estilo inditeto livre permite, passamos insensivelmente do ponto de v ta dos filhos sobre o pai ao ponto de vista do pai sobre si mesmo. Ponte de vista que nao tem, na realidade, nada de pessoal, pois, como ponto de vista dominante e legitimo, nao é mais que a alta idéia de si mesmo que tem o direito eo dever de formar a seu res- peito aquele que pretende realizar em seu set o dever-ser que 0 mundo social Ine destina — no easo, o ideal de omen e de pai que ele tem que realizar: “O que ele dizia era a verdade, Fra sem- is- Pa id, p 10 Caron de Av pre a verdade. Ele era incapaz de nao dizer a verdade; ele nunca alterava um fato, nunca mudava uma palavra desagradével, para conforto ou concordancia de qualquer alma viva, nem, ou princi- palmente, a de seus proprios filhos, carne de sua carne, ¢ educades visando a que soubessem o mais cedo possivel que a vida é dificil, que 0s fatos no admitem compromisso e que a passagem 20 pais fabuloso em que nossas mais brithantes esperangas se desfazem, em que nossos frageis barcos sao engolidos pelas trevas (ao chegar a este ponto o St. Ramsay ensdireitava o corpo e fixava o horizonte, apertando seus pequenos olhos azuis), representa uma prova que exige antes de tudo coragem, sinceridade e resistencia’. Vista por este angulo, a dureza gratuita do St, Ramsay deixa de set resultante de uma pulsdo tao egoista quanto a do prazer de desitudir: ela ¢ a afirmagao livre de uma escolha, a da retidio, ¢ também a do amor paterno bem-compreendido, que, recusando abandonat-se & censurdvel facilidade da indulgéncia feminina e& cegueira materna, tem que se mostrar a expresso da necessidade do mundo no que ela tem de mais impiedoso. E, sem dtivida, isso (que significa a metifora da faca ou da lamina, que uma interpre- tagdo ingenuamente freudiana reduziria e que, como entre os cabilas, situa o papel masculino —o termo e a metafora teatrais aqui se impoem, mais uma vez — do lado do corte, da violencia, do assassinato, isto 6, do lado de uma ordem cultural construida contra a fusdo original com a natureza materna e contra o aban- dono ao laisser-faire e ao laisser-aller, is pulsdes e aos impulsos da ‘natureza feminina, Comeramos a suspeitar que o carrasco é tam- bém vitimae que a palavra paterna se arrisca, pelo proprio fato de ser poderosa, a converter a probabilidade em fatalidade. Essa impressio se aprofunda quando se descobre que 0 pai inflexivel, que, em uma frase sem apelo, acaba de matar os sonhos, de seu filho, foi surpreendido divertindo-se como uma crianga, mostrando aos que se viram “introduzidos em um recinto priva- do’, Lily Briscoe e seu amigo, “uma coisa que no se tinha inten- 756d, ppstO edo do Ao, go de Ihes mostrar”: as fantasias da libido acaidemica, que se expressam metaforicamente nos jogos de guerra. Mas é preferivel citar todo © Jongo devaneio que o poema de Tennyson desenca- deia no St. Ramsay ¢ no qual a evocasao da aventura guerreira — a carga no vale da Morte, a batatha perdida e o heroismo do chefe ("Mas ele ndo queria morrer escondido: ele encontraria alguma aresta do rochedo e ai morreria de pé, com os olhos fixos na tem- pestade...”)— mescla-se intimamente com o pensamento ansioso quanto 20 destino péstumo do fildsofo (“o Z s6 se atinge uma vez ‘em cada geragio’, “Ele jamais atingiria 0 R"): “Quantos homens, entre milhdes, perguntava-se ele, chegam a atingir o Z? Sem duvi- da 0 comandante de uma coluna infernal pode se fazer essa per- ‘gunta e responder, sem trair 0s queo seguem: ‘Um, talvez’. Um em cada gerago, Pode ele, entdo, ser culpado se for este um? Desde que ele tenha sinceramente se esforgado, e dado tudo que podia, até ndo ter mais o que dar? E seu renome, quanto tempo hé de durac? Mesmo um heréi pode se perguntar, no momento da ago- nia, 0 que vao dizer dele aps sua morte. Sou renome podera durar dois mil anos.[..] Como, entdo, culpar o comandante dessa coluna infernal que, apesar de tudo, subit suficientemente alto para Ver a perspectiva estéril dos anos e a morte das estrelas se, antes que a morte enrijega seus membros e Ihe fotha até o movi- mento, ele ergue solenemente seus dedos ja quase patalisados até a fronte. se reapruma, assim que a expedigao de socorro que se pos sua procura o encontrard morto, em seu posto de grande sol- dado. Q Sr. Ramsay ficou de pée se colocou muito espigado ao lado da una, Quem o culpara se, enquanto assim fica por instantes, seu pensamento se detém em sou renome, nas expedicdes de socorro, nas pirdmides de pedra enguidas sobre sua ossada por dis- cipulos agradecidoe Enfim, quem culparia o comandante da infe- liz expedigao se...”27 Bea tad 9 27 27. Bid, pp. AS fron do Aer. Sala neces rida ela evocora ce libido acoduaico, que poe 1 apron cxcberade pals navtlzagéo bers, ne bate msm ds anes do compe units, loa come ens Soprano eh one academe P. Sou, Pans, Edtons de Mira, 1984). ‘A tecnica de fusao de seqiiéncias, tao cara a Virginia Woolf, aqui se ajusta as mil maravidhas. A aventura guerreira ¢ 0 renome que a consagra, sendo uma metifora da aventura intelectual e do capital simbdltco de celebridade que ela persegue, a illusio ladica permite reproduzir, com alto grau de desreatizagao e, portanto, com menor custo, a iflusio académica da existéncia comum, com sens lances vitas e seus investimentas apaixonados — tudo aquilo «que movimenta as discussoes do Sr. Ramsay e de seus discipulos. ela autoriza o trabalho de desinvestimento parcial e controlado que é nevessério para assumir e superar a desilusio (“Ele nao tinha ta- lento”; “ele nfo tinka a menor pretensio neste sentido"), seivan- do igualmente a illusio fundamental, o investimento no jogo em si, a convicgio de que, apesar de tudo, o jogo merece ser jogado até 0 fim, e segundo as regras (pois, ao fina, o tiltimo dos nao-gradua- dos sempre pode, pelo menos, “morrer de pé".). Esse investimen- to visceral, cuja expressfo € basicamente uma questio de postura, realiza-se em poses, posigGes ou gestos corporais que estio todos orientados no sentido da inteireza, da retidao, da eregao do corpo ‘ou de sens substitutos simbélicos, a pirimide de pedra, a estatua, A illusio osiginal, constitutiva da masculinidade, esta sem diivi- da na base da libide dominandi, sob todas as formas especificas que ela reveste nos diferentes campos. E ela que faz com que os homens (a0 contrério das mutheres) sejam socialmente instituidos € instruidos de modo a se deixarem prender, como criangas, em todas os jogos que thes sto socialmente destinados e cuja forma por exceléncia éa guerra. Ao deixar-se surpreender sonhando acordado com algo que trai a vaidade pueril de seus investimentos mais pro- fandos, o Se. Ramsay desvela, repentinamenie, que os jogos a que se entrega, como os outros homens, so jogos infaatis —o que nao se pereebe em toda a sua verdade exatamente porque a conivéncia cole- tivathes confere a necessidade e a realidade das evidéncias partilha- das. O fato de que, entre 0s jogos constitutivos da existéncia social, os que sio considerados sérios sejam reservados aos homens, "28. Waal i Pram ov phow, ap. ct, 9.44 29.Ch. esarespuitP, Bou, Mésitasonspascolienne, Pols, Eons de Sel, 1987. pp, 199 09, enquanto as mulheres sio yotadas as criangas e a criancive (‘sem replicar, e assumindo a atitude de uma pessoa tonta ¢ cega, ela abai- xou a cabega|..]. Nao havia nada a dizer"), contribui para fazer esquecer que o homem é, também, uma erianga que brinca de ser hhomem, A alienagio genérica esta na base de seu privilégio espect- fico: os homens s40 educados no sentido de reconhecer os jogos sociais que apostam em. wma forma qualquer de dominacaa; jogos estes que Ihes sio designados, desde muito cedo, e sobretacdo pelos ritos de instituicdo, como dominantes, ¢ dotados, a este titwlo, da Ebido dominandi,o que thes dé o privitégio, que & uma arma de dois gumes, de se entregarem seguidamente aos jogos de dominacio. Por sua vez, as mulheres tém o privilégio, inteiramente negati- 16, de nao serem enganadas nos jogos em que se disputarn esses privilégios e, na maior parte das vezes, de niio se verem ai apanha- as, pelo menos diretamente, em primeira pessoa. Elas podem até petceber a vaidade caqueles jogos e, desde que no se envolvam neles por procuragio, considerar com divertida indulgéncia os desesperados esforgos do “homers-crianga” para se fazer de ho- mem ¢ 0 infantil desespero em que o jogam suas derrotas. Elas podem assumir em relagio aos jogos mais sérios o ponto de vista distante do espectador que observa de longe a tempestade — 0 que pode fazet com que venham 2 ser vistas como frivolas e inca- pazes de se interessar por coisas sérias, tais como a politica. Mas sendo essa distancia um efeito da dominagio, elas estdo quase sempre condenadas a participar, por uma solidariedade afetiva para com 0 jogador, que no implica uma verdadeira participagao intelectual ¢ afetiva no jogo, ¢ que faz delas, na maior parte das ‘Yvezes, torcedoras incondicionais, mas mal informadas sobre a rea~ lidade do jogo e seus lances.*1 130 _¥. Woof la romaade ou plore, op. itp Al 31.0 que fen poxeulrrene avert na patiparde que x mazes dos comdas popslrae tim nos “pals eysomives do was bonaes' —e gue, devils sey ears ter iaivoe do avocsclto, 4 pode sar visa pores zone Wve ou ae cosa cba do Domenie made, gids, a9 altos epore, mos racine depee do cava fa, bled © billed uments em rags @ ume pate por etes ds gus a 0 fem czas, E por isso que a Sra, Ramsay compreende imediatamente a situagdo embaracosa em que seu marido se meteu ao recitar em voz alta “A Carga da brigada de cavalaria ligeira™ Ele teme menos ‘o sofrimento que pode causar a ele 0 ridiculo de ter sido assim fla- grado do que © que esté na origem desta sua estranha conduta. odo o seu comportamento o expressaré quando, magoado ¢ assim reduzido a sua verdade de crianga grande, o pai severo, que acabara de coder a seu gosto (compensatério) de “desiludir seu filo e ridicularizar sua esposa’? vern pedir sua compaixto para com um sofrimento nascido da illusio ¢ da desilusto: “Bla acari- iow a testa de James, transferindo para seu filho os sentimentos que tinka para com seu marido”? Por uma dessas condensagoes que a logica da pratica autoriza, a Sra. Ramsay, em um gesto de protecao afetuosa para o quel a preparou e destinou todo o seu ser social,# identifica o homenzinho que acaba de descobrir a insu- portavel negatividade do real eo adulto que aceita deixar ver toda a verdade do desnorteamento, aparentemente incomensurdvel, em que 0 atirou seu “desastre”, Lembrando explicitamente seu veredicto a respeito do passeio ao farol e pedindo perdao & Sra. Ramsay pela brutalidade com que o proferiu (ele toca, “ado sem jdez, as pernas nuas do Stho” e propoe “humildemente” ir perguntar aos guardas costeiros seu parecer), o Sr. Ramsay trai claramente que aquela recusa grosseira tem relaga0 com a ridfeu~ Ja cena anterior e com o jogo da illusio e da desilusio.55 Mesmo tendo 0 cuidado de dissimular sua clarividencia, e sem diivida para proteger a dignidade do marido, a Sra. Ramsay sabe perfeita- mente que o veredicto enunciado sem piedade emana de um ser lamentével que, sendo também uma vitima dos veredictos inexo- F2.V, Wool, le Promenade au pha, 2p ep 7. 