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Tania Garon MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS: UM. MOVIMENTO CAMPONES E FEMINISTA Valdete Boni* Resumo ‘© Movimento de Mutheres Camponesas (MMC) foi eriado em 2004 como resultado da unio de varios movimentos de mulheres do campo, sejam agriculturas, pescadoras ou extrativistas, Particularmente com Santa Catarina, esse movimento tem uma historia de quase trés décadas, Nesse periodo, mudangas politicas ¢ estruturais aconteceram no campo que influenciaram suas posturas, Pretendo analisar um ponto especifico dessa trajetéria, a introdugio do conceito de campesinato no movimento. Como esse 6 elaborado e justificado pelas camponesas? Qual a relacio entre campesinato ¢ feminismo 19 destas mulheres? Essas questdes sio discutidas levando-se em conta um breve resgate do co de campesinato em voga atualmente nas discusses académicas Palavras-chave: Mutheres Camponesas, Lutas. América Latina, MMC Bachatel im CiGncias Socais pla Universidade Federale Santa Catarina (2002). Mestre em Sociologia Politica pela UPSC (2005). Dourora em SocilogisPoitiea pela UFSC (2012). Emu: valeteboni@tyahoocombe REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Revista Cor 1 Considero como primeira momento a fase de aia casio na década de 1980, pela documentasio © reconhecimento enquanto ttabalhadoras ruraisy € como segundo a fate na década de 1990, em que 0 movimento assume Int Fgadas @ question de género, mais explicitamente, © Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) possui uma historia de Iuta de quase trés décadas. Neste percurso, muitas foram as suas reivindicagées e bandeiras de luta, como as militantes camponesas costumam se referir. Percebemos, neste espago de tempo, conquistas importantes no campo dos direitos trabalhistas, especialmente insergZo das mulheres camponesas como seguradas especiais da previdéncia Este artigo pretende demonstrar quais motivos levaram Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA) a se tornarem MMC e qual o significado desta mudanga para o movimento. Para tanto, pretendemos ir além da discussto conceitual entre agricultura familiar e campesinato, ¢ enfatizar que, para além da mudanga de nomenclatura, o movimento manteve aspectos de sua identidade anterior, embora tenha ampliado seu campo de luta 20 incorporar-se a Via Campesina. Neste sentido, destacaremos quais aspectos evidenciam a continuidade das Iutas do MMA e novas propostas do movimento, tendo em vista concepgées ¢ priticas que contribuem para a claborasio do ser camponés ¢ camponesa. A Assembleia do MMA tealizada em 2001, na cidade de Concérdia/SC, tragou o que considero um momento crucial para a trajetéria do movimento, o qual pode ser caracterizado como um terceiro momento, Esta assembleia significou o passo inicial para a criagio de um dos projetos atuais mais significativos do movimento, 0 projeto de recuperasao de sementes crioulas, do qual trataremos mais adiante. Esta terceira fase é marcada pela exteriorizagio de uma postura feminista das militantes, porque € neste momento que (© movimento se caracteriza como um “movimento camponés € feminista’.Tendo em vista essa caracterizasio e compreensio, este artigo se propée a realizar uma reflexio sobre os sentidos de ser camponés e camponesa sob a dtica do MMC. Para tanto, partimos da definiso clissica de camponés, a compreensio do MMC, onde 0 campesinato se caracteriza como forma de resisténcia para o movimento que posstii uma compreensio de agricultura camponesa e feminista Ser camponés e camponesa para o MMC © MMC foi criado oficialmente em 2004 como resultado da uniéo de virios movimentos de mulheres do campo que se [REVISTA GRIFOS-Noaae aus incorporaram a Via Campesina, por ocasiéo da IV Conferéncia da Via Campesina. Particularmente em Santa Catarina, esse movimento apresenta uma histéria de quase trés décadas, sendo que nesse periodo, mudangas politicas ¢ estruturais aconteceram, no campo que influenciaram sua postura, Anteriormente, de forma isolada nos estados brasileiros, as onganizagdes de mulheres existem desde a década