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& Uma ConvocagaD falta pelos Evangélicas Contessionais JAMES M, BOICE GENE EDWARD VEITH MICHAEL HORTON SINCLAIR FERGUSON FOUTROS Dedicado a Robert D. Preus Defensor da Fé em memoria de seu papel de fundador na formagdo da Alianga dos Evangélicos Confessionais © Editora Cultura Crista. Publicado originalmente em inglés com o titulo Here We Stand!, por Baker Books, uma diviséo da Book House Company, Grand Rapids, Michigan 49516, USA. Todos direitos so reservados. I* edigdo, 1999 - 3.000 Tradugdio: Hope Gordon Silva Reviséio: Claudete Agua Mello Ana Cecilia Agua Mello Editoragdo: Katia Maria Silveira Milanez Capa: Expressio Exata Publicagao autorizada pelo Conselho Editorial: Claudio Marra (Presidente), Aproniano Wilson de Macedo, Augustus Nicodemus Lopes, Fernando Hamilton Costa ¢ Sebastidio Bueno Olinto. €DITORA CULTURA CRISTA Rua Miguel Teles Jinior. 382/394 - Cambuci - SP CEP 01540-040 - Cx Postal 15.136 - CEP 01599.970 Fax (011) 279-1255 - Tel.:(011) 270-7099 ‘e-mail; cep@cep.org br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Claudio Anténio Batista Marra Prefacio: James Montgomery Boice, 5 A Declaracdo de Cambridge, 11 Colaboradores, 19 1. Nossa Cultura Moribunda, 23 David F. Wells 2. Algreja Viva, 41 Ervin S. Duggan 3. Lutar pela Verdade numa Era de Antiverdade, 57 R. Albert Mohler Jr. 4,Catequese, Pregagao e Vocagao, 75 Gene Edward Veith 5, Os Sola’s da Reforma, 97 Michael S. Horton 6. Arrependimento, Recuperagao e Confissio, 129 Sinclair B. Ferguson 7, AReforma do Culto, 155 W. Robert Godfrey 8. A Reforma na Doutrina, No Culto e Na Vida, 171 James Montgomery Boice Notas, 195 indice, 203 Prefacio James Montgomery Boice The Cambridge Declaration [A Declaragao de Cambridge], que segue a este prefacio, e os oito trabalhos de apoio sao os produtos da reuniao histérica de 120 pastores, docentes e lideres evangélicos de organizacg6es paraeclesidsticas realizada em Cambridge, Massachusetts, de 17 a 20 de abril de 1996. Acredi- tando que o movimento evangélico est4 em crise, essas pessoas se reuniram com afinalidade de convocar a igreja da América a se arrepender de seu mundanismo e buscar recuperar as doutrinas biblicas apostdlicas, porque sé elas capacitam a igreja e proporcionam integridade para o seu testemunho. A reuniao foi convocada pela Alianca de Evangélicos Confessionais, cuja afirmago de propdsito é ex- pressa o nos seguintes termos: A Alianga de Evangélicos Confessionais existe para convocar a igreja,em meio anossa cultura moribunda, a que se arrependa do seu mundanismo, recu- pere e confesse a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores, € para que veja essa verdade incorporada na doutrina, no culto e na vida. Nesses quatro dias de reunides foram apresentados trabalhos sobre quatro assuntos: “Nossa Cultura Moribunda”, de David F. Wells e Ervin S. Duggan; “As Verdades da Palavra de Deus”, de R. Albert Mohler Jr. e Gene Edward Veith; “Arrependimento, Recuperagio, e Confissio”, de Michael S. Horton e Sinclair B. Ferguson e “A Reforma da Igreja na Doutrina, Culto e Vida”, de W. Robert Godfrey e James M. Boice. A Declaragdo de Cambridge, derivada desses trabalhos, foi preparada em. 6 REFORMA HOJE sua forma preliminar por um comité de redagdo da alianga, subseqiientemente trabalhada na conferéncia com base nas sugestdes € criticas que surgiram quan- do da discussao dos temas apresentados nos trabalhos, e entio assinada formal- mente por quase todos os presentes a reuni&o de encerramento. ‘Varias pessoas envolvidas nessa reuniao haviam trabalhado juntas, de 1978 a 1988, no Conselho Internacional sobre a Inerrancia Biblica. Mas em Cambridge o desafio foi bem maior do que qualquer coisa que se enfrentasse no Conselho de Inerrancia. Este tivera um alvo claramente definido: recuperar e defender a inerrancia como elemento essencial da doutrina da autoridade biblica e como necessaria a satide da igreja. Além disso, era uma doutrina sobre a qual a maioria dos evangélicos devia estar de acordo. As tarefas do conselho foram, portanto, (1) mostrar que a maioria dos evangélicos cria na inerrancia; (2) explicar como a inerrancia e as doutrinas ligadas a ela devem ser compreendidas e (3) aplicar a doutrina aos desafios da época. A tarefa proposta a alianga ¢ mais dificil. Primeiro, nao se tratade um ponto facilmente definido, como a inerrancia, e sim, de toda uma perda de nivel ou defeccaio doutrindria geral entre muitos assim chamados evangélicos. Segundo, este é um assunto sobre o qual nao existe consenso evangélico. Pelo contrario, muitos nem percebem a existéncia de um problema, 0 que por si s6 ja é grande parte do problema. Terceiro, a alianga esta procurando expor este vacuo numa época em que muitas igrejas argumentam que seus sucessos mostram que os evangélicos est4o no caminho certo e que as béngdos de Deus sdo aparentes em todos os lugares. Os cultos sao bem assistidos. Os orgamentos sao amplos. Livros evangélicos, musica, videos, programas de televisio e radio gospel, bem como os grupos de estudo, est&o em franco progresso. Entao o que ha de errado com os evangélicos? A resposta é que nés nos tornamos mundanos. Abandonamos as verdades da Biblia e a teologia histérica da igreja que expressa essas verdades, e estamos tentando fazer a obra de Deus por meio da “teologia”, da sabedoria, dos métodos e da agenda do mundo. Seré que isso significa que os evangélicos negam a Biblia ou voltam as costas oficial- mente a doutrina classica cristé? Nao é bem isso. O que ocorre é que a teologia da Biblia acaba ndo influindo significativamente sobre aquilo que pensamos ou fazemos — mesmo quando nés aentendemos, e quase nunca a entendemos. As pesquisas mostram que o evangelho que a maioria dos crentes contemporaneos segue é essencialmente Deus nos ajudando anos ajudar. Tem muito a ver com a auto-estima, boas atitudes mentais e sucesso mundano. Nao ha muita pregagao PREFACIO 7 sobre 0 pecado, o inferno, o juizo, ou a ira de Deus, para nao dizer sobre as grandes doutrinas da cruz como a redengdo, a expiagdo, a reconciliagdo, a propiciagao, a justificagaio, a graga, ¢ a propria fé., Na falta de uma teologia sadia, biblica, bem entendida, os evangélicos foram apanhados como presa do pragmatismo e consumismo de nossos dias, Em vez de chamar 0 povo de Deus para adorar e servir a Deus, e ensind-lo como fazer isso, tratamos as pessoas da igreja como compradores e vendemos 0 evangelho como um “produto”. Uma otica mundial terapéutica substituiu as categorias cris- tas classicas tais como pecado e arrependimento, e muitos lideres jd identifica- ram 0 evangelho com idolos modernos tais como uma dada filosofia politica, visdes psicolégicas do homem, ea sociologia. Até onde as doutrinas da Biblia ja deixaram de orientar a pregago, o ensino, a editoragao, o evangelismo, 0 culto ea vida didria do povo de Deus, o evangelicalismo descambou para se tornar um movimento configurado unicamente pelo capricho e sentimentalismo popular. Para de novo se postarem reverentemente diante de Deus, os evangélicos precisam reconhecer esses {dolos como sendo {dolos, confessando o quanto fomos pegos poreles. A Alianca de Evangélicos Confessionais cré que, dentre as verdades que os evangélicos precisam recuperar, as prioritarias so as grandes doutrinas da Re- forma resumidas pelos conhecidos solas (a palavra em latim que significa “so- mente”): sola Scriptura, sola fide, sola gratia, solus Christus, e soli Deo glo- ria. Sola Scriptura: s6 a Escritura. Ao usar essas palavras, os Reformadores indicavam sua preocupagao com a autoridade da Biblia, e expressavam que a Biblia é a unica autoridade suprema — ndo o papa, nem a igreja, nem tradi¢des ouconcilios de igreja, menos ainda intuigdes pessoais ou sentimentos subjetivos —mas to-somente a Escritura. Essas outras fontes de autoridade sao por vezes Yiteis e talvez tenham seu lugar em certos casos, mas somente a Escritura é defi- nitiva. Portanto, se qualquer dessas outras autoridades diferir dela, devem ser julgadas pela Biblia ¢ rejeitadas, e nao o contrario. Sola Scriptura jé foi chama- do 0 principio formal da Reforma, no sentido de que se posiciona no inicio de tudo c assim direciona e forma tudo que 0s crist&os afirmam como crist&os. Os evangélicos negam sola Scriptura quando reinterpretam a Biblia para que se ajuste 4s nogdes modernas de realidade, e quando ignoram seus ensinos com base em supostas revela¢des ou direcionamentos divinos particulares. 8 REFORMA HOJE Sola fide: s6 a fé. Quando os Reformadores usaram estas palavras, preocu- param-se com a pureza do evangelho, querendo expressar que os crentes so justificados por Deus pela fé, inteiramente 4 parte de quaisquer obras que te- nham feito ou que possam fazer. Justificag’o por meio de Cristo unicamente pela fé tomou-se a doutrina primordial da Reforma. Sola fide foi chamado 0 principio material da Reforma porque melhor do que qualquer outro encarna o proprio contetido do evangelho. E essencial a ele. Martinho Lutero disse da justificagaio pela fé que ela é a doutrina pela qual a igreja se sustenta ou cai. Mas os evangélicos cairam realmente nesse ponto. Fizemos assim ao tor- narmos a fé uma obra, pela qual nds nos devemos colocar num relacionamento salvifico com Deus ou nos mantermos nesse relacionamento. Esquecemos que é 0 poder da retidao de Cristo e nao a fé do crente que o mantém numa posigdo certa diante de Deus. Os Reformadores também falaram de sola gratia: s6 a graga. Aqui a insis- téncia deles estava em que os pecadores nao tém nenhum direito a reivindicar de Deus, que Deus nao lhes deve nada senao o castigo por seus pecados, e que, se ele os salva apesar de suas transgressées, como é 0 caso daqueles que sao salvos, é s6 porque agrada-o fazer isso. Ensinavam que a salvagaio € somente pela graca. Em contraste, numerosos evangélicos de hoje créem que o homem é basicamente bom, que Deus tem a obrigagdo de dar a cada um a oportunidade de ser salvo, e que, se somos salvos, em ultima analise é por causa da nossa boa deciséio de receber o Jesus que nos é oferecido no evangelho. Os Reformadores ensinavam que a salvaco é realizada somente por inter- médio ¢ pela obra de Jesus Cristo, que ¢ 0 sentido ao qual a frase sola gratia se remete. Significa que Jesus ja fez tudo, de modo que agora nenhum mérito da parte do homem, nenhum mérito da parte dos santos, nenhuma obra nossa rea- lizada aqui ou num purgatério, que seja, poderd aumentar o valor dessa obra salvadora. De fato, qualquer tentativa de acréscimo é uma deturpagao do evan- gelho e definitivamente nao é evangelho nenhum. Proclamar Cristo somente é proclamd-lo como 0 tinico e suficiente Profeta, Sacerdote e Rei do crist&o. Nao precisamos de outros profetas para revelar a palavra ea vontade de Deus; na Biblia Jesus ja disse tudo que temos de ouvir. Nao precisamos de outros sacerdotes para mediar a salvagAo e béng&o de Deus; Jesus é nosso tinico ¢ suficiente mediador. Nao precisamos de outros reis para PrerAcio 9 controlar o pensamento e a vida dos crentes, nao precisamos de gurus; s6 Jesus éorei de cada cristo individualmente e de sua igreja. Jesus 6 tudo para nds e por nds no evangelho. Finalmente, cada uma dessas frases foi resumida no lema soli Deo gloria. Em Romanos J 1.36 as palavras “A ele, pois, a gloria eternamente” seguem a “porque dele, e por meio dele, e para ele sdio todas as coisas”, significando que € porque todas as coisas sao vindas realmente “dele e por meio dele e para ele” que nds dizemos “a Deus somente seja a gléria.” Pensamos na Escritura? Ela é de Deus, veio a nds pela intermediagéio de Deus, e permanecera eternamente para a gloria de Deus. A justificagao pela fé? Vem de Deus, por meio de Deus, e para a gloria de Deus. A graca? A graca, também, tem sua fonte em Deus, vem a nés pela obra de Deus 0 Filho, é para a gloria de Deus. O local da reuniao de abril de 1996 foi significativo. Reunidos no Hotel Charles, situado na histérica Praca Harvard no coracao do complexo da Univer- sidade Harvard, os lideres evangélicos congregados foram lembrados de que o moto de Harvard é Veritas (verdade). A palavra lembra que tanto Harvard como muitas outras universidades, colégios e faculdades foram fundados por antepas~ sados puritanos como centros de treinamento para ministros do evangelho da Reforma. Eles queriam que a seus ministros fosse ensinada a verdade da Palavra de Deus para que eles, por sua vez, pudessem ensiné-laa outros ¢ assim permear seu mundo com a verdade da Biblia para a gloria de Deus. No comeco do século!7, quando se fundou a Universidade de Harvard, os puritanos estavam tentando levar adiante a Reforma. Hoje quase ndo temos uma Reforma para levar avante, e muitos até j4 se esqueceram dos motivos e do assunto de toda aquela grande revolugao espiritual. Precisamos voltar e comegar novamente do zero. Necessitamos de outra Reforma. Anos atras, quando o Conselho Internacional sobre Inerrancia Biblica esta- va no estagio de formacaio, Francis Schaeffer disse numa das primeiras reunides: “Se nao fizermos alguma coisa sobre o afastamento do alto padrao biblico por parte dos evangélicos, nao mais teremos uma igreja evangélica para passar a nossos filhos”. Ele tinha raz4o. Mas hoje o problema se agravou muito. Se néo engendrarmos um esforgo para “recuperar e confessar a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores”, nao teremos igreja nenhuma para passar adiante, sé uma concha religiosa vazia que tola e arrogantemente se autodenomina “evangélica”. Que a Deus agrade nos poupar dessa triste possibilidade, e que nos mande uma nova Reforma. Cambridge, Massachusetts Abril 1996 A Declaragéo de Cambridge As igrejas evangélicas de hoje estGo cada vez mais dominadas pelo esptrito deste século em vez de pelo Espirito de Cristo. Como evangélicos, nds nos convocamos anos arrepender desse pecado e arecuperar a fé crista historica. N, decurso da Historia, as palavras mudam. Na época atual isso aconte- ceu com a palavra evangélico. No passado, cla serviu como elo de unio entre cristos de uma diversidade ampla de tradigdes eclesidsticas. O evangelicalismo hist6rico era confessional. Acolhia as verdades essenciais do Cristianismo con- forme definidas pelos grandes concilios ecuménicos da Igreja. Além disso, os evangélicos também compartilhavam uma heranga comum nos “solas” da Re- forma Protestante do século16. Hoje, aluz da Reforma ja foi sensivelmente obscurecida. A conseqtiéncia foi a palavra evangélico se tornar tao abrangente a ponto de perder o sentido. Enfrentamos o perigo de perder a unidade que levou séculos para ser alcangada. Por causa dessa crise e por causa do nosso amor a Cristo, seu evangelho e sua igreja, nds procuramos afirmar novamente nosso compromisso com as verdades centrais da Reforma e do evangelicalismo histérico. Nos afirmamos essas verda- des e nao pelo seu papel em nossas tradi¢Ses, mas porque cremos que sio centrais paraa Biblia. 12 REFORMA HOJE Sola Scriptura: A Erosio da Autoridade S6 a Escritura é a regra inerrante da vida da igreja, mas a igreja evangélica atual fez separagao entre a Escritura e sua fungao oficial. Na pratica, a igreja é guiada, por vezes demais, pela cultura. Técnicas terapéuticas, estratégias de marketing, e 0 ritmo do mundo do entretenimento muitas vezes tém mais voz naquilo quea igreja quer, em como funciona, e no que oferece, do que a Palavra de Deus. Os pastores negligenciam a supervisao do culto, que Ihes compete, inclusive 0 contetido doutrindrio da musica. A medida que a autoridade biblica foi abandonada na pratica, que suas verdades se enfraqueceram na consciéncia crista, e que suas doutrinas perderam sua proeminéncia, a igreja foi cada vez mais esvaziada de sua integridade, autoridade moral e direcionamento. Em lugar de adaptar a fé crista para satisfazer as necessidades sentidas dos consumidores, devemos proclamar a Lei como medida unica da justiga verda- deira, e 0 evangelho como a tinica proclamacdo da verdade salvadora. A verda- de biblica é indispensavel para a compreensiio, o desvelo e a disciplina da igreja. A Escritura deve nos levar além de nossas necessidades percebidas para nossas necessidades reais, e libertar-nos do habito de nos enxergar por meio das imagens sedutoras, clichés, promessas e prioridades da cultura massificada. E36 a luz da verdade de Deus que nés nos entendemos corretamente e abrimos os olhos para a provisdo de Deus para nossa necessidade. A Biblia, portanto, pre- cisa ser ensinada e pregada na igreja. Os sermées precisam ser exposi¢des da Biblia e de seus ensinos, nao a expresso de opinides ou idéias da época. Nao devemos aceitar menos do que aquilo que Deus nos tem dado. A obra do Espirito Santo na experiéncia pessoal ndo pode ser desvinculada da Escritura. O Espirito no fala em formas que independem da Escritura. A parte da Escritura nunca teriamos conhecido a graga de Deus em Cristo. A Pala- vra biblica, e n&o a experiéncia espiritual, é 0 teste da verdade. Tese 1: Sola Scriptura Reafirmamos a Escritura inerrante como fonte tnica de revelagao divina escrita, wnica para constranger a consciéncia. A Biblia sozinha ensina tudo que é neces- sario para nossa salvagao do pecado, e é 0 padrao pelo qual todo comporta- mento cristo deve ser avaliado. A DECLARAGAO DE CAMBRIDGE 13 Negamos que qualquer credo, concilio ou individuo possa constranger a consciéncia de um crente, que o Espirito Santo fale independentemente de, ou contrariando, o que esta exposto na Biblia, ou que a experiéncia espiritual pesso- al possa ser veiculo de revelacao. Solus Christus: A Erosao da Fé Centrada em Cristo A medida que a fé evangélica se secularizou, seus interesses se confundiram com os da cultura. O resultado é uma perda de valores absolutos, um individua- lismo permissivo, a substituigéo da santidade pela integridade, do arrependimen- to pela recuperagao, da verdade pela intuig&o, da fé pelo sentimento, da provi- déncia pelo acaso e da esperanga duradoura pela gratificagao imediata. Cristo e sua cruz se deslocaram do centro de nossa visio. Tese 2: Solus Christus Reafirmamos que nossa salvagao é realizada unicamente pela obra mediatoria do Cristo histérico. Sua vida sem pecado e sua expiag&o por si sé so suficientes para nossa justificagdo e reconciliagao com o Pai. Negamos que 0 evangelho esteja sendo pregado se a obra substitutiva de Cristo nao estiver sendo declarada e a fé em Cristo e sua obra néo estiver sendo invocada. Sola Gratia: A Erosio do Evangelho Aconfianga desmerecida na capacidade humana é um produto da natureza humana decaida. Esta confianga falsa enche hoje o mundo evang¢lico — desde o evangelho da auto-estima até o evangelho da saiide e prosperidade, desde aque- les que ja transformaram o evangelho num produto vendavel e os pecadores em consumidores até aqueles que tratam a fé crist&i como verdadeira simplesmente porque funciona. Isso faz calar a doutrina da justificagao, a despeito dos com- promissos oficiais de nossas igrejas. A graga de Deus em Cristo nao sé € necessaria como é a tinica causa eficaz 14 REFORMA HOJE da salvagdo. Confessamos que os seres humanos nascem espiritualmente mortos enem mesmo so capazes de cooperar com a graga regeneradora. Tese 3: Sola Gratia Reafirmamos que na salvag&o somos resgatados da ira de Deus unicamente pela sua graga. A obra sobrenatural do Espirito Santo é que nos leva a Cristo, soltando-nos de nossa servidao ao pecado ¢ erguendo-nos da morte espiritual 4 vida espiritual. Negamos quea salvagao seja em qualquer sentido obra humana. Os méto- dos, técnicas ou estratégias humanas por si s6 nao podem realizar essa transfor- magao. A fé nao é produzida pela nossa natureza ndo-regenerada. Sola Fide: A Erosio do Artigo Primordial A justificagao é somente pela graga somente por intermédio da fé somente por causa de Cristo, Este é 0 artigo pelo qual a igreja se sustenta ou cai. Eum artigo muitas vezes ignorado, distorcido, ou por vezes até negado por lideres, estudiosos e pastores que professam ser evangélicos. Embora a natureza huma- na decaida sempre tenha recuado de professar sua necessidade da justi¢a impu- tada de Cristo, a modernidade alimenta as chamas desse descontentamento com oevangelho biblico. Jé permitimos que esse descontentamento dite a natureza de nosso ministério e o contetido de nossa pregagao. Muitas pessoas ligadas ao movimento do crescimento da igreja acreditam que um entendimento socioldgico daqueles que vém assistir aos cultos ¢ tao im- portante para o éxito do evangelho como o é a verdade biblica proclamada. Como resultado, as convicges teoldgicas freqiientemente desaparecem, divor- ciadas do trabalho do ministério. A orientago publicitaria de marketing em muitas igrejas leva isso mais adiante, apagando a distingo entre a Palavra biblicae o mundo, roubando da cruz de Cristo a sua ofensa e reduzindo a fé crist4 aos principios e métodos que oferecem sucesso as empresas seculares. Embora possam crer na teologia da cruz, esses movimentos na verdade esto esvaziando-a de seu contetido. Nao existe evangelho a nao ser o da subs- tituigdo de Cristo em nosso lugar, pela qual Deus lhe imputou 0 nosso pecado e A DECLARAGAO DE CAMBRIDGE 15 nos imputou a sua justi¢a. Por ele ter levado sobre si a punigdo de nossa culpa, nds agora andamos na sua graga como aqueles que sao para sempre perdoados, aceitos e adotados como filhos de Deus. Nao ha base para nossa aceitagao diante de Deus a nao ser na obra salvifica de Cristo; a base néio é nosso patrio- tismo, devogiio a igreja, ou probidade moral. O evangelho declara o que Deus fez por nds em Cristo. Nao é sobre o que nés podemos fazer para alcancar Deus. Tese 4: Sola Fide Reafirmamos que a justificagdo é somente pela graga somente por intermédio da fé somente por causa de Cristo. Na justificagdo a retidao de Cristo nos é imputada como 0 tnico meio possivel de satisfazer a perfeita justiga de Deus. Negamos que a justificacdo se baseie em qualquer mérito que em nds possa ser achado, ou com base numa infusio da justiga de Cristo em nds; ou que uma instituig&o que reivindique ser igreja mas que negue ou condene sola fide possa ser reconhecida como igreja legitima. Soli Deo Gloria: A Erosio do Culto Centrado em Deus Onde quer que, na igreja, se tenha perdido a autoridade da Biblia, onde Cristo tenha sido colocado de lado, o evangelho tenha sido distorcido oua fé pervertida, sempre foi por uma mesma raz4o. Nossos interesses substituiram os de Deus € nés estamos fazendo o trabalho dele a nosso modo. A perda da centralidade de Deus na vida da igreja de hoje é comum e lamentavel. E essa perda que nos permite transformar o culto em entretenimento, a pregagao do evangelho em marketing, o crer em técnica, o ser bom em sentir-nos bem ea fidelidade em ser bem-sucedido. Como resultado, Deus, Cristo ¢ a Biblia vem significando muito pouco para nés e tém um peso irrelevante sobre nos. Deus no existe para satisfazer as ambigdes humanas, os desejos, os apeti- tes de consumo, ou nossos interesses espirituais particulares. Precisamos nos focalizar em Deus em nossa adoragao, endo em satisfazer nossas proprias ne- cessidades. Deus é soberano no culto, néo nés. Nossa preocupagdo precisa estar no reino de Deus, nfo em nossos préprios impérios, popularidade ou éxito. 16 REFORMA HOIE Tese 5: Soli Deo Gloria Reafirmamos que, como a salvacio é de Deus e realizada por Deus, ela é para agloria de Deus e devemos glorificd-lo sempre. Devemos viver nossa vida intei- raperante a face de Deus, sob a autoridade de Deus, e para sua gléria somente. Negamos que possamos apropriadamente glorificar a Deus se nosso culto for confundido com entretenimento, se negligenciarmos ou a Lei ouo Evangelho em nossa pregacao, ou se permitirmos que o aperfeigoamento proprio, a auto- estima e a auto-realizagao se tornem op¢ées alternativas ao evangelho. Um Chamado ao Arrependimento e 4 Reforma A fidelidade da igreja evangélica no passado contrasta fortemente com sua infidelidade no presente. No principio deste mesmo século, as igrejas evangéli- cas sustentavam um empreendimento missionario admiravel e edificaram muitas instituigdes religiosas para servir a causa da verdade biblica e do reino de Cristo. Foi uma época em que o comportamento e as expectativas cristas diferiam sen- sivelmente daquelas encontradas na cultura. Hoje raramente diferem. O mundo evangélico de hoje esta perdendo sua fidelidade biblica, sua bissola moral e seu zelo missionario. Arrependemo-nos de nosso mundanismo. Fomos influenciados pelos “evan- gelhos” de nossa cultura secular, que nao sao evangelhos. Enfraquecemos a igre- ja pela nossa propria falta de arrependimento sério, tornamo-nos cegos aos pe- cados em nés mesmos que vemos to claramente em outras pessoas, e é indesculpavel nosso erro de nao falar as pessoas adequadamente sobre a obra salvadora de Deus em Jesus Cristo. Também apelamos sinceramente a outros evangélicos professos que se te- nham desviado da Palavra de Deus nos assuntos discutidos nesta declaragao. Incluimos aqueles que declaram haver esperanga de vida eterna sem fé explicita em Jesus Cristo, os que asseveram que quem rejeita a Cristo nesta vida sera aniquilado em lugar de suportar 0 juizo justo de Deus pelo sofrimento eterno eos que dizem que os evangélicos e catélicos romanos so um em Jesus Cristo, mes- mo quando a doutrina biblica da justificagao nao é crida. AAlianga de Evangélicos Confessionais pede que todos os crentes déem ‘A DécLARACAO DE CAMBRIDGE 7 consideragdo a implementagao desta declaracao no culto, ministério, politica, vida e evangelismo da igreja. Em nome de Cristo. Amém, Alianga de Evangélicos Confessionais Cambridge, Massachusetts 20 de abril de 1996 Colaboradores James Montgomery Boice Pastor titular, Décima Igreja Presbiteriana, Filadélfia, Pensilvania. Ervin S. Duggan Presidente e Diretor Executivo, Servi¢o Publico de Radiocomunicagéio, Washing- ton, D.C. Sinclair B. Ferguson Professor de Teologia, Seminario Teolégico de Westminster, Filadélfia, Pensilvania. W. Robert Godfrey Presidente e professor de Teologia, Seminario Teolégico de Westminster, Es- condido, California. Michael S. Horton Presidente, Cristéios Unidos para Reforma, Anaheim, California. R. Albert Mohler Jr, Reitor, Seminario Teolégico Batista do Sul, Louisville, Kentucky. Gene Edward Veith Defio da Faculdade de Artes e Ciéncias, Concordia University, Mequon, Wisconsin. David F. Wells Professor de Teologia com Distingao, Seminario Tealégico Gordon-Conwell, South Hamilton, Massachusetts. Convocamos a igreja, em meio a nossa cultura moribunda, para que se arrependa do seu mundanismo, para que recupere e confesse a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores, e para que veja essa verdade incorporada na doutrina, no culto e na vida. 1 Nossa Cultura Moribunda David F. Wells O que chama a aten¢ao quanto a nossa cultura de hoje é que sua corrup¢ao nao esta simplesmente nas bordas. Nao se encontra simplesmente entre a elite cultural, a Nova Classe que se posta as entradas de nossas instituigdes nacionais para barrar a entrada daqueles cujos pontos de vista séio julgados intoleraveis. N&o se encontra simplesmente entre os academicistas pos-modernos preocupa- dos em derrubar todo sentido e principio moral, nem entre as gangues violentas de rua, nem entre os roqueiros desbocados que cospem obscenidades e violén- cia, nem entre os que mercadejam pornografia, nem nas revelagdes grotescas e desavergonhadas de assuntos profundamente pessoais que siio ventilados em entrevistas de televistio. O mais marcante ¢ que essa corrup¢ao é generalizada. Nao se localiza neste ou naquele recanto de deprava¢do, mas se alastra como densa neblina por toda a nossa sociedade. E espalhada até mesmo por aquelas pessoas que sao inécuas, comuns, magantes, pouco inteligentes, e nao mera- mente pelos fogosos e belicosos, os subversivos e anti-sociais. “Para onde quer que se olhe”, escreve Robert Bork, “as virtudes tradicionais desta cultura esto sendo perdidas, seus vicios multiplicados, seus valores depreciados—em resu- mo, a propria cultura esta se desfazendo.”' E 0 publico americano aparentemen- 24 REFORMA HOJE te concorda com 0 diagnéstico. A maioria esmagadora, noventa por cento, acre- dita que a América esta descambando cada vez mais para o abismo num “declinio moral”. A Maioria Moral Este esfacelamento de nossa sociedade é logo compreendido quando se verifi- cam algumas estatisticas que mostram a presenga de patologias operantes pro- fundas e destrutivas. Desde 1960 a populagao aumentou 41 por cento enquanto os crimes violentos aumentaram 560 por cento.’ O Departamento de Justiga da América projeta que oito entre cada dez pessoas serdo vitimas de crime violento pelo menos uma vez em sua vida. E a incubadora mais atuante para essa violén- cia esta no grupo dos que tém de dez a dezessete anos, onde o indice dos perpetradores de crimes violentos cresceu quatrocentos por cento desde 1960. A partir de 1960 a ilegitimidade aumentou quatrocentos por cento.3 Em 1990, 65,2 por cento das criangas negras nasceram de mies solteiras. E desde 0 caso Roe v. Wade, que legalizou 0 aborto em 1973, estima-se a morte de 28 milhdes de criangas que nao nasceram. Desde 1960 0 indice de suicidios de adolescen- tes subiu mais de duzentos por cento, tornando-o a terceira maior causa de mor- te entre esses jovens.’ Desde 1960 0 indice de divércios aumentou duzentos por cento; em conseqiiéncia, menos de sessenta por cento das criangas mora com os dois pais bioldgicos. E ao mesmo tempo que se gasta mais do dobro em délares estaveis nas escolas puiblicas desde 1960, os resultados nos exames SAT (Testes de Aptidao Académica) acusaram queda de 75 pontos em média. O énus de impostos federais sobre familias que tém filhos agora é de 24 por cento de sua renda, enquanto em 1960, quando as criangas iam melhor na escola e na socie- dade, o governo federal s6 pedia doze por cento da renda familiar.’ Esses fatos fazem com que diminua a esperanca de podermos simplesmente comprar a solu- go de nosso problema com gastos puiblicos cada vez maiores. Essas sao, entretanto, as estatisticas que dio 0 retrato vivido. Notaveis tam- bém, talvez de maneira que interesse mais, s&o as que medem assuntos mais particulares, tais como nossas intengdes morais, quest6es que nem sempre sao assuntos de interesse da lei. Os americanos de hoje, dizem James Patterson e Peter Kim, “acham-se solitarios de forma desconhecida por qualquer geragdo anterior”.° Esto solitéri- Nossa Cuttura Moripunpa 25 0s, ndo menos, porque est&o sem qualquer bussola moral objetiva. “Os persona- gens religiosos e as Escrituras que nos deram regras durante tantos séculos, o sistema politico que nos concedeu as leis, todos perderam seu sentido em nossa imaginag&o moral.” Enquanto a grande maioria dos cidadaos acredita que obe- dece aos Dez Mandamentos, sé treze por cento consideram que cada um desses mandamentos tem validade moral. Nao surpreende saber que 74 por cento di- zem que poderao roubar sem sentir dor na consciéncia, 64 por cento dizem que mentir&o se houver vantagem, 53 por cento dizem que, se tiverem oportunidade, cometerao adultério, 41 por cento dizem que pretendem usar drogas recreativas, €30 por cento dizem que irao falsificar no imposto. Talvezo indicador mais claro do desaparecimento de uma textura moral na sociedade seja o desaparecimento da vergonha. Enquanto 86 por cento admitem que mentem com regularidade a seus pais, 75 aum amigo, 73 a um irmao ou irmé, e 73 por cento ao namorado, 86 11 por cento registram vergonha significativa a esse respeito. Enquanto 74 por cento roubaro sem sentirem remorso, somente 9 por cento expressam algum grau de vergonha. Enquanto a pornografia cresceu, tornando-se uma industria de 21 bilhdes de délares que responde pela quarta parte dos videos alugados por locadoras em lojas, hotéis e em TV a cabo, sé 2 por cento expressam sentimento de culpa por assisti-los.* E nao surpreende que no centro desse escorrego para orelativismo moral esteja o desaparecimento de Deus. S6 17 por cento definem a pecado como violacao da vontade de Deus. A area moral dominada antigamente por um conjunto de crengase virtudes sobre as quais havia amplo consentimento publico ja nao existe mais. Sem duvi- da existem varias causas para isso. Além de tudo, as ondas macigas de imigran- tes, tanto legalizados como no, mudaram o pais neste século. Em 1990 0 Censo descobriu na América trezentas ragas, seiscentas tribos de indios ¢ setenta dife- rentes grupos hispAnicos. A medida que se expandiu a diversidade social, a uni- dade nacional se enfraqueceu’ e 0 consenso sobre 0 certo ¢ 0 errado desmoro- nou. Mas foi a secularizagdo, em particular, que dizimou esse consenso, e hoje nao é sé a praca publica que deixa de ter sentido divino, mas também a consci- éncia humana. No meio da abundancia e das maravilhas tecnolégicas dos nossos dias, o que é verdadeiro e direito perdeu sua influéncia sobre nossa sociedade. Perdeu-se sua significagao, sua capacidade de dar forma a vida. Hoje, nossa esséncia moral se foi. Nao é apenas que a secularizagdo tenha marginalizado a Deus, relegando-o as bordas externas de nossa vida publica, de onde ele se torna inteiramente irrelevante, mas também que nés mesmos nfo nos entende- 26 REFORMA HOJE mos como seres morais. Em nosso universo pessoal, como no ptiblico, nao existe um centro. No nivel mais ébvio, isso 6 sugerido pelo fato de que 67 por cento dos americanos ndo acreditam em absolutos morais — isto 6, em normas morais que perduram e que sejam aplicaveis a todas as pessoas em todos os lugares em todos os tempos — e 70 por cento nao créem também que haja verdade abso- luta."° O que isso significa, entéo, é que toda a nossa sociedade é atravessada por uma falha geoldgica, nao na estrutura da terra mas moral, falha que se vé inicialmente no nivel de valores conflitantes mas que também, e ao mesmo tem- po, compreende éticas mundiais competitivas, porque uma parte de nossa soci- edade cré em absolutos e a outra nao. E como a vasta maioria de americanos nao cré em absohutos, o lider religioso Jerry Falwell foi culpado de provocagao e ousadia quando chamou seu movimento de Maioria Moral. Entre a verdadeira maioria moral de hoje nao ¢ dificil discernir motivos pa- gaos. Camille Paglia observa, com respeito a cultura pop, que ela representa “uma erupedo do nunca derrotado paganismo ocidental”.'' Sua tese, conforme a desenvolveu em Sexual Personae [Personas Sexuais], é que existem sempre numa cultura dois princfpios operantes, o Apoloniano e o Dionisiaco— um que insiste em expandir € o outro cujo trabalho é reprimir, um que desfaz a formaeo outro que exige definig&o. O que agora esta expandindo, o que ela cré que foi recuperado nos anos 60, 6 0 impulso pagao, hoje envolto naquilo que é térreo e sensual. E isso, felizmente, segundo ela diz, “esta nos liberando de todos os tabus sociais”.”? “Para mim”, continua, “o poder supremo do universo éa natureza, no Deus, cuja existéncia sé posso compreender como energia despersonalizada.”"* Desa- fiando muitos dos icones da devogao feminista, ela ent&o coloca com clareza brilhante o que significa hoje ser pag, e saiba-se que ela é muito mais represen- tativa do pensamento geral do que as criticas feministas que tanto discordam dela. A pornografia, por exemplo, ela acha boa. “Sonhos pornés e fogos eternos de desejo, sem canseiras, incapacidade, envelhecimento ou morte. O que as feministas denunciam como a humilhante acessibilidade total da mulher no pomn6 éna realidade sua elevagdo a sacerdotisa de um jardim paradisiaco pagaio, em que o corpo se tornou uma generosa arvore frutifera e onde o crescimento ea colheita sao simultaneos.” Ela acrescenta que 0 “‘lodo’ é contaminagao para o crist&o porém é humo fértil para o pagdo”."* Paglia, com toda a certeza, esta abrindo seu préprio caminho através do mundo com um tipo sedutor de gabolice, Nossa Cuntura MoriBunpa 27 mas muitas de suas posigdes, que ela corretamente chama de pagiis, so mantidas por grande mimero de pessoas. Na verdade, est&o penetrando até na igreja em formas mais brandas e disfargadas. Em 1993, por exemplo, mulheres de algumas das denominagdes mais representativas tiveram um encontro em Minneapolis sob a égide do Con- selho Mundial de Igrejas para explorar o lado sexual de Deus. Sua linguagem carregada de erotismo, que produziu grande furor, também deu provas inconfun- diveis do reaparecimento de algo que se parecia muito com os velhos ritos de fertilidade do velho baal, muito embora em roupagens modernas e forma crista.'$ E, demodo mais geral, Carl Braaten e Robert Jenson certamente tiveram razo em verificar uma influéncia neopaga no atual fascinio nas igrejas com 0 exame do eu procura de sentido religioso, um empreendimento baseado em aceitar-se quea salvacdo consiste em entrar em contato consigo mesmo. O resultado é uma f€ que nao é sobre verdade nem é unica. Além disso, ela é vazia de substancia cognitiva, e seu Cristo, divorciado da historia, tornou-se apenas um molde no qual se despeja um contetdo terapéutico moderno."* SAo essas as vestes con- tempordneas nas quais o velho paganismo agora caminha pelo mundo. O paganismo que ressurge propde um enorme desafio, que ¢ tanto cultural como eclesidstico. Neste capitulo, entretanto, meu enfoque é sobre uma peque- na parte disso. Mantenho que a perda de nosso cerne moral, que é uma das principais conseqiiéncias, esté no 4mago do esfacelamento de nossa sociedade. Seu resultado final e mais destrutivo, que agora nos atinge, é que perdemos a capacidade de discernir entre, ou mesmo de conversar significativamente sobre, o Bem eo Mal. Eembora essa queda no cinismo e no caos moral prometa mal para o futuro da vida americana, ela abre oportunidades para a fé crist& que nao haviam se apresentado dessa maneira pelo menos durante 0 século XX e, talvez, jahd um periodo maior. Obediéncia ao Inexigivel Oacordo cultural que deu forma ao nosso passado foi na realidade uma questo de virtude dura e proposital. Essa virtude estava na insisténcia entre nds de que tinhamos de preservar trés dominios da sociedade. Estendendo-se entre a lei de um lado, ea liberdade do outro, haveria um territério mediano para o cultivo do carater e a afirmacdio da verdade, uma area que seria t4o vital 4 preservagao da 28 REFORMA HOJE sociedade como a lei e a liberdade. Este acordo, para dizer a verdade, parece- nos hoje bastante antiquado e estranho depois do assalto pés-moderno contra toda virtude e todo sentido. Mas, como veremos, esse assalto jd acarretou altissimos custos. Hoje estamos experimentando a competig4o entre a lei e a liberdade pela ocupa¢ao desse territério do meio. O resultado é que os incéndias da licenciosi- dade esto sendo alimentados constantemente pelo nosso crescente relativismo moral, enquanto ao mesmo tempo o fogo tem de ser constantemente combatido pelos extintores de nosso recurso 4 lei e ao governo. Vivemos precariamente colocados no fio da navalha entre o caos e o controle, porque aquilo que eraum espa¢o aberto entre a lei e a liberdade, governado por carter e verdade, agora esta deserto, Resulta que a liberdade ¢ irrestrita ea lei fica responsabilizada por trabalho dobrado, porque deve assumir o papel do carater. Parece ser esse 0 melhor modo de entender muitas das tensdes culturais, dos disturbios e confu- ses que caracterizam nossa época. Naturalmente, toda sociedade precisa de leis bem como do peso de um sistema judicial para p6r em vigor essas leis. Em toda sociedade ha violadores flagrantes que roubam, defraudam, atacam, massacram; e a sociedade age por um célculo bastante simples. Age contra o violador para emitir-lhe uma justa punigao, para se proteger de ser mais atacada ¢ talvez para oferecer um correti- vo que contribua para reformar o malfeitor. Junto com 0 estabelecimento do direito da lei, a Constituigao também ga- tante em nossa sociedade um papel importante para a liberdade. Assegura a seus cidadaos 0 direito de estarem livres de invasao desnecessaria do Estado na vida particular bem como na vida publica. A Constitui¢do nao é tao clara quanto a definir o que estamos livres para fazer, como ao que estamos livres de temer, mas isso em si poder ser um aspecto de sua virtude inteligente. E por estarmos livres da tirania do Estado que a originalidade, a criatividade e até mesmo a crenga crist4 tem podido vicejar no pais. Estendendo-se entre a lei e a liberdade, entretanto, sempre houve esse ter- ceiro dominio. E 0 do carater, a pratica da virtude pessoal tal como a honestida- de, a decéncia, o falar a verdade, e todos as outras espécies de obrigagdes morais. E 0 da virtude publica tal como o dever civico, aresponsabilidade social, a filantropia, a articulagdo de grandes ideais e boas politicas, todas as coisas que poderiam estar incluidas na afirmagao de Paulo, de que os gentios, que ndo t¢m Nossa CuLTuRA MoRIBUNDA 29 lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei (Rm 2.14). Esse terceiro dominio é 0 que deve reger a vida na auséncia de coergiio juridica e regulamentacdo governamental. E onde a lei e asrestrigdes s4o auto-impostas. As exigéncias vém de dentro, nao de fora. Nessa area encontramos o que John Silber chamou de “obediéncia ao inexigivel”, frase do jurista inglés John Fletcher Moulton, de anos passados, que acrescentou: “A verdadeira grandeza de uma naga, sua verdadeira civilizagao, ¢ avaliada pela medida em que ela é obediente ao inexigivel. Isso mede até que ponto a nagdo confia nos seus cidadios, e essa medida testifica da maneira em que se comportam em resposta a essa con- fianga’’.” Hoje o territério do meio esté a cada dia se encolhendo mais com 0 colapso de nossa compreensao de nds mesmos como seres morais, e com a sua invasado pelos outros dois dominios. Este é o fato que levanta o mais profundo questionamento sobre a vida americana. A lei deve fazer agora 0 que a igreja, a familia, o carater pessoal, a crenga do individuo, e mesmo as expectativas cultu- rais faziam antigamente. O que vai acontecer, ent&o, se continuarmos aalimentar os incéndios de nosso individualismo amoral desmedido e tivermos de ficar ex- tinguindo esse fogo com mais ¢ mais recurso ao litigio ¢ a regulamentagao? Nos- sa sociedade ird se tornar palco de um nimero cada vez maior de colisées. Ira hospedar cada vez mais desejos frustrados e impedidos. E como resolvera isso? Devemos esperar maior caos ou maior controle no futuro? A resposta, natural- mente, dependera de como nossa liberdade, agora canalizada através de nosso individualismo, ¢ nosso sistema juridico estabelecido pela Constituigéo vao coreografar o seu balé. B claro que sé sera possivel apresentar algumas ilustra- g6es dessa dindmica, primeiro pelo lado da liberdade e depois pelo da lei. Um Canto a Mim Mesmo Hoje a liberdade é compreendida antes de tudo pelo prisma de nosso individua- lismo. O individualismo aparece em todos os matizes, mas a distingdo de Robert Bellah entre o que ¢ utilitario e o que é expressivo é uma que muitos aceitam.'* O utilitario tem a ver com os cdlculos da carreira profissional, da procura individual de se ganhar dinheiro e vantagens no trabalho. O individualismo expressivo é mais psicoldgico do que comercial. Também é um reflexo da dura competigao produzida pelo capitalismo. O reflexo toma a forma de buscar libertagao de todas as restrigdes e de encontrar, no consumo e no lazer, o consolo para os 30 REFORMA HOJE ferimentos que a alma recebeu no local de trabalho. Sao as compensagoes psi- colégicas pelas brutalidades da semana de trabalho. Fsse reflexo, ent&o, traz consigo um sentimento do direito de ser deixado em paz, de poder viver emancipado das exigéncias e expectativas dos outros, de poder ordenar a propria vida ao bel-prazer, de poder desenvolver a seu modo crengas e valores proprios, e de poder resistir a toda autoridade. Ser livre dessas maneiras, pensamos, é indispensavel para que se seja um individuo de verdade. Eaconteceu muita coisa com esse ideal entre a época em que Toqueville o des- creveu e admirou (no século 19) eo que encontramos no seu resultado operante hoje. No individualismo do século 19 a responsabilidade pessoal desempenhava um papel preponderante. Era aquela em que as pessoas pensavam por si, pro- videnciavam seu proprio sustento, nao deviam nada a ninguém, e geralmente elaboravam sua independéncia dentro de uma comunidade, por mais vaga que fosse a definigdo de algumas delas. Isso produziu a espécie de pessoa que, na linguagem de David Riesman, era “‘dirigida a partir do interior”, isto é, guiada por um giroscépio interior de carater e crenga. Era a pessoa que, como resultado disso, via como virtude possuir objetivos claros, trabalhar com afinco, viver por principios éticos, e admirar, provavelmente, as pessoas que haviam assumido sozinhas uma posi¢4o correta porém dificil, triunfando sobre a adversidade pela sua forga interior. E 0 individuo, diz Riesman, que prefere ser correto a ser pre- sidente. O individualista de hoje preferiria ser presidente a ser correto. Nao é 0 carter que define hoje a maneira como funciona o individualismo, e sim 0 eman- cipar-se de valores, da comunidade e do passado, a fim de se buscar o ganho, de uma espécie ou outra, no presente. “A liberdade dos nossos dias”, declarou um orador de turma em Harvard, “éa liberdade de nos devotarmos a quaisquer valores que nos agradem, coma mera condigao de nao acreditarmos que sejam verdadeiros.”"” Hoje n&o éa ideologia que constitui o maior perigo paraa América, mas 0 que Zbigniew Brzezinski chama de “cornuc6pia permissiva” — a abundancia sem disciplina. Seu argumento é que em seguida ao fracasso espetacular do tota- litarismo do século XX e 0 surgimento da democracia global, o lider mundial agora sao os Estados Unidos. Mas nao se sabe com certeza se 0 pais podera desempenhar suas responsabilidades, por causa de sua estrutura em decomposi- Nossa Cuntura Morrpunpa 31 ao. Brzezinski vé uma sociedade “na qual o declinio progressivo da centralidade dos critérios morais faz par com a preocupago crescente com a gratificagdo material e sensual”. Isso produz profundas correntes ocultas de hedonismo em que a gratificagao é buscada sem se levar em conta o bem da sociedade. O jogo “Banco Imobiliario” [Monopoly], criado com sucesso pela Parker Brothers e muito popular desde a crise econémica de 1929, constitui realmente uma metafora do Nosso Tempo. Cada jogador comega a partida com a mesma quantia de dinheiro ¢ entao, por uma combinagéo de sorte (pela qual ele caiem propriedades que poderé comprar), cdlculo (se deve ou nao comprar e cons- truir, assim colocando outros jogadores em perigo se cairem nessa propriedade), eazar (que faz um jogador parar na propriedade de outra pessoa), 0 jogo pros- segue até o fim com uma légica que nenhum jogador pode produzir. Comprar e vender torna-se possivel pelo fluxo de dinheiro do banco, mas isso é controlado de tal maneira que a ninguém estd assegurada a sobrevivéncia e, por fim, sé um jogador sobrevive. Aqui estéio todos os elementos da vida moderna: eis ai as leis inexoraveis do mercado, que sdo, como observa BelJah, “absolutas mas amorais”;?! eis aia calosidade impiedosae a imprevisibilidade, porque no final ha apenas um sobrevivente; aqui os jogadores tentam conseguir 0 mais que pude- rem, como na vida real, porque nenhum jogador, quando para na propriedade de outro, notifica o fato se o outro jogador nao notar; e aqui, como tantas vezes acontece na vida real, nao ha espago para virtudes, para a compaixdo se alguém nao puder pagar o aluguel. Nao se tem compaix4o pelos que estdo prestes a perder tudo, nao ha espago para ninguém a nao ser a propria pessoa. Isso é a vida moderna. A autonomia para se determinar os valores proprios, entretanto, ¢ justamen- te 0 motivo pelo qual os individualistas contemporaneos n&o acham elos com o mundo, Como diz Riesman, eles est&o “ignorando as quest6es do relacionamen- to com os outros e do compromisso de guardar intactas as estruturas precarias da civilizagao” ”, e é em parte por isso que os terapeutas ja assumiram um lugar tGo grande em nossa cultura. O que procuram fazer é capacitar 0 eu a fazer os ajustamentos necessarios para encontrar sentido na vida e conexées com ela; mas operam, muitas vezes, sob a linguagem de aperfeigoar o eu, capacitd-lo a transcender a si mesmo, em vez de agir baseando-se em limitar 0 eu pela obriga- ao moral, servigo, sacrificio préprio e compromisso com os outros. O terapeuta, em outras palavras, est4 olhando a vida de maneiras que sao, como argumenta Bellah, “geralmente hostis para com as idéias mais antigas de ordem moral”. Por 32 REFORMA HOJE que isso? A resposta, naturalmente, é que a técnica suplantou, substituiu o dis- curso moral, e a manipulagao do eu tornou-se a nova ordem religiosa (secular). Apsicologiaé religiao. Eno ambito publico, o que isto significa é que a personalidade veio a suplan- tar em importancia o carater. Como individuos nés vendemos nossas personali- dades no local de trabalho como commodities, como produtos que est&o desvinculados da vida interior na qual surgiram. O mesmo acontece com a tele- visdo. Afinal, quem conhece quais os vicios e defeitos de carater, quais as cren- gas e os valores que estao por tras da imagem que vemos na tela de uma pessoa charmosa, 4 vontade, engracada? Conhecemos essa pessoa s6 como charmosa, a vontade, engragada, n&io como ele ouela pode até ser — cobigosa, promiscua, conivente e enganadora.”* Hé um mercado de touro hoje em busca de boa ima- gem e personalidade como commodities separaveis da pessoa. E dificil um exemplo mais claro desse desengajamento entre a personalidade e ocarater do que aquele que se nota na maneira em que as celebridades subs- titufram os herdéis em nossa cultura e os vildes desapareceram. Um herdi era aquele que encarnava 0 que as pessoas prezavam, mas 0 fazia de maneira a atrair outras pessoas a quererem imitd-lo. Umacelebridade talvez queira também ser imitada, mas a base da emulag4o mudou. Uma celebridade em geral nao encarna nada e costuma ser conhecida somente por ser conhecida. A fama, em nosso mundo de imagens e manipulagaio, pode ser manufaturada em cima de pouco ou nenhum respaldo de desempenho, mas nao pode ser imitada como pode a virtu- de que o heréi encama. Na comparagdo um tanto causticante de Daniel Boorstin: “O herdi se distinguia pelo seu feito; a celebridade pela sua imagem ou marca. O herdi se criou, acelebridade é criada pela midia. O herdi era um grande homem; acelebridade é um grande nome”. E a nossa cultura comercial que produza celebridade, mas era a cultura moral que, na maioria das vezes, elevava o heréi. A medida que as celebridades substituem os herdis, a imagem substitui o cardter, acultura comercial substitui aquilo que é moral, e ficamos com um individualismo que, simplesmente, inflama-se de ilegalidade, porque o carater moral n&o é seu interesse central. Para dizer a verdade, no é, em absoluto, um interesse. Em 1995 Calvin Klein testou o sentimento publico levando a midia algumas propagandas que veiculavam adolescentes em poses sexualmente provocantes. O pablico — ou pelo menos a parte dele que se pronunciou — nao estava muito preparado para isso, nem o Departamento de Justiga, que comegou a investigar se as leis contra pornografia infantil teriam sido violadas. As propagandas final- Nossa Cutrura MoriBuNDA 33 mente foram retiradas. Entretanto, como John Leo apontou,* essas propagan- das nfo sé estavam tomando o mesmo caminho bem trilhado de usar sexo para vender produtos, como estavam sendo dirigidas ao espirito de ilegalidade na cultura que muitos outros da drea de propaganda também vém visando. E 0 espirito que diz que nfo deve haver obstaculos a expressao de qualquer vontade do instinto, que as pessoas devem poder fazer o que quiserem, que nao deve haver restrigdes morais. Isso esta ressurgindo, nos anos 90, do radicalismo de impulsos anti-sociais e antimorais dos anos 60, o que Paglia celebra, mas agora ja bastante modificado pela influéncia Yuppie. Os primeiros usavam expresses como “Just Do It!” [Sé Faga] da Nike (em outras palavras, no pense sobre isso endo permita que ninguém o impega de fazer o que quer) e “As vezes vocé precisa quebrar as regras” da Burger King. E foram muitos os imitadores. Orum Bacardi, que se anuncia como “o gosto da noite”, segue dizendo: “Algumas pessoas adotam a noite porque entio as regras do dia nao se apli- cam”. Os sapatos Easy Spirit chegam até a agarrarem-se a esse tema, prometen- do um sapato que “se adapta a seus pés de tal forma que vocé nao tem de se adaptar a nada”. O safari de Ralph Lauren celebra o “viver sem fronteiras”; me%mo 0 firme e confidvel Merril Lynch declara que “Seu mundo nao deve co- nhecer fronteiras”; e Nieman Marcus encoraja seus clientes a relaxar porque, conforme diz, “Nao ha regras aqui”. E, portanto, esse espago moral entre a lei ea liberdade que se encolhe a cada dia, porque o que nao pode ser exigido, presume-se agora, nao deve ser questo de obediéncia. Isso, por si sé, j4 € uma receita para a profunda desor- dem social, mas seu resultado mais pernicioso, 0 que tem os efeitos mais abrangentes, é algo que dificilmente se nota. E que perdemos nossa capacidade de falar sobre o Bem ¢ 0 Mal. E uma deficiéncia que resultou de um longo processo, bastante acelerado, tanto no volume quanto na importancia, em décadas recentes. Andrew Delbanco coloca o inicio do problema muito antes, no século 19. Ele observa 0 desmembramento do cu que ocorria 4 medida que a industrializag&o dava nova forma ao pais. Perdemos o sentido do “nés” em comunidade, substituido como foi pelo solitario “eu”. A forma mais antiga do mundo em que Deus reinava sobe- rano e presidia sobre sua ordem moral fraturou-se. Para os soldados envolvidos na Guerra Civil, por exemplo, e para anagao que assistia, era questiio de sorte cega quem sobrevivia e quem morria. Orar por graca tornou-se cada vez mais constrangedor do que esperar pela sorte. O pecado, até o fim do século19, 34 REFORMA HOJE rapidamente desaparecia como crenga; € como poderia ser diferente, pergunta Delbanco: “O pecado, afinal, significa transgress&o contra Deus. Mas Deus fora substituido pelo acaso da sorte, e a sorte nao faz juizos morais.... Num contexto que seria um novo paganismo, 0 conceito do mal cafa no da ma sorte, e ‘boa sorte’ tornou-se a nova saudagaio abengoadora em lugar de ‘Deus te guarde.”””” A perda da centralidade moral, uma perda ocasionada pelo desaparecimen- to de Deus, pela substituic&o da providéncia pela pura sorte, e do propésito moral pelo auto-interesse, mudou tudo. Mudou o sentido da morte, porque os que estavam morrendo ndo estavam indo a presenga de ninguém. Mudouo sen- tido da vida, porque desaparecera aquilo que lhe dava sentido. Escrevendo ja em 1929, Walter Lippmann descreveu o “homem moderno” como tendo momentos de apreensao vazia nos quais ele descobre que a civili- zacao da qual ele faz parte deixa um gosto de pé na boca. Ele pode estar ocupado com muitas coisas, mas descobre um dia que agora no sabe mais se vale a pena fazé-las. Ele tem se preocupado muito, mas néo tem certeza mais se sabe por qué. Ele est4 envolvido em toda uma rotina de prazeres, que parecem no diverti-lo muito. Parece-lhe dificil acreditar que fazer uma certa coisa seja melhor do que fazer uma outra coisa, oumesmo melhor do que nao fazer nada.