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3. A inducdo torna-se problema [SS RE RE RR Problematica da inducao A obra de David Hume marca uma reviravolta na filosofia das ciéneias, por seu carter de filosofia do conhecimento, Isso ocorre ao menos por trés razées. Em primeiro lugar, € essa obra que, segundo a célebre leclaragao de Kant, vai despertar o conhecimento de seu sono dogmatico. cla também que vai servir de emblema ¢ modelo aos empiristas légicos do Cireulo de Viena, como veremos mais adiante, no momento em que cles buscavam garantias filoséficas a seu projeto de uma “concepgio cientifica do mundo”. Por fim, é igualmente ela que, segundo Karl Popper, presenta de modo mais eficaz a aporia que convém, de acordo com ele, superar, caso desejemos fundar uma filosofia das cigncias valida: ¢ isso Popper vai nomear como “a solugdo do problema de Hume”. A obra de Hume sera também invocada pelo filésofo Willard von Orman Quine € por Nelson Goodman no século XX. Ela se mostra, entao, uma eneruzilhada especulativa privilegiada. Mas qual parte da obra de Hume é abjero de uma atengio tio Ja? Ha um aspecto dessa obra que a torna particularmente sugestiva ‘08 filsofos? De fato, existe uma problemética particular exposta em algumas pag autor, Portanto, inte s da obra de Hume e que determina a volta constante a esse ssa situiar com preciso a problematica inaugurada por Hume, sem omitir 0 contexto hist6rico de suas primeiras formulagbes. foi Essa problemética é conhecida como “problematica da indugao”’ Fl primeiramente apresentada no Tratado da natureza humana (1740), que Hume publica aos 23 anos de idade, e€ retomada em Investigagao acerca do entendimento humano, publicado em 1748. A obra de Hume esté longe de poder ser considerada a primeira a tratar da indugdo. Na verdade, se tivéssemos de estabelecer uma gencalogia da nogao de indugdo, Francis Bacon teria mais chances de aparecer como 6 primeiro te6rico dessa nogio. O que é a indugio? Alan Chalmers emprega esse termo, por exemplo, em set livro O que é ciéncia, afinal? para qualificar © procedimento cientifico no seu conjunto, f indutiva uma explicagdo na qual reservamos um lugar central ao procedimento de generalizagio: se A foi 1 vezes visto seguido de B, entdo A é sempre seguido de B; se A € sempre seguido de B, entao A é causa de B. No limite, o nsimero m pode set reduzido a um - como em iniimeros exemplos aplicados aos raciocinios politicos. A inducao € o fato de induzir © que Hans Reichenbach (apud Popper 1974, p. 28), por exemplo, vai escrever no século XX: vai ser, considerando aquilo que [..) esse principio [a indugao| determina a verdade das teorias cientifica. Flimind-lo da Ciéncia significaria nada menos que privé-la do poder de decidir quanto a verdade ou falsidade de suas teorias. Sem ele, a Ciéncia perderia indiscutivelmente o direito de separar suas teorias das criagbes fantasiosas e arbitririas do espitito do poeta. [A indugao se opée tanto a dedugio quanto a intuigao. A dedugio, pois deduzir significa conduzir um raciocinio apenas com a ferramenta da logica. E, por exemplo, a operacio que realiza aquele que deduz, pela presenga de um individuo em um determinado lugar, que ele nao estava cometido em Marsac, vamos em outro, Dessa forma, se um assassinato f parar de desconfiar do homem de quem suspeitavamios se ele demonstrar que estava em Toulouse no momento do crime, Racioeinio implicito: se ele esta em Toulouse, nio pode estar em Marsac, Trata-se af de uma dedugdo. A indugio, por sua ver, procede (a principio) considerando 0 que € observado mais de uma vez. A indugio se opdc também a intuigao, pois aquele que raciocina por indugdo faz um céleulo (eventualmente probabilistico) que consiste em colocar em série observagies jé realizadas para formar um prognéstico sobre observagées futuras. Aquele que raciocina por intuig30, a0 contrério, avanca um prognéstico que ele proprio, frequentemente, é incapaz de justificar. A indugao calcula, a intuigao adivinha. Origens da noo de indugio Bacon /1999, p. 81) foi quem insistiu sobre o papel dessa nogio enquanto regulador iltimo do espirito cientifico, © qual deve renunciar .adivinhar para se sujeitar a calcular. Kis 0 que ele escreve, em seu estilo imagetico caracteristico, no Nova Organum: Assim, no é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo € scto, mas chumbo e peso para que Ihe sejam coibidos o salto © 0 v6 ‘ < 0. Eo que no foi feito até agora; quando vier a sé-lo, algo de melhor sera licito esperar-se das ciéncias. E ele especifica, na sequéncia, sobre © que se funda essa esperanga: uma nova concepgao da indugio que vai permitir “estabelecer os axiomas” «ia cigncia, ou seja, descobrir as leis da natureza. Mas, pera que essa indugio ou demonstragdo possa ser oferecida como tuma ciéncia boa ¢ legitima, deve-se cuidar de um sem-niimero de coisas que nunca ocorreram a qualquer mortal. Vai mesmo ser exigido mais esforgo. que 0 a:€ agora despendido com o silogismo. E 0 auxitio dessa indugaio deve ser invocado, 1 1as para o descobrimento de axiomas, mas as nogoes. E é nessa indugio que esto depositadas as maiores esperangas. (Ibid.) > aps tambén: para det Assim, aquilo que chamamos hoje de ciéncias da natureza, ou, as ‘ias “indutivas” depois de Bacon. Ciéncias indutivas porque presumimos que é a indugao io de sua vvezes, cigncias experimentais, vai ser nomeado como ci que forma o come de seu método. Qualquer que seja o dom investigacao, elas sempre procedem pela utilizagao do mesmo método, 0 gual, portanto, estaria fundado sobre uma “passagem a regra” assegurada pelo principio da indugdo. Para Bacon, a indugio (inductio) é 0 proprio nome do “novo método”, que deve suplantar 0 método dos antigos. Ainda ais precisamente, esse método da ciéncia do porvir é a inductio vera et legitima, a indugao verdadeira legitima, Sao essas ciéncias “indutivas” que, em razio de suas consequéncias miltiplas sobre a vida dos homens, vao ser o objeto de andlises que vao se desenvolver, sobretudo a partir do século XIX, sob a égide da “Filosofia das ciéncias”. Assim, o primeiro texto em inglés que tem em seu titulo a expressio philosophy of science, escrito por William Whewell e publicado em 1840, vai ter como titulo completo a expressio: filosofia das ciéncias indutivas (ver mais adiante). A nogao de indugao perdeu muito de sew atrativo depois que alguns trabalhos de fildsofos das sulo XX chamaram a atengio para outros aspectos do pensamento cientifico. Mas isso niio nos deve éncias do sé fazer esquecer que, ao menos de Bacon até Popper, ela foi considerada como a nogio central da filosofia das ciéncias, ¢ que Hume, insistindo sobre a precariedade dos fundamentos dessa nocio, fez sur de debates dos quais somos herdeiros ¢ que ainda estrutura as discusses um campo. de numerosos epistemélogos. Dessa forma, em seu livro intitulado A filosofia das ciéncias no século XX, Anouk Barberousse, Max Kistler € Pascal Ludwig consagram um capitulo a esse problema. Eles escrevem gue a indugao € um problema légico voltado “a questio de saber se — e, se assim for, como — semelhantes inferéncias [indutivas] podem scr racionalmente justificadas ou se apenas sio fundadas numa crenga irracional” (Barberousse, Kistler ¢ Ludwig 2001, p, 31). Trata-se aqui de uma das formas de colocagio daquilo que a tradigio filosfica reteve sob ‘onome de “problema de Hume”. Apenas uma dentre muitas, pois, como nda veremos, esse problema pode ser compreendido de virias maneira dle modo que uma questo a primeira vista muito simples se tornou um «los enigmas mais célebres e mais resistentes da filosofia das c clas. Os textos contemporineos dedicados 4 questo da indugao tem hormalmente uma tonalidade l6gica. Reside