de 1980, como € 0 caso do MMA em Santa Catarina, do MMTR no Rio Grande do Sule Parand e das extrativistas no norte e nordeste do Brasil, como as quebradeiras de coco de babagu. Na década de 1990 esses movimentos comegaram a se articular ¢ criaram a Articulagao Nacional de ‘Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR), que resultou na criagio do MMC em 2004 A discussio a respeito da nova nomenclatura suscita uma importante questio. Qual o significado do termo “camponés” neste novo contexto do movimento? As antigas denominagées de “agricultoras” e “trabalhadoras rurais” foram ressignificadas, ressurgindo o conceito de “camponesas” a partir das novas priticas ¢ bandeiras assumidas pelo movimento. A reflexto expressa no texto “Violagio de direitos e resisténcia aos transgénicos no Brasil: uma proposta camponesa”, de autoria de Marciano Toledo da Silva’, que compée a coletanea “Transgénicos para quem? Agricultura, Ciéncia ¢ Sociedade”, tem orientado a visio dos movimentos sociais em relagio 4 nova compreensio ¢ configuragio de campesinato, entre os movimentos ligados & Via Campesina. A identidade camponesa é 0 reconhecimento do que o identifica, ddo que Ihe é préprio. Ha ¢ earacterizada pelo modo de vive, pelo modo de se relacionar com outros grupos sociis e com a natureza, aravés do uso que se fiz dela, expressos pelos abitos alimentares e comidastpicas, pela cultura, pela miisica, pelas dangas, pela misti- ca ereligiosidade, pelo jeito de produzir ede cuidar da terra, Para fo camponés ea camponesa,a terra € 0 lugar de reproduzire euidar da vida. As sociedades ¢ comunidades tradicionais, nas quais se inscrem os indigenas, os quilombolas, os sertancjos, os caigaras, 10s caboclos, os extratvistas e, por fim, o campesinato em toda sua sociodiversidade,caracterizam-se pela sua dependéncia em relagio aos recursos naturais. E no aprendizado sobre o funcionamento dos ciclos naturais~ de quando chove ou faz seca, sobre as plantas aque ali exescem ou os animais que por ali vivem ~ que nasce ¢ se desenvolve 0 conhecimento sobre essa diversidade, e que tadicio- ralmente € repassado de uma geragio a outra. Assim se constréi Team Gwen ES 2 Marciano Toledo da 5 cm Agroecologia. E. arsestor técnico do MPA ¢ da Via Campesina Br REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Ban cane “o modo de vida’ de cada povo ou comunidade tradicional ¢ so definidas os seus territérios, espagos onde cada grupo se reproduz, econdmica e socialmente, auto identificando-se com “o lugar”, por pertencer a uma cultura distinta da demais. Assim € o camponés brasileixo (SILVA, 2011, p. 453). Nesta diregio, uma das justificativas do MMC sobre a opgio de fazer parte da Via Campesina ¢ denominar-se enquanto movimento de mulheres camponesas ocorreu pelo fato de que o termo camponés englobaria a heterogeneidade de identidades de mulheres que representam 0 campesinato, sejam as agricultoras, as assalariadas rurais, as pescadoras ou as extrativistas, bem como a associagdo entre as atividades de subsisténcia e comercializagio que envolve a categoria camponés em torno do trabalho familiar @ produgio de alimentos, conforme documento do movimento. Fizemos debates sobre a categoria camponés que compreende a uni- dade produtiva camponesa centrada no micleo familiar a qual, por ‘um lado se dedica a uma produgio agricola e artesanal autdnoma com 0 objetivo de satisfazer as necessidades familiares de sub- sisténcia ¢ por outro, comercializa parte de sua produgao para ga santir recursos necessisios 4 compra de produtos e servigos que nao produz. Neste sentido, mulher eamponesa,€ aquela que, de ums fou de outra mancira, produz.o alimento ¢ garante a subsisténcia da familia. E a pequena agsicultora, a pescadora artesanal, a quebra- deira de coco, as extrativistas, arendatérias, meciras,ribeirinhas, possciras, boias-frias, diaristas, parceiras, sem-terra, acampadas ¢ assentadas, assalariadas rurais e indigenas. A soma e a unificagio estas experigncias camponesas ¢a participasio politica da mulher, Jegitima e confirma no Brasil, o nome de Movimento de Mulheres Camponesas (MMC, 