33, Bid, p40) 14, A lnc de prattona do So, Romina 4m Wiros marani, ombred, sobre do aroun do raisoro da ganha que bute as 035s poraprokage’ sous ptnhoe (iid, pp. 22, 20 821): "le mene ao ua protesio edor os de vne que ni ee ft io par rons de gue ao remo ado poco dara coke” fp. 12, gto de ‘Astor, aonb 35. i, 42. Pale scene a Hage oer riveis da tealidade, precisa de compaixao; descobre-se, posterior mente, que ela conhecia perfeitamente o ponto sensivel em que poderia a qualquer momento tocar seu marido; “Ab! mas quanto tempo voce acha que isso vai durar?” pergunta alguém. Era como se ela tivesse antenas que se projetassem para seu exterior, antenas que, interceptando certas frases, as impunham a sua atengo. Essa era uma delas. Hla sentin o perigo que vinha de sew marido. Uma pergunta como essa conduziria, ea quase certo, a alguma afirma- 0 que o faria pensar no que sua propria carreira havia tido de fracassada. Por quanto tempo continuariam a ler suas obras?, ele se perguntaria em seguida. B talver ela assim sucumbisse a uma ‘ltima estratégia: a do homem infeliz que, fazendo-se de crianga, consegue despertar as tendéneias de comtpaixio maternal que sto, por definigao, exigidas das mulheres.2” Deve ser citado aqui 0 extraordinério didlogo em meias pala~ ‘ras no qual a Sra. Ramsay manipula permanentemente o marido, primeiro aceitando o lance aparente da cena doméstica, em lugar de tentar argumentar, por exemplo, sobre a desproporgao entre a furia do Sr. Ramsay e sua causa confessa. Cada uma das frases, aparentemente anddinas, dos dois locutores envolve lances muito mais amplos e mais fundamentais, e cada um dos dois adversé- rios-parceitos sabe disso, devido a seu intimo conhecimento, qua- se total, de seu interlocutor; conhecimento que, & custa de um minimo de cumplicidade com a mé-fé, permite jogar no didlogo, 4 propdsito de nadus, contfltos sitimos sobre o todo. Essa logica do todo edo nada deixa aos interlocutoresa liberdade de escolher, 2 cada instante, a incompreensio mais total — que reduz.o dis- curso adverso ao absurdo, ligando-o a seu objeto aparente (no aso, 0 tempo que faria no dia seguinte} —, ou a compreensao, também quase total, que é a condicio tacita da disputa por suben- 36: id op. 126127, 237, $4 chstvou suios we20s que at ures preanca spa ge eaten @ aie que hraaluce de ecu do vida emotaral dr homens, acalmando 10 cor, ajudondoas o aco a: Inj ove» cules da vido fl, por xo plo, NM Heoay pcp. 8 tendidos e também da reconcitiagio. “Nao havia a menor espe- ranca de poder ir no dia seguinte ao farol, declarou secamente 0 ‘Sr, Ramsay, tornando-se iraseivel. Coma € que ele podia saber?, perguntou ela, O vento muitas vezes muda, O cardter extraordi- nariamente irracional dessa observagto, a absurdidade dio espiri- to feminino levaram o Sr, Ramsay a um acesso de raiva. Ele se ha- via atirado no vale em que a Morte esté sempre 3 espera le havia sido feito en pedacos e farrapos; ¢ eis que agora ela feria frontal- mente a realidade, dando a seu fillo esperangas manifestamente absurdas, dizendo, em suma, mentiras. Ele bateu com 0 pé n0 degrau de pedra. ‘Vai debochar de voo® mesma’, disse ele. Mas 0 que & que ela tinka dito? Simplesmente que poderia fazer tempo bom amanhi. E isso poderia de fato acontecer. Embora nao com ‘um bardmetro em baixa ¢ um vento todo do oeste” ‘A Sra, Ramsay deve sua condiciio de mulher a sua extraordi naria perspicacia, que faz com que ela possa “arrancar 0 veu de cada um destes seres"®, quando ela owve, por exemplo, uma des- sas discussdes entre homens sobre asstintos futilmente sérios ‘como as raizes cibicas ou quadradas, Voltaire e Madame de Stael, ‘o carater de Napoleio on o sistema francés de propriedade rural “Alheia aos jogos masculinos, a exaliagao obsessional do ego e as pulsbes sociais que eles impdem, ela vé muito naturalmente que as tomadas de posigio aparentemente mais puras e mais apaixo~ nadas a favor ou contra Walter Scott nao tém outro motive sendio ‘o dosejo de “chegar na frente”(o que é ainda um dos movimentos fundamentais do corpo, semethante ao “fazer frente” dos cabilas), & maneira de Tansley, outra encarnagao do egotismo masculino: “Ble faria sempre a mesma coisa, até que obtivesse a cétedra de professor ou se casasse; entio ele ndo precisaria mais dizer: ‘Ex, ‘eu, eu’ Bois &a isto que se referia sua critica a0 pobre Sir Walter, cou, quiem sabe, talvez fosse a Jane Austen: “Eu, en, ew? Fle pensava apenas em sie na impressio que produzia; ela sabia disto pelo tom 26. V. Weal ta Promescde ov chore, op. cit, p. 41 tgs do Ar 29. bd, pp. 125126 | ses de sua vou, por sua énfase e pela hesitagio de sua fala. Sentir-se vencedor lhe faria bem"40 ‘De fato, é raro as mulheres estarem suficientemente livres de total dependéncia, sendo dos jogos sociais, pelo menos com rela- {80 a0 homens qu os jogam, para poderem levar o desencantoa esta espécie de comiseragio um tanto condescendente para com a iilusio masculina. Toda a sua educagio as prepara, pelo contrario, a entrar no jogo por procuragia, isto &, em uma posigio ac mesmo tempo exterior e subordinada, ¢ a dedicar ao cuidado do homer, como a Sra, Ramsay, uma espécie de terna atencao e de confiante compreensio, geradoras fambém de umn profundo sentimento de seguranga.t! Excluidas dos jogos do poder, elas sto preparadas ata deles participar por intermédio dos homens que neles est20 envolvidos, quer se trate de seu marido, quer, como no caso da Sra. Ramsay, de seu filho: “(...) sua mide, yendo-o mangjar com destreza suas tesouras, o imaginava sentado em uma eadeira de juiz, todo em vermetho e arminho, ou dirigindo algum sério ‘empreendimento em uma hora critica do governo de seu pais”? O prinefpio dessas tendéncias afetivas reside no estatuto que é atribuido a mulher na divisto do trabalho de dominagio: “As snnlheres, diz Kant, no podem mais defender pessoalmente seus direitos € seus assuntos civis, assim como nko Ihes cabe fazer a ‘guerra: elas sO podem fazé-lo por meio de um representante”® A reniincia, que Kant imputa & natureza feminina, esté inserita no ais profundo das disposigSes constitutivas do abieus, segunda 40: tad, p 19S. {mers condegans de opinise damznsiciem qua ot muheea anon & med ses tea ple de seu maids 42, ¥. Well le Fremaaadd av pho, 2p. p10, 122, Vero. que Oto Weitnger na eae lotr ard ao hoe as ove ‘alos korionaquondo, dale date censirado os wheres pelo fo idada coe _e akardoram seu romeo asumem a de morde, ee conchiv que “a mulher, por ‘18a, t9m nome esa porque tefl, por reweza,pesoraiiado". Nosoqiés ie do tena, Kan, por exeio;2a com @incamcane sora, pana daw mulheres Sx “matics” Pocisnlmerie persados coma fein 9 enuresis nace tidade de delagopéo. "docilede" gue eve os pov 9 quaiment abdcer em fave, clos “pie da patio" Kan), Athapaiegie du pa de we progmengue, ted. eM Fescout, Fars, Win, 1968, p77, 1a, que nao apresenta nunca tantas aparéncias de natureza quanto quando a libido socialmente instituida se realiza em uma forma peculiar de libido, no sentido ordinario de desejo. A socia lizagao diferencia predispae os homens a amar os jogos de poder ‘eas mulheres a amar os homens que os jogam:; o caristna mascu- lino ¢, por um lado, o charme do poder, a sedugdo que a posse do poder exerce, por si mesma, sobre 0s corpos cujas préprias pul- shes € cujos desejos sao politicamente socializados.#t A domina- 0 masculina encontra um de seus melhores suportes no desco- mhecimento, que favorece a aplica¢io, a0 dominante, de catego- rias de pensamento engendradas na propria relagio de domina- g20 e que pode condunir a esta forma limite do amor fati, que é0 amor do dominante e de sua dominagao, libido dominantis (dese- jo do dominante) que implica renincia a exercer em primeira pessoa libido dominandi (0 desejo de dominar) “22 ao conraiondo olendéncie © enqvodiar todos ev Hocos semua do wiverss berecidtea, sbteido ante chelos « sovesrion (cl ® Ping, Seceovies Tal Sexueity, Powur und Wok, fondvexNiew York, Alen ond Unwin, 1788, speci rete jp 8103), no atmctiva do "annil harem” fons sel fe ck ce oid sibestireda pelos denincion mais “rodcis)@ da wo cinco € sre tol do charme feminine come indent de acne a pode fj. Pt, “Une tka on wochontd: lo secibosm ef son pation’, Aces de fa recherche en sciences sci es, 84.1990, pp. 3248) CAPITULO INT PERMANENCIAS E MUDANCA Seria precio toda a acuidade de Virginia Wooif 0 infinito refinamento de sua escritura para levar até as wltimas ‘consegiigncias a anilise de uma forma de dominagao inscrita em toda a ordem social e operando na obscuridade dos corpos, que siio,a0 mesmo tempo, lugares de investimento e principios de sua eficécia, Talvez tivéssemos que apelar também para a autoridade da autora de A Room of One's Own para dar alguma credibilidade 4 ago mobilizadora das constantes ocultas da relagao de domina- {fo sexual — de ral forma so poderosos 0s fatores que, além da simples cegueira, levam a ignoré-las (como o orgulho, legitimo, do movimento femminista, que o leva a por em destaque os avangos obtides com suas Jutas). Constatagao realmente espantosa, a da extraordindria auto- nomia das estruturas sexuais em relagdo as estruturas econdmi- «2, dos modos de reprodugéo em relagdo aos modos de produ- 0: 0 mesmo sistema de esquemas classificatorios se encontra, em seus aspectos essenciais ¢ ultrapassando os séculos e as dife- rengas econdmicas e sociajs, nos dois extremos do espago dos pos- siveis antropoldgicos: entre os camponeses da montanha da Cabi- Jia e entre os grandes burgueses ingleses de Bloomsbury; pesqui- sadores, quase sempre ligados & psicandlise, descobrem, na expe- riéncia psiquica de homens e mulheres de hoje, process, em sua maioria muito profundamente inculcados, que, tal como 0 traba- tho necessério para separar © menino de sua mie ou os efeitos simbolicos da divisto sexual de tarefase de tempos na produyao ¢ na reprodugao, observam-se também claramente nas praticas rituais, realizadas publicae coletivamente, ¢ integradas no sistema simbslico de uma sociedade organizada de cima a baixo segundo © principio do primado da masculinidade. Como explicar que a visto androctntrica de wm mundo em que as disposigdes wltra- ‘masculinas encontram condigdes das mais favordveis a sua reali- zacao nas estruturas da atividade agratia — ordenada segundo a oposicao entre o tempo de trabalho, masculino, eo tempo de pro- dugao, feminino! —~ e também na légica de uma economia