* Os americanos demoraram a perceber que, desaparecendo o velho mapa moral, eles iriam ficar, no com umaalternativa, mas sem mapaalgum. E verdade que os tedlogos neo-ortodoxos, como Reinhold Niebuhr, tentaram estancar 0 fluxo da saida do entendimento moral e introduzir um entendimento mais realista da natureza humana. Tiveram alguns momentos de sucesso, mas estes acabaram sendo passageiros. A verdadeira historia de nossos dias estava sendo contada pela marcha inexoravel do racionalismo secular que vinha destruindo tudo em seu caminho. Hoje, diz Delbanco, aos modernos restou apenas uma conclusao: “reconhecer que nenhuma histéria sobre o sentido intrinseco do mundo tem vali- dade universal”. Esta é a cruel ironia que atraimos para nds mesmos. O Iluminismo, que substituiu a revelacao de Deus pela sua prépria racionalidade, o propdsito dele pelo seu propdsito, a verdade dele pela sua verdade, as leis dele pelas suas normas, encontra-se agora atacado pela sua propria prole pés-moderna, e 0 grande destruidor é 0 proprio destruido. Num irénico reprise da vida de Sansao, os filhos desafeigoados do Iluminismo, aqueles que quiseram acompanhar os Nossa Cuttura MoripunpA 35 altivos sonhadores do movimento, agora se encontram cativos e machucados, seus olhos vazados, e em um Ultimo espasmo de rebelido abracam os pilares da propria ideologia do Iluminismo e fazem cair toda a estrutura sobre si. Mas mes- mo enquanto morrem, sabem que, num mundo governado apenas pelo capricho da sorte, esse ato final também carece de sentido. Na medida em que desapareceu nosso entendimento de nds mesmos como criaturas morais, 0 vacuo vem agora sendo preenchido por antropologias alter- nativas. Essas alternativas, contudo, nao est&o s6 no centro de nossa crise de cultura; estio também no centro de nossa crise de identidade. Se nio somos seres morais, que se colocam na presenga de Deus e perante sua Lei, quem somos? “Eu sou meus genes,” respondemos; “Eu sou minha orientagao sexual”; “Eu sou o meu passado”; “Sou minha auto-imagem”; “Sou minha personalida- de”; “Sou minhas experiéncias”; “Sou o que tenho”; “Sou o que como”, “Sou o que fago”, “Sou quem eu conhego”. Essa bravata ecoa com seu préprio vazio. Sumiu o pecado, mas ¢ evidente que esta jogada dos dados nao ganhou 0 jogo. N&o sé nossos dilemas pessoais se multiplicam geometricamente, como também nossa cultura se esfacela. Quanto mais ateng&o damos as nossas ilus6es morais e espirituais, mais temos de combater as conseqiiéncias buscando a lei e 0 litigio, e mais temos de achar paliativos para nosso proprio tédio, cinismo e desespero. Vocé Esta Sendo Vigiado Se nossa liberdade nos conduziu ao beco sem saida da licenciosidade e do niilismo, éa lei que agora nos deve socorrer. Desde os anos 60, diz Gregory Sisk, “uma vis&io do judiciario federal como tutor moral nomeado para uma sociedade recal- citrante veio dominar a classe juridica americana, e cada vez mais os tribunais da lei”. Assim é que ajustiga civil tem assumido como dever elevar certos valores e descontar outros, um caso ébvio sendo a criagdo de um direito legal, ea con- cessao de permissao moral, para o aborto, no caso Roe v. Wade. E depois, no caso Paternidade Planejada v. Casey, 1992, trés dos juizes da Corte Suprema sugeriram que a aceitacaio desse principio moral era obrigatéria como questao de boa cidadania. A Constituig&o pretendeu que os foros judiciais fornecessem uma pequena parte da moralidade social, mas no mundo enfraquecido da “obe- diéncia ao inexigivel”, os tribunais agora ameagam fornecer a tinica moralidade existente, e um pouco disso, pelo menos, tornou-se questionavel. 36 REFORMA HOJE O poder judiciario, de fato, tem mexido com a vida da nossa sociedade através de todaa gama de assuntos, desde os mais insignificantes até os de maior peso. Em fevereiro de 1996 —para exemplificar 0 mais insignificante— Antonina Pevnev, mae de uma menina de 3 anos, recebeu uma ordem de restrig&o do Juiz Charles Spurlock do Tribunal Superior de Suffolk em Boston contra o filho de trés anos de Margaret Inge. Aparentemente as duas criancas tinham tido uma pequena briga na caixa de areia e 0 juiz teve de usar as prerrogativas da lei para salvaguardar a paz no playground do Parque de Rio Charles.*! Sera romantico supor que eram superiores as providéncias sociais dos primeiros tempos para resolver tais disputas? No caso, as mes teriam tentado algo, constrangidas por algum senso de decoro e obrigago moral. Se falhassem, haveria os pais, ent&o os vizinhos, ent&o a vizinhanga, com os respectivos pastores. O carater, o costu- me, o bom nome, um sentimento de obrigagao social, todos teriam atuado para dissolver 0 conflito e evitar que fosse mais adiante. Hoje, entretanto, o que todos esses faziam antigamente, o Juiz Spurlock se viu obrigado a fazer por meio do tribunal. Era inevitavel que a cultura que mantém 70 por cento dos advogados do mundo fosse aquela que tentaria converter todo desejo em um direito. E os tribu- nais certamente tém incentivado esse processo ao estender as garantias constitu- cionais da liberdade do uso da palavra para incluir o direito a nao ser revistado e apreendido, o direito de livre reprodug&o e, um tanto mais esporadicamente, os direitos de todos a igual instrugac e igual oportunidade. O grande beneficio de um direito é que, uma vez estabelecido por lei, ele nao pode ser revertido. Um direito colocado na Constituigao é um direito que o governo se compromete a defender, sejam quais forem os custos financeiros e sociais ou 0 volume da opo- si¢do a quem detém esse direito. Ter direitos, portanto, é coisa eminentemente desejavel, especialmente numa cultura que esta a caminho da licenciosidade e ilegalidade geral, porque um direito oferece uma defesa social que antigamente o cardter, sem a obrigatoriedade de lei, fornecia a terceiros como questio de cons- ciéncia. O multiculturalismo dos anos 60 foi inicialmente uma expresso do Movi- mento de Direitos Civis. Buscava permitir visibilidade 4s mulheres e minorias étnicas que haviam sido excluidas das posigdes de poder e influéncia na socieda- de. Buscava acatar diferengas culturais e ver nessas diferengas 0 que haveria de enriquecer, em vez de empobrecer, 0 pais. Era um argumento que alguns avanga- vam a partir de premissas cristds e outros, dos principios de liberdade, igualdade Nossa Cuttura MoriBuNDA 37 ejustiga para todos veiculados pelo Iluminismo. O multiculturalism hoje, entre- tanto, perdeu em grande parte seus ideais, dado nosso contexto pés-moderno, e degenerou rapidamente numa busca de poder por parte do grupo. O que acom- panha nao é a plena aceitagdo de outras culturas mas uma critica feia paracom todos aqueles com os quais 0 grupo esta em desacordo. A ironia é que multi- culturalismo hoje nada tem a ver com cultura; antes, refere-se a politica e poder eaquilo que Richard Bernstein chama de “a ditadura da virtude”. Em 1995, a Universidade de Massachusetts, seguindo 0 exemplo de varias outras universidades,® propds uma politica sobre molestamento que ia bem além das salvaguardas constitucionais de cidadania, Essa politica tinha o objetivo de coibir certos comentarios com respeito a mulheres e minorias étnicas, estudantes gravidas, os que tinham o virus HIV, os que eram gay, praticas culturais estudan- tis, a lingua que falavam e sua afiliag4o politica. Aparentemente, os estudantes ficariam vulneraveis a sangao da universidade se expressassem juizos sobre se era moral o homossexualismo, ou se mostrassem oposi¢éo vigorosa demais ao ponto de vista politico de alguém, ou se zombassem quando ouviam que alguém estava gravida. A lei proposta tornou-se necessaria porque j4 nao existia a tole- rAncia no campus. Quando 0 principio moral se quebra, é claro, nenhum outro recurso sobra senfo o da lei. Mas sera que no temos de nos perguntar se colo- car todos os nossos ovos na cesta da restrigdo pela lei néo é pior do que o problema que isso deveria resolver? Contudo, que alternativa existe? A alternativa, infelizmente, é em geral a eva- s&o da responsabilidade moral. Pois o reverso desse multiculturalismo é 0 cultivo da posicéio de vitima. Essa ¢é a confluéneia das correntes fortes do individualismo, da estrutura terapéutica com que pensamos, e da perda da tessitura moral da vida. “O etos da vitimizagao,” escreve Charles Sykes, “tem uma capacidade infinita de se desculpar de sua culpa, lavando a responsabilidade numa torrente de explicagdes —racismo, sexismo, pais terriveis, vicio e doenga—e também de projetar culpa sobre os outros.” ™ Esta “despersonalizagao da culpa” é sinto- ma certo da decomposi¢do do nosso carter e da perda de nossa antiga visao moral. Hoje nos posicionamos no turbulento ponto de encontro dessas correntes rodopiantes e torrenciais. De um lado, a perda de viso moral ameaga desfazer a cultura em toda sua extensao; do outro lado vem crescendo o recurso a lei a fim de conter uma sociedade cada vez mais descosturada. Essa competigdo entre a licenciosidade e a lei, na auséncia de uma fibra moral recuperada, s6 pode se 38 REFORMA HOJE tornar mais estridente, mais frustrante, mais culturalmente desestabilizadora, mais prejudicial e mais perigosa, mesmo por oferecer nao sé oportunidades como tentagSes para a fé crista. As tentagGes estarao ali se deixarmos de entender claramente a dinamica. Por ser tao dura a tarefa de edificar cardter, tio assustadora a recuperagao desse terceiro dominio, fica quase irresistivel o recurso a lei e a coerg&o que o triunfo politico poderia permitir. Nenhuma agenda polftica, entretanto, pode restaurar 0 que mais foi perdido, essa “obediéncia ao inexigfvel”. Podemos aprovar leis con- tra o assassinio, mas no contra 0 édio; contra o adultério, mas no contra a cobiga; contra a fraude, mas nao contra a mentira. Podemos condenar a violén- cia, mas nao podemos ordenar a bondade. Podemos condenar a intolerancia, mas no podemos requerer a cortesia. E este o dilema cultural que agora dé impulso ao debate entre democratas e republicanos, uns querendo mais lei ¢ os outros mais liberdade. Precisamos di- zer, com todo 0 respeito, que ambos os partidos esto tanto certos quanto erra- dos. Os republicanos esto certos em que a regulamentacao governamental ¢ pesada e as vezes ineficaz, mas eles tardam em ver as conseqlléncias de ter menos lei numa cultura cujo carater moral esta gasto, em que a “‘obediéncia ao inexigivel” ¢ indiferente. Os democratas esto certos em temer 0 que ira aconte- cer nesse tipo de sociedade com a retirada da mio pesada da lei, mas raramente enxergam que a lei néo conseguira restaurar 0 que ja perdemos, que ¢ nosso senso de “obediéncia ao inexigivel”. Os republicanos pedem mais liberdade, os democratas mais lei, mas a liberdade na auséncia da virtude publica € tao desas- trosa quanto mais lei por causa da auséncia da virtude publica. Se os dias atuais sao os piores dos tempos, sfo também os melhores dos tempos, porque um momento de oportunidade sem precedentes esta se abrindo diante da igreja. E, portanto, de cortar 0 corag4o, reconhecer que, no exato momento em que nossa cultura esta se langando em trevas nunca vistas, no exato momento em que esta mais vulnerdvel, e no qual o solo esta mais preparado para oevangelho, a igreja evangélica perdeu a coragem. No exato momento em que é preciso haver ousadia e coragem, o que vemos, vezes demais, é timidez e covar- dia, Em vez de enfrentar a modernidade, a igreja se rende a ela. O evangelho que devemos estar pregando é aquele que oferece uma alternativa as nossas trevas culturais; aigreja esta pregando um evangelho que, com freqiiéncia, reflete essa escuridao cultural. Como a linguagem terapéutica tem muitas vezes substituido aquilo que é moral e a busca da integridade tem tomado o lugar da santidade, 0 Nossa Cuttura Moripunpa 39 pecado tornou-se uma disfungaio e a salvacao tornou-se uma recuperagaio. E um evangelho mais sobre auto-suficiéncia do que sobre a suficiéncia singular de Cristo, e anda de maos dadas com igrejas que prezam o sucesso de marketing acima da autenticidade moral e espiritual. A perda de categorias morais em nossa sociedade também transformou a busca por aquilo que é espiritual fora da igreja. Naquilo que muitos vem como uma virada surpreendente, nosso mundo tao profundamente secularizado esta agora também inundado de espiritualidades de quase toda espécie concebivel. O que tantos tém em comum, contudo, é que esto oferecendo beneficios espiritu- ais com pouca ou nenhuma prestagao de contas. A religiéo da moda dos anos 90 se deixa programar de acordo com cada personalidade. D4, endo toma; satisfaz, a necessidades interiores mas nunca pede arrependimento; oferece ritos e nao pede culto. Oferece um senso de Outra Coisa Mais na vida mas nunca exige que nos coloquemos perante este Outro. Este desejo ardente daquilo que ¢ espiritual dentro de nosso deserto secular certamente testemunha 0 fato de que, como Agostinho expressou, fomos forma- dos por Deus ¢ nosso coragdo esta desassossegado enquanto nao acha nele 0 seu repouso. Nem mesmo a torrente da modernidade, com todas as suas ansie- “dades, cinismo e confusdo moral, conseguiu apagar 0 que somos em virtude da nossa criagéio. A verdade é que os campos nunca estiveram tio prontos para a ceifa. Nos- sa cultura nunca esteve mais madura para ouvir uma Palavra sobre um Deus suficientemente grande para proporcionar sentido baseado em seu préprio caré- ter transcendente e perdao que é objetivo por causa da cruz de Cristo. Sem saber por qué, muitos hoje sofrem anelando ouvir tais coisas. Nao é hora deo mundo evangélico perder a coragem. Ehorade ‘tecuperar uma fé suficientemente forte e viril para oferecer a nossa cultura a alternativa que ela precisa ouvir. 2 A Igreja Viva Ervin S. Duggan T. calamitoso é 0 estado da cultura americana, caminhando relaxadamente em diregdo ao fim do século, que mesmo a descrigéo mais ligubre de sua deca- déncia moral, intelectual e espiritual talvez seja incapaz de contar toda a realida- de. As vias urbanas e a midia popular explodem de violéncia. O consumo de Alcool por menores eo uso epidémico de drogas abarrotam de casos as agéncias da lei eos centros de recuperagao. Adolescentes gravidas aumentam as epide- mias de abortos, ilegitimidade e abuso infantil. Doencas sexualmente transmissiveis so comuns agora entre as classes profissionais endinheiradas e no sé entre os pobres. As pessoas de baixa renda sao incentivadas pelos préprios érgaos do governo a desperdigar seu ganho suado (ou o salario-desemprego) em loterias e jogos organizados pelo estado. Um médico que pratica a cutandsia e seus advo- gados persuadem juris sucessivos de que, para os pacientes deprimidos com doengas terminais, a execugdo é um tratamento tao desejavel quanto os cuida- dos de um lar de velhinhos, e que o monéxido de carbono é um agente accitavel amedicina para 0 alivio da dor. Nos colégios do pais, professores menos competentes do que seus antecessores criam uma geracdo de formados menos competentes do que os a2 REFORMA HOJE antecessores deles, enquanto fora de suas salas de aula os segurangas ¢ oficiais de policia monitoram os corredores. N&o é de se admirar que ha anos 0s estu- dantes ja estejam chegando aos campi das universidades com pontuagao mais baixa em seus testes vestibulares do que os novatos de geragGes anteriores. Antes de se formarem, muitos estudantes silo levados a crer que o papel correto da universidade nao € tanto o de fornecer ambiente para o estudo e para a refle- xdo, mas sim 0 de coloca-los no ringue para disputas de poder sobre os sexos e actnicidade. Em muitas universidades, o canon literario e humanista antigamente aceito como fonte da instrugao civilizada e humanitéria ¢ agora ridicularizado como dispositivo corrupto destinado a perpetuar a hegemonia do macho opres- sor europeu. A vida religiosa na América é igualmente caética. Uma pesquisa recente determinou 0 mais baixo nivel de freqiientadores regulares de igrejas confessionais de que se tenha conhecimento: 37 por cento, As denominagGes religiosas princi- pais, antes présperas, flertam com a apostasia, perdem membros e mais mem- bros, e descambam em diregao a bancarrota, enquanto florescem as seitas, as assembléias de bruxos ¢ a palragdo ritualista da Nova Era. A cobertura religiosa feita pela midia parece oscilar entre casos de controvérsia (aborto, orag&o em sala de aula, ordenag&o de homossexuais) ¢ relatos de corrupgao (clérigos ro- manos molestando coroinhas; evangélicos protestantes depenando seus contri- buintes, patrocinando prostitutas, ou ambos). Numa livraria, pouco tempo atras, vi um letreiro que parecia resumir a confusao espiritual da nagao: “Psicologia, Religiaioe Ocultismo.” Sera que os crentes biblicos devem se desesperar? Nada disso. O Apésto- lo Paulo enfrentava uma situagdo igual, como se pode argumentar. E meu objetivo, neste capitulo, apresentar trés argumentos: ¢ Primeiro, a cultura americana est em declinio ecaos porque se desvinculou de duas nobres tradigdes, uma religiosa, a outra secular. Segundo, muitas igrejas cristas, e muitos individuos crentes, esto res- pondendo a esse declinio e caos culturais de maneiras desastradas de um amadorismo completo. Terceiro, a situag4o apresenta aos cristéios uma oportunidade alvissareira de fazer sua obra na Terra com mais brandura e disting4o, com mais sa- bedoria e prudéncia, e com mais eficdcia, A Iressa Viva 43 A Cultura do Caos A caracteristica que define nossa cultura é 0 caos. Existem poucas regras de moral, estética ou conduta civil sobre as quais se entra em acordo, e as regras existentes so muitas vezes assunto de debate acirrado e inconclusivo. Em meio a.esse caos, talvez.a regra mais universalmente aceita seja que cada individuo tem o direito de formar suas préprias regras, e que os auto-engendrados pa- drdes de uma pessoa so tao bons quanto os de outra. Naturalmente, os torce- dores de uma autonomia pessoal tao radical nao admitem que ela produza anar- quia ou caos; preferem termos tais como “liberdade” ou “pluralismo”. Os antepassados deles que lancaram o experimento americano da demo- cracia, entretanto, certamente achariam impossivel conviver com a nogio de li- berdade pessoal irrestrita e regras auto-inventadas; os Pais Fundadores daquele tempo lamentavam a licenciosidade irrestrita da plebe. Celebravam a autodisciplina e advertiam que a liberdade individual precisava ser temperada coma virtude republicana— uma palavra cujo sentido atual denota pureza moral, mas cuja raiz. do latim antigo sugeria forca e competéncia. Nossa cultura contempordnea de caos e relativismo moral, portanto, que cada vez mais aceitamos como normal, nao é normal, se remontamos na Histéria para comparagao. A cultura do caos de hoje é um fendmeno do século XX, ligado a uma perda coletiva de fé nos valores transcendentes ea resultante perda de um vocabulario moral em comum. Quando lemos os ensaios e os discursos de nossos antepassados dos séculos 18 ¢ 19, uma das revelagdes mais surpreen- dentes é a extensio em que eles compartilhavam um vocabulario moral comum. Apesar de todos os seus debates e discérdias vigorosas, as vidas publicas e discussdes dos Fundadores eram conduzidas no contexto de uma cultura moral compartilhada a qual praticamente todos davam consentimento. Se imaginamos acultura como um rio no qual todos nadam, ou do qual todos bebem, a cultura de nossos antepassados foi criada a partir de dois grandes tributarios: a tradigao biblica judeu-cristd e a tradigo classica greco-romana. Thomas Jefferson, por exemplo, nao foi convencionalmente religioso: “Sou uma seita propria”, escreveu. Contudo, Jefferson cria claramente num Criador —um “Autor da Liberdade” — ¢ estudava o Novo Testamento com afinco no esforgo de determinar um sistema ético baseado somente nas verdadeiras pala- vras de Jesus. Benjamin Franklin também nao era convencionalmente religioso. Mas ele, também, era conhecedor da religiao biblica e mantinha uma atitude 44 REFORMA HOJE amigavel para com ela, enchendo seus escritos de referéncias biblicas. Franklin falou sem constrangimento sobre os Estados Unidos, pais infante, como sendo “o novo Israel”, por exemplo. Referéncias dos antepassados politicos a tradi¢ao classica sao igualmente comuns; a América também foi chamada de “a nova Atenas”. E 0 que impressi- ona 0 leitor moderno nao é s6 que os primeiros lfderes estavam profundamente imersos no conhecimento biblico e classico. A final, eram membros de uma elite instruida. O que chama a atengdo é que esses lideres presumiram um conheci- mento igual dessas duas grandes tradigdes por parte das pessoas mais simples as quais se dirigiam. Os dois principais oradores na dedicacdo do cemitério de Gettysburg, Abraham Lincoln eo estudioso-diplomata Edward Everett, valeram-se dos dois grandes tributarios em suas falas. E ambos parecem ter tido total confianca em que seus ouvintes — aqueles do audit6rio imediato da dedicagao e, depois, os leitores futuros — teriam também bebido da mesma fonte dupla. Como Gary Wills sugere em seu livro fascinante de 1992, Lincoln at Gettysburg [Lincoln no cemitério da Guerra Civil em Gettysburg], Lincoln pode estar certo de que, quando usoua frase “o novo nascimento da Liberdade”, suas palavras encontrariam ressondncia em uma populagao que sabia de cor a lingua- gem do novo nascimento espiritual encontrado no Evangelho de Joao. Seu Dis- curso de Gettysburg também se configurava, escreve Wills, pelo modelo classico de discursos finebres criado pelos antigos gregos. Lincoln, apesar de lenhador e caipira, era conhecedor da retérica do grande grego Péricles. Everett também recheou seu discurso de duas horas em Gettysburg coma retorica colhida dos dois grandes tributarios. Usou ritmos sonoros baseados na tradicional verso da Biblia autorizada por James I, e linguagem biblica direta- mente colhida do profeta Amés e Apéstolo Paulo. Evocou cenas da Grécia anti- ga, comparando os mortos de Gettysburg aos herdis atenienses da Batalha de Maratona, como se esperasse que os ouvintes soubessem exatamente do que ele estava falando. Dou énfase a importancia dessas duas tradigdes para uma América do pas- sado a fim de chegar a um ponto crucial: ambas as tradigdes, a religiosa e a secular, tiveram em comum uma qualidade importante. Cada uma delas aceitava anogao de valores objetivos, até absolutos; cada uma afirmava a realidade de algo chamado Verdade com letra maitiscula. A tradigao religiosa asseverava que A Iaresa VIVA 45 o Deus de Moisés era a fonte da autoridade soberana; essa tradigéio chegava a valores objetivos e 4 Verdade por meio da instrumentalidade da revelagdo divi- na. Mas os gregos também acreditavam em verdades objetivas e em absolutos; os didlogos de Plat&o mostram Sécrates e seus disc{pulos buscando 0 summum bonum e os ideais objetivos de justia, beleza e verdade, discerniveis por meio da razio e do discurso racional. Os dois tributdrios da tradig&o do mundo ocidental, em resumo, deram a nossos antepassados uma cultura morale um vocabulario moral em comum: essa cultura que em geral aceitava a nogdo de verdades e valores transcendentes; verdades que existiam quer os mortais escolhessem ou nao reconhecé-las; re- gras que tinham autoridade, quer os mortais escolhessem ou n&o obedecé-las. Mesmo Aristételes, moderado e pragmatico como era, derivou da estética e politica um conjunto de regras que acreditava ser objetivo e nao auto-engen- drado. A cultura atual ¢ o estilo atual de discurso irado porém inconclusivo, tanto moral como politico, existe, por contraste, com pouca ou nenhuma referéncia a essas duas grandes tradigdes. De fato, a falta de consenso moral nos dias de hoje —a cultura atual de relativismo e quase adoragao do eu desinibido e desimpedi- do— sugere que a América do século XX tem estado bebendo de outra corren- te cultural que nao o rio formado pelos tributarios biblico e classico. O dr. Gene Edward Veith Jr. sugere qual pode ser essa outra fonte. Num livro bem pensado e preocupante, Modern Fascism: Liquidating the Judeo- Christian Worldview [O Fascismo Moderno: Liquidando a Visao Judaico-Crista do Mundo], ele propde a idéia de que as fontes escuras e turvas da cultura secular moderna americana possam ser oriundas originalmente dos niilistas e de Nietzsche, passando por Heidegger e os existencialistas europeus. Essa corrente de pensamento, o dr. Veith nos lembra, tem como um de seus objetivos desbancar totalmente tanto a tradi¢éio classica como a heranga judeu- crist&. Foi Nietzsche, por exemplo, quem proclamou dramaticamente que, visto arcligifio ser mera projegiio de desejos humanos, “Deus est4 morto”. Foi Nietzsche quem denunciou 0 Judaismo e 0 Cristianismo como “religides escravas”. E foi Nietzsche quem apareceu com uma nova versio do summum bonum: um ideal ariano de “raca, de formago, de privilégio”, cujo exemplar principal seria um Novo Homem — Super-homem — “que é capaz de criar dor e sofrimento, ¢ deve experimentar prazer em fazer isso”. 46 REFORMA HOJE Os estudiosos modernos, observa o dr. Veith, tem a tendéncia de subesti- mar Nietzsche como uma espécie de estilista lirico da prosa, esquecendo-se de que seu pensamento atraiu adeptos sérios e teve conseqiiéncias concretas. O célebre existencialista Martin Heidegger, por exemplo, delongou-se sobre a sua idéia da morte de Deus no discurso que fez como reitor na Universidade de Friburgo: “Se Deus esté morto”, ele disse com aprovagdo, “nao existe mais uma autoridade ou ponto de referéncia transcendental paraa verdade objetiva.... Fazer suas proprias regras é a mais alta liberdade”. Heidegger tornou-se nazista — um nazista t&o radical que seus superiores correligionarios finalmente separaram-se dele pelo seu anseio por perseguir estu- dantes catélicos em Friburgo. E Heidegger, assim como seus companheiros existencialistas europeus, agarrou-se a idéia de valores auto-inventados como sendo libertadores. Para eles a rebelidio — contra a tradigao classica e contra os principios religiosos judeu-crist&os — era um ato criativo. Celebravam o imanente, 0 terreno e imediato, zombando de nogdes mais antigas de normas transcendentais e valores objetivos. Tais idéias vém tendo seqilelas de longo efeito. Dez anos apés o fim da Segunda Guerra Mundial, Walter Lippmann reclamou, em seus Essays in the Public Philosophy [Ensaios sobre a Filosofia Publica], que, embora as demo- cracias ocidentais tivessem triunfado militarmente nesse grande conflito, podem bem ter sofrido uma derrota espiritual e moral. Certas idéias discrepantes tinham conseguido penetrar na vida e pensamento ocidental, Lippmann observou — idéias que faziam com que a civilizagéo pés-guerra nas democracias industriais fosse filos6fica e politicamente “desordenada”. O proprio Lippmann nao era de maneira alguma religioso, contudo lastimava a perda de fé em valores transcen- dentes, a perda daquilo que ele chamava afetuosamente de “o mandado dos Céus”. “Se o que é bom, o que é direito, o que ¢ verdadeiro, for somente o que o individuo ‘escolhe inventar’”, escreveu ele, “entdo estamos fora da tradigao da civilidade. Estamos de volta a guerra de tudo... contra tudo.” Lippmann atribuiu a derrubada dos valores tradicionais a uma nova filosofia que nao era de forma nenhuma trazida dos dois grandes tributarios do pensamento ocidental — uma nova e maligna filosofia que defendia a primazia da vontade humana, que se gloriava no poder, que encontrava encanto na violéncia. Tais nogées, escreveu ele em 1955, solapavam a nogo de cidadania, minavam o poder de governar dos lideres e tornavam a civilizagao disfuncional. A IcREJA Viva 47 Escrevendo no ambiente relativamente calmo da década de 50, Lippmann definiu os tributarios gsmeos — o pensamento judeu-cristio ea tradigao classica indo até o Iluminismo — como parte da “filosofia publica” essencial americana. Sem se ater firmemente a essa filosofia publica compartilhada, escreveu, a civili- dade, e talvez até a propria civilizag4o, morreria. “O ponto crucial”, segundo ele, “nao é se os naturalistas e sobrenaturalistas discordam.... E que eles devem con- cordar que existe uma Lei valida que, quer [seja derivada do] mandamento de Deus ou da raz&o das coisas, [seja] transcendente: nao a fantasia, 0 desejo ou a racionaliza¢ao de alguém, mas objetivamente presente.... Ela pode ser desco- berta. [Ela tem de ser] obedecida.” A Tentacio Politica Serd que a América é fascista sem saber, como opinao dr. Veith? Ou é mera- mente “desordenada”, conforme o ponto de vista melancélico de Lippmann? Nao é preciso concordar totalmente de antem&o com um ou outro autor sobre as fontes ou grau de nossa disfung&o moral ¢ espiritual, para que se possa reconhe- cer que em termos sociais tem sido desastroso 0 culto atual do Eu imperioso e auténomo. Desvinculada das tradig6es antigas, “liberada’’ de qualquer fidelida- de a idéia de verdade objetiva, nossa cultura moderna do caos valoriza a auto- expressao acima da autodisciplina. O surgimento do relativismo moral eo entu- siasmo por regras de invengao prépria produziu, como Lippmann previu, uma cultura de caos e disputa perpétua, relembrando de fato 0 espectro da “guerra de tudo contra tudo” de Hobbes. Como sera que as igrejas crists (e os crentes individualmente) devem res- ponder a esse desafio cultural? A fé crista, naturalmente, é primeiro e antes de tudo sobre o bem-estar das almas imortais, ¢ sobre o relacionamento de almas individuais com um Deus eterno: “Uma responsabilidade me foi dada: um Deus para glorificar, uma alma imorredoura para salvar e preparar para 0 céu”. Mas os crentes nao devem recuar da realidade de que sua tradi¢ao 6 também um tesouro cultural para este mundo, e que “este mundo” é a arena dada por Deus aos crentes para que nele exercitem sua fé, O grande hino de Charles Wesley apro- priadamente se volta, na segunda estrofe, a esta arena temporal: “Para a época presente eu servir, e meu chamado assim cumprir; 6, que possa todas minhas forgas envolver, para a vontade de meu Mestre eu fazer”. E uma triste ironia, entretanto, que uma época de maxima necessidade da 48 REFORMA HOJE obra redentora da igreja neste mundo vezes demais tem encontrado a igreja caminhando trépega exatamente na diregdo das solugdes erradas. Ashist6ricas igrejas protestantes, por exemplo, tém sofrido seu maior declinio em quantidade de membros, contribuigdes, influéncia e eficdcia precisamente durante os anos em que vém lutando com maior forga pelo poder politico ¢ cultural. Durante anos, as denominag6es que antigamente eram descritas com razio como as “principais” tém escolhido agendas quase que totalmente voltadas s questdes quentes da cultura politica secular: Desarmamento nuclear. Congela- mento nuclear. Direitos feministas. Direitos dos homossexuais. Direitos da popu- lag&o rural. Direitos dos trabalhadores. A Guerra Fria. Seguro de saude univer- sal. “Capacitagao” dos pobres e sem-terras. Varios dos assim chamados movi- mentos de libertag&o dentro e fora do pais. Desesperadamente ansiosos por serem vistos como “proféticos”, anelando serem tratados como “relevantes” a sociedade, os profissionais dessas igrejas importantes tém chamado seus rebanhos a todo custo, durante trés décadas, as barricadas politicas partidarias e 4 corrida ao desastre corporativo. Um certo nadir foi alcangado quando os ativistas de testemunho social dessas igrejas mar- charam esperangosos 4 América Central nos anos 80, para apoiar movimentos revolucionarios que depois provaram ser tao violentos, coercivos e corruptos que mesmo os mais sinceros defensores da politica de testemunho social se cho- caram a ponto de silenciarem constrangidos. A autodestruicao das igrejas majoritarias americanas ao cairem em tentacao politica nos ultimos trinta anos ndo bastou, aparentemente, como exemplo sufici- ente para que as igrejas evangélicas se acautelassem. Como imitadores, seus clérigos ¢ profissionais esto marchando para as barricadas da direita hoje tao ansiosamente como seus irmaos das igrejas hist6ricas marchavam para as fortifi- cagées da esquerda: entrando a fazer parte de coalizSes “cristas”, de teleatendimentos, aprovando candidatos e operando em favor de medidas sanadoras legais especificas com o mesmo fervor que levou seus irmaos das igrejas majoritarias primeiro a serem desviados de sua missio verdadeira, depois A atuaco irrelevante e 4 quase ruina. Os teonomistas crist&os e os reconstrucionistas crist&os est&io procurando estabelecer, por meios coercivos legais e politicos, um simulado politico do reino de Deus, assim como os “obreiros fraternais” tentaram estabelecer sua versio desse reino de bracos dados com o Partido Sandinista, Durante o processo, A Iaresa VIVA 49 abandonaram o eterno pelo evanescente, exatamente como seus similares tradi- cionais; desviaram-se e aos seus rebanhos da misso legitima da igreja no mun- do, e escolheram — sem o saber, talvez, mas de modo blasfemo, mesmo assim — substituir a graga livre e operante de Deus pela coergiio politica. Sera que alguém duvida de que o namorico evangélico com a tentagao po- litica leve 4 mesma completa desilusao e estragos que colheram os flertes seme- Ihantes dos tradicionais? Trés maximas sabias deveriam ser afixadas a parede de todo templo evangélico — ou talvez tatuadas no brago de cada evangélico — como aviso contra cair na tentagao politica. O primeiro ¢ 0 aviso da Biblia (Sal- mo 146.3): Ndo confieis em principes. O segundo é de Martinho Lutero: “Pre- feriria ser governado por um turco sdbio do que por um cristo insensato”. O terceiro é do simpatico e incomparavel C.S. Lewis: “Jesus nos manda alimentar os famintos, mas ele nao nos da ligdes de culinaria”. Ministrando na Cultura do Caos Se marchar para as barricadas politicas é a missao errada para a igreja neste mundo, qual éa missao certa? Qual deve ser, precisamente, a missdo cultural da igreja? Deixe-me sugerir trés respostas a pergunta, A primeira resposta é enganosamente simples d primeira vista. Equea tarefa da igreja no mundo é€ ser a igreja. Digo que é “enganosamente simples” porque a tentagdo é muito grande para que a igreja se transforme grotescamente em outra coisa: hoje um teatro da Broadway, amanha um movimento de protesto, no sébado seguinte, um clube social ou um bar de solteiros, no outro dia um partido politico vestido de togas e vestimentas eclesiasticas. As tarefas da igreja sao adorar, educar, equipar os santos, dar cuidado pas- toral e evangelizar. Se as igrejas se permitem fracassar nessas tarefas, 0 éxito em outras menos importantes nada vai significar. Por outro lado, se conseguirem se manter fi¢is nessas tarefas, nada hé de deté-las, e sua influéncia redentora sobre acultura sera enorme. O longo colapso das igrejas tradicionais que levou-as a cair em confusio e irrelevancia, é bom lembrar, aconteceu em pequeninos incrementos: este simpdsio 50 REFORMA HOJE um tanto amador sobre custos de satide apés aquele debate confuso sobre de- sarmamento nuclear; esta discussdo pouco informada sobre o regime da Coréia do Norte acrescida aquele estudo denominacional nada claro da politica traba- Ihista numa antiga provincia anglicana. Cada hora desperdigada em tais distra- Ges foi uma oportunidade perdida — uma oportunidade perdida de mergulhar os crentes no conhecimento essencial — 0 conhecimento poderosamente trans- formador — de sua fé e sua tradig&o. Com o tempo, a confusio sobre missao levou a complicag6es mais sérias: 0 analfabetismo biblico ¢ 0 tédio espiritual. As pessoas ficam desnutridas de dois modos: comendo muito pouco, e comendo muito das coisas erradas. Uma segunda tarefa (e oportunidade) para a igreja no mundo é redo- brar seus esforcos na educagao, especialmente na instrucdo superior. “Equipar os santos” nao é apenas uma tarefa para a sala de aula da Escola Dominical. As pequenas faculdades de artes liberais americanas, muitas delas instituigdes denominacionais, durante quase dois séculos tiveram um impacto fa- voravel sobre a cultura, por seu tamanho e prosperidade. Uma nacfio que softe uma crise intelectual e moral precisa de mais e melhores institui¢des dessa natu- reza agora. C.S. Lewis estava certo: Jesus ndo oferece aulas de culinaria. Nao existe, em outras palavras, nada que seja “cozinha crist”, e nada que seja “politica crista” ou “engenharia crista”. Mas Lewis deve ter conhecido um ou dois cozi- nheiros cristéos, e certamente é possfvel treinar politicos crist&os, médicos cris- tdos, produtores de filmes cristaos, jornalistas cristos ¢ engenheiros cristaos. Nao “cristdos” treinados para ser de curta visdo, sectarios, piamente intolerantes como alguns, mas crist&os que sejam humanitarios, de formagao cultural ampla, formidavelmente competentes, confiantes de poderem dar contribuigSes para um mundo perdido e faminto. Produzir tais lideres ¢ 0 desafio alvissareiro que se coloca diante de uma nova geragdo de faculdades e universidades ligadas as igrejas. Essas faculdades e universidades devem ser locais onde as tradig6es biblica e classica sejam recuperadas, reabilitadas, ligadas entre si, e orgulhosamente ensinadas novamente. Essas instituigSes de ensino superior, por falar nisso, acertarao se nao forem acampo contra a ciéncia eo método cientifico de adquirir conhecimentos. Sua ambigao, em vez disso, deve ser persuadir a ciéncia e os cientistas a no serem A Iaresa Viva 51 arrogantes; a ndo imaginarem que a ciéncia, que é um instrumento valido e util para se compreender o mundo material, tenha qualquer coisa que seja para nos contar sobre o mundo imaterial. A tarefa do futuro para os professores em facul- dades cristds no é derrotar a ciéncia; é somar vitrias em outras maneiras vali- das de adquirir conhecimento que a ciéncia arrogantemente ignora, marginaliza ou rejeita—a maneira estética de conhecer, por exemplo, e sobretudo a manei- rareligiosa de conhecer. A maneira religiosa de conhecer, afinal, foi aceita e em- pregada por intelectuais tais como John Milton, John Donne, Joao Calvino e Gerard Manley Hopkins. E essa maneira deu ao mundo o quadro da “Virgem da Capela Sistina” de Rafael, o livro A Divina Comédia de Dante, a musica Pai- xdo de S. Mateus, de Bach e os poemas de Gerard Manley Hopkins. A terceira tarefa para a igreja viva numa cultura morta é comunicar uma importante verdade aos crentes fiéis: que “a batalha espiritual” nado deve ser igual a batalha real. A admoestacao biblica para que os cristdos se vistam com a couraga da justiga, cingindo os lombos com a verdade é importante, mas claramente metafé- rica. E a palavra operante no primeiro verso daquele amado hino antigo sobre os soldados cristaos é que devemos marchar como para a guerra, nao para ela. Por que é importante esse ponto? Porque muitas vezes os crist&os de hoje aderem a combatividade irada, que é uma caracteristica lamentavel de nossa cultura contemporanea ca6tica. E verdade que as provocagdes que os cristdos tém recebido dessa cultura so sérias e repreensiveis. Especialmente os crentes que se chamam de ortodo- Xs ou evangélicos se encontram contendendo contra uma cultura hostil, até mesmo agressiva, em nossos dias. E certamente, frente a essa cultura de descrenga agres- siva, os crentes tém o dever de persistir, de viver vidas de afirmagao persistente einflexivel. Oestilo e tom dessa afirmacao, entretanto, devem ser sabios e cuidadosa- mente calibrados para concordar estritamente com o mandamento do amor, que éa primeira regra para 0 cristo. Crentes com misculos fortes que adoram a dureza e os choques da luta espiritual v4o replicar no mesmo instante, e correta- mente, que o amor cristao precisa ter padrées altos e ser t4o exigente como 0 amor de um bom pai; que 0 amor crist&io verdadeiro nao pode ter nada que se assemelhe aquela tolerancia mole, de vale-tudo que alega ser amor, mas é teal- mente mera indiferenga. Estes merecem uma resposta, que é a seguinte: mesmo o 52 REFORMA HOJE amor mais exigente de um pai ainda € reconhecivel como amor; nao ¢ tao estri- dente, censurador, arrogante e zangado que se assemelhe a algo com o nome de odio. Quais so as ligdes que as igrejas e os lideres cristéos poderao ensinar aos crentes sobre a maneira certa de contender contra essa cultura hostil e incrédula? Uma, certamente, é que a liberdade humana ¢ central ao evangelho; que o evangelho reconhece e aceita um grau de liberdade humana que conduziré alguns humanos a trazer sobre si e sobre outras pessoas a tragédia e a ru{na. Em uma das pardbolas de Jesus, ele descreve a propaga¢ao do reino de Deus como semelhante ao semeador que langa sua semente. Nem toda semente encontra lugar fértil em que cresga, Jesus nos lembra; algumas sementes, inevitavelmente, cairao sobre terra rochosa. Jesus esta nos avisando, assim, que 0 acesso a graga de Deus sé pode vir pela livre escolha. Esta nos advertindo, também, que nem toda pessoa livre fara a escolha certa. Os crentes devem chorar por toda alma que se recusa a fazer uma escolha salvadora, como Jesus chorou sobre Jerusa- ém. Mas nunca imaginemos que podemos forgar tais escolhas ou achar atalhos politicos e legais ao reino de Deus. Outra ligdo sobre como responder a uma cultura hostil e andrquica é a que se descobre na linguagem rica do amor em familia que permeia a Escritura. Em nossas préprias familias, sera que no nos encontramos contendendo com ir- mios ou filhas ou filhos que se recusam a se render a nossas crengas e nossos modos? Se somos crentes sdbios, nds nao os excluimos do circulo do nosso amor: oramos por esses filhos prédigos; nds os exortamos e nds os amamos, com um amor exigente e por vezes impaciente (como na verdade devemos amar ao nosso eu prédigo e desobediente). Sera que deve ser diferente com um mun- do prédigo — um mundo sobre o qual recebemos 0 “dominio”, o que sugere a afeigao de um pai? Uma ligdo final para nos moderar ao confrontarmos uma cultura cada vez, mais hostil a fé crista é a realidade de que Deus verdadeiramente tem 0 poder soberano e supremo sobre o universo. Dadaa situagao da cultura contempora- nea, 6uma tentago desanimar. Muito desanimo, entretanto — muita raiva dirigida contra a desobediéncia do mundo — pode ser sintoma de estarmos dependendo vaidosamente de nds mesmos e de nossas forgas humanas. Sera que cremos realmente que Deus ¢ 0 Rei e Soberano do universo? A IGreJa VIVA 53 Ha trés tarefas, entdo, para a igreja e seu povo dentro de uma cultura deca- ida, fracassada e hostil: © Primeiro, a igreja evangélica precisa se ater a suas prioridades historicas de culto, ensino, cuidado pastoral e evangelismo — e nao imaginar que atalhos politicos possam apressar a obra do reino. Renunciar a tais ata- Thos no diminuiré o poder da igreja de fazer bem no mundo; sé iré aumenta-lo. * Segundo, a igreja evangélica precisa se tornar uma forga na educagao, principalmente na instrugao superior — uma forga resolvida a reivindicar e reafirmar as tradi¢ées intelectuais, tanto biblica como classica, que sio a base para a verdadeira civilizag4o. Fazer isso semeara o mundo com Iideres cristdos individuais, reconhecidamente competentes em suas dre- as, que atuaraio no drama de “vencer 0 mal com o bem”. « Terceiro, a igreja evangélica precisa ensinar a seu povo as verdadeiras artes da guerra espiritual, cujas armas so o poder persuasivo de idéias superiores acopladas a um amor bondoso e constante. Aqueles que en- sinam e que aprendem essa lic¢do descobrirao a alegria verdadeira da experiéncia de seguir o ensino de Jesus e ser “prudentes como as serpen- tes e simplices como as pombas”; ou de C.S. Lewis quando observa que o verdadeiro crente é como um agente secreto que Deus solta de para- quedas atras das linhas do inimigo. Um Modelo para Seguir Eu disse de inicio que o Apéstolo Paulo parece ter enfrentado uma cultura tao perdida e dificil como a nossa. E um fato que certamente deve encorajar qual- quer crente que esteja chorando pela cidade mundana de hoje. Paulo enfrentou, antes de tudo, uma igreja nova e em grande parte ainda informe, cortada por disputas entre os judaizantes, que desejavam impor as ve~ Ihas regras hebraicas, e os helenistas, cuja mensagem era mais universal e cuja compreensao da liberdade humana era sem ditvida mais profunda. Paulo enfren- tava um mundo que nao tinha um cAnon da escritura sobre o qual houvesse acor- do para que pudessem depender dele ou mesmo discuti-lo. Enfrentou um mundo que, como 0 nosso, adorava a muitos deuses — mas um mundo, também, no qual o monotefsmo, a poderosa idéia do Unico Deus Verdadeiro, nao tinha nem a4 REFORMA HOJE oalcance nema forca que tem hoje. Paulo enfrentava condigées de libertinagem moral e sexual pelo menos t&o preocupantes como as de hoje — e elas lhe saltavam aos olhos nfo s6 quando observava a cultura geral, como também den- tro da igreja em Corinto. Se é possivel aos crentes seguirem a Jesus, entéio certamente podemos se- guir a Paulo. E se Paulo péde obter éxito em dar impulso ao movimento de transformagaio de uma cultura, entéio com certeza nds estamos enfrentando um projeto entusiasmante, que tem pelo menos alguma possibilidade de progredir e ser bem-sucedido. Convocamos a igreja, em meio a nossa cultura moribunda, para que se arrependa do seu mundanismo, para que recupere e confesse a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores, e para que veja essa verdade incorporada na doutrina, no culto e na vida. 3 Lutar pela Verdade numa Era de Antiverdade R. Albert Mohler Jr. “N. o contexto da civilizagao ocidental moderna e em areas cada vez mais permeadas pela cultura ocidental, nao é facil conservar a estrutura teista pressuposta e ensinada por todas as igrejas crists ¢ viver dentro dela.” ' Assim refletiu Brian Hebblethwaite, professor de teologia da Universidade de Cambridge e cénego teoldgico da Catedral de Leicester. O lamento de Hebblethwaite nao surgiu de um vacuo. Pelo contrario, ele respondia com vigor ao colega de Cambridge, Don Cupitt, o chamado clérigo ateista.” Alguns anos antes, Cupitt havia “deixado Deus”, continuando, no entan- to, como sacerdote da Igreja Anglicana.’ E mais, em 1984 a BBC de Londres havia produzido e veiculado toda uma série entitulada “Mar da Fé”, destacando Cupitt e suas nogdes radicalmente interiorizadas e heréticas sobre a verdade eo Cristianismo. Era a essa série e ao livro que o acompanhou que Hebblethwaite respondia. O Cristianismo ndo é sobre um mar de fé, afirmou ele, e sim, sobre um oceano de verdade. O encontro literario e teolégico entre Cupitt e Hebblethwaite ¢ importante, nio porque dois tedlogos de Cambridge se ocupavam de um debate que recebia 358 REFORMA HOJE tanta publicidade, mas porque seu debate improvavel ilustra tao bem a grande divis&o da cultura ocidental e, tragicamente, das igrejas cristiis. O mundo moderno faz guerra a propria nog&o da verdade. O legado misto do Tuminismo evoluiu para a influéncia perniciosa e bastante difundida de uma cultura compromissada com a antiverdade. A influéncia conservadora do Tluminismo escocés, que fez surgir 0 experimento americano da liberdade organi- zada, sofreu um eclipse causado pela anomia e anarquia moral do Iluminismo continental. No nosso século, aptamente descrito como a “era dos extremos” pelo historiador Eric Hobsbawm,,' a “Deusa Raz4o” que ja fora adorada na Paris revolucionaria dera lugar aos idolos da irracionalidade. Os contornos esbogados da viséo de mundo secular atual sao aparentes no discurso e drama do cotidiano. A visdo cientifica de mundo do naturalismo su- plantou a nog&o de Criador e criagdo; o surgimento de filosofias criticas atacoua revelagdo ea inspiragaio; a ascendéncia do humanismo varreu para longe as idéi- as de pecado e limitagdes; a arrogdncia humanista da época afastou a providén- cia e 0 governo divino; a emergéncia do eu imperial levou a rejeig&o de todo temor do juizo e daira divina. O ceticismo deu lugar ao ateismo, 0 racionalismo passou para o irracionalismo, o pluralismo cedeu ao relativismo. O Assalto da Modernidade Contra a Verdade Em sua fase moderna, a cultura ocidental buscou dominar a verdade, arrebatan- do da igreja a autoridade e trazendo sob seu controle mecanista e racionalizado averdade, da mesma maneira que as maquinas da tecnologia tinham ganho con- trole sobre as forcas da natureza. Mas, na fase atual, a cultura ocidental passoua rejeitar a propria nogao da verdade e a abragar o relativismo, o niilismo e 0 subjetivismo radical. A modernidade deu lugar 4 pés-modernidade, que é simplesmente a modernidade em seu aspecto mais recente. Reivindicando que toda nogao de verdade é socialmente construida, os pés-modernistas tém 0 compromisso de sair a luta total contra a propria verdade, um projeto de “desconstrugao” que intenciona derrubar toda a autoridade religiosa, filoséfica, politica e cultural.’ Um p6s-modernista avancado para sua época, Kar] Marx, avisou que, a luz da modernidade, “tudo que é sdlido se desmancha no ar”. E precisamente a essa missao de vaporizagao que os desconstrucionistas se dedicam. LUuTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE 59 No rastro desse projeto de desconstrugao ficam os restos da verdade e da virtude, da ordem e da estrutura, da ortodoxia e da heresia. O critico pés-mo- demo Matei Calinescu comenta: Até mais dificil de defender numa era pluralista como anossaéa idéia de uma ortodoxia por cujos padrdes poderemos decidir se esta ou aquela tendéncia é ou no uma heresia. Nossa consciéncia especifica de tempo, que causou a perda da transcendéncia, também é a responsavel pelo atual vazio conceitual da oposigdo entre a ortodoxia ea heresia.® Tudo isso jé seria suficientemente tragico se tais tendéncias configurassem a consciéncia do mundo, mas nao a da igreja. Contudo, para vergonha nossa, a visaio de mundo secular moderna causou destruigéo também dentro da igreja. A tentativa modema de dominar a verdade deu lugar, dentro de setores da igreja, a rejeig&o pés-moderna da propria verdade. De fato, em muitas denominagées e igrejas, as noges de ortodoxia e heresia tomaram-se “um vazio conceitual”. As fronteiras sumiram.’ A propria possibilidade de heresia é descartada em muitos circulos dentro do protestantismo tradicional; e muitos evangélicos parecem nao ter melhor entendimento do imperativo moral de honrar a verdade e se opor ao erro.* Termos como verdade e falsidade nao so questdes de indiferenga moral para a igreja crist’. E nosso dever lutar pela fé, e o amor a verdade é uma marca essencial do crente.’ Uma atitude de indiferenga, quer baseada na teoria desconstrucionista ou em simples apatia epistemoldgica, é um escAndalo para o evangelho e uma ameaga crescente para a igreja. Crentes confessionais amam a verdade e refutam 0 erro, ndo com espirito soberbo e vingativo, mas num espirito de humildade e fidelidade. Nossa respon- sabilidade éclara, conforme bem a articulou Blaise Pascal: Tanto é crime perturbar a paz quando a verdade prevalece como preservar a paz quando a verdade é violada. Ha, portanto, um tempo em que a paz se justifica e outro tempo quando ela nao se justifica. Porque est escrito que h4 tempo para a paz e tempo para a guerra e é alei da verdade que distingue os dois. Mas em nenhum momento ha um tempo para a verdade e um momento para 0 erro, pois estd escrito que a verdade de Deus permanece para sempre. E por isso que Cristo disse que veio trazer a paz € a0 mesmo tempo a espada. Mas ele nao disse que veio trazer tanto a verdade como a falsidade."” 60 REFORMA HOJE A secularizacao do Protestantismo tradicional e da erudi¢zio teolégica domi- nante é evidente na evisceragao da verdade reivindicada na mao dos tedlogos e lideranga da igreja. Praticamente nenhum dos fundamentos doutrindrios ficou intocado, nenhuma verdade ficou intacta, nenhum credo ou confissfo que em algum ponto nao cedesse. Mais e mais — em nome do pluralismo, tolerancia, inclusividade e sensitividade — tudo que é sélido parece realmente desmanchar- se no ar. E mais, a tragédia nao se limita ao protestantismo liberal da linha tradicional. A visdo de mundo secular moderna torna-se cada vez mais aparente dentro do evangelicalismo também. Uma aversio ao Cristianismo doutrinario vem crescen- do ha décadas, junto com uma intolerdncia crescente para com a prestagao de contas em maiéria de doutrina e confissdo de fé. Os evangélicos acolheram as tecnologias da modernidade, muitas vezes sem reconhecer que essas tecnologias reivindicaram o papel de mestre em vez de servo. Accultura generalizada do consumismo e materialismo seduziu muitos evan- gélicos para uma modalidade de ministério impulsionada pelo marketing em lugar de missao, Em cada vez maior medida, os evangélicos se acomodam a contemporizagao moral em nome de estilo de vida e livre escolha. O culto biblico auténtico muitas vezes é suplantado pela cultura do entretenimento, conforme questdes de desempenho e gosto tomam o lugar da simplicidade e da centralidade de Deus na verdadeira adoragao. As vozes de dentro e de fora advertem sobre uma crise da verdade entre os evangélicos. O tedlogo David Wells argumenta que a modernidade nao deixou praticamente “nenhum espago para a verdade”."' Os socidlogos ja demonstra- ram por meio de pesquisas a mensagem cada vez mais secular da pregacéio evangélica e o triunfo do eu auténomo sobre as preocupagées teolégicas no pietismo evangélico.'? James Davison Hunter delineou e projetou a configuragao do “ajuste cognitivo” pelo qual a geragéio mais nova de intelectuais evangélicos vai comprometendo a ortodoxia biblica face a hostilidade académica."* Uma simples pesquisa revela sinais ainda mais significativos. Alguns evangélicos esttio aceitando a subjetividade radical, o perspectivismo, 0 desistoricismo ¢ orelativismo da erudig4o pés-modernista. Em nome de uma mudanga de paradigma, alguns evangélicos desistem da prépria reivindicagaio a verdade objetiva. Titulos de li- vros e capitulos tais como Truth Is Stranger Than It Used to Be [A Verdade E Mais Estranha do Que Era] e There s No Such Thing as Objective Truth and LUuTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE, 61 It's a Good Thing, Too [Nao Existe Verdade Objetiva, Ainda Bem] avisam que 0 pés-modernismo no é apenas um problema externo ao evangelicalismo."