nesse fato uma espécie de paradoxo, como sublinhou lan Hacking. De um lado, esses textos € seus uutores desejam atingir as questes mais gerais, desenvolvendo exemplos «jue supostamente podem ilustrar as situagGes mais variadas. De outro, cles parecem convencidos de que nao tém nada a aprender com a forma com que éconeretamente conduzida a investigagao cientifica. A razio pela ual o problema merece ser formulado parece tao evidente que sequer é Bertrand Russell (1912, s.p.) est cexplicitamente destacam essas coordenadas: hecessiria evocd-l entre aqueles que Mas se quisermos fazer inferéncias destes dados ~ se quisermos conhecer «a existéncia da matéria, de outras pessoas, do passado anterior a0 comego de nossa meméria individial, ou do futuro, devemos conhecer principios gerais de algum género por meio dos quais possamos fazer tais inferéncias. Devemos saber que a existéncia de uma espécie de coisa, A, é um sinal da cexistincia de uma outra espécie de coisa, B, seja ao mesmo tempo que Ay seja em algum tempo anterior ou posterior, como, por exemplo, 0 trovio é uum sinal da existéncia anterior do relampago. Se acaso nao conhecéssem isso, nunca poderiamos ampliar nosso conhecimento para além da esfera de nossa experiéncia privada; cesta esfera, como temos visto, sumamente nitada, A questo que temos de considerar agora é se esta ampliag: possivel, e em caso afirmativo, como se realiza. Essa autonomizagio do problema da indugio vai conduzir a uma izagio dos debates, que vo assumir um carter téenico. Enteetanto, ainda hoje © problema nao pode ser considerado “resolvido” (¢ ha problemas “resolvidos” em filosofia?). Nelson Goodman vai escrever, um livro publicado mais de dois séculos depois das formulagées de Hume, Hato, fiecdo e previsao, a propésito da indugao: “em suma, eu creio que a resta confusa” (ver adiante . Retomemos, portanto, as coisas de Hume e a indugéo 1es um problema filos6fico Como fazer da mais natural das nos fundamental? Como transformar as indicagdes que nos fornece o bom senso mais comum em enigma metafisico? A essas questoes David Hume encontrou a mais porente das respostas: duvidando daquilo que é mais evidente. Longe de buscar, como Descartes, encontrar na diivida a garantia de que ele existe, de que ele pensa, de que ele é, a diivida em Hume conduz a outea coisa. Mas, como em Descartes € como talvez. em qualquer metafisico, a diivida é a arma-mestra do pensamento; pois, Hume se apresenta como alguém que se opie a toda metafisica, ele proprio 6 de fato, metafisico. Eu nao duvido sequer um instante de que as batidas de um martelo que eu tenho em maos sejam a causa de 0 prego, a olhos vistos, entrat progressivamente na madeira com a qual eu desejo construir um armario. uma coisa que parece, portanto, evidentes ¢ eu passaria até mesmo por Jouco, se me viesse & mente duvidar disso. Entretanto, é justamente disso} que Hume nos pede para duvidar um instante. © martelo vem, com a forga de seu deslocamento, bater contra a cabega do prego. E um fato. O prego, como se soubesse o que deveria fazer diante desse sinal, afunda se entio na madeira. E ainda um fato. Mas 0 que prova que um seja a causa do outro? O habito de vermos os pregos obedecerem aos martelos, enada mais. A rigor, diz Hume, nao existe nenhuma conexao obrigatoria., Apenas o habito nos faz ver uma necessidade onde s6 existe a sucessa regular, cuja observagio se tomou um habito. © raciocinio de Hume é conduzido & bola de bilhar, sem davida mais familiar a boa sociedade de Edimburgo. Mas ele diz. a mesma coisaz Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar destiza em linha retay na diregio de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me! seja acidentalmente sugeriddo como o resultado de seu contato ou impulsdy rio posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente bas as bolas permanecer em absoluto, resultar desta causa? Nao pode! repo.so? Nao pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear ta segunda em qualquer linha ou direyio? Todas estas suposigdes sio compativeis e concebiveis. Por que, entio, deveriamos dar preferéncia a ‘uma que nao é mais compativel ou concebivel que o resto? Todos os nossos {nios a priori nunca serao capazes de nos mostrar fundamento para esta preferéncia, " Em uma palavra: todo efeito € um evento distinto de sua causa, Portanto, nito poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitréio coneiete ou imagins-lo a priori. E. mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjungao do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitréria, visto que ha sempre outros efeitos que para a rario devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vao, portanto, pretenderiamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma 2 ou efeito sem a ajuda da observacao ¢ da experiéncia. (Hume 1994, pp. 51-52) nein Notemos, nessa passagem, 0 uso que faz Hume da expressio a priori, que vai ter um papel eentral no pensamento de Kant, Se essas slo as passagens principais que vio valer a Hume o lugar que ele ‘ocupa na ‘losofia das ciéneias, nao sio elas, porém, que vio guiar seus vontempordneos; pois, se é verdade que Hume obteve em vida uma volebridade que ultrapassava em muito as fronteiras da Escécia € se ‘estendia especialmente 4 Frang: el i Jia especialmente & Franga, onde ele esteve por diversas vezes,' 0, no entanto, fo ocorreu gragas aos seus trabalhos sobre a indugio, ‘ints, sobretudo, aos seus trabalhos de historiador. Afinal, ele foi também tor de uma Histoire de la Grande Bretagne, obra monumental hoje (ulda no esquecimento. Hume nao duvida, ele proprio, que a parte consistente e significativa de sua obra reside em suas especulagies ‘netafisieas, que so ignoradas, quando nao tornadas derris6rias, por seus :neos. Dessa forma, ele vai tentar fazer uma apresentagio mais J. Hle encontrou na Franga, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau, com quem se Felacionow por meio de uma amizade tempestuosa: “frieva, mau humor, suspeitas © outros comportamentos @ fa Rousseau, até chegar A dogura e aos yoros de icenteiiiaente seman” eurmemen funded tame’ concisa e apurada que a inicial. Esse é 0 objetivo da segunda obra, na qual ele aborda as mesmas questdes, lnvestigacao acerca do entendimento humano, recuperando ideias j4 expostas no primeiro liveo Tratado da natureza humana. Foi em vao. Em cada uma das obras em que Hume apresentou o “problema da indugio”, ele fornece exemplos enigmaticos tendo em vista sua propria simplicidade, Certamente, esses exemplos contribuem para 0 equivoco que cerca suas especulagées. Dessa forma, ele se pergunta como sabemos ‘que amanhi o Sol nascera. E responde: por indugio. Ontem o Sol se ps, depois ele nasccu, ¢ eu presumo que vai ocorrer o mesmo amanha. Nao tenho outros motivos para pensar que Sol vai nascer amanha sendo 0 fato de que tem existido um certo niimero de precedentes. Ora, é evidente que temos ao menos uma outra razao para pensar assim. A bola de bilhar preta, que tem inscrito sobre sua superficie 0 iimero “oito” e que rola sobre o feltro verde da mesa de snooker, vai fazer de novo aparecer, assim que cla realizar uma revolugao completa, 0 mesmo namero inscrito sobre sua superficie? Evidentemente que sim. E ew ‘no efetuo uma indugao para pensar isso, mas simplesmente calculo que, se nada vier a perturbar a bola em seu movimento, entao 0 mimero “oito”, tuma vez efetuada a rotagio completa, vai reaparecer tao seguramente: quanto um anao escondido em uma caixa, toda vez que eu reabri-la. Na se trata aqui de indugdo, mas de légica: se B esté em A, entio B esta em |A.A Terra é similar a uma bola de bilhar iluminada por uma limpada, jlares ao niimero “oito”, és, que estamos em sua