de bens simbolicos plenamente realizada tenha podido sobreviver, sem atenuagbes nem concessbes, as profuundas mutagdes que afe- taram as atividades produtivas ¢ a divisto do trabalho, confinan- do a economia de bens simbélicas em um pequeno numero de ihotas, cercadas pelas Aguas frias do interesse e do célculo? E como registrar esta aparente perenidade, que contribui igualmen- te, e muito, para conferir a uma construcao histérica feigoes de uma esséncia natural, sem nos expormos a ratificé-la inscreven- do-a na eternidade de uma natureza? © TRABALHO HISTORICO DE DES-HISTORICIZACAO Realmente, é claro que o eterno, na histéria, ndo pode ser senao produto de um trabalho histrico de eternizagao,.O que sig- nifica que, para escapar totalmente do essencialismo, o importan- te ndo é negar as constantes ¢ as invaridveis, que fazem parte, incomtestavelmente, da realidade histdrica: é preciso reconstrair a historia do trabatho histérico de des-historicizagao, ow, se assim preferirem, a historia da (re)criagao continuada das estruturas objetivase subjetivas da dominagao masculina, que se realiza per- 1. Esa dhrslo, propena por Mare, one 2 pladas do tobotha (Wo &, pero a sido aps, 0+ canes # a cae gue cepoiam ook homers) # 0% perio os de produto geting ee). en que 8g packs Por um pocene puomeer ‘e rauiel de torscinogéa, homSlage oo ue se aciza no vere mating drone 1 gelog, tom se eatlclent no sila de reprodyo, om © cpa ene tam pode ploutagi, am que home daserpenka um pep vee deteninene, €@ herpo do stg KEP. Bord, le Ses pratigua, op 2 po: 200362) 2. Pore noe cenvenceinae dato, bass lr centomane os cinco voles de Uso tis Forney, digida poe Gages Dye Michela Pct ers, How, 1981, 1992}, manentemente, desde que existe homens e mulheres, e através da qual a ordem masculina se vé continuamente reproduzida através dos tempos. Em outros termos, uma “historia das mulhe- es", que faz aparecer, mesmo a sua tevelia, uma grande parte de comstincia, de permanéncia, se quiser ser consequtente, tem que dar lagat, e sem diivida o primeino lugar, a hist6ria dos agentes e das instituiges que concortem permanentemente para garanti¢ ‘essas permanéncias, ou seja, Igreja, Estado, Escola etc., cujo peso selativo e fungoes podem ser diferentes, nas diferentes épocas. Tal historia nde pode se contentar com registrar, por exemplo, a ‘exclusio das mulhetes de tal ow qual profissao, de tal ou qual car reira, de tal ou qual disciplina; ela também tem que assinalar ¢ Jevar em conta a reprodugdo e as hierarquias (profissionais, disc plinares etc.), bem como as predisposicoes hierérquicas que elas favorecem e que levam as mulheres a contribuir para sua propria excluso dos lugares de que elas sao sistematicamente excluidas.> A pesquisa histérica nao pode se limitar a descrever as trans~ formasoes da condigao das mulheres no decurso dos tempos, nem mesmo a relagdo entre os géneros nas diferentes épocas; ela deve empenhar-se em estabelecer, para cada periodo, 0 estado do siste- ma de agentes ¢ das instituigées, Familia, Igreja, Estado, Escola ctc., que, com pesos e medidas diversas em diferentes momentos, contribuiram para arvancar da Histéria, mais ou menos completa- mente, as relagdes de dominagto masculina. O verdadeiro objeto de uma historia das relagses entre os sexos é portanto, a historia das combinagoes sucessivas (diferentes na Idade Média e no sécu- Jo XVIB, sob Pétain no inicio dos anos 40 ¢ sob de Gaulle depois de 1945) de mecanismos estruturais (como os que asseguram a reprodugio da divisio sexual do trabalho) e de estratégias que, por meio das instituicdes ¢ dos agentes singulares, perpetuaram, ‘no curso de uma histéria bastante longa, € por vezes a custa de mudangas reais ou aparentes, a estrutura das relacoes de domina 3. Fel euro prwona pate de imensa lorafa que ma dadiqul, dene meus pe ‘sires rabahos, torso wovhor cua o stems excl combo paca eproduse ex lransasndo operas aie os catgares soci, me owen os grea. ‘0 entre 0s sexos; a subordinagio da mulher podendo vir expres- 5a em sua entrada no trabalho, como na maior parte das socieda~ des pré-industriais, ou, a0 contrério, em sua exchuséo do trabalho como se deu depois da Revolugdo Industrial, com a separagao entre o trabalho e a casa, com 0 declinio do peso econdmico das mulheres da burguesia, a partir dat votadas pelo puritanismo vitoriano ao culto da castidade e das prendas do lar, & aquarela e 20 piano, e também, pelo menos nos paises de tradicao catdlica, & prética religiosa, cada vez mais exclusivamente feminina+ ‘Em suma, ao trazer 8 luz as invariantes trans-historicas da relacdo entre os “géneros’, a histdria se obriga a tomar como obje- to°0 trabalho historico de des-historicizagao que as produziu e reproduzin continuamente, isto é, 0 trabalho constante de dife- renciagao a que homens e mulheres nao cessam de estar submeti- os € que os leva a distinguir-se mascutinizando-se ou feminili- zando-se. Ela deveria empenhar-se particularmente em descrever ce analisar a (re)construgao social, sempre recomecada, dos princt- pins de visto e de divisio geradores dos “yéneros" e, mais ampla- mente, das diferentes categorias de priticas sexuais (sobretudo heterossexuais ¢ homossexuais), sendo a propria heterossexuali- dade construlda socialmente e socialmente constituida como padrio universal de toda pratica sexual “normal’; isto é, distancia- da da ignominia da “contranatureza".S Uma verdadeira com- preensio das mudancas sobrevindas, ndo s6 na condigao das mulheres, como também nas relagies entre 0s sexos, ndo pode ser ‘esperada, paradoxalmente, a nio ser de uma analise das transfor- .V.L Balloogh 8. Shahn, S. Sivin, The Sehectad Sx, A Hiry of Antes Jowerd Women, Atha (Gel Lone, The Univers of Geog Pes, 1988 (2 od) ‘5, Saber, sobretiso grees o> Into da Grorga Choancey. Gey New Yor, que o ‘cele do oposie ante homeusiual etsesanias algo muta racene@ quo {oi sem divide x8 depois do Sagano Guera Muna que ohsierssexulidde ov bomoneneciiode re mos come excthaascsra. A ai idmats om 08 08 pposscvan de un parce morcline une poccalafemnina, pedando homere dos *rexmas”dair com um “elenedo” com a candSo da imer oo lado do “mar ceili” do velogbe, Or svandos" 9,08 homors que dvejwar hore, aco. {vom monaior «tries eominodes, que comecsram 2 reece quando a disso ‘ents homoszoni hleronsnuas se cimou mois corarete magdes dos mecanismos ¢ das instituigbes encarregadas de garan- tira perpetuagio da ordem dos géneros. (© trabalho de reproducto esteve garantido, até época recente, por trés instdncias principais, a Familia, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum 0 fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. £, sem davida, a familia que abe 0 papel principal na reprodugao da dominagio e da visio ‘masculinasié é na familia que se impde a experiéncia precoce da divisdo sexual do trabalho e da representacdo legitima dessa divi- sao, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. Quanto a Igreja, marcada pelo antiferninismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas a decéncia, sobretudo em matéria de trajes, ¢ a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visdo pessimista das mulheres ¢ da feminilidade,’ ela inculca (ou. inctlcava) explicitamente uma moral familiarista, completamen- te dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dog- ma da inata inferioridade das mulheres. Ela age, além disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas histricas do incons- cciente, por meio sobretudo da simbélica dos textos sagrados,s da livurgia e até do espago e do tempo religiosos (marcado pela cor- respondencia entre a estrutura do ano litargico e a do ano agra- rio), Em certas épocas, ela chegou a basear-se em um sistema de oposicdes éticas que correspondia a im modelo cosmolégico para justificar a hierarquia no seio da familia — monarquia de direito B.GLN.). Chodorow, op of 7, Sobre 0 pope daigea ssponhla ea prpehiito de visio posit sob ok ‘mulheres, tds come responséves plo dagrodogo mora porns merecadoras de solter pars a oxiocéo de todos ot pocodes do mundo, cf. W. A. Chain I. Yisioacies. The Spanish Republic and the Relgn of Chiat, Beckley. Univers oF Cofomic Press, 1997. Ess ico de apart et bin no canta da estore oporada palo governs de Vicky. que s2 ama de repasenecse mais arcica do lhe: @ cam apoio dos mules, wl como os proces aspanks qe, no womans res ar ge cordancva impure fanning, axporovom ot paqvene "sand: Vas", que arm sebrtodo mares, © wo vines milagrozo i. F. Masi Dryhe, Vichy Bene fini, Pris, Elona dl Sil, 1986), 8. CE). Motte, Mystque et fanin. Ex! de pychonahyse sciohioerque, Pars, ions ds Ca, 1997, divino baseada na autoridade do pai — e para impor uma visio do mundo sociale do lugar que ai cabe a mulher por meio dewma verdadeira “propaganda iconogrifica’® = Porfim, a Escola, mesmo quando jé liberta da tatela da Igreja, continua a transmitir os pressupostos da representacio patriarcal (baseada na homelogia entre a relagdo homem/mulher ea retagao adalto/erianga) ¢ sobretudo, talvez, 08 que estdo inscritos em suas proprias estraturas hierSrquicas, todas sexualmente conotadas, centre as diferentes escolas ou as diferentes faculdades, entre as dis- iplinas (“moles ou “duras” ~~ ou, mais préximas da inquietesa0, mitica original, “ressecantes”}, entre as especialidades, isto é, entre as maneiras de sere asmaneiras de ver, dese er, dese repre sentarem as préprias aptiddes e inclinagdes,em sua, tudo aqui- Jo que contribui para tragar nfo 86 0s destinos sociais como tam- bém a intimidade das imagens de si mesmo.!® De fato, € toda a cultura académica, veiculada pela instituigao escolar, que, em suas variaveis tanto literdrias ou filosoficas quanto médicas ou jucidi- cas, nunca deixou de encaminhas, até época recente, modos de pensar ¢ modelos arcaicos (tendo, por exemple, o peso da tradi- 640 aristotélica que faz do homem o principio ativo e da mulher 0 elemento passivo) ¢ um discurso oficial sobre o segundo sexo, para 0 qual colaboram teélogos, legistas, médicos e moralistass Giscuzso que visa a restringir a autonomia da esposa, sobretudo em materia de trabalho, em nome de sua natureza “pueril”e tola, cada época valendo-se para tal dos “tesouros” da época anterior {por exemplo, no século XVI os fabliauee em lingua vulgar ou as DCS F athens Gree, Ange ou dlablese lo reprsertaton de fo Fenene o¥ LVF sie, Paris, Florevaton, 1991, 9.387. “Os moos de earuncaga edo ve fre or moos da sexo form: nes, Weegonse somées ta compas, dverhodos, ‘eclemorioe por havens 29 posto que ox mules: 8 weed, por suo foo da ns (ba mesma, 9 acsea Beara 020 sabes ext” Ip. 327) 10, Podervele rer dest macorde dos formas expmctlees gus care 9 donna fo moxelina no india ecsara qin al podete de oparonsnorie obra, se {nde fork Mei am aa nike ds raprerenioeso dos casicogesasccares, of isdos quote hence da Sore eps o Sinone de easwo Take, Sinane 1 Bocurat, Tre Making of cn tact Won, Combridge, Blackw, 1994; e. Bourdu “Apologia pour une fens senats,prfciado lira de. to, Sirona de Boowoit. Cons cane inactoe, Pais, DderorEdrar, 1995, oo. VIX dissertagbes teolégicas em latim).!! Mas ela é, 20 mesmo tempo, como veremos, um dos principios mais decisives da mudanga nas relagdes entre os sexos, devido as contradig8es que nela ocorrem ¢ as que ela propria introduz. Para terminar este recenseamento dos fatores institucionais a reprodugao da divisto dos generos, teiamos que levar em con- tao papel do Estado, que veio ratificar e reforcar as prescrighes & as proscrigées do patriarcado privado com as de um patriareado pidélico, inscrito em todas as insttuigbes encarregadas de getir € regulamentar a existéncia quotidiana da unidade doméstica. Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas e autoritérios (como a Franga de Pétain ou a Espana de Franco}, realieacoes acabadas da visio ultraconservadora que faz da familia pattiarcal © principio e modelo da ordem social como ordem moral, funda- mentada na preeminéncia absoluta dos homens em relacao as mulheres, dos adultos sobre as criangas e na identificasao da moralidade com a forga, da coragem com o dominio do corpo, jugar de tentagoes e de desejos,!? 0s Estados modernos inscreve- ram no direito de familia, especialmente nas regras que definem 0 estado civil dos cidadaos, todos os principios fandamentais da visto androcéntrica.13 E a ambigitidade essencial do Estado con- siste, por um lado, determinante, no fato de que ele reproduz em sta estrutura mesma, com a oposigo entre os ministérios finan- eb 0 save MK, aidan onainics 0 tices (sortie mete 8 ao orto rato). CLP Frere, vo) des cpporenens, os os tosormatone ds cr ean, RR sil, ors, Eos de Sul 1984, 12.1. G. Lael, Morel Plies. Whol Coneratias Kaw Hat Libis Doo’, hago, The ety f Chg res, 199, 12, Se pcos lana an em dhe, cs pltics de gute dos ont sob iris apes potcs, Nos ogies evr, em ine iar, cam oe gande: prado ils ov cs enor exes do gh, en que seeps Sioake Wlomasclna do rvldo coma, beads ete do macho el dado, de comentdode nevaing# da or! hese de cae do eae Il ‘ote, inogs de Phore: Tinto de visits moder, Pore, Aube, 1997) co baw polo wage da goer de Vety iF. Mulroy, op i). Moonkin, rot gine danas, ebrids con 9 pata de oni, to prise oe Bn acho de tan t,t “ofl, no are dar em Acos del rechrche en stances scaly, 11, je 1996, pp. 1630) cin arnt dotedao onde edeeone, ceiros ¢ Os ministérios de administragao, entre sua mao direita, pateralista, familiarista e protetora, e sta mio esquerda, voltada para o social, a divisto arquetipica entre 0 masculino eo femini- no, ficando as mulheres com a parte ligada ao Estado social, nao s6 como responsiveis por, como enquanto destinatirias privile- giadas de seus cuidados e de seus servigos.14 Essa evocacao do conjunto de instancias que contribuem para reproduzira hicraruia dos géneros deveria permitiresbogar 0 pro- grama de uma anilise hist6rica do que permaneceu e do que se transformou naguelas instincias; andlise esta que, por si s6, pode fornecer 0s instrumentos indispensdveis 4 compreensio tanto da- ‘quilo que podemos constatar ter, nao raro de forma surpteendente, permanecido constante na condigao das mulheres (¢ isto sem pre~ cisar invocara resisténcia ea mé-vontade masculina’5 ou a respon- sabilidade das préprias mulheres), quanto as mudangas visiveis ou invisiveis que tal condigao experimentou em periodo recente Os FaToREs DE MUDANCA A maior mudanga esté, sem diivida, no fato de que a domina- 20 masculina ndo se impde mais com a evidéncia de algo que é indiscutivel. Em razao, sobretudo, do enorme trabalho critico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas dreas do espago social, conseguiu romper © circulo do reforgo generalizado, ‘esta evidéncia passoua ser vista, em muitas ocasides, como algo que é preciso defender ou justificar ou algo de que é preciso se defender ou se justificar. O questionamento das evidéncias caminha pari pas- su com as profundas transformagSes por que passou a condig2o Va. Tembrr fost da Esado come Insrumento do um norcis metisizade do poder 8 hg de trata a faze do poder roscutng Sore ar mubeces 625 clan fet) mo Fama a lagar prac! da dominagdo mavcno: erie eferereesee deta forgo oft @ flo debate, que pe em cols coos Fale, sobre @ ‘pest de sober a o Estado 6, par os uber, opessor ay berades. 1S. Flor que, evdorement, rode om de neglgancival «que cla arows da ogo. ‘gesd0 de agar indivi, oot dato dos unieds dondics quero no mand Se tabotho, etonbim horde de ares snbdloas eniconetedan, cee do “seorechsm ou de ets cites do “poficomene corte feminina, sobretudo nas categorias sociais mais favorecidas: € 0 caso, por exemplo, do aumento do acesso ao ensino secundatio e superior, ao trabalho assalariado e, com isso, a esfera piiblica; ¢ ‘também o distanciamento em telacio as tarefas domésticas!® e as fungdes de reprodugio (relacionado com o progresso e 0 uso gene- ralizado de técnicas anticonceptivas e a reduio de tamanho das famalias); é, sobretudo, o adiamento da idade do casamento e da proctiagao, a abreviagio da interrapcio da atividade profisional por ocasiao do nascimento de um fitho, e também a elevago dos percentuais de divorcio e queda dos percentuais de casarmento.17 De todos os fatores de mudansa, os mais importantes sio os que estdo relacionados com a transformagio decisiva da fungao da instituicio escolar na reprodugao da diferenca entre os géneros, tais como oaumento doacesso das mulheres instrucao e, correlativa- mente, a independéncia econdmica ea transformagio das estrutu- as familiares (em conseqiéncia, sobretudo, da elevaso nos indi- «2s de divércios): assim, emboraa inércia dos habitus e do direito, ultrapassando as transformagbes da firilia real, tenda a perpetuar ‘o modelo dominante da estrutura familiar e, no mesmo ato, o da sexuslidade legitima, heterosexual e orientada para a reprodusio; embora se organize tacitamente em relagio a ela a socializacao e, simmultaneamente, a transmissio dos prineipios de divisao tradici nais, 0 surgimento de novos tipos de familia, como as familias compostas ¢ 0 acesso a visibilidade paiblica de novos modelos de 16, Um er da modonca que pode ar egligencinds 6 em dvido,o mliglicar ‘ho dos indumenos erica des bons de consumo, que cova poe line monsio iereaiods segundo a poxsde soca as fvlas doris como caxnhr, lawcr, ar. Farr compost. come © cenprove fale de a po dead 00 Inabolho sods diminvs raul oo ne Eropo qr nes Estos Une, lean 0 cidade do cranes camo algo mats diel de er divi mesns qhond patlhado,opsor do aumero do rimore da caches o aan malate V7.CELW Hatboan, “Changes omy Rol, Soctazcion ond Sex Diferaneas", ‘American Pychelogit, 1977, 32, 9p. 644857. Néo postal lnbrar, seen em vans galotas, odor oa madoncas que acento am rosa der rhans &edcae ‘fo wcundro paris pda deena, sbrekea nos compes police raigino, ‘também er todas ox profisbes otcasomertefominikzadc, ior stapes, © {Bub de exemple, os meviranes, depo llaromeno novo, qos coop *oordenoges”(.D. Kengect [od ne neivorolaw codiration, 1986-1989, Pans Lomere, 19972). sexualidade (sobretudo os homossexuais), contribuem para que- brar a déxa e ampliar o espago das possibilidades em matéria de sexualidade, Do mesmo modo, e mais banalmente, 0 aumento do mimero de mulheres que trabalham nao pode deixar de afetar a divisto de tarefas domésticas e, 20 mesmo tempo, os modelos tra- dicionais masculinos e femnininas, acarretando, sem diivida, conse- héncias na aquisicto de posigdes sexuaimente diferenciadas no seio da familia: pode-se, assim, observar que as fithas de mies que trabalham tém espiragdes de carreira mais elevadas e sao menos aapegadas ao modelo tradicional da condigao femninina.}® ‘Mas uma das mudangas mais importantes na condicfo das mulheres ¢ um dos fitores mais decisivos da transformagio dessa condigto é, sem sombra de diivida, o aumento do acesso das jovens a0 ensino secundério e superior que, estando relacionado com as transformagées das estruturas produtivas (sobretudo 0 desenvolvimento das grandes administragdes publices ou priva- das e das novas tecnologias sociais de organizagtto de quedros), levou a uma modificagao realmente importante da posigao das mulheres na divisdo do trabalho: observa-se, assim, um forte aumento da representacao de mulheres nas profissoes intelectuais. ‘ou na administragao e nas diferentes formas de venda de servigos simbélicos (jernalismo, televisio, cinema, rédio, relagdes publi- cas, publicidade, decorasao) e também tma intensificagto de sua participacdo nas profissées meis proximas da definigio tradicio- nl de atividades femininas (ensino, assisténcia social, atividades pparamédicas). Apesar disso, as dipiomadas encontraram sua prin- cipal oferta de trabalho nas profissdes intermediérias de nivel médio (quadros administrativos de nivel médio, técnicos, mem- } bros do corpo médicn ¢ social etc.}, mes continuam vendo-se pra { ticamente exclufdas dos cargos de autoridade e de responsabilida- de, sobretudo na economia, nas finangas e na politica, ‘As mudangas visteis de condigdes ocultam, de fato, a perma- néncia nas posigdes relativas: a igualizagao de oportunidades de ‘acesso ¢ indices de representagao nto deve mascarar as desigualda- des que persisteas na distribuigao entre os diferentes niveis escola- tes e, simultaneamente, entre as carreiras posstveis. Em niimero maior que 0s rapazes, quer para obtengio do bacharelado, quer nos estudos universitérios, as mogas est8o bem menos representadas nos departamentos mais cotados, mantendo-se sua representacto inferior nos Departamentos de Ciencias, ao passo que cresce nos Departamentos de Letras. Nos liceus profissionais elas permane- cem, igualmente, direcionadas sobretudo para as especializagbes tradicionalmente consideradas “femininas” e pouco qualificadas (como as de empregadas da coletividade ou do comércio, secreta- riado e profisses da érea de saiide}, ficando certas especialidades (mecinica, eletricidade, eletrénica) praticamente reservadas 40s rapazes. A mesma persistéscis de desigualdades se verifica nas dlas- Ses preparatrias para as grandes escolas cientificas ¢ para esas mesmas escolas. Nas faculdades de Medicina, a porcio de mulheres decresce & medida que se sobe na hierarquia das especialidades, algumas das quais, como cirurgia, hes estdo praticamente interdi- tadas, a0 passo que outras, como a pediatria, ou ginecologia, lhes esto quase que reservadas. Como se vé,a estrutura se perpetua nos pares de oposigio homdlogos &s grandes divisbes tradicionais, com a oposigdo entrees grandes escolas eas faculdades, ou, dentro des- tas, entre as faculdades de Direito ¢ de Medicina ¢ as