* O fato é que provas da aceitacdo das teorias relativistas, subjetivistas, perspectivistas e construtivistas da verdade existem em larga escala entre os evan- gélicos. Em nome do expositivo, alguns descartaram proposi¢g6es, e so portan- to incapazes ou indispostos a fazer qualquer declaragdo de verdade proposicional. Em nome do pluralismo, alguns excluiram a existéncia da verdade absoluta, e assim abdicaram do fundamento da verdade crista, e sé podem cair nos varios relativismos. Em nome do perspectivismo, alguns rejeitaram a unidade da verda- de e adotaram a subjetividade incondicional. A fim de ganhar distancia do “fundamentalismo”, muitos evangélicos abandonaram o fundamento. Os Evangélicos Pés-modernos Na verdade, o problema fica sobretudo evidente entre aqueles que se iden- tificam como “evangélicos pés-modernos”. Stanley Grenz da Faculdade Teolé- gica Carey e Faculdade Regent declara que raiou nada menos que uma nova era intelectual. Grenz afirma que a igreja deve “reivindicar 0 novo contexto pés- moderno para Cristo” e estabelecer novos paradigmas para expressar a fé.'" Um evangelicalismo pés-moderno apropriado, sugere Grenz, reconheceria “uma mudanga pés-fundamentalista” que estabelece o novo panorama evangélico. Os evangélicos devem mudar de um paradigma baseado em credos a um modelo de fée teologia “espiritualmente fundamentado”. O velho paradigma proposicional deveria ser deixado de Jado como reliquia de um passado evangélico superado, pouco lamentado. Segundo Grenz argumenta: “Os tedlogos evangélicos devem. se afastar de conceber sua tarefa como sendo meramente a de descobrir a ver- dade divinamente revelada entendida como um sé sistema doutrinario unificado que se diz abrigado dentro das paginas da Biblia, no aguardo de ser categorizado esistematizado”.' Assim sendo, os evangélicos deveriam rejeitar 0 arrogo do direito a verdade proposicional, porque a idade pés-moderna nfo respeita mais a nogaio de ver- dade objetiva, absoluta, ou revelada. Proposigdes dao trabalho, precisamente por forgarem a questio de verdade e falsidade. Dado esse fato, e a rejeigao quase universal da teologia proposicional na época moderna, os evangélicos de- veriam, segundo Grenz, revisar a teologia evangélica tomando-a “disciplina pra- 62 REFORMA HOJE tica” a servi¢o da comunidade dos crentes, em lugar de disciplina que se ordena pela reafirmagao de proposigdes. E a Biblia? Se as abordagens proposicionais est&o fora de limites, como vamos falar da natureza e autoridade da Escritura? Grenz sugere que a Biblia tem, na verdade, autoridade, mas sé porque a comunidade da fé Ihe concedeu este status. Para a igreja, a Biblia é “o livro da comunidade”, e assim tem a devida autoridade dentro da comunidade. Esta abordagem, que pode ser caracterizada como sendo autoridade atri- buida “de baixo” em vez de ser “de cima”, é sugerida no termo “pés-fundamen- talismo”, Coerente com o pés-fundamentalismo, a comunidade da interpretacdo torna-se a base da autoridade, porque, mesmo onde esta é negada, a comunida- de esta acima da Palavra. Autoridade e sentido, bem como a Biblia ea propria nogéio de verdade, todos sao vistos como extensdes da comunidade, em vez de como revelagao dirigida 4 comunidade. Atrds dos evangélicos pés-modernos esta uma constelagio de figuras ¢ movimentos académicos. Influentes entre eles ha a chamada Nova Teologia Yale associada a tedlogos tais como George Lindbeck, Hans Frei, Paul Holmer e David Kelsey."’ Atras da Nova Teologia Yale esté a influéncia do antropélogo Clifford Geertz, que sugere que todo sentido é baseado em comunidade e ex- presso através de “sistemas cultural-lingitisticos”. Também por tras do movimen- to esta Ludwig Wittgenstein, cuja nogdo de verdade como “jogos de linguagem” éinerente ¢ inevitavelmente corrosiva daquilo que Francis Schaeffer chamou sim- plesmente de “verdadeira verdade”. A questao da verdade objetiva foi levantada novamente por William H. Willimon da Universidade Duke nas paginas da revista Christianity Today."* Os evangélicos que procuram defender a realidade e o fato de que se pode conhe- cer a verdade objetiva estéio, Willimon diz, “cometendo um erro tatico”. “Jesus néo chegou entre nés”, declara Willimon, “enunciando um conjunto de proposi- Ses que devemos afirmar”.'® Em vez disso, sugere Willimon, Jesus veio se de- clarando e convidando pessoas a segui-lo. Conforme o autor, Jesus no insistiu Para que as pessoas acreditassem nas proposigGes a seu respeito, que poderia- mos caracterizar como verdade objetiva. Nao somos deixados numa subjetividade completa, Willimon insiste, porque “a verdade de Jesus ¢ inteiramente insepardvel dele mesmo — sua vida, mortee LUTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE 63 ressurreigao”.” Aqui ficamos com duas opgdes apenas: Ou Willimon nao vé tealidade objetiva na vida, morte e ressurreigao de Jesus, ou ele acaba de violar sua propria regra. Esperamos que 0 caso seja este ultimo. Quando as pessoas invocam “a verdade”, Willimon argumenta, “o que real- mente querem dizer é que elas tém alguma idéia preconcebida do que sejaa verdade, e jd ouviram alguma afirmagao que confere com o preconcebido”.” No fundo, essa é a nog4o construtivista da verdade, disfarcada em missiologia. Willimon certamente esta correto quando insiste que o evangelho pede muito mais do que mero consentimento intelectual. Mas precisamos insistir em que o evangelho exige, sim, o consentimento intelectual. Willimon criou um argumento fraco ao sugerir que alguns evangélicos conce- bem a convers&o como mero consentimento intelectual a verdades objetivas. Nunca conheci um evangélico que concordasse com tal argumento. Deixar de reivindicar a propria verdade objetiva poderia ser academicamente conveniente numa era pés-moderna, porém levaria a uma situagdo desastrosa para a igreja. Se for feita a vontade dos evangélicos pos-modernos, como 0 evangelica- lismo seria diferente de sua forma original? Stanley Grenz sugere que veriamos uma mudanga do evangelicalismo “baseado em credos” a um evangelicalismo pos-moderno “espiritualmente baseado”. Como ele declara, “Nos anos recentes comegamos a deslocar o foco de nossa atengo para longe da doutrina, com seu enfoque sobre a verdade proposicional, em favor de um interesse renovado na- quilo que constitui a visdo singularmente evangélica da espiritualidade”.” Essa é uma dicotomia falsa e perigosa. Aqueles que colocam os credos contra a espiritualidade ja se colocaram contra a espiritualidade representada pelos credos. Segundo a argumentacao de J. Gresham Machen: Os credos do Cristianismo nfo s&o expressées da experiéncia cris- ta, Sdo declaragdes que resumem o que Deus nos disse na sua Palavra. Longe do assunto dos credos ser derivado da experiéncia crista, é a experiéncia cristé que é baseada na verdade contida nos credos; e a verdade contida nos credos é derivada da Biblia, que é a Palavra de Deus.” Grenz quer libertar o evangelicalismo da verdade proposicional para que “uma vis&o singularmente evangélica de espiritualidade possa florescer”. Mas 64 REFORMA HOJE sem doutrina, sem verdade proposicional, sem a verdade da Palavra de Deus, a visao de espiritualidade pode de fato ser singular mas ela nao pode ser evan- gélica. Essas falsas dicotomias est&o no cerne do pés-modernismo evangélico. A verdade proposicional é colocada em oposigiio a espiritualidade; a verdade ob- jetiva é oposta ao chamado para o discipulado; ea doutrina é postada contra a devogao — tudo em nome do pés-modernismo. Adesintegragao adicional da erudigdio evangélica é evidente em Truth Is Stranger Than It Used to Be [A Verdade E Mais Estranha Do Que Era Antes, de J. Richard Middleton e Brian J. Walsh], do Instituto de Estudos Crist&os de Toronto.™ Middleton e Walsh apresentam um retrato de pés-modernismo avan- ado, destruindo todas as “metanarrativas” e rejeitando o carater totalizador, opressivo, patriarcalista e hegeménico das reivindicagdes a verdade objetiva. Precisamos adaptar o Cristianismo a essa nova realidade, argumentam. A tealidade de sua propria agenda torna-se clara quando os autores falam da natu- reza e autoridade da Escritura. Identificando alguns textos como “textos de ter- ror” opressivos, Walsh e Middleton colocariam o texto da Biblia contra ele mes- mo, aplicando uma critica interna a Escritura. No decurso dessa critica, natural- mente, alguns textos biblicos devem ser rejeitados como sendo verdadeiros € normativos. Como argumentam Middleton e Walsh, “a abordagem tradicional de que, visto a Biblia ser a Palavra de Deus, deve-se simplesmente engolir nossas objegdes e submeter-se a autoridade do texto” deve ser alegremente des- cartada.* Walsh e Middleton niio esto sozinhos em insistir por um paradigma evangé- lico pés-modemo. Philip D, Kenneson torna transparente seu argumento no ar- tigo There s No Such Thing as Objective Truth, and Its a Good Thing, Too [Nao Existe Verdade Objetiva, Ainda Bem]. Kenneson langa fora nao sé a tealidade da verdade objetiva, mas também a nogao da correspondéncia entre a verdade ea realidade objetiva. Os crentes nao devem, argumenta ele, nem mes- mo responder a “questo da verdade”. Ele insiste em que “quanto mais depressa virmos que nao precisamos fazer isso, tanto mais depressa poderemos prosse- guir com o negocio de ser cristdos, o que de forma nenhuma abrange aceitar uma certa explicagéo filoséfica da verdade, da justificacéio e da ‘realidade’”.”” As implicag6es dessa declaragao sao arrasadoras. Kenneson argumenta di- retamente que devemos superar a questo da verdade para que possamos pros- LUTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE. 65 seguir com o negocio de ser crist&os. Isso foi experimentado antes, ¢ com razio o chamamos de heresia. Quando no existe cobranga da verdade, n&o existe Cristianismo. Aqueles que discutem a favor deste tipo de paradigma evangélico pés-moderno, se sao coerentes com seus préprios principios epistemoldgicos, nao conseguem nem articular o que é o Cristianismo, ou por que Jesus veio, ou 0 que ele realizou. Sem que os evangélicos da corrente principal — que se encontram agora concentrados em preocupag6es mais pragmaticas e terapéuticas — notem, os evangélicos pés-modernos estéo redefinindo a prépria natureza da verdade, o evangelho, a Biblia e a tradic4o evangélica. Sua influéncia é extensa e esta au- mentando e os evangélicos mais jovens muitas vezes ouvem esses argumentos pds-modernistas sem nenhuma refutacao. A grande influéncia das propostas pés- modernistas aparece no fato de que esses argumentos sao veiculados nas pagi- nas do periddico Christianity Today e em livros publicados pela InterVarsity Press, cujo pliblico é sobretudo de universitarios evangélicos. Embora seja nosso dever identificar e nos opor aos relativismos que mar- cam nossa época, também deyemos reconhecer que posig6es relativistas nunca se mantém. O relativismo inevitavelmente descamba para o niilismo. Atras des- sas propostas pés-modernas nao ha sé os tedlogos New Yale, Clifford Geertz e Wittgenstein — hd Nietzsche. Os acidos da modernidade se queimam até onde estéo os vapores do niilismo. As ambigiiidades dos relativismos alastradores sio muito para suportarmos, ¢ 0 relativismo torna-se niilismo. Agora o niilismo esta presente mesmo entre os expoentes evangélicos. Faz-se necessaria uma consideragfio cuidadosa do movimento evangélico. O evangelicalismo pode ser considerado um prédio de muitos andares. Nos pi- sos superiores os teGlogos debatem questdes doutrinarias, e com razao, Precisa- mos defender a expiagdo substitutiva, a Cristologia calcedoniana, a justificagao forense, ea justificag&o somente pela graga, somente pela fé, somente em Cristo —— e outros fundamentos evangélicos. Mas, ao mesmo tempo, precisamos reco- nhecer que no andar térreo a doutrina da revelacao esta sendo atacada, e a questao da inerrdncia biblica continua assaltada. Se a pedra sdlida da autoridade e total verdade da Biblia for perdida, os argumentos que ocorrem nos andares superiores certamente sero vencidos. Mas nem é essa a base do problema, porque, debaixo do alicerce, alguns estio atacando a propria nogfo da verdade. Alguns dos que discutem no térreo pela inerrancia da Biblia nao esto cientes de que ha ameagas a integridade e fidelidade evangélica bem embaixo de seus pés. 66 REFORMA HOJE Emalguns circulos evangélicos, é quase impossivel discutir, debater ou defender a doutrina da inerrancia biblica, porque a propria nogdo de verdade foi abando- nada, O debate inteiro ficou sem sentido, Concessées e Confusdo nas Igrejas O problema do evangelicalismo pés-moderno no se limita aos pensadores evangélicos. As pesquisas mostram cada vez mais que uma maioria dos evangé- licos rejeita a nogdo da verdade absoluta ou objetiva. A atrag&o sedutora do relativismo pés-modemo invadiu muitos pulpitos evangélicos e incontaveis ban- cos de igrejas evangélicas; esta atrago estd muitas vezes formulada em termos de humildade, sensitividade, ou sofisticagao. A cultura nos prende a todos, e muitos nao sentem nenhum desconforto com isso. A auséncia de precisao doutrinaria e pregagao biblica caracteriza a época evangélica atual. A doutrina ¢ considerada antiquada por uns e divisiva por ou- tros. A heranga da Confissao da igreja é negligenciada e, em alguns casos, pare- ce até ser um constrangimento para os evangélicos atualizados. A pregagdo expositiva —antigamente marca caracteristica do pulpito evangélico — foi trocada em muitas igrejas por mensagens de motivacdo, suavizantes terapias para o cue formulas para saiide, prosperidade, integrac4o pessoal e harmonia celeste. Quase um século atras, J.C. Ryle, o grande bispo evangélico, advertiu sobre desvios da verdade como esses: emo uma doenga interna que parece estar crescendo ¢ se espa- Thando em todas as Igrejas de Cristo através do mundo. Essa doenga é uma disposi¢4o da parte de ministros de se abster de toda doutrina que tenha arestas, e uma aversio, por parte de crentes professos, de todas as afirmagées claras de verdade dogmatica.” Um século depois, 0 diagnéstico de Ryle é visto como profético, ea doenga écertamente terminal. Os varios tipos do virus relativizador da verdade siio indi- cados pelos diferentes sintomas e sinais diversos, mas o fim deles é 0 mesmo, Entre os tipos que agora ameagam as igrejas evangélicas esta a tentacao de encontrar um pouso na estrada entre a modernidade e a verdade biblica.” Outro éo convite para que se aceite uma “mega-mudanca de marcha” que transforma- ria a convicgdo evangélica ortodoxa em categorias do processo de pensamento Lutar PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE 67 moderno.* E uma estrada que conduz.ao desastre e para longe da fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos. Assim a igreja se encontra assaltada por fora—e mesmo por dentro — por uma cultura e visdio de mundo de mentira, antiverdade e irracionalidade moder- na. Qual, entdo, serd a nossa resposta apropriada? Sera que devemos devotar nossa atengdo e energias a epistemologia e metafisica? Devemos nos gastarem argumentos sobre o fundamentalismo e nao-fundamentalismo? Embora nao se- jam sem importdncia essas questdes, elas nado podem ser a nossa preocupagao principal. Novamente, as palavras de Ryle falam ao nosso tempo: Que nenhumi escarnio do mundo, que nenhuma ridicularizagao de autores astutos, que nenhuma mofa de criticos liberais, que nenhum de- sejo secreto de agradar e conciliar o publico, nos tente por um minuto que seja a sair dos velhos caminhos, ¢ a deixar da velha pratica de enunciar a doutrina— doutrina clara, distinta, bem-definida e afiada— em todas as nossas falas e nossos ensinos.”' Lutamos pela objetividade da verdade e devemos ainda insistir em que to- das as pessoas realmente acreditam na objetividade da Verdade. O fato é que mesmo 05 relativistas objetivam sua propria posigdo. A diferenga para nds € que sabemos que a verdade existe em Deus, que é Verdade, e cuja Palavra é verda- de. Nosso conhecimento sé é verdadeiro na medida em que corresponde a ver- dade revelada de Deus. Nés dependemos da Palavra; a Palavra nao depende de nds. Como declarou Martinho Lutero com tanta clareza: “A objetividade e certe- za da Palavra permanece mesmo se nio for acreditada”.” Nao temos 0 direito de buscar refiigio num lugar no meio da estrada que seja de falsa humildade epistemolégica. Negar a veracidade da Palavra de Deus nao é um ato de humil- dade, mas de inexprimivel arrogancia. Essa é anossa humildade epistemoldgica apropriada: nao que no seja pos- sivel conhecermos, mas que a verdade nao € nossa, no nos pertence. Depende- mos da Palavra de Deus. De fato, nds nos submetemos a Palavra de Deus, como crentes, professores ¢ pastores. E esse é 0 conhecimento genuino, o conheci- mento revelado. E conhecimento do qual nfio nos envergonhamos. Como adver- tiu Gordon Clark: Se o homem nada pode saber verdadeiramente, ent&o o homem verdadeiramente nada pode saber. Nao podemos saber que a Bibliaé a 68 REFORMA HOJE Palavra de Deus, que Cristo morreu pelo nosso pecado, ou que Cristo esta vivo hoje a direita do Pai. A nao ser que o conhecimento seja possivel, o Cristianismo nao faz nenhum sentido, porque ele se declara ser conhecimento. O que esté em jogo no século XX nio é simplesmen- te uma doutrina solitaria, tal como 0 Nascimento Virginal, ou a existén- cia do Inferno, por mais importantes que sejam essas doutrinas, mas sim, o proprio Cristianismo. Se o conhecimento nao é possivel ao ho- mem, é mais do que tolice argumentar pontos de doutrina— é loucu- ra. Confessamos que 0 conhecimento é possivel, mas o conhecimento de coi- sas espirituais é revelado. Sem a Palavra de Deus nada saberfamos da redengao, de Cristo, da proviso soberana de Deus por nds. Nao terfamos verdadeiro conhecimento de nés mesmos, nosso pecado, nossa desesperanga fora da mise- ticérdia de Cristo. Como o Professor R.B. Kuiper lembrava aos seus estudan- tes, a resposta mais direta, a mais simples e a mais honesta para a pergunta “Como vocé sabe?” é esta: “A Biblia assim 0 diz”.“ Como Jesus lembroua Pedro, imediatamente depois da sua confiss&o ma- jestosa: Nao foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que estd nos céus (Mt 16.17). Assim é conosco. Nosso verdadeiro conhecimento nao nos foi revelado por carne e sangue, e certamente néo foi descoberto por nés mesmos pelo poder de nossa propria racionalidade e perspicacia; é revelado a nés na Palavra de Deus. Essa é nossa humildade apropriada. Mas precisa-se estar alerta contra ‘uma humildade nao apropriadae infiel. Wilfred Cantwell Smith afirmou que “naio émoralmente possivel realmente ir para o mundo e dizer a nossos semelhantes, seres humanos devotos e inteligentes: Nés cremos que conhecemos Deus e estamos certos; vocé créem que conhecem Deus, ¢ estéo totalmente errados”.** E claro que Smith esté com arazio; no temos 0 direito de pronunciar tal declaragaio em nés, sobre nés e baseados em nosso proprio conhecimento. Mas nao temos 0 direito de n&o testemunhar a verdade da Palavra de Deus ¢ nesta base proclamar as verdades reveladas na Palavra de Deus. Por essa razAo, defender a inerrancia biblica nunca é um desvio ou distragao de nossa tarefa apropriada. E por isso que aqueles que afirmam a inerrancia biblica e aqueles que a negam esto divididos, nao por pouca coisa, por uma disting&o pequena, mas por um imenso abismo epistemaldgico e teolégico. LUTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE 69 A resposta 4 pergunta fundamental afeta todos os aspectos da tarefa teolé- gica e toda questo doutrindria. Eis a pergunta: A Biblia é a Palavra auténtica, autoritativa, inspirada e inerrante de Deus em forma escrita, e portanto 0 teste- munho fiel que Deus da de si mesmo? Para a igreja de fé, a resposta precisa ser afirmativa. Com os preparadores da Declaracéio de Chicago sobre a Inerrancia Biblica, afirmamos que “A autoridade da Escritura ¢ inevitavelmente prejudicada se essa total inerrancia divina for em qualquer ponto limitada ou desconsiderada, ou colocada relativa a uma otica da verdade contraria aquela da propria Biblia; e tais lapsos trazem perdas sérias tanto ao individuo como a Igreja”.*° Confessa- mos e afirmamos a veracidade da Escritura em todo respeito e nos firmamos sob a autoridade da Palavra de Deus, e nunca sobre ela. Em outras palavras, nos aproximamos das Escrituras, nado com a hermenéutica pés-moderna de suspei- tas, mas com uma hermenéutica fiel de submissao. Como afirmou nosso Senhor com respeito as Escrituras: Tua Palavra é a Verdade (Jo 17.17). E como Paulo escreveu a Timoteo: Toda a Escritura é inspirada por Deus e util para o ensino, para a repreensdo, para a corregdo, para a educagdo na justiga (2Tm 3.16). Este texto esclarece a verdade da qual nao se escapa, que nossa tarefa é ensinar e pregar esta Palavra; repreender, corrigir, educar na justica. Se as igrejas voltassem em fidelidade a este encargo fundamental, a visaio de mundo secular perderia sua forga sobre a igreja dos crentes em Deus. O Assalto da Verdade contra a Modernidade CO assalto que a modernidade perpetrou contra a verdade fez 0 seu estrago -—néio que a modernidade tenha enfraquecido a verdade, porque a verdade continua inviolavel. Antes, o prejuizo causado pelo assalto da modernidade pode ser medido na secularizagio crescente da cultura e das igrejas, no testemunho contemporizado de muitos crentes, nas mensagens acomodadas pregadas em muitos ptlpitos e na confusao mortifera da época. Faz parte da esperanga crist& o conhecimento de que tudo isso sera reverti- do um dia. Pela graga de Deus, o imperfeito dara lugar ao perfeito, a confusaio dard lugar a clareza, as ideologias modernas sero vistas como sendo vazias. Todo joelho se dobrard e toda lingua confessara que Jesus Cristo é Senhor. Contudo, mesmo agora podemos ver que, assim como a modernidade lan- 70 REFORMA HOJE gou seu ataque contra a verdade, as verdades da Palavra de Deus esto langan- do um assalto sobre a modernidade. A quantos tenham olhos para ver, os idolos seculares da moderidade estao caindo, visivelmente. Com os olhos da fé vemos que a verdade é 0 cagador e a modernidade o cagado. A modernidade, a pés- modernidade, a hipermodernidade, e 0 que mais vier é prova do tltimo suspiro da modernidade. A verdade de Deus ainda permanece. Confessamos que tudo que conhecemos verdadeiramente sobre Deus e nds mesmos, sobre o que tem sentido e vida, conhecemos pela Palavra revelada de Deus. Portanto confessamos que sem a Palavra de Deus estariamos perdidos ¢ seriamos ignorantes, cegos, sem esperancas. Nosso poder de discernimento é to limitado, e tio corrompido pelo pecado, que nada conhecemos que tenha conseqiténcias eternas a nao ser pela Biblia, e mesmo ai dependemos da ilumina- g&o do Espirito Santo para ter entendimento. O cientismo naturalista moderno assegura que “O Cosmos é tudo que exis- te, que ja existiu ou que ha de existir” >’ Mas a Palavra de Deus declara: No principio criou Deus os céus e a terra (Gn 1.1). Amodernidade se baseia na afirmativa da ordem natural ser o produto de um acidente césmico: uma explo- sio fortuita de tempo, energia e p6 césmico. A ordem natural de planetas, célu- las, Atomos e galaxias é objeto do estudo cientifico, vazia de qualquer significa- do. Mas a Biblia afirma que: Os céus proclamam a gléria de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mos (S1 19.1). Em esséncia, 0 universo ou tem ou nao tem sentido. A questéo fica depen- dendo de ser declarado um Criador. As Escrituras nos revelam que a propria natureza revela o Criador — até mesmo suas atribuigdes pessoais.** Mas é um conhecimento que nds corrompemos, Como Paulo disse, escrevendo aos roma- nos, nds pecadores tanto corrompemos esse conhecimento que, ao olhar a cria- ¢4o, nds nos voltamos a adorar a criatura em lugar do Criador.” A visio de mundo naturalista da modernidade insiste em que os seres humanos s&o mera- mente uma ordem de organismos evoluidos — simplesmente um animal entre outros animais, um acidente entre outros acidentes. Mas a Palavra de Deus reve- la que Também disse Deus: Fagamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhanga; tenha ele dominio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra (Gn 1.26). A modernidade debate se o mundo terminard num estrondo ou num suspiro, LUTAR PELA VERDADE NUMA ERA DE ANTIVERDADE 71 explodindo pela forga do dtomo ou se dissipando numa entropia césmica. A Palavra declara que o Senhor voltara com um brado, e todas as coisas viraio a sua consumagio por seu decreto e seu poder.” A vistio de mundo moderna esta afirmada em casualidade e contingéncia, mas a Palavra de Deus revela a natureza incondicional da providéncia divina — Deus governa tudo que ocorre e naéo abriu mao de nenhuma parte de seu poder. A visaio de mundo moderna presume edeclara que os seres humanos sAo basicamente bons, até mesmo aperfeigoaveis. Qualquer comportamento indesejado ganha nova definigao e é descartado como sendo resultado de abuso na infancia, privagéio ambiental, doenga emocional, predisposigdio genética ou instinto incontrolavel. Os terriveis despotismos do sé- culo XX foram impulsionados por visdes utdpicas, na tentativa de criar o “novo Homem comunista” ou o Ubermensch. Naraiz disso esté.a mentira do humanismo. Mas a Biblia revela que somos 0s filhos de Adao. Levamos sua marca, em Adio pecamos, e temos pecado nds mesmos, porque todos pecaram e carecem da gloria de Deus (Rm 3.23). Até onde a modernidade permite Deus, ela permite a nogéo de um espirito alegre e descompromissado, ou um simbolo cultural. O surgimento do paganis- mo novo e velho em nossa cultura geral é apenas uma indicagao da idolatria palpavel em nosso meio. As pessoas nao se aborrecem pelo aparecimento de deidades que n&o lhes constituam ameaga, ¢ até se dispdem a comercializar sua paraferndlia. AEscritura, entretanto, revela o Deus de Abraao, Isaque e Jacé, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Este Deus é zeloso e néio admite rivais. Ele é onipo- tente, onisciente, eterno, imutdvel, pessoal, transcendente, indivisivel, misericor- dioso, gracioso, contudo cheio de ira contra 0 pecado. Acima de tudo, é santo. E infinito em todas as suas perfeiges. E é contra esse Deus que pecamos. Ele se revelou em sua Palavra como Pai, Filho e Espirito Santo — uma Trindade de trés pessoas que so contudo uma sé. Também isso é um misté- tio além do nosso entendimento, mas é uma verdade revelada na Palavra da Verdade. A moderna visto de mundo sugere uma mensagem de salvagdo secular pelo automelhoramento, pela negagao do eu, pela gratificagao do eu, pela autocapa- citagdo e autoconscientizagao. A Biblia revela que a salvacaio é totalmente pela graga, tornada possivel e real pelo sangue derramado de Jesus Cristo, que mor- eu como nosso substituto e propiciagao pelo nosso pecado, nT REFORMA HOJE A Biblia revela-nos a verdade sobre Deus, sobre nés mesmos, sobre nosso pecado e condenagao, sobre nossa salvagao e redencao, sobre nossa santificagao eaglorificacao final. Precisamos pregar a Palavra—a verdade inteira da Palavra. A triste realidade, entretanto, é que o assalto da modernidade contra a ver- dade exigiu um tributo, nao sé do mundo, mas também da igreja. Dentro da igreja organizada e culturalmente reconhecida ha aqueles cuja visio de mundo e compromissos doutrindrios séo mais humanisticos do que os dos humanistas, mais naturalisticos do que os dos naturalistas, e mais seculares do que os de alguns secularistas. Vastos segmentos da igreja organizada da sociedade das Américas e Europa refletem pouco mais do que uma fina crosta de linguagem teligiosa cobrindo de leve as pretens6es seculares mais estimadas da modernidade. Aqui, precisamos confiar em que também a verdade esta assaltando a modernidade ao mesmo tempo em que a modernidade esta assaltando a verda- de. Aidéia de que a modernidade deu a luz uma cultura morta esta comegando a raiar em ajuntamentos nos quais a luz da Escritura pode estar brilhando apenas fracamente. Em algumas igrejas e denominagdes em que conceitos da moder- nidade ja reinaram durante a maior parte do século, pela graga de Deus a luz poder ainda brilhar. Essa deve ser nossa esperanca e nossa oragéio. Entretanto, nossa preocupaciio maior deve ser cuidar para que sejam colo- cadas em ordem as nossas proprias casas. Pontos cedidos e desordem no meio evangélico exigem nossa humildade e nossa oragaio urgente por avivamento, re- forma e renovagao. Precisamos medir nossa propria fidelidade doutrinaria e re- conhecer até onde temos deixado de aplicar a verdade da Palavra de Deus e de incorporar essa palavra na doutrina, no culto e na vida. Os santos que nos precederam ndo nos deixaram sem assisténcia. Com humildade e gratid&o olhamos para os Reformadores, reconhecendo humilde- mente que nossas igrejas estéio necessitadas de reforma, assim como estavam as igrejas do século 16. Nossas igrejas séio mundanas no estilo de vida, no culto e na piedade. Vezes demais sacrificamos clareza doutrindria no altar do progresso, estatistica e opinido ptiblica. Com freqtiéncia vemos 0 culto a Deus se tornar um evento de entretenimento centrado no homem. E permitimos que nossas confis- s6es de fé sejam marcos histéricos em lugar de afirmag6es vivas. No espirito dos Reformadores, seguindo seu exemplo, tomemos a decisio de confessar as verdades da Palavra de Deus — todas as verdades da Palavra de Deus. Lurar PELA VERDADE NUMA Era DE ANTIVERDADE. 73 Confessemos sola Scriptura e submetamo-nos perante a verdade da Pala- vra de Deus, pregando, ensinando e aplicando essa Palavra a todas as dimen- s6es da vida. Que nao haja autoridade rival, e que nunca nos envergonhemos de estarmos confessando as Escrituras — inerrantes, inspiradas, infaliveis e intactas — como nossa tinica autoridade para o conhecimento e a doutrina. N&o nos submetamos a nenhuma outra autoridade, quer seja papa, pessoa que se declare profeta, ou mesmo a sempre presente opiniao publica. Nés nos firmamos na Palavra, assim como nos firmamos sob a Palavra. Também confessamos solus Christus, porque nada temos a apresentar para nossa salvaciio seno as misericordias e méritos de Cristo e sua expiagiio. E tudo quanto precisamos, e inexprimivelmente mais do que merecemos. Precisamos confessar Cristo — desde sua preexisténcia e nascimento virginal até sua exaltagao e volta gloriosa. Além disso, precisamos confessar que Cristo é 0 unico Salva- dor, porque nao existe salvagéo em nenhum outro nome. A obra de Cristo é suficiente para nossa redengio e tudo que Deus pretende para nés, Nada pode ser acrescido a essa obra nem tirada dela. Confessamos também sola gratia, pois a salvagdo é somente pela graga. De fato, tudo o que é nosso é pela graga — até 0 proprio conhecimento de Deus. Precisamos resistir a todo esforgo de furtar 4 graca a sua simplicidade, assim tornando zombariaa obra de Cristo. Somos pecadores e estavamos espi- ritualmente mortos. Nao fosse pela graga, morrerfamos nfo s6 perdidos mas ignorando nossa situagao de perdidos. Pela graca fomos cleitos 4 salvagao pelo ato soberano de Deus. Pela graca somos guardados pelo poder de Deus. Pregamos a justificagao pela fé — que é 0 principio concreto da Reforma —eassim confessamos sola fide. Por esse artigo a igreja se firma ou cai, porque ajustificago pela fé é a esséncia do evangelho, Fazer essa afirmagao é admitir que o movimento evangélico contempordneo tem negado tragica e progressiva- mente ajustificagao pela fé, e assim em alguns sctores esta pregando um evange- Iho falso, Nés nos firmamos pelo artigo principal da Reforma— que no é nosso referente histérico, e sim a nossa confissao viva. Mais importante, confessamos soli Deo gloria e rogamos que, em todas as coisas, somente Deus seja glorificado. A ele toda a gloria é devida, a ele todaa gloria pertence. Ele é o Rei da gléria. Rejeitemos, portanto, a glorificagao de qualquer substituto, de qualquer rival. 14 REFORMA HOJE Rogamos que Deus seja glorificado em nossa confissdo, nossas igrejas, nos- sa condigao de discipulos, nossa pregacéio, nosso ensino, nosso testemunho e nosso viver, Reconhegamos que esse é 0 teste verdadeiro de nossa fidelidade, talvez nosso teste mais importante, Numa época de inverdade, lutamos pela verdade, sabendo que nfo vem de nds, mas é aquela verdade revelada por Deus na sua Palavra. Essa luta pede uma ousadia santa combinada a uma humildade apropriada. Escrevendo ao Impera- dor Carlos V sobre a necessidade de reformar a Igreja, Joao Calvino deu um exemplo digno: Mas seja qual for a conseqiiéncia, nunca nos arrependeremos de ter comegado, e de ter continuado até aqui. O Espirito Santo é testemu- nha fiel e inerrante da nossa doutrina. Sabemos, pois, que aquilo que pregamos é a eterna verdade de Deus. Desejamos muito, de fato, como deveriamos desejar, que nosso ministério prove ser salutar para o mun- do; mas produzir o efeito pertence a Deus, nao anés.*! Na verdade, 0 efeito pertence a Deus, nao a nés, Mas oramos por reforma em nosso meio e em nossas igrejas, reconhecendo que ela vird unicamente pela graga e misericérdia de nosso soberano Deus. Firmamo-nos pela verdade da Palavra de Deus — e as verdades da Palavra de Deus. A execugdo pertence a Deus. Soli Deo Gloria! 4 Catequese, Pregacio e Vocacio Gene Edward Veith A través de quase todo 0 século XX, a maior questio teolégica foi a chama- da “Batalha pela Biblia”. Comegando com o conflito entre modernistas e fundamentalistas, a igreja na América vem sendo agitada por uma divisao entre aqueles que acreditam que os ensinos da Biblia devam ser julgados de acordo com as mais recentes tendéncias intelectuais e culturais e aqueles que créem na inerrancia da Escritura. Ao longo de quase todo 0 século, tedlogos liberais, ar- mados com a metodologia critico-histérica e o prestigio da classe intelectual, batalharam contra os evangglicos, que insistiam na realidade da inspiragao divina eno evangelho sobrenatural. Em meio as violéncias de cismas denominacionais, seminarios para expurgo e divisdes de igrejas, os modernistas pareciam ganhar a maioria das batalhas. Contudo, ao apagar das luzes do século, ¢ evidente que, do ponto de vista pra- tico, os evangélicos venceram a guerra. As denominag6es protestantes princi- pais, que rejeitaram a autoridade biblica em favor das varias teologias modernis- tas, perderam membros ¢ relevancia cultural. Os evangélicos, por outro lado, que continuaram a proclamar o evangelho transformador de Cristo, cresceram tanto em numero como em influéncia. Embora uma otica critica para com a Es- critura continue a existir na teologia académica, os evangélicos e catélicos domi- 16 REFORMA HOJE nam a vida religiosa da naga, enquanto as igsejas liberais est’io quase fora de campo. Mas, a despeito da vitdria aparente, uma nova batalha esta se organizando. Talvez lhe caiba o nome de “A Batalha pelo Evangelho”. O que surpreende é que os ataques contra o evangelho estejam vindo das fileiras dos préprios evan- gélicos. O Protestantismo classico sempre ensinou que Jesus Cristo morreu para salvar pecadores, mas muitos evangélicos contempordneos esto minimizando a importancia do pecado, da salvagao e da expiagéio. No novo evangelho, a salva- ¢4o é substituida pela terapia. O pecado dé lugar a auto-estima; e a doutrina da justificagao pela fé perde espago para a doutrina do pensamento positivo. Essa nova versao do Cristianismo faz da Biblia, no uma Palavra de salvaco, mas um manual de instrugdes detalhadas para uma vida feliz. As arestas duras do Cristi- anismo histérico —as sérias exigéncias morais, as doutrinas desagradaveis tais como 0 inferno, Cristo como 0 tinico caminho para a salvagao — sao glosadas, minimizadas, no esfor¢o de reduzir o Cristianismo a uma religiao de sentir-se bem. O enfoque da nova teologia nao é Deus, mas 0 eu. As doutrinas objetivas so substituidas por experiéncias subjetivas; em vez do culto a um Deus santo ha um show para a congregag4o. Tais nogdes poderaio promover o crescimento da igreja, mas nao sao o Cristianismo histérico. Uma caracteristica curiosa dessa nova teologia evangélica é a maneira como elaacolhe 0 universalismo. Raciocinando que um Deus sensivel nao estaria que- rendo condenar ninguém eternamente —e minimizando a importéncia do peca- do original — alguns esto ensinando que Deus meramente aniquila os pecado- res; outros, que ha muitos caminhos para Deus; outros, que todos sao salvos, mas quem rejeita o amor de Deus perde por nao ter uma vida abundante aqui na terra. Uma variagao do universalismo evangélico ensina que s6 aqueles que rejei- tam Cristo conscientemente serao condenados; aqueles que nunca tiveram opor- tunidade de ouvir o evangelho serao salvos por causa da sua ignorancia. Acom- panhando essa ldgica, o melhor modo de trazer salvagao ao mundo seria ndo contar a ninguém sobre Cristo. Assim, os evangélicos, cujo nome em si ja testifica da centralidade do evangelho, se descompdem. ‘Tanto na “Batalha pela Biblia” como na “Batalha pelo Evangelho”, ficaem jogo a questao da verdade da Palavra de Deus. Os modernistas questionaram se © que a Biblia diz correspondia aos cénones da verdade cientifica e racionalista. CATEQUESE, PREGAGAO E VocACcAO oe Hoje o dilema é outro. A confianga modernista na ciéncia e na razo ruiu. Os pds-modemistas questionam nao sé se a Biblia é objetivamente verdadeira; ques- tionam se existe mesmo qualquer verdade que seja objetiva. O Cristianismo, pelo contrario, se baseia na verdade. E certo que nossa natureza humana decaida nao poderé nunca compreender plenamente a verda- de, e nossa raz&o sozinha é incapaz de conhecer a verdade de Deus. E por isso que precisamos da Escritura, da auto-revelag&io de Deus em linguagem humana, para entender nossa condigdo de perdidos e a dadiva graciosa de Deus, a salva- 40 pela cruz de Jesus Cristo, Como Lutero diz no seu Catecismo Maior, numa passagem que contesta a alegagdo de que os Reformadores e as confiss6es pro- testantes nao tenham ensinado a inerrancia da Escritura: “Deus nao mente. Meu préximo e eu— em suma, todos os homens — poderdo errar e enganar, mas a Palavra de Deus nao pode errar”. No Getsémani, Jesus orou por seus seguidores, pedindo ao Pai: Santifica- os na verdade; a tua palavra é a verdade (Jo 17.17). Para o crente, a verdade nao é algum sistema racional inventado pelo homem; antes, a verdade é manifes- ta na pessoa de Jesus Cristo: Eu sou o caminho, a verdade, e a vida. Jesus entdo da testemunho, imediatamente, da exclusividade dessa verdade: Ninguém vem ao Pai sendo por mim (Jo 14.6). A Biblia também esclarece que os crentes devem cultivar a verdade como base de sua vida espiritual e sua vida no mundo. A verdade é descrita como parte da armadura de Deus: Estai, pois, firmes, cingindo-vos com a verdade (Ef 6.14). Cingir os lombos significa aprontar-se para agir, vestir o cinturao com a espada. Para sobreviver no mundo e empe- nhar-se na guerra espiritual, o cristao precisa estar preparado com a verdade. A pergunta é: Como o crente pode estar “cingido com a verdade” numa época que nega a propria possibilidade da verdade? Como a igreja pode discipular seus membros e proclamar a Lei e o Evangelho a nao-crentes num clima de relativismo intelectual e moral? Preparar cristdos cingindo os lombos deles com verdade é uma outra ma- neira de se referir a instrugao. Aigreja sempre teve seu ministério de ensino no estudo biblico e pregacdo. Historicamente, a igreja também fundou escolas e universidades para educar os crist&os nos caminhos da verdade. Emboraa tarefa de promover a verdade na época pés-moderna seja dificil, certas caracteristicas dessa época oferecem motivos de esperanga. A medida que entrarem em colapso as estruturas construidas sobre as areias desagregadas 7B REFORMA HOJE e méveis do relativismo, as pessoas estaraio ansiosas por um alicerce construfdo sobre a rocha. Os Tempos Pés-Modernos Acramodema, com seus racionalistas do Iluminismo e seus materialistas cienti- ficos, ainda se interessava pela verdade. Inclinados a rejeitar as reivindicagdes da revelagdo, os modernistas buscaram razées racionais ou provas histéricas que sustentassem a fé religiosa: Os eventos da Biblia foram reais? Os milagres sao possiveis? Jesus era mesmo 0 Filho de Deus, e ressurgiu mesmo dos mor- tos, fisicamente? Os tedlogos liberais, condicionados pelo modernismo, tinham como na&o-verdadeiras essas asseveragdes, que seriam o produto de uma men- talidade “pré-moderna”. Os conservadores insistiam em que os milagres da Biblia e os relatos da historia da redengo eram verdadeiros, que a revelagdo de Deus era fonte confidvel de conhecimento. Hoje, o modernismo, conquanto exista em certos lugares isolados, esta qua- se ultrapassado. As promessas da razio, a idéia de que a mente humana pode engendrar uma sociedade perfeita, de que a ciéncia e o progresso tecnolégico podem resolver todos os problemas j4 esmaeceram em pura desilusio. As ra- Z6es pelas quais o modernismo se foi saio complexas; vao desde a cultura técnica até o desencantamento quase universal com os banhos de sangue, a tiraniae a corrup¢ao do século XX, essa “era modema” vista com tanto otimismo por aqueles que acreditavam no progresso. Por volta dos anos 60 os estudiosos ja desmon- tavam os argumentos da razio, e o grande publico virava as costa 4 aparente auséncia de significado do mundo objetivo e iniciava a busca interior para a rea- lizagao subjetiva. Os pés-modernistas tanto da classe académica como da cultura popular raciocinavam que, sea raz4o, o empiricismo ¢ a busca do conhecimento objetivo levavam a tanta desilusao, talvez o problema fosse a objetividade. Em vez de uma verdade estatica, externa, talvez a verdade seja apenas uma construgao provisoria do individuo ou da cultura. Assim como 0 modemismo foi dominado pelas ciéncias exatas, 0 pds-modernismo é dominado pelas ciéncias sociais. As crengas sao vistas como fendmenos psicolégicos ou sociolégicos. O modo como pensamos é configurado pela nossa cultura; ha muitas culturas diferentes. Quem dira que a interpretacdo da realidade de uma cultura seja melhor do que a de outra? Nos, do Ocidente, com nosso individualismo e visio de mundo cientifica, CATEQUESE, PREGAGAO E VOCACAO 19 olhamos a Natureza de um modo; os homens da tribo da Nova Guiné véem a Natureza por outra 6tica. Quem esté em maior sintonia com seu meio ambiente? Qual 0 critério que nos permite dizer que nossa verdade — com sua heranga de colonialismo e destruigéio ecolégica — seja melhor do que adeles? Os cientistas sociais comecaram a cultivar a nogao do relativismo cultural, inferindo que todas as reivindicagdes a verdade e principios morais nada mais so que criagdes cul- turais, e que todas so igualmente validas. Ao mesmo tempo, 0 existencialismo estava se deslocando dos cafés e estu- dios de artistas para a corrente intelectual ¢ cultural da maioria. Para o existencialismo, o sentido da vida é que ela nao tem sentido. Uma vez que a pessoa perceba que nao existe significado pré-fabricado no universo, torna-se possivel fabricar um significado para si mesmo. Uma vida auténtica é a que naio aceita as respostas pré-programadas da tradigao, da razo ou da religido. Pela forga da vontade, a pessoa pode escolher para si um sentido. Quer se escolha o Marxismo ou 0 Cristianismo, uma vida de crime ou de servigo, 0 significado é criado por um ato da vontade. Os existencialistas originais eram almas atormentadas que lutavam contra o desespero. Os existencialistas populares de hoje acham que essa falta de sentido objetivo na vida é libertadora. Os que créem no aborto se rotulam de individuos “pré-op¢aio”. Constituem um exemplo definido da ética existencialista, ndo reco- nhecendo nenhum principio moral que se aplique a todos os seres humanos, O que torna um ato moral é a circunstAncia de ter havido escolha. Se uma mulher escolhe ter um filho, isso esta certo “para ela”, Se a mulher escolhe ter um abor- to, esta certo “para ela”. Fica excluida qualquer aplicagao de absolutos morais transcendentes, bem como qualquer informagao cientifica objetiva sobre 0 de- senvolvimento do feto. Quer seja o assunto a justeza de varias “escolhas de estilo de vida sexual”, “‘o direito de morrer” ou “a ago deciséria ética” como maneira de ensinar a ética na escola, amoralidade fica vista totalmente como questao de exercer a vontade, e todas as opgdes sdo consideradas igualmente validas. Hoje ouvimos afirmagées epistemoldgicas casuais que chocariam tanto fil6- sofos classicos como modernistas. “Isso pode ser verdade para vocé”, diz al- guém numa discussao sobre religiao, “mas para mim nfo é verdade.” Toda dis- cussao informal parece terminar com o mantra: “Cada um tem direito a sua pr6- pria opinido”. A idéia aceita ¢ que todas as pessoas esto enclausuradas, trancadas, cada uma em sua realidade virtual particular. Visto nao existirem critérios objeti- vos paraa verdade que se apliquem a todos, as tentativas de fazer alguém mudar 80 REFORMA HOJE e acreditar em outra coisa sdo interpretadas como atos opressivos de poder: “Vocé nfo tem direito de obrigar outra pessoa a crer naquilo que vocé cré’ A linguagem do consentimento racional é trocada pela linguagem da estética. Em vez de dizer: “Eu concordo com aquilo que aquela igreja ensina”, as pessoas dizem: “Eu gosto daquela igreja’”. Em lugar de dizer: “Creio em Jesus” as pessoas dizem: “Gosto de Jesus”. E claro que geralmente no “gostam” dos ensinos bibli- cos sobre 0 pecado, o inferno e 0 juizo final. Nao acreditam naquilo de que nao gostam. A verdade da lugar ao prazer; 0 intelecto é substituido pela vontade. Quando as pessoas excluem a verdade, baseando sua fé naquilo que apre- ciam e naquilo que desejam, podem crer em qualquer coisa, literalmente. F por isso que as pessoas de posses, instruidas séio tao abertas aos telessocorros de psiquismo, as consultas com bola de cristal, aos intermedidrios de alienigenas do espago e aos gurus da Nova Era que parecem obviamente fraudulentos. Como alguém poderia crer em tais coisas? A resposta, é claro, 6 que a verdade nio tem nada a ver com crengas religiosas pés-modernistas. Os devotos dizem frases como: “O Maharishi é demais”. Ou “Acho barbaro 0 Budismo”. Ou “A Cientologia realmente me ajuda a entrar em contato com meus sentimentos”. -modernistas tém a tendéncia a ser sincretistas, juntando elementos s diversas ou sistemas de fé que acham simpaticos, desprezando o fato de que podem ser racionalmente incompativeis. A mente pés-modernista costu- ma ser t&o subdivida em compartimentos que pode manter duas idéias mutua- mente exclusivas ao mesmo tempo. Certo pastor me contou de um jovem em sua congregacAo que era muito devoto e acreditava fortemente em Cristo e na Biblia. Mas ele também acredita- va na reencarnacao. Achava que seria lindo voltar numa outra vida. Depois de discutir com ele e nao chegar em parte alguma, o pastor finalmen- te decidiu colocd-lo no caminho certo. “Vocé acredita na Biblia, nao acredita?” ele perguntou. “Claro”, ojovem respondeu. O pastor sentou-se com ele, pegou a Biblia e pediu para ele ler Hebreus 9.27: Assim como aos homens estd ordenado morrerem uma 86 vez, vindo, depois disto, 0 juizo. “Entéio, vocé pode ver”, explicou o pastor, “que a Biblia ensina claramente que n&o somos reencarnados. Morremos uma vez, ¢ entéo somos julgados. Os CATEQUESE, PREGACAO E Vocacao 81 mortos nfo podem voltar, mas sao enviados ou para 0 céu ou para o inferno. Eo que diz, certo? Esté ordenado morrerem uma s6 vez, vindo, depois disto, 0 juizo”. O mogo parou um minuto. Entio disse: “E, essa ¢ a sua interpretagtio”. Embora rapaz nunca tivesse ouvido falar em hermenéutica pés-modernis- ta, ele era um eximio praticante. Nao existem fatos, somente interpretagdes, Por mais clara que seja a prova, ela pode ser desfeita com uma explicagao, e a pessoa fica livre para aceitar qualquer interpretagio que lhe seja mais agradavel. -modernista A Educagao P6: Como podera a igreja proclamar sua mensagem quando a propria verdade é descartada como irrelevante? Qual a maneira de fazer com que 0 relativistas prestem atengo as verdades da Palavra de Deus? E claro que a capacidade que esse jovem teve para acreditar em duas visées de mundo contraditérias ao mesmo tempo ea falta de capacidade de reconhecer a verdade objetiva constituiram, ao pé da letra, uma crise de fé. O problema ndo €s6 que ele esta acreditando em coisas erradas; o problema é que ele nao sabe o que é acreditar. Embora a crenga cristd nunca seja meramente a fungao de um argumento ldgico, j4 que depende da revelacao do Espirito Santo, crer compre- ende alguns processos intelectuais e um contetido objetivo. Mas as pessoas que crescem na era p6s-moderna esto mal preparadas para tratar com idéias obje- tivas. E mais do que certo que esse rapaz tenha estudado numa escola que, soba influéncia de Dewey e outros educadores progressistas, valorizou processos aci- ma de conhecimento, sentimentos acima de fatos, socializacao acima de verda- de. Aprendeu o processo da leitura em livros-texto escritos mais para entreter do que desafiar. Provavelmente passou muitas de suas horas escolares em grupos, compartilhando o que sentia sobre a histéria da na¢ao e clarificando seus valores com respeito a problemas sociais. Se seguisse com estudos universitarios, aprenderia sobre o relativismo cul- tural, a opressao de grupos e as virtudes do pluralismo. Na pés-graduagao apren- deria como desconstruir textos e lhe ensinariam que 0 significado objetivo é, no melhor dos casos, uma ilusao e, no pior dos casos, uma imposi¢ao do poder. 82 REFORMA HOJE Mesmo que nao fizesse 0 curso superior, os criadores da cultura teriam feito — os que fazem os programas de televisdo, os que movimentam a industria do entretenimento, que escrevem nos jornais, ensinam nas escola e de outras formas manufaturam o clima intelectual que sorvemos com o ar que respiramos. A educagéio sempre procurou equipar os jovens para lidar com a verdade. Hoje, com algumas excegées, 0 caso é outro, De forma bem diferente, a educa- ¢40 pos-modernista opera para minar a capacidade de lidar com a verdade. O mogo que cré tanto na Biblia como na reencarnacio, e que precisa saber pensar com maior clareza, nao receberia necessariamente muito auxilio da parte da igreja. Durante a maior parte deste século, o traco antiintelectual do Cristia- nismo americano vem favorecendo mais 0 coragdio do que a mente, dando prio- ridade experiéncia e nao a doutrina, incentivando 0 pietismo individualista aci- ma da vida em comunidade do Corpo de Cristo. Hoje, quando seus membros sao indefesos contra os ataques do relativismo anticrist&o, a igreja americana colhe o fruto amargo desse antiintelectualismo. Para recuperar e se fundamentar sobre as verdades da Palavra de Deus, a igreja precisa reabilitar a mente crist. Nao apenas os tedlogos ¢ pastores, mas os leigos também precisam ser capacitados a pensar em termos de verdade. Para descobrir a forma de fazer isso, a igreja de hoje pode tirar algumas ligdes de sua propria historia. O Relativismo Pré-Moderno Conquanto 0 relativismo possa ser pos-moderno, ele nao ¢ particularmente novo. A nogiio de que a verdade nao pode ser conhecida, de que a moralidade varia de uma cultura para a outra e de que no existem absolutos foi primeiramente articu- lada na Grécia antiga pelos sofistas. Reagindo a isso, Sécrates se levantou para mostrar que existem, sim, os absolutos, assim fundando, com Platao e Aristoteles, a filosofia classica. Quando a civilizagao classica se esgotou, o relativismo voltou com os Est6i- cos, Epicuristas e a diversidade cultural do Império Romano. A situagao pode bem estar refletida na observagao de Pilatos: Que é a verdade? (Joao 18.38), quando a Verdade estava ali, de pé, bem a sua frente. Aquela época, que se divertia com o sexo ea violénciae tolerava todas as religides exceto o Cristianis- CATEQUESE, PREGAGAO E VOCACAO 83 mo, acabou sendo a mais gloriosa era da igreja, que n&o sé permaneceu fiel mas converteu o império inteiro a Cristo. A igreja primitiva no era dirigida por marketing. Nao fez um programa especialmente facilitado para o usudrio do Cristianismo. Os nfo-crentes podiam assistir ao culto da pregagao, mas tinham de sair quando se celebrava a Santa Ceia. Os convertidos tinham de passar por abrangentes e extensas catequeses ¢ exames antes de serem aceitos para o batismo. Numa ultima barreira 4 assimila- ¢40 do novo membro, aqueles que nao se tornavam crist&os enfrentavam a pena de morte. Nao obstante, pelo poder do Espirito Santo, a igreja cresceu como fogo. Quando Roma caiu sob os barbaros e 0 império se desfez em anarquia, a igreja foi uma das poucas instituigdes que sobreviveram. Enquanto os vandalos queimavam as bibliotecas, a igreja se ocupava em preservar até 0 conhecimento secular da civilizagao classica, copiando manuscritos, cultivando a erudi¢aio, ope- rando escolas. Finalmente, os préprios bandos de invasores pagdos foram con- vertidos ao Cristianismo, e estava colocado o alicerce para a Alta Idade Média. Para combater as filosofias atefstas do fim do Império Romano e o paganis- mo primitivo dos barbaros, a igreja primitiva desenvolveu o que seria chamado de uma educago de artes liberais. O termo “liberal” deriva da palavra latina “liberdade”. Para os gregos e romanos, uma educagao “liberal” era a que convi- nhaa cidadaos livres; o mero treinamento ocupacional era para escravos. Aque- les que eram livres, em contraste, precisavam saber pensar. A igreja primitiva tomouo melhor do conhecimento classico e combinou-o com uma visio demundo crista. Ao contrario do que se acredita comumente, a educagao em artes liberais que manteve a Europa através da Idade das Trevas nao foi mera continuagao das escolas gregas e romanas. As Sete Artes Liberais, como programa educacional sistematico, foi em grande parte invengAo crista. Embora aproveitando o saber antigo, as artes liberais foram sistematizadas pela igreja a luz da critica de Agos- tinho ao pensamento classico, Foi o estudioso ¢ estadista Cassiodoro quem pri- meiro introduziu a nogéio das Sete Artes Liberais antes de sua morte em Sia d.c Acombinagiio de evangelismo, educago ¢ reforma cultural transformouo mundo antigo, que nao era muito diferente do nosso. Praticas pagiis tais como 0 84 REFORMA HOJE aborto e o infanticidio foram proibidas. O divertimento brutal de esportes sangiiinarios parou. A imoralidade sexual generalizada, as rixas violentas e a anar- quia moral submeteram-se a Lei de Deus. Finalmente, a civilizagao medieval também estagnou. Embora nao relativista, exatamente, a igreja da Idade Média Avancada — também niio diferente da de hoje — estava sucumbindo a superstigdo, ao mundanismo e a centralidade hu- mana. A educaciio janao era mais do que o dominio de trivialidades altamente técnicas, especializadas, com um sistema de certificacdo para uma elite profissi- onal, com a maioria da populag&o caindo no analfabetismo. Nao muito diferente de hoje. O Renascimento foi essencialmente um reavivamento da educagiio classica. A Reforma comegou numa universidade de artes liberais em Wittenberg e foi divulgada por eruditos classicos tais como Melanchton, Zwinglio e Calvino. Uma vez iniciada a Reforma, a educagéio tornou-se uma das principais prioridades religiosas. Foram abertas escolas para ensinar aos leigos como ler a Palavra de Deus. Ministros mantiveram aulas de catecismo e pregavam sermées para expli- car as verdades do pecado e da graga, ¢ os novos ensinamentos comegaram a ser refletidos em toda a cultura, na arte, musica, literatura e vida social. Mais uma vez, a igreja assumiu a tarefa de ensinar seus membros a pensar biblicamente. A Reforma da Educacao Trazer de volta a verdade — especificamente, a verdade da Palavrade Deus — é uma tarefa educativa. Como fez nos dias da igreja primitiva e na Reforma Protestante, a igreja deve mais uma vez assumir seu ministério de ensino, treinan- do os crentes a pensar biblicamente e a influenciar a cultura como um todo com a verdade de Deus. Hoje, um dos movimentos que mais prometem na reforma educacional é quase que totalmente liderado pelos cristios. Ea recuperagiio da educagéio clas- sica, de artes liberais, que ensina as mesmas disciplinas mentais aplicadas pela igreja primitiva e pela Reforma para cultivar a verdade de Deus. Com os fracassos manifestos da educacao publica, muitos crentes estéo fundando escolas por conta propria ou ensinando seus filhos em casa. Tais esfor- gos representam o que ha de melhor, tradicionalmente, na heranga intelectual crista. Com freqiiéncia, entretanto, essas escolas ou aulas em casa simplesmente CATEQUESE, PREGAGAO E VoCAcAO 85 acrescentam a instrugao religiosa aquilo que é essencialmente um curriculo pés- modemista secular. Mesmo quando o curriculo tem grande carga de ideologia conservadora, ensinamento cristo e instrugao moral, os métodos de ensino ea filosofia educa- cional muitas vezes seguem exatamente a mesma metodologia proposta pelos tedricos contempordneos da educagao. A escola tem o objetivo de ser divertida. A énfase é experiencial e nao intelectual, dando prioridade a “experiéncias de aprendizagem” e nao a andlise logica. Geralmente ha muito tempo dedicado a colorir, a trabalhar em grupo ea “hora de compartilhar”. Um conceito popular entre os que fazem a escola em casa é “a aprendizagem como atividade liidica” — aprender brincando. NAo tenho a intengao de desabonar esses esforgos de professores e pais crentes para dar as criangas uma educagao melhor do que receberiam nas esco- Jas publicas. Na maioria dos casos, superam muitissimo aquilo que ¢ oferecido pela rede de ensino atual, e 0 acréscimo do treinamento cristo e da visio de mundo biblica pode ser extraordinariamente salutar. Mas o aprendizado experiencial, subjetivo, afetivo é essencialmente pos-modernista. Uma metodologia subjetivista pode solapar os esforgos de ensinar contetido objetivo, por mais bem-intencionados que sejam. O necessdrio é ter uma filosofia educacional dife- rente —e temos uma: as artes liberais classicas. Douglas Wilson e sua Associag&o de Educandarios Classicos e Cristaos trouxeram de volta a educagao que nos legaram Agostinho, Lutero, Newton ea maioria das outras grandes mentes da civilizagao ocidental.