2009), Embora nao haja referencia explicita sobre a influéncia da Via Campesina nesta nova orientagio nas falas das mulheres, nem em seus documentos, considera-se que as articulagdes entre ‘0s movimentos sociais do campo para se fortalecerem frente aos desafios colocados na iiltima década foram decisivas para esse direcionamento “conceitual” do movimento, Quais diferenciagdes conceituais e politicas podem, portanto, ser estabelecidas entre a definigio classica de camponés ¢ a compreensio atual do MMC, serio abordadas na sequéncia. [REVISTA GRIFOS-Noaae aus Dadefinisio clissica de camponéscompreensio do MMC A definigao clissica de camponés elaborada por Chayanov refere-se aquele produtor familiar que cultiva a terra com vistas a garantir a subsisténcia da familia, mas que nfo se insere totalmente no mercado. Ou seja, uma nogao de trabathador rural que é proprietirio de seu meio de produgio, mas que nio “alimenta’ o capitalismo. O que Chayanov teorizou na década de 1920 na Riissia Comunista, perde o sentido na atualidade para definir grande parte dos produtores familiares no Sul do Brasil, onde ha uma estreita ligasZo com o mercado. Entretanto, mesmo considerando a existéncia de uma significativa relagao com mercado, nogio de trabalho familiar e satisfasdo das necessidades da familia asseguram ainda a validade das ideias de Chayanov. Neste sentido, Grisa e Schneider (2008) mostram a importancia que a produg3o para o autoconsumo familiar tem nas propriedades rurais do Rio Grande do Sul. Conforme esses autores, a produsio ¢a troca de produtos para autoconsumo é uma pritica recorrente entre os agricultores. Essa forma nio exclui a ideia de uma agricultura camponesa, mesmo que a propriedade produza parte dos bens exclusivamente para o mercado! Na Franga, a denominasio camponés sempre foi muito utilizada para demarcar um tipo de agricultura baseado na explorasio familiar. Se o termo, hoje, nao é mais utilizado com a ‘mesma énfase, nao ¢ porque o camponés tenha desaparecido, mas, porque foi substituido pela denominagio de “agricultor familiar” ‘As camponesas ligadas a0 MMC nao concordam com essa visto de que o camponés “esta um passo atris” em relago aos agricultores familiares. Nao consideram o campesinato um modo atrasado ou com menor inserso no mercado. O diferenciam da agricultura familiar de campesinato, sendo este ultimo compreendido como um modo de produsio diferenciado, mas, zunca inferior. As falas a seguir foram gravadas na abertura da 11° Assembleia Estadual do Movimento de Mulheres Camponesas', que ocorreu na cidade de Xaxim, na regifo Oeste, em agosto de 2010. Esta assembleia significou um momento erucial para minha pesquisa, pois, neste momento em especifico,o movimento assumiu explicitamente sua posigzo feminista ‘Muitas coisas jé foram contempladas pelas que me antecederam, ‘mas uma coisa que eu queria aqui colocar em relagio & nossa ident- dade camponesa,o camponés, 0 verdadeito camponés, cle nao pre: Ream Gaver 3 Tato exclusivos pata mercado aqui dos bens come a svinocultura& avieulura — integradas—«, também, a produgio de fam ce #0 destinadas totalmente de agoindictrn. 4 Nota-se aqui que mesmo com a mudanga de nome para MMC, o movimento mantém como seleréncia todas as assembleias etadhiaisrealizadas partir do surgimento do MMA. Ieeo demonstra que identidade propria no estado de Santa Catarina, apesar de ter se tomado nacional, REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 ten came cisa de interferéncia de fora, ele planeja sua unidade de produsio, mito diferente na agricultura familiar, que ele apenas faz 0 que fs outros planejam. E o camponés, ele planeja a sua unidade de produsio, ele nao precisa de interferéncia de fora, E nesse sentido, rnés temos que dizer, temos que avangar bastante ainda para nés de fato sermos verdadeitos camponeses (Fala de abertura do 11* Encontro Estadual do MMC ~ Xaxim - 21 2 23 agosto de 2010). Na fala desta militante fica claro que o conceito de camponés para o movimento est sendo construido, a partir dos campos politico ¢ intelectual para a pritica efetiva destas mulheres em suas propriedades. ‘Ainda