faculdades de Letras, ou, dentro destas, entre a Filesofia ou a Sociologia e a Psicologia ou a Historia da Arte. B é sabido que o mesmo principio de divisto é ainda aplicado, dentro de cada disciplina, atribuindo aos homens © mais nobre, 0 mais sintético, 0 mais tedrico ¢ as mulheres 0 mais anatitico, 0 mais pratico, 6 menos prestigioso.? ‘A mesma ldgica rege o acesso as diferentes profissoes eds dife- rentes fosigdes dentro de cada ums delas: no trabalho, tal como na eduucaglo, 0s progressos das mutheres no devem dissimular os 19. Sobre e dloranca ene or sas nor eevths Hotficon chs Chas Soul Avotamie d got ghlssachigue", Acs ceo vehercho op scarce rcile, 108, ‘ono 1995, pp 3:28 avangos correspondentes dos homens, que fazem com que, como em uma corrida com handicap, a estrutura das distdncias se man- tenba.20 O exemplo mais flagrante dessa permanencia dentro da mudanga e pela mudanga & 0 fato de que as posigbes que se femi- nilizam estejam ou desvalorizadas (os opersrios especializados sio majoritariamente mulheres ou imigrantes) ou declinantes, com sua desvalorizago duplicada, em um efeito de bola de neve, pela desersio dos homens, que ela contribuiu pars provocar. ‘Além disso, embora seja verdade que encontramos mulheres em todos os niveis do espago social, suas oportunidades de acesso (seus indices de representagdo) decrescem & medida que se atin- ‘gem posicdes mais raras € mais elevadas (de modo que o indice real ¢ potencial de feminilizacdo é, sem diivida, o melhor indicio da posiglo e do valor ainda relativos das diferentes profissoest!), Assim, em cada nivel, apesar dos efeitos de uma super-seleg2o, ‘a igualdade formal entre os homens e as mulheres tende a dissimu- Jar que, sendo as coisas em tudo iguais, as mulheres ocupam sem- pre as posigdes menos favorecidas. Por exemplo, sendo embora ‘verdade queas mulheres estdo cada ver mais representadas em fun- ‘<0es puiblicas, sao sempre as posigbes mais baixas e mais precdrias que thes sa0 reservadas (elas s6o particularmente nemerosas entre a§ nao tituladas e os agentes de tempo parcial, e, na administragao. local, por exempto, véem ser-Ihes atribuuidas posigoes subalternas e ancilares, deassisténciae cuidados— mutheresdalimpeza, meren- deiras,crecheiras etc) 22 A methor prova das incertezas do estatuto atribuido as mulheres no mercado de trabalho reside, sem ditvida, no fato de que elas s4o sempre menos remuneradas que os homens, ‘@ mesmo quando todas as coisas so em tudo iguais, elas obtém ‘cargos menos elevados com os mesmos diplomas e, sobretudo, s30 20,8 M agave Une Emonepoton rosie. Edveaton ettravcl ds femmes 0 Xe stl" am Gaby @ M Pre fb, Hite ds Formos, Fr, Hon, 1992. 21.44 ¥ Menus, “Pacebs a8 dria er fa prtipaton dat fea oe mow ‘couds powcr defer anopries, Rese hensive do floes socio, 42r combo, Iejorsvomorza 1988, pp 61787, “Au coor de Ponape EF, la are monte det ‘acrcins das las pos ds poe", Buln store do occ Actes dels Toor del forme ot Fleeien, 1993. 22. CF M, Anion, Pasonnes ator, Par, Eons ds CNEPT, 1994, mais atingidas, proporcionalmente, pelo desemprego, pela preca- riedade de empregos ¢ relegadas com mais faclidade a cargos de trabalho parcial — 0 que tem, entre outros efeitos, o de exclui-las eancartor toda 0 dengan ec dics, als ogres rebel = ee one wl, ntarans ma ca ema eon, mene 60 peo de vat ea cat manok contra dia, foment nacain, eo "grande fora") réncia— maquilagem, trajes, porte etc. dai ficarem, por esse fat, classificadas do lado do parecer e do agradar.>! © mundo social funciona (em graus diferentes, segundo as éreas) como um mer- cado de bens simb6licos dominado pela visio masculina: ser, quando se trata de mulheres, 6, como vimos, ser-percebido, e per- cebido pelo olhar masculino, ou por um olhar marcado pelas categorias masculinas — as que entram em acto, mesmo sem se conseguir enunci-las explicitamente, quando se elogia uma obra demuther por set “femining’, ou, ao contrério, “nao ser em abso- luto ferinina’, Ser “feminina” € essencialmente evitar todas as propriedades e préticas que podem funcionar como sinais de viri- Tidade; e dizer de uma mulher de poder que ela & “muito femini- na” no é mais que um modo particularmente sutil de negar-Ibe qualquer direito a este atributo caracteristicamente masculino que é 0 poder. A posigio peculiar das mulheres no mercado de bens simb6~ licos explica o que hi de mais essencial nas disposigdes femininas: se toda relagao social é, sob certos aspectos, 0 Iugar de troca no ‘qual cada um oferece & avaliagio seu aparecer sensivel, € maior paraa mulher que parao homem a parte que, em seu ser-percebi- do, compete a0 corpo, reduzindo-o ao que se chama por vezes de © “fisico” (potenciaimente sexualizado}, em relagéo a proprieda- des menos dretamente sensiveis, como a linguagem. Enquanto ‘que, para os homens, a aparéncia e os trajes tendem a apagar 0 corpo em proveito de signos sociais de posicao social (roupas, ornamentos, uniformes etc,), nas mulheres, eles tendem a exalté- Jo e adele fazer uma linguagem de sedugao. © que explica que o investimento (em tempo, em dinheiro, em energia) no trabalho de apresentagao seja muito maior na mulher, ‘SY acpi cabo um ico, que poder prscr Insignificant, do posgbo diferencia ‘dos homers © dos mulher non rlagea de tered do capal smbéhco: nas Evndos Unidos, na grande bugles, ha umo ferdineia © dar noms franeuee 2+ Tika, vides como abstr do eda 8 do sedveba, oo pais gue o8ropazes, Guar ‘des do none de fara @ setor dor aos dsinades 2 parpehbi, secxbem ames propos xcahidos no eioqua de aes onign etesouredes psi inhagem. Estando, assim, social mente levadasa tratar asi proprias como objetos estéticos e, por conseguinte, a dedicar uma atencao cons- tante a tudo que se refere a beleza,a elegancia do corpo, das vestes, da postura, elas tém naturalmente a seu cargo, na divisio do traba- Iho doméstico, tudo que se refere a estética e, mais amplamente, 8 ‘gestdo da imagem publica e das aparéncias sociais dos membros da unidade doméstica, dos filhos, obviamente, mas também do espo- 0, que lhes delega muitas vezesa escolha de sua indumentiria. Sao também elas que assumem 0 cuidado e a preocupacio cam a deco- raglo na vida quotidiana, da casa ¢ de sua decoragao interior, da parte de gratuidade e de finalidade sem fim que ai tem sempre ugar, mesmo entre os mais despossuidos (assim como as antigas hhortas camponesas tinham um canto reservados flores omamen- tais, os apartamentos mais pobres das cidades operdrias tém seus ‘vasos de flores, seus bibelds e seus cromos). Direcionadas & gestio do capital simbolico das famifias, as mulheres sio logicamente levadas a transportar este papel para dentro da empresa, onde se thes pede quase sempre para coorde- nar as atividades de apresentagio e de representacao, de recep20 e acolhida (aeromoga, recepcionista, anfitria, guia turistico, aten- deme, recepcionista de congresso, acompanhante etc.) ¢ também a gestdo dos grandes rituais burocraticos que, tais como os rituais domésticos, contribuem para a manutengdo e o aumento do capi- tal social de retagbes e do capital simbélico da empresa. Limite extremo de todas as espécies de servicos simbélicos que ‘0 universo burocratico exige das mulheres, os laxtosos clubes de hospedagem japoneses, para 0s quais as grandes empresas gostam de convidar seus quadros, oferecem, nla servigos sexuais, como 08 lugares de prazer conuns, mas servigos simb6licos altamente personalizados, com alusées a detalhes da vida pessoal dos clien- tes e referéncias admirativas a sua fungdo ou profissto. Quanto mais elevada for a posigao de um clube na hierarquia dos prestt- gins pregos, mais os servigos serdo particularizados e dessexuali- zados, e tendentes a fazer a entrega feminina parecer totalmente gratuita, ealizada por amor e nao por dinbeiro; o que se dé a cus- ta de um trabatho propriamente cultural de eufemizagao (o mes- mo que impoe a prostituigdo nos hotéis e que as prostitutas con- sideram infinitamente mais penoso e custoso que as répidas t10~ «cas sexuais da prostituigao de rua™). A demonstragao de atencties particulares e de artificios de sedugao, entre os quais uma conver- ‘sa refinada nao é um dos menores, podendo implicar certa provo- cagio erética, visa a dar a clientes que nao quetem ser vistos como tais a impressio de serem apreciados, admirados e até mesmo desejados ou amados por eles mesmos, por sua pessoa em sua sin gularidade, ¢ nfo por seu dinheiro, ede serem muito importantes — on, simplesmente, “de se sentirem homens”33 Desnecessirio dizer que essas atividades de comércio simbéli- cco, que si0 para as empresas 0 que as estratégias de apresentago so para 0s individuos, exigem, para serem adequadamente reali- zadas, uma extrema atengao & aparéncia fisica e predisposigdes & sedugio que estio de acordo com o papel que, tradicionalmente, compete mais 8 muther. B compreende-se que, de modo geral, se ‘possa confiar as mulheres, por uma simples extenséo de seu papel tradicional, funcbes (na maior parte das vezes subordinadas, ‘embora a dea cultural seja uma das inicas em que elas podem ‘ocupar cargos de direc0} na produgao ou no consumo de bens € servigos simbdlicos, ou, mais precisamente, sinais de distinglo, que vao dos produtas ou servigos de estética (cabeleireiras, esteti- cistas, manicurasetc.)& alta costura ou a cultura erudita, Respon- saveis dentro da unidade doméstica pela conversao do capital eco- némico em capital simbdlico, elas tendem a entrar na dialética permanente da pretensdo ¢ da distingao, & qual a moda oferece tum de seus campos pradiletos e que é também o motor da vida cultural, com 0 movimento permanente de ultrapassagem ¢ de escalada simbdlicas, As mulheres da pequena burguesia, que, 32 CLG, Haigad « LFinod, Bactotoel, Pstivin, Money ond love, Com bye, Poi Press, 1992. 33. C1 A. Alison, Nighhvck, saute and Corporale Marcil na Tokyo Hostess (Cab, henge, Une of Cheogo Press, 199A. como se sabe, levam a extremos a atengdo aos cuidados com 0 corpo ou coma aparéncia fisica™ e, por extensto, 20 cuidado com a respeitabilidade ética e estética, sio as vitimas privilegiadas da dominagio simbélica, mas também os instrumentos mais ade- quados para modificar seus efeitos em relacdo as categorias domi- snadas, Marcadas pela aspiracao de se identificarem com os mode- Jos dominantes — como o comprova sua tendéncia & hipercorre- ‘plo estética c lingtistica —, elas estdo particularmente inclinadas se apropriarem, a qualquer prego (isto 6 na maior parte das veves, a crédito), das propriedades distintivas, por serem as que distinguem 03 dominantes, ea contribuirem para sua imperativa divalgagdo em favor, sobretudo, do poder simbélico circunstan- cial, que pode assegurar a seu proselitismo de recém-convertidas uma posi¢ao no aparelho de produgio e de circulago dos bens culturais (por exemplo, em um jornal feminino}.