> Apesar do que di- zem muitos catalogos de faculdades, uma educagao em artes liberais significa mais do que s6 uma educagéio ampla que exija muitas horas de estudo em cam- pos diversos. Artes liberais saio um programa especifico que oferece uma abor- dagem coerente e seqilencial 4 aprendizagem e reflex4o, e agora ela esta sendo levada adiante em dezenas de instituigdes de ensino crists e por centenas de lares-escola. A educagiio classica se constréi sobre o trivium, a base triplice de trés caminhos: gramatica, logica e retérica. Para aprender um idioma, é preciso do- minar as estruturas basicas e o vocabulario que constituem sua gramatica. Ent&o, € preciso aprender a pensar nesse idioma, 0 que corresponde ao estagio da légica. Depois, a pessoa deve aprender a se expressar com eficacia no idioma: o estagio da retérica. Mas 0 trivium nao é s6 questo de linguagem; aplica-se a todos os assuntos ¢ corresponde as trés esferas basicas do pensamento humano. 86 REFORMA HOJE “Gramatica” refere-se ao conhecimento fundamental dos fatos; “logica”, tam- bém conhecida como “dialética”, refere-se a capacidade de pensar, processar idéias, analisar conceitos, levantar dividas ¢ tirar conclusdes; “retbrica” refere- se a pessoa criar sua propria fala, a capacidade de colocar suas préprias idéias de modo persuasivo. O trivium, portanto, pode ser considerado como sendo conhecimento, pensamento e expressao, ou a combinagio de fatos, raciocinio e criatividade. Existe uma gramatica, légica e retérica em todo assunto. A gramatica da matematica seria decorar a tabuada de multiplicar e dominar os conceitos e habi- lidades bdsicas. A l6gica da matemitica seria a capacidade de pensar matema- ticamente e resolver problemas. A retorica da matematica seria a capacidade de inventar solugdes matematicas para as necessidades proprias. A gramatica da ciéncia seriam as verdades fundamentais sobre a ordem natural; sua légica seria o método cientifico; sua retérica seria a pesquisa original. A gramatica da Historia seriam os nomes, datas e eventos; sua légica seria a capacidade de pensar sobre a Histéria, descobrir configuragdes e determinar causas ¢ efeitos; sua retérica poderia compreender a aplicagao de ligdes da Histéria ou a realizagao de novas investigagdes do passado. Ainda hoje a maioria das profisses retém tragos de suas origens nas artes liberais. Os médicos aprendem as bases da anatomia ¢ fisiologia nos primeiros anos da faculdade de medicina; depois fazem as visitas aos casos com um médi- co que, a maneira dialética classica, lhes faz perguntas, treinando-os em como pensar sobre doengas. Finalmente, como residentes, eles procedem ao estagio retdrico, fazendo seus prdprios diagndsticos ¢ receitando tratamentos. Advoga- dos, também, primeiro se abarrotam de conhecimentos; em seguida seus profes- sores usam 0 método socratico da dialética das artes liberais, fazendo perguntas e obrigando-os a pensar; finalmente, podem defender casos por conta propria. Esse modelo de adquirir informag6es, aprender a pensar sobre elas e depois a expressar o conhecimento préprio em formas originais é a estrutura conceitual de todo aprendizado genuino. Segundo Douglas Wilson e os novos classicistas, também é um modelo desenvolvimentista. Nos primeiros anos as criangas apren- dem melhor decorando, e assim adquirem um vasto apetite por fatos, informa- Ges objetivas e as outras facetas da gramatica. Na segunda metade do primeiro grau, comecam a fazer perguntas, querendo saber “por qué?” e “como?” e até desafiando a autoridade. E quando ent&o a légica deve ser ensinada. Nos anos do segundo grau, os adolescentes comegam a ser expressivos; preocupados CATEQUESE, PREGACGAO E VoCAGAO 87 com seu novo sentimento de identidade e o crescimento de suas emogées, que- rem ser compreendidos. E a hora de ensinar a retéricaa eles. O trivium fornece o alicerce para 0 aprendizado, uma disciplina mental para a apreensio e emprego da verdade. Uma vez dominado o trivium, o estu- dante poderé passar para os assuntos avancados e mais especializados que cons- tituem o guadrivium: misica, aritmética, astronomia e geometria. Essas matéri- as, que correspondem mais ou menos a educag&o universitaria, podem ser vistas em linhas gerais como espécies de verdade. A misica incluiria verdades estéti- cas, a percep¢ao da harmonia ordenada da beleza, que era vista ndo como mero prazer subjetivo mas como um absoluto. A aritmética incluiria os absolutos mate- miAticos intrinsecos ao universo e a pura ideagdo. A astronomia compreenderia todas as ciéncias empiricas, as verdades percebidas pelos sentidos e pelas pro- vas externas. A geometria incluiria a arquitetura e o desenho, as relagdes espaci- ais implicitas tanto na engenharia como nas artes visuais. As escolas classicas atuais se utilizam do trivium e quadrivium como mo- delos conceituais sobre os quais estruturar todo seu curriculo, mesmo que se estude as matérias mais convencionais. As escolas classicas tipicamente ensinam aler, escrever, calcular, e ensinam educago civica, Historia, Biologia, etc., mas fazem isso de maneira diferente da observada nas escolas publicas, usando 0 trivium para estuda-las de maneira mais completa e sistematizada. As escolas tipicamente classicas ensinam também o Latim, e dio destaque a doses macigas de grande literatura. A Associag&o Académica Classica e Crist também ensina Religiao: a Biblia e a Teologia sendo estudadas com rigor sistematico semelhante e integradas no curriculo todo. Onde quer que a civilizagao ocidental tenha alcangado um ponto de estag- nacao, alguém descobre de novo a educag4o classica; e o resultado é 0 rejuve- nescimento cultural. A idade de ouro de Atenas, a Reptblica Romana, a Idade Média Alta, o Renascimento e a Reforma, ¢ 0 Iluminismo, todos foram movi- mentos deflagrados pela faisca do classicismo e da redescoberta das artes libe- rais, Certamente chegou a hora precisa em nossa cultura para outro Renascimento, Nem todos esses movimentos, é claro, foram crist&os, embora hoje os que promovem a educagfio classica sejam em sua maioria. Sem ditvida isso é porque os crist&os esto entre os poucos hoje que tém base conceitual para a verdade. Reforma educacional nao éa mesma coisa que reavivamento espiritual. Contu- do, recuperar os habitos da mente que reconhecem a verdade é uma tarefa 88 REFORMA HOJE educativa monumental, na qual a igreja tem interesse vital. Como no passado, a igreja— por meio de sua rede de colégios, faculdades e sua influéncia na comu- nidade — poderd, mais uma vez, achar-se patrona da educagao de primeira numa cultura essencialmente analfabeta. Mas como aigreja pode promover as verdades da Palavra de Deus em seu proprio ministério didatico? Isso vai exigir nova énfase em catequese e, assim como na Reforma, um ressurgimento da pregagaio biblica. Catequese Historicamente, 0 processo em que a igreja treinou seus membros para que co- nhecessem e compreendessem a doutrina cristd foi o da catequese. As criangas e os novos membros tipicamente aprendiam os Dez Mandamentos, a Oragao do Pai Nosso e o Credo Apostolico. Depois 0 ministro fazia perguntas sobre 0 significado desses textos fundamentais. E assim preparados, confessavam sua fé publicamente. Essa espécie de instrugdo era baseada no trivium. E gramatica memorizar credos e versiculos biblicos; e a dialética das perguntas e respostas & ametodologia da légica; 0 processo visava habilitar os jovens crentes para sua confirmagdo, quando fariam sua prépria profissao de fé (0 estagio da ret6rica). Os grandes catecismos das principais tradigdes confessionais— como os Catecismos Menor e Maior de Lutero e 0 Catecismo de Westminster — sao modelos de reflexao profunda e lucida sobre as implicagSes da verdade crista. Nas igrejas que ainda se preocupam em usar catecismos, muitas vezes eles stio relegados ao estagio da gramatica, as perguntas e respostas sendo decoradas quando n&o inteiramente entendidas. Embora memorizar 0 catecismo seja um projeto digno— precisamos de mais gramatica do que nunca nos dias de hoje —~ 0 formato de pergunta e resposta prova a necessidade reconhecida pelos confessores que escreveram os catecismos de os cristéos aprenderem como pensar sobre sua fé. As igrejas de hoje nem sempre tém aulas de catecismo como tais, mas a instrugdo catequética acontece nas Escolas Dominicais, nas aulas de Biblia e nos estudos biblicos informais. A educacao crista recebe énfase importante em mui- tas pardquias, que freqiientemente tém um diretor de educag&o cristae progra- mas organizados para criangas e adultos. Com essa infra-estrutura, as igrejas devem objetivar o ensino das verdades da Palavra de Deus ajudando seus mem- CarEQuese, PREGACAO E VOCACAO 89 bros a conhecer os fatos da Escritura, pensar de maneira cristae internalizar 0 que aprenderam para que saibam aplica-lo na vida cotidiana. Precisam da gra- miatica, da logica e da retérica da verdade crista. Muitas vezes a educacao crista de hoje consiste mais em jogos e tempo para compartilhar, tanto para criangas como para adultos. Nossa época pés-moder- nista tem sido chamada de “a geraco terapéutica”, e muitas aulas seguem o modelo de sessGes de terapia, quer dirigidas a pessoas com problemas especifi- cos ou ao aprendizado de como se abrir com os outros, sem finalidade especifi- ca. Conquanto sejam de valor o envolvimento pessoal e a comunh&o com outros crentes, e embora se deva incentivar os grupos intimos de oragao, as atividades sociais ¢ Os ministérios a pessoas que tém problemas, nada disso substitui a catequese sobre a “Palavra da verdade”. Acatequese eficaz numa era de relativismo precisa incluir instrugdo de refor- go. Assim como aulas de catectimenos geralmente incluem instrug3o sobre como o Cristianismo é diferente de outras religides, e como essa igreja em particular difere teologicamente de outras denominagGes, a educagao crista precisara ensi- nar como a Palavra de Deus estd em conflito com as tendéncias da cultura. Os educadores crist&os devem ensinar 0 que caracteriza a visaio de mundo biblicae também a vis&io de mundo da cultura atual, e como distinguir a diferenga entre elas. Pregar a Verdade da Palavra de Deus Ainda mais central do que a educagao crista é o chamado do pastor a pregagao da Palavra de Deus. O pillpito dé 0 tom de tudo que acontece em todos 0s niveis da igreja local, e a batalha para recuperar a verdade, em ultima analise, precisa ser travada pelos sermdes do pastor, nos quais Deus promete que 0 préprio Espirito Santo estaré agindo. A tentagaio de pregar o que as pessoas querem ouvir é sempre grande, mas hoje em alguns circulos isso quase que se tornou um principio homilético. Meu proprio pastor conta de ter assistido a uma conferéncia sobre crescimento da igreja em que foi dito: “Nao preguem mais sobre 0 pecado. As pessoas nao querem ouvir isso. Vocés precisam dar-Ihes uma mensagem positiva”. 5 claro que as pessoas nunca quiseram ouvir sobre 0 pecado. O arrependimento ma- chuca. Contudo, as pessoas precisam ouvir as exigéncias de Deus, especialmen- 90 REFORMA HOJE te agora nessa era do relativismo moral; precisamos ser convencidos do pecado, para que possamos nos voltar em fé ao perdéo de Deus em Jesus Cristo. O que as pessoas querem ouvir, de acordo com os consultores sobre cres- cimento da igreja, € sugestdes praticas para uma vida bem-sucedida. Certa vez ouvi um sermao com o titulo: “Quinze Passos para se Ter um Natal Feliz”. Eram varios principios, tirados da Biblia, mas usados fora de contexto, sobre como se dar bem com os parentes, como gerenciar com proveito seu tempo e como tratar do estresse. Ele nfio mencionou nem uma s6 vez 0 Infante Cristo e o motivo pelo qual ele veio. Em lugar de seguir as tendéncias culturais, uma abordagem melhor na prega- go é opor-se a elas. O critico da midia Neil Postman defende uma abordagem da cultura que chama de “termostatica”.* Quando fica muito frio, um termostato liga o aquecimento; quando esquenta demais, um termostato liga o ar condicio- nado. O termostato faz o contrario do clima vigente ¢ assim cria uma temperatura em que se pode viver. Postman aplica a analogia a educagao. Quando uma soci- edade é fechada e parada, a educagao pode soltar um pouco as coisas desafian- do ou alargando a situagdo, o status quo. Quando a sociedade esta num estado de mudanga constante e instabilidade — como esta hoje — a educagiio precisa conservar as idéias tradicionais. O que é verdade coin respeito a educagdio também é verdade quanto igreja. Aqueles que nao querem que ninguém lhes diga que sdo pecadores tm necessidade especial de ouvir a Lei de Deus. Aqueles que querem ouvir como podem ser felizes precisam ouvir sobre carregar a cruz. Para ser mais relevante, o sermao deve pregar contra a cultura. A tendéncia atual é ficar escolhendo ensinos da Biblia que correspondam a nossos gostos ¢ interesses. Mas 0 teste para o seguidor da Biblia é 0 de aceitar 0 que vai contra as preferéncias pessoais que se tem. A Biblia é termostatica, humilhando os exaltados e exaltando os humildes (Le 14.11), enossos sermées também devem ser assim. Em ultima andlise, entretanto, um sermao so ira conter duas mensagens: a Lei eo evangelho. Cada uma delas deve transmitir as verdades da Palavra de Deus. A verdade da Lei precisa ser pregada em toda sua severidade. Mas a pre- gagdo da Lei nfio é mero moralismo. A tentagao é diminuir a poténcia das exigén- CATEQUESE, PREGACAO E VocagAo, 91 cias consumidoras e transcendentes de Deus para que sejam mais facilmente satisfeitas. Isso sé cria hipocrisia, o que constitui a maior barreira a fé no evange- Iho. E facil a pregaco moralistica tornar-se autocongratulatéria, fazendo com que a congregacao se sinta satisfeita por serem pessoas to boas. Tal pregag’io nao forma crentes, e sim, hipécritas. O objetivo de proclamar a Lei em um sermao deve ser o de convencer do pecado. Nossa era pés-modernista consegue de alguma forma ser extremamen- teimoral e ao mesmo tempo sentir-se extremamente justa. Todos negam forte- mente que estejam fazendo algo de errado. Uma visao realista do pecado, que reconhece a teia do mal em que todos estamos emaranhados em virtude de nossa natureza decaida, no serve aos pro- ponentes da ética pés-modernista. O que querem é que todos se sintam bem sobre sua prdpria pessoa. Para eles 0 pecado é mera escolha de estilo de vida. Nada e ninguém é realmente mau. Mas a verdade é que 0 relativismo moral & apenas outra manifestagao de nossa inclinacao para a justica propria. O relativismo intelectual, também, nada mais é que uma exaltagao de justiga prépria em que preferéncias pessoais s4o postas acima dos fatos criados. Os pés-modernistas se fazem legisladores e criador, de forma a nao haver necessidade da redengao. A verdade da Lei de Deus permanece, a despeito de todas as evasivas e tentativas ridiculas de autojustificagéo. A veeméncia dos pés-modernistas na insisténcia de sua virtude é prova de que a Lei ataca um nervo, de que a culpa no é tao facilmente descartada e declarada relativa. Pregar a Lei objetiva, trans- cendente de Deus e sua condenacao dos pecados especificos do relativismo e justificag4o propria é apenas um prelidio para proclamar a solugao real 4 condi- go pés-modernista, que é a verdade do evangelho. Em ultima anilise, a verdade nao é um sistema humano, ou uma ideologia racionalista, e certamente no é uma opinido particular; ao contrario, a verdade é a pessoa de Jesus Cristo. Na cruz, a Verdade foi crucificada, objetivamente, exterior ands mesmos. Com ele, nosso relativismo, nossas experiéncias subjeti- vas ¢ tentativas de evitar a verdade s&o mortas, pregadas naquele tronco objetivo. Damesma forma, nossos pecados — tanto nossas a¢des pecaminosas como nossa condi¢Ao pecaminosa— sao objetivamente removidos de nds. Nés temos uma expiacao objetiva, o que significa que nao temos de confiar em nosso estado de espirito voltivel, em nossas experiéncias, nossas ilusdes e escolhas de menos 92 REFORMA HOJE importncia. Por Jesus ser a Verdade, somos libertos de nosso proprio eu insta- vel, reinventado. Quando Jesus ressurgiu objetivamente dos mortos, nossa sal- vacao foi ganha, nao como interpretacao subjetiva, mas como fato. Pregue, entao, a verdade da Lei e a verdade deste evangelho, contra todas as pressdes, ¢ as barreiras contra o Cristianismo, por maiores que paregam ser, como as muralhas de Jericé, certamente vao ruir por terra. Vocagio Em vez de seguir ingenuamente as tendéncias, ou estar constantemente ten- tando parecer com os descrentes, para atraf-los, os crentes bem poderiam co- mecar a iniciar alguns projetos préprios. Historicamente, o Cristianismo sempre influencioua cultura. Desde a aboligdo do infanticidio e dos esportes letais no Impéric Romano até a diminuig&o da tirania politica e a promogao da educagaio universal em séculos mais recentes, a igreja — sem confundir sua esfera com a do Estado — tem permeado como levedo salutar todas as culturas em que este- ve presente. Quando, ao contrario, a cultura influencia o Cristianismo, o resulta- do sempre tem sido as varias correntes de liberalismo. Quando a igreja permite passivamente que o mundo faga sua agenda, o resultado sempre foi o mundanismo, oculto pagiio do Estado, a impoténcia espiritual e uma igreja totalmente irrelevante. A recuperago pratica da verdade é uma tarefa nao sé teolégica como cul- tural. A igreja deve parar de ser moldada pela cultura e mais uma vez comecar a moldar a cultura, Isso nao significa que a igreja deva tentar assumir os reinos deste mundo — seria mais a religiao cultural que temos hoje. Para que os cris- tdos influenciem o mundo com a verdade da Palavra de Deus, é preciso que seja recuperada a grande doutrina da vocagao que a Reforma propalava. Os cristaos s&o chamados ao servigo de Deus nao sé em profiss6es eclesidsticas, mas tam- bém em todas as vocagdes seculares. A tarefa de restaurar a verdade na cultura depende em grande parte dos nossos leigos. Para trazer de volta a verdade, num nivel pratico, a igreja deve incentivar os cristéos a nao serem meros consumidores da cultura, mas criadores da cultura. A igreja precisa cultivar artistas, musicos, novelistas, cinegrafistas, advogados, pro- fessores, cientistas, executivos crist&os, etc., ensinando a seus leigos 0 sentido pelo qual toda vocacao secular — incluindo, acima de tudo, a vocagao de espo- so ou esposa, pai ou mae — ¢ esfera de ministério cristo, um modo de servira CATEQUESE, PREGACAO & VOCAGAO, 93 Deus e ao proximo fundamentado na verdade de Deus. O crente leigo deve ser encorajado a ser lider em seu campo, em lugar de seguidor ansioso por agradar. Deve agir de acordo com a otica biblica de mundo, e nao conforme os clichés vazios da cultura popular. Accultura pos-moderna de hoje talvez aparente ser tremenda, mas ela esta tropega e estéril, admitidamente insegura e sem direco. Os criadores de cultura crist&, quer artistas ou pais, tém base e direcionamento. Por meio dessa criatividade, padrées altos e sentimento de vocagao, os leigos que recebessem preparo e apoio adequado estariam capacitados a devolver verdade a cultura. Outra Maneira de Ser Pés-moderno Crist&os confessionais podem se alegrar com o fato de 0 relativismo nao ser atnica tendéncia do pensamento contemporaneo. Existem, na verdade, duas maneiras de ser pés-moderno. Uma resposta ao desaparecimento da modernidade, com seu racionalismo cientifico, é a rejeic&o completa da verdade objetiva. Mas outra resposta é voltar para antes da modernidade, redescobrindo 0 passado e trazendo para o presente 0 que era de valor na era pré-moderna. Enquanto muitos artistas pés-modernistas rejeitam a beleza objetiva para favorecer o choque e a pornografia, outros artistas néo sé est&o abandonando o abstracionismo racionalista da arte moderna, como estio voltando ao classicismo, ao realismo e as grandes tradig6es artisticas da cultura ocidental. Em vez de demolir velhos prédios, como acontece na renovagao urbana modernista, as ci- dades os esto restaurando ao seu antigo esplendor. Constroem-se casas novas com aarquitetura da era vitoriana. Enquanto alguns tedlogos rejeitam a verdade, outros reagem ao fim da modernidade voltando aos Pais da Igreja.5 Quer seja no uso da moda de outros tempos, em programagao saudosista na televisio, ou em obras artisticas do realismo classico, existe uma nova abertu- ra para o passado. Desencantados com 0 moderno, as pessoas nao consideram mais 0 novo melhor do que 0 antigo, e as idéias que venceram 0 teste do tempo — como 0 Cristianismo — acabaram assumindo nova relevancia. Diante dos fracassos do pés-modernismo — com 0 caos, o niilismo e o desespero gerados — muitos buscam uma alternativa. E, com o classicismo na educago e as con- fiss6es no Cristianismo, aqueles que créem na verdade acham-se hoje atuali- Zadissimos. Convocamos a igreja, em meio a nossa cultura moribunda, para que se arrependa do seu mundanismo, para que recupere e confesse a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores, e para que veja essa verdade incorporada na doutrina, no culto e na vida. 5 Os Sola’s da Reforma Michael S. Horton G6 odas as tentativas de interpretar 0 passado”, escreveu H. Richard Niebuhr, “sdo tentativas indiretas de se compreender o presente e seu futuro.” Nao obstante uma antipatia mais ou menos profunda para com o passado e uma obsesso com o presente e futuro terem existido sempre na cultura americana, 0 Cristianismo é uma religiaio dedicada a memorias. Repetidas vezes na Biblia, especialmente nos Salmos, os crentes so conclamados a lembrar-se daquilo em que créem, por que créem, ¢ a transmitir os relatos da historia da redengio a seus filhos. Os profetas nao sé incentivam 0 otimismo cego sobre o futuro, uma atitude que permeia toda a sociedade moderna, como também fazem questo de chamar o povo de Deus de volta as suas raizes: Assim diz o Senhor: Ponde-vos @ margem no caminho e vede; perguntai pelas veredas antigas, qual é 0 bom caminho; andai por ele e achareis descanso para a vossa alma (Jt 6.16). Mas hoje é comum demais ver até os crentes buscando aquele descanso espiri- tual num frenesi de prazer pelo novo e melhorado em vez de pelo experimentado etestado. Assim como anda a cultura, anda a igreja nos dias atuais, e estamos no tempo e no lugar, como Walter Lippmann disse, ja neste século, onde “O rodo- 90 2 pio é rei”. Muitas das principais denominagées das quais safram os evangélicos tinham 98 REFORMA HOJE sido ricas na heranga que havia dirigido os intelectos, emogdes e feitos de varias geragdes. Apesar das origens firmadas num sentimento de identidade institucional e confessional, essas denominagdes haviam deixado de crer na capacidade de sua heranga de explicar e ajud4-las a lidar com as mudangas imensas da vida moderna. E se pouco sobrara nelas da integridade dos credos e confiss6es clas- sicas, j4 nada restava que seus filhos pudessem passar aos filhos deles. Ou estes ficavam fora de qualquer igreja ou se uniam ao movimento evangélico, mas de um ou outro modo dificilmente escapavam da secularizagao. O Protestantismo principal perdeu seus membros porque deu as costas a seus proprios recursos preciosos; 0 Cristianismo evangélico tinha a tendéncia a ganhar seus membros exatamente porque nunca, pelo menos constrangidamente, os possuiu. Nao foi simplesmente que os liberais seguiram a cultura enquanto os conservadores seguiram a Biblia, e sim, que ambos foram mais moldados pela cultura do que por suas confissdes. De acordo com o moto infame do Conselho Nacional das Igrejas, “A igreja segue a agenda do mundo”. Mas os evangélicos mostram, com sua devogdo escrava a cultura popular, que eles também mudaram a gloria do Deus incorruptivel em semelhanga da imagem (Rm 1.23). George Barna, por exem- plo, nos ensina: “E critico que conservemos em mente um principio fundamental da comunicagao crista: 0 auditério, nao a mensagem, é soberano”.’ Palavras como essas teriam vindo com a mesma facilidade dos labios de Harry Emerson Fosdick setenta anos atras. Conforme um artigo da revista Newsweek descreve as igrejas do tempo atual, especificamente incluindo os evangélicos: “Desenvol- veram um Cristianismo de multiplas opgdes, no qual os individuos escolhem o que preferem... e passam por cima daquilo que ndo se ajusta a seus objetivos espirituais. O que muitos deixam para tras é 0 sentimento penetrante do pecado”.* E precisamente porque o evangelicalismo americano moderno nao possui essa heranga confessional, de fé num credo, que ele é capaz de explorar o indi- vidualismo, oromanticismo, o moralismo eo pragmatismo da nossa cultura dirigida aganhar pontos em audiéncia. Enquanto os protestantes liberais s6 puderam se tornar crentes nominais interessados em cultura por rejeitar abertamente seus compromissos com 0 credo, qual sera o obstaculo a que os evangélicos se aco- modem facilmente j4 que sé existe uma vis%o minimalista de obrigagSes doutrind- tias em primeiro plano? Felizmente, muitos desses homens e mulheres que sairam das igrejas principais recuperaram um sentimento de apreciagao pela Palavra de Os So1a's DA REFORMA 99 Deus na recém-formada ala evangélica, mas com os seus contrapartes nao-evan- gélicos eles compartilhavam a desconfianga da igreja institucional, de sua tradi- ¢4o, autoridade, credo, confissdes, catecismo, doutrina e liturgia— em outras palavras, das disciplinas da vida eclesidstica. Esse esptrito essencialmente mo- derno é 0 maior responsavel pela relutancia por parte de muitos evangélicos, e nao s6 liberais, de colocar colunas “Bet-el”, indicadores de caminho ou marcos que indiquem a fidelidade de Deus no passado para ajudar a dirigir a igreja no presente e futuro. Os evangélicos, na verdade, ultimamente vém até recebendo pux@es de orelha criticos dos liberais principais. No Leadership Journal, 0 te6- logo da Universidade Duke, William Willimon, observou um tanto sarcastica- mente: Eusou um crente metodista protestante liberal da linha tradicional. Sei que temos uma abordagem biblica, um tanto flexivel. Norman Vincent Peale exerceu uma influéncia mais forte sobre nossa pregagao do que Sao Paulo. Venha nos ouvir aos domingos, ¢ talvez vocé se lembre de Leo Buscaglia ou da vizinhanga de Mr. Rogers antes de se lembrar de Mateus, Marcos, Lucas ou Joao. Sei que nds tomamos liberdade coma Escritura. Mas sempre tive essa fantasia de que em algum lugar, como no Texas talvez, houvesse pregadores que pregassem tudo, de Génesis aApocalipse, sem piscar o olho.... Sera que vocés sabem que desilusaio tem sido para mim reconhecer que muitos desses pregadores que se auto-entitulam biblicos agora soam mais como tradicionais liberais do que os tradicionais liberais?* Willimon aponta duas areas em particular em que essa influéncia da modernidade aparece: “A Psicologia é Deus” e“A Politica é Deus”. Em seu livro Preaching to the Baptized [Pregando aos Batizados], Willimon desafia ambos, os liberais e os evangélicos, arecuperarem o contetido do Cristianismo e a para- tem de colocar tudo no minimo denominador comum. Assim, também, escreve George Lindbeck, de Yale: Os lideres do Iluminismo... nado eram crist&os, mas conheciam o contetido biblico e a cultura biblica. Em contraste, os fundamentalistas, que créem na Biblia, as vezes surpreendem por conhecer muito pouco do contetido da Escritura.... Assim que cheguei em Yale, até aqueles que procediam de origens néio-religiosas conheciam a Biblia mais do que a maioria daqueles que agora vém de familias que freqiientam a 100 REFORMA HOJE igreja....O jogo com os textos biblicos precisava de um auditério liberal nos dias de Norman Vincent Peale, mas agora, como 0 caso de Robert Schuller indica, os conservadores professos adoram isso.® H. Richard Niebuhr deixou a descoberta o vazio do liberalismo quando des- creveu inteligentemente a mensagem essencial dele: “Um Deus sem ira levou ho- mens sem pecado a um reino sem julgamento pelo ministério de um Cristo sem Cruz”. Se refletirmos bem, isso caracteriza muito do prato servido na dieta evan- gélica de hoje, embora tivesse a intengao de descrever o liberalismo da primeira metade do século. E freqiiente, na época atual, que aqueles que apontam a estra- nha rendicao das igrejas, as evangélicas inclufdas, a praca do secularismo sejam. os filésofos seculares, os socidlogos e os comentadores populares, ou entao liberais tradicionais que chegaram a um impasse. Com poucas excegées, as cri- ticas mais vigorosas vém da imprensa protestante tradicional e nao de publica- Ges evangélicas. Mais freqiientemente sao os de fora da comunidade evangélica que fazem a pergunta contundente: “Onde esta aquela teologia da Reforma, que dava solidez aos ossos de homens e mulheres?” Eugene Rice, historiador da Universidade Columbia, diz que a Reforma “mede 0 abismo que existe entre a imaginagao secular do século XX e 0 enlevo intoxicante do século 16 face a majestade de Deus”.’ Precisamos nos arrepender de nosso mundanismo e recu- perar e confessar nossa fé como fizeram os Reformadores. Por que os Reformadores? Certamente os crist&os primitivos enfrentaram a tentagéio de aparar as arestas e neutralizar a ofensa da cruz. Afinal, suas vidas estavam em risco € os “superapéstolos”, como Paulo identifica aqueles que deseja- vam tornar o Cristianismo mais atraente removendo a ofensa da cruz, estavam constantemente procurando enfraquecer o evangelho biblico. No processo de apelar as “necessidades sentidas” dos “inquiridores” gregos, Paulo diz, a sabe- doria pratica e os sinais e maravilhas tinham substituido a pregagao sobre o pe- cado e a graca (1Co 1.18-2.5), Mas a Reforma Protestante é outro marco importante. Os Reformadores também enfrentaram seus proprios misticos na pessoa dos Entusiastas que, na teferéncia que Lutero faz a Muntzer, pensavam que tinham “engolido o Espirito com suas penas ¢ tudo”. Embora insistissem em que seguiam a Biblia, na pritica era mais provavel estarem seguindo sua propria imaginacdo e experiéncia pesso- al. Calvino até argumentava que os Anabatistas Radicais e Roma tinham mais em comum entre si do que qualquer dos dois grupos com o Cristianismo apostélico genuino.° A Reforma foi certamente o debate mais agitado sobre a natureza da Os Sora's DA REFORMA 101 salvagio e a mensagem basica da Biblia de qualquer época que se seguiu aos cinco primeiros séculos, e de 14 herdamos 0 rétulo “evangélico”. Se nos convencemos de que a Reforma Protestante foi a maior recuperagaio do evangelho desde o tempo dos apéstolos e de que ela nos deixou com um tesouro no qual ha riquezas para serem redescobertas por uma nova gera¢do, ent&o certamente uma nova reforma representard um alvo para nds. Nao que queiramos simplesmente fazer uma reprise da Reforma, mas queremos recuperar econfessar a fé como os Reformadores fizeram na sua época. Ea mesma men- sagem, mas agora somos nés que precisamos entrar em campo. Nao somos s6 conjfessionais (isto é, constrangidos a crer, pregar e ensinar aquilo que nossas confissdes colocam), mas “confessantes”. Nao é um mero compromisso coma fidelidade ao passado, embora seja isso, mas é também nossa confissao nesta época e lugar. Nosso mundo, cercado de novos temores e falsas esperangas, Tequer uma nova confissdo — ndo nova na mensagem, mas vi¢osa na apre- sentagdo. Com esse propésito, afirmamos os solas da Reforma: “somente a Escritu- ra”, “somente Cristo”, “somente a graga”, “somente a fé” e“‘gléria somente a Deus”. Estamos igualmente convencidos de que cada uma dessas declaragdes est4 ameacada mesmo dentro do movimento que se acha na linhagem espiritual direta descendente da Reforma. Portanto nés, como nossos antepassados, pre- cisamos fazer a nossa confissao diante da igreja e do mundo. No que segue, focalizo nossa atengiio nesses pontos-chave da Reforma e tiro algumas conclu- sdes sobre onde nds estamos em cada um desses solas em nosso préprio contexto. Sola Scriptura Embora a igreja medieval abragasse uma doutrina que exaltava a Escritura, na pratica real a sabedoria e especulacao humana muitas vezes estabeleciam condi- g6es a priori sobre o que podia ou nao podia ser extraido de um texto biblico, mesmo quando a intengdo dbvia de varias passagens contradizia aquela posicao. Enquanto a metafisica especulativa obscurecia a Escritura na igreja medie- val, hoje as ciéncias sociais e comportamentais especulativas é que freqiientemente exigem prioridade na discuss&o contempordnea. Assim, mesmo quando se man- tém uma doutrina de inspiracaio elevada, as categorias biblicas de pecado e gra- 102 REFORMA HOJE Gamuitas vezes sao substituidas por categorias terapéuticas, tais como disfungdo e recuperacao, ou o “ser” das médias estatisticas define o “deveria ser” da saiide eclesistica. No esforgo de ser relevante, a “contextualizagdo” freqiientemente se torna uma desculpa para ceder o ponto, quer se perceba ou no 0 que acon- tece; e isso nao s6 se deve a falta de séria reflex4o teolégica, mas aos efeitos anestésicos do modernismo. Poucos chegam a declarar que vao seguir em outra marcha, masa falta de profundidade teolégica do evangelicalismo nao consegue medir forgas com 0 incessante fluxo do pensamento que sai aos borboties das cisternas rotas da sociedade moderna e pés-moderna. Além da psicologia popular, muitas vezes permite-se ao marketing e fato- res sociolégicos que definam a miss&o, mensagem e ministério da igrejae dos crentes individualmente. O empresério espiritual é 0 herdi; o profeta biblico é 0 vildo. Aqueles que interrompem a musica com perguntas séio relegados as mar- gens, enquanto os mais ex6ticos tipos de entusiasmo ganham lugar na corrente central do movimento. Mas por qué? Os americanos s6 precisam de um motivo: funciona. Sem diivida, outras reunides crist&s esto neste momento enchendo anfiteatros de um lado a outro do pais, imitando a cultura popular e minimizando os temas sérios que estamos chamando a igreja para recuperar. Em compara- gdo, nossa reuniao ndo serd considerada significante, se a signific4ncia for medi- da em termos seculares, pragmaticos. Tudo isso concorre para criar uma religiao tao inteiramente antropocéntrica quanto aquela contra a qual a Reforma reagiu, embora a natureza do desafio seja distintamente moderna. Para os intelectuais do Iluminismo, 0 eu é aut6nomo pela razao e pela experiéncia. Joao Wesley fez uma conciliagao com esta visaio do Duminismo quando argumentou que os critérios para se determinar a verdade eram a tradigao, a razo e a experiéncia, além da Escritura. O Romantismo que seguiu ao Iluminismo fez do homem a medida, pela virtude de seus sentimentos. E para muitos evangélicos, essas forgas poderosas — especialmente o espfrito roméntico que domina nossa época mais do que nunca — reduz Deus a posi¢0 de um monarca moderno, poderoso na aparéncia, mas na realidade impotente. Poder abengoar, mas nunca julgar. E por isso que parece nao haver nenhuma crise de confronto, com o sentimento de urgéncia e expectativa de que Deus fale. E talvez seja este um motivo pelo qual tantos buscam outras “palavras” e outras “maravilhas” que prometam restaurar esse sentimento da presenga de Deus. Como, entdo, vamos recuperar a suficiéncia da Escritura para a doutrinae a piedade? Os Sona's DA REFORMA 103 Primeiro, devemos distinguir as coisas que sao do céu das coisas da terra. Nesse ponto os Reformadores deram-nos assisténcia ao enfatizar que, embora para as coisas celestiais a pessoa ndo-regenerada seja cega e incapaz de encon- trar a verdade do evangelho, nas coisas terrenas ela é capaz de sabedoria, criatividade, justia e mesmo retidao civil. Portanto, podemos esperar muita ver- dade dos escritores, artistas, musicos, filésofos e cientistas seculares em suas descrigdes das coisas ca de baixo. O fato é que a Reforma, em muitos respeitos, foi produto do Renascimento. Além disso, como cristéos somos livres nessas areas para escrever livros seculares, fazer filmes seculares, compor musica secu- lar, encontrar uma vocagao secular e associar-nos livremente com ndo-cristios em meios seculares. A politica, as artes, a literatura, a ciéncia e mesmo os esportes e 0 entreteni- mento sao todos legitimos, guardados os seus préprios limites. O dono de um negocio ¢ livre para ser pragmatico em determinar como melhorar as margens de lucros e empregar as estratégias de marketing. E mais, um crente que acontece ser um oficial eleito nao precisa temer fazer concessées politicas, de vez em quando, que considere que irdo servir melhor ao ptblico com o correr do tempo. Tais abordagens sao apropriadas a essas atividades. O problema vem quando confundimos esses dons legitimos da criagdo com a arena salvadora da reden- go. Ceder para chegar ao meio-termo e seguir considerag6es pragmaticas po- dem nfo ser necessariamente pecaminosas na arena secular, mas s&o totalmente corrosivas quando esto em jogo quest6es quanto a verdade suprema. Nao é quando os crentes exercitam sua cidadania, Iéem uma novela de Updike, explo- ram 0 sistema solar e assistem a um jogo de futebol, filme ou concerto que saio necessariamente infi¢is; mas é quando seu discipulado, evangelismo e culto refle- tem as obsessées da época presente, em lugar de refletir “a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é 0 arquiteto e edificador”. A igrejamedieval, argumentaram os Reformadores, confiundiu coisas celestiais com coisas terrenas. Assim, ironicamente, quando havia uma questo sobre sal- vacao, Santo Tomas de Aquino buscava Aristoteles, ainda que a esfera da graga comum e cultura fosse dominada pela igreja. Essa mesma inversio ir6nica existe na igreja atual, onde muitas vezes somos moldados pela psicologia, pelo marketing, pela sociologia ¢ pelo entretenimento em nossa fé e discipulado, ao mesmo tempo em que substituimos a participagao na aprendizagem ena cultura secular pela edificagao de nossa subcultura evangélica. Em resumo, como a igre- jamedieval, somos do mundo mas n&o estamos nele. 104 REFORMA HOJE A segunda coisa que precisamos fazer para recobrar a suficiéncia da Escri- tura é desafiar o individualismo desmedido e as pretenses entusiastas dos movi- mentos espirituais populares. Enquanto os reformadores enfrentaram os desafios catélico romanos acla- rezae suficiéncia da Biblia, os anabatistas minaram so/a Scriptura também por apelos a revelacdo extrabiblicae pela criacaio de uma multidao de seitas individu- alistas lideradas por profetas carismaticos. Nos dias de hoje, também, a Palavra eo Espirito muitas vezes sao colocados um contra o outro naquilo que lamenta- velmente é chamado de “avivamento”. Pontos de vista erréneos sobre orienta- gdo do alto e alegag6es de ter recebido revelacao direta do Espirito contribuem para isso, mas os evangélicos principais muitas vezes confiam tanto quanto os carismaticos nas experiéncias subjetivas, nos sentimentos e preferéncias pesso- ais, refletindo ser devedores de uma cultura comercial. Para dizer a. verdade, os protestantes principais, até mais do que as pessoas que nao freqiientam igrejas, podero estar afirmando que “néo existe 0 que se possa chamar de verdade absoluta”; mas os evangélicos no ficam muito atras, porque estao quase igual- mente divididos entre aqueles que concordam fortemente e os que discordam fortemente com a afirmagao.'? Ao mesmo tempo que afirmamos uma opiniao exaltada das Escrituras no papel, estariamos nés subvertendo a idéia de que deve ser normativa na pratica a voz de Deus na Escritura? Vezes demais 0 ponto de vista protestante é confundido com esse tipo de individualismo. Lutero, entretanto, declarou: “Isso significaria que cada homem iria para o inferno a sua propria maneira”. E ninguém pode ler Lutero, Calvino ou qualquer dos outros reformadores sem notar quanta tinta, quanto argumento, quanta emogao foi dispensada na critica da religido empolgada. Hoje muitos que poderiam nos criticar por nos referirmos demais aos Reformadores ¢ outros gi- gantes da historia da igreja ironicamente sao as mesmas pessoas cuja teologia se parece tanto com Oprah Winfrey [a apresentadora de TV] ou Lee Iacocca [que contou em um livro como tornou-se um vencedor]. Todos nés levamos pessoas conosco a Escritura, guias que tanto influenciaram nossa compreensio de ensino biblico que poucas vezes percebemos até onde nossa leitura ¢ informada, ¢ tal- vez deformada por dependermos deles. Como faz para o réu que nao pode pagar para ser defendido, o tribunal da opiniao publica nos forneceré um advo- gado de defesa a nao ser que encontremos como pagar para acha-lo em outra parte. Alguns de nés vamos a Escritura com Irineu, Agostinho, Anselmo, Lutero, Calvino e Warfield. Como sera que os evangélicos podem atacar o presidente Os Sota's DA REFORMA 105 atual por ignorar a heranca da América quando tantas vezes eles proprios igno- ram a sabedoria dos fundadores e reformadores da igreja? C.S. Lewis chamou aatitude moderna para com o passado de “esnobismo cronolégico”. Temos credos, confissdes e catecismos, nao porque queremos nos arrogar odireito de nos posicionar acima da Escritura ou de outros crentes, mas precisa- mente pela razéo oposta: estamos certos de que tal autoposicionamento ¢ real- mente mais facil para nés quando pensamos estar indo a Biblia sozinhos e direta- mente, sem nenhuma pressuposi¢ao ou expectativa. Com Isaias, preciso confes- sar: “Sou homem de labios impuros ¢ habito no meio de um povo de impuros labios”. Como se nao bastasse minha prépria ignorancia e insensatez, pertengo por providéncia divina a uma das gerages mais superficiais, banais e impias da histdria, e sou fadado a ser moldado negativamente por meu contexto de manei- ras diversas das de outros santos em outros tempos e lugares. Temeroso de minhas préprias fraquezas, quanto a julgamentos e pontos cegos, devido 4 minha propria aculturagdo, dirijo-me 4 Escritura com a igreja ampliada, com aqueles que confessam a mesma fé ha séculos. Ninguém vai a Biblia sozinho, mas leva consigo toda uma multidao de influ- éncias. E infinitamente mais facil distorcer a Palavra de Deus quando nos isola- mos do consenso de outros crentes através dos tempos e do espago. Assim como os Reformadores criticaram os tedlogos medievais como “sofistas” —o apelido desagradavel para os relativistas diluidos que adotavam um meio-termo sempre que possivel — nds também somos confrontados com cada vez maior relutancia em fazer afirmag6es teolégicas claras e precisas. Podemos nos deses- perar diante dos argumentos detalhados e sistemas refinados do passado que ocupavam nossos antecessores, mas se 0s ignorarmos, isso seré um risco, tanto para nds mesmos como para nossos filhos. ‘Terceiro, para recuperar a suficiéncia da Escritura precisamos aprender no- vamente a distinguir a Lei e o evangelho como as “duas palavras” da Escritura. Para os Reformadores, nao era suficiente crer na inerrancia. Como Roma teoricamente tinha também a Escritura em alto aprego, os Reformadores nao estavam criticando a igreja por negar a natureza divina dela. Antes, argumenta- vam que Roma subvertia sua prépria alta opiniao da Escritura ao acrescentar-lhe outras palavras e ao deixar de ler e proclamar a Biblia de acordo com seu senti- do mais dbvio. No centro da hermenéutica do movimento estava a distingao entre “Lei” e 106 REFORMA HOJE, “evangelho”. Para os Reformadores, isso nao era equivalente a “Antigo Testa- mento” e “Novo Testamento” respectivamente; significava, antes de tudo, nas palavras de Theodore Beza: “Nos dividimos esta Palavra em duas partes ou espécies principais: uma é chamada a ‘Lei’, e a outra 0 ‘Evangelho’. Pois todo o restante pode ser reunido sob um ou outro desses dois titulos”. A Lei “esté escri- ta por natureza em nossos coragdes”, enquanto “O que chamamos de Evangelho (Boa Nova) é uma doutrina que nao esté de modo algum em nés por natureza, mas € revelada do Céu (Mt16.17; Jo 1.13)”. A Lei nos conduz a Cristo no evangelho, porque ela nos condena e nos faz desesperar de nossa prépria “jus- tiga”. “A ignordncia dessa distingao entre Lei e Evangelho”, Beza escreveu, “é uma das principais fontes dos abusos que corromperam e ainda corrompem o Cristianismo”."" Lutero tornou essa hermenéutica central, mas ambas as tradigdes da Refor- ma Protestante afirmam juntas essa distingao-chave. Em grande parte da prega- ¢40 medieval, a Lei e o evangelho eram to confundidos que a “Boa Nova” parecia ser que Jesus era um “Moisés mais bondoso, mais moderado”, que ti- vesse suavizado a Lei, tornando-a exortacdes mais brandas, tais como amar de cora¢iio a Deus e ao proximo. Os Reformadores consideravam que, para Roma, o evangelho simplesmente ensinava uma “lei” mais facil do que ado Antigo Tes- tamento. Em vez de seguir muitas regras, Deus esperaria somente amor e entrega sincera. Calvino replicou: “Como se pudéssemos imaginar algo mais dificil do que amar a Deus de todo nosso coragdo, de toda nossa alma, e com todas as nossas forgas! Comparado a essa lei, tudo podera ser considerado facil... [Por- que] a lei ndo pode fazer outra coisa sendo acusar e culpar um homem de tudo, e, por assim dizer, condené-lo, e apreendé-lo; enfim, condené-los no juizo de Deus: porque sé Deus pode justificar, para que toda carne guarde siléncio diante dele”."? Assim, observa Calvino, Roma s6 péde ver 0 evangelho como sendo aquilo que capacita os crentes a se tornarem justos pela obediéncia e aquilo que seria “uma compensagao daquilo que lhes falta”, n&io percebendo que a Lei re- quer perfeigdo, endo sé uma aproximagao." Naturalmente, ninguém reivindica ter chegado a perfei¢do, mas mesmo as- sim, diz Calvino, muitos afirmam que “se renderam completamente a Deus, [as- severando que] guardaram a lei em parte, e sfio justos com respeito a essa par- te”."4 S6 o terror da Lei poderd nos abalar dessa confianca em nés mesmos. Assim, a Lei nos condena e nos impulsiona a Cristo, para que o evangelho possa consolar sem quaisquer ameagas ou exortagdes que possam levar a divida. Num Os Sora's DA REFORMA 107 de seus primeiros escritos, Calvino defendeu essa disting&o evangélica entre a Leieoevangelho: Tudo isso serd facilmente entendido se descrevermos a Lei e des- crevermos o Evangelho e compararmos os dois. Portanto, o Evangelho éamensagem, a proclamag4o que traz a salvagao com respeito a Cris- to, que ele foi enviado por Deus 0 Pai... para conseguir vida eterna. A Lei esta contida em preceitos, ela ameaga, ela sobrecarrega, ela nio promete boa vontade. O Evangelho age sem ameagas, nao impele a pessoa por preceitos, mas antes nos ensina sobre a suprema boa vonta- de de Deus para conosco. Que todo aquele que deseja, pois, entender clara e honestamente o Evangelho, teste tudo pelas descrigdes dadas acima da Lei e do Evangelho. Quem nao seguir esse método de trata- mento nunca ser adequadamente versado na Filosofia de Cristo." Conquanto a Lei continue a conduzir o crente na vida crista, Calvino insiste em que ela nunca pode ser confundida com a Boa Nova. Mesmo apés a conver- sao, os crentes esto desesperadamente necessitados do evangelho porque eles léem os comandos, exortages, ameagas e avisos da Lei e muitas vezes vacilam em sua plena confianga porque nao véem em si mesmos essa justica que é exigida. Estou realmente entregue? Rendi-me verdadeiramente em todas as areas de minha vida? E se nao tive a experiéncia das mesmas coisas que outros crentes consideram normativas? Possuo mesmo 0 Espirito Santo? E se eu cair em peca- do sério? Sao perguntas que todos nds enfrentamos tanto no ministério pastoral como em nossa propria vida. O que vira devolver nossa paz e esperanga face a tais perguntas? Os Reformadores, com os profetas e apéstolos, estavam con- vencidos de que sé 0 evangelho podia consolar crentes que se debatem com essas questGes. Sem essa énfase constante na pregacao, nunca poderemos cultuar ou servir a Deus livremente, porque nosso olhar estara preso em nés mesmos, ou por desespero ou pelo orgulho da justi¢a propria, em vez de estar fixo em Cristo. A Lei eo evangelho, ambos devem ser pregados sempre, tanto para a convic¢ao como para instrugao, mas a consciéncia nao estard em repouso, diz Calvino, enquanto o evangelho estiver misturado com a Lei. “Conseqiientemente, esse Evangelho nao impde mandamentos, antes, pelo contrario, revela a bondade de Deus, sua misericérdia e seus beneficios.”"’ Essa distingao, Calvino dizcom Lutero € 0s outros Reformadores, assinala a diferenga entre 0 Cristianismo e 0 paganis- 108 REFORMA HOJE mo: “Todos os que negam isso viram de pernas para o ar todo o Evangelho; enterram Cristo inteiramente e destroem todo culto verdadeiro a Deus”."” Ursino, o autor principal do Catecismo de Heidelberg, disse que a distingao Lei-evangelho “compreendeu asoma e substancia das Escrituras sagradas”; sfo “as divisdes principais e gerais das escrituras santas, e compreendem toda a doutrina que nelas consta’”.'* Confundi-las é corromper a fé no seu cerne.'