superficie, somos si seja iluminado pela Kimpada, seja no escuro. Nao é apenas por indugio que sabemos que o Sol vai nascer amanha, mas também por dedugio. Portanto, & no minimo, um exemplo mal escolhido, pois nesse caso a inducao é impura: podemos, ao contrario, concluir que o Sol vai nascet amanha sobre um dado ponto do planeta Terra sem jamais ter visto 0 Sol ai nascer. Do mesmo modo que eu posso concluir que a luz do sol ilumina uma determinada parte do planeta Marte neste exato momento em que escrevo estas linhas, sem nunca ter estado ld Ora, todos os exemplos de Hume tém essa mesma forma. Sabemos que o fogo provoca fumaga, segundo ele, por indugao. Mas nao é 0 tinico incio de saber disso. Ou talvez fosse 0 dinico meio na época de Hume. Hoje sabemos, por exemplo, suficientemente sobre a natureza da matéria jpara compreender © que liga 0 fogo & fumaga. Poderiamos dizer que tudo aquilo cue sabemos sobre o fogo, sabemos por causa de uma série Ue indugies sucessivas. Mas isso é se fechar em um circulo, pois é tomar por dado quea cigneia s6 admie resumos de conhecimentos obtidos por indlagio = ora, esse € © ponto que buscévamos estabelecer. Hume apresenta na sequéncia o exemplo da corda de violéo que, \ensionada, produz, certo som: outro exemplo, segundo ele, de uma {io euja necessidade $6 podemos “sentir” por meio do habito. Mas )podemos também, se tivermos um conhecimento suficiente da natureza das, coisas, compreender que sio as moléculas da atmosfera que sio agitadas pela corda que vibramos, ¢ que aquilo que chamamos som ¢ essa agitacao, (h0 medida em que ela é pereebida por nossos ouvidos. Se eu nao conhego \ natureza das coisas, cu posso acteditar, com efeito, que a conexio entre 0 vibragao da corda e © som tem apenas como fandamento o habito; ft s, uma vex que a conhego, concebo que existe outra razdo para essa vonexiio e que, consequentemente, o habito nao € 0 tinico motivo possivel hy minha idea de causa. Eu posso até inversamente presumir que, a cada vex que considero que meu conhecimento das coisas se deve apenas a0 hhibito, tenho um sinal de que ainda nfo adquiri um conhecimento de sua natureza, Outro exemplo: o calor acompanha constantemente a chama, diz Hume, mas nao temos qualquer meio de saber por que é assim. E ealmente verdade? Se dispusermos, como vai ser 0 caso de Boltzman (que eicontraremos mais adiante), de uma teoria do calor, compreenderemos que a chama corresponde & agitagao das particulas que compdem um ssim como 0 calor, Portanto, o que nos diz Hume sobre a conexao jiecessdria ndo é valido em qualquer época, mas somente enquanto nao. ispomos de uma forma de ver que permita compreender por que um fendmeno esté ligado a outro, Bis, portanto, uma primeira objegdo que podemos dirigit a Hume: é preciso dizer que as conexdes causais esto fundadas sobre 0 habito somente enquanto nfo sabemos as elucidar de outro modo. Mas podemos opor a essa objecio uma contraobjegao, que cenyia 0 problema de Hume ao primeiro plano, dando-lhe um novo sentido, diferente e mais profundo. Retomada do problema por Bertrand Russell Bertrand Russell, em seu livro Os problemas da filosofia, levanta a objecio que acabamos de formular. Ele também retoma o famoso exemplo de Hume sobre a conviegio que temos de que o Sol vai nascer amanha, mas ele nao se contenta em responder retoricamente que sabemos que Sol vai nascer unicamente pelo habito de observagdes repetidas ¢ nunca contrariadas. Russell no se contenta, como fazem muitos autores, em repetir a resposta que o proprio Hume dé. Ele examina uma objecio que Hume nao faz a si mesmo. Ele diz: suponhamos que aquele a quem perguntamos “como sabemos que 0 Sol vai nascer amanha?” nos responda desenvolvendo 0 argumento que apresentamos acima sobre © néimero ito na bola de bilhar: “a Terra, podemos dizer, é um corpo que gira livremente, ¢ este corpo nao deixa de girar a menos que alguma coisa interfira externamente, e nao existe nada externamente que possa colidir com a Terra de hoje até amanha” (Russell 1912, s.p.). Mas aqui, Russell vai se esquivar rapidamente da critica de Hume. Ele (ibid.) escreve que: “Evidentemente, poderiamos duvidar de que estejamos completamente certos de que nao existe nada externamente que possa interferir”, (por exemplo, um asteroide que se chocara sobre a Terra). Mas, segundo Russell (ibid.), nao & essa a questéio mais interessante a ser colocada: “A diivida que interessa € em relagio a se as leis do movimento continuarao atwando até amanha, Se se levanta tal diivida, nos encontraremos na mesma posigao em que nos encontravamos quando se levantou a duivida sobre 0 nascimento do sol", (dito de ou forma, 6 tems, a esse respeito, como garantia aquilo que provém do habito). E Russell (ibéd.) insiste: cas leis do movimento continuario A finica razio para acreditar q atuando é a de que elas tém atuado até aqui, na medida em que nosso conhecimento do passado nos permite julgar isso. (..) Mas a verdadeira questio é est lei no passado proporciona evidéneia de que se cumprira o mesmo no 1m niimero qualquer de casos em que se cumpriu uma furaro? O que prova, a mim que li Hume, que em dez anos, em cem anos, con mil anos, em tanto tempo quanto houver bolas de bilhar e homens para observar seus movimentos, sempre a bola branca, atingida pela vermetha \ento proprio de rotagdo, vai partir para a esquerda com um angulo de 45 graus, e que, di sob um Angulo de 45 graus sem mo ida entre as duas bolas, a qui ntidade de movimento da primeira vai ser conservada depois? © que me assegura que as feis da natureza vao continuar as mesmas? Resposte: nada, Trata-se simplesmente de um postulado, Axioma e postulado Na histéria das ciéncias, conhecemos um exemplo bastante célebre le um suposto axioma que se tornou postulado ~ diferentemente do 1xioma, 0 postulado € tido como verdadeiro e conserva assim 0 estatuto de uma hipétese fundadora acompanhada da consciéncia desse estatuto. Fnconteamos esse axioma no grande livro de geometria da Antiguidade: Osel smentos, de Euclides. Esse livro apresenta uma série de proposigoes apoiadas sobre axiomas e seguidas de demonstragdes. O décimo segundo axioma do livro I se apresenta da seguinte forma: “E se uma linha reta, cencontrando-se com outras das retas, fizer 0s Angulos internos da mesma produzidas ao infinito arte dos ditos angulos internos” (Euclides parte menores que dois retos, estas duas reta concorrerio para a mesma 2009, p. 98). Podemos tirar uma consequéncia desse axioma/postulado, aquela a partir da qual frequentemente evocamos essa proposicao: seja uma reta e um ponto exte or a elas por esse ponto passa uma, e apenas uma, reta paralela & primeira. A formulagao de Euclides nao é limpida em um primeiro contato e é dificil ver surgir a evidéncia que ela exprime, a menos que recorramos a um esquema. Eis como tal esquema pode ser obtido. ‘Tomemos um plano. Nesse plano, eu traco uma primeira reta qualquer, a reta D. Depois, cu trago a reta D’. Em seguida, eu trago uma reta D” que corta, ao mesmo tempo, D e D’, Eu posso definir dois lados da reta 1D”: de um dos lados, a soma dos dingulos que formam as duas retas que cortam D’ é inferior a dois angulos retos, e, do outro, essa soma € superior esse valor. O axioma/postulado diz que as duas retas se cortam do lado em que a soma é inferior a dois angulos retos, Db” Esse resultado € tao intuitivo (se a soma dos angulos é inferior a dois Angulos retos, significa que as retas se aproximam uma da outra e, Portanto, que elas virdo necessariamente a se cruzar, se prolongarmos lerava como um axioma, ou seja, ele constatava a impossibilidade de demonstré-lo, ainda que sentisse sua verdade. Entretanto, ele se enganava. Ou, mais do que suficientemente seu