durante a abertura desta assembleia, Justina Cima, uma das liderangas mais antigas do movimento, se refere 20 ira familiar como uma forma de subordinar conceito de agricul a agricultura camponesa. Ela fala das diferengas entre esses dois modelos e qual a opsio que orienta o MMC. E camponesa, pra nés, vou repetir aqui, que camponesa é toda aguela que produz a comida, 0 alimento para o auto sustento, porque nés nao gostamos do termo subsisténcia porque parece que nds temos que subsiste, nds queremos 0 auto sustento e a renda E a renda suficiente pra qué? Para ter cultura, pra ter laze, pra ter educagio, nesse sentido. © ongulho de ser agricultor camponés, porque tem também algu- ras enrolagbes na histéria: para matar a agricultura camponesa, entrou o termo agricultura familiar tudo misturado, Porque o re- gime,o jeito de trabalhar, é familia, isso € verdade. Mas a agricul- tura é camponesa [...]. Agora depois que ps também o conceito no sentido de dar uma misturada, uma embaralhada na nossa ca- beea, misturando a histéria da agriculeura familiar e agricultura camponesa ¢ tudo mais, também foi se instalando junto com isso as integrasdes ¢ ai vai um pouco nesse sentido (Fala de abertura do XX’ Encontro Estadual do MMC ~ Xaxim - 21 a 23 agosto de 2010), Algumas caracteristicas de um conceito elissico podem permanecer, com algumas adaptagoes. Para diseutir o conceito de camponés utilizado pelos movimentos sociais temos que ir para além do conceito cléssico ou do conceito académico do termo. Neste sentido, parto da ideia de que a ressignificagio do conceito, claborado pelo MMC, servin para que se conseguisse abranger a diversidade de participantes, jé existentes ou potenciais, dentro do movimento, Essa mesma ressignificasio foi realizada pela Via [REVISTA GRIFOS-Noaae aus ‘Campesina para justificar a pluralidade dos movimentos que a compéem ¢ para dar um carter mais politico a rede formada, ‘Conforme Vieira (2009), nao ha um consenso entre os membros, da Via Campesina sobre o conceito de camponés. Hi, no entanto, caracteristicas que se entrelagam, como trabalhadores do campo € 0 que os distingue dos trabathadores urbanos, ea ideia de um conceito politico, ou seja, caracteristicas que retomem a ligasio que esse coneeito teve no Brasil, com as Ligas Camponesas e, em. ‘outros paises, com o campesinato que empreendeu lutas sociais. A ideia de camponés remonta as Ligas Camponesas no Nordeste ¢ é associada 4 luta pela terra. Trata-se mais de uma designacio politica do que uma categoria de anilise, Porto Siqueira (1994, p. 79) discutem a utilizagao dos conceitos de campesinato e de pequena produgio no Brasil, a partir da década de 1950. Nesse momento, com relagao 4 dimensio politico- social, as anilises estavam centradas em dois blocos distintos, de uum lado latifundiarios e do outro camponeses. Assim, todos que nao fossem latifundiarios‘ eram considerados camponeses. Na dimensto politico-ideologica, a utilizagio do conceito remetia as lutas empreendidas no campo, especialmente em relagio as Ligas Camponesas. Na década de 1970, com 0 processo de modernizasio do campo, também a utilizagio dos conceitos se alterou. OQ conceito de pequena produsio foi sendo utilizado numa tentativa de substituir o de campesinato. Nota-se, conforme as autoras, que 2 utilizagio do conceito de pequena producio contribuiu para uma despolitizagio no que se refere a discussio da questio agriria no Brasil. Na década de 1980, hé uma tendéncia em se utilizar categorias empiricas em substituigao aos conceitos de pequena produsio e categorias de camponés para as dimensdes politico-ideolégicas, tal como nos casos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os Atingidos por Barragens, Assentados, ete. ‘Coma filiasao do MST a Via Campesina, a partir do final da décadade 1990 até hoje,esse movimento passouaseautodenominar camponés, mesmo mantendo antiga denominagio. A critica feita a0 conceito de agricultura familiar por alguns movimentos sociais se refere a0 fato de que a mesma abrange também todas as formas de produgao que nao sio patronais. Neste sentido, assume-se a