? Con- quanto a Lei deva ser pregada como instrugio divina para a vida cristi, ela nunca deve ser usada para abalar os crentes de confiarem que Cristo é sua justi¢a, e santificagdo, e redengdo (1Co 1.30). O crente vai até a Lei e ama a Lei pela sua sabedoria divina, pois ela revela a vontade daquele com o qual somos agora reconciliados pelo evangelho. Mas o crente n&o poderd encontrar perdao, mise- ric6rdia, vitéria, nem a propria forga para obedecé-la, indo a Lei, ndo mais de- pois da conversao quanto antes dela. Ainda é sempre a Lei que manda ¢ 0 evangelho que concede. E por isso que todo sermao precisa ser cuidadosamente construido sobre essa distingao fundamental. A medida que viaa Igreja Batista da Inglaterra cedendo terreno ao moralismo, nachamada Controvérsia Descendente, Charles Spurgeon declarou: “Nenhum Pponto existe no qual os homens cometam erros mais graves do que no relaciona- mento entre a lei e o evangelho. Alguns homens colocama lei em lugar do evan- gelho; outros pdem o evangelho em lugar da lei. Uma certa classe mantém que a lei eo evangelho esto misturados.... Esses homens nfo entendem a verdade e sao falsos mestres”.” Em noss0os dias, essas categorias mais uma vez est&o sendo confundidas, mesmo nas igrejas mais conservadoras. Ainda onde as categorias da psicologia, marketing e politica nao substituem as da Lei e do evangelho, grande parte da pregacao evangélica de hoje suaviza a Lei e confunde o evangelho com exorta- g6es, freqiientemente deixando as pessoas com a impressao de que Deus nao espera a justiga perfeita prescrita na Lei, mas s6 que o crente em geral tenha bom coragao e boa atitude, e que abstenha-se de pecados graves. Um moralismo suave prevalece em muito da pregaciio evangélica atual, e ouve-se a Lei prega- da, nao como condenagao e ira de Deus, mas como sugestdes que contribuem para uma vida mais realizada. Em lugar da Lei de Deus, muitas vezes vém suges- tées para ajudar na vida pratica. (Em uma igreja conservadora grande na qual preguei recentemente, o sermAo foi identificado no boletim como “Perspectivas de Estilo de Vida”. S6 ocasionalmente o ouvinte era lembrado de que isso seria um culto de igreja e nao uma reuniao rotariana). A piedade e fé dos personagens Os Soia's DA REFORMA 109 biblicos muitas vezes sao pregadas como exemplos para se imitar, junto com grandes vultos politicos como Thomas Jefferson e Benjamin Franklin. Como no liberalismo protestante, tal pregagao muitas vezes deixa de apresentar Cristo como o Salvador divino dos pecadores, para apresent4-lo s6 como 0 treinador cujo repertorio de jogadas vai nos mostrar como chegar a vitéria. Por vezes é menos uma questo de convicg%o do que uma falta de precisao. Por exemplo, com freqiiéncia ouvimos chamados para “viver 0 evangelho”, mas em nenhum lugar na Biblia somos chamados a “viver 0 evangelho”. Ao contrario, somos admoestados a crer no evangelho e a obedecer a lei, recebendo o favor de Deus de um ea diregaio de Deus do outro. O evangelho — ou Boa Nova— nao é que Deus vai ajudar-nos a alcangar seu favor com a ajuda dele, e sim, que Outro viveu a Lei em nosso lugar e satisfez toda a justiga. Ha também quem confunda a Lei com o evangelho, substituindo pelas exigéncias da Lei o simples mandamento para “entregar tudo” ou “fazer Jesus Senhor e Salvador”, como se essa operagdozinha assegurasse vida eterna. J. Gresham Machen, na primeira parte deste século, ja declarou: “De acordo com o liberalismo moderno, a fé é essencialmente equivalente a ‘fazer Cristo mestre” de sua vida.... Mas isso sim- plesmente significa pensar que a salvagdo é obtida pela nossa obediéncia aos mandados de Cristo. Tal ensino é apenas uma forma sublimada do legalismo”.”" Em outra obra, Machen acrescentou: Que proveito terei se me disserem que a religido apresentada na Biblia é um tipo excelente, e que o que devo fazer é comegar a praticar essa religidio a partir de agora?... Eu lhe direi, meu amigo. N&o me faz bem em nada.... O que preciso em primeiro lugar nao é uma exortagao, e sim, um evangelho, nao instrugdes para saber como me salvar, mas conhecimento de como Deus me salvou. Vocé tem alguma boa nova? Essa é a pergunta que eu lhe fago. Sei que suas exortagdes no vio me ajudar. Mas se algo foi feito para me salvar, serd que vocé nfio vai me contar os fatos?” Isso quer dizer que a Palavra de Deus néio manda que obedegamos? Ou que tal obediéncia é opcional? De modo algum! Mas significa que a obediéncia nao deve ser confundida com o evangelho. Nossa melhor obediéncia ja é corrompi- da, portanto como isso pode ser boa nova? O evangelho é: que Cristo foi cruci- ficado por nossos pecados e foi ressuscitado para nossa justificagao. O evange- lho produz vida nova, experiéncias novas e uma nova obediéncia, mas é freqiien- 110 REFORMA HOJE te demais confundirmos o fruto ou os efeitos com o proprio evangelho. Nada que acontega dentro de nés ¢, estritamente falando, o “evangelho”, mas 60 efeito do evangelho. Paulo nos instrui: Vivei... por modo digno do evangelho de Cristo (Fp 1.27). Embora 0 evangelho nao contenha mandamentos nem ameagas, a Lei, sim, os contém, e 0 crente ainda est obrigado a ambos, as duas “palavras” que ouve da boca de Deus. Assim como no caso da Trindade ou das duas natu- rezas de Cristo, no podemos nem divorciar nem confundir Lei e evangelho. Quando a Lei fica abrandada em doces promessas e 0 evangelho endureci- do em condigées e exortagdes, os crentes muitas vezes se acham em estado deploravel. Para aqueles que conhecem seus proprios Coragdes, a pregagaio que tenta suavizar a Lei coma afirmativa de que Deus olha 0 coragéio vem como ma noticia, ndo boa noticia: Enganoso é 0 coragdo, mais do que todas as coisas (Jr 17.9). Muitos crentes ja experimentaram a confusao entre Lei e evangelho em seu prato de cada dia, em que o evangelho era gratis e incondicional quando se tornaram crentes, mas agora é empurrado para tras para dar lugar a uma quase que exclusiva énfase nas exortagdes, Mais uma vez, nao é que as exortagdes nao tenham seu espago, mas nunca devem ser confundidas com 0 evangelho, e 0 evangelho do perdao divino é to importante para os crentes ouvirem como para os nao-crentes. Nem podemos presumir que os crentes um dia passem além do estagio em que precisam escutar o evangelho, como se a Boa Nova terminasse na convers&o. Pois, como disse Calvino, “Todos somos em parte descrentes por toda nossa vida”. Precisamos ouvir constantemente a promessa de Deus a fim de refutar as duividas e temores que nos sao naturais. Mas ha muitos, especialmente em nossa época narcisista, cuja ignoranciada Lei conduz a uma seguranga carnal. Assim, as pessoas muitas vezes concluem que “seguro estou do poder do mal” porque caminharam pelo corredor da igre- ja, fizeram uma oragao ou deram seu nome, embora nunca tenham tido de desis- tir de suas préprias folhas de figueira para serem vestidos com a justi¢a do Cor- deiro de Deus. Ou talvez, embora nado tenham amado perfeitamente a Deus e ao proximo, concluem que pelo menos sao “entregues”, “dedicados” ou estilo “dando lugar ao Espirito”; que esto “vivendo vitoriosamente sobre todo pecado conhe- cido” e desfrutando “da vida espiritual”. Enganando-se e enganando a outros, precisam ser despidos de suas folhas de figueira e vestidos com as peles do Cordeiro de Deus. Assim, Machen escreve: Os Sora's DA REFORMA V1 Uma proclamagao nova e mais poderosa da lei talvez seja a neces- sidade mais premente desta hora; os homens teriam pouca dificuldade com 0 evangelho se tivessem ja aprendido a ligdo da lei. Como estéio as coisas, desviam-se do caminho cristao; esto tomando o rumo da vila da Moralidade, e vao a casa do Sr. Legalidade, que dizem ser muito habeis em aliviar os homens de seus fardos.... “Fazer Cristo Mestre” de sua vida, pér em pratica “os principios de Cristo” por esforgo proprio — estas sdio meramente novas maneiras de merecer a salvagdo pela obediéncia aos mandamentos de Deus. E so empreendidas por causa de uma vis&o imprecisa do que sejam esses mandamentos. Sempre é assim: um conceito baixo da lei sempre traz a religiao o legalismo; um conceito alto da lei faz o homem procurar a graga.” Precisamos, pois, recuperar a Lei e 0 evangelho, e com esta pregagaio: a mensagem Cristocéntrica da Escritura. Se nao, o nosso trabalho nada de bom produzira, por mais que sejamos comprometidos com a inerrancia. Nao podere- mos dizer que estamos pregando a Palavra de Deus a nfo ser que estejamos distinta e claramente proclamando ambos, 0 juizo de Deus e sua justificagéo, para alimento de nossas igrejas. A fim de recuperar a suficiéncia da Escritura precisamos, portanto, como os Reformadores, recuperar a distingdo entre coi- sas celestiais ¢ coisas terrenas, entre a Palavra contida pela Escritura de Deus e o entusiasmo individual, e entre a Lei e o evangelho. Isso nos conduz diretamente ao segundo “sola”. Solus Christus Dizer que o sentido da Biblia é redentor é dizer que Cristo é a figura central. S6 quando se defende a Escritura somente é que estaremos certos de que a igreja se apegard a Cristo somente. Com audacia, Jesus acusou os estudiosos da Biblia de seu tempo de nao conhecerem as Escrituras (Mc 12.24; Le 24.45) e decla- rou: Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e sGo elas mesmas que testificam de mim (Jo 5.39). Apés sua ressurrei¢ao, nosso Senhor explicou as Escrituras no caminho de Emais a dois de seus seguidores. Mas primeiro, ele os repreendeu duramente por nao terem lido 0 Antigo Testa- mento com ele mesmo no centro: O néscios e tardos de coragdo para crer em tudo o que os profetas disseram!... E comegando com Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas 112 REFORMA HOJE as Escrituras (Le 24.25-27). Imagine o poder daquele sermao! Nao é de admi- rar que seus coragSes ardessem dentro deles! Jesus ensina aqui como devemos Jer e pregar a Biblia. Nao é principalmente sobre os herdis biblicos ou ligdes de vida, mas a revelacdo de Cristo. Semelhantemente, Pedro nos lembra que a mensagem principal de todo o Antigo Testamento é os sofrimentos referentes a Cristo e... as glérias que os seguiriam (1Pe 1.11). Conforme observamos, a Lei esté escrita em nossa consciéncia na criagao, e todos conhecem 0 certo e 0 errado. De fato, se procuramos primeiramente um livro de contos criados para ensinar ligdes de moral, a Biblia poderd perder para as Fabulas de Esopo. Todos os heréis biblicos representam pecaminosidade, desobediéncia, irresolugao e orgulho, além de fé ¢ obediéncia. O heréi verdadei- ro € Deus, que permanece fiel a sua promessa apesar do pecado humano. Ne- nhuma instru¢do moral ¢ adquirida facilmente por nds, mas 0 evangelho nao esta em nés por natureza; precisa ser revelado do céu. E principalmente por isso que temos a Palavra de Deus. Pregar a Biblia como “o manual para a vida” ou como a resposta a todas as perguntas, em vez de como a revelacao de Cristo, é transformar a Biblianum livro inteiramente diferente. Era assim que os fariseus abordavam a Escritura, entretanto, e como podemos ver claramente pelas perguntas que faziam, estas eram tao triviais como as de um jogo de auditério na televisao: “O que acontece se uma pessoa se divorciae se casa de novo?”, “Por que seus discipulos colhem grdos no s4bado?”, “Quem pecou, esse homem ou seus pais, para que nascesse cego?”. Para os fariseus, as Escrituras eram uma fonte de trivialidades para os dilemas da vida. E certo que a Escritura fornece sabedoria divinamente revelada e centrada em Deus para a vida, mas se esse fosse seu objetivo primordial, o Cristianismo seria uma religiao de automelhoramento, que seria alcancado ao se seguir exemplos e exortagdes, no uma religido da cruz. E bem isso que Paulo aponta aos corintios, cuja obsessao pela sabedoria e pelos milagres havia obscu- recido a verdadeira sabedoria e 0 maior de todos os milagres. E qual sera esse milagre? Ele se nos tornou [tornou-se para nds] da parte de Deus sabedoria, e justia, e santificagdo, e redengdo, Paulo responde (1Co 1.28-31). Na cultura popular, os artistas, radialistas, professores, roteiristas de filmes e programas humoristicos nao sabem bem como retratar um pastor, mas 0 que sai, quase sempre, é um homem que nos ajuda a pensar se devemos pagar extra por nao rebobinar o video antes de devolvé-lo. Nessas representag6es, 0 pastor esta ali para ajudar-nos a sair de nossos dilemas éticos, mas a possibilidade de Os Soia's DA REFORMA 113 sair de seus labios algo que s6 um crente poderia dizer seria inconcebivel. Sera tudo isso caricatura? Nao existe algo de real no sentimento que muitas pessoas tém, de que em geral a religido tem a ver com o modo como nés tratamos da vida aqui e agora, em vez de como tratamos das questées fundamentais sobre verda- de e eternidade? O filésofo William James disse que 0 teste de uma verdade particular é “seu valor na hora em termos experimentais.” A grande questao, diz. James, sera: “Vai funcionar?” Um seguidor contemporaneo de James, Richard Rorty, argumenta que o tinico critério para se julgar se uma afirmacéio é verda- deira, se possui validade, é sua utilidade terapéutica. Ora, poderemos encolher- nos diante dessa celebrag&o do relativismo narcisista, mas ¢ freqiiente demais que os evangélicos argumentem dessa forma a favor da abordagem das “neces- sidades sentidas” no evangelismo e nos cultos de hoje, como os protestantes liberais fizeram antes deles. Como os fariseus, muitas vezes lemos e usamos a Biblia como um catdlogo de dicas praticas — em outras palavras, como politica ou terapia. Muitissimas vezes, a énfase no “testemunho pessoal” do crente afasta Cristo para o lado. Novamente, é Machen quem observa: O evangelismo cristo nao consiste meramente em um homem an- dar pelo mundo dizendo: “Olhe para mim. Que experiéncia maravilhosa estou tendo, como estou feliz, que virtudes crist&s magnificas eu de- monstro; vocés todos podem ser tdo bons e t4o felizes quanto eu se apenas fizerem uma entrega de sua vontade em obediéncia aquilo que eu digo”.... Os homens nao sao salvos pela exibigdo de nossas gloriosas virtudes cristéis; ndo sao salvos pelo contagio de nossas experiéncias.... Nao. Precisamos pregar para eles o Senhor Jesus Cristo; porque é sé pelo evangelho que o apresenta que podem ser salvos. Se vocés que- rem satide para suas almas, e se querem ser os instrumentos que trazem cura a outros, nao voltem seus olhos sempre para dentro, como se pu- dessem encontrar Cristo ali, Nao, voltem os olhos para fora de suas proprias miseras experiéncias, para fora de seu proprio pecado, para o Senhor Jesus Cristo, como ele nos ¢ oferecido no evangelho.™ Como Niebuhr anos mais tarde, Machen estava criticando 0 liberalismo que era na época o suco do pietismo se transformando no vinagre da apostasia. O pietismo de hoje é 0 liberalismo de amanha. Semelhantemente, os reformadores acreditavam que Roma havia obscurecido Cristo de varias formas. Nao foi sé devido ao sacerdotalismo ou o culto da Virgem, dos santos e martires, mas tinha muito a ver com o fato de que a teologia da Idade Média era centrada no ho- 14 REFORMA HOJE mem. Isso nao impede que se diga que tinha elementos centrados em Deus, mas estavam subordinados. Baseado amplamente nas epistolas de Paulo, Lutero con- trastou especialmente a teologia da gloria com a teologia da cruz. Pelo primeiro caminho, os aspirantes subiam escadas de méritos, especulagdes e misticismo para experimentar Deus diretamente. A teologia da cruz era ofensiva porque seu enfoque estava em Deus e sua atuacao salvifica em Cristo, no no homem e sua ascensio espiritual por esforgo proprio, sabedoria do mundo e experiéncias empolgantes. Tudo isso eram tentativas, nas palavras de Lutero, de ver Deus nu, de experimenta-lo diretamente a parte de Cristo. Como os corintios, muitos evangélicos modernos est&io obcecados ou com a sabedoria pratica ou com sinais e maravilhas, e quando essas preocupagdes sao colocadas como centrais, a pregaco, o culto e a evangelizagaio consideram acruz ofensiva ou estranhamente deslocada. Compare os hinos centrados na cruz, por exemplo, que Isaque Watts, Charles Wesley e outros escreveram, com os cdnticos de louvor mais populares de hoje nos quais o sentimentalismo muitas vezes parece imperar. Onde est4 a cruz? Esta perdida numa teologia de gloria, uma mensagem de triunfo que conduz a exaust&o do fogo, em vez de levar ao desespero que conduz a Cristo. Portanto, Cristo é cada vez mais aclamado hoje dentro do evangelicalismo popular, sobretudo como 0 exemplo moral que mais altamente ilustra o amor e perdao de Deuse que nos da diretrizes titeis, e nio como 0 sacrificio propiciatério pelos pecadores que merecem a ira divina. Em resumo, pregar Cristo é especificamente proclamé-lo em suas fungdes de Profeta, Sacerdote e Rei. Nao precisamos de outros profetas para revelar a Palavra ou a vontade de Deus; de nenhum outro sacerdote para mediar a salva- ao e béngdo divinas; de nenhum rei adicional para governar a doutrinae vida das igrejas ou crentes individuais. E mais, representar Cristo antes de tudo como Divino Terapeuta, Guia, Amante, Herdi, Fonte de Poder, Reformador Politico, Curador, Treinador ou qualquer outro que nao seja o Mediador entre Deus e os maus é afastar a centralidade de Cristo por um golpe contra a centralidade de sua missao e posig&o genuina (1Co 1.22-2.2). A natureza pérfida da podridao que corréi a verdade salta aos olhos nas maneiras sutis pelas quais a centralidade de Cristo e sua obra mediadora € pre- judicada; mas, uma vez obscurecida a posigdo sacerdotal de Cristo, é mais facil erigir obstaculos mais direitos. Por exemplo, nos argumentos muito usados a Os Sora's DA REFORMA 115 favor de oragdes inécuas (“nao sectarias”) nas escolas piblicas ou de oragdes civicas muitas vezes feitas em reunides patrocinadas por pessoas de religides diversas, a suposi¢ao é que 0 acesso genuino a “Deus” pode ser alcangado 4 parte de um objeto apropriado (o Deus Tritino) ou um Mediador apropriado. Como um evangélico declarou em uma pesquisa recente: “Todos acessamos Deus de modos diferentes.” Conquanto ja temos ouvido falar muito sobre a politica da oragao civil, onde é que esto surgindo as objegdes teolégicas? Mais desconsertante ainda do que as sutilezas da religiao civil so os achados de James D. Hunter, George Gallup e George Barna a esse respeito. Segundo estudos recentes, 35 por cento dos seminaristas evangélicos da América negam que a fé em Cristo seja absolutamente necesséria e a mesma porcentagem de toda a po- pula¢do evangélica adulta concorda: “Deus salvard todas as pessoas boas quan- do morrerem, independentemente de terem ou nao confiado em Cristo”. E claro que esta ultima estatistica repousa sobre a premissa, amplamente aceita como possivel em nossa sociedade, de que os seres humanos sao basicamente bons. Esta idéia recebe um sinal de aprovacdo por parte de 77 por cento dos evangélicos americanos,” ¢ isso nos conduz divisa seguinte da Reforma: “Somen- tea Graga”. Sola Gratia Se os seres humanos sdo basicamente bons e 0 mal pode ser atribuido a forgas impessoais, a estruturas, instituic¢des e criag&o, entao a doutrina da graga — a esséncia do evangelho — fica sem sentido. Durante séculos isso tem sido cha- mado de pelagianismo, mas hoje é abracado pela grande maioria dos evangéli- cos. Isso demonstra até que ponto o secularismo domina as estruturas da fé de muitos que se dizem “crentes biblicos” ortodoxos. Embora alguns lideres eclesidsticos medievais tivessem avisado contra a in- filtragao de um pelagianismo progressivo (especialmente Thomas Bradwardine, arcebispo de Canterbury no século 14, e Johann von Staupitz, o superior de Lutero na ordem agostiniana), os préprios reformadores n&o acusavam aigreja dessa heresia porque o ensino oficial do magisterium condenou 0 pelagianismo por seus conceitos fracos de pecado e graca. O que os reformadores condena- ram foi o semipelagianismo, cuja esséncia era captada no lema: facienti quod in se est Deus non denegat gratiam [Aqueles que fazem o que lhes é possivel fazer Deus n&o negaré sua graga]. A graga, na mente medieval, era semelhante a 116 REFORMA HOJE uma substancia infundida ou despejada nos crentes afim de transforma-los @ medida que cooperavam com ela. O crente comum poderia fazer uso de um pouco dela, mas 0 devoto verdadeiro poderia conserva-la pelo zelo extraordind- tio e por técnicas espirituais. Também nisso, os reformadores acusavam a mani- festagao de uma teologia antropocéntrica que nao havia realmente chegado a uma conclusao com a adverténcia de Santo Anselmo: “Vocés nao consideraram ainda a enormidade de seu pecado”. Mais uma vez, nos dias de hoje, o enfraquecimento da nossa doutrina do pecado e a perda da percepgao do desespero humano na pregacio, ensino e publicagao de livros conduziram a uma visdo miope da graga. Se a pessoa se sente totalmente condenada e impotente, um evangelho que proclama a graga divina como perdao é a resposta indubitavel. Mas se ela se sente sé extraviada, infeliz, néo-realizada e fraca, um evangelho que oferega uma assisténcia infundida jaésuficiente. O equivalente moderno de “Deus nao negara sua graga aqueles que fazem o que lhes é possivel fazer” poderia ser “Deus ajuda quem cedo ma- druga”, que é um sentimento aprovado por 87 por cento dos evangélicos ameri- canos ” e esse nimero aumenta com a freqiiéncia do envolvimento em igrejas evangélicas. Mas com mais freqiiéncia quem levanta essas questdes sAo os escri- tores seculares, como no artigo recente de Newsweek cujo titulo repetia pala- vras de um psicdlogo secular: “O Que Aconteceu com 0 Pecado?” Nesse artigo, oautor diz que toda a idéia de culpa foi descartada “no atual espirito exaltado da religido americana’”.* Como chegamos a essa situagéio? E que simplesmente chegamos tarde a conclusdes defendidas no comego do século pelos modernistas? Ou as sementes da destruicdo foram semeadas ja antes deste século? Lamentavelmente, tanto 0 liberalismo como o evangelicalismo podem provavelmente compartilhar a mes- ma linhagem na fronteira do avivamento. E muito desse avivamento foi respons4- vel pelo renascimento do pelagianismo, mesmo antes da chegada do liberalismo protestante. Nao foi Feuerbach, e sim Finney, quem declarou: “Nada existe na religiao além das forgas comuns da natureza. Ela consiste inteiramente do justo exercicio das forgas da natureza. E 6 isso e nada mais, Quando a humanidade se torna religiosa, nao é que ela seja capacitada para praticas que antes era incapaz de exercer. As pessoas s6 se valem de forgas que j4 tinham antes, de forma diferente, e usam-nas para a gléria de Deus”. Ent&o, para Finney, mesmo 0 reavivamento —a conversao de grande grupo de pecadores — “nao é mila- gre, nem depende de milagre, em qualquer sentido. E um resultado puramente Os Soza's DA REFORMA 7 filosdfico do uso certo dos meios constituidos — tanto como qualquer outro efeito produzido pela aplicagao de meios”. Isso significava, disse Finney, que 0 evangelista sé poderia ter éxito empregando “estimulos poderosos”.” Devemos reconhecer, para fazer justi¢a a Roma, que as convicgdes de Finney teriam sido condenadas nfo sé pelos reformadores, mas também pelo magisterium catélico romano, como uma negagado das doutrinas biblicas de pecado e graca. O evangelicalismo herdou essa tendéncia pragmatica e naturalista da Contra-Re- forma americana, de modo que, quando um dos teélogos evangélicos de hoje declara que “finalmente fizemos as pazes com a cultura da modernidade”,”* nao é simplesmente a rendigdo dos conservadores ao liberalismo, mas dos protes- tantes em geral a um incipiente pelagianismo que esteve presente no avivalismo desde 0 inicio do século 19. Ironicamente, muitos crentes conservadores que Jastimam o naturalismo na cultura geral, especialmente no campo da ciéncia, nao deixam de imitar o naturalismo religioso de Finney no evangelismo, no cultoena politica. Dizer que a salvacao é somente pela graga nao é sé afirmar o cardter sobre- natural da salvacéio, mas é também excluir qualquer forma de sinergismo (isto 6, salvacfio como resultado de cooperagdo humana-divina). Enquanto o novo nas- cimento produz uma nova obediéncia na qual a pessoa comega a cooperar com Deus em seu crescimento, a decisdo e esforgo humano sao totalmente excluidos como tendo qualquer papel atuante nesse novo nascimento: Assim, pois, nGo depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericor- dia (Rm 9.16). Nao depende do desejo nem do esforgo do homem, mas da misericérdia de Deus. A Reforma insistia nesse conceito teocéntrico, exaltando a elei¢ao divina contra 0 livre-arbitrio e 0 descer divino contra o ascender humano em todas as suas formas. Somos lembrados do debate contra Erasmo sob o titulo de ébvia interpretagio, A Serviddo da Vontade. Conquanto possamos diferir quanto a outros pontos de fé relacionados, aqueles que est’o convencidos de que a Re- forma era essencialmente certa no se podem dar ao luxo de nao tomar posigdo sobre a eleig¢éo condicional e a obra unica, monergista, do Espirito Santo em. conceder nova vida. Portanto, se estamos realmente convencidos da justeza da critica que a Reforma fez Roma medieval, também nao podemos mais aceitar a doutrina arminiana dentro dos circulos protestantes, Nao é s6 Roma que precisa ser rejeitada, mas o sistema wesleyano, conforme mediado por Charles Finney, opentecostalismo ¢ a tradigao avivalista, no ponto em que cada um deles deixa 118 REFORMA HOJE de honrar suficientemente a graca de Deus. Até onde o protestantismo exaltouo homem as custas de Deus, até ali acomodou-se 4 era moderna ¢ isto esta, sem duvida, no Amago da crise que nos trouxe até aqui, para hoje nos arrepender, recuperar e confessar. Essa recuperagao a qual nos referimos é uma tarefa dificil que nos fara che- gar a conclusdes que poderdo nos privar de paz e honra em nossa posigao atual. De todos os nossos esforgos, sera o mais dificil. Afinal, em nossa abordagem para escolher a verdade que nos convém, como num restaurante self-service, os americanos aceitam felizes tudo que dizemos, depois colocam na bandeja um pratinho de Béncfio de Toronto e um prato de ideologia politica também, talvez escalhendo um copo de terapia de auto-estima para beber. Precisamos nos ocupar com antitese. Precisamos declarar, com os reformadores e com 0 Credo Atanasiano, nao s6 “Cremos...”, mas “Portanto, condenamos....” Nao devemos apenas declarar claramente nossos argumentos, mas estarmos dispostos a arti- cular quais as crengas em oposigao e praticas que ento nao serdo coerentes. Essa antitese nao chega a ser tao importante no caso de nenhuma outra verdade como éem “S6a graga”. Paulo empregou justamente esse tipo de anti- tese quando declarou: Se /a eleigdo] é pela graga, jd nao é pelas obras; do contrario, a gracga ja ndo é graca (Rm 11.6). Ba espécie de clareza de que encarecidamente necessitamos nesta hora. A énfase teocéntrica que sustenta a teologia da Reforma foi chamada de “a revolugo de Copérnico” da historia da igreja, e embora a Contra-Reforma Catélica Romana tenha ocorrido no fim do século 16, a Contra-Reforma Protestante vem obtendo éxito nos dois tltimos séculos. Defender sola gratia em nossa época certamente nao sera menos dificil para nés do que foi para os reformadores, ¢ isso nos leva ao proximo “sola”. Sola Fide Sea salvagio toda se deve a graga divina, isso realga melhor ainda 0 evangelho da livre justificacao, E“o artigo pelo qual aigreja se sustenta ou cai”, declararam Lutero e Calvino sobre a “sola fide”. Visto que a igreja medieval ndo negou a autoridade da Escritura, nem a necessidade de Cristo e da graga, ent&o ela também nao negou aimportancia da fé. Na verdade, nao poderia haver salvagao a parte dela, insis- tia a igreja medieval. Mas a fé era considerada como mero consentimento ao Os Soza's DA REFORMA 119 ensino da igreja. Os Reformadores observaram que, em toda a Escritura, a fé era vista ndo sé como questéo de conhecimento e consentimento, mas também de confianga — confianga na promessa de Deus em Cristo de salvar pecadores. Por causa da maneira em que encaravaa fé, a igreja medieval concluiu que algo mais era exigido para que a fé pudesse ser verdadeiramente salvadora. Sendo assim, 0 amor era visto como 0 aditivo formal que modelaria e completaria a fé. Desta forma, podia-se até falar em justificagéo pela fé, mas sempre significando asantificacao pela cooperagao da pessoa com a graga inicial recebida. No batis- mo, Deus imbuia a graga inicial no crente para que o habitus ou “natureza” da nova vida fosse implantada. Os Reformadores perceberam que isso se devia mais a Aristételes do que a Escritura. Além disso, o proprio Lutero era devedor do renascentista notavel, 0 humanista Erasmo, por ter ele descoberto discrepAncias entre a Vulgata Latina (a tradugao de Jerénimo da qual a igreja vinha dependendo) e o Novo Testamento Grego. A mais gritante, pelo menos do ponto de vista de Lutero, era a tradugao errada da palavra grega “justificar”. O original grego, diakaiosune, que significa “declarar justo” estava traduzido pela palavra latina justificare, que quer dizer “fazer justo”. Assim, a justificagao foi vista como processo de se tornar ou ser feito justo em vez de um ato declarativo de um tribunal. Esta tradugdo da Vulgata levara Lutero, junto com o restante do mundo medieval, a crer que a salvaco consistia em 0 individuo cooperar com a gtaga de Deus a medida que era transformado em pessoa justa. Em outras palavras, a justificagdo e santificagao eram uma coisa sd. Antes, Lutero tinha lido sobre a justiga de Deus em termos de algo que Deus exigia, mas agora percebeu — especialmente a luz de Romanos e Gélatas — que era também uma justiga que Deus concedia. E nao era s6 dada como habitus infundido, mas como uma dadiva da posigao de justo. Em outras palavras, Lutero finalmente percebeu que ajustificagdo era uma mudanga legal, e nao moral. Deus exige uma justiga perfeita, disse Lutero. Nao, exige apenas a disposi- ¢4o de cooperar com a graga, disse Roma. Mas Lutero foi levado até mesmo pelos estudiosos gregos de Roma a reconhecer que a Biblia ¢ extremamente clara sobre a natureza objetiva e juridica da justificagao, e ele percebeu que a unica justia perfeita é a de Cristo. Lutero acabou convicto de que as Escrituras ensinavam claramente dois pontos essenciais: Deus nao pode aceitar uma justi¢a imperfeita, e por isso ele imputa (credita) ao crente a “justi¢a alienigena” de Cris- to, que é perfeita. Assim, o crente € simul justus et peccator — “simultanea- 120 REFORMA HOJE mente justo e ainda pecador”. Embora a santificacdio (a obra de Deus dentro dos crentes) seja incompleta nesta vida e os crentes tenham sempre motivo de ser julgados por causa de sua propria maldade, eles nao entram em juizo porque a perfeita justica de Cristo é creditada a eles, somente pela fé. A maneira como a Reforma colocou isso foi: per fidem propter Christum — pela fé, por causa de Cristo. Expressaram-no assim para que as pessoas ndo vissem a fé como sendo abase para a justificagdo, visto ser facil, ent&o, fazer da fé a “pequena obra” que a pessoa faz para merecer ajustificagdo. Cristo, e ndoa fé, é de valor e inexaurivel em riquezas de justiga. Até mesmo a fé se mistura com divida e muitas vezes é fraca. Mas éa forga da justiga de Cristo, no a da fé do cristo, que conserva a pessoa em boa situagdo diante de Deus. Em nossos dias, a doutrina da justificacao é amplamente esquecida, ignora- da, raramente central, e muitas vezes até negada pelos tedlogos e pastores pro- testantes — e tragicamente, mesmo os evangélicos. Se as estatisticas citadas acima sao indicativas da realidade, 87 por cento dos evangélicos americanos sao praticantes cat6lico-romanos medievais quanto a seu conceito de como o indivi- duo se relaciona com Deus. Freqiientemente, a énfase recai sobre a obra de Cristo ou do Espirito Santo dentro do crente para que ele atinja “a vida crist4 vitoriosa”, ou sobre os passos e principios para que ele se aproxime de Deus. Em meio a nossa énfase subjetiva sobre a vida interior, é desesperadora a neces- sidade de ouvirmos 0 famoso conselho que Lutero deu a Melanchthon: “O evan- gelho se acha inteiramente fora de vocé!” A igreja medieval temia que esses conceitos levassem a conclusao de que nao seria preciso se preocupar com obediéncia e amor se a pessoa ja fosse declarada justa no momento em que cria. Isso também parece preocupar muitos evangélicos modernos. E penetra fundo em nossa histéria recente, com a énfase do pietismo na vida interior e a impaciéncia de Wesley em certos pontos de seu ministério com a doutrina da justificagdo judicialmente declarada. Apesar das vastas diferengas, todas as principais expressées religiosas da América, liberal ou conservadora, Nova Era ou evangélica, compartilham pelo menos uma coisa em comum. Em graus que variam, sao sempre interiores e subjetivas em sua orientagdo. Jévimos como era profundo o comprometimento de Charles Finney com as convicg6es pelagianas. Nao nos deve surpreender, portanto, achd-lo rejeitando também sola fide, declarando ousadamente que essa doutrina, como o pecado original e a expia¢do substitutiva, era “impossivel e absurda”.*! Finney escreve: Os Soza's DA REFORMA 121 “Como ja foi dito, nao pode existir qualquer justificagéio no sentido legal ou judi- cial, mas sé com base na universal, perfeita, ininterrupta obediéncia a lei.... A doutrina de uma justiga imputada, ou que a obediéncia de Cristo a lei foi contada como sendo nossa obediéncia, é fundamentada numa alegac‘io totalmente falsae tola”, essa alegagao sendo a expiacao substitutiva. “A doutrina de uma justicga imputada”, diz ele, “é um evangelho diferente”,” e a tradigdo avivalistaem geral tinha a tendéncia de dar énfase a atividade humana, as vezes ainda mais perigo- samente do que quando expressa por Roma. Pelo menos Roma colocava Cristo como a base principal da justificagdo e negava a possibilidade de que os crentes pudessem alcangar perfeicéo moral, muito menos ser assim justificados, Nossa tradigao evangélica, portanto, esta também na encruzilhada sobre esse ponto essencial. Russell Spittler, do Seminario Fuller escreve: “Mas sera que pode ser verdade —- santo e pecador ao mesmo tempo? Desejaria que fosse assim.... Pergunto se esta correto: ‘Eu nao preciso trabalhar para me for- nar, Ja sou declarado santo’. Nao é preciso suar? Parece-me errado. Ougo na Escritura as exigéncias morais.... Contudo, sou agradecido pela frase de Lutero € por seus descendentes.... Mas simul justus et peccator? Espero que seja assim! S6 temo que no seja”.> Clark Pinnock fica téo pouco a vontade com um conceito de justificagaio objetiva que ele se coloca a favor da “possibilidade de uma doutrina de purgat6- tio”. Diz assim: “Nosso modo de pensar wesleyano e arminiano talvez precise ser estendido nessa diregaio”.* Nao que estejamos sugerindo que comentarios excéntricos como esse seriam endossados por uma maioria de evangélicos, mas a sugestdo é que a chamada megamudanga de dire¢o descrita no periddico Christianity Today em 1990 (19 de fevereiro) esté extraindo muito do pelagianismo incipiente que hd dentro do protestantismo americano e da consci- éncia modema, Essa megamudanca inclui um “novo modelo” de evangelicalismo, que critica a pregacfio que trate de ira divina, pecado original e pessoal, expiagaio vicdria e justificagao juridica.** O paradigma evangélico classico, segundo eles, tende a ofender desnecessariamente, por ser insuficientemente “relacional” e sen- sivel as experiéncias de homens e mulheres contemporaneos. A vitéria do terapéutico dentro do evangelicalismo tem uma ilustragao nitida na adverténcia de Ray Anderson: “Se nosso pecado é visto como causador da morte de Jesus nacruz, entéo nds mesmos nos tornamos vitimas da ‘agressdo psicoldgica’ pro- duzida pela cruz. Quando sou levadoa sentir que a dor e 0 tormento da morte de Jesus na cruz se devem ao meu pecado, eu imponho tormento espiritual e psico- légico amim mesmo”. 122 REFORMA HOJE Sera que deveriamos ver tais comentarios como desvios excepcionais que nao devem ser usados para refletir o estado geral em que se encontra o evangelicalismo? Certamente muitos pastores evangélicos ficariam embaragados se tivessem de fazer declaracdes tao ousadas, mas vale a pena dizer aqui que esses sentimentos diferem quanto ao grau, mas no quanto ao género daqueles que sao tipicamente oferecidos na pregagao, publicagdo e radiodifus&o evangé- lica atual. Em outras palavras, os aspectos da consciéncia moderna que tornam o relativo uma categoria dominante e empurram os temas classicos para a periferia do campo visual sao tao difundidos que os evangélicos mais conservadores se véem simpatizando com os evangélicos do “novo modelo” por raz5es que muitas vezes sentem mas nao entendem. Mesmo quando se recusam a “tevisar” a teolo- gia evangélica, os evangélicos mais conservadores agora compartilham a mesma visdo de mundo, e na pratica muitas vezes seguem conceitos que poderiam nao aceitar se fosse questo de responder a uma pergunta direta. Portanto, é essen- cial nao sé esperarmos sinais de uma apostasia verdadeira ou de desvios explici- tos, mas nos aprofundarmos sob as declaragées mais flagrantes numa tentativa de discemir o quadro geral da consciéncia moderna. Embora nao se possa condenar como sendo explicitamente pelagiana a tra- digo avivalista inteira, ela tem sofrido a tendéncia de confundir consideravel- mente essas quest6es, pelo menos em suas formas mais populares. Desafios 4 doutrina sola fide da Reforma ja vieram de todo quadrante: da teologia biblica, da teologia sistematica, de lentes em Antigo e Novo Testamento, de lideres paraeclesiais e de evangelistas. Mas quase sempre, a doutrina nao tem sido nem afirmada nem negada, apenas ignorada. Até onde a igreja é impulsionada pelas necessidades sentidas da cultura, a salvagao da ira divina e a justificag&o diante de um Deus santo serd “loucura para os que se perdem”. Em 1993, a revista Newsweek publicou uma historia sobre uma igreja enorme do Arizona que tinha abandonado a catequese e pregacao em favor de “uma Escola Dominical com coisas apelativas tipo Steven Spielberg [e] musica genérica Amy Grant nos cul- tos” bem como drama em lugar de sermao. O pastor da igreja disse a Newsweek: “As pessoas hoje nao se interessam pelas doutrinas tradicionais como justifica- Ao, santificacfio e redengfo”.*’ Mas se tais verdades apostélicas nfo siio tao relevantes como, digamos, alivio do estresse ou casamentos mais felizes, o que isso nos conta? Conta qual é a situag4o, mas nfo qual deveria ser. E precisamente porque a justificago ndo é a “necessidade sentida” do nao- crente que nés precisamos pregar a Lei. De repente, até as pessoas religiosas Os Sora's DA REFORMA 123 que achavam que estavam vencendo sentem 0 fundo do pogo de sua deprava- 40 quando clamam com o publicano: “O Deus, sé propicio a mim, pecador!” A necessidade de misericérdia sé é sentida depois que a realidade da culpa im- pressiona. Sé entdo o evangelho pode aliviar. Se o evangelho deixa de ser rele- vante, no mudamos nossa mensagem a fim de ser mais “praticos”; certificamo- nos de que estamos pregando a Lei em seu terror, seguida do aviso bondoso da paz que Deus realizou pelo sangue de seu Filho, recebido somente pela fé. Que motivo teriam o Ari ea Maria que “nao sao de igreja” para sentir a necessidade da justiga de Cristo, se eles nao perceberem sua nudez perante um Deus santo? Quando nos dizem que a mensagem da ira e santidade divina nao vai apelar aos ouvintes dos nossos dias, isso no surpreende! O grito pelo socorro da graga nunca cativard o ouvido enquanto nao houver novamente um sentimento de culpa e desespero em nossas igrejas. Se essa doutrina, cuja recuperagdo sempre esteve atras de todo despertamento importante da historia da igreja, é a verdade pela qual a igreja subsiste ou cai — em outras palavras, se ela for o proprio evangelho — no ha duvida de que o declinio da igreja contemporanea se deve em grande parte ao esquecimento deste princfpio central. Essa verdade nao foi feita para ser apenas afirmada como parte de uma confissao, mas para ser proclamada como a “boa nova” que justifica nao sé o crente diante de Deus como também a existéncia da igrejano mundo. Soli Deo Gloria Oatual papa assina suas cartas, “A Maior Gloria de Deus”, e néio ha ditvida de que o Catolicismo Romano deu espago em sua teologia a gloria de Deus. Mas como no caso dos outros temas que mencionamos, era apenas um lugar dentro de um sistema teolégico que tinha doutrinas mais importantes as quais esses te- mas eram subordinados. Dizer que Roma estava centrada no homem nao é suge- tir que o elemento centrado em Deus estava inteiramente ausente, mas ficava este inteiramente subordinado aquele. Se os seres humanos contribuissem para sua propria salvacdo de alguma forma, ou sendo “quem quer ou... quem corra”, nas palavras de Paulo, ou sea salvacao é concebida eudemonisticamente, como meio de se chegar a felicidade nesta vida, e ndo como caminho a reconciliagao com um Deus santo, 0 resultado indiscutfvel é uma religiao antropocéntrica. 124 REFORMA HOJE zago, bem-estar terapéutico, nem ainda de virtude moral. A reconciliagao com Deus é um fim legitimo em si; é 0 reconhecimento da gloria de Deus na redengaio de pecadores e no requer algo maior do que isso para justificar sua importancia. Pregar a Escritura é pregar Cristo; pregar Cristo é pregar a cruz; pregar a cruz é pregar a graca; pregar a graca é pregar a justificagAo; pregar a justificagao é atribuir 0 todo da salvagiio a gloria de Deus e responder a essa Boa Nova em grata obediéncia por meio de nossa vocagao no mundo. Lutero lutou para distinguir a sua obra de “reformas” anteriores. Semelhan- tes amuitos dos movimentos frenéticos de reforma, renovagao ¢ avivamente dos nossos dias, as outras reformas se preocupavam com moralidade, vida da igreja e mudangas estruturais, mas Lutero disse: “Nés visamos a doutrina’”’. Nao que fossem sem importancia essas outras areas, mas seriam secundarias. Contudo, com sua “Revolugdo Copernicana”, nasceu um movimento teocéntrico que teve enormes efeitos sobre a cultura mais ampla. A orientagao da vida e do pensa- mento centrados em Deus comegou no culto em que o enfoque era na ago de Deus em sua Palavra e sacramento, em vez de estar em deslumbrar e entreter as pessoas com pompa e aparato. Quando os crentes estavam centrados em volta de Deus ¢ sua obra salvifica em Cristo, seus cultos ajustavam sua viso a outro grau: deixavam de servir como pessoas mundanas para verem-se como pecado- res redimidos cuja vida sé poderia ter um propésito: “glorificar a Deus e goza-lo para sempre”. Isso lembra a assinatura de J.S. Bach em suas composi¢Ges, também enta- Ihada no drgio da cidade de Leipzig (Soli Deo Gloria), ou traz 4 memoria a obra de Rembrandt ¢ 0 barroco holandés, ou a “Idade de Ouro” da literatura inglesa, com Spenser, Milton, Herbert, Donne e Bunyan. O surgimento da cién- cia moderna muitas vezes é atribuido pelo menos em parte 4 Reforma, e algumas das principais universidades do mundo foram ou fundadas ou restauradas por aqueles que estavam resolvidosa fazer a teologia da Reforma influir num mundo em mudanga. Observadores confessaram néo entender bem como tantos que acreditavam nada poder contribuir para a sua propria salvagao puderam condu- zir uma espécie de revolugao na vida piblica, Em vez de sé atacar o mundo, contribuiram positivamente para a cultura. Libertados de uma piedade pessoal e introspectiva, esses protestantes deram forma ao sentimento de dever publico, ajudaram a langar reformas democraticas e direitos civis, e deram nova dignida- de e diregao a vida condigna no lar cristéio e ao conceito de vocago secular no mundo, Nao foi uma “Idade de Ouro” na verdade, mas foi uma época de varias Os Soia's DA REFORMA 125 mundo, Nao foi uma “Idade de Ouro” na verdade, mas foi uma época de varias maneiras mais sabia, época em que alguns dos pensadores, artistas e profissio- nais, bem como pais ¢ vizinhos piedosos, estavam dispostos a morrer por artigos de fé que hoje so vistos como “irrelevantes” e “divisionistas”. Nossa tarefa, ao que nos parece, nao é simplesmente lamentar a perda de confianga no Cristianismo centrado em Deus, mas é entender, primeiro, por que essas verdades chegaram a perder seu atrativo nos dias atuais, ¢ ent&o comunica- las com paix&o, precisdo e o poder do Espirito de Deus para um despertamento ereforma. Devemos estar preocupados nao sé em defender a verdade por amor a verdade, mas em sacrificar nosso sucesso, ambigdes e sabedoria, por amor a Deus ea nosso préximo. Mas, finalmente, nao precisamos sé recuperar, mas também confessar. Como a propria Reforma, visualizamos um movimento “kerygmdtico”, isto é, um que esteja centrado na proclamag4o da mensagem apostdélica. Nao é mero exercicio em nostalgia, e sim, o antincio ousado, amoroso e alegre da “boa nova” aqui e agora. Os préprios reformadores, conquanto encontrassem respeitosa- mente o que tirar da tradi¢ao da igreja, buscavam entender tanto 0 evangelho como os desafios singulares 4 Palavra da Vida presentes em seu tempo e seu lugar. Depois de cinco séculos, muito mudou no mundo moderno, Embora seja verdade que o que foi verdade no século 16 ainda é verdade no século XX, é preciso entender melhor a condigdo do moderno ¢ pds-moderno antes que 0 evangelho possa ser dirigido a nossos contemporaneos com poder e impacto. Nao podemos simplesmente descansar sobre os lauréis de nossos destemidos antepassados, mas devemos ocupar nosso lugar na histéria de Deus, resolvidos aidentificar os pontos arquimedianos nos quais a comunicagao de Deus e nosso mundo possam se encontrar em confronto vital. Também o chamado a “confessar” pretende um sentido duplo. Primeiro, é confissdo no sentido de reconhecer nossas faltas em pensamento, palavra e ago. Vezes demais, na histéria do evangelicalismo, o fascinio com 0 sucesso tem exis- tido a tal ponto que a autocritica nao é mais tolerada, passando esta a ser vista como desleal ou divisionista. Nao queremos nos colocar fora desta situagao, julgando os outros, mas nos vemos entre aqueles que so culpados de nao de- sempenhar a tarefa que o Salvador nos confiou. Um perfodo de autocritica séria faz-se necessario se queremos discernir onde temos nos desviado da mensagem cristae de suas implicagdes. 126 REFORMA HOJE Segundo, “confessar” refere-se ao ato corporativo e liturgico de afirmar que concordamos com a esperanga que vem preservando a igreja desde seus primei- tos dias. Nao somos meros individuos passando adiante nossas experiéncias pessvais. Ao contrario, somos membros do corpo histérico de Cristo, declaran- do aquilo que nos foi transmitido (1 Co 15.3). Judas exorta os crentes perturba- dos por heresias e cismas a batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos (Jd 3). Entender a fé como um depésito — um conjunto de crengas que ha muito foi estabelecido firmemente — ¢ essencial, especialmente numa era existencial e subjetiva que néio leva a sério a tradigao, quer apostdélica ou outra. Avisando Timéteo contra o secularismo que se coloca no centro do universo, Paulo insta com seu pupilo: Permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste. E que, desde a infancia, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sdbio para a salvagdo pela fé em Cristo Jesus (2Tm 3.14-15). Quando os nazistas capturaram a Igreja Evangélica da Alemanha, eos pas- tores principais daquele érg4o chegaram a realmente mudar o nome para “Igreja do Reich” jurando lealdade a Hitler, um grande grupo de clérigos dissidentes que tinha estado envolvido no Movimento da Reforma Jovem formou a “Igreja da Confissao”, assim chamada por causa de seu compromisso com as confissdes da Reforma, em oposi¢do ao credo nacionalista. A Declaragao de Barmen foi produto desse movimento “confessional”, e seus lideres estavam convencidos de que a igreja sé poderia permanecer fiel 4 sua tarefa opondo-se as forgas das trevas com as verdades eternas do Cristianismo. Eles localizaram os exatos pon- tos arquimedianos onde Deus e o homem se defrontariam diretamente, e confes- saram a fé de nossos pais, mas em relagao direta aos desafios ao evangelho ea soberania de Deus daquele dia. Nao sé estudaram as confiss6es e se apoiaram nelas, mas manifestaram sua confissao em face dos desafios que eles préprios enfrentavam. No nosso tempo, esta acontecendo um cativeiro babilénico da igreja muito mais sutil, a medida que os pressupostos profundamente seculares do mundo moderno vém aprisionando os pensamentos e a vida de muitos dos crentes mais devotos. Mas 0 evangelho — conhecido na Biblia somente, encontrado em Cristo somente, dado pela graga somente, recebido por fé somente para a gloria de Deus somente — ainda é “o poder de Deus para a salvacaio”. Estamos conven- cidos, com todos os “santos confessos” do passado e do futuro, de que o maior desafio que a igreja pode propor ao secularismo ndo é mistico, moral, politico, Os Soza's DA REFORMA 127 pragmatico nem institucional, mas a proclamacdo da obra de Deus. “Se nos qui- sessem devorar deménios nao contados, nao nos iriam derrotar nem ver-nos assustados”. Nao temeremos, justamente porque Deus ordena que sua verdade triunfe por nosso intermédio. E quanto ao pai da mentira: “...vencido caira por uma s6 palavra”. 6 Arrependimento, Recuperacao e Confissio Sinclair B. Ferguson A monumental Véspera de Todos os Santos de 1517, quando Martinho Lutero afixou suas Noventa e Cinco Teses as portas da Igreja do Castelo em Wittenberg, 6, aparentemente, um dos eventos da histéria p6s-apostélica mais Jembrados e celebrados, pelos evangélicos confessionais. “Aparentemente mais celebrados?” Sera que os evangélicos exercitaram talvez um tipo estranho de féimplicita com respeito as famosas teses? E provavel que sé uma minoria tenha idéia do contetido. Na imortal perspectiva sobre a Historia, expressa pela obra 1066 and Ail That [sobre a penetragao dos normandos na Inglaterra em 1066], sejam quais forem as teses de Lutero, temos por certo que elas so “boas”. Foram muito mais do que “boas”; a verdade é que continham declaragdes de sacudir a igreja, e nenhuma mais do que a primeira tese. Embora provocada pelas indulgéncias mascateadas por Johannes Tetzel, a primeirissima tese que Lutero ofereceu ao debate puiblico pés o machado na raiz da arvore da teologia medieval: 130 REFORMA HOJE Quando nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, disse “arrependei- vos”, ele quis dizer que a vida toda dos crentes deve ser de arrependi- mento. Pela leitura do Novo Testamento grego de Erasmo, Lutero chegara a perce- ber que a tradugo da Vulgata de Mateus 4.17 com as palavras penitentiam agite [fagam peniténcia] interpretava de maneira completamente errada o senti- do do que Jesus queria dizer. O evangelho nao pedia um ato de peniténcia, mas uma mudanga radical no modo de pensar e uma transformagao de vida igualmen- te profunda. Mais tarde ele escreveria a Staupitz sobre essa descoberta abrasadora: “Ouso dizer que esto errados os que fazem mais importante 0 ato em latim do que a mudanga de coracéio em grego”.' Nao é verdade, entdo, que nds perdemos de vista essa observacao tao importante da teologia da Reforma? Procederfamos bem em fazer um redivivus de Lutero hoje. Por algumas raz6es muito importantes, os evangélicos precisam reconsiderar a centralidade do arrependimento em seu pensar sobre o evange- lho, a igrejae a vida crista. A Natureza do Arrependimento Mesmo para crentes atuais relativamente bem-instruidos, a centralidade do arrependimento no evangelho precisa ser destacada. Embora 0 arrependimento ndo seja o instrumento da justificagao, nao ha — como nos lembra a Confiss4o de Westminster ——nenhuma salvagiio sem ele.? A Biblia tem um vocabulério extenso e as vezes pitoresco para descrever 0 arrependimento. No Antigo Testamento varias metéforas sfio usadas, como arar o campo e circuncidar o homem, para tornar 0 sentido claro e vivo (Jr 4.1,3-4). Certas vezes ha um enfoque na emogdo que caracteriza o arrependimento, que é tristeza e remorso (naham). Mas 0 verbo hebraico principal que significa arre- pender-se (sub) esta entre os doze verbos mais comuns em todo 0 Antigo Tes- tamento. Como observou W.L. Holladay, ocorre bem mais de cem vezes no contexto especifico das relagSes de Deus com seu povo através da alianga.; Isso acontece especialmente no livro de Jeremias. Arrepender-se é voltar as provi- déncias ¢ prescri¢des da alianga de Deus. O verbo sub, curiosamente, também é 0 verbo usado para descrever a volta ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 131 do povo de Deus do exilio geografico (por exemplo, Is 10.21-22), e de varias maneiras isso nos fornece uma metéfora que ajuda a entender 0 que o arrependi- mento é. Assim como a volta do exilio significa retornar geograficamente de um pais distante ao ambiente onde Deus prometeu cumprir sua promessa de bén- ¢4o, assim o arrependimento do pecado significa retornar da terra distante do cativeiro do pecado e culpa para o lugar onde Deus prometeu cumprir suas béngdos prometidas — tudo baseado na promessa da misericordia e graga gra- tuita de Deus (cf. Dt 30.11). Fica evidente que essa idéia do Antigo Testamento é a que Jesus transforma em toda uma parabola sobre a graga de Deus na conversao, a histéria do filho que mostrou uma indiferenga to prodiga para com seu pai, e que depois acaba “numa terra distante” onde o conhecimento da abundancia de suprimentos da casa do pai o acorda para sua condi¢ao e depois o leva para casa, de volta ao pai (Le 15.11-32). O arrependimento biblico, entdo, nao é meramente sentir um remorso que nos deixa onde estamos; é uma inversio radical que nos leva de volta pela estra- da de nossas peregrinages pecaminosas, criando em nés uma mentalidade com- pletamente nova. F cair em si espiritualmente (cf. Le 15.17). A vida nao é mais caracterizada pela exigéncia “da-me” (Le 15.12) e sim pelo pedido “faze-me” (Le 15.19). Eisso que esta na superficie do vocabulario do Novo Testamento, que dis- tingue, com clareza suficiente, entre os epifenémenos emocionais que podem acompanhar o arrependimento, ¢ o arrependimento propriamente dito. Paulo expressa nitidamente esses dois aspectos (remorso e arrependimento, metamelomai e metanoeo) quando fala na tristeza genuina de um arrependi- mento que nunca traz pesar (2Co 7.10). Compreende aqui uma mudanga de maneira de pensar (metanoeo) acompanhada por uma mudanga de dire¢4o moral e espiritual que dura a vida toda (epistrepho). A qualidade dupla do arrependimento biblico genuino é captada por Paulo em sua maneira de falar sobre a conversdo dos tessalonicenses: deixando os idolos, vos convertestes a Deus, para servirdes 0 Deus vivo e verdadeiro (1Ts 1.9). E essa combinag4o e simultaneidade de se voltar de, e se virar para, que caracteriza o arrependimento biblico genuino. De acordo com Paulo, isso envolve crucificar radicalmente a carne e ao mesmo tempo revestir-se radical- mente de Cristo (Gi 5.24; 3.27). E isso conduz.a fazer morrer continuamente as 132 REFORMA HOJE obras da carne e simultaneamente revestir-se das virtudes de Cristo (C1 3.5-11, 12-17). Ai, pois, esta a importancia da afirmagao de Lutero. O arrependimento nao é mero comegar da vida crista; segundo a Escritura, a vida crista sera arrependi- mento mesmo, do comego ao fim! Enquanto o crente for simul justus et peccator nao podera ser diferente. Lutero teve um modo de se expressar singularmente feliz, um drama de apre- sentagéio que 6, sem diivida, especialmente vivo. Quando afixou a porta da Igre- ja do Castelo a sua primeira tese, ao mesmo tempo ele “afixou” o evangelho de Cristo no coragiio da igreja. Quem conseguiria igualar tal feito? O arrependimento que se ocupa de pensamentos de paz ¢ hipocri- sia. Deve haver uma grande sinceridade a respeito e uma mdgoa pro- funda se o velho homem vai ser despido. Quando o relampago abate uma arvore ou um homem, faz duas coisas ao mesmo tempo — corta a arvore e mata velozmente o homem. Mas também faz voltar a face do homem morto ¢ os galhos quebrados da arvore em diregao aos céus.