*5 Tado se passa, entio, como se 0 mercado de bens simbolicos, ao qual as mulhe- res devem as melhores provas de sua emancipacao profissional, 6 concedesse a essas “trabathadoras livres” da producao simbélica uma aparente liberdade visando a melhor obter delas ama sub- missio diligente e uma conteibuigao para a dominasio simbélica, que se exerce através dos mecanismos da economia de bens sim- bolicos e dos quais elas so, igualmente, as vitimas prediletas. A intuigao desses mecanismos, que esta, sem diivida, a base de cer- tas estratégias de subversto propostas pelo movimento feminista, como a defesa do natural look, deveria estender-se a todasassitua- bes em queas mulheres podem crer,¢ fazer cret, que elas exercem as responsabilidades de um agente que se pée em ago no momento mesmo que elas se veer reduzidas na condicio de ins- trumentos de exibicdo ou de manipulasio simbolicas, 34. CEP. Boudin, fo Dincon. Crtlque socile du agement, Pais, Eons da Mist, 1979, pp. 226229, 235. Nicole Woliep Biggar carace una dascrgéa axeglar de ura ome por Inélica de proslilsia eviweal na bore da méc-de-sbre faminino in seu fra CChonsmatc Capt (C290, Uinstyof Cheng Pret, 1988) A-FORGA DA ESTRUTURA Assim, uma apreenséo verdadeitamente relacional da relagao dedominagao entre os homens ¢ as mulheres, tal como ela se esta- belece emt fodosos espagos e subespagos sociais, isto é néo $6 na fagnt- lia, mas também no universo escolar e no mundo do trabalho, no universo burocrético e no campo da midia, leva a deixar em peda 505 a imagem fantasiosa de um “eterno ferninino’, para fazer ver melhor 2 permanéncia da estrutura da relagio de dominagao entre os homens eas mulheres, que se mantém acimadas diferencas subs- tanciaisde condicdo, ligadaseos momentos da historia e as posigies no espago social, Esta constatagio da constiincia trans-historica da relagio de dominagao mascutina, longe de produzir, como por vezes se finge temer, um efeito de des-historicizagio, e portanto de nata- ralizagdo, obriga a reverter a problemstica ordindrie, fundamenta- dda na constatagio das mudangas mais visiveis na condigao das mulheres: na realidade, isto obriga a colocar a questo, sempre ignorada, do trabalho histérico, sempre renovado, que se desenvol- ve para arrancer da Histéris a dominagdo masculina e os mecanis- mos ¢ as agbes historicas;trabatho este que € responsével por sua aparente des-historicizaggo e que toda a politica de transformagio hhistorica tem que conhecer sob pena de se ver fadada a impoténcia. Ele obriga, enfim, e principalmente, a perceber a vaidade dos apelos ostentat6rios dos filésofos “p6s-modernos” no sentido de “ultrapassar 0s dnalismos”: estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos, nao nsceram de um simples feito de nominasdo verbal e néo podem ser abolidos com um ato de magia performética — os géneros, longe de serem simples “papéis” com que se poderia jogar a vontade (a maneira das drag queens), estao inscritos nos corpos € em todo um universo do qual extraem sua forca.% £2 ordem dos géneros que fundamenta a efi- "36, th Boer parece sia Pape water 9 iho “enor da gore que ola ‘oracle ors proper on Gonder Trouble quendo icone: “The witcpprehorion about ‘gece perforate i: tha ganda io ce, o tht gender isa rl, o tt gon dda ¢ cmstusion hot one pls on, oF ane pus coos in he momirg” (Ba, Ba ‘das fot Wat. On th Dscarv ats of Sax, Now York, Roan, 1993, c4cia performativa das palavras — e mais especialmente dos in- sultos —e é também ela que resiste as definigoes falsamente revo- lucionarias do voluntarismo subversivo. Tal como Michel Foucault, que pretende re-historicizar a sexualidade contra a naturalizagio psicanalitica, descrevendo, em uma Historia da Sexualidade concebida como “uma arqueologia da psicanalise”, uma genealogia do homem ocidental enquanto “sujeito de desejo’, esforgemo-nos aqui por fazer ver 0 incons- ciente que governa as relagbes sexuais e, de modo mais geral, 2s relagoes entre 0s sexos, nao s6 em sua ontogenese individual, como também em sua filogénese coletiva, isto é, em sua longa his- t6ria, em parte imével, do inconsciente androcéntrico. Mas, para Jevar a bom termo o projeto de compreender o que caracteriza propriamente a experiencia moderna da sexualidade, no pode ‘mos contentar-nos, com ele o fez, em insistir no que a diferencia sobretudo da Antiguidade gregs ou romana, na qual “terfamos realmente dificuldade em encontrar uma nogio semelhante & de ‘sexualidade’ ou de ‘carne’, isto 6, “uma nogao referente a wma entidade tinica e permitindo reagrupar, como sendo da mesma natureza {...], fendmenos diversos e aparentemente distanciados ‘uns dos outros, ndo sé comportamentos, mas também sensacdes, imagens, desejos, instintos, paixdes"3? ‘A sexualidade, tal como a entendemos, é efetivamente uma invengdo historica, mas que se efetivou progressivamente 4 medi- da que se realizava o processo de diferenciagto dos diferentes campos. de suas logicas especificas. por isso que foi preciso pri- meiro que o principio de divisao sexuada (e nao sexual), que constituia a oposigo fundamental da razdo mitica, deixasse de se aplicar a toda a ordem do mundo, tanto fisica quanto politica, € portanto de definir, por exemplo, os fandamentos da cosmologia, come nos pensadores pré-socraticos: a constituicao, em dominios separados, das priticas e dos discursos ligados ao sexo é insepara- vel, de fato, da dissociagao progressiva entre a razao mitica, com 137. Foscadh, Haze de arse, 12: Usage der plas, Fars, Galina, 1984, p43, ‘suas analogias polissémicas e-vages, € a razao logica, que, nascida da discussio em um campo escolistico, vem pouco a pouco tomar a propria analogia como objeto (com Aristoteles, sobretudo). Ea emergencia da sexualidade como tal ¢ indissociavel também do surgimento de todo um conjunto de campos e de agentes concor- rendo pelo monopolio da definigao legitima das praticas e dos discursos sexuais — campo religioso, campo juridico, campo burocrético — e capazes de impor esta definigto nas praticas, sobretudo através das familias e da visto familiarista, Os esquemas do inconsciente sexuado nao séo alternativas ¢s- truturantes fundamentais (fundamental structuring alternatives), ‘como quer Gofiman, e sim estruturas histdricas, altamente dife- renciadas, nascidas de um espaco social por sua vez altamente di- ferenciado e que se reprodizem através da aprendizagem: ligada & experincia que os agentes tém das estruturas desses espagos. & assim que a insergao em diferentes campos organizados de acordo ‘com oposigtes (entre forte ¢ fraco, grande e pequeno, pesado e eve, gordo e magro, tenso e solto, hard e soft ete.), que mantém sempre uma relacao de homologia com a distingao fundamental entre 0 masculino e o feminino e as alternativas secundarias nas 4quais ela se expressa (dominante/dominado, acimavabaix, ativo- penetrat/pessivo-ser penetrado®) ver seguida da inscricao, nos corpos, de uina série de oposigées sexuais homdlogas entre elas € também com a oposicao fundamental. ‘As oposig0es inscritas na estrutura social dos campos servemn de suporte a estruturas cognitivas, taxinomies praticas, muitas vveves registradas em sistemas de adjetivos, que permitem produ- Zir julgamentos éticos, estéticos, cognitivos, &, por exemplo, na area universitaria, a oposigao entre as disoplinas temporalmente dominantes, Direito ¢ Medicina, eas disciplinas temporalmente do- minadas, Ciénciase Letras, e, dentro destas, entre as cigncias, com 18 Michel Foucah vs bem a hgoiBo ante o sexuidede @ « poder imoseuinch, ‘wbreudo ra dco greg qt, Jao por homens @ para honors, lve @ concabsr "oa loc sexo segundo erqeeme da ponehcce « dx domicerSa de maska” (i, Foucouk, op. cp. 242) mean tudo que esta do lado do hard, e as letras, isto é © soff, ou ainda, sempre em descida, entre a Sociologia, situada do lado da dgorae da politica, e a Psicologia, voltada a interioridade, ial como a Literatura’. Ou, ainda no campo do poder, a oposicao, profunda- mente marcada na objetividade das praticas e das propriedades, entre patrdes da indiistria e do comércio ¢ intelectuais, e inserita também nos cérebros, sob a forma de taxinomias explicitas ow implicitas que fazem com que o intelectual seja, 20s olhos do “burgués’, um ser dotado de propriedades situadas, todas, do lado do feminino, do irrealismo, da irresponsabilidade (como se vé sobejamente naquelas situagdes em que dominantes seculares resolvern dar ligdes 20 intelectual ou ao artista e, tal como o fazem ‘os homens com as mulheres, Ihes “explicaro que é vida") Isto quer dizer que a sociologia genética do inconsciente sexual encontra sex prolongamento logic na anilise das estrutu- ras dos universos sociais em que este inconsciente se enraiza e se reproduz, quer se trate de divisdes incorporadas sob forma de principios de divisdo, ou das divisbes objetivadas que se estabele- ‘com entte as posigdes sociais (e seus ocupantes, preferencialmen- te masculinos ou femininos: médicos/enfermeiras, patrOes/inte- Jectuais, es.) e das quais a mais importante, do ponto de vista da perpetuaclo dessas divisdes, 6, sem diivida, a que distingue os carnpos destinados a producio simbélica. A oposigao fundamen- tal, cuja forma condnicaa sociedade eabila nos mostra, vé-se desa- 39, Schwa que 0 oposyao ene Forde sé o fame que esas no treme de cinco 6 disde do tobath eae 28 s0xs et ora no avd do abo cer co quonto nes rpreeniogéas, ea asgSe de twledas ae. Bm ora dom toch revs Cveno, 1 eis Ierros da seve 107 opuaham 0 pica, moveulna © gi ‘0 lia, finn, vito como emomanel A opesedo mate se roananie 20 comp dos ear des ntenaconci, am qe 0 rorga ep, eae © cae ‘es pote, veces Unis, nota ow Alsen, no pose cv petra wat ita "omininc, come © ero flo de qin. om pater mute vares, Ego, Gio ot Jopdo, © topaz ve orton mo poro wees pals ao pase coe os moess wo pols para Fonz ond ae Val pra ax Esedor Unie pao @ glare mois per faa eds da eeatera, de mcncogio ov de disc, © mais para @ Fronca pore esr lates, lesa ox eiecios horas [oN Porayeopodln, isk "gondss Seok dm elt poy, Ln doe & bongo coe deta Sisco, Atos de Ia recherche on sconces sccaies, 121-122, marge 1998, pp.7791.) celerada e como que difratada em uma série de oposicoes hom- Jogas, que a eproduzem, mas sob formas dispersas e miuitas vezes ja inreconbeciveis (como cigncias e letras, on cirurgia e dermato- Jogia). Estas oposigbes especificas confinam o espirito, de forma ‘mais ou menos insidiosa, sem se deisarem munca apreender em sua unidade e em sua verdade, isto é, como tantas facetas de uma ‘mesma estrutura das relagbes de dominagio sexual. £, portanto, soba condigio de manter juntas a totalidade dos Iugates e a das formas nas quis se exerce esta espécie de domin lo — que tem a particularidade de poder realizar-se em escalas