tragado), que Euclides o con isso, sua intuigio estava limitada a uma forma de geometria que é aquela ‘que hoje chamamos justamente de “euclidiana”. Portanto, esse axioma se tomnou, depois dos trabalhos de Lobatchevski, um simples postulado: uma possibilidade geométrica entre outras. Na geometria de Lobatchevski, por uum ponto passa uma infinidade de retas paralelas a uma determinada reta. A geometria cuclidiana no ¢ falsa; é um caso particular da geometria, tomada em sentido amplo, que os trabalhos de Lohan deev: Esse episédio é rico de significagdo tanto do ponto de vista da hist6ria quanto da filosofia das exemplar deum procedimento cientifico ao mesmo tempo interrogativo e icias, € ele ¢ frequentemente considerado inventive, Mas, se n6s o apresentamos com algum detalhamento, foi para indicar que a uniformidade das leis da natureza, que era um axioma antes de Hume, torna-se um postulado com ele, Exatamente como se Hume tivesse sido, antes da hora, o Lobatchevski da indugdo. O mundo em que vivemos é seguramente, na pritica, regido por leis estaveis e imutaveis. Entretanto, no temos nenhum conhecimento direto das causas dessa estabilidade, Apenas 0 habito — que sabemos ser, as vezes, preguigoso — convida-nos a crer nessa estabilidade. Daquia analise de Hume vai deslizar a outro problema, o da crenga. Dado que no temos nenhuma prova direta ou racional da estabilidade das leis da natureza, dado que ela é um simples postulado, por que temos, no entanto, a convicgao de que a natureza é regida por leis imutaveis? Passamos entao de uma questdo ontoligica a uma psicolégica, de uma questao dirigida 4 natureza e a suas regularidades que af se desenrolam a luna questi sdlicemostincreagixes mines que avinbivarn Eewe deslizamento do ontoldgico ao psicolégico que confere A obra de Hume certa equivocidade, a despeito de sua clareza de expressio. Nelson Goodman: 0 novo enigma da induco Mas se © “verdadeiro” problema que coloca Hume se volta a natureza de nossa crenca, 4 nossa tendéncia em confundir axioma e postulado, no podemos mais nos contentar, a0 colocar © problema da indug2o, coma vibragao da corda do violdo, 0 Sol que nasce amanha ou 0 calor que acompanha 0 fogo. Devemos forjar exemplos mais sofisticados, sob o risco de cairmos no esoterismo. Esse sera 0 raciocinio de Nelson Goodman mais de dois séculos depois das publicagdes de Hume. ‘Temos o habito de manipular os predicados da cor. Desse modo, dizemos “esta coisa € vermelha” (ou verde, ov azul). Mas n 6s poderiamos inventar uma categoria diferente, para designar, por exemplo, a cor das peras. Fevidente, na verdade, que nao dispomos de uma categoria conveniente para falar da cor de uma pera. A pera é verde na primavera até meados do verio. Depois, ela € amarela e se torna dourada no ourono. Nés podemos descrever esse processo € analisé-lo como processo de amadurecimento a0 ‘qual esta associada uma mudanga de cor. Mas poderiamos também querer nos mostrar mais légicos e dizer que a pera tem uma s6 con dando-the um nome. Por exemplo, poderiamos chamé-la verde-amarelo, ou ainda “veramarelo”. Nos podemos de fato dizer que as peras so veramarelas, dando a essa expressio a seguinte definicdo: é veramarela uma coisa que é verde antes de meados do verdo e amarela depois. E um pouco sofisticado ce estranho como linguagem, mas nao é impossivel. Nao é absurdo. Nao nos surpreende que a pera mude de cor, pois sabemos que ela éa base de um conjunto de processos biologicos, cujo resultado poderia perfeitamente ser essa mudanga de aparéncia, Suponhamos agora que a ‘mesma coisa seja pensada com respeito a um objeto notoriamente inerte. Um objeto mineral, uma pedra. Sim, uma pedra transparente como, por exemplo, uma esmeralda. A transparéncia da pedra e sua cor resultam de leis fisicas. Essas leis sio imutaveis. E por isso que nao temos motivo para imaginar para a esmeralda um predicado que, jd no caso da pera, parecia curioso e supérfluo. Entretanto, é isso que Goodman nos convida a fazer. Vale lembrar que, depois de Hume, a ideia de supor coisas totalmente inabituais em filosofia se impos como um tipo de método, Entao, estamos agora em vias de supor a existéncia de uma mudanga na cor das esmeraldas, que vai se produzir em um momento indeterminado do futuro, sem necessidade de supor um fenémeno sazonal: basta imaginar uma transformagao em um momento qualquer, com a tinica condigao de que seja “no futuro”. Assim, essas esmeraldas so verdes antes do momento da transformagao ¢ azuis depois. E como prevemos essa mudanga de aparéncia da esmeralda, decidimos eriar uma nova categoria de cor que depende do tempo: ser verde antes do momento , como no caso das peras, damos a da transformagao e azul depois. cor dependente do tempo um nome especifico, Diremos que esses objetos que passam do verde ao azul no tempo re permanecem aznis na sequéncia sido “verzuis”. Ea isso que Goodman pretende chamar nossa atengao, 0 fato que, observando as esmeraldas antes do tempo f, eu confirmo tanto a proposigdo que diz que as esmeraldas so verdes quanto a que diz que cesmeraldas sao verzuis, j4 que, antes de ¢, uma esmeralda verzul é verde, Depois de 4, no entanto, podemos claramente distinguir uma esmeralda veraul de uma esmeralda verde, j4 que, nesse momento, ser verzul equivale a ser azul. Tudo isso, portanto, para nos mostrar que as observagdes no provam nada em si mesmas, ¢ que é preciso se interrogar também sobre as categorias que formamos, sobre sua estrutura. De um ponto de vista légico, 0 predicado “ser verzul éequivalente ao “ser verde”. Mas nio se trata, nesse caso, apenas de légica. Outra coisa deve ser considerada, ¢ 0 exemplo foi apresentado para tentar nos fazer sentir em que pode consistir essa “outra coisa”, essa coisa qualquer que reside no proprio predicado. Ondeesté, entao, o ponto decisivo dessa experitncia do pensamento? Nisto: algumas das propriedades que atribuimos, com ou sem razio, as coisas que nos circundam — por exemplo, “esta pedra é verde” ou “este homem é desleal” — tém uma certa validade, um certo interesse, uma certa utilidade. Goodman. liz que essas propriedades possuem, elas mesmas, uma propriedade intrinseca: elas podem dar lugar a “projecées” pertinentes Outras propriedades, ainda que equivalentes no plano log) projetaveis 0, nao so A propriedade “ser verde” € projetével; a propriedade “ser verzul” ndoé, e por nao ser projetavel ela nfo pode ser verificada, mesmo por meio de um grande niimero de obscrvagies concordantes. Trata-se entdo, pare Goodman, de precisar em que consiste essa propriedade de “ser projetivel”. © que distingue uma propriedade projetivel (como ser verde) de uma nao projetavel (como ser verzul)? Resposta: a implantagao da propriedade. Uma propriedade é implantada se ela esta fortemente ligada ao objeto que tem essa propriedade. Por exemplo, 4 propriedade “ser verde” nao esta implantada na pera, pois ela vai mudar coma estagao. Por isso, 0 predicado “veramarelo”, que definimos anteriormente, é sofisticado, mas nao é absurdo, se nds o aplicamos 4s peras. Em contrapartida, © predicado “verzul” ny st implantado na esmeralda, pois ele suporia uma mudanga de cor na pedra. Conclusio: 6s predicados podem se dividir em predicados “implantados”, abrindo espaco a proposigdes que ndo sao absurdas, e predicados nao implantados, abrindo espaco a proposigdes que parecem absurdas (como, por exemplo, a proposigao segundo a qual quanto mais eu observo esmeraldas verdes, mais cu comprovo que elas sao verzuis). As propriedades projetaveis sio, portanto, propriedades implantadas. ‘Andlise do argumento de Goodman Seguimos a demonstragio de Goodman até seu resultado final ¢ sabemos agora aonde ele pretendia chegar. Goodman trata de