* Mas enquanto possam ser singularmente vividos 0 vocabulario e 0 uso de metaforas de Lutero, sua énfase no carater radical e vitalicio do arrependimento €0 testemunho comum dos reformadores. Isso é verificavel na documentagao pés-reforma, nos catecismos das varias tradigdes. Desde 0 Catecismo de Heidelberg (1563) ao Catecismo Menor da Assembicia de Westminster (1648) ha uma énfase comum na absoluta necessi- dade e centralidade do arrependimento. Mas nao existe apenas uma concordancia geral entre os ensinos luteranos e reformados quanto a importéncia do arrependimento. E possivel ir além e dizer que Calvino, especialmente, trata do assunto detalhadamente. Baseando-se em Lutero, ele diz algumas coisas que nés, em nossa época, muito precisamos ouvir. Para Calvino, o arrependimento é realmente a expresso concreta da rege- neragao e da renovagao divina. Ele define regeneragao como arrependimento* Porém, mais do que isso, ele nos dé uma exegese profunda da definig&o do arrependimento no Novo Testamento. Nunca poderd ser divorciado da fé, em- bora nunca deva ser confundido com ela. Compreende uma corda tnica de trés fios: “negar ands mesmos, mortificar a carne e meditar sobre 0 céu”.6 ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 133 Entender o arrependimento por esse prisma significa que ele nunca pode ser reduzido a um unico ato que subsista sozinho no principio da vida crista; nem ele pode ser compreendido superficialmente e em uma sé dimenso. Calvino vé que o verdadeiro arrependimento surge no contexto da graga e fé, portanto no con- texto da uni&o com Jesus Cristo. Na verdade, visto seu alvo ser a restauragéio do pecador a imagem de Cristo, necessariamente compreende o trabalho progres- sivo resultante de nossa uniao com Cristo em sua morte e ressurreigdéo — 0 que Calvino chama de mortificacdo e vivificagdo.” A fé em Cristo como crucificado e ressurreto deixa, portanto, um selo sobre o carter de toda nossa vida. Essa unido nao é sé o projeto da vida cristé, mas 0 molde no quala vida crist’ é modelada. Ele foi crucificado e vive; nds comparti- Thamos o seu sofrimento, suportamos aqui em nosso corpo sua morte e somos conformados na sua morte — tudo para participarmos do poder de sua ressur- reig&io e sermos transformados em sua gloria (1Co 4.10-12; Fp 3.10-11, 20-21). Nao é sé a minha vida como individuo que émodelada pelo arrependimen- to; isso vale para a igreja como uma comunidade inteira unida a Cristo pelo Espirito. O arrependimento é 0 sentido mais completo da restauragado a Deus que é processado tanto interior como exteriormente entre nés. Assim, nota Calvino: “{Pedro] nos ensina que o governo da Igreja de Cristo foi to divinamente cons- tituido desde o princ{pio que a Cruz vem sendo 0 caminho para a vitéria, a morte, o caminho para a vida.”* Portanto, o arrependimento, para Calvino, é a vida crista, Naturalmente, essa énfase que encontramos em nossos antepassados colo- cava-se contra o pano de fundo da teologia medieval e do estilo de vida medie- val. Mas em lugar de julgar irrelevante seu ensino, esse contexto podera bem fornecer uma parte da chave a sua relevancia, porque nds mesmos precisamos novamente proclamar essa doutrina t&io completa do arrependimento, dentro de um contexto evangélico que j4 comegou a manifestar sintomas alarmantes do mal medieval. A Necessidade do Arrependimento Conquanto seja por autoridade biblica que podemos enfatizar tanto a natu- rezacomo a centralidade do arrependimento, é com certa reticéncia que chama- 134 REFORMA HOJE mos a atengéio aquilo que chamarfamos da “medievalizag4o” da igreja evangéli- ca, Para comegar, como autor, aqui nao tenho pretensdo de ser um expert de qualquer espécie na sociologia da histéria da igreja; além disso, todos nés deve- mos olhar com sadia reserva as lamentagdes que nao se fagam acompanhar de lagrimas (cf. Jr 9.1, 18; 14.17; Lm 2.11). E importante esclarecer que que segue so as observages de um residen- te estrangeiro sobre apenas alguns aspectos da vida da igreja de Cristo nos Es- tados Unidos da América. Nao afirmo possuir a infalibilidade da andlise de Cris- to da sua igreja em Apocalipse 1-3. Além disso, quero dar énfase a duas coisas. Primeiro, a situacdo da igreja na qual cresci, embora possa softer de mal diferente, tem condigaio patolégica igualmente séria. Segundo, muitos de nds temos tido o privilégio de ver muitos e muitos sinais encorajadores nos Estados Unidos. Gragas a Deus ha multid6es de igrejas, algu- mas muito grandes, outras pequenas, algumas bem-conhecidas, outras obscuras, onde ha uma determinagao séria e alegre de dar a Jesus Cristo os direitos coro- ados que so dele em fidelidade a Palavra dele, de viver no Espirito dele, de prestar culto no nome dele e de amar 0 Pai dele. Além do mais, ainda é verdade que, sem 0 apoio dos cristéos desse pais, as missdes no mundo entrariam em colapso quase que de um dia para outro. Mas, tendo dito isso, sera que nao precisamos também dizer que Cristo tem. algo contra nds (Ap 2.4, 14,20)? Uma de nossas necessidades principais ¢ a capacidade de discernir correta- mente algumas das diregdes em que 0 evangelicalismo esta indo, ou talvez mais corretamente, desintegrando-se. Precisamos desesperadamente da otica de lon- go alcance que a histéria da igreja nos pode dar. Mesmo dentro do periodo da minha prépria vida crista, 0 espago de tempo entre minha adolescéncia nos anos 60 ¢ meus quarenta e tantos anos na década de 90, tem havido uma mudanga enorme no evangelicalismo. Muitas “posi¢des” que um dia foram ensinos-padrao dos evangélicos s&o agora, depois de apenas trés décadas, vistas como reacionarias ou até pré-histéricas. Se considerarmos de um ponto de vista de maior alcance, enfrentamos a possibilidade alarmante de que ja existam trevas medievais invadindo o evangelicalismo. Deixa-nos mais perplexos ainda o fato de que muitas de suas ARREPENDIMENTO, RECUPERAGAO E CONFISSAO 135 caracteristicas sao recebidas de bracgos abertos, como se fossem nova luz. Mas sea luz que ha nele sao trevas, que grandes trevas serio! Seré que nfo podemos detectar, pelo menos como tendéncia, certas dind- micas dentro do evangelicalismo que tém semelhangas com a vida da igreja me- dieval? A possibilidade de um novo Cativeiro Babilénico ou (com maior acerto, seguindo Lutero) Cativeiro Pagao da Igreja ameaca mais de perto do que talvez, pudéssemos acreditar. Considere as cinco caracteristicas seguintes do Cristianismo medieval que se fazem evidentes no evangelicalismo contemporaneo: 1. Oarrependimento é visto mais e mais como um ato unico, nao fazen- do parte da restauragdo da santidade ao longo de toda a vida. Ha motivos complexos para isso — nem todos eles modernos — que n&io podemos explorar aqui. Contudo, parece auto-evidente. Ver o arrependimento como uma acao isolada, completada no principio da vida crista, tem sido um princfpio-padriio de muito do evangelicalismo moderno. Lamentavel é 0 despre- zotom que o evangelicalismo muitas vezes trata a teologia das igrejas da confis- so. Isso tem criado uma geracéo que olha para tras para um ato unico, abstra- ido de suas conseqtiéncias como determinante da salvagéio. O “convite ao altar” substituiu o sacramento da peniténcia. Assim o arrependimento se divorciou da tegenerag4o genuina, e a santificago se separou da justificagao. Mais recentemente, alguns de nossos irm4os se envolveram na chamada Controvérsia da Salvacao do Senhor. Essa controvérsia tem raizes profundas e sofisticadas, teolégicas e histéricas, mais profundas, talvez, do que o percebido por alguns participantes. Mas nio fica em divida o que um Martinho Lutero ou um Joao Calvino faria dela. Simplesmente nfo havia lugar na teologia deles para aceitar a idéia de que é possivel receber a justificagéio sem a santificagao, confiar num Salvador que nao salva realmente, receber um novo nascimento que nao da vida nova de verdade, ou ter uma fé que no seja radicalmente de arrependimen- to, a despeito de unir-nos com um Cristo crucificado e ressurreto. Para eles Paulo tinha explicitado isso com perfeita clareza: Os que siio de Cristo Jesus crucificaram a came, com as suas paixdes e concupiscéncias. (G1 5.24). Deixar de viver assim, como Calvino tao bem disse, é “dilacerar [Cristo] por... uma fé mutilada”? 136 REFORMA HOJE Nas suas margens mais escuras isso é 0 evangelho do televangelicalismo (sem diivida nem todos sendo igualmente errados em sua teologia) que, 4 moda de Tetzel, busca mascatear seus produtos na telinha, deixando entender, quando n&o sugere abertamente, que a béngo divina pode ser comprada com dinheiro em vez de sé poder ser recebida com peniténcia. Quase seiscentos anos atras, a teologia medieval no seu pior fez surgirem versos populares: Quando a moeda no cofre tinir Do purgatorio vai a alma sair. Mas ha uma versio atual que sé se encontra no evangelicalismo: Logo que 0 cheque no meu bolso chegar, Um aumento de béngiios ird te espantar. Isso tornou-se endémico; sua influéncia atingiu a tudo. Isso nao é evangelicalismo histérico; é medievalismo incipiente. Queira Deus que apareca um Martinho Lutero em suas fileiras e clame: “Basta! Quando nosso Senhor Jesus Cristo disse ‘arrependei-vos’ ele quis dizer que a vida crista inteira deveria ser de arrependimento”. 2. O cdnone de regras para a vida cristé tem sido buscado cada vez mais na viva voz “inspirada pelo Espirito” dentro da igreja, em vez de na voz do Espirito ouvida na Escritura. Novamente, precisamos enfatizar que o ponto a ser considerado aqui é uma tendéncia. Nao se limita ao ramo carismatico ou pentecostal do Cristianismo. Nossa preocupag4o nao é nos arrastar pela controvérsia cessacionista/ndo- cessacionista. Seja qual for nossa opiniao, ¢ claro que dentro de grandes setores do evangelicalismo, quer no carismatico ou no n&o-carismatico, a “revelagao” continua é bem-vinda. Numa geragdo anterior isso se expressava mais claramen- tenaqueles que esperavam achar um direcionamento “escutando o Espirito”. Os reformados e os confessos, incluindo pessoas como Calvino e John Owen, conheciam bem essa espécie de “revelagdes espirituais”. Acrescentando ou ig- norando a voz do Espirito na Biblia, eles ouviam sua voz diretamente. Naquele tempo, como agora, alguns deles diziam acreditar na infalibilidade das Escrituras, ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 137 embora parecessem conhecer pouco a doutrina da suficiéncia da Escritura. La- mentavelmente, como Calvino parece jd ter experimentado na Reforma, é im- possivel discutir 0 sentido da Escritura com aqueles que presumem possuir a intervengdo direta do Espirito. O que era antigamente pouco mais do que uma tendéncia mistica jd se tor- nou uma enchente, Sera exagero sugerir que as pessoas que mantém a doutrina da Reforma, da absoluta suficiéncia da voz do Espirito na Biblia iluminada pela obra do Espirito no coracao, sejam uma espécie em perigo de extingao? Tanto na teologia académica como no nivel das pessoas comuns, essa posigdo é cada vez mais julgada reacionaria quando nao herética porque s6 uma minoria a sus- tenta. Mas 0 que tem isso a ver com a igreja medieval? So isso: a igreja medieval inteira operava no mesmo principio, ainda que expresso de forma diferente. Para eles, o Espirito fala fora da Escritura; os crentes nfo podem conhecer 0 direcionamento detalhado de Deus quando dependem somente da Biblia; a voz. viva do Espirito na igreja é essencial. Nao sé isso, mas, uma vez introduzida a “viva voz” do Espirito, parece psicologicamente inevitavel que essa viva voz se torneo cAnone regulamentador da conduta para a vida crista. A equag4o — palavra da Escritura mais viva voz igual a revelagdo divina— achava-se no centro da busca no escuro da igreja medieval pelo poder do evan- gelho. Agora, no final do segundo milénio, estamos a beira— ou talvez mais do que a beira—— de sermos inundados por um fenémeno paralelo. O resultado na época foi uma fome de se ouvir e entender a palavra de Deus — tudo sob o disfarce daquilo que o Espirito estaria dizendo ainda a igreja. E hoje? 3. A presenga divina foi trazida para a igreja por individuos com santos poderes depositados dentro deles, e comunicados por meios fisicos. Conforme frisou o Concilio de Trento, a doutrina medieval da ordenagao imprimia um traco indelével sobre o sacerdote."* Por poderes misticos, as pala- vras da Missa, hoc est corpus meum, podiam transformar pao e vinho no corpo e sangue de Jesus. Embora os “acidentes” de p4o e vinho permanecessem, a “substéncia” tornava-se 0 corpo e sangue do Senhor. Com suas mios o padre podia colocar Jesus na boca do comungante. 138 REFORMA HOJE Hoje um paralelo estranho é visto onde quer que haja televisio a cabo. Admitidamente, nao é mais Jesus que é distribuido por mos sacerdotais; agora é0 Espirito que é concedido por meios fisicos, aparentemente 4 vontade pelo novo sacerdote evangélico. Santidade especial nao é mais confirmada pela bele- za do fruto do Espirito, mas pelos sinais que s4o predominantemente fisicos. Os Reformadores nao desconheciam fenémenos semelhantes. Na verdade, uma das acusages mais importantes levantadas contra eles pela Igreja Catélica Romana foi que eles nao tinham verdadeiramente o evangelho porque lhes falta- vam os fendmenos miraculosos. O que devemos achar alarmante com respeito ao evangelicalismo contem- pordneo é a extensfio em que ficamos impressionados pelo seu desempenho em vez de pela sua piedade. Em meio a abundantes reivindicagdes as manifestagdes do Espirito, sera que ninguém levantara a voz para clamar que nao sao as mani- festages fisicas, e sim o conhecer e ser conhecido por Cristo numa vida de completa ¢ inquestionavel piedade que representa a unica prova real do poder do Espirito? 4. O culto a Deus é mais e mais apresentado como evento para o espec- tador com poder visual e sensorial, em vez de evento verbal no qual partici- pamos de um didlogo profundo da alma com o Deus Tritino. O evangelicalismo contempordaneo se deleita em colocar o foco na centralidade do que esta “acontecendo” no espetaculo do culto em lugar de no que é ouvido no culto. A estética, seja artistica ou musical, tem prioridade sobre asantidade. Cada vez mais se vé, e menos se ouve. Hé uma fartura sensorial uma fome auditiva. O profissionalismo em liderar 0 culto tornou-se um substituto barato do acesso genuino ao céu, ainda que vacilante. Drama, e nao pregagio, tornou-se 0 didache escolhido. Ha todo um espectro, naturalmente, nao um sé determinado ponto; mas os cultos em geral podem ser posicionados em algum lugar desse espectro. Ja se foram os dias em que os participantes se comoviam a ponto de se arrepiar quan- do ouviam a chamada a adoragaio: “Adoremos ao Senhor”. Isso nao acontece com 0 evangelicalismo do século XX. Agora deve haver cor, movimento, efeitos audiovisuais. Nao podemos conhecer, amar, louvar a Deus e confiarnele somen- te por quem ele é. ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 139 Perdemos de vista as grandes coisas — 0 fato de que 0 préprio Cristo é0 verdadeiro santudrio do povo da nova alianga; de que a verdadeira beleza éa santidade; de que quando o Senhor esta no seu santo templo todos ficam enleva- dos com 0 coragao silencioso diante dele. Também, mais sutilmente, perdemos a admiragiio de se poder transportar 0 culto da nova alianga. Em comparagao com o culto da antiga alianga, que depen- dia do templo, o culto da nova alianga era simples e portanto universalizdvel. Esta era parte da visdo que motivava nossos antepassados evangélicos; mas muito do nosso culto de hoje ficou dependendo do lugar, do tamanho, e até, lamentavelmente, da tecnologia. Aqui, como “evangélicos confessos”, nao podemos apenas zombar e escar- necer dos evangélicos que venderam sua heranga reformada e confessional por um prato de lentilhas modernas. Em quantas igrejas nossas a gloria se deve a estética em lugar de ao puro poder do Espirito e da Palavra? Em quantos de nossos cultos ha o sentimento tio acentuado da presenca de Deus, que pessoas de fora sejam levadas a cair de joelhos e exclamar: “Na verdade o Senhor Deus esta neste lugar!”? E claro que precisamos oferecer ao Senhor 0 nosso melhor no culto corporativo. Mas os “evangélicos confessionais” fazem isso por um principio regulador mesmo quando diferem na importancia exata disso. Nao acham que o culto verdadeiro seja um evento para se assistir como espectador, com deleite naquilo que os outros fazem. Eumevento congregacional, no qual Cristo é mediador denossas oragdes, conduzindo nosso louvor e pregando sua palavra a nds. 86 ele é 0 lider ordenado por Deus do nosso culto, o verdadeiro leitourgos do povo de Deus, o ministro no santudrio (Hb 8.2). Nao ousamos obscurecer essa natureza centrada em Deus e congregacional do culto, nem tornd-la depen- dente de qualquer outra coisa que nao seja chegar-nos a Deus no Espirito por meio de Cristo com mos limpas e coragdo puro. Tais o Pai busca para adora-lo! A tragédia do culto medieval foi precisamente esta: quando Deus nao era mais ouvido com clareza penetrante na exposi¢do da Escritura — quando o sentimento da presenga do Espirito nao era mais realidade — 0 que foi dado ao povo foi ritual em lugar de verdadeira liturgia, mistério (Latim!) em vez de pala- vras claras, cor em vez de clareza de compreensao doutrinaria e drama (as pegas medievais encenadas!) em vez da doutrina que lhes daria o conhecimento de Deus, que lhes nutriria a alma e os fortaleceria moral ¢ espiritualmente. Criou-se 140 REFORMA HOJE um vacuo espiritual, ¢ o colapso era inevitavel. Durante anos temos estado nesse mesmo declive escorregadio do neomedievalismo. Em 1978 foi-me dado um dos maiores privilégios de minha vida: falar numa conferéncia de pastores em Gales, com 0 grande pregador galés dr. Martyn Lloyd-Jones. Uma das prédicas dele naquela ocasiao teve o titulo: “Fenémenos Extraordindrios em Reavivamentos Religiosos”. Até mesmo aquela mensagem foi um fenédmeno extraordindrio: Noventa minutos de fala pareceram quinze. Fi- quei preso ali, fascinado em ouvir sobre incidentes — a maior parte acontecidos em Gales! — que testemunhas oculares haviam descrito para ele. Entre outras coisas, o dr. Lloyd-Jones mencionou um evangelista bem co- nhecido na época cuja “marca registrada” era o fato de ele proprio tocar um instrumento durante as reunides evangelisticas que dirigia. Seu pai em certa oca- sido insistiu com ele para que largasse o instrumento — a gerag4o de ministros dele nao tinha precisado disso. “Nao, Pai”, veio a resposta, “mas vocés tinham o Espirito Santo.” Assim somos condenados por causa de nossa propria boca. A tragédia aqui é que em nosso culto corremos o grave perigo de produzir uma geracdo de crentes professos que sdo criancinhas espirituais — alimentan- do-os emocionalmente com aquilo que produz satisfagao temporaria mas nunca Jevando-os 4 maturidade. O dr. James Montgomery Boice expressou isso muito bem certa vez, no contexto da introdugao da oragao congregacional aos professores da Escola Dominical da Décima Igreja Presbiteriana de Filadélfia. Ele observou que, no comeco, pequenas porgées das Escrituras sfo ensinadas as criangas, as quais elas vo acumulando até que (por exemplo) sejam capazes de recitar capitulos da Biblia como Romanos 8. Hinos (é sim, hinos!) sao cantados e aprendidos por causa do poder que tém de ensinar doutrina (isso mesma, doutrina!). Isso contrasta tremendamente, quando nao se opie, as tendéncias de hoje. Aesta altura, se bem me lembro, 0 dr. Boice nos deu a explicagdo: “Estamos vivendo numa época em que os adultos, incluindo os crentes, querem se com- portar como criangas. Aqui, na nossa Escola Dominical, estamos treinando as criangas a crescer para serem cristéos adultos”. Que acomodados nés evangélicos nos tornamos — nds que conhecemos psicologia infantil demais para ligarmos para 0 Catecismo! Mas, lamentavelmen- ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 141 te, nos dias atuais, muitos dos bacharéis em teologia e ministros conhecem me- nos doutrina crist& do que uma crianga na Genebra de Calvino, conhecem menos da miséria do pecado e do caminho a alegria da salvagao do que um menino na Heidelberg de Ursino, tém s6 metade da idéia do fim principal do homem do que uma menina nos cantos remotos da Escécia do século 17 poderia ter, e sabem muito menos sobre como vencer a tentagao do que um adolescente na Oxford de John Owen, Nao nos deve surpreender, portanto, descobrir quais os livros — livros de todas as espécies — que os evangélicos vém lendo ultimamente. Alguns que ja ganharam status de idolos—~ (“Vocé nao leu___? Mas, como, onde vocé se escondeu?” perguntam-nos, admirados) — expressam uma visio bem medieval do mundo. Sera que as trevas medievais ja nos alcangaram? Estamos preparados para penetra-la com a espada do Espirito? 5. O sucesso do ministério é medido pelas multidées e o tamanho das igrejas em lugar de ser pela pregacdo da cruz, pela qualidade de vida crist@ e pela fidelidade. Foram os lideres da igreja medieval — os bispos e arcebispos, os cardeais e papas — que construiram as catedrais, ostensivamente soli Deo gloria. Tudo isso, negligenciando a proclamagao do evangelho, a vida do corpo de Cristo como um todo, as necessidades dos pobres e 0 evangelismo do mundo. A “mega igreja” nao é um fendmeno moderno, mas sim medieval. Otamanho de igreja ideal e a arquitetura eclesidstica especifica pertencem a adiaphora, porque podem variar. Essa no é a preocupag4o central aqui. O que preocupa € 0 evangelicalismo contemporaneo endemicamente quase viciado com otamanho e nimeros como indice do sucesso de “meu ministério” —uma frase que j4 em si pode ser assustadoramente contraditéria, Aqui, também, ha algo que lembraa Idade Média. Quanta compra de indul- géncias acontece na vida da igreja hoje? Quanto do desejo medieval por uma kathedra (trono!) para o lider se expressa nos prédios imensos que levantamos “para a gloria de Deus”? N§o que estejamos agitando por um novo iconoclasmo evangélico; menor néo é necessariamente mais bonito. Mas € para levantar a questo da realidade, 142 REFORMA HOJE profundidade e integridade na vida da igreja e no ministério cristo. A paixdo pelo “maior” torna-nos material ¢ financeiramente vulneraveis. E pior, faz-nos espiritualmente vulneraveis, pois é dificil dizer para aqueles de quem depende- mos materialmente: “Quando nosso Senhor Jesus Cristo disse ‘Arrependei-vos!” ele quis dizer que a vida crista inteira é de arrependimento”. E depois, o que faremos com a Tese 92? Fora, entdo, com aqueles profetas que dizem ao povo de Cris- to. “Paz, paz”, onde ndo ha paz. Ou, entao, o que faremos com a Tese 93, que é de dar frio na espinha? Ougam, oucam todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “A cruz, acruz”, onde ndo hé cruz. E serd que posso responder a Tese 94 com a consciéncia limpa? Os crentes devem ser exortados a ser zelosos para seguir a Cristo, seu Cabega, através das penas, mortes e infernos. Oua Tese 95? E que estejam assim mais confiantes de entrar no céu por meio de muitas tribulagdes do que por meio de uma falsa promessa de paz. Poderiamos bem desejar que as Teses de Lutero tivessem sido deixadas em latim como ele primeiro as escreveu, e dentro da area original da disputa acadé- mica! Mas sé quando essas palavras soarem através de todas nossas igrejas poderemos estar certos de que estamos construindo a igreja de Cristo com ouro, prata e pedras preciosas, e nao com madeira, feno e palha. E sé 0 que construir- mos assim é que vai permanecer na eternidade, Tudo mais sera queimado com fogo (1Co 3.10-15). A Graga do Arrependimento Se arrependimento é o processo de restaurar pecadores que dura a vida toda, ele 6, como ja vimos, uma necessidade da qual no ha escape, continua e perma- nente. Mas como ser produzido 0 arrependimento? Neste ponto é vital nao escrevermos a nossa agenda meramente em termos daquilo que esta errado no evangelicalismo de hoje. Embora talvez seja preciso ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO & CONFISSAO 143 apontar erros, é um exercicio apenas parcial. E menos do que apostélico. Por- que o que da poténcia ao arrependimento nfo é apenas a culpa que a Lei faz perceber (Rm 7.7), mas também a graca que nos é proclamada no evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo: é a bondade de Deus que nos conduz ao arrependi- mento (Rm 2.4), E por existir perdao da parte de Deus que nés vivemos uma vida de temor penitente (SI 130.4). O arrependimento é um presente do Cristo que subiu ao céu, no seu glorioso oficio de Mediador. Como os piedosos cléri- gos de Westminster escreveram: Oarrependimento para a vida é uma graga evangélica... por ele um pecador quando vée sente nao s6 o perigo mas também a imundicia e odiosidade de seus pecados como contrarias a natureza santa e a lei justa de Deus; e pela apreensdo de sua misericérdia em Cristo a tantos quantos estdo penitentes, tanto se lastima pelos seus pecados € os odeia, a ponto de voltar-se para Deus, buscando andar com ele em todos os caminhos dos seus mandamentos."' Onde quer que vejamos arrependimento nas Escrituras, o modelo é este: A revelagdo da santidade divina na Lei e nos mandamentos de Deus cria o fardo de culpa; contudo, por causa da fraqueza da carne, a Lei como mandamento no pode salvar os pecadores. Mas, gracas a Deus, 0 que a Lei nao péde fazer foi realizado na encarnacdo, morte, ressurreigdo e coroagao de nosso Senhor Je- sus! O reino chegou; a graca capacita ao arrependimento aqueles que est&o carregados de culpas e quebrantados de coragao. O arrependimento s6 € possi- vel porque é motivado pela promessa da graga. Sé ent4o clamamos através de nossas lagrimas: Compadece-te de mim... segundo a tua benignidade... segundo a multidao das tuas misericérdias... Apaga as minhas transgresses... Lava-me... Faze-me ouvir jubilo ¢ alegria... Esconde 0 rosto dos meus pecados... apaga todas as minhas iniqilidades... Criaem mim... um corag&o puro... renova dentro em mim um espitito inabalavel... Restitui-me a alegria... (S151.1-12) 144 REFORMA HOJE Ocaminho a verdadeira theologia gloriae passa pela theologia crucis! Nisso Deus € magnificado na salvagao de pecadores para que sua gloria (kabod —nio lhe falta peso!) nos prostre em culto humilde como aqueles cuja boca foi fechada e reaberta com hinos de louvor. Ento nés, também, sentiremos 0 gosto da gloria de pecadores restaurados, Mas isto acontece sé quando escutamos 0 grito: “a cruz! acruz!”” Lamenta-se que, justamente nesse ponto, o evangelicalismo tenha se torna- do como um Jonas moderno, Busca prestigio como poténcia nacional, profeti- zando a tnica maneira de alargar as fronteiras do pais para cumprir um destino divino (nao foi esta a unica “profecia” do ministério de Jonas de que alguém se lembrasse? 2Re 14.23-25), Busca preservar seus préprios louros dentro de seu proprio contexto. Canta, mas nfo acha a graga realmente “maravilhosa” nem a cruz “gloriosa”; usa na lapela, mas nao carrega a cruz. A igreja evangélica oferece literatura e conferéncias em grande parte sobre o que podemos realizar, rara- mente sobre o que Cristo realizou porque nds nao podemos fazé-lo. (Qual foi a ultima vez em que vocé leu um livro ou assistiu a um semindrio sobre a cruz eo levar a cruz?) Oferece cursos sobre como viver a dois de maneira bem-sucedi- da, esquecida do Cristo que nao pode ser amansado, contido, completamente domesticado, temerosa do caos que Deus com autoridade soberana possa criar com o fim de reorganizar a minha vida, evitando a vida espiritual, a Gnica que nos capacita a causar impacto duradouro no mundo presente. Mas nos propositos de Deus 0 caminho para cima é 0 caminho para baixo. S6 humilhados sob a mao poderosa de Deus é que pode haver exaltagao. Pri- meiro precisamos ver — como Jonas —até que ponto descemos; ver o quanto carecemos da graca e da cruz; e entdo achar perdao e reconciliagao. Como no caso de Jonas, a palavra do Senhor nos vem com grande clareza (cf. Jn 1.2). Cremos na perspicacia da Escritura: As coisas que precisam ser conhecidas, cridas e observadas para a salvacao est’io em um ou outro lugar da Escritura tao claramente expos- tas e explicadas, que nio sé 0 culto como 0 inculto, com o devido uso dos meios ordindrios, pode alcangar uma suficiente compreensio delas,"? Nosso problema nao se acha nas partes da Escritura que achamos dificil entender. Como Jonas, nds fugimos da palavra do Senhor que nds entendemos. ARREPENDIMENTO, RECUPERAGAO E CONFISSAO 145, N&o a lemos, nado a amamos, tornamo-nos quase incapazes de meditar nela; somos descuidados, se nao realmente insensiveis quanto anos submeter a ela. Que fizemos justamente isso fica evidente, como foi com Jonas na maneira em que correu da presenca de Deus (Jn 1.3, 10). Nao conseguimos sentar-nos quietos ou silenciosos diante dele. A orag&o tornou-se a coisa mais dificil do mundo para os evangélicos fazerem. O culto congregacional na sua presenga se conformou aos moldes da nossa mentalidade de conveniéncia. Uma das provas mais evidentes disso é a maneira em que, por meio de toda espécie de desculpas extraordinariamente espirituais, a maioria dos evangélicos deixa Deus em paz mesmo no domingo, depois que 0 reldgio bate meio-dia! Sob 0 disfarce do medo de sermos chamados de “sabatarios”, roubamos do Senhor. Como resultado, provamos menos das béng&os cumuladas do culto do povo de Deus no Dia do Senhor. Ainda honramos nossos santos evangélicos, como Robert Murray M’ Cheyne, mas achamos praticamente incompreensivel 0 desejo deles de aproveitar até o fim os momentos de degustar os sabores deliciosos da gloria eterna. Vocé nunca passou pela experiéncia, num domingo a noite, de colocar a cabeca no travesseiro todo triste, com lagrimas nos seus olhos, porque o dia de se reunir na presenga de Deus ainda nao dura para sempre? Sera que estamos em tanto perigo de ser espremidos no molde do mundo que Cristo tenha isso contra nés: Perdemos nosso primeiro amor? Ou ainda cremos aqui e agora que na sua presenga hd plenitude de alegria e, na sua destra, delicias perpetuamente? Pobre Jonas. Fugiu da presenga do Senhor. Onde ficou a bem-aventuranga que ele conheceu quando viu o Senhor pela primeira vez? Mas, e eu, onde ficou aminha “visao de refrescar 0 corag&o” diante da presenga de Jeova-Jesus e sua Palavra (na expressio de Cowper)? Recuperacao Ha retorno? Ainda teremos um futuro? Sim, hum caminho de volta. Hao sinal de Jonas: acruz. E Deus tem suas formas de preparar ventos para perseguir-nos, grandes peixes para engolir-nos, ventres escuros que— como diz Calvino — tornam-se hospitais para curar-nos de nosso mal mortal. Mas é bem possivel que como comunidade precisemos de “angiistia” para fazer-nos clamar ao Se- nhor (Jn 2.2) ¢ retornar 4 sua presenga e sua palavra. 146 REFORMA HOJE ‘Trata-se de um grande disparate, mas revela a que chegamos, quando estu- diosos liberais do Antigo Testamento sugerem que a oragdo de Jonas 2 tenha sido um simples arranjo criativo e inteligente do autor do livro porque € pratica- mente uma série concatenada de citagdes dos Salmos. (Sera que nunca assisti- ram a uma reunido de oragao de igreja?) Mas é precisamente isso. O homem queria mais e mais das palavras das Escrituras. Como todos os que realmente se arrependem, ele as devorava, as transformava em oragdo, queria se banhar ne- las, se alimentar delas, e pér em pratica tudo que mandavam fazer. O que ele votou ele cumpriria (Jn 2.9). Ali, era inevitavel que ele buscasse a presenca de Deus e 0 culto a Deus. Banido ao exilio, queria que seu cativeiro terminasse. Queria estar no templo (Jn 2.4,7) — onde 0 perdo estava ilustrado, onde o louvor de Deus podia ser ouvido, onde ele poderia encontrar 0 povo de Deus, onde encontraria estimulo para cumprir seus votos. Quando Jonas assim se arrependeu, era inevitavel que seu coragao se mo- vesse de compaixao pelos perdidos que se entregam a idolatria va [e] aban- donam aquele que thes é misericordioso (Jn 2.8). Mas isso sé aconteceu quando ele reconheceu como lhe prendiam os idolos de seu proprio coragao, e o quanto ele se tinha agarrado a eles. S6 entéo percebeu com forga renovada que 4o Senhor pertence a salvagdo (2.9). Quando isso acontece conosco, o verdadei- ro arrependimento evangélico torna-se a dor mais doce do mundo inteiro. Oxala recebéssemos um batismo dele! E claro que isso tem a mais ampla aplicagdo. Mas se somos atingidos no coragao pela necessidade do arrependimento, o que devemos fazer para que haja salvagaio? Pela graca de Deus precisamos, antes de tudo, ser melhores pessoas. Preci- samos ser piedosos, nao meramente eficientes. Precisamos resolver que nunca nos contaminaremos na Cidade deste Mundo com a carne babilénica, e acredi- taremos que 0 pao ea 4gua da Cidade de Deus nos satisfardo espiritualmente tornando-nos fortes e sadios, e que nos encherao com a sabedoria do céu. De- vemos ter mais a mente no céu, mais centrada em Cristo, mais disposta a levar a cruz, e devemos fazer morrer a natureza do pecado e assumir a imagem de Cris- to. E simples assim. Mas como? O evangelicalismo é uma tradig4o nobre. Ser4 que nado podemos aprender ARREPENDIMENTO, RECUPERACAO E CONFISSAO 147 com nossos antepassados? Eles decidiram viver na presenca de Deus; reuniram- se para buscar sua presenga e ouvir sua voz na exposicao e aplicagao da Escri- tura; edificaram comunidades de Cristo com pedras preciosas lavradas a grande custo de pedreiras profundas; eles recusaram madeira, feno e palha. Sabiam que estariam um dia na presenga do juiz, Cristo, para receber o que deviam por aquilo que tivessem feito na carne — ent&o viveram e trabalharam, oraram e construiram para a eternidade. Nés também precisamos fazer isso. Oraram, e pediram a béngao divina. E foram ouvidos. E nds, ai! Nao temos sido ouvidos, porque ndo pedimos; e mesmo quando pedimos, vezes demais pedimos para esbanjar em nossos préprios prazeres impios (cf. Tg 4.2-3). O que devemos fazer? Devemos sentir 0 peso da verdade de que 0 reino chegou em Cristo Jesus; devemos nos arrepender e crer no evangelho. Confissio Este capitulo enfoca Arrependimento, Recuperagdo e Confissdo. Portanto, em conclusao, chegamos a confissdo — homologando 0 julgamento do Deus Todo- Poderoso sobre nossa vida € nosso ministério. Ao contrario de nossos pais, raramente fazemos isso, porque 0 evangelicalismo tende a individualizar e privatizar a experiéncia. Além disso, quem de nés € capaz de suportar o peso de ser o porta-voz da confissdo de pecados como os nossos? Pois todos nés precisamos ser dirigidos no confessar 0 peca- do eo fracasso, porque somos neéfitos a respeito. Mas talvez nossos antepassa~ dos possam novamente vir em nosso socorro. AConfissao e o Catecismo preparados pela Assembléia de Westminster entre 1643 e 1648 sao bem conhecidos. Menos conhecido é o fato de que, quatro anos depois, os ministros da Igreja da Escécia, tendo abragado essas grandes declarag6es doutrinarias, reconheceram sua necessidade de confessar, néo sé as doutrinas da fé, mas também os pecados de sua vida, como um ponto inicial essencial para o arrependimento continuo. Foram dias criticos, mas de forma nenhuma espiritualmente improdutivos, assim como nossos dias nao sao inteiramente improdutivos. Havia muitas evi- déncias de piedade, graga, poder e frutos importantes. Foram dias em que era possivel encontrar-se com gigantes puritanos nas ruas de Londres, Oxford e 148 REFORMA HOJE muitos outros lugares. De fato, em 1650 um comerciante inglés que voltava de uma visita a Escécia pode dizer: Grandes e boas noticias! Fui a Igreja de Saint Andrews, onde ouvi um doce homem de aparéncia majestosa [Robert Blair], e ele me mos- trou a majestade de Deus. Depois dele ouvi um homem pequeno e Joiro [Samuel Rutherford], e ele me mostrou a beleza de Cristo. Depois fui a Irvine, onde ouvi um velho simpatico e correto, de longas barbas [David Dickson], e esse homem me mostrou fodo o meu coragdo."* Mas também é clara prova de Deus estar agindo no coracao que tais lideres publicamente, dentro do corpo de Cristo, confessassem suas faltas. E podemos aprender com o exemplo deles 0 que é que o Senhor requer de nds. O que segue faz parte da confissao de suas faltas como lideres crist&os. E se aplica a todos os crentes. Porque, como comenta a Confissao de Westminster, o verdadeiro arre- pendimento evangélico chama cada um de nds “a arrepender-se particularmente de cada um dos seus pecados”." Confessamos: Desconhecer Deus, deixar de aproximar-nos dele e captar pouco de Deus ao ler, meditar e falar dele; excessivo egofsmo em tudo que fazemos, agindo de nds mesmos, para nds mesmos, e a favor de nds mesmos. Nao nos importar com quanto os outros foram fiéis ou negligentes, contanto que isso contribua para um testemunho de nossa fidelidade e diligéncia, mas estar até contentes, quando n&o jubilosos, pelos defeitos deles. Deleitar-nos menos nas coisas com as quais teriamos comunhao mais intima com Deus; ser bastante inconstantes no nosso andar com Deus, € nao 0 reco- nhecendo em todos os nossos caminhos. Nas nossas obrigagdes, ter menor cui- dado com as coisas que ficam mais longe dos olhos humanos. Demorar pouco em oracdo secreta com Deus, a nao ser em preparagao para desempenho publi- co; emesmo isso muito negligenciado, ou feito muito superficialmente. Ficar contentes em encontrar desculpas para a negligéncia das obrigagées. Negligenciar a leitura da Biblia em secreto, para nossa edificagao como cris- tos... Nao ser dados a refletir sobre nossos proprios caminhos, nem permitir que a convicgao dos pecados opere sobre nés de maneira completa; enganar- nos descansando sobre a auséncia do mal e a aversao para com o mal a luz da consciéncia natural, j4 considerando isso como prova de mudanga verdadeira de estado de espirito e natureza. Guardar mal nosso coragao e descuidar do exame ARREPENDIMENTO, RECUPERAGAO E CONFISSAO 149 da nossa alma, o que nos traz desconhecimento de nés mesmos e alienagao de Deus. Nao estimar como dignos de honra a cruz de Cristo ¢ os sofrimentos por amor a seu nome, e preferir passar para a frente sofrimentos, por amor a nds mesmos. Nao nos comover no corag&o com os sofrimentos tristes e pesados do povo de Deus em outras terras, e com a falta de crescimento do reino de Jesus Cristo edo poder de piedade entre eles. Praticar hipocrisia em seus refinamentos; desejar parecer o que na verdade nao somos. Estudar mais para aprender a linguagem do povo de Deus do que a pratica. Confessar o pecado artificialmente, sem arrependimento; professar de- clarar a iniqilidade, e nao resolver sentir tristeza pelo pecado. Negligenciar a confiss&o secreta, mesmo daquelas coisas a respeito das quais estamos conven- cidos. Estar mais prontos a procurar e censurar faltas em outras pessoas do que a ver ou tratar delas em nés mesmos. Considerar nossa posigdo e maneira de acordo com a estimativa que os outros tém de nés. Estimar as pessoas conforme concordem conosco ou discordem de nds. Entabular conversas comuns, levianas, com outras pessoas, mais para o mal do que para o bem. Desperdigar tolamente o tempo com... conversa inttil. Deixar de ter comunhfo com aqueles com quem sairiamos ganhando. Dese- jar mais conversar com aqueles que poderiam nos trazer beneficio pelos seus talentos do que com os que poderiam nos edificar por suas gragas. Nao estudar oportunidades de fazer bem aos outros. Passar adiante a ora- g&o e outras obrigagdes quando chamados para isso... amando mais nossos pra- zeres do que Deus. Dar pouco ou nenhum tempo a conversa cristé com jovens treinados para o ministério. Nao orar por homens de opiniGes diferentes, Mas usar de reserva e distan- cia com eles; estar mais prontos a falar deles do que com eles, ou a Deus a favor deles. Nao sentir as cargas das faltas e erros de outros, mas tirar proveito disso para justificar-nos a nés mesmos. Falar e rir dos defeitos dos outros, em vez de mostrar compaixao para com eles. Faltar coma cautela ao usar Cristo para tirar dele virtude, procurando capa- 150 REFORMA HOJE citar-nos para pregar no Espirito e no poder. Ao orar por auxilio, pedir mais por auxilio ao mensageiro do que Amensagem que transmitimos, nao cuidando do que vai acontecer com a Palavra, contanto que nés sejamos de algum auxilio no desempenho da tarefa. Mostrar imensa negligéncia e falta de habilidade na obra de apresentar as exceléncias e utilidade de (ea necessidade de interesse em) Jesus Cristo... Falar de Cristo mais por ter ouvido sobre ele do que por conhecimento préprio e experiéncia, ou qualquer impressio real no coragao.... Ter falta de sobriedade na pregagiio do evangelho, nao saboreando nada sendio as novidades, de modo que falta maior porgdo de substancia da religiao. N&o pregar Cristo na simplicidade do evangelho, nem nds mesmos como servos do povo, por amor a Cristo. Pregar Cristo, ndo para que as pessoas 0 conhegam, mas para que possam pensar que nds o conhecemos grandemente.... Nao pregar com as entranhas da compaixo por aqueles que esto em perigo de perecer. Ter amargura, em vez de zelo, ao falar contra os maliciosos, sectarianos € outras pessoas escandalosas.... Olhar demais aos créditos e aplausos; e ficar satisfeitos com isso quando os ganhamos, e mal-satisfeitos quando faltam.... Nao fazer conhecido a seu povo todo o conselho de Deus."* Ha mais; e certamente ha muito mais que precisamos confessar. Seré que nao devemos comegar j4? Porque no sentido mais amplo continua sendo verda- de: ando ser que nds nos arrependamos, todos nés — evangélicos, evangélicos confessionais, reformados, luteranos, batistas e congregacionais igualmente — igualmente pereceremos. Das profundezas clamo a ti Com mil lamentagées; Senhor, alerta o meu ouvir, Escuta as oragées. Se observares meu pecar E escura iniqitidade, Quem, Deus, subsistird? Para lavar a mancha assim S6 a graga adianta; ARREPENDIMENTO, RECUPERAGAO E CONFISSAO 151 As obras, nao. Nao tém valor. Ninguém tem vida santa Que possa em si se gloriar. S6 em teu poder sem par O crente viverd. Portanto em Deus confiarei, E ndo em vida justa. Descansarei em meu Senhor, E nada me assusta. Misericordia, Deus me acalma, Apoio nele a alma. Espero no Senhor. E quer a noite seja longa Até que o sol se levante, Meu coragdo confia nele. NGo temo, vou adiante: Fazei assim, cristGos unidos, V6s, do Espirito nascidos, Aguardai a Deus. Embora muito nds pequemos, Sua graga traz a salvagao. Oesperai no seu amor Copiosa redengao. Ele é 0 nosso bom Pastor E é assim libertador: Com ele esta o perddo. (Baseado em versos de Martinho Lutero no espirito do Salmo 130) Convocamos a igreja, em meio a nossa cultura moribunda, para que se arrependa do seu mundanismo, para que recupere e confesse a verdade da Palavra de Deus como fizeram os Reformadores, e para que veja essa verdade incorporada na doutrina, no culto e na vida. 7 A Reforma do Culto W. Robert Godfrey E u sei que ha de vir o Messias. Quando ele vier, nos anunciard todas as coisas. (Jo 4.25). Com essas palavras a mulher samaritana comegoua refletir sobre seu encontro extraordinario com Jesus. Ele havia falado com ela sobre varios assuntos: Agua viva, seu marido e 0 culto apropriado. A primeira vista, sua conversa parece nao fazer sentido, mas as palavras a levaram a fé e, por fim, levaram também muitas pessoas da sua vila a fé. Ele a ensinou sobre a agua da vida eterna, que ele, como Messias de Deus, trouxe ao mundo. Ele desafiou sua vida imoral, fazendo-a lembrar-se de que a vontade de Deus é de um casamento casto e piedoso. Ele a chamou para sair de um culto que era falso para o culto da nova alianga em espirito e verdade. Em suas breves mas compreensiveis pala- vras Jesus explicou 0 verdadeiro discipulado, mostrando que seus discipulos aceitam a verdade, se arrependem de seus pecados e fielmente adoram a Deus. Para os crentes que j4 entenderam o ensino de Jesus, a doutrina, 0 cultoea vida sempre estiveram intimamente entrelacados e interligados. A fé envolve a verdade de Deus (doutrina), encontro com Deus (culto) e servir a Deus (vida).A inseparabilidade desses trés elementos é vista repetidas vezes nas Escrituras ena histéria do povo de Deus. 156 REFORMA HOJE Paulo, por exemplo, quando escreveu aos colossenses, ligou esses temas. Discutiu as doutrinas da divindade de Cristo e sua obra redentora sobre a cruz (C12.9-15). Refutou uma variedade de erros sobre 0 culto, terminando com uma adverténcia contra todas as formas de “culto auto-imposto” (2.16-23). Chamou os colossenses a buscarem a santidade fazendo morrer sua natureza decafda e vivendo em Cristo ¢ para Cristo (3.1-14). Paulo expressou a interdependéncia desses trés elementos em apenas dois versiculos, 3.4-5: Quando Cristo, que a nossa vida, se manifestar, entdo, vos também sereis manifestados com ele, em gloria. Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituic¢do, impu- reza, paixdo lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria. A doutrina da gloriosa valta de Cristo deve conduzir o cristo a uma vida de mortificacaio da carne, reconhecendo que vicios tais como glutonaria s&o idolatria, uma forma de culto falso. O Culto através dos Séculos Através dos séculos, os crentes tem observado essa mesma ligagdo entre doutri- na, culto e vida. Agostinho, por exemplo, expressou-a claramente em suas Con- fissées quando discutia sua conversao. A conversio teve uma dimensio intelec- tual quando ele aceitou a verdade da doutrina crista. Teve uma dimensfo moral 4 medida que ele abandonou seus habitos carnais e abragou a castidade. ‘eve uma dimens&o sacramental quando ele foi batizado e tornou-se parte integrante da comunidade adoradora de Cristo.' Os Reformadores insistiram na necessidade de reforma em todas as trés areas. Martinho Lutero relacionou doutrina, culto ¢ vida como essenciais 4 Re- forma em seu ataque contra a Missa. Escreveu nos Artigos de Smalcald: “A Missa no papado deve ser considerada a maior e mais horrivel abominacao, porque ela entra em conflito direto e violento com 0 artigo fundamental [de Cris- toe fé]. Contudo, acima e além de todas as outras, ela tem sido a supremae mais preciosa das idolatrias papais.... Visto que tais abusos miiltiplos e indescritiveis tenham surgido em toda parte pela compra e venda de Missas, seria prudente passar sem a Missa, mesmo que nao fosse por outro motivo senio o de cortar tais abusos”.’ Lutero ensinou que os crentes deviam rejeitar a missa romana porque ela ataca a sa doutrina, ¢ um culto falso ¢ conduz a corrupgao de vida. Lutero defendeu a mesma posi¢io num momento de reflex&o sobre sua vida e experiéncia registrado no seu Table Talk [Conversas 4 Mesa]. Disse assim: A REFORMA Do CuLTO ibe “Escolhi 21 santos e orava a trés por dia quando eu celebrava a missa; assim completava o numero todas as semanas. Orei especialmente 4 Virgem Maria, que com seu coraco feminino poderia compassivamente apaziguar seu Filho. Ah, se 0 artigo sobre a justificagaio nao tivesse caido, as confrarias, peregrina- Ges, missas, invoca¢ao de santos, etc., nao teriam encontrado espago na igreja. Se cair de novo (0 que pego a Deus que nio acontega!), esses idolos voltarao”.* Mais uma vez, a doutrina, 0 culto e a vida € que esto intimamente ligados. De modo semelhante, Jodo Calvino ligava esses trés temas ao pensar sobre aalma da Reforma: “Ha trés aspectos sobre os quais a seguranga da Igreja se fundamenta, que so, a doutrina, a disciplina e os sacramentos, e a essas acres- centa-se uma quarta — as cerimGnias pelas quais se pode exercitar as pessoas em oficios de piedade”.* Em outra parte Calvino imaginou um crente em oragao lamentando-se pelo fato de a igreja medieval ter dado ensinamentos “que nem puderam me treinar devidamente no culto legitimo da tua Divindade, nem me preparar para a certeza da esperanga da salvacao, nem me ensinar a desempe- nhar bem os deveres da vida crist”.’ Ele da énfase ao mesmo ponto quando faz, reflexdes sobre o come¢o da Reforma: “Quando Deus levantou a Lutero e ou- tros, que ergueram uma tocha para nos iluminar a entrada ao caminho da salva- do, e que, por seu ministério, fundaram e ergueram nossas igrejas, estavam em parte obsoletos aqueles cabecalhos doutrinarios nos quais esta a verdade da nossa religiaio, aqueles nos quais a salva¢ao dos homens est inclusa. Mantemos que 0 uso dos sacramentos estava de varias maneiras viciado e poluido. E man- temos que o governo da Igreja estava convertido numa espécie de tirania infame einsuportavel”.’ Para Calvino, a doutrina da salvaciio, o culto com sacramentos puros ea vida da igreja foram essenciais para a reforma do Cristianismo. Essa preocupa¢ao da Reforma continuou existindo entre os protestantes ortodoxos. Por exemplo, os puritanos do século 17 produziram, na Confissao de Fé de Westminster, um grande sumario de doutrina. Mas essa assembléia tam- bém preparou tanto um Saltério para se cantar 0 louvor de Deus como um diretério para servir de guia ao culto piblico. AAssembléia de Westminster também mos- trou seu interesse na vida crista fiel com sua exposigdo detalhada dos Dez Man- damentos, que ela p6s como parte de seu Catecismo Maior. Embora 0s trés elementos de doutrina, culto e vida tenham sempre continu- ado a afetar um ao outro, por vezes na histéria da igreja moderna um elemento parece ter-se salientado mais do que os outros. A doutrina foi proeminente na controvérsia entre o liberalismo e o fundamentalismo nas décadas de 20 e 30.0. 158 REFORMA HOJE culto foi central nas lutas da Presbiteriana Escocesa no século 17. A vida tem dominado uma variedade de movimentos modernos que reagiram principalmente contra 0 que perceberam de formalismo e estagnagao na igreja. Pietismo, metedismo, reavivalismo, o movimento Holiness ¢ o pentecostalismo, todos fri- sam o chamado a vida. Nos ultimos trinta anos o movimento evangélico expressou preocupagdes nas trés areas. Os evangélicos lutaram para preservar a sd doutrina na sua defesa da inerrancia das Escrituras. Manifestaram seu compromisso moral na oposi¢ao ao aborto. Também assumiram extensos experimentos no culto publico de Deus. Mudangas no Culto Experimentos evangélicos recentes no culto so particularmente significativos por dois motivos. Primeiro, representam as mudangas mais difundidas do culto publi- co protestante desde a Reforma. Embora antes tenham ocorrido varias mudan- gas no culto, elas foram lentas e menos radicais. Segundo, as mudangas contem- poraneas no culto talvez oferegam a melhor ética pela qual avaliar a saude atual do evangelicalismo. Podemos discernir com eficacia o grau de vitalidade espiri- tual e fidelidade biblica ao olharmos a natureza mutante do seu culto. A variedade ja é caracteristica antiga dos evangélicos na pratica do culto, desde a liturgia formalista anglicana até o loucamente carismatico. Mas além des- sas diferencas histéricas, os evangélicos de muitas tradi¢des, em anos recentes, jaintroduziram em comum algumas mudangas especificas no culto em pelo me- nos cinco areas. Primeiro, muitos acrescentaram elementos novos no culto. Se- gundo, muitos tém mudado a natureza de elementos tradicionais do culto. Tercei- 10, muitos alteraram a quantidade, 0 estilo e o papel da musica no culto. Quarto, as igrejas tém demonstrado estarem dispostas a envolver muito mais pessoas na diregio do culto. Quinto, muitas igrejas tém feito mudangas nos horarios de seu culto. Essas mudangas solicitam um exame mais minucioso, Muitas congregagées acrescentaram uma variedade de novos elementos ao seu culto. Algumas acrescentaram a danga liturgica ¢ curtas encenagdes drama- ticas ou humoristicas. Algumas usaram recursos visuais — de faixas a slides e filmes. Outras acrescentaram variadas atividades pentecostais, incluindo desde A REFoRMA Do CuLTO 159 ser morto no Espirito a risos santos. Algumas acrescentaram pipoca e Copa na TV —embora talvez nfo como ato de culto exatamente. Muitas igrejas mudaram a natureza de elementos tradicionais do culto. Os dirigentes léem textos muito mais curtos da Biblia e passam muito menos tempo em oraco. FE mais provavel os sermées serem psicolégicos em lugar de teolégi- cos ou expositivos. Como cuidar do estresse ou do tempo ou do dinheiro parece estar entre as questées espirituais mais prementes da época, A Ceia do Senhor pode ser ou eliminada ou enfeitada de novidades cerimoniais e simbolismo. Muitas igrejas viram mudangas grandes na area da musica. Dao muito mais tempo a musica e fazem uso de maior variedade de instrumentos e mais musica especial, notadamente de solistas e corais. O estilo da mtsica também mudouem muitas igrejas. Musica classica e os hinos tradicionais deram lugar a canticos de louvor em estilos que variam do rock ou pop ao country e sertanejo cristao. Mais importante ainda, o papel da musica mudou. Enquanto a musica tradicional era parte importante do didlogo entre Deus e seu povo, em muitas igrejas a musica tornou-se a alma do culto, até sendo chamada de a parte de “Louvor e Adoragio” do culto. A musica para alguns parece ter-se tornado um novo sacra- mento, transmitindo, como intermediéria, a presenga ¢ experiéncia de Deus, es- tabelecendo um elo mistico entre Deus ¢ 0 adorador. Com os olhos fechados ¢ as maos no ar, os participantes repetem frases simples que se tornam mantras crist&ios. Muitas igrejas abandonaram a pratica hist6rica de ter um ministro ordenado para dirigir o culto. Varias partes da liturgia sao agora dirigidas por profissionais ou membros da igreja. Em alguns lugares nenhuma parte do culto— nem ser- mao, sacramentos, béng&éo — parece estar reservada para 0 ministro. Hé igrejas que tém feito mudangas quanto ao horario do culto. Em muitos lugares 0 culto de domingo 4 noite morreu. Mas sabado a noite apareceu como novo horario de culto para os ocupados, que guardam o domingo para trabalho ou recreacdo. Algumas igrejas dao muito maior atengo aos dias “santos” do ano eclesidstico. O Natal recebe pelo menos um més de preparagéio em muitas igre- jas (bem como no comércio). Mas, estranhamente, muitas vezes nao se fazem cultos no préprio Dia de Natal. Apesar da magnitude dessas mudangas, admira-se que pouquissima discus- so ou controvérsia tenha acompanhado sua introdugao. E claro que algumas 160 REFORMA HOJE igrejas locais tiveram problemas, e alguns artigos e livros tém aparecido sobre 0 culto. Mas em relag&o aos impactos das mudangas sobre a vida da igreja, a discussao tem sido bastante branda. A facilidade com que se realizaram mudan- ¢as to significativas aponta a insatisfacao com 0 culto tradicional que prevalecia entre os evangélicos e dé uma viséo da mente evangélica contemporanea. Mudanga sem Reflexio Por que essas mudangas ocorreram t&o facilmente e, em muitos casos, com tao pouca reflexao? Muitos evangélicos concluiam que seu culto publico estava sen- do ineficaz, enfadonho e irrelevante. Mais especificamente, em primeiro lugar, ha longo tempo muitos evangélicos nao tém visto o culto publico como central na sua vida e experiéncia crist&. De fato, um papel caracteristico do culto publico diminuiu quando muitos enfatizaram que toda a vida era um culto, e que o culto poderia assumir muitas outras formas que no essa do culto do povo de Deus reunido. Para muitos, o enfoque verdadeiro de sua vida crista tornou-se os gru- pos pequenos para estudo biblico, orago, confraternizagao e discipulado. Os grupos pequenos parecem oferecer a oracdio mais pessoal e sincera, a comu- nh&o mais intima e significativa, o ensino mais relevante e eficaz. Para outros, o centro tornou-se as organizagées paraeclesidsticas de servi¢o, instrugao e evangelismo. E provavel que poucos evangélicos de hoje concordassem com Calvino que ouvir um sermo fosse espiritualmente mais importante do que fazer leitura biblica em particular. Segundo, os lideres ja introduziram muitas modificag6es ao culto publicoem nome do evangelismo. Uma paix4o pelo evangelismo vem sendo de longa data um interesse central dos evangélicos. Ent&o torna-se irresistivel o argumento de que os novos elementos de culto (quer sejam drama, danga ou bateria— ou mesmo uma ordem de culto planejada especialmente para os interessados) vao cooperar para o evangelismo e crescimento da igreja. As mudangas sao feitas, acontega ou nfo a verdadeira evangelizagAo. Terceiro, as mudangas tornaram o culto bem mais interessante e atraente para muitos. Numa cultura em que sfio poderosas e quase onipresentes as ima- gens da televisao e do cinema, novos usos dos recursos visuais tém grande ape- lo. Numa cultura em que sao variadas e profissionais as misicas de radio, CD e fitas cassete, os evangélicos da nossa cultura esto acostumados a receber en- A REFoRMA DO CULTO 161 tretenimento, A igreja tradicional —- com palavreado, ritmo lento e misica antiga —— parece entediante e enfadonha. As mudangas parecem trazer a vitalidade de volta ao culto. Quarto, essas mudangas representam uma aceleragao e ampliagdo de mu- dangas que vém ocorrendo no culto evangélico nos ultimos duzentos anos. A ascensio do avivalismo, especialmente, como forma dominante do evangelicalismo na América do século 19, estabeleceu tendéncias no culto que culminaram naqui- Jo que vemos hoje. — O apelo para ir a frente ficou sendo 0 novo elemento em muitos cultos. Sermes se tornaram, com freqiiéncia, sobretudo evangelisticos. A desconfianga mantida com respeito ao clero profissional e 4 instrug4o formal incentivou o aparecimento de pregadores leigos, dos quais Dwight L. Moody foi o mais conhecido. Na misica, os Salmos foram primeiro substituidos pelos hinos de Watts e Wesley, e estes, por sua vez, deram lugar a cdnticos avivalistas, cuja qualidade parece ter declinado cada vez mais em seu contetido teolégico, forma poética e musica, Cantatas e programas de musica substituiram, por vezes, 0 culto de adorag4o, Corais, musica especial e hinos avivalistas tornaram-se im- portantes para criar a atmosfera do culto. A biografia autorizada do pregador Billy Sunday, de 1914, registra sobre suas reunides: “A introducao do culto é feita por cerca de meia hora a uma hora dessa musica vatiada. Quando o proprio evangelista esta pronto para pregar, a multidao jd foi levada a um entusiasmo e fervor que a torna receptiva 4 sua mensagem”.