bem diferentes, em todos os espagos sociais, dos mais limitados, como.as familias, os mais vastos — que podemos captar as cons- tantes de sua estrutura e os mecanismos de sua reproducio. As mudangas vistveis que afetaram a condigao feminine mascaramt a permanéncia de estruturas invistveis que sé podem ser esclareci- das por um pensamento relacional, capaz de pér em relagiia a eco- nomia doméstica, ¢ portanto a diviséo de trabalho e de poderes que a caracteriza, es diferentes stores do mercado de trabalho (08 cam- pos) em que estio situados os homens eas mulheres. Isto, em vez deapreender separadamente, como tem sido feito em geral,a dis- tribuicto de tarefas entre os sexes, esobretudo os niveis, no traba- Iho doméstico e no trabalho nao doméstico. ‘A verdade das relacées estruturais de dominaglo sexual se dleixa realmente entrever a partir do momento em que observa- mos, por exemplo, que as mulheres que atingiram os mais altos, cargos (chefe, diretora em um ministério etc.) im que “pagar” de certo modo, por este sucesso profissional com um menor “suces- 0” na ordem doméstica (divércio, casamento tardio, celibato, dificuldades ou fracassos com 05 filhos etc.) e na economia de bens simbélicos; ou, 20 contrézio, que 0 sucesso na empresa doméstica tern muitas vezes por contrapartida uma rentincia par- ial ou totat a maior sucesso profissional {através, sobretudo, da aceitagio de “vaplagens” que nao s4o muito facilmente dadas as rutheres, a nao ser quando as poem fora da corrida pelo poder: meio expediente ou “quatro quintos”) £, de fato, sob a condigdo de levar em conta as obrigagdes que estrutura do espago domés- ie ‘ico (ceal ou potencial) faz pesar sobre a estrutura do espaco pro- fissional (através, por exermplo, da representacdo de uma distancia necesséria, inevitivel ou aceitivel, entre a posicio do marido ¢ a osigdo da esposa) que podemos compreender a homologia entre as estruturas das posigdes masculinas e das posigdes femininas nos diferentes espacos sociais, homologia esta que tende a man- ter-se mesmo quando os termos ndo param de mudar de conted- do substancial, em uma espécie de corrida de obsticulos em que as mulheres jamais eliminam seu handicap’? Estabelecendo relagdes, podemos também compreender que a mesma relagio de dominagao pode ser observada, sob formas diferentes, nas condigées fernininas mais diversas, que vao da dedicagdo benévola das mulheres da grande burguesia dos nego cios e do dinheiro a seu Jar, ou a suas boas obras, dedicagao anci- lar e “mercenaria” das empregadas da casa, passando, no nivel da pequena burguesia, pela ocupagio de um emprego assalarindo complementar ao do marido, compattvel com ele, e quase sempre ‘exercido como algo inferior. A estrutura da dominagio masculina €0 principio ultimo dessas imimeras relagbes de domminaco/sub- missdo singulares que, diferentes em sua forma segundo a posi- 0, no espaco social, dos agentes envolvidos (dferencas as vezes enormes e visiveis; outras vezes infinitesimais e quase invistveis, mas homélogas e unidas, por isso mesmo, por um ar de famitia) separam e unem, em cada um dos universos sociais, os homens e ‘a8 mulheres, mantendo assim entre eles a “linha de demarcagto istica” de que falava Virginia Wool, 1, Powsi ui grande copiol call a0 bast po 8 pure dat aces ds cond fer de una verodra cxoromiaeconinizo # cll wm flere oor homene. Se eos efits 00% que conscton aue, am un conc en que © omen gente mito irheio, © Kobolie de mulher aparece camo priv ally, qu tam geo sash. «ot com um siplanenie de ovidades 9 de esto, eu que a homer que Fox mals cdo netade dos eonirentos espera qu 6 ruler fee «o's do ratade do trabalho dondstco, 0 indperciaco econbmiea, condiedonecensse, no cee por rmexna paro part quo a alr selves pretties do modelo dominant, qua pede covemicr © poxoor ox habits movciens «fininos POST-SCRIPTUM SOBRE A DOMINACAO E O AMOR Paros aqui epresentarie abandonar-nosao “pra- zer de desitudis” de que falava Virginia Woolf (prazer que faz pat- te, sem diivida, das satisfagoes por vezes sub-repticiamente busca- das pela sociologia), deixando de lado na pesquisa tode o universo encantado das relagdes amorosas.! Tentacao tanto mais forte quanto mais dificil se mostra, sem se expor a cair na “comicidade pedante’, falar do amor na linguagem da andiise e, mais precisa- mente, escapar da alternativa entre litismo e cinismo, entre 0 con~ to de fadas eo da fabula, ou do fabliaw. Seria o amor uma excecio, atinica, mas de primeira grandeza, a lei da dominagio masculina, ‘uma suspensio da violéncia simbélica, ou a forma suprema, por- que a mais sutil ¢ a mais invisivel, desta violencia? Quando ele assume a forma do amor marcado pelo destino, do amor fati, em ‘uma ou outra de suas variantes, quer se trate, por exemplo, da ade- So a0 inevitavel que levava um sem-trimero de mulheres, pelo ‘menos na Cabiia antiga ou na Bearn de outras eras, e sem diivida muito além (como o atestam as estatisticas da homogamia), a jul- ‘gar amdvel e chegar 2 amar aquele que o destino social lnes desig- nava, 0 amor é dominacao aceita, nao percebida come tale prati- camente reconhecida, na paixao, feliz ou infeliz. Eo que dizer do investimento, impasto pela necessidade e pelo habito, nas condi- goes de existéncia mais odiosas ow nas profissbes mais perigosas? 7. renche mts vez, sobevede no nl deka Distinction fon. ct, p. SBI. © paste que 0 beica dos prazure da “is ida” pacer a a lb cad, ape eSieamont scilic, sori vor gus 9 prczer ds dou” fe tzorpordr os ih {Bag gue le imagens, pode aplicr, a em pose [afi ceos vegas ‘no vseorertb najoles gue seciciogia prove, ‘Mas o nariz de Cleépatra estd ai mesmo para nos Iembrat, juntamente com toda a mitologia sobre o poder maléfico, terifi- cante e fascinante de mulher em todas as mitologias ~ da Eva tentadora, da envolvente Ontale, de Circe, cheia de sortilégios ou feiticeira manipuladora de destinos —, que o misterioso envolvi- mento do amor pode tambéan se exercer sobre as homens. As for- as que suspeitamos agir na obscuridade eno segredo dasrelagbes intimas (“ditas a0 ouvido”) ¢ que prendem os homens com @ magia dos arroubos da paixio, fazendo-os esquecer dos deveres ligados a sua dignidade social, determinam uma inversio ne rela~ fo de dominagios inversio que, ruptara fatal da ordem comum, normal, natural, é condenada como uma falta contra a natureza ¢ destinada, come tal, areforear a mitologia androcentrica Mas assim ficamos com a perspectiva da Iuta ou da guerra, exctuindo a possibilidade mesma de suspensto da forga e das rela- ‘ges de forga que parece constitutiva da experiéncia do amor eda amizade, Ora, nesta espécie de trégua milagrosa, em que a domi- nagdo parece dominada, ou melhor, anulada, ¢ a violencia viril apaciguada (as mulheres, como jé foi dito insimeras vezes,civili- zam, despojando as relagoes sociais de sua grosseria e de sua bru- talidade), cessaa visto mascutina, sempre cinegética ou guerreira, das relagdes entre 0s sexos; cessam, No mesmo ato, as estratégias de dominasao que visam a arela, prendes, ubmeter,rebaixar ou subordinar, suscitando inquietagses, incertezas, expectativas, frustragdes, migoas, humilhagdes, ereintroduzindo assim a dissi- metria de uma troca desigual. Mas, como bem disse Sasha Weitman, 0 corte com 2 ordem comum nao se realiza de um s6 golpe e de umta vez por todas. E somente com um trabalho de todos os instantes, sem cessar reco- smegado, que pode ser arrancada das Aguas frias do caleulo, da vio~ léncia e do interesse a “ilha encantada” do amor, este mundo fechado e totalmente autérquico em que e da toda uma série con- tinua de milagres: 0 mulagre da nao-violéncia, que torna possivel a instauragao de relagoes baseadas em total reiprocidadee atori- zando 0 abandono ¢ a retomeda de si mesmo; o milagre do reco- ahecimento miituo, que permite, como diz Sartre, sentir “justifi- cado o proprio existic’, assumido, até em suas particularidades mais contingentes ou mais negativas, na e por uma espécie de absolutizagio arbitréria da arbitraciedade de um encontro (“por- que era ele, porque ers eu”); 0 milagre do desinteresse, que torna possiveis relagdes desinstrumentalizadas, getadas pela felicidade de fazer feliz, de encontrar no.encantamento do outro, esobretu+ do no encantamento que ele suscita, razdes inesgotaveis de mara- vilhar-se. Todos teagos, evados a seu mais alto grau, da economia das trocas simbélicas, cuja forma stuprema éa doagao de si mesmo € de sea corpo, objeto agradado, exclufdo da circulagio mercantil € que, por suporem e produzirem relagdes duradouras ¢ néo ins- trumentalizadas, opder-se diametralmente, como mostrou Da- vid Schneider, as trocas do mercado de trabatho, transagies tem- pordrias e estritamente instramentais entre agentes indistintos, ou seja, indiferentes e intercambidveis — cujo amor venal, ou mercensrio, verdadeira contradicS0 nos termos, representa 0 limite universalmente reconhecido como sacrikégio.® © “amor puro’, esta arte pela arte do amos, é uma invengdo historica relativamente recente, como a arte pela arte, © amor puro da arte com © qual ele tem relag2o, histérica e estrutural- mente: Nao hd ddvida de que 6 muito zeramente o encontramos em sua forma mais perfeitae, limite quase nunca atingido— che- sg-8e a falar rio caso em “amor louco” —, ele € intrinsecamente fagil, porque sempre associado a exigtacias excessivas, a “loucu- as” (ido & por nele se investir demasiado que o casamento se ve to fortemente arriscado ao divércio?},e sem cessar ameagado pe- la crise que suscita 0 retorno do eéiculo egoista ou em simples conseqitincia da rotina, Mas ele existe suficientemente, apesar de 2. Que we ope fdaranainer ao fate de netro cue come instomaro, come ere mao de gaan, wom vax ore conta suae price Finaldod. 