esmeraldas, portanto, de objetos coneretos que existem na natureza, Entretanto, 0 que assusta em suas reflexdes € que elas parecem sempre evitar aquilo que poderiamos chamar a “confrontagio fisica” com o objeto. Ele trata de esmeraldas, mas em momento algum ele coloca a questo sobre o que em si mesma uma esmeralda e 0 que é a cor verde para a esmeralda, Sera que essa cor corresponde ao que Locke nomeava uma qualidade primeira, ou a uma qualidade segunda? Essa questo é importante, pois, como vimos, 0 objetivo de Goodman é definitivamente mostrar que as propriedades projetaveis sao as propriedades implantadas. Ora, a distingao entre qualidade primeira e segunda é precisamente uma distingio que remete ao grau de implantagao de uma “qualidade” Posto isto, deve-se distinguir nos corpos duas espécies de qualidades. Em primeiro lugar, aquelas inteiramente inseparaveis do corpo, qualquer que scia o estado em que se encontre, cle modo que ele as conserva sempre em todas as alteragées € mudangas que sofra, por maior que seja a forca que possa exercer-se sobre ele. Fstas qualidades s40 de tal natureza que 0s nossos sentidos as encontram constantemente em cada particula de matéria com ‘grandeza suficiente para ser percebida e a mente considera-as insepariveis de cada particula de matéria, mesmo que seja demasiado pequena para ‘que 05 nossos sentidos a possam perceber individualmente. Por exemplo: ‘tomai um grio de trigo ¢ dividi-o em duas partes; cada parte possui ainda solidez, extensio, figura ¢ mobilidade; dividi-o uma vez mais € as partes ainda conservam as mesmas qualidades; e se continuas a dividislo até que a partes se tornem insensiveis, nenhuma delas perdera jamais qualquer dessas qualidades. Porque a divisio (que é tado quanto um moinho ou um triturador ou qualquer outro corpo faz a outro, quando o reduz a partes insensiveis) ndo pode nunca suprimir num corpo a solidez, a extensio, a figura e a mobilidade, mas unicamente faz, daquilo que antes era apenas lume, varias massas de matéria distintas e separsveis; todas essas massas de intos, Constituem um certo ntimero determinado, uma vez acabada a divisio. A essas qualidades chamo qualidades originais ¢ primarias de um corpo, as ‘quais, a meu ver, podemos considerar causas produtoras das nossas ideias simples de solidez, extensio, figura, movimento ou repouso e niimero. ‘matérias, consideradasa partir desse momento como tantos corpos di Hi, em segundo lugar, qualidades tais que, nos préprios corpos, no si mais do que poténcias para produzir em nés virias sensagdes por meio das suas qualidades primérias, isto é, pelo volume, pela figura, pela textura © movimento das suas partes insensiveis. Tais sio as cores, 0s sons, os paladares, ete, A estas dou o nome de qualidades secundarias. (Locke 2005, pp. 187-158) * Locce seguramente teria respondido, se tivéssemos Ihe colocado a , cue a cor da esmeralda é uma qualidade segunda, Pois, 0 fato de supor, mesmo hipoteticamente, que uma esmeralda poderia ser azul nplica que tomemos a cor como uma qualidade segunda. Com efeito, se cor verde da esmeralda fosse uma qualidade primeira, ou, dito de outta forma, se essa cor pertencesse a prépria definigao de uma esmeralda, ento tuna esmeralda azul nao seria sequer concebivel. O objeto deixaria de er uma esmeralda ao mesmo tempo em que mudaria de cor. Qualidade unda = qualidade nao implantada. Goodman poderia, certamente, cordo com as distingdes de Locke, mas esta quest’ iio estar de claro que ele to que a esmeralda poderia ser azul sem deixar de ser uma comeralda, E é Além Na verdade, que elas “si toma por sse ponto que a anilise de Locke permite diferenciar, isso, Goodman parece inclinado a jogar com outra sutileza, le no diz. que as esmeraldas sio yerdes ou azuis; ele diz 0 vistas” verdes ou azuis, como s cle pretendesse introduzir iene ninite Guin hactiles ee seek sil, Novamente, parece que essa precaugao de linguagem corresponde a um. tipo de fuga da confrontagio fisica. A cor de um objeto nao é um fendmeno guir 0 verde do vermelho, sem dtivida pode realizar essa distingao se dispuser puramente subjetivo, Um dalténico, incapaz subjetivamente de di ‘de um aparelho que permita determinar 0 comprimento de onda do fluxo lo por um objeto. Da mesma maneira, 0 tipo de fluxo luminoso emitido por uma esmeralda pode ser determinado até mesmo por um cego, caso ele disponha de um aparelho de deteccao adequado. Nao se trata, portanto, de um dominio do “visto como”. £ um dado mensuriivel e objetivo, Se introduzirmos na ficgao de Goodman o elemento de um encontro dircto com o objeto “esmeralda”, veremos que, nessa fico, trata-se de faro de uma mudanca que supostamente pode intervir em um momento do futuro, mudanga essa voltada a uma qualidade da ‘esmeralda (sua cor) considerada como uma qualidade segunda. 0 pragmatismo de Hume Mas, se seguimos assim o raciocinio de Goodman, foi por ele nos colocar na diregio de um aspecto importante da reflexio de Hume, Dissemos que as esmeraldas eram verdes em fungio de um conjunto de leis naturais. A ideia de Goodman foi, entao, introduzir por meio do pensamento uma mudanca sub-repticia das leis da natureza, que modifica as qualidades segundas da esmeralda em um tempo t do futuro. Nos lembramos que Russell propunha a seguinte questo: © que nos prova que as préprias leis da natureza nao vao mudar? A resposta est sugerida pelo enigma de Goodman: a natureza é cega, ela nao saberia mudar suas lei , ela niio saberia espontaneamente modificar as qualidades segundas de um objeto, pois ela no tem imaginagao. A permanéncia das leis da natureza é a intuico da auséncia de imaginagao nas fibras da natureza. Russell, em seu estudo sobre indugdo, imagina um caso de indugaio. fatidica, Uma galinha induziu do ruido dos passos do fazendeiro, que toda manhi ressoavam no terreiro, que eles indica am a chegada do alimento, Indugio justificada somente até o dia em que o fazendeiro vem Ihe torcer pescogo. Estamos na mesma situagao diante das leis da nacureza, insiste Russell: nds fomos em vio convencidos de que elas vio se reproduzir identicamente a si mesmas, pois nada nos prova que clas nio vao nos surpreender um dia, nada prova a necessidade das leis que observamos. Ora, podemos opor uma objegio a esse raciocinio, j4 que a natureza nio (em qualquer razdo para se comportar como o fazendeiro. Contrariamente 1 cle, ela nao tem imaginagao, apetite, programa, intengao. O fazendeiro pode considerar que a galinha esta suficientemente gorda para ser mais litil em um espeto do que no galinheiro. A natureza nao saberia fazer 0 mnesmo, Ela ndo pode mudar de opinido para adotar um comportamento diferente daquele que ela teve até entio. Por qué? Porque ela é feita de elementos intercambiaveis. Ora, se esses elementos que compdem a natureza devem permanecer \ntercambidveis, entio a modificagao das leis que se aplicam a um deles \leveria simultaneamente se aplicar a todos os outros (a fim de que eles permanegam intercambiaveis), tal como fomos conduzidos a supor no caso tos esmeraldas. Todas as esmeraldas, na ficeio de Goodman, deveriam jnudar de cor “ao mesmo tempo”. Portanto, jé que a natureza é feita de clementos intercambiaveis — ou, ao menos, supomos que seja feita de tlementosintercambiaveis-, logicamente supomos também que essas leis silo invariiveis, e no apenas por causa do habito. Em uma narrativa de fiegao cientifica, Isaac Asimov coloca em cet Porsonagens que, gragas talvez a leituras de David Hume, jogam bilhas, Hin um dado momento, uma das bolas segue uma trajetéria perfeitamente incongruente. Bla se dirige com determinagao, mas também com liberdade, tun sentido que nao é aquele que esperariamos de uma bola de bilhar tin movimento livre, Em