posigio de que a agricultura familiar corresponderia aos que estio inseridos mais fortemente ‘a0 mercado ¢ campesinato representaria aqueles cuja relago com ‘0 mercado € menor. Se formos considerar apenas este aspecto, Team Gaver 5 E importante lembrar que 1 stom utllzam 0 tome adfundiro, porém aq oO Intifindi, mas tambes ts grandes propiedaes prods REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Revista Cor a proposta desse trabalho estaria resolvida e nao haveria motivo para polémicas entre os dois conceitos apresentados. No entanto, entre as mulheres do MMC que se autodenominam camponesas, ha aquelas cuja unidade de produgao familiar esta fortemente inserida ao mercado, Para nao se excluirem, passaram a ignorar esse conceito clissico, adotando um significado de luta para © conceito de campesinato e a ideia de uma agricultura camponesa associada a agroecologia. A produsio agroecolégica hoje, embora esteja voltada para um importante nicho de mercado, nem sempre é suficiente para sustentar a familia. Entretanto, este aspecto para as mulheres do MMC nio é problema, porque sio camponesas também aquelas cujos maridos utilizam agrotéxicos nas lavouras, desde que nao atinjam a horta familiar. Uma camponesa relatou em um encontro do MMC que seu marido aplicou agrot6xico préximo aos canteiros de tomates que ela cultivava. A reagio dela foi encher um balde com os tomates e jogar aos pés dele, dizendo- Ihe que comesse os tomates envenenados. Com esta reagao, buscou sensibilizar 0 marido para a produsio orginica, especialmente a da horta. No caso dessa militante, que é uma lideranga expressiva na regifo, sua familia se enquadra no que, em alguns de seus discursos aparece, como agricultores familiares de médio porte, ou muito inseridos a0 mercado, fato este que a impede de se autodenominar camponesa, justificando que “camponés é aquele que produz. seu préprio alimento”. Grande parte das mulheres que pertencem ao MMC possuem integragdes com as agroindstrias, seja de suinos, de aves ou leiteira, Quase sempre, quando me refiro a integrasio, destaco os ramos de susnos ¢ aves endo a atividade leiteira que também & uum tipo de integragao. Isso se deve as exigéncias e investimentos nesses ramos que sio maiores do que na produgao de leite. No entanto, também a atividade leiteira vinculada a lacticinios traz uma série de exigéncias aos camponeses, como por exemplo, a venda de uma quantidade minima de leite para alcancar valores mais agregados. Essa medida faz. com que muitas familias abram mao de produzir queijos para o consumo proprio, comprando-os de viinhos que nao comercializam leite. Porém, em comunidades rurais onde a maioria dos agricultores vende leite, 2 oferta de queijos € praticamente nula. Assim, 0 consumo desse produto pode se tornar menor entre as familias, jé que a disponibilidade € pequena. [REVISTA GRIFOS-Noaae aus Na verdade, o MMC ainda esta construindo essa nogio de campesinato, especialmente para se diferenciar do conceito de agricultura familiar tio presente na regiao. Por isso, nio se deve cestranhar alguns entrelagamentos entre os dois termos. Essa questio da agricultura familiar ¢ agricultura camponesa, na formagio que vamos fazer nos dois anos do projeto, nés vamos aprofundar. Porque tem uma diferenga bastante grande da con: 540, por exerplo, da Via campesina, do MST do que é agricultura camponesa e agricultura familiar. Entio exigiria uns dois dias ou mais para que possamos nos entender (lideranga do MMC, maio de 2010), Tal discurso mostra como as mulheres percebem a relagio € diferenga entre os referidos modelos de agricultura. Se, por uum lado, aceitam em partes, 0 pequeno agronegécio, por outro, sio extremamente contririas as priticas do grande agronegécio, Justificam também que o modelo de agricultura camponesa é ‘mais voltado para a agroccologia Reside nessa nogio também a énfase em que a agricultura camponesa se preocupa mais com o bem estar, pois produz alimentos saucliveis, Mais uma vez. aqui, a conotagio politica do conceito de camponés se mescla, para elas, com principios do ecofeminismo, 20 enfatizarem que as mulheres