23.F 9. Boule, “le corps ale sate, Ales de recherche an scence scile, 104, seandvo 1994, 9 2 A.C P Boudin, Les Rigor de Yar. Gants ot saci dr chomp ira, Peis, ations du Ses, 1992. tudo, sobretudo nas mulheres, para poder ser instinuido em nor- ma, ou em ideal pritico, digno de ser perseguido por ele mesmo e pelas experiéncias de excegao que ele traz. A aura de mistério que © cerca, sobretudo na tradigto titeraria, pode ser fucilmente com- preendida de um ponto de vista estritamente antropolégico: basea- do na suspensio da huta pelo poder simbélico que 2 busca de reco- mhecimento e a tentaglo correlativa de dominar suscitam, 0 reco» nhecimento mittuo pelo qual cada um se reconhece no outro € 0 reconhece também como tal pode levar, em sua perfeita reflexivi- dade, para além da alternativa do egoisino e do altruismo on até da distingso do sujeito ¢ do objeto, a um estado de fusto e de comunhdo, muitas vezes evocado em metiforas proximas as do ‘iistico, em que dois seres podem “perder-se um no outro” sem se perder. Conseguindo sair da instabilidade e da inseguranga carac~ teristicas da dialética da hota que, embora baseada em uma pos- tulagso de igualdade, esta sempre exposta a0 impulso do domina- dor da escalada, 0 sujeito amoroso s6 pode obter 0 reconhecimen- to de um outro sujeito, mas que abdique, como ele o fez, da inten- ‘0 de dominar. Ele entrega livremente sua liberdade a um dono «que lhe entrega jgualmente a sua, coincidindo com ele em um ato de livre alienagio indefinidamente afirmado (através da repetigao, sem redundiincias, do “eu te amo”). Ble se vivencia como um cria- dor quase divino que faz, ex nihilo, a pessoa amada através do poder que esta The concede (sobretudo 0 poder de rroninagda, manifesto em todos os nomes tinivos e conhecidos apenas de ambos que os apaixonacdos se do mutuamente e que, como en um ritual iniciético, marcam um novo nascimento, um primeiro comego absoluto, uma mudanga de estatuto ontolégico); anes umn criador que, em retorno e simultancamente, vé-se, & diferenga de ‘umm Pigmaliao egocéntrico e dominador, como o criador de sua criatura, Reconhecimento mutuo, troca de justificagbes de existéncia e de razbes de ser, testemunhos reciprocos de confianga, signos, todos, da total recfprocidade que confere ao circulo em que se encerra a diade amorosa, unidade social elementar, indivisivel e dotadade uma poténcia autérquica simbolica, o poder de rivalizar vitoriosamente com todas as consagragdes que ordinariamente se pedem as instituisdes e aos ritos da “Sociedade’, este substituto mundano de Deus 5. Sobre a fusbe prepriomense ldo pein do isbbicde e de setts, vor P Bourdas, Médictons poncalienes fp. cit. pp 279236) CONCLUSAO A ivalgssto da andlisecentfca de uma forma de dominacao tem necessariamente efeitos sociais, mas que podem ser de sentidos opostos: ela pode reforgar simbolicamente a dominagao, quando suas constatagoes parecerem retomar on recortar o discurso dominante (cujos veredictos negativos assu- ‘mem muitas vezes 0s contornos de um puro registro comprovan- te), ou contribuir para neutralizi-la, a maneira da divulgagao de ‘um segredo de Estado, favorecendo a mobilizacao das vitimas. Ela std, portanto, exposta a toda sorte de mal-entendidos, mais faceis de serem revistos que de serem de antemio dissipados, Diante de tao dificeis condigdes de recepeio, o andlista ficaria tentadoa simplesmente invocat sua boa-fé, se nao soubesse que,em assuntos to sensiveis, esta € insuficientes como o ¢, igualmente, a convicyo militante que inspira um sem-ntimero de escritos dedi- {ribaiu pata Tembiat que, assim como a familia, a regio, a nacao ‘ou qualquer outra entidade coletiva, o estatuto de cay ou de Iésbi- «a no passa de uma construcao social, baseada na crenga, pode- se contentar com uma revolugao simbélica capaz de dar visibil dade, conhecida e reconhecida, a esta construgo, com confer! Ihe a existéncia plena e total de uma categoria realizada inverten- jo o sinal de estigmatizagio para transformé! a como 0 faz 0 gay pride em sua manifestagio publica, pontual ¢ extra-ordinaria da existéncia coletiva do grupo invisivel? Ainda mais porque, ao fazer ver que o estatuto de “gay” ou de “lésbica” é ‘uma construcao social, uma ficgdo coletiva da ordem “heteronor- mativa’, que se construiu, alids, em parte contra o homossexual, € lembrando a diversidade extrema de todos os membros dessa categoria construida, o movimento tende (é uma outra antino- mia) a dissolver de certo modo suas préprias bases sociais, aque- Jas mesmas que ele tem que construir para existir enquanto forga social capaz de reverter a ordem simbélica dominamte e para dar forga a reivindicagao de que é portador. E deve ele levar a cabo sua agio reivindicatéria (e sua contra- digao) exigindo do Estado que confira ao grupo estigmatizado 0 reconhecimento duradouro e comum de um estatuto puiblico € publicado, por meio de um ato solene de estado civil? A verdade é que, de fato, a agao de subversao simbélica, se quiser ser realista, no pode se limitar a rupturas simbélicas — mesmo quando, como se da em certas provocagdes estéticas, elas sejam eficazes no sentido de levar a suspensio das evidencias. Para mudar dur samente as representacSes, o movimento tem que operat i ‘uma transformaga s categorias incorporadas (dos esquemas de pensamento) que, através da educacao, conferem ‘um estatuto de realidade evidente, necessari “ral os limites de sua algada ‘das produzem, Ele tem que exit do Direito (que, como apalavra ‘mesma diz, esté parcialmente ligado ao straight.) um reconheci- mento da particularidade, que implica sua anulacdo: tudo se pas- Sa. de fato, como se os homossexuais, que tiveram que hutar para passar da invisibilidade para a visibiidade, para deisarem de ser cexcluidos e invisibilizados, visossem a voltar 3 lo n sutralizados “dominante.? Basta pensar em todas as contradigdes que a nogio de “arrimo de familia” implica quando aplicada a um dos mem- 7. A correo corral anions em su pesto covdane os movimento Aath dos dos grupos dominadose exigno‘izados amo to! perdlasde ee a avs 2aqho #0 exbigde, ome a anlasBo 2 a clebragSo de dferenca, que Fx com que, fut come © marinero do Direios Givi ou © movimento fein, els odor, tagindo or cheuminccs, vino oo ovis eae, om fogs da autre das et nopSes, do neato 3 pokica @ dos fomas de opaticdo enconbacos M, Boren, "Calabrcion and Seppreston The Sage User of nity bythe Lesbian and Gay Morenert", Anarioa Jounal f Socolgy, 109, novembre 1997, pp. S31-56S}. bros de um casal homosexual para compreender que o realismo ‘que leva a ver no contrato de uniao civil o preco a ser pago para *retornar a ordem” e obtero direito a visibilidade invisivel do bom soldado, do bom cidadao ou dobom conjuge, ¢,nno mesmo ato, de ‘uma parte minima dos direitos normalmente concedidos a todos ‘0s membros da parte inteira, que é a comunidade (tais como os direitos de sucess20), dificilmente possam justificar totalmente, para imimeros homossexuais, as concessdes a ordem simbélica que um tal contrato implica, como, por exemplo, a condicao de dependente de um dos membros do casal. (E significativo que, para minimizar a inconseqténcia que resulta da manutencio da diferenga, on até da hierarquia, em casais que realizaram a trans- sressio escandalosa da fronteira sagrada entre 0 masculino e 0 fominino, as associagbes de homossexuais dos paises nérdicos que obtiveram 0 reconhecimento da uniao civil de homossexuais tenham escoihido, como observou Annick Prieur, exibir publica- mente casais de quase-gémeos, que ndo apresentam nenhum dos signos capazes de fazer lembrar aquela divisdo simbélica ea opo- sigdo ativo/passivo que ela subentende.) Serd possivel converter a antinomia em alternativa suscetivel de ser dirigida por uma escolha racional? A forca da ortodoxia, é, da dca dir gute impée todo tipo de dominio co (branco, masculino, burgués), proven do do fato de que _tica em disposigaes incorporadas, revestidas de todos dosossignosdo natural; estas disposigoes, que na maior parte das vezes sio pro- fandamente ajustadas &s pressées objetivas de que slo produto ¢ que implicam uma forma de aceitacao técita dessas pressdes (por_ __ exemplo, fezendo da guetizagto “amor ao gueto”), esto fadadas a aparecer, quando ligadas aos dominantes, quer como atributos. Alo marcados, neutros, universais, isto &, a0 mesmo tempo visi- veis, distintivos, e invisiveis, nao marcados, “naturais” (a “distin- ‘elo natural”); quer, quando ligadas aos dominados, como “dife- 3A Plow, RS. Horse, “a ds indtrarce: a maioge heaven, Aces de a eebsiche on ances voit, 3, 1986, pp 615. engas’, isto 6, como marcas negativas, faias, ou até estigmas, que cexigem justificagao. Esta déxa dé, assim, uma base objetiva e uma ameagadora eficécia a todas as estratégias da hipocrisia universa- lista que, invertendo as responsabilidades, denuncia como ruptu- 7a particularista ou “comunitarista” do contrato universalista ‘toda e qualquer reivindicagdo de acesso dos dominados 20 direito e fato, paradoxalmente, é quando se mobi lizam para reivindicar os direitos universais que hes foram de fato Jo movimento gaye éshico foi to violet -denado, quanto no momento em que, com > contrato de unio ‘social, sobretudo, cle exige que a lei comum seja aplicada 20s gays ‘¢.s lsbicas (que sto duplamente dominadas, mesmo dentro de ‘um movimento que comporia 90% de gays. 10% de lésbicas ¢ é nda marcado por uma forte tradi masculinista).. ‘Como, eno, se contrapor ao universalismo hipécrita sem uni- versalizar um particularismo? Como, em teranos mais realistas isto & mais digetamente politicos, evitar que as conquistas dom _mento nao ferminem em uma forma de guetizagao? Pelo estar baseado em uma particularidade de comportamento, que nao ‘Agarreta necessariamente handicaps econdmicos e sociais, 0 mento gay e lésbico retine individuios que, embora estigmatizados, sto relativamente privilegiados, sobretudo do ponto de vista do capital cultural, que constitui um trunfo considersvel nas iutas sim- bolicas. Ora,0 objetive de todo movimento de subyersio simboli ~€ operat um trabalho de destruigao e de construgso simbélicas “sando a impor novas categorias de percepgao ¢ de avaliagao, de “modo a construir um grupo, ou, mais radicalmente, a destruir 0 Principio mesmo de divisio segunclo o qual so produzidos nio sé ‘0 grupo estigmatizante, como também o grupo estigmatizado. Este trabalho, 0s homossex icularmente armados para realizar: eles podem por a servigo do universalismo, sobretudo nas jutas subversivas, as vantagens ligadas ao particularismo. Dito isso, uma ultima dificuldade: o movimento, tendo esta particularidade, tal como 0 movimento feminista, de reunir agen- tes dotados de um forte capital cultural, esta fadado a encont ‘sob uma forma particularmente contundente, 0 problemia d “delegasdo a um porta-vor,capaz de formar o grupo, encarmand _£ expressando-o; no entanto, como em certos movimentos de ‘extrema esquerda, ele tende a se atomiizar em seitas engaj utas pelo monopstio da expressio pablica do grupo. Embora se ‘possa indagar se a vinica maneira, para este movimento, de fugir de uma guetizagdo e de um sectarismo que se reforgam mutua- mente nao seria por suas capacidades especificas, que ele deve & combinagdo relativamente inusitada, de uma forte disposigao subversiva, ligada a um estatuto estigmatizado, e de um forte capi- tal cultural, a servigo do movimento social como um todo; ou ‘mesmo se, para sacrificar um instante ao utopismo, colocar-se na vanguarda, pelo menos no plano do trabalho teGrico e da asa simbélica (em que cettos grupos homossextaiss30 mestres decla- rados) dos movimentos politicos e cientificos subersivos, pondo, assim, a servigo do universal, as vantagens particulares que distin gue os homossexuais dos outros grupos estigmatizados,

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