outros termos, ela contraria com seu movimento oA leis naturais. Apesar disso, “todas as coisas permanecem idénticas bola de bihar era, até enti, intercambiavel com todas as outras bolas de mesma massa, Qualquer bola teria tido, em seu lugar, exatamente o ‘eso comportamento. Mas, de repente, em um tempo f, a matéria que a const se singulariza, Seria excessivo d que esse comportamento, nao segue mais nenhuma regra (pois a bola vai com determinagdo em diregao ao cranio de um homem em que vai se afundar), mas ao menos io segue mais a regra comum e habitual. [A bola é feita de resina e scu movimento é o resultado do movimento de cada um dos étomos que a compdem. Em outros termos, se ela muda repentinamente de comportamento, significa que os intimeros éromos que ‘a compdem adotaram simultaneamente essa nova regra de comportamento, ‘A bola de bilhar, ela propria intercambidvel com outras bolas de bilhar, composta de elementos que so intercambidveis entre si £, portanto, muito dificil, ainda que ndo impossivel, conceber mudangas semelhantes de comportamento em bolas de bilhar ~ é na verdade, uma mudanga do campo gravitacional que, na narrativa, est na origem da mudanga de comportamento da bola de bilhar, mas isso nao altera em nada as conclus6es sa a razao pela qual tais que podemos tirar dessa modificagao. Fs ‘mudangas, por ora, encontram-se apenas em narrativas de ficgio cientifica. Indo além, encontraremos a intuigao de Hume. Na verdade, como jd havia percebido Kant, é precisamente porque existem regularidades na natureza que nosso espitito é capaz de apreencé-las, Se tais regularidades nao existissem, estarfamos diante de um caos que nenhuma representagao poderia organiza o olho nao existiria, se no houvesse na natureza raios luminosos gragas Exatamente como o olho que percebe 0s raios luminosos: aos quais a realidade pudesse revelar seu contesido ao aparelho drico que o constitui. Da mesma forma, a nogao de causalidade nao existiria entre n6s, se a causalidade nao tivesse antes existido na natureza, pois é a presenga dessa regularidade na natureza que faz com que possuit a capacidade de representar constitua uma vantagem na evolugio das espécies. Essa dimensio evolucionista da interpretagdo est, com certeza, toralmente ausente em Hume. Entretanto, cla é, de certa forma, pressentida por eles Hume, perguntando-se sobre a nogio de causalidade, estava na mesma situagio de alguém que se pergunta sobre a visio supondo que @ ‘sem relagio com os fendmenos luminosos. Ele fica espantado com a coincidéncia que representaria a presenga simultanea eo de eeu sistema de detecello, Ele nao compreenderia @ olho se constitu ‘aero eae ligagdo que existe entre os doit ; Ora, aessa ligagao a teoria da evolugio da uma solugao simples ¢ invariavel: como estamos em condigdes de detectar tum fendmeno, como, dito de outro modo, possuimos uma faculdade, qualquer que seja, significa que essa faculdade deve set util a vida. E, se ela & dit, significa que ela funciona de modo efca2. Mas funcionar de modo eficaz é simplesmente dar uma representagio sul confivel do funcionamento da natureza. Em outros termos, se natureza fendmenos erraticos — 0 que nao esta excluido -, nds s6 podemos ignord-los, pois nenhum sentido que permitisse sua detecgio péde ser desenvolvide. © problema da indugio vai estar sempre mal colocado, enquanto o fizermos sem relagio com o organismo que concebe a indugi © organismo humano ¢ sua origem natural. Hume insistia sobre o carter pratico do saber que contém “o instinto indutivo”. Ele sublinha, em diversas ocasides, que no duvida, de fato (na prética), da regularidade das les da natureza,e que seria confundir intciramente seu propdsito crer que ele pretende nos conduzir & divida sobre essa regularidade. Hume se interroga sobre o fundamento te6rico dle nossa erenga nessa regularidade. Nao encontrando nenhum, ele chega perto de concluir que seu carter € puramente pratico, Assim, aquilo que Hume mostra em definitivo é: 0 principio da indugio é verdadeiro na pritica e somente na pratica. Ele é verdadeiro para nés, cujo pensamento € essencialmente comandado por necessidades praticas. O pensamento no ‘em por fungdo primeira nos servir na elaboragio de teorias. inicial € comandada por imperativos e necessidades praticas. Sua fungio Essa € a ideia que concebeu mais tarde Charles Sanders Pierce. Segundo Pierce, nossas faculdades perceptivas e cognitivas sio um produto da evolugao de nossa espécie. Diz-se que clas nos informam vobre a realidade, mas € unicamente em fungao da vantagem que pode representar tal faculdade para a sobrevivéncia das criaturas que foram 10608 ancestrais. Essa solugdio pragmati ca do problema da indugio tem o nérito de evitar que a questo deslize rumo a uma sofisticacao excessiva Depois da indugo “Toda essa agitagao em tomo da nogao de indugao é justificada pelo fato de que supomos que a indugo é indispensavel a ciéncia. Com efeito, a cigncia visa conhecimentos gerais. Ora, apenas a indugao permite passar das observacdes particulares as repras gerais. Mas essa suposigao ¢ ela propria fundada? F certo que a cigncia se apoia sobre a validade dessa nogio, concebida frequentemente de forma intuitiva? Claude Bernard, cm seu livro Introducao a medicina experimental, fala um pouco sobre a indugio. Seu mo. Bis 0 que ele di ponto de referéncia teGrico é a nogio de determi Define-se a indugdo dizendo que € um processo do espirito que vai do particular ao geral, enquanto a dedugao seria o processo inverso que iia do geral ao particular, Decerto, ndo tenho a pretensio de entrar aqui em discussio filosofica que estaria fora de lugar eda minha competéncia; apenas, dizer que, na pritica, parece- iffcar esta distingai e separar,nitidamente, a indugio da nna qualidade de experimentador, imitar-me-¢i sme muito dificil ju dedusio. Se o espitito do experimentador procede, igualmente, partindo de “observagGes particulares para chegar aos principios, as leis, ou 3s proposigoes getais, procede também, necessariamente, dessas mesmas proposighes gerais ‘ow leis para chegar aos factos particulares que deduz logicamente de tais principios, Somente, quando a certeza do principio nio é absoluta, trata-se sempre de uma dedugao proviséria que reclama a verificagao experimental, Todas as aparentes variedades do raciocinio dependdem, apenas, da natureza do assunto de que se trata, da sua maior ou menos complexidade. Mas, em todos 0s cas0s, 0 espitito do homem funciona sempre de forma silogfsticas no poderia conduzie-se de outra mancira, (Bernard 1978, p. 61) ‘Assim, nosso estudo do conceito de indugdo se completa com o julgamento de um praticante da ciéncia, cujas afirmagoes convém examinar mais em detalhe. No lugar do principio de indugie, Claude Bernard parece querer colocar o principio por ele chamado “determinismo”. Esse deslizamento do principio de inducao ao principio de determinismo orienta ncias~e, se sim, em que sentido, com quais as reflexdes da filosofia das ci consequéncias ¢ em fungio de quais desafios? Qual é precisamente si Investigagio acerca do entendimento humano, de David Hume SECO V. SOLUCAO CETICA DESTAS DUVIDAS PRIMEIRA PARTE Tanto a paixdo filoséfica como a paixio religiosa parecem expostas — embora procurem extirpar nossos vicios @ corrigit nossos habitos — a0 Inconyeniente, quando manejadas com imprudéncia, de servirem apenas para encorajar uma inclina¢ao predominante e conduzir o espirito resolutamente na dire¢do que previamente mais o atraia, devido as tendéncias einclinagdes do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos a magndnima firmeza do saber filoséfico e tentamos encerrar ‘nossos prazeres nos limites de nosso proprio espirito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, como