tém mais cuidado com a satide do que os homens, porque geram a vida e cuidam da vida Nestadires2o,parao MMC, sto justamente os conhecimentos © as priticas que diferenciam a agricultura camponesa da agricultura do agronegécio, Delgado (2005, p.66) mostra que 0 agronegécio € modelo de agricultura priorizado pelo governo brasileito. Para ele, essa opsio gera dois campos bem distintos, de um lado 0 agronegécio altamente desenvolvido e de outro um campesinato marginal. E importante ressaltar que o conceito de campesinato ressaltado pelo autor nio coincide necessariamente com o dos movimentos sociais, o que néo invalida seu raciocinio. Ao viabilizar-se como orientasio concertada de politica econdmi a, agricola, ¢ externa, imiseuindo-se também no campo ambien- tal, agrava o quadro da exclusio no campo agririo. Esse “ajuste” praticamente prescinde da forga de trabalho assalariada néo es pecializada ¢ da massa de agecultores familiares nao associados 20 agronegécio (te8s quartos do total). E também um arranjo da economia politica que rearticula 0 poder politico com o poder Team Gaver BE REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 ES Ran Gane econdmico dos grandes proprietitios rurais. Nesse processo, converte-se 0 campesinato em imenso setor de subsisténcia, nao assimilavel ao sistema econdmico do préprio agronegécio ou da economia urbana semi-estagnada (DELGADO, 2005, p. 84) Esse modelo agroexportador, se assemelha muito com o antigo modernizagio conservadora da década de 1970. Se, naquele momento, 0 que se impunha eram as sementes hibridas, a tecnologia em maquinaios agricolas ¢ os insumos agricolas, nesse 4 principal alteragio sio as sementes transgénicas em substituigdo as hibridas, e 0 volume ainda maior de dependéncia em relasio as sementes compradas. Nesta diresi0, 0 Movimento de Mulheres Camponesas pretende, mesmo que a partir deste ‘modelo, mostrar as alternativas possiveis indado_no agronegécio, nodelo caracterizado como Desta forma, o MMC ao buscar alternativas, tenta mostrar algo diferente a partir de praticas de recuperagio das sementes dos produtos bésicos de sua alimentasio ¢ a busca do saber sobre ervas medicinais, em contraposiggo aos_medicamentos alopiticos prescritos pela medicina oficial. Mais do que um discurso, tais priticas representam a luta contra a hegemonia do mercado. O fato de muitas mulheres fagam parte de uma cadeia do agronegécio associada 4 produgio de animais para as agroindiistrias de carne, nao as exclui de serem camponesas, bem como nio significa a concordancia com este modelo. Através de seus depoimentos percebe-se que, se produzem suinos ou aves para uma grande empresa, 0 fazem como um modo de garantir 6 sustento de suas familias e a manutengao de suas propriedades, tanto para o presente como para garantir heranga aos filhos ou financiar estudos a eles © campesinato como forma de resisténcia para o MMC Como destacamos anteriormente, adotar 0 conceito de camponés possui para o MMC um sentido de resistencia, Esta pode se referir a muitos aspectos, mas nos deteremos aqui a uma resisténcia contra o modelo hegemdnico do agronegécio, conforme enfatiza Delgado (2005). Para essa discussio, tomo como base a contribuigao de Jan Douwe Van der Ploeg, pesquisador holandés ¢ autor da obra “Camponeses ¢ impérios alimentares: lutas por autonomia ¢ sustentabilidade na era da globalizagio". Ao tratar sobre 0 conceito de recampesinizagio, o autor busca mostrar [REVISTA GRIFOS-Noaae aus as estratégias que garantem a permanéncia dos camponeses no campo. Da mesma forma, também ressalta a nogio de império alimentar, onde estabelece a diferensa entre os camponeses ¢ 0 modelo que sustenta esses impérios alimentares Ploeg (2008, p. 286) considera o império alimentar como “um principio orientador que se expressa em e através de muitas entidades e relagdes diferentes’, Para este autor, 0 “Império” alimentar no esti expresso somente nas grandes corporasoes mundiais que dominam significativa parcela da distribuigio de determinados alimentos, como a Nestlé, por exemplo, mas, ‘também nas reservas de alimentos no mundo, nas pesquisas