* Quinto, os evangélicos nao levaram em considera¢4o quantas mudangas contempor4neas no culto eles tomaram emprestado das igrejas pentecostais ou carismaticas: o estilo espontaneo, a lideranga miltipla, a express&o esponténea de pensamentos e sentimentos individuais, o tipo da misica e 0 dramatico. (Eclaro que o culto carismatico é, ele mesmo, uma extensao de alguns elementos de um avivalismo anterior). Muitas dessas mudangas se apdiam sobre teologias carismaticas de espiritualidade, culto e ministério. Ser que os evangélicos que- rem realmente abracar essas teologias e tudo 0 que tais teologias compreendem? Sexto, a pronta aceitagdo dessas mudangas mostra 0 quanto os evangélicos se acomodaram a cultura moderna. As mudangas todas parecem naturais numa cultura que tendea ser democratizada, antiintelectual, pragmaticae otimista. Numa cultura democratizada e individualista, parece ser completamente apropriado cada membro da igreja ser capaz de liderar 0 culto e cada um encontrar formas de culto e musica que 0 atraiam e satisfagam. Numa cultura antiintelectual e pragma- tica, iro parecer mais apropriadas as formas de culto que mais apelam as emo- 162 REFORMA HOJE ges do que a mente, as que s4o imediatamente acessiveis e que atraem 0 povo, endo as que apresentam um desafio ou que sao disciplinadas. O entretenimento substitui a edificagéio. Como D.G. Hart 0 expressou num artigo chamado “O Culto Evangélico Pés-Moderno”: “Na verdade, 0 culto contemporaneo —ea vida da igreja, pode-se dizer — depende cada vez mais dos produtos da cultura popular... Em lugar de ganhar maturidade e adotar a gama mais ampla de expe- riéncias que caracteriza a idade adulta, os evangélicos... querem recuperar e perpetuar as experiéncias da adolescéncia”.’ Numa cultura otimista, as igrejas presumem que muitos jd esto buscando a Deus e que amensagem do pecado, juizo ¢ inferno deve ficar em surdina. Reflexées sobre a Mudanca Essa nova situagao pede consideracao cuidadosa. Requer reflexdo nao apenas quanto as novas tendéncias no culto, mas também quanto a natureza do evangelicalismo contemporaneo. Como devemos avaliar o novo culto e os novos evangélicos? Edbvio que muitos enxergam essas modificagSes sob um angulo positivo. Robert Webber, por exemplo, em sua obra Signs of Wonder [Sinais de Maravi- tha],"° escreveu de forma bastante positiva sobre as maneiras pelas quais as igre- jas protestantes litirgicas, carismaticas e tradicionais vém emprestando elemen- tos do culto entre si. Ele vé isso como prova de renovagao em todos esses grupos. Uma avaliagao positiva, contudo, parece profundamente errada, de uma variedade de angulos. Seguindo a cultura moderna, poderiamos avaliar as mu- dangas pragmaticamente. As igrejas tém crescido? As igrejas tém tido éxito em evangelizar muitos? Os crentes tem alcancado novos niveis de fé, devogaio, amor eservigo? Se vamos ouvir os casos, a conclusao pode até ser que muitas igrejas tém alcangado sucesso. Ha intimeras historias entre os evangélicos sobre igrejas que crescem e igrejas plantadas com 0 uso das novas medidas usadas no novo culto. Mas ser que esses relatérios dao um retrato fiel da experiéncia da igreja contempordnea? Lamentavelmente, com maior freqiiéncia essas historias parecem refletir 0 mau costume evangélico de gostar de superlativos em vez de reportagem objeti- va. Quase tudo que fazemos é anunciado como sendo o melhor de todos os A ReForMa Do CuLto 163 tempos. Pouco tempo atras, uma propaganda de pagina inteira num jornal im- portante, avisando sobre uma reunifio evangelistica, prometeu a maior manifesta- ¢&o do poder de Deus da histéria do mundo. Os evangélicos parecem estar sempre “em momentos inéditos de oportunidade” que vaio ser aproveitados “com recursos jamais antes disponiveis”. Os superlativos evangélicos sao uma manifestado herdada de Charles Finney, que via o entusiasmo como chave ao sucesso evangélico, Ele escreveu o seguin- te: “Deus achou necessério aproveitar o entusiasmo que existe no homem, para produzir grandes exaltages entre eles, antes que os possa levar a obedecer”."! “£ preciso haver empolgaciio suficiente para acordar as forgas morais dormen- tes, e afastar a maré de degradagiio e pecado”.”? Para estimular esse entusiasmo Finney desenvolveu suas “novas medidas” — o que J. I. Packer chamou em algum lugar de “tecnologia religiosa”. Finney declarou: “O objetivo das medidas que tomamos é ganhar a atenciio e femos de ter algo novo”. O problema é que, uma vez transpostos os casos sobre as realizagdes novas e empolgantes, a prova do éxito evangélico nao aparece; lamentavelmente, esté em falta. AAmérica no esta experimentando um reavivamento de fé ou consa- gra¢4o. Os crentes podem estar se deslocando de uma igreja para outra, mas no geral o Cristianismo ndo parece estar crescendo." De fato, o evangelicalismo parece estar sendo mais fraco e menos influente com o evangelho do que nunca. Fracassou de acordo com seus préprios critérios de sucesso." A avaliagao mais importante do evangelicalismo e do seu culto, entretanto, tem de ser biblica e teoldgica. Os unicos critérios da fidelidade que tem impor- tdncia s4o os de Deus, e esses critérios s6 se encontram nas Escrituras. Uma Teologia de Culto A Biblia usa a palavra “culto” de maneiras variadas. O culto pode se referir ao todo da vida (Rm 12.1-2). Também pode se referir a varias formas de devocao pessoal ou informal (por exemplo, Dt 6.4-9). De interesse particular para nés é culto como a reuniao oficial do povo da alianga para se encontrar com Deus (por exemplo, em At 2.42; Hb 10.25). Oculto do Corpo de Cristo é reunir-se com Deus. O Salmo 74.8 fala dos locais do culto de Israel como “lugares santos de Deus na terra”: pontos de encontro com Deus. Mesmo antes da queda no Jardim do Eden o homem preci- 164 REFORMA HOJE sava de tempo concentrado com Deus. Como seres finitos, os humanos preci- sam de horas especificas e oportunidades para se focalizarem em Deus. Israel cultuava em volta de um tabernaculo que era conhecido como a Tenda da Con- gregagao. Quando 0 templo foi construido, Israel se reuniu naquela casa de Deus para se encontrar com ele. Na nova alianga a reuniao da comunidade crist& & uma reuniao de Deus com o templo celeste — um tema desenvolvido, por exem- plo, em Hebreus 10 e 12. Esta reuniado com Deus antecipa a comunhio eterna que Deus teré com seu povo num novo céu e nova terra. Todo o objetivo da salvagao é que o relaciona- mento quebrado entre Deus e o homem possa ser vencido para que a verdadeira comunhio possa ser restaurada. A importancia do culto é expressa admiravel- mente nesta afirmag&o de Calvino: “Debater 0 modo em que os homens obtém a salvagao e dizer nada do modo em que Deus pode ser devidamente cultuado, é absurdo demais”.' Deus sempre levou seu culto muito a sério. Fala do seu culto ndo sé no Segundo Mandamento, mas pelo menos implicitamente nos primeiros quatro dos Dez Mandamentos. Oferece sérias adverténcias sobre 0 culto em todos os Li- vros da Lei (por exemplo, em Dt 4). Traz penalidades duras sobre os que per- vertem 0 seu culto (por exemplo, Lv 10 e 2Cr 26). Amesma preocupagao é vista claramente no Novo Testamento. O culto preocupaa Jesus e a Paulo. Hebreus 12.28-29 resume bem essa preocupagao: Retenhamos a graca [sejamos agra- decidos]... [e] sirvamos a Deus de modo agraddvel [aceitavel], com reverén- cia e santo temor; porque o nosso Deus é fogo consumidor. Uma Avaliagio do Culto A preocupacdo de Deus com respeito a seu culto deve levar os evangélicos a uma avaliag&o muito mais cautelosa de suas praticas de culto. Primeiramente, os evangélicos precisam reconsiderar os novos elementos introduzidos no culto. Sera que elementos visuais tais como drama, danga e filme sao aceitaveis a Deus? Nao parecem ser coerentes com a aplicagao refletida do Segundo Mandamento. Ao contrario, tem mais semelhanga com 0 fogo estranho oferecido ao Senhor (Lv 10.1). Deus na Escritura nunca aprovou a criatividade ou inovagiio no culto. Como é que os evangélicos tao impensadamente presumem que Deus aprova as suas novidades? A REFORMA DO CULTO 165 Esses elementos tém de ser rigorosamente submetidos as Escrituras. A falha evangélica, de nao fazer isso, mostra que a Biblia nao funciona de maneira central na vida e modo de pensar de muitos. Nao devia haver tantos evangélicos se contentando com tirar um tema ou ilustrago da Escritura, sem estudar cuidado- samente os detalhes para verificar se estfio apresentando uma verdade coerente e sistematica. Os evangélicos precisam ver que o culto deve ser orientado pela Palavra nos detalhes especificos, nao de maneira geral e vaga. Para muitos evangélicos, a justificativa de sua nova maneira de prestar culto tem raiz na sua sinceridade. O culto certamente precisa ser sincero para ser aceitavel a Deus. Masa sinceridade por si sé nfo tornao culto aceitavel a Deus. Os adoradores de Baal nos dias de Elias eram sinceros. Muitos adoradores de Yahweh em Samaria eram sinceros. Mas Deus rejeitou tal adoragao como viola- ges do Primeiro ou Segundo Mandamento. A sinceridade nfo justifica a falsa adoragao, como também nfo justifica a falsa doutrina ou a vida desobediente. Oculto que é simples ¢ espiritual ira incentivar a vida crist’ disciplinadae coerente. Conduziré os evangélicos de voltaa Biblia, Esse culto realmente edificara 0 corpo de Cristo na doutrinae na vida. Segundo, os evangélicos devem reexaminar quais as formas em que eles mudaram os elementos do culto, Os sermées devem voltar a ser rigorosamente expositivos para que a igreja ouga realmente a Palavra de Deus, e nao opinides humanas. A exposig&o da Palavra em sua riqueza ira confrontar as nossas idéias, valores e maneiras pecaminosas, assegurando que 0 culto nao seja simplesmente um paliativo confortante. A Biblia precisa ser lida como ato central do culto: nao apenas para informar mas como ato de reveréncia e agradecimento a um Deus que se revelou a si mesmo. A orago deve ser restaurada como privilégio da igreja de falar ao Deus que se aproxima deles. Os sacramentos devem ser vistos como sendo a bondade do Senhor em dar expressio visivel ao evangelho. Os elementos histéricos do culto refletiam um sentimento da grandeza e pre- senga de Deus. Os evangélicos podem retomar 0 culto profundamente centrado em Deus, e se afastar do seu culto cada vez mais centrado no homem. Como Calvino escreveu: “Nao é uma teologia muito acertada a que limita tanto os pen- samentos da pessoa a si mesma, e no coloca diante dele, como motivagaio priméria de sua existéncia, 0 zelo por ilustrara gléria de Deus. Pois somos nasci- dos antes de tudo para Deus, e nao para nds mesmos”.”” A vida crista florescerd num contexto em que se cultive um relacionamento 166 REFORMA HOJE vital com Deus de acordo com sua Palavra. Reunir-se com Deus na verdade fortalecera a vida crist. Terceiro, os evangélicos devem olhar com cuidado a sua misica. A musica é amaneira-chave de expressar a emogdo no culto. Mas o culto contempordneo por vezes demais preocupa-se apenas com a emociio de alegria — e esta de modo bem superficial. A Biblia dé énfase a alegria, certamente, mas dé énfase igual a reveréncia. Diz o Salmo 2.11: Servi ao Senhor com temor e alegrai-vos nele com tremor. Areveréncia e a alegria, ambas, devem ser expressas no culto. Aalegria e areveréncia refletem a natureza de Deus, que é justo e misericor- dioso, santo e amoroso. Culto que ¢ apenas alegre ¢ servir a um Deus despojado de metade de seus atributos. Produz um evangelho que fala de paz quando nao ha paz. Divorciaa Lei do evangelho e 0 arrependimento da fé. As misicas do culto da igreja devem seguir 0 modelo do hinario no qual se louva a natureza de Deus e suas grandes obras. Tal louvor nao é composto da repeticao de frases ou de ma poesia. E louvor verbalmente rico, emotivamente variado, cheio de contetido. E o tipo de louvor que encherd a mente e 0 coragiio do povo de Deus com a verdade de Deus, com amor para com Deus como ele realmente é. Abastecer4 a mente com verdades sobre as quais meditar, Incentivard 0 povo de Deus a santidade de vida. Quarto, muitos evangélicos diminufram o papel do pastor na lideranga do culto e multiplicaram o numero de lideres do culto. So atos alinhados com a cultura democratica, e freqiientemente justificados apelando-se 4 doutrina do sacerddcio de todos os santos. Mas isso muitas vezes torna lideres pessoas sem ainstrugdo ou experiéncia devida para a posi¢ao. E mais importante, tais pesso- as nao receberam um chamado nem foram separadas para essa obra pelo corpo da igreja. Os evangélicos precisam reassumir uma teologia de dome ministério, Uma das grandes dadivas de Cristo concedidas a sua igreja, de acordo com Efésios 4, sto os dons de pastor e professor. Aqueles que foram dotados e vocacionados por Cristo e sua igreja precisam dirigir 0 povo de Deus cuidadosamente em seu culto em conformidade com a Palavra. Tal lideranga ird ajudar os crentes em toda sua maneira de vida a refletir sobre a importancia das estruturas e autoridades que Deus nomeia. O declinio A REFoRMA DO CuLTO 167 do respeito para com as autoridades, quer pais, mestres, empregadores ou auto- tidades do govern, é um problema crucial do nosso tempo. A igreja deve ser exemplo para a sociedade no seu respeito para com os ministros e presbiteros que Cristo estabeleceu em sua igreja. Quinto, os evangélicos vém mudando 0 horario do culto para tornar mais facil e mais acessivel 0 culto ao Senhor. Mas sera que os evangélicos compreen- deram o chamado do Senhor para que se santifique o Dia do Senhor? Existe um Dia do Senhor na nova alianga — o de Apocalipse 1.10 —e é santificando-o que o povo de Deus aprende a obedecer e a negar-se a si mesmo. O verdadeiro Cristianismo nao é¢ facil, mas aceita de bom grado a disciplina e béngao do des- canso e culto no Dia do Senhor. A fé verdadeira fica feliz de passar tempo com Deus. Aprecia muitissimo a hora para devogao, aprendizagem e servigo cristo. Nao busca terminar logo o culto, mas procura seguir o modelo revelado de um dia com Deus. Os evangélicos, com relac&o ao culto, doutrina e vida vém se tornando minimalistas, Sao pessoas demais perguntando: Qual ¢ 0 minimo que posso fazer e qual é a maneira mais facil de fazé-lo para que eu seja um disc{pulo de Jesus Cristo? Os evangélicos precisam se lembrar — em primeiro lugar — da Grande Comissao (Mt 28.18-20). Ai Jesus declara o que ¢ 0 verdadeiro discipulado. Tem uma dimensao doutrindria: Os discfpulos devem reconhecer Jesus como possuidor de toda a autoridade no céue na terra. Tem uma dimensao de culto: Os discipulos devem ser batizados em nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo. Tem uma dimensiao de vida: Os discipulos devem obedecer a tudo que Deus mandou. Os evangélicos precisam captar de novo a plenitude da religiao biblica. Arrependimento e Reforma Essa breve andlise e avaliag&o dos evangélicos e do culto contemporaneo nao seré aprovada por todos. Alguns a rejeitarao por inteiro. Outros farao objegao a um ou mais pontos levantados. Mas cumpriré sua fungao mais importante se provocar um debate vigoroso desses assuntos. Nos dias de hoje os evangélicos precisam se envolver em discusses sobre questdes de doutrina, culto e vida. A ecumenicidade verdadeira vai pedir uma volta a teologia polémica que, conquanto escrupulosamente bem-educada e honesta, também seja penetrante e 168 REFORMA HOJE vigorosa. A polémica no pode ser apenas elemento apreciado do heréico pas- sado do Cristianismo, mas deve também fazer parte do nosso presente. Os de- fensores da fé hoje precisam seguir os passos de Atandsio e Agostinho, de Lutero e Calvino, de J. Gresham Machen e Robert Preus. Nao devemos ser emasculados por aquilo que James Hunter bem chamou de nossa “ética da cortesia”, pela qual procuramos sempre no sé tolerar, mas ser tolerados.'* Como escreveu Calvino: “Porque os pastores s6 edificam a Igreja, quando, além de conduzir almas dé- ceis a Cristo placidamente, como pela m&o, também se armam para repelir as maquinagdes daqueles que lutam para impedir a obra de Deus”.” Numa defesa vigorosa da Reforma, Calvino atacou 0 papado, desafiando qualquer pessoa “a dar o nome de Vigario de Cristo aquele que, depois de des- baratar a verdade de Cristo, extinguir a luz do evangelho, demolir a salvagdo dos homens, corromper e profanar o culto a Deus, e pisar e despedagar todas as instituigdes sagradas dele, domina despoticamente como um barbaro”.” Em nossa cultura de civilidades, muitos hao de achar tal debate exagerado. Mas para Calvino, o evangelho estava em jogo. Seguiu o exemplo do Apéstolo Paulo em sua carta aos galatas. E que linguagem devemos nds usar num mundo evangélico em que alguns ensinam doutrinas de Deus e da salvacdo pior do que qualquer papa; onde alguns promovem cultos mais autocomplacentes e auto-justificados do que qualquer papa; onde alguns ignoram a Lei de Deus mais abertamente do que qualquer papa? Os chamados evangélicos promovem a doutrina anticrist4 quan- do ensinam a mutabilidade de Deus e quando negam a natureza juridica da justifi- cago! Rebaixam o culto com risadas profanas, falsa profecia e vas repeti¢es. Corrompem 0 viver crist&o relevando o divércio, ahomossexualidade, o aborto eo infanticidio.” B.B. Warfield certa vez observou, sobre a teologia de Charles Finney: “Deus poderia ser eliminado dela inteiramente, sem que houvesse mudanga essencial na natureza dela”.”> O mesmo se poderia dizer de uma parte desproporcional do evangelicalismo contemporaneo. Precisamos de uma andlise mais perspicaz ede uma refutacdo mais agugada. Precisamos perguntar se 0 juizo que Calvino fez da igreja medieval se aplica também ands: “Contaminaram 0 culto puro de Deus com impias superstigdes, e envolveram a doutrina da fé, bem como a do arre- pendimento, em erros sem fim; que por trevas de varias espécies nao s6 obscu- receram mas quase extinguiram a virtude e graga de Cristo; e por métodos indig- nos adulteraram o Sacramento”. Hoje, como sempre, a doutrina, o culto e a vida continuam rigorosamente A ReForMA bo CuLTo 169 interdependentes. Onde a doutrina ensina que o homem é bom e Deus é benevo- lente, o culto seré animado — uma sala de diversdes para as criangas—ea vida serd orientada a realizagdo prépria. Onde o culto focaliza as necessidades huma- nas ¢ o entretenimento, a doutrina de Deus, do pecado e da graca murchara ea vida sera autocentralizada. Onde a vida é auto-indulgente, tanto doutrina como culto também sero auto-indulgentes. Hoje os evangélicos carecem de um cuidadoso exame préprio quando con- sideramos sua doutrina, culto e vida. Precisamos meditar em textos da Escritura como Deuteronémio 4. Agora, pois, 6 Israel, ouve os estatutos e os juizos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o Senhor, Deus de vossos pais, vos dé. Nada acrescentareis & palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos mando.... Guardai-os, pois, e cumpri-os, porque isto serd a vossa sabedoria e © vossos entendimento perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirdio: “Certamente, este grande povo é gen- te sdbiae inteligente”. Pois que grande nagdo hd que tenha deuses tdo chegados a si como o Senhor, nosso Deus, todas as vezes que 0 invocamos?... Guardai-vos: ndo vos esquecais da alianga do Se- nhor, vosso Deus, feita convosco, e ndo vos fagais alguma imagem esculpida, semelhanca de alguma coisa que o Senhor, vosso Deus, vos proibiu. Porque o Senhor, teu Deus, é fogo que consome, é Deus zeloso (Dt 4.1,2,6,7,23,24). Os evangélicos precisam arrepender-se. Vezes demais substituimos 0 fogo consumidor por um Deus moderado; substituimos 0 culto do Deus invisivel por algumas formas de inveng&o humana; substituimosa lei moral de Deus pela satis- fag4o de necessidades psicolégicas. J.B. Phillips, décadas atrds, estimulou os evangélicos com seu livro, Your God Is Too Small [Seu Deus E Pequeno De- mais]. Atualmente precisamos de um livro entitulado Seu Deus E Agua-com- Agicar Demais, ou até mesmo, talvez, Seu Deus E.um Idolo Pagdo. Os evan- gélicos precisam de um espirito de arrependimento que leve a uma reforma com- pleta da doutrina, culto e vida. 8 A Reforma na Doutrina, No Culto e Na Vida James Montgomery Boice Toc agora um capitulo pratico, sugerindo quais os itens que precisam ser recuperados na doutrina, no culto e na vida de nossas igrejas, se é para 0 povo de Deus se tornar uma presenga eficaz para o bem da sociedade americana atual. Comega tendo por aceitos os pontos levantados nos capitulos anteriores: (1) que a igreja evangélica se tornou secular com o abandono de sua heranga teolégica ea substituigdo pelo pragmatismo, e (2) que as verdades que precisam ser recuperadas s&o as dos Reformadores Protestantes que honravam a Deus como autor e aperfeigoador da fé da igreja. Essas verdades sdo expressas em parte pelos “solas”: sola Scriptura, sola fide, solus Christus, sola gratia, e soli Deo gloria. Neste capitulo, passo a explorar o que podera estar envolvido numa recu- peracéio séria dessas e de outras doutrinas importantes da Reforma, quando as nossas igrejas puserem maos a obra: regular os que ensinam, guiara maneiraem que incentivam e dirigem o culto, e formar a espécie de vida em comunidade que € preciso exibir diante dos olhos do mundo atento. 172 REFORMA HOJE Reforma na Doutrina Vivemos numa época de teologia fraca e, em certos lugares, inexistente, especi- almente por parte de evangélicos, os que mais deveriam entendé-lae afirmé-la. Falar, ent&o, sobre a recuperacio da doutrina é, pelo menos em um nivel, falar sobre a recupera¢4io mais ampla possivel. E recuperar todas as doutrinas princi- pais de todos os credos. Precisamos ensinar sobre Deus € seus atributos, a natu- reza do homem como Deus 0 criou e como decaido, a obra de Jesus Cristo em realizar nossa salvacdo (recuperando as grandes palavras biblicas desta obra — expiagao, propiciagao, reconciliagao e redengao), a maneira pela qual o Espirito Santo aplica a obra completa de Cristo ao individuo, a igreja (o que ée como deve funcionar) e o fim de todas as coisas (particularmente o juizo final, inferno e céu). Precisamos do ensino poderoso especifico sobre as Escrituras, as aliangas, agraga, a Lei de Deus, a eleigdo, a vocagao eficaz, a justificagaio, o chamado de Cristo ao discipulado, e outras doutrinas. Nao ouvimos muita pregag4o sobre essas verdades fundamentais hoje em dia. Essa é uma fraqueza primaria e debilitante da igreja. Mas também precisamos de um enfoque para se iniciar essa recuperagdo, e o enfoque mais necessario hoje ¢ 0 reconhecimento renovado da realidade e da presenga de Deus em contraste com a preocupagao com o homem e suas “ne- cessidades sentidas” que veio a dominar tantas de nossas igrejas. Aqui, natural- mente, necessitamos de equilibrio. A teologia envolve tanto Deus como 0 ho- mem, assim como a boa pregagdo deve falar tanto 4 mente como ao cora¢ao. Mas as pessoas tém a tendéncia de abragar os extremos, e 0 péndulo hoje osci- lou na dirego de uma teologia, um culto e uma vida eclesiastica exclusivamente centrados no homem. As pessoas vao a igreja, quando vao, com a pergunta: “Que é que vou ganhar com isso?” E a tendéncia é reorganizar a mensagem ea vida da igreja para responder a essa pergunta. David F. Wells, professor de teologia histérica e sistematica no Seminario Teolégico Gordon-Conwell, analisou essa tendéncia em dois livros muito bons: No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology? [Nao ha Espago paraa Verdade: Ou 0 que Aconteceu com a Teologia Evangélica?] E God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams [Deus no Deserto: a Realidade da Verdade num Mundo de Sonhos que se Esva- em] Neste ultimo ele escreve: “O problema fundamental no mundo evangélico A RerorMa NA Doutrina, No CuLto E Na VIDA 173 de hoje nao é técnica inadequada, organizago insuficiente ou musica antiqua- da.... O problema fundamental no mundo evangélico de hoje é que Deus pesa pouco demais sobre a igreja. Sua verdade esta distante demais, sua graca co- mum demais, seu juizo manso demais, seu evangelho facil demais e seu Cristo simples demais”. Fica claro que em nossos dias precisamos empurrar 0 péndulo de volta na direg&o de uma preocupagdo com Deus e seus atributos, ¢ frisar repetidas vezes em nossa pregagao a doutrina de Deus. Mas é necessario algo mais. Desde que Immanuel Kant atacou a distingao objetiva entre o eu eo objeto a ser conhecido pelos sentidos, percebendo quea mente realmente formaa realidade pela forma em que recebe e analisa os estimu- los externos, o proprio eu tem se tornado a medida e determinador de todas as coisas, tanto para os crist&os que vivem na cultura atual e so formados por ela, como para os demais. A preocupa¢do consigo mesmo € 0 pecado principal do mundo moderno. E isso significa que, sem fazer oposig&o a concentragao no eu, até o esforgo renovado de ensinar a respeito de Deus ser sem frutos visto que acabara sé apresentando um Deus a ser usado por nés em lugar de um Deus que exige de nds a entrega do eue a obediéncia radical. Precisamos mostrar que, na Biblia, Deus no é apresentado como resposta a nossas necessidades sentidas, mas como aquele que nos chama a levantar uma cruza cada dia ea carrega-la para seguir Jesus Cristo. Wells diz: “Numa cultura cheia de [consumidores religiosos]}, devolver peso a Deus vai envolver muito mais do que s6 consertar alguma doutrina; vai requerer uma reconstrugao completa da personalidade pasticho preocupada inteiramente consigo mesma”.? Poderemos comegar com um novo exame dos atributos de Deus. 1. A soberania de Deus. Nao poderemos nunca exagerar a importancia da soberania de Deus, porque Deus éa maior de todas as realidades; ele é, de fato, apropria base da realidade, e a soberania é a coisa mais importante que se pode dizer a respeito dele. Os outros atributos de Deus sao importantes também. Mas se, em nosso pensar, eliminarmos a soberania de Deus, que aqui quer dizer a determinagdo e governo absoluto de Deus sobre todas as suas obras e criaturas, Deus nao sera mais Deus para nés. Seus decretos e atos sero determinados por algo diferente, ou os meros humanos ou as circunsténcias ou outro poder césmi- co, € essas outras coisas (ou nada) serao nosso Deus verdadeiro. 174 REFORMA HOJE Para ser soberano, Deus também precisa ser onisciente, onipotente e abso- lutamente livre. Se fosse limitado em alguma dessas areas, nao seria realmente soberano. Contudo, a soberania de Deus é maior do que qualquer um destes ou qualquer outro dos atributos que o termo contém. A soberania nao é mero dogma filos6fico, vazio de valor pratico. Eatmica doutrina que da sentido e substancia a todas as outras doutrinas. Ela é, como observou Arthur W. Pink, “o fundamento da teologia cristd... o centro de gravi- dade do sistema da verdade crist€ — 0 sol em torno do qual as orbes menores se agrupam”.* E provavel que até aqui a maioria dos crentes evangélicos concorde, embo- ta possa sentir que a soberania de Deus nao é um enfoque muito pratico para o ensino crist&o de hoje. Mas o que precisamos frisar também € 0 corolario da doutrina da soberania de Deus, isto é, que se Deus é soberano sobre todas as coisas, ent&io nds nao somos soberanos, nem mesmo sobre os afazeres de nossa vida pessoal. Ndo estamos em posi¢do de poder determinar nem o que nossa vida deve ser nem quais seriam mesmo nossas verdadeiras necessidades, ¢ cer- tamente nao devemos supor nem por um instante que o mundo gire em torno de nds. Sea doutrina da soberania de Deus vai ter forca no meio cultural de hoje, deve ser contrastada com a sindrome de Nabucodonosor. No quarto capitulo de Daniel, Nabucodonosor esta em pé em cima do seu palacio, contemplando a magnifica cidade da Babil6nia com seus gloriosos jardins suspensos, ¢ ele aceita tudo aquilo como obra sua, mérito seu. O texto cita as palavras de vangléria: Nao € esta a grande Babildnia que eu edifiquei para a casa real, com o meu grandioso poder e para gloria da minha majestade? (v.30). Estava susten- tando que 0 mundo que ele via era dele, por ele e para sua gloria. Essa é a propria esséncia do espirito do mundo que exalta o eu em oposigdo a soberania do verdadeiro Deus, e as palavras soberbas de Nabucodonosor talvez sejam a mais perfeita expresso de toda a literatura daquilo que hoje cha- mamos de humanismo secular. Mas é exatamente esse espirito que observamos nas igrejas evangélicas atuais, quando construimos templos cada vez maiores, e ministérios cada vez mais grandiosos, pelo servir ao amor-préprio e por meios mundanos, em lugar de fazer a obra de Deus pelo seu poder e em obediéncia a ele. Em outras palavras, a soberania de Deus mais do que qualquer outra doutri- A ReFoRMA NA DourRriNa, No CuLTO E Na VIDA 175 na define a esséncia da luta contra o mundo e a carne no dia de hoje. A luta é sobre quem é soberano. Somos nds, talvez, os poderosos deste mundo? Ou é 0 Deus da Biblia? Felizmente, Nabucodonosor entendeu a mensagem. Pois seu testemunho final diz: Ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu, tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altissimo, e louvei, e glori- fiquei ao que vive para sempre. [Seu]dominio é sempiterno, e [seu] reino é de geragdo em geragdo. Todos os moradores da terra so por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu € os moradores da terra. Nao hd quem lhe possa deter a mao, nem lhe dizer: ‘Que fazes?’ ..Agora, pois, eu, Nabucodonosor, louvo, exalgo e glorifico ao Rei do céu, porque todas as suas obras sao verdadeiras, e os seus caminhos, justos, e pode humilhar aos que andam na soberba. (vs. 34-37). Deus nao sé “pode” humilha-los. Ele os humilha mesmo, e é exatamente o que precisamos na igreja hoje— especialmente nds evangélicos. 2. A santidade de Deus. A soberania pode ser 0 mais importante dos atri- butos de Deus, mas se existe um rival, é a santidade. E 0 atributo mais menciona- do na Biblia— nao a soberania, nem o amor, mas a santidade. O Senhor, quem é como tu entre os deuses? Quem é como tu, glorificado em santidade, terrivel em feitos gloriosos, que operas maravilhas? indagou Moisés (Ex 15.11). Quando Isaias teve sua visio de Deus, ouviu os serafins clamando: Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra esta cheia da sua gloria (Is 6.3). Em Apocalipse, as quatro criaturas viventes clamam igualmente: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, 0 Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que ha de vir (Ap 4.8). 176 REFORMA HOJE Assim também os santos, vencedores sobre a besta e sua imagem: Quem ndo temerd e ndo glorificard o teu nome, 6 Senhor? Pois 6 tu és santo (Ap 15.4). Emil Brunner escreveu: “Do ponto de vista da revelagao, a primeira coisaa ser dita sobre Deus é sua soberania. Mas esse primeiro ponto se alia intimamente aum segundo — tao proximo, na verdade, que poderiamos até perguntar se nao deveria ser o primeiro”.4 E hoje? A santidade de Deus pesa “muito de leve sobre nés”, diz Wells. Por qué? Um problema é que a santidade de Deus ¢ dificil de entender, e os evangé- licos, como outros, com certeza nfio a entendem. Nao é mera questo de moralidade, como se tudo que dizemos ao expressar que Deus é santo é que ele esta sempre certo naquilo que faz. A santidade envolve a transcendéncia de Deus, o que o faz ganz anders, como dizem os tedlogos alemaes. Envolve a majesta- de, a autoridade de poder soberano e a imponéncia ou magnificéncia. Inclui a idéia da soberana vontade majestosa de Deus, uma vontade firmada em sua proclamagao de ser quem ele realmente é: Deus, somente Deus, que no permi- tira que sua gloria seja diminuida por outro. Mas deixar de compreender 0 que a santidade de Deus significa ¢ apenas um problema, um de menor importAncia. Problema bem maior é que a santidade de Deus requer do ser humano a reveréncia ¢ 0 respeito, e hoje as pessoas nao reverenciam nem respeitam quase nada, e Deus muito menos. Vivemos numa época em que tudo é exposto, onde nao hd mistérios nem surpresas, onde esca- pam até os segredos pessoais mais intimos de nossa vida na televisdo para diver- tir as massas. Contribuimos para essa frivolidade quando tratamos Deus como nosso “amigio” celestial que nos faz os gostos nas banalidades de nossa vida diaria. Talvez o maior problema de todos, quanto a nossa negligéncia da santidade de Deus, seja este: a santidade é um padrao contra o qual o pecado humano fica exposto, e essa é a raziio pela qual na Escritura, quando o adorador é exposto a Deus, sempre resultam na pessoa sentimentos de vergonha, culpa, constrangi- mento e terror. Sao emogées dolorosas, e estamos fazendo tudo o que € possivel dentro da nossa cultura para evita-las. Uma prova disso é a forma como ja elimi- namos 0 pecado como categoria levada a sério para descrever atos humanos. Karl Menninger, fundador da mundialmente conhecida Clinica Menninger em Topeka, Kansas, deu a seu livro o titulo: Whatever Became of Sin? [O Que Foi ‘A REFORMA NA Doutrina, NO CuLTo E Na VIDA 177 Mesmo que Aconteceu com o Pecado?].° Ele responde que, banindo Deus de nosso panorama cultural, nds mudamos o pecado em crime (porque agora nao é mais ofensa contra Deus, que é a definigdo do pecado, mas é uma ofensa contra o Estado) e depois mudamos o crime em sintomas. Pecado tornou-se agora algo que é culpa de outra pessoa. E causado por meu meio ambiente, meus pais ou meus genes, Menninger sugere que os psiquiatras talvez tenham complicado o problema “negligenciando a disponibilidade de ajuda para algumas pessoas cujos pecados sdo maiores do que seus sintomas, ¢ cujos fardos sao maiores do que eles po- dem suportar”.’ E.0 que os evangélicos tém feito, também. Nés também temos investido na cultura terapéutica dos tempos atuais de modo que nado chamamos mais nossas muitas transgresses de pecados nem confrontamos 0 pecado dire- tamente, clamando por arrependimento diante de Deus. Em lugar disso, manda- mos nossa gente para profissionais a fim de que trabalhem os motivos pelos quais esto agindo de uma maneira “doentia’”, para que encontrem “cura”. David Wells afirma que “a santidade fundamentalmente define a natureza de Deus”. Mas “quando roubados deste Deus santo, o culto perde o encanto ma- jestoso, a verdade da Palavra dele perde sua forga de exigir, a obediéncia perde sua virtude e a igreja perde sua autoridade moral” ’ Esté na hora de as igrejas evangélicas recuperarem a insisténcia da Biblia no fato de que Deus é santo acima de todas as coisas; e explorarem o que isso precisa significar para nossa vida individual e corporativa. Para comegar, precisamos pregar aqueles grandes textos da Biblia nos quais as pessoas so expostas A majestade e santidade que inspiraram reveréncia. Quando nada, precisamos pregar a Lei, sem a qual pregar o evangelho perde a sua forca e finalmente até 0 seu sentido. 3. A sabedoria de Deus. O que estamos querendo dizer quando falamos que Deus é sdbio ou sabedor de todas as coisas? Queremos dizer que Deus é onisciente, é claro. Deus nao poderia ser onisciente se nao soubesse de tudo. Mas sabedoria é mais do que mero conhecimento, mais até do que sabedoria total ou perfeita. Uma pessoa pode ter muito conhecimento — pode-se dizer “conhecimento mental” — e¢ nfio saber o que fazer com ele. Pode saber muita coisa sobre varios assuntos e ainda ser um tolo. Ha também a questiio da bonda- de. Sem bondade, a sabedoria no é sabedoria. Antes é 0 que chamamos de astucia. A sabedoria consiste em saber o que fazer com 0 conhecimento que se tem e com 0 direcionamento deste conhecimento para os mais altos fins, e os moralmente mais elevados. 178 REPORMA HOJE Charles Hodge diz que a sabedoria de Deus é vista “na escolha de fins apropriados e de meios apropriados para alcangar esses fins”. J.1. Packer diz a mesma coisa mas dé énfase 4 bondade. “A sabedoria é 0 poder para ver e a capacidade para escolher o alvo melhor e 0 mais elevado, juntamente com os meios corretos para atingi-lo. A sabedoria, na realidade, é 0 lado pratico da bondade moral e, como tal, é encontrada em sua plenitude so- mente em Deus. S6 ele é natural, inteira e invariavelmente sdbio. A sabedoria, como diziam os antigos tedlogos, é a sua esséncia, assim como 0 poder, a ver- dade, a bondade sao sua esséncia — elementos integrais que formam o seu carater.”"° Logo que come¢amos a pensar por esses caminhos, vemos de imediato por que nossa sabedoria humana nao se compara com a de Deus, e por que Paulo pode dizer, como quando escreve aos corintios: Onde estd 0 sdbio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, ndo tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, 0 mundo ndo o conheceu por sua propria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que créem pela loucura da pregagdo (1Co 1.20-21). Devemos mais uma vez ficar maravilhados e humilhados diante da sabedoria de Deus. Ha aqui trés areas nas quais isso precisa acontecer. Primeiro, a sabedoria de Deus na justificagdo. A primeira grande divisdo de Romanos (capitulos 1-4) pergunta como é que Deus, que é Deus de perfeita justiga e precisa punir 0 pecado, pode contudo salvar os pecadores. Esta é a pergunta acima de todas as perguntas. A resposta fica além da sabedoria de meros humanos. Mas nio esteve além da sabedoria de Deus. Portanto, na pleni- tude do tempo Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebéssemos a adogdo de filhos. (G1 4.4-5). Ou, usando a linguagem de Paulo aos romanos: Deus propés [Jesus Cristo]...como propiciagdo... para ele mesmo ser justo e justificador... [Rm 3.25]. Deus satisfez as exigéncias de sua justiga punindo Je- sus em nosso lugar. Tudo que ajustica de Deus reivindicou foi atendido plena- mente e, uma vez cumprida a justiga, o amor de Deus estava livre para irem busca, abragar e salvar inteiramente 0 pecador. Quem sendo Deus poderia ter proposto uma solucao a esse problema? Nenhum de nés o poderia ter feito, mas Deus ajustou o meio mais perfeito ao mais desejavel dos fins e‘assim salvou os pecadores. A REFORMA NA DoutRINA, NO CULTO E NA VIDA 179 Segundo, a sabedoria de Deus na santificacdo. A proxima divisio maior em Romanos (capitulos 5-8) discute a natureza permanente da salvagdo, abran- gendo a necessidade que 0 pecador tem da santificagdo. Como a sabedoria de Deus se revelou nessa area? A justificago discutida nos capitulos 1 a4 foi supri- da pela obra de Cristo, o que significa que nfo vem de nés. E pela graga. Mas isso sendo verdade, o que vai impedir que uma pessoa justificada ceda a apetites de sua natureza pecaminosa, visto que a salvagdo da pessoa ja foi assegurada pela obra de Cristo? Parece que nao haveria necessidade de santidade (Rm6.1). Estamos num dilema. Ou a salvagdo deve ser pelas obras, o que destréi a graga; e, além disso, ninguém seria salvo porque ninguém pode apresentar boas obras suficientes. Ou entao, se a salvagdo é pela graga, entdo quem sabe estamos livres para pecar grandemente. Deus resolve esse problema mostrando que nunca somos justificados sem ser regenerados ou tornados vivos em Cristo. Os crentes receberam uma nova natureza, ¢ essa nova natureza, sendo a propria vida de Jesus Cristo dentro de nds, inevitavelmente produzira boas obras que correspondam a natureza de Deus. Na verdade, essa é a unica prova segura de que fomos salvos por ele. Além do mais, visto que isso 6 obra de Deus, e no nossa, nao podemos desfazé-la e assim de alguma forma voltar a ser 0 que fomos antes. Como nado podemos voltar, a tinica diregfio em que podemos nos mover é para a frente. A maneira que Paulo tem de dizer isso é um forte imperativo: Assim... considerai-vos mor- tos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus (Rm 6.11). Quem sen&o Deus poderia imaginar um evangelho como esse? Nos nunca poderiamos, porque nao ¢ natural para nés colocar juntas a graga eas obras. Se damos énfase a boa moral, como algumas pessoas fazem, comegamos a pensar que podemos ser salvos por nossas boas obras e para isso nos esforgamos. Repudiamos a graga. Mas se, por outro lado, colocamos a énfase na graga, sabendo que néio podemos de maneira nenhuma ser salvos por nossas obras inadequadas e poluidas, nossa tendéncia é acabar com as obras inteiramente e assim escorregar para o antinomianismo, doutrina que descarta a exigéncia mo- ral. Mas Deus concebeu um evangelho que ¢ inteira e completamente pela graga e, ainda assim, produz as obras excepcionais daqueles que sao salvos. Terceiro, a sabedoria de Deus na Historia. A terceira divisio de Romanos (capitulos 9-11) trata dos atos de Deus no fluxo dos eventos histéricos. Como 180 REFORMA HOJE Paulo descreve, o problema é que, apesar das grandes promessas de salvagaio feitas por Deus ao povo judeu, a maioria deles nfo estava respondendo ao evan- gelho. Isso nao indica que os propésitos de Deus falharam? E os gentios? Na época de Paulo, os gentios pareciam estar respondendo ao evangelho. Isso sig- nifica que Deus rejeitou os judeus a favor dos gentios? Se fez isso, nao esté errado? E isso nao destréi a doutrina da seguranga eterna? Aresposta de Paulo é uma teodicéia magnifica, na qual ele justifica os cami- nhos de Deus com os homens, mostrando que Deus rejeitou Israel por um tempo a fim de que sua misericérdia pudesse ser estendida aos gentios, mas acrescen- tando que a salvaco do gentio vai provocar o citme de Israel e assim, com 0 tempo, trazer 0 povo judeu a fé em Jesus como Mesias. Esses capitulos explo- ram a sabedoria de Deus na ordenag&o dos eventos no espago/tempo. Quem poderia projetar um plano t4o grande assim para a histéria do mun- do? Nés nao poderiamos. $6 podemos entendé-lo baseados na revelagao bibli- ca, e ainda assim é dificil para nés. Mas nao estd além da profundidade da riqueza... da sabedoria... de Deus (Rm 11.33). Esta sabedoria de Deus é tao superior a nossa sabedoria que dificilmente pode ser comparada com ela. Contudo a Biblia nos incentiva a cultivar a sabe- doria. Efésios 5.17 diz: No vos torneis insensatos, mas procurai compreen- der qual a vontade do Senhor. Tiago, irm&o do Senhor, promete: Se, porém, algum de vés necessita de sabedoria, peca-a a Deus, que a todos dé liberal- mente e nada lhes impropera; e ser-lhe-d concedida (Tiago 1.5). Como a sabedoria pode ser encontrada? A resposta é: (1) comece com reveréncia para com Deus (Pv 9.10 diz: O temor do Senhor é 0 principio da sabedoria); (2) estude para conhecer a Palavra de Deus, a Biblia (Paulo disse a Timéteo que as Escrituras podem tornar-te sdbio para a salvagdo pela fé em Cristo Jesus, 2Tm 3.15). E (3) pegaa Deus a sabedoria (Tg 1.5). Especialmen- te, estude a Biblia! A igreja verdadeira sempre tirou dela sua vida ¢ encontrou nela sua diregdo segura. De fato, longe da Biblia a igreja nao pode ser mais a igreja, embora ela possa continuar a se comportar de maneira eclesidstica e fazer coisas religiosas. Se realmente créssemos que Deus ¢ onisciente, e se nds mesmos quisésse- mos ser sabios, buscariamos a sabedoria de Deus na Biblia— fervorosa e con- sistentemente. Estudariamos para ser sabios. Mas nao cremos de verdade na sabedoria de Deus. Martinho Lutero disse: “Estamos acostumados a admitir li- A Rerorma NA Doutrina, No Cutto £ Na VIDA 181 vremente que Deus € mais poderoso do que nés, mas nao que ele seja mais sabio do que nds. Até dizemos que ele €; mas quando chega a prova final, nao quere- mos agir de acordo com 0 que dizemos”."' Reforma no Culto John R.W. Stott escreveu um livro sobre “alguns fundamentos da religido evan- gélica” no qual afirma “que o verdadeiro culto ¢a atividade mais sublime e mais nobre da qual o homem é capaz”.'? Mas isso ressalta nosso ponto fraco, isto é, que para grandes segmentos da igreja evangélica, talvez a maioria, o verdadeiro culto quase inexiste. A. W. Tozer, um pastor sabio e estudante perspicaz da Biblia, observou 0 problema ha cerca de meio século. Ele escreveu em 1948: “Gragas a nossas espléndidas sociedades biblicas e a outras agéncias eficazes na disseminago da Palavra, ha hoje muitos milhdes de pessoas que tém ‘opinides corretas’, prova- velmente mais do que em qualquer outro tempo da histéria da igreja. Contudo fico pensando se ja existiu uma época em que o verdadeiro culto esteve em maré mais baixa. Para grandes porgdes da igreja, a arte do culto esta inteiramente perdida, e no lugar dela chegou aquela coisa estranha e adventicia chamada de ‘programa’. Essa palavra foi emprestada do teatro e foi aplicada com verniz de sabedoria ao tipo de ato pablico que agora passa por culto entre nés”."? 1. Culto cristdo. Hé sempre livros sobre 0 culto que dizem que é¢ dificil definir culto, mas eu no penso assim. Acho muito facil defini-lo. Os problemas — que s&io muitos — esto em outras reas. Cultuar ou adorar a Deus ¢ atribuir-Ihe valor supremo, porque sé ele é supremamente digno de ser honrado. Portanto, a primeira coisa que se deve dizer sobre 0 culto é que seu objetivo ¢ honrar a Deus. O culto também tem relag&o com 0 adorador. Muda a pessoa, que é a segunda coisa importante a ser dita a respeito. William Temple definiu muito bem o culto: “Prestar culto é alertar aconsciéncia pela santidade de Deus, alimentar a mente com a verdade de Deus, purificar a imaginagio com a beleza de Deus, abrir 0 cora¢do ao amor de Deus, e dedicar a vontade ao propésito de Deus”."4 Nessa definigdo, os atributos de Deus so principalmente: santidade, verda- de, beleza e amor, e também os propésitos de Deus. Mas estes, quando a pes- soa os reconhece devidamente e louva a Deus por isso, tém impacto sobre ela 182 REFORMA HOJE alertando sua consciéncia, alimentando sua mente, purificando sua imaginagiio, abrindo seu coragaio e dedicando (ou ganhando) sua vontade. Assim, ao definir oculto, William Temple também nos deu uma descrigao da verdadeira vida cristé edefiniu a piedade. 2. “Culto” contempordneo. John H. Armstrong é editor de um periddico chamado Reformation and Revival [Reforma e Reavivamento], e dedicou o numero do quarto trimestre de 1993 ao culto. Na introdug4o, Armstrong chama © que passa por culto de Deus hoje de “Mac-Culto”, no sentido de que 0 culto foi tomado comum, barato, trivial. Qual é 0 problema? Por que vemos hoje entre nds tao pouco daquele culto forte e sdlido que caracterizava os tempos passa- dos? Ha varias razdes. Primeiro, a época de hoje é uma época trivial, ea igreja foi profundamente afetada por essa trivialidade difundida. Nossa época nao é de grandes pensa- mentos, nem mesmo de grandes atos, Nossa época nfo tem heréis. Eumaera tecnoldgica ¢ 0 objetivo final de nossa cultura tecnolégica popular é 0 entreteni- mento. Em anos recentes tenho dirigido seminérios em varias partes do pais sobre como desenvolver uma mentalidade crista, e escrevi um pequeno livro sobre o assunto, baseado em Romanos 12.1-2, chamado Mind Renewal in a Mindless Age [Renovagao da Mente numa Era Desmiolada]. Nesses seminérios, e no livro, argumento que a principal (ainda que nao seja a tinica) causa da mentalida- de vazia de hoje é a televisdo, que ndo é um veiculo de ensino ou informagées, como a maioria pensa, mas é antes de tudo um recurso de entretenimento. Por ser tio amplamente difundida —- uma casa americana média tem televisao ligada mais de sete horas por dia — ela esta nos programando para pensar que a finalidade principal do homem é ser entretido. Como é que as pessoas cujas mentes estao cheias da tagarelice desmiolada das novelinhas da noite podem deixar de ter também pensamentos triviais quando vém a casa de Deus aos do- mingos de manh, se é que, de fato, tem quaisquer pensamentos de Deus. Como podem apreciar a santidade dele se sua mente esta cheia do lixo moral das apre- sentagdes da tarde? Tudo que podem procurar numa igreja, se é que procuram qualquer coisa, é algo que lhes faga sentir-se bem por um pouquinho antes de voltarem a cultura da televisao. Segundo, vivemos hoje numa época centrada no ser humano, de pessoas absortas em si, e aigreja, lamentavelmente, até traigoeiramente, se tornou centrada A REFoRMA NA Dourrina, NO CuLTo E NA VIDA 183 em si. Nesse respeito, assistimos, durante nosso tempo de vida, a algo como uma “Revolugao Copernicana” quanto ao que a igreja evangélica entende ser 0 culto. No passado, como no tempo de Tozer, pode nao ter acontecido verdadei- ro culto o tempo todo, nem com muita freqiténcia. Pode ter sido impedido pelo monopélio do “programa”, como Tozer insistia ser no seu tempo. Mas pelo me- nos ficava entendido que o culto devia ser o louvor de Deus e que valia a pena buscar esse alvo. Hoje nem esse alvo buscamos, pelo menos néo muito nem em muitos lugares. O pastor R. Kent Hughes, pastor titular da Igreja da Faculdade em Wheaton, esta certo ao afirmar: “No Cristianismo de hoje, nao se fala, mas cada vez mais se cré comumente que 0 culto é primeiramente para nds — para satisfazer as nossas necessidades. Nesses cultos 0 enfoque é 0 entretenimento, e os adoradores sao espectadores descomprometidos que estAo silenciosamente dando nota ao desempenho. Desse angulo, a pregacao se torna uma homilética de consenso— pregar a necessidades sentidas —a agenda consciente do homem em lugar da agenda de Deus. Tal pregagdio ¢ sempre t6pica e nunca textual. As informagdes biblicas s4o minimizadas, e os sermdes so curtos, cheios de ilustragdes. Qual- quer coisa suspeita de trazer desconforto, mesmo aquela pessoa que pouco apa- rece na igreja, é eliminada, seja um cartAo registrando seu nome ou um ‘mero’ credo. Levado ao extremo, essa filosofia cria um autocentrismo tragico. Isto é, tudo é julgado de acordo com a maneira como afeta o homem. Isso acaba cor- rompendo terrivelmente a teologia da pessoa”.'