aquela de Epicteto e outros estéicos, num sistema mais refinado de egoismo e persuadir-nos racionalmente de nos desligar de toda virtude como também de todos os prazeres sociais. Enquanto refletimos a propésito da vaidade da vida humana e pensamos na natureza fitile transitéria das riquezas e das honras, estamos, talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indoléncia natural que, por aversao a azifama do mundo e 3 fadiga dos negécios, procura um pretexto racional para entregar-se completa e livremente 8 preguica. H8, contudo, ‘uma corrente filosdfica que parece menos exposta a este inconveniente, pois ela ndo se liga a nenhuma paixao desordenada do espirito e nem se alia a qualquer tendéncia ou propensao natural: € a filosofia académica ou cética. Os académicos falam sempre da dvida e da suspensao do juizo, do risco das resolugées apressadas, em confinar as investigacdes do entendimento a estreitos limites e em renunciar a todas as especulagdes que transbordam as fronteiras da vida e da pratica cotidianas. Nada, por cconseguinte, pode ser mais contrario a tal filosofia do que a indolente letargia do espirito, sua atrevida arrogancia, suas elevadas pretensoes & sua credulidade supersticiosa, Toda paixéo é mortificada por ela, exceto 0 amor a verdade; e esta paixo ndo ¢ jamais, nem pode ser, elevada a um rau demasiado alto. € surpreendente, todavia, que esta flosofia, que em ‘quase todos 0s aspectos deve ser inofensiva e inocente, seja 0 objeto de tantas acusagbes e de tantas censuras infundadas, Mas, talve2, a prépria ia que a torna to Inocente seja justamente o que a expe a0 dio e ao ressentimento piiblicos. Porque ela no adula nenhuma paixéo desordenada, nao obtém muitos adeptos; porque ela se opde a tantos vicios ¢ tantas tolices, levanta contra si um grande nimero de adversarios, que a estigmatizam como profana, libertina e irreligiosa Nao temos necessidade de recear que esta filosofia, enquanto trata de limitar nossas investigacdes 8 vida didria, solape os raciocinios da vida diria e estenda suas dividas até 0 ponto de destruir toda ago como ‘também toda especulagio. A natureza manteré ternamente seus direitos @ prevalecerd sobre todos os raciocinios abstratos. Embora devéssemos cconclui, a exemplo da se¢io anterior, que em todos os raciocinios derivados da experiéncia o espirito avanca sem apoiar-se em argumentos ou proceso do entendimento, nao ha perigo que estes raciocinios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afetados por tal descoberta. Se o espirito no é levado a dar este passo por um argumento, deve ser persuadido por outro principio de igual peso e autoridade; e este principio mantera sua Influéncia contanto que a natureza humana permane¢a invariével. Vale a pena investigar qual 6 a natureza deste principio. Suponde que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais, seja repentinamente transportado para este mundo; certamente, notaria de imediato a existéncia de uma continua sucessdo de objetos e um evento acompanhado por outro, mas seria incapaz de descobrir algo a mais, De inicio, nfo seria capaz, mediante nenhum raciocinio, de chegar 3 idéia de causa € efeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as ‘operacées naturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razodvel conclu, apenas porque um evento em determinado caso precede outro, que um & a usa e o outro, o efeito. Esta conjuncdo pode ser arbitréria e acidental. No ha base racional para inferir a existéncla de um pelo aparecimento do outro, E, numa palavra, aquele homem, desprovide de experiéncia, jamais poderia conjeturar ou raciocinar sobre qualquer questio de fato, nem teria seguranca de algo que ndo estivesse imediatamente presente a sua meméria ou aos seus sentidos. ‘Suponde de novo que o mesmo homem tenha adquirido mais experiéncia que tenha vivido o suficiente no mundo para observar que os objetos ou eventos familiares esto constantemente ligados; qual € consequéncia desta experiéncia? Imediatamente infere a existéncia de um objeto pelo aparecimento do outro, Entretanto, no adquitiu, com toda a sua ‘experiéncia, nenhuma idéia ou conhecimento do poder oculto, mediante 0 ‘qual um dos objetos produziu 0 outro; e nao serd um proceso do raciocinio que o obriga a tirar esta inferéncia. Mas ele se encontra determinado a tird:la; e mesmo se ele fosse persuadido de que seu entendimento ndo participa da operacdo, continuaria pensando 0 mesmo, porquanto hé um outro principio que o determina a tirar semelhante conclusao. Este principio ¢ 0 costume ou o habito. Visto que todas as vezes que a repetigao de um ato ou ce uma determinada operacéo produz uma propensio arenover omesmo ato ou a mesma operacSo, sem serimpelida por nenhum raciocinio ou processo do entendimente, dizemos sempre que esta propensio @ cefeito do costume, Utizando este termo, ndo supomos ter dado a raxdo tia de talpropensio. Inicamos apenas um principio danatureza humana, que é universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos. Talvez ‘no possamos levar nossasinvestigagBes mais longe e nem aspiramos dar a causa desta causa; porém, devernos contentar-nos com que o costume é © iio principio que podemos assnalar em todas as nossas conclusSes derivadas da experiéncia. 15 €, contudo, satisfagao sufciente poder chegor até aqui sem iritar-nos com nossas estreitas faculdades, estreitas porque ro nos levam mais adiante. Certamente, temos aqui ao menos uma proposicio bem intelgivel, seno uma verdade, quando afirmamos que, depois ca conjungao constante de dois objetos, por exemplo, calor e cham, peso esolidez, unicamente o costume nos determina a esperar um devido ao aparecimento do outro, Parece que esta hipétese &atnica que explica a dificuldade que temios de, em mil aso, tirar uma conelusao que no somos capazes de trar de um s6 caso, que ndo discrepa ern nenhum aspecto dos outros. A razdo nao ¢ capaz de semelhante variagdo. As conclusées tiradas or ea, 20 considerar um ciculo, so as mesmas que formaria examinando todos os circulos do universo. Mas ninguém, tendo visto somente um corpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderiainferir que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulso igual. Portanto, todas a inferéncias tiradas da experiéncia so efeitos do costume eno do raciocinia © costume ¢, pois, 0 grande guia da vida humana. E 0 Gnico principio ue torra util nossa experiéncia e nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos semelhantes aqueles que apareceram no pasado. Sem a influéncia do costume, ignorariamos completamente toda questo de fato {que esta fora do alcance dos dados imediatos da meméria e dos sentidos, Nunca foderiamos saber como ajustar 0s meios em funcdo dos fins, nem como empregar nossas faculdades naturais para a producdo de um efeito. Seria, a0 mesmo tempo, o fim de toda a¢do como também de quase toda especulicao, Mas aqui deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusbes derivadas da experiéncia nos levern além de nossa meméria e de nossos sentidos e nos assegurem da realidade de fatos que ocorreram em lugares mais distantes e em épocas remotas, énecessério que um fato.esteja sempre presente aos sentidos e 8 meméria, do qual podemos de inicio partir para tirar essas conclusées. Se um homem encontrasse num pais deserto 0s remanescentes de edificios suntuosos, conciuiria que © pais, em tempos remotos, tinha sido cultivado por habitantes civlizados; mas, se nada desta natureza Ihe ocorresse, jamais poderia chegar a semelhante inferéncia. Pela histéria, conhecemos os eventos de épocas passadas; todavia, devernos prosseguir consultando os livros que contém estes ensinamentos e, a partir