° Terceiro, esquecemo-nos de Deus. A tragédia nao é que neguemos doutri- nas biblicas basicas, certamente nao a natureza e existéncia de Deus. Os evangé- licos nao sdo heréticos. O problema é que, embora reconhegamos a verdade biblica, parece que nao faz diferenga. Nao tem influéncia sobre nés. Nestes tltimos anos, viajando pelo pais e falando em varias igrejas, notei cada vez menor presenga, e em alguns casos a total auséncia, de elementos da liturgia que sempre foram associados com o culto a Deus. A necessidade de recuperd-los é premente. Oragdo. FE quase inconcebivel para mim que algo chamado de culto possa ser realizado sem nenhuma oragio significativa, mas é precisamente o que esta acontecendo. Em geral ha uma ora¢éio muito curta no inicio do culto e outra quando a oferta é recebida. Mas oragdes mais longas, oragées pastorais, esto sumindo. O que aconteceu com o acréstico de ACTS (ATOS em inglés) no qual 184 REFORMA HOJE oragao ¢ definida por seus componentes: “A” de adoragao, “C” de confissio de pecado, “T” de “thanksgiving”, agdes de gracga, e“S” de stiplica? Uma vez ou outra algumas stplicas sfo anexadas a oragiio da oferta. Mas nao se repetem os atributos de Deus nem se faz confisso de pecados diante de um reconhecimento sério da santidade de Deus. Como podemos dizer que estamos prestando culto quando nem mesmo oramos? A leitura da Palavra. A leitura de uma porgao substancial da Biblia tam- bém esté desaparecendo. Na época puritana na América, os ministros costuma- vam ler um capitulo longo do Antigo Testamento e um capitulo do Novo Testa- mento, Mas nossas leituras da Biblia esto ficando cada vez mais curtas, as vezes 86 dois ou trés versiculos, se é que ha leitura biblica. Ha igrejas onde nfo se 1é nem mesmo um texto para o sermiio. A exposigdo da Palavra. E os sermdes? Temos pouco ensino sério da Biblia hoje. Em lugar disso, os pregadores tentam ser bem-apessoados, contar ilustragdes engragadas, sorrir e, acima de tudo, evitar topicos que possam mago- ar e afugentar as pessoas. Um pregador extremamente popular da televisaio diz que nao quer falar de pecado porque fazer isso faz as pessoas se sentirem mal. Os pregadores devem pregar as necessidades sentidas, ndo obrigatoriamente as necessidades verdadeiras. E isso em geral significa dizer 4s pessoas somente o que querem ouvir. Os pregadores querem que todos gostem deles. Querem en- treter o auditério. Serd que todos os ouvintes gostavam de Jesus? Martinho Lutero, Jofo Calvino, Joao Wesley ou Jonathan Edwards eram artistas que visavam o entretenimento das pessoas? Confissdo de pecado. Quem confessa pecado hoje — em qualquer lugar, para nao falar na igreja, como povo humilde e arrependido de Deus? Isso nao esta acontecendo, porque ha to pouca percepgdo da presenga de Deus. Em vez de ir a igreja para admitir nossas transgressdes e buscar perdéo, vamos a igreja para ouvir que na realidade estamos agindo direitinho e nao precisamos de perdao. Hinos. Uma das caracteristicas mais tristes do culto contemporaneo é que est&io desaparecendo os grandes hinos da igreja. Nao se foram inteiramente, mas esto saindo. E em lugar deles vieram mensagenzinhas musicadas que tém mais em comum com os jingles da propaganda na televisao do que com os salmos. O problema aqui nao ¢ tanto o estilo da musica, embora palavras triviais se ajustem melhor a melodias e harmonias triviais. E antes o contetido dos canticos. Os A REForMA NA Doutrina, No Cutro E NA Vipa 185 velhos hinos expressavam a teologia da igreja de forma profunda e perceptiva, e em linguagem linda e memordvel. As misicas de hoje refletem apenas nossa teo- logia superficial ou inexistente e muito pouco contribuem para elevar nossos pen- samentos a respeito de Deus. Pior de tudo sao as misicas que meramente repetem vez apés vez uma idéia, palavra ou frase gasta. Musica desse tipo nfo é adoragao, nao é culto, embora os participantes possam ter um sentimento religioso ao canté-las. Saio mantras, que cabem melhor num ajuntamento de seguidores da Nova Era do que no meio do povo adorador de Deus. 3. Redescobrimento do culto. O desastre que jd atingiu a igreja do nosso dia com respeito ao culto nao vai ser consertado de um dia para outro. Mas devemos comegar, e uma forma de comegar é estudar 0 que Jesus disse sobre 0 culto. Ele estava viajando com seus disc{pulos e tinha parado no pogo de Sicar enquanto os discipulos entraram na cidade para comprar comida, Uma mulher veio tirar Agua e Jesus entabulou conversa com ela. No andamento desse diélogo ele tocou na vida imoral que ela levava, e ela tentou mudar o assunto fazendo-lhe uma pergunta religiosa: Senhor, ela disse, vejo que és profeta. Nossos pais adoravam neste monte; vos, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar (Jofio 4.19-20). A resposta de Jesus é a classica declaracao biblica sobre 0 que o culto compreende: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste mon- te, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vés adorais 0 que ndo conheceis; nds adoramos o que conhecemos, porque a salvagdo vem dos judeus. Mas vem a hora e ja chegou, em que os verdadeiros adoradores adorardo o Pai em espirito e em verdade (vs.21-24). Ha varias coisas importantes com respeito ao que Jesus disse. Primeiro, existe um sé Deus verdadeiro, ¢ 0 culto verdadeiro precisa ser prestado a este Deus verdadeiro e anenhum outro. Eo motivo de Jesus dizer que os samaritanos n&o conheciam o que adoravam mas que os judeus conheci- am, que “a salvag&o vem dos judeus”. Ele se referia ao fato de que o Deus verdadeiro é 0 Deus que se revelou a Israel no Monte Sinai e que estabeleceu a unica maneira certa de adora-lo, que é 0 assunto de grande parte do Antigo Testamento. Um culto diferente desse nfo é valido, porque é culto de um deus imagindrio. Precisamos pensar sobre isso cuidadosamente, porque vivemos numa épo- 186 REFORMA HOJE ca em que a opinio de todos sobre qualquer coisa, especialmente sua opiniaio sobre Deus, é considerada tao valida quanto qualquer outra. E uma impossibili- dade patente. Se existe um Deus, o que é fundamental a qualquer discussao sobre 0 culto, entéo Deus é 0 que é. Isto é, ele é uma coisa e nao outra. Entéio a questo nao é se qualquer ou se todas as opinides sao validas, e sim, como & esse unico e verdadeiro Deus existente. Quem ¢ ele? Qual ¢ seu nome? Que espécie de Deus é ele? O Cristianismo ensina que esse unico Deus verdadeiro se fez conhecer por meio da criago, no Monte Sinai, pela histéria subseqtiente do povo judeu, ¢ na encarnagao, vida, morte e ressurreicao de seu Filho Jesus Cris- to. Além disso, ele nos deu na Biblia uma revelagao definitiva de como ele ée do que requer de nés. Ea partir desse ponto que temos de comegar. Existe um Deus, e ele se revelou ands. E por isso que no pode haver verdadeira adoragaio de Deus sem 0 ensino fiel da Biblia. Segundo, a tinica forma em que este unico Deus verdadeiro pode ser realmente cultuado é “em espirito e em verdade”. Jesus estava indicando uma mudanga de dispensagaio quando disse isso. Antes desse tempo, 0 culto era centrado no templo em Jerusalém. Todos os judeus tinham de viajar para |4 trés vezes por ano para os festivais. O que acontecia nas sinagogas era mais uma aula de instrugdo biblica do que culto. Mas isso ja foi mudado. Jesus veio. Ele cum- priu tudo que 0 culto do templo simbolizava. Portanto, até o fim da era da nova igreja, 0 culto nao sera por local, nem em Jerusalém ou Samaria, e sim, em espirito e de acordo com a verdade de Deus. Oculto nao deve ser confundido com sentimentos. E verdade que o cultoa Deus vai nos afetar, e uma coisa que freqiientemente sera afetada é as nossas emogées. Por vezes lagrimas encherdo nossos olhos quando percebermos 0 grande amor e graga de Deus para conosco. Contudo, é possivel nossos olhos se en- cherem de ldgrimas ¢ ainda nao haver culto verdadeiro simplesmente porque naio chegamos a uma percepeao genuina de Deus ea um louvor mais abundante dele em sua natureza € seu proceder. A verdadeira adorago s6 ocorre quando aquela parte do homem, seu espi- tito, que é semelhante a natureza divina (porque Deus ¢ espirito), realmente se encontra com Deus e se descobre estar louvando Deus por seu amor, sabedoria, beleza, verdade, santidade, compaixéo, misericérdia, graga, poder e todos os seus outros atributos. William Barclay escreveu: “O verdadeiro, o genuino culto é quando o ho- A REFORMA NA Dourrina, No Cutto £ NA VIDA 187 mem, pelo seu espirito, alcanga amizade e intimidade com Deus. O verdadeiro e genuino culto nao ¢ ira certo lugar; ndo é passar por um certo ritual ou liturgia; nao é nem mesmo levar certas ofertas. O verdadeiro culto é quando 0 espirito, a parte imortal e invisivel da pessoa, fala com e se encontra com Deus, que é imortal e invisivel”."* 4. A liturgia é boa ou ruim? O fato de que devemos adorar a Deus “em espirito” também influencia os varios tipos de liturgia usados em igrejas cristas, porque significa que, com a excegio de elementos que sugerem doutrina errada, nao existe nenhuma liturgia que em si seja inerentemente melhor ou pior do que qualquer outra. Para uma dada congregacao, um culto presumivelmente sera de maior valor do que outro para dirigir a ateng4o dos adoradores a Deus. Masa decisao quanto a qual culto se faré deve ser tomada, nao perguntando se a pre- feréncia é por musica contempordnea ou classica, orages espontaneas ou lidas, responsos da congregagao ou siléncio — resumindo, se a preferéncia é pelo culto anglicano, luterano, presbiteriano, metodista, batista, congregacional ou qualquer —, mas perguntando até que ponto a liturgia é eficaz em desviar da propria liturgia a ateng&o do adorador, e concentra-la em Deus. Nesse ponto uma liturgia deve ser avaliada na mesma base em que deveriamos avaliar 0 pregador. Fui ajudado por C.S. Lewis a pensar nessa questao especifica. Lewis era membro da Igreja Anglicana e estava acostumado com varias formas daquilo que chamariamos de uma liturgia formal. Mas nao defendia a formalidade. Pedia meramente o que chamava de “uniformidade” com base na idéia de que a novi- dade na melhor das hipéteses chama nossa atengio para a novidade e na pior delas a desvia para aquele que est dirigindo a liturgia. E um ponto no qual muitas liturgias contemporaneas falham terrivelmente, na minha opiniao. Esto tentando ser to “criativos” que o ouvinte sai de 14 impressionado apenas com a novidade daquilo que aconteceu. Lewis escreveu: “Enquanto vocé esta reparando, e tem de contar os passos, vocé ainda nao esté dangando, mas sé aprendendo a dangar. Um bom sapato é um sapato que vocé no precisa notar. Boa leitura torna-se possivel quando -vocé néo precisa pensar conscientemente nos olhos, nem na iluminagao, nem nas Jetras impressas, nem na ortografia. O culto perfeito seria aquele em que quase teriamos estado desapercebidos dele; nossa atengao teria estado em Deus”.”” A maravilha do culto cristéo é que, quando chegamos a Deus da maneira 188 REFORMA HOJE que ele estabeleceu, descobrimos ser ele inexaurivel e descobrimos que nosso desejo de conhecé-lo e cultud-lo cresce cada vez mais, Bernard de Clairvaux sabia disso. Ele escreveu em meados do século 12: Jesus, Alegria de coragdes amorosos, Tu Fonte de vida, tu Luz dos humanos, Daalegria maior que o mundo oferece, Nos, vazios, a ti novamente voltamos. Provamos-te, 6 tu, o Pao vivo dos céus, Em tianelamos nos satisfazer Bebemos de ti, a Fonte de origem, Sedentos, nossa alma quer em ti se encher. Quando prestamos culto assim, nds nos vemos proximos aquilo que os com- piladores do Catecismo Menor de Westminster com razdo chamaram de a fina- lidade principal do homem. “Qual € 0 fim principal do homem?” O catecismo responde: “O fim principal do homem é glorificar a Deus ¢ goza-lo para sempre.” Reforma na Vida As pesquisas sobre a conduta crist& contempordnea nos dizem que nao ha dife- renga significativa entre o modo de agir da maioria dos crentes e o dos nio- crentes. Isso nao surpreende, visto que pouca pregaciio dos nossos dias ensina ou incentiva uma diferenga. Mas é dbvio que devemos ser diferentes, pelo menos se levarmos a sério a Biblia. Os crentes devem ser a nova humanidade, uma comunidade daqueles que “amam... a Deus, mesmo a ponto de desprezo pré- prio” em contraste com aqueles que “amam... a si, até a ponto de desprezar a Deus”."* Onde devemos comegar? A extensaio desse assunto se assemelha a da re- forma da igreja na doutrina, com que este capitulo teve inicio. Perguntei quais as doutrinas que precisariam ser recuperadas e respondi: “todas as doutrinas princi- pais de todos os credos”. Aqui pergunto: Quais as 4reas da vida e conduta crista que precisam ser recuperadas? A resposta é: todas as areas da vida tanto para nds como individuos como paraa igreja. Precisamos dos Dez Mandamentos, do Sermao do Monte e do ensino ético das Epistolas. Tudo é preciso. Resumindo, temos que recuperar 0 que significa: Amards ao Senhor teu Deus de todo o teu coragdo, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento e Amards o teu A REFORMA NA Dourrina, No CuLto E Na VIDA 189 préximo como a ti mesmo” visto que “destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas (Mt 22,37-40). Mas, outra vez, precisamos de um enfoque. Mais do que tudo precisamos recuperar 0 reconhecimento daquelas realidades espirituais que sdo invisivcis, isto é, as nao vistas nem medidas como outras coisas meramente materiais, e também a da realidade da comunidade crista. 1. Coisas que sdo invisiveis, Em 2 Corintios Paulo explica por que ele nao fica desanimado nem derrotado, ainda que enfrente grande oposig’o ao evange- lho ld fora ¢ esteja se desgastando, juntamente com outros lfderes da igreja pri- mitiva, pelas obrigagdes constantes e as pressdes do ministério. E porque a nos- sa leve e momentdnea tribulagdo produz para nos eterno peso de gloria, acima de toda comparagdo, néo atentando néds nas coisas que se véem, mas nas que se néio véem; porque as que se véem sdo temporais, e as que se nao véem sdo eternas (2Co 4.17-18). O que vem acontecendo com muitos segmentos da igreja evangélica é que nds esquecemos de nos focalizar naquilo que é eterno. Atengfio demais é con- centrada em fazer crescer o nimero de membros, em aumentar orgamentos que ja.s4o enormes, em levantar edificios cada vez mais complexos, em ganhar mais e mais reconhecimento do mundo; e atengao insuficiente é dada aquilo que real- mente importa, isto é, ao proprio Deus, a verdade, ao renascimento espiritual, 4 santidade dos membros da igreja, e a glorificar Deus em nossa doutrina, culto e vida da igreja. Abraao é 0 exemplo notavel daqueles que vivem pela fé em Deus, com os olhos postos no invisivel em vez de naquilo que se poder ver. Assim, em Hebreus 11 ele é destacado como herdi da fé, um homem que “aguardava a cidade que tem fundamentos”,, isto é, a cidade de Deus, em lugar de uma cidade da terra com alicerces terrenos que hao de passar. As primeiras palavras sobre Abrado em Hebreus 11 dizem: Pela fé, Abrado, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por heranga; e partiu sem saber aonde ia. Pela fé, peregrinou na terra da promessa como em terra alheia, habitan- do em tendas com Isaque e Jac6, herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquite- to e edificador (vs. 8-10). No fim, s6 as pessoas que vive com os olhos naquilo que é invisivel é que realmente fazem diferenga significativano mundo. 190 REFORMA HOJE 2. Comunidade cristd. A segunda grande necessidade dos nossos dias é que a igreja se torne uma comunidade genuina — comunidade, porque é sé como comunidade que podemos dar o modelo de relacionamentos; crist, por- que o que queremos mostrar é as qualidades singulares de vida que ser cristo traz consigo. O grande poeta inglés do século XX, T.S. Eliot, perguntou: Quando o Estranho pergunta: “Qual é 0 sentido desta cidade? E porque vocés se amam que se apertam ai juntos?” O que vao responder? “Habitamos todos juntos Para ganhar dinheiro um do outro” ou “Esta é uma comunidade”? (Coro de A Rocha) Anthony T. Evans é um pastor negro bem-sucedido em Dallas, Texas. Eum excelente expositor da Biblia, e seu alvo é que os grandes centros de populagdo da América experimentem renovagao espiritual. Evans publica um boletim men- sal de noticias chamado A Alternativa Urbana, no qual apareceu um artigo com 0 titulo “Dez Passos para a Renovagéio Urbana”. Mencionou 0 ensino bibli- co sadio, a rejeig&o quanto a depender do governo, o uso de dons espirituais, 0 discipulado de novos convertidos, e outras coisas dessa natureza, Uma exigéncia importante, de acordo com Evans, é tornar-se uma comunidade. Ele escreveu: “A igreja é antes de tudo uma familia espiritual, uma comunidade. E por isso que a Biblia se refere a igreja como ‘familia da fé’, ‘familia de Deus’, e ‘irmaos’. Foi feita para funcionar como familia, para servir de modelo paraa vida em familia, e para cuidar das familias que reune”.”” A igreja pode fazer 0 que nenhuma organiza¢ao pode — nem companhias, nem escolas, nem centros de entretenimento ou vida social, nem agéncias gover- namentais ou municipais. S6 a igreja! Além disso, as igrejas tém uma oportunida- de extraordinaria de retratar a comunidade-modelo numa época em que outras formas de comunidade perderam sua forga e seu sentido. Nao ha lugar melhor do que o da comunhio dos crentes para cuidar dos que sofrem de casamentos desfeitos, lares divididos, e outros relacionamentos destruidos. O mundo esta a procura de comunidade, mesmo quando no sabe disso, e geralmente n&o a procura na igreja. Desde os anos 70, duas mudangas importan- tes vém caracterizando a maneira como 0 americano vé outras pessoas e se relaciona com elas: (1) A atual sociedade mecanizada trata as pessoas como coisas que tém sua fungiio, em vez de pessoas com objetivos e (2) cada um de A REFORMA NA Doutrina, NO CuLTo E Na VIDA 191 nds se preocupa consigo mesmo, em vez de se ver em comunidade com outras pessoas e existindo para ajudé-la. Isso foi notado por observadores seculares. Em The Greening of America [O Reverdecimento da América] Charles Reich escreveu: “A América é uma vasta e assustadora anticomunidade.... A vida moderna apagou lugar, local e vizinhanga, dando-nos a alienagdo andnima da nossa existéncia, A familia, 0 sis- tema social mais basico, foi impiedosamente esvaziada, ficando apenas seus fun- damentos funcionais. A amizade foi revestida de uma camada de artificialidade impenetravel enquanto cada pessoa se esforga para viver o papel que lhe foi designado. A etiqueta, a competitividade, a hostilidade e o medo substituiram o calor do circulo de afetividade humana que poderia dar sustentagaio ao homem contra 0 universo hostil”.” O Cristianismo tem algo a oferecer a esta altura. Deus disse: Nao é bom que ohomem esteja sé (Gn 2.18). Jesus disse: Edificarei a minha igreja (Mt 16.18). Em Atos 2 ouvimos dizer dos primeiros crentes: Perseveravam na doutrina dos apéstolos e na comunhdo, no partir do pdo e nas oragBes (At 2.42). Precisamos recuperar isso. Michael Scott Horton acertou quando escreveu: “Nossas igrejas séio uns dos ultimos bastides de comunidade, contudo, nao es- capam do individualismo.... Muitos de nds vamos de automével para a igreja, ouvimos 0 sermao, dizemos ‘Oi’ para nosso circulo de amizades, e voltamos para casa sem nunca ter realmente experimentado comunidade. O evangelicalismo primitivo era t&o enfocado na espiritualidade corporativa que 0 vinho da comu- nhao era tomado de um sé copo.... Ouvimos infindaveis sermées sobre os dons espirituais e como o corpo de Cristo deve funcionar concordemente. Contudo, nossos cultos muitas vezes so constituidos de profissionais (especialmente o coral) que nos entretém e de crentes separados uns dos outros que sao entteti- dos”?! A énfase biblica sobre comunidade tem varias implicagdes importantes. Pri- meiro, as pessoas s4o mais importantes do que os programas. Os programas deveriam servir 4s pessoas em vez de se dar 0 contrario. Segundo, precisamos pensar nao em nds mesmos o tempo todo, mas em outras pessoas. Os evangé- licos devem parar de perguntar “O que vou ganhar com isso?” e comegar a perguntar “Como posso ajudar a outra pessoa?” Um modo de pensar que deifi- cao eu destruira o eu. Concentrar-se nas outras pessoas sera a melhor maneira de encontrar a felicidade. 192 REFORMA HOJE O que constitui uma comunidade? Uma comunidade s6 se mantém, sé tem uniao, por meio de uma lealdade superior ou prioritaria, e a tnica base adequada para a verdadeira comunidade entre as pessoas é a devogao a Deus. Os crentes tém um compromisso que vai além de mero individualismo, ou pelo menos deve- tia ir e, se tém esse compromisso, poderao dar o modelo de comunidade no ambiente da igreja. E mais, se podem fazé-lo ali, poderaio comegar a fazer 0 mesmo em outros ambientes. S6 a Deus Seja a Gloria Este capitulo comegou com Deus, e ¢ apropriado que também termine com Deus, porque seu tema é mesmo a recuperacao do sentimento da realidade, presenga, vontade e gléria de Deus. Antes escrevi sobre como 0 Apéstolo Paulo trata da justificagao, santificacao e visdo biblica da histéria, em Romanos 1-11. E signifi- cativo que essa grande divisao doutrindria da carta termine com uma doxologia. As ultimas palavras sao: Porque dele, e por meio dele, e para ele sdo todas as coisas. Aele, pois, a gloria eternamente! (Rm 11.36) Além do mais, depois da divisao final da carta, a epistola inteira termina de maneira semelhante: Ao Deus tinico e sdbio seja dada gloria, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém (Rm 16.27). Meu argumento é que 0 motivo pelo qual a igreja evangélica atual esta tao fraca e o porqué de ndo experimentarmos renovagdo, embora falemos sobre nossa necessidade de renovacao, é que a gléria de Deus foi em grande parte esquecida pela igreja. Nao é muito provavel vermos avivamento de novo en- quanto nao recuperarmos as verdades que exaltam e glorificam a Deus na salva- ¢40. Como podemos esperar que Deus se mova entre nds, enquanto nao puder- mos dizer de novo com verdade: “S6 a Deus sejaa gloria”? O mundo nao pode dizer isso. Ao contrario, esta preocupado com sua pré- pria gloria. Como Nabucodonosor, ele diz: “Veja essa grande Babilénia que construi pelo meu poder e para minha gléria”. Os arminianos nao podem dizé-lo. Podem dizer “a Deus seja a gloria”, mas nao podem dizer “sd a Deus sejaa gloria”, porque a teologia arminiana tira um pouco da gloria de Deus na salvacéio ea da para o individuo que tem a palavra final em dizer se vai ou nao vai ser A ReFORMA NA DoutriNa, NO CuLTO £ Na VIDA 193 salvo. Mesmo aquelas pessoas do campo reformado nao podem dizé-lo se 0 principal que est&o tentando fazer nos seus ministérios é edificar seus proprios reinos e tornar-se importantes no cenario religioso. Nunca vamos experimentar a renovacdo na doutrina, no culto ena vida enquanto nao pudermos dizer honesta- mente: “sé a Deus sejaa gloria”. Para aqueles que nao conhecem Deus essa serd talvez a mais tola de todas as afirmagGes. Mas para aqueles que conhecem Deus, aqueles que estiio sendo salvos, nao é sé uma declaracao certa; é uma confissao feliz, verdadeira, inevité- vel, necessaria e altamente desejavel. Notas Capitulo 1; David F. Wells 1, Robert H. Bork, “The Hard Truth about America” em The Christian Activist 7 (Outubro de 1995), 1 2. William J. Bennett, The Index of Leading Cultural Indicators (Washington: The Heritage Foundation, 1993), 3. 3. Idem, 10, 4, Idem, 18. 5. Idem, 23. 6, James Patterson ¢ Peter Kim, The Day America Told the Truth: What People Really Believe about Everything that Matters (Nova York: Prentice Hail, 1991), 27. 7. Idem. 8, Idem, 48, 57. 9, Fste & 0 tema central apresentado por Arthur A. Schlesinger em The Disuniting of America: Reflections on a Multicultural Society (Nova York: Norton, 1993). 10, Essa rejeigto dupla da moratidade absoluta ¢ da verdade absoluta nao deixa de ser significativa quando se lembra que a Biblia também liga esses dois assuntos. A verdade é 0 oposto tanto daquilo que & intelectualmente falso como daquilo que & moralmente polufdo, Colocar juntos a crenga ¢ 0 comportamento, 0 que € verdadeiro e 0 que ¢ cor- reto, na compreensao biblica da verdade, talvez tenha sua verbalizagao mais sucinta nas palavras de Jodo: “Se dissermos que mantemos comunhao com ele [Deus] ¢ andarmos nas trevas, mentimos e nfo praticamos a verdade” (IJoa0 1.6). Ver também Yoa0 1.4,5,95 3.19-21; 7.18; 8.12; 12.35,36,40; Bf 4.25; Modo 2.8-11, 27. 11, Camille Paglia, Sex, Art and American Culture (Nova York: Vintage, 1994), vii 12, Idem, 102 13. Camille Paglia, Vamps and Tramps: New Essays (Nova York: Vintage, 1994), 20. 14, Idem, 66. 15, Nese encontro houve adoragao de uma deusa [Sofia], € num ritual que envolveu os elemen- tos leite e mel, a seguinte oragdo foi oferecida: “Nossa criadora Sofia, nds somos mulheres feitas & sua imagem. Com o sangue quente de nosso utero damos forma a vida nova.... Nossa doce Sofia, so- mos mulheres na sua imagem: com néctar entre nossas coxas convidamos um amante, damos nas- cimento a uma crianga; com os fluidos quentes de ‘nosso corpo lembramos © mundo de seus prazeres ¢ sensagOes.... Com 0 mel da sabedoria em nossa boca, profetizamos uma humanidade plena para todos os povos”, 16, Carl E, Braaten ¢ Robert Jenson, (org.), Bither/Or: The Gospel or Neopaganism (Grand Rapids: Eerdmans, 1995); ver também Peter Jones, Spirit Wars: The Revivat of Paganism on the Threshold of the 3rd Millennium (Nashville: ‘Thomas Nelson, 1995). 17. John Silber, “Obedience to the Unenfor- 196 ceable”, conferénoia nao publicada, Universidade de Boston, 1995, 2. A breve discussto que Silber faz dos tres dominios & mais itil, para meus objetivos aqui, do que a divisto triplice tIpica de associagdes particulares, piblicas ¢ voluntérias. 18. Essa distingdo aparece em todo 0 trabalho de Robert N. Bellah, Richard Madsen, William M. Sullivan, Ann Swidler, ¢ Steven M. Tipton, Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life (Nova York: Harper and Row, 1985). 19, Bellah, The Good Society, 44. 20, Zbigniew Brzezinski, Out of Control:Global Turmoil on the Eve of the Twenty-First Century (Nova York: Charles Seribner’s Sons, 1993), 65. 21. Bellah, The Good Society, 44. 22. David Riesman, “On Autonomy” em The Self in Social Interaction, org. pot Chad Gordon ¢ Kenneth Gerge (Nova York: Wiley, 1968), 446. ‘Tenho também tentado esbogar 0 modo como 0 individuatismo se desenvotveu ¢ 0 motivo pelo qual ele & agora to problematico no meu No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology? (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 149-86. 23. Normalmente, a descoberta de realidades morais infelizes atrés de uma imagem pode dimi- hnuir a esperanga de éxito para a pessoa plblica, Mas nem sempre. Em nossa cultura hé uns pogos de perversidade que produzem resultados opostos. Em 1993, por exemplo, o cantor de “rap” Snoop Dogey Dogg foi acusado de assassinato. Sua estréia como “rapper” naquele ano foi num Album chamado Doggystyle. Apesar da acusagao do crime ~~ ou, mais corretamente, por causa dela — o bum fez sucesso indo parar no primeiro lugar de vendas na semana do langamento, 24. Dick Keyes, True Heroism: In a World of Celebrity Counterfeits (Colorado Springs: Navpress, 1995), 14-16; ver também Joshua Gamsun, Claims to Fame: Celebrity in Contemporary America (Berkeley: University of California Press, 194), 25, Daniel J. Boorstin, The Image: or What Happened to the American Dream (Nova York: Atheneum, 1962), 61 26. John Leo, “Decadence, the Corporate Way", U.S. News and World Report, 24 de agosto- 4 setembro, 1995, 81 27, Andrew Delbanco, The Death of Satan: REFORMA HOJE How Americans Have Lost the Sense of Evil (Nova York: Farrar, Straus and Gilroux, 1995), 153 28. Idem, 188. 29. Idem, 221. John Diggins reconheceu as conseqbéncias disso em nossa vida polltica oca, € ‘vem buscando reaver, dos primeiros pais da nagdo € de pensadores subseqientes, os valores € crengas que, sc reafirmados hoje, podem trazer de volta alguma autoridade na ordem politica, Veja seu The Lost Soul of American Politics: Virtue, Self-Interest, and the Foundations of Liberalism (Nova York: Basic, 1984). Outros caminharam numa diregao diferente, mais religiosa. Robert Wuthnow sugeriu que a religiao civil no momento tem duas formas, uma articulando 0s objetivos da Esquerda politica ¢ a outra os da Direita, “Do lado dos conservadores, a legitimidade americana parece depender bastante de um ‘mito de origem’ que relaciona a fundagio da América aos propésitos divinos.” E 0 que dé a América um lugar especial no mundo, e uma cesta aprovagao divina a suas iniciativas de politica ex- terna. A visio liberal da América nfo baseia seu interesse na fundagiio dela sob a égide de Deus. Ar- gumenta que a nagao tem um papel a desempenhar no mundo, n&o por ser algum povo escolhido, mas por causa da responsabilidade ética advinda de sua posigdo de ser uma poténcia rica no mundo de hoje. “Em lugar de chamar atenc&o especifica A diferen- ga da tradig&o judeu-crist8, ha maior probabilidade de a religido civil liberal incluir argumentos sobre direitos humanos basicos ¢ problemas comuns da humanidade” (Robert Wuthnow, The Restructuring of American Religion: Society and Faith Since World War 1 {Princeton, Princeton University Press, 1988], 244, 250). Ambas as formas de reli- sito civil, no entanto, fracassam por nfo sustenta- rem de forma adequada e convincente 0 espago degradado entre a lei ¢ a liberdade. Veja também Robert Wathnow, The Struggle for America’s Sou! Evangelicals, Liberals, and Secularism (Grand Rapids: Eerdmans, 1989), 97-114. 30. Gregory C. Sisk, “The Moral Incompetence of the Judiciary”, em First Things 57 (Novembro de 1995): 34. 31, Roderick MacLeish, “Js Litigation Beco- ming an American Pastime?” The Boston Globe (March 8, 1996), 23, 27. 32. Richard Bemstein, Dictatorship of Virtue Multiculturalism and the Battle for Amercia's Future (Nova York: Knopf, 1994) 33. Ver Dinesh D'Souza, illiberal Education: Notas. The Politics of Race and Sex on Campus (Nova York: The Free Press, 1991). 34, Charles J. Sykes, 4 Nation of Victmis: The Decay of the American Character (Nova York: St. Martin’s, 1992), 11 Capitulo 3: R. Albert Mohler Jr. 1. Brian Hebblethwaite, The Ocean of Truth Defense of Objective Theism (Cambridge Univer Press, 1988), 17. 2. Scott Cowdell, Atheist Priest? Don Cupitt and Christianity (Londres: SCM, 1988). 3. Don Cupitt, Taking Leave of God (Nova York: Crossroad, 1981), 4. Eric Hobsbawm, The Age of Extremes: A History of the World, 1914-1991 (Nova York: Pantheon, 1995). 5. Ver R. Albert Mohler Jr, “The Integrity of the Evangelical Tradition and the Challenge of the Postmodern Paradigm”, em The Challenge of Postmodernism: An Evangelical Engagement, org David S. Dockery (Wheaton, Ill. Bridgepoint, 1995), 67-88. 6, Matei Calineseu, Five Faces of Modernity (Durham, N.C.: Duke University Press, 1987), 64 7. Ver Dean R. Hoge, Benton Johnson, ¢ Donald ‘A. Luidens, Vanishing Boundaries: The Religion of Mainline Protestant Baby Boomers (Louisville: Westminster/John Knox, 1994) 8. Para uma interessante discussto sobre a pos- sibilidade da heresia, ver Thomas O. Oden ¢ Lewis S. Mudge, “Can We Talk about Heresy?” The Christian Century, 12 de abril, 1995, 390-403. 9. 2 Tessalonicenses 2.10. 10. Blaise Pascal, citado em Dietrich von Hildebrand, The Charitable Anathema (Harrison, N.Y: Roman Catholic Books, 1993), 1 II. David F. Wells, No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1993). Ver também David F. Wells, God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams (Grand Rapids, Eerdmans, 1994) 12. Ver Marsha Witten, All Is Forgiven: The Secular Message in American Protestantism (Prin- 197 ceton: Princeton University Press, 1993) ¢ Phillip E, Hammond, Religion and Personal Autonomy: The Third Disestablishment in America (Columbia: Editora da Universidade de Carolina do Sul, 1992). 13. James Davison Hunter, American Evangelicalism: Conservative Religion and the Quandary of Modernity (New Brunswick: Rutgers University Press, 1983) ¢ Evangelicalism: The Coming Generation (Chicago: University of Chi- cago Press, 1987) 14. Ver J, Richard Middleton ¢ Brian Walsh, Truth is Stranger Than It Used to Be: Biblical Faith in a Postmodern Age (Downers Grove, Til. InterVarsity, 1995) € Philip D. Kenneson, “There's No Such Thing as Objective Truth and It’s a Good. Thing, Too,” in Christian Apologetics in the Postmodern World, org. por Timothy R. Phillips and Dennis L. Okholm (Downers Grove, II] InterVarsity, 1995), 155-70. Para uma considera- g@o desses assuntos, ver R. Albert Mohler Jr., “Whither Evangelicalism? Gathering Clouds of the Present Crisis", em The Coming Evangelical Crisis, ed. John Armstrong (Chicago: Moody, 1995). 15, Stanley J. Grenz, A Primer on Postmo- dernism (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), 10. 16. Stanley J. Grenz, Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century (Downers Grove, Hll.: InterVarsity, 1993), 88. 17. O termo “Teologia de New Yale” tem sido aplicado comumente para descrever um movimen- to em grande parte associado com a faculdade teo- légica de Yale. Ver Mark 1, Wallace, The Second Naiveté: Barth, Ricoeur, and the New Yale Theology, Studies in American Biblical Herme- neutics 6, 2* edigto (Macon, Ga, Mercer University Press, 1995). 18. William H. Willimon, “Jesus’ Peculiar Truth”, Christianity Today, 4 de margo, 1996, 21-22. 19. Idem, 21 20. Idem, 22. 21. Idem. 22. Grenz, Revisioning, 36-57, 23. J. Gresham Machen, “The Creeds and Doctrinal Advance”, em God Transcendent (Edim- burgo: Banner of Truth Trust), 158, 24, J. Richard Middleton e Brian J. Walsh, Truth is Stranger Than It Used to Be: Biblical Faith in a 198 Postmodern Age (Downers Grove, IIL: InterVarsity, 1995). 25. Idem, 178, 26. Phillip D. Kenneson, “There’s No Such Thing as Objective Truth, and It’s a Good Thing, Too”, em Christian Apologetics in the Postmodern World, org. por Timothy R. Phillips ¢ Dennis L. Okholm (Downers Grove, Ill: InterVarsity, 1995), 155-70. 27. Idem. 28. John Charles Ryle, Charges and Addresses (Edimburgo: Banner of Truth Trust, 1978 [origi- nalmente publicado em 1903}), 49-50. 29. Um exemplo de um sistema mediano entre 0s evangélicos contemporiineos ¢ aquele oferecido or Stanley Grenz, que tira idéias de George Lindbeck ¢ outros que identificam a verdade com um “siste- ma lingaistico cultural”, conforme sugetido pelo antropélogo Clifford Geertz. Acaba sendo outra forma de relativismo cultural, Ver Stanley J. Grenz, Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agen- da for the 21st Century (Downers Grove, Ill InterVarsity, 1993), 30. Ver Robert Brow, “The Evangelical Mega- shift”, Cristianity Today, 19 de fevereiro, 1990, 12-14. As respostas de D.A. Carson, Clark H. Pinnock, Robert E. Weber ¢ Donald G. Bloesch encontram-se nas paginas 14-17 31. Ryle, Charges and Addresses, 58 32, Martinho Lutero, TableTalk, org. e trad. para o inglés por Theodore C. Tappert, Luther's Works, vol. 54 (Filadélfia: Fortress, 1967), 192, selegao no, 32296 33, Gordon H. Clark, Religion, Reason, and Revelation, 2a ed, (Jefferson, Md,: The Trinity Foundation, 1986), 252-53 34. RB. Kuiper, The Bible Tells Us So (Edim- burgo: Banner of Truth Trust, 1968), [0 titulo é um verso do hino tradicional: “Sei que Jesus me quer bem, pois a Biblia assim 0 diz"].* 35, Wilfred Cantwell Smith, Religious Diversity (Nova York: Harper and Row, 1976), 13. 36. De “The Chicago Statement on Biblical Inerrancy”, conforme impresso em Carl FH. Henry, God, Revelation and Authority, vol. 4 (Waco: Word, * N. do REFORMA HOJE 1979), 212. 37, Carl Sagan: Cosmos (Nova York: Random House, 1980), 4. 38. Romanos 1:18-20, 39. Romanos 1:21-24. 40. Apocalipse 19:11-21 41. Joao Calvino, “The Necessity of Reforming the Church”, em Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, vol. 1, org. ¢ trad. para o ingles por Henry Beveridge (Grand Rapids: Baker, 1983, [1844}, 233). Capitulo 4: Gene Edward Veith 1. Martinho Lutero, “The Large Catechism”, 4.57, emt The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical Lutheran Church, trad. para o in- lés por Theodore G Tappert (Filadélfia: Fortress, 1959), 444. 2, Ver ELL Matrou, A History of Education in Antiquity (Nova York: Sheed and Ward, 1956), 334 39. Agradego a meu ex-aluno, Andrew Kem, por sua pesquisa da histéria da tradigdo nas artes libe- sais. 3. Ver Douglas Wilson, Recovering the Lost Tools of Learning (Wheaton, Ill.: Crossway, 1991), Para um bom relato da base conceitual ¢ desen- volvimentista do trivium, ver Dorothy L. Sayers, The Lost Tools of Learning (Moscow, Idaho: Canon, 1990). 4. Neil Postman, Teaching as a Conserving Activity (Nova York: Delacorte, 1979). 5. Ver, por exemplo, os esoritos do ex-liberal ‘Thomas Oden, tais como Two Worlds: Notes on the Death of Modernity in America and Russia (Downers Grove, Ill.: InterVarsity, 1992) Capitulo 5; Michael S. Horton 1. H. Richard Niebuhr, The Kingdom of God in America (Nova York: Harper and Row, 1937), 2. 2, Walter Lippmann, 4 Preface to Morals (Nova York: Macmillan, 1929), 3 Notas 3. George Barna, Marketing the Church (Ven- tura, Cali€:Regal, 1992), 41, 145. 4. Newsweek, 17 de setembro, 1984, 26. 5. William Willimon, “Been There, Preached That”, Leadership (Outono 1995): 75-78 6. George Lindbeck, em Postmodern Theology, org, Frederic Burnham (Harper and Row,1989), 45, 7. Niebuhr, Kingdom of God, 193. Niebuhr actescenta: “Para um [puritano, Jonathan] Edwards, a soberania tinha sido uma verdade dura a qual ele lentamente aprendeu a ajustar seu pensamento € sua vida; para o liberalismo, era uma inverdade, Este estabeleceu a continuidade entre Deus € 0 ho- mem ajustando Deus 20 homem”. Consequente- mente, “Cristo o Reden(or tornou-se Jesus 0 pro- fessor ou 0 génio espiritual em quem as capacidades religiosas da humanidade estavam plenamente de- senvolvidas” (p. 192). 8, Engene F. Rice, The Foundations of Early Modern Europe (Nova York: Norton, 1970), 136. 9. Em, “Letter to Sadoleto” de Calvino, em ‘Tracts and Treatises 1, 1. 10. George Barna, What Americans Believe (Ventura: Regal, 1991), 83-84. 11, Theodore Beza, The Christian Faith, trad para o inglés por James Clark (East Sussex, Ingla- terra: Focus Christian Ministries Trust, 1992), 40- 41. Publicado primeiramente em Genebra, em 1558, com o titulo de Confession de foi du chretien. 12, Calvino, 2.7.5 das Institutas de 1536, trad para o inglés por F.L, Battles (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), 30-31; ef. Instituias de 1559 2.11.10. 13, Calvino, Institutas, 1559 3.14.13. 14. Idem. 15. Edigdo Battles de 1536, 365. Apresentado por Nicolas Cop quando empossado na reitoria da Universidade de Paris; ha consenso de grande parte dos estudiosos de Calvino de que ele tenha sido o autor. 16, Idem, 36. 17. Idem, 369, 18. Ursinus, Commentary on the Heidelberg Catechism (Phillipsburg, N.J.: Presbyterian and Reformed, da 2a edigao americana, 1852). 2. 199 19. Idem, 2. 20. Chasles Spurgeon, New Park Street Pulpit, vol. | (Pasadena , Tex.: Pilgrim Publications, 1975), 285, 21. Machen, Christianity and Liberalism (Nova York: Macmillan, 1923), 143. 22, Machen, Christian Faith in the Modern World (Nova York: Macmillan, 1936), 57. 23. Machen, What is Faith? (Nova York, Macmillan, 1925), 137, 139, 152, 24, Machen, Education, Christianity and the State (Jefferson, Md.: TheTrinity Foundation, 1987), 21 25. Barna, What Americans Believe, 51. 26. Idem, 89. t 27. Idem, 80. 28. Newsweek, 17 de setembro, 1984, 26-28. 29. Charles Finney, Revivals of Religion (Old Tappan: Revell, 1968), 2-5. Entre os muitos exem- plos contempordneos que poderiam tet sido cita- dos, ests texto da propaganda recente para 0 Dia Nacional de Oragdo (2 de maio, 1996): “Jé ¢ tem- po de aproveitar nosso mais possante recurso natu- ral”, Em nenhum ponto da propaganda Deus € vis- to como 0 doador sobrenatural de todas as béngdos em Cristo; a0 contrario, a oragao é uma técnica humana que consegue fins naturais por intermédio de meios naturais: “Agora, mais do que nunca, nos- sa nagdo precisa se unir. A orago nos une... E essential que usemos este recurso vital e tomemos tempo para ‘Honrar a Deus’. © retorno vale o investimento, A oragio: Sempre a tivemos. Jé é hora de usé-la”. 30. Clark Pinnock, org., The Grace of God and the Will of Man (Grand Rapids: Zondervan, 1989), 27. Além disso, Pinnock poe em ditvida as doutrinas do pecado original ¢ da expiagdo substitutiva por razdes semelhantes as de Finney (paginas 22-23), acrescentando: “Tenho a forte impress%io — e outros, mesmo a contragosto, tém- me confirmado isso — de que o pensamento de Agostinho esta perdendo sua forga sobre os cris- ‘ios atuais” (p. 26). 31. Charles Finney, Systematic Theology (Minneapolis: Bethany, 1976). Sobre 0 pecado ori- ginal, Finney ocupa muito espago atacando “o dogma antibiblico e sem sentido de uma constitui- 200 go natural pecaminosa” (p. 179). Com respeito a expiagao substitutiva, ele esoreve: “Se ele [Cristo] obedecen a lei como nosso substituto, entdo por que se deve insistir na nossa volta 4 obediéncia pessoal como uma condigdo sine qua non de nossa salvagao?... © exemplo é a influéncia moral mais alta que pode ser exercida” (pp. 106, 109). Ele nega fortemente “que a expiagao tenha sido um pagamento literal de uma divida” (p. 217). Sobre o novo nascimento, insiste: “A pecaminosidade ori- ginal ou constitucional, a regeneragao fisica, ¢ to- dos os dogmas relacionados ¢ resultantes, so igual- mente subversivos ao evangelho, repulsivos in- teligéncia humana; ¢ devem ser colocados de lado como remanescentes de uma filosofia completa- mente absurda a confusa"(p. 236), 32. Finney, Systematic Theology. Sua opinitio da justificagao também est clara: “Mas os pecado- res serem judicialmente pronunciados justos possivel ¢ absurdo.... Como veremos, ha muitas ‘condigdes a preencher para a justificagao dos peca- dores, enquanto ha somente uma base.... Como ja foi dito, no pode havet justificaggo em base legal ou forense, € sim na base da universal, perfeita e ininterrupta obediéncia a lei.... A doutrina de uma justiga imputada, ou que a obedigncia de Cristo & lei foi contabilizada como sendo a nossa obediéncia, & fundamentada sobre uma afirmativa completamente falsa © sem sentido”, essa afirmativa sendo a da expiagdo substitutiva (pp. 320-21). 33. Russell Spittler, em Christian Spirituality: Five Views of Sanctification, Org. Donald L. Alexander (Downers Grove, Ill., InterVarsity, 1988), 43. 34, Clark Pinnock, Four Views of Hell (Grand Rapids: Zondervan, 1992), 122-31 35, Stanley Grenz, em Revistoning Evangelical Theology (IVP, 1993), argumenta a favor de uma definigdo de evangélico em termos de experién- cias, casos ¢ piedade compartithada e nao em ter- mos de dovtrina. Kenneth Kantzer endossa isso como um volume que “da nova definigao ao evan- gelicalismo como enfocando, no seus comprom sos doutrindrios, mas um tipo de experiéncia es ritual ou piedade. Fazendo isso, ele diz muitas c sas que deveriam ser ouvidas ¢ atendidas por todos 0s crentes”. Criticando o “Confessionalismo da Re- forma”, Grenz apela ao lado pietista da heranca evangélica, mas pode-se coneluir pela prioridade quase exclusiva que atribui as categorias narrativa e existencial que isso ¢ eufemismo para dizer relati- vismo teoldgico. Outros exemplos da literatura do “novo modelo” incluem os colaboradores (Richard REFORMA HOJE, Rice, John Sanders, William Hasket, David Basinger) em The Openness of God (IVP, 1994), Robert Brow, autor do artigo de Christianity Today sobre a “megamudanga” (19 de fevereiro, 1990) € co-au- tor com Pinnock de Unbounded Love (IVP, 1994), ‘A pergunta quanto 4 possibilidade de estarem usan- do tanto 0 pietismo como o arminianismo como termos para legitimar dentro do evangelicalismo algo que é realmente mais radical do que qualquer um desses dois movimentos também fica bem evi- dente no enfoque da leitura de The Grace of God and the Will of Man: A Case for Arminianism (Zondervan, 1989), editado por Pinnock com cola- boradores tais como o respeitado estudioso do Novo Testamento 1. Howard Marshall, Terry Miethe Grant Osborne. Um simpésio sobre a “me- gamudanga”, com Clark Pinnock, Robert Webber ¢ Richard Rice defendendo 0 “novo modelo” contra representantes do chamado “velho modelo”, csta isponivel em Christians United for Reformation (CURE), Anaheim, Californi 36. Ray S, Anderson, The Gospel According 10 Judas (Colorado Springs: Helmer and Howard, 1991), 99. 37. Newsweek, 9 de agosto, 1993. Capitulo 6: Sinclair B. Ferguson 1, Roland Bainton, Here 1 Stand (Abingdon: Nashville, 1978 [1950}), 67. 2. The Confession of Faith (1647), cap. XViii 3. WL, Holladay, The Root Sub in the Old Testament With Particular Reference to Its Usages in Convenantal Contexts (Leiden: E.J. Brill, 1958), 1, 116-55, 4. Citado em Bainton, Here J Stand, 48, 5. Ver na Instinas 0 titulo do capitulo 1,iti,) 6, Joo Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, 14-28, trad. para o inglés por J.W. Fraser, org. por D.W. ¢ T.E. Torrance (Edimburgo, 1966), 176. 7. Instituas, Wiii.3 8. Joao Calvino, The Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews; The Epistle of Peter, trad, para 0 inglés por W.B. Johnstone, org. por D.W. TE. Torrance (Edimburgo, 1960), 167 9, Jotio Calvino, The Epistles of Paul the Apostle Notas to the Romans and to the Thessalonians, trad. para © inglés por Ross Mackenzie, org, por D.W. ¢ T.E. Torrance (Edimburgo, 1960), 167. 10. Canons and Decrees of the Council of Trent, On the Sacraments in General, Canon 1X. 11, The Confession of Faith, XV.i.it. (Trad. para o portugués em: A Constituigdo da Igreja Presbiteriana Unida dos E.U.A, Parte 1: Livro de Confissdes, publicadoe distribuldo pela Missdo Brasil Central, 1969). 12, Idem, Li 13. Thomas McCrie, The Story of the Scottish Church (Londres, 1875), 248. 14, The Confession of Faith, XV. 15, Preparada em 1651, essa confissiio encon- tra-se em Words to Winners of Souls, de Horatius Bonar (Boston, 1850; Phillipsburg, N.J.: Presby- terian and Reformed and the den Dulk Foundation, reimpresso em 1995), 25-34. Capitulo 7: W. Robert Godfrey 1. Agostinho, Confissdes, Livros 7-9. 2, “Smaleald Articles”, Artigo 2, citado de 7.6. ‘Tappert, ed., The Book of Confessions (Filadélfia: Fortress, 1959), 293, 3. Martinho Lutero, Lusher 's Works, Vol. 54 (Filadélfia: Fortress, 1967), 340. 4, Joao Calvino: “Reply to Sadoleto”, em 4 Reformation Debate, Ed. John C. Olin (Nova York: Harper, 1966), 63. 5. Idem, 87, 6. Jo’o Calvino, “The Necessity of Reforming the Church”, em Selected Works of John Calvin, ed. Henry Beveridge e Jules Bonnet, vol. 1 (Grand Rapids: Baker, 1983), 125. 7. Ver, por exemplo, Nathan Hatch, The Democratization of American Christianity (New Haven: Yale University Press, 1989). 8. William T. Ellis, “Billy” Sunday, 1913, 264. 9. D.G. Hart, “Post-Modern Evangelical Worship", Calvin Theological Journal 30 ( 1995) 454 10. Robert Webber, Signs of Wonder: The 201 Phenomenon of Convergence in Modern Liturgical and Charismatic Churches (Nashville: Abbott- Martyn, 1992). 11, Charles G. Finney, Revivals of Religion (Old ‘Tappan, N.J. Revell, n.d), 2 12. Idem, 4. 13, Citado em Keith Hardman, Charles Grandison Finney, 1792-1875 (Syracuse, N.Y. Syracuse University Press), 199. 14. Ver, por exemplo, Larry B. Stammer, “Church Attendance Falls to 11-Year Low”, Los Angeles Times, 2 de margo, 1996, paginas B4s Esse artigo, baseado na pesquisa do Barna Research Group Ltd., mostra que nos iltimos cinco anos a freqliéncia nos trabalhas da igreja na América de- caiu de 49 por cento a 37 por cento. 15. Ver as pesquisas discutidas em Jes Davison Hunter, Evangelicalism: The Coming Generation (Chicago: University of Chieago Press, 1987); ¢ David Wells, God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams (Grand Rapids: Eerdmans, 1994), 16. Jo&o Calvino, “The True Method of Giving, Peace to Christendom and Reforming the Church”, em Selecied Works of John Calvin, vol. 3, 260. 17. Calvino, “Reply to Sadoleto”, $8 18, Hunter, Evangelicalism, 183 19. Calvino, 20. Calvino, “True Method”, 274. “Reply ta Sadoleto”, 53, 21, Ver, por exemplo, Clark Pinnock et al., The Openness of God (Downers Grove, IN.: InterVarsity, 1994) e Clark Pinnock ¢ Robert Brow, Unbourded Love (Downers Grove, IN: InterVarsity, 1994). 22. Ver, por exemplo, Virginia Mollenkott, Sensuous Spirituality (Nova York: Crossroad, 1992) ¢ Hessel Bouma Ill et al., Christian Faith, Health, and Medical Practice (Grand Rapids: Eerdmans, 1989). 23, B.B. Warfield, Perfectionism, vol. 2 (Nova York: Oxford University Press, 1931), 193 citado por Hardman, Finney, 394 24. Calvino, “True Method”, 295. 202 Capitulo 8: James M. Boice 1. David F. Wells, God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams (Grand Rapids: Eerdmans e Leicester, Inglaterra: Inter Varsity, 1994), 30. 2, Idem, 115. 3. Arthur W. Pink, The Sovereignty of God (Grand Rapids: Baker, 1969), 263 4, Emil Brunner, The Christian Doctrine of God, trad. para o inglés por Olive Wyon, Vol 1 iladélfia: Westminster, 1950), 157, 5. Wells, God in the Wasteland, 136 6. Karl Menninger, Whatever Became of Sin? (Nova York: Bantam, 1978). 7. Idem, folha de rosto. 8. Wells, God in the Wasteland, 133, 9. Charles Hodge, Systematic Theology, vol. 1 (Londres; James Clarke, 1960), 401 10. J. 1. Packer, O Conhecimento de Deus, Rd, Mundo Cristao, p. 78. II, Martinho Lutero, What Luther Says: dn Anthology, comp, Ewald M, Plass, vol. 3 (Saint Louis: Concordia, 1959), 1453. , 12, John R.W. Stott, Christ the Controversialist: 4 Study in Some Essentials of Evangelical Religion (Londres: Tyndale, 1970), 160. 13. A.W. Tozer, The Pursuit of God (Harris- burg, Pa.: Christian Publications, 1948), 9. 14, William ‘Temple, The Hope of a New World, 30. Citado pot Donald P. Hustad, Jubilate! Church ‘Music in the Evangelical Tradition (Carol Stream, IIL: Hope, 1981), 78. 15. R. Kent Hughes, Disciplines of a Godly Man (Wheaton, Ill Crossway, 1991), 106. 16. William Barclay, The Gospel of John, vol. 1 (Filadélfia: Westminster, 1958), 154 17. CS. Lewis, Letters (o Malcolm: Chiefly on Prayer (Nova York: Harcourt, Brace, and World, 1963), 4. 18. Agostinho, The City of God, em A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, ed. Philip Schaff, vol. 2 (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), 282-83, REFORMA HOJE 19, Anthony 7, Evans, ““10 Steps to Urban Renewal”, The Urban Alternative 4, vol. 2 (setem- bro, 1988). 20, Charles Reich, The Greening of America: The Coming of a New Consciousness and the Rebirth of a Future (Nova York, Bantam, 1971), 7. 21, Michael Scott Horton, Made in America: The Shaping of Modern American Evangelicalism (Grand Rapids: Baker, 1991), 169, Indice Agostinho, conversfo de, 156 “ajuste cognitivo”, 60 amor na familia, 52 Anderson, Ray, 12] Armstrong, John H., 182 arrependimento em resposta ao apelo, 135-136 graga do, 142-145 na Confisstlo de Westminster, 147-150 natureza do, 130-133 necessidade de, 133-142, 167-169 vocabutério biblico pata, 130-131 Association of Classical and Christian Schools [Associagtio de Educandirios Clissicos Cristtos}, 85, 87 Barclay, William, 186-187 Barna, George, 98 “Batatha pela Biblia”, 75-77 “Batatha pelo Evangelho”, 76-77 Bellah, Robert, 29, 31-32 Bénga&o de Toronto, 118 Bemard de Clairvanx, 188 Bernstein, Richard, 37 Beza, Theodore, 106 Boice, James Montgomery, 140 Boorstin, Daniel, 32 Bork, Robert, 23 Broaten, Carl, 27 Brunner, Emil, 176 Brzezinski, Zbigniew, 30-31 Calinescu, Matei, 59 Calvin Klein, 32 Calvino, Joao, 74, 100, 106-108, 110, 132-133, 135, 157, 165, 168 Catecismo Menor de Westminster, 188 catequese, 88-89 celebridades, 32, 33 Ver também herdis confissio, 125-126, 147-151, 184 Christianity Today, 65 comunidade crist&, 190-192 Conselho Mundial de tgrejas, 27 Consetho Nacional de lgrejas, 98 Controvérsia da Salvagdo do Senhor, 135 Cottes. Yer civil, tei credos, 63 Cristo. Ver solus Christus culto a densa, 195n15 culto avaliagdo cuidadosa do, 164-167 centrado em Deus, 165, 185-186, 192 como evento para espectadores, 138-141 contemporaneo, 182-185 cristfo, 181-182 elementos carismaticos no, 161 “em espirito © em verdade”, 186-187 falta de reflexao evangélica no, 160-162 horério do, 159, 167 mndangas recentes no, 158-160 misica no, 159, 166 papel do ministro no, 159, 166-167 reforma do, 155-169, 181-188 teologia do, 163-164 verdadciro, 185-187 cultura caos da, 41-47 corrupg0 contemporanea da, 23-39, 41-42 estatistica a respeito, 24-26 Cupitt, Don, 57-58 desconstrugto, 58 Declarag#o de Chicago sobre Inerrancia Biblica, 69 204 Declaragdo de Cambridge, O texto de, 11-17 Delbanco, Andrew, 33-34 Deus conforme revelado na Escritura, 71-72 morte de, 45-46 sabedoria de, 177-181 na Histéria, 179-181 na justificagdo, 178 na santificagtio, 179 santidade de, 175-177 soberania de, 52, 173-75 Dia Nacional de Oragtio, 199129 Diggins, John, 196n29 direitos constitucionais, 27-29 doutrina, reforma da, 172-181 Editora InterVarsity, 65 educagao artes liberais, 83 oléssica 85-87 trivium, 85-87 esforgos da igreja em, 50-51 medieval, 84 pés-modernista 81-82 Reforma, 84 reforma da, 84-88 Renascimento, 84 Eseritura exposig#io da, 184 inerrdncia da, 65, 68 leitura da, 184 como revelaglo especial 67-68, 69-71 submissto a, 67-68 Ver também sola Scriptura eterno, enfoque no, 189 evangelho, pregagiio do, 89-92, 105-111 Ver também Lei, pregagto da, evangélicos “novo modelo”, 121-122 pés-modernos, 61-66 evangelismo, 113, 160 Evans, Anthony T., 190 Everett, Edward, 44 existencialismo, 79 Falwell, Jerry, 26 8. Ver sola fide Finney, Charles, 116-117, 120-121, 163, 168, 199n31, 200032 Franklin, Benjamin, 43-44 Frei, Hans, 62 Geertz, Clifford, 62 graga, Ver sola gratia REFORMA HOJE Grenz, Stanley, 61-62, 63, 19829, 200135 guerra espiritual, 51-53 Hart, D.G., 162 Hebblethwaite, Brian, 57-58 Heidegger, Martin, 46 herbis, 32-33 Ver também celebridades hinos, 184-185 Hobsbawm, Bric, 58 Hodge, Charles, 178 Holladay, W. L., 130 Holmer, Paul, 62 Horton, Michael Scott, 191 Hughes, R. Kent, 183 Hunter, James Davison, 60, 168 igreja © compromisso, 66-69 © confustio, 66-69 e esforgos para educagtio 50-51 e politica 47-49 prioridades histéricas da, 49-50, 52-53 tarefas contemporineas da, 41-54 igreja confessional 125-126 Huminismo, 0, 34-35, 58, 102 individualismo, 29-35, 104-105 James, William, 113 Jefferson, Thomas, 43 Jenson, Robert, 27 justificagto, Yer sola gratia Kelsey, David, 62 Kenneson, Philip D., 64-65 Kim, Peter, 24-25 Kuiper, R.B., 68 lei, civil, 27-29, 35-39 Lei, pregagto da, 90-92, 105-111 Ver também evangetho, pregagio do 89-92 Leo, John, 33 Lewis, C.S., 49, 105, 187 liberalismo, 98-100, 113 liberdade € competigo com a lei, 27-29 © 0 evangelho, 52 Ver também individualismo Lincoln, Abraham 44 Lindbeck, Gearge, 62, 99-100 Lippmann, Walter, 34, 46-47, 97 liturgia, 187-188 Lloyd-Jones, Martyn, 140 Lutero, Martinho, 49, 67, 77, 104, 106, 114, 119-120, 124, 129-130, 132, 142, 156-157, 180-181 fxpice “Mac-Culto”, 182 Machen, J. Gresham, 63, 109, 110-111, 113 Maioria Moral, 26 Marx, Karl, 58 Menninger, Karl, 176-177 Mind Renewal ina Mindless Age {Renovacto da Mente numa Era Desmiolada], 182 Middleton, J, Richard, 64 modernismo, 58, 76-77, 78 Moody, Dwight L., 161 Moulton, John Fletcher, 29 Movimento de Direitos Civis, 36-37 multiculturalismo, 36-37 neopaganismo, 26-27 Niebuhr, H. Richard, 97, 100 Niebuhr, Reinhold, 34 Nietzsche, 45, 65 niilismo, 45, 65 Nova Teologia de Yale, 62, 197n17 oragtio, 183-184 Packer, J.l,, 163, 178 Paglia, Camille, 26 Pascal, Blaise, 59 Patterson, James, 24-25 Paulo, em seu papel de modelo, 53-54 pecado convicgio do, 91-92 doutrina enfraquecida do, 116 Pelagianismo, 115 Phillips, J.B., 169 Pink, Arthur W., 174 Pinnock, Clark, 121, 199n30 Planned Parenthood v. Casey (“Paternidade Planejada v. Casey”), 35 pos-fundamentalismo, 62 pés-modernismo, 58, 77, 78 Postman, Neil, 90 progagto, 89-92 reconciliagtio, 123-124 recuperagio, 145-147 Reforma, a, 100-101 Yer também os solas. reforma, na vida, 188-192 Reich, Charles, 191 relativismo moral, 25-26 pré-moderno, 82-84 religido civil, 19629 reavivamentos, 116-117 Fer também Finney, Charles sevelagtio continua, 136-137 Revolugio Copernicana, 124 205 Rice, Gene, 100 Riesman, David, 30, 31 Roe v. Wade, 24, 35 Romantismo, 102 Rorty, Richard, 113 Ryle, 1.C., 66,67 seambes. Ver Escritura, exposigto da Silber, John, 29 sindrome de Nabucodonosor, 174-175 Sisk, Gregory, 35 Smith, Wilfied Camwell, 68 soli Deo gloria, 73, 123-127 sola fide, 73, 118-123 sola gratia, 73, 115-118 sola Scriptura, 73, 101-111 solus Christus, 73, 111-15 Spittler, Russell, 121 Spurgeon, Charles, 108 Stott, John R.W., 181 sucesso, medida de, no ministério, 141-142 Sykes, Charles, 37 telecvangelicalismo, 136, 138 ‘Temple, William, 181-182 Tozer, A.W., 181, 183 tribunais, ver lei civil ‘Druth is Stranger Than It Used To Be (A Verdade E Mais Estranha do que Era Antes], 64 universalismo, 76 Ursino, 108 Veith, Gene Edward, 45-46 verdade assalto contra a modernidade, 69-74 assalto da modernidade contra a, 58-61 contenda pela, 57-74 objetividade da, 67 proposicional, 61-62 relativizagao da, 66-67 da Esoritura, 77 vitimizago, ética da, 37 vooagao, 92-93 Walsh, Brian J., 64 Warfield, B.B., 168 Webber, Robert, 162 Wells, David, 60, 173, 176, 177 Wesley, Jotio, 102 Willimon, William H., 62-63, 99 Wills, Gary, 44 Wilson, Douglas, 85 Wittgenstein, Ludwig, 62 Wathnow, Robert, 196n29 “HOVE NUS #) IMPS, SU) WWHTD 038i) BUPA AOU, DP SB PADRE We Sl) WAU SINN B BoBS 4} Joplin Payee Waly Bu TZN VS LAUR, IRM! VAP assil YapUl BN Si) UDUPI, SOP aID 8 slr YL”, EDITORES James Montgomery Boice Pastor da histérica 10° Igreja Presbiteriana de Filadélfia. Benjamin Sasse Diretor-executivo da Alianca de Evangélicos Confessionais e da organizagio Cristéos Unidos Para a Reforma. Paine Tes nly SDH & €DITORA CULTURA CRISTA ambuci~ Sc ow Oi) 70508 Fox ine ae mai: cop@cep og bite: woep og. Teologia/Igreja/Vida Crista

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