da, eemontar nossas inferéncias de um testemunho a outro até chegar as testemunhas oculares e aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se nao partirmos de um fato presente 4 meméria ou aos sentidos, rossos raciocinios sero puramente hipotéticos; eseja qual for omoda como ‘estes elos particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferéncia nido teria nada que Ihe servisse de apoio e jamais por meio dela poderiamos chegar ao conhecimento de uma existéncia real. Se vos perguntasse por que acreditais em determinado fato que relatais, deveis indicar-me alguma razio; ‘esta azo serd um outro fato em conexao com o primeiro. Entretanto, como do podeis proceder desta maneira in infinitum, deveisfinalmente terminar por um fato presente a vossa meméria ou aos vossos sentidos, ou deveis, ‘admitir que vossa crenca é inteiramente sem fundamento. ‘Qual 4, portanto, a conclustio de toda 2 questo? E simples; no entanto, deve-se canfessar que ela se acha muito distante das teorias filos6ficas correntes. Toda crenca, em matéria de fato e de existéncia real, procede nicamente de um objeto presente & meméria ou aos sentidos e de uma conjungao costumeira entre esse © algum outro objeto. Ou, em outras palavras, como o espirito tem encontrado em numerosos casos que dois éneros quaisquer de objetos — a chama e ocalor, aneve e ofrio—sempre teémestado em conjungio, se, de novo, a chama oua neve se apresentassem 0s sentidos, o espirito é levado pelo costume a esperar calor ou frio, & a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria se estivesse mais proxima de nés. Esta crenga é o resultado necessério de colocar 0 espirito em determinadas circunstancias. E uma operagao da alma to inevitavel como quando nos encontramos em determinada situago para sentir a paixio do amor quando recebemos beneficios; ou {ade ddio quando nos defrontamos com injusticas. Todas estas operacbes stio uma espécie de instinto natural que nenhum raciocinio ou processo do pensamento e do entendimento ¢ capaz de produsir ou de impedir. A esta altura, poderiamos perfeitamente terminar nossas pesquisas filos6ficas. Na maioria dos problemas jamais poderiamos adiantar um ‘unico passe; e em todas as questées deveriamos terminar aqui, depois das maisincessantes e curiosas investigagBes. Mas ainda nossa curiosidade serd perdoivel,talvez digna de elogio, se nos levar a investigacBes mais avancadas enos fzer examinar com maior exatiddo a naturera desta crenga € desta conjuncdo costumeira, isto &, de onde ela procede. Por este melo podemos encontrar explicagées e analogias que satisfardo, a0 menos, queles que amam as ciéncias abstratase se contentam com especulagées ue, por mais rigorosas que sejam, ainda podem conservar certo grau de divida ede incerteza. Quanto aos leitores de gosto diverso, 0 resto desta segdo nio hes & destinada, e, se eles no a lerem, ainda assim podem compreender perfeltamente as investigagBes posteriores Fonte: Hume 1999, pp, 59-64. Sugestées de leitura Para continuar a reflexdo que foi apresentada neste capitulo, convém seguranente comegar pela leitura de Hume, Trata-se de um autor cuja leitura nao exige nenhuma preparagio particular. Suas reflexdes se destacam por sua clareza, No capitulo precedente, evocamos exclusivamente a questo da indugio. O essencial das reflexes de Hume sobre essa questio se encontra no volume I do Tratado da natureza bumana (especialmente na terceira parte, intitulada “Do conhecimento e da probabilidade”) e no Investigagdo acerca do entendimento humano (espe Imente nas segdes IV e V, intituladas, respectivamente, “Diividas iicas” € “Solugio cética destas diividas”). Mas Hume também escreveu sobre as paixées. O livro I do Tratado da natureza humana € consagrado a esse tema, Entretanto, no fim do livro I, encontramos uma longa passagem de grande originalidade sobre A nogio de identidade pessoal: “Da identidade pessoal”. As intuigées que Hume desenvolve sobre © carter fragmentado do eu antecipam alguns temas que ¥; » ser tratados tanto pela filosofia quanto pela psicologia e pela literatura, mais de um século depois: com Nietzsche na filosofia, com Ribot na psicologia, com Rimbaud e Proust também (podemos encontrar ‘uma bela sintese dessa presenga do tema do “eu dividido” em numerosos campos de reflexdo ¢ saber no livro de Edouard Bizub, Proust et le moi divise. La recherche: Creuset de la psychologie expérimentale (1874- 1914) (Droz, 2006). © livro mostra como o tema perpassa a psicologia a literatura, passando pela filosofia ¢ poesia). Para seguir com o tema da indug&o, podemos consultar a obra de Jules Lachelier intitulada Du fondement de induction, publicada em 1871. Constataremos que, se a questo da indugao € considerada cem © fundadora de todo conhecimento cientifico, a obra de Hume nio se beneficia, no entanto, de um tratamento privilegiado (o proprio Hume € citado somente em duas ocorréncias ¢ suas teses sio apresentadas sob 0 titulo mais geral “escola escocesa”): A indugio é a operagio pela qual passamos do conhecimento dos fatos quele das leis que os regem. A possibilidade dessa operacio nao foi posta em diivida por ninguém e, por outro lado, parece estranho que certos fatos, observados em um tempo ¢ um espaco determinados, sejam suficientes para que estabelegamos uma lei aplicavel a todos os lugares € todos os tempos. A experiéncia mais bem feita s6 serve para nos ensinar adequadamente como os fendmenos se ligam diante de nossos olhos: mas, que eles devam se ligar sempre ¢ por toda parte da mesma mancira, é 0 que ela nao nos ensina, apesar de nao hesitarmos em afirmé-lo, Logo, como uma tal afirmagio é possivel e sobre que principio ela é fundada? Essa é a questio, tio dificil quanto importante, que tentaremos resolver. (Lachelier 1992, p. 3) Notemos que, assim que Claude Bernard tentar estabelecer as regras do raciocinio experimental, ele tampouco vai fazer qualquer referencia a Hume, que nio é citado nem uma s6 vez na Introdugao 4 medicina experimental, Yoltaremos a isso no proximo capitulo. Mas o trajeto intelectual que vai conduzir & filosofia que se quer om © progresso das ciéncias, a filosofia analitica, ‘a mais sintonizada vai conservar um parentesco com o tema da indugio, considerado 0 fundamento daquelas nossas afirmagdes que sao verificadas pelos fatos, mas que io to surpreendentemente dificeis de estabelecer. Podemos continuar pelos textos de Ernest Mach (titular da cadeira de Filosofia das ciéncias indutivas criada para ele em Viena em 1895), especialmente analyse des sensations, le rapport du physique au psychique (1886). Russell, no inicio do século XX, coloca claramente em destaque os desafios da questio. Fis o que ele escreve em Hist6ria da filosofia ocidental: A filosofia de Hume, verdadeira ou falsa, representa a bancarrota da racionalidade do século XVII, (...) E importante, por conseguinte, descobrir se hi alguma resposta a Hume dentro da estrutura de uma filosofia que é toda ou principalmente empitica. Se nio, hi diferenga inelectual alguma entre a sanidade ¢ a loucura. © lunatico que se jukga uum ovo escaldado sera condenado unicamente por estar em minoria (|. (Pp. 221-222) © Girculo de Viena se inspira amplamente nas ideias de Hume, Karl Popper vai se apresentar, até com certa énfase, como tendo “resolvido © problema de Hume”. Sera principalmente depois da Segunda Guerra Mundial que © debate sobre a inducao vai ganhar uma atmosfera técnica ¢ l6gica, na qual vamos ver fildsofos refletir longamente sobre proposigdes no comeso simples, como a famosa “a neve é branca”, depois progressivamente ma € mais sofisticadas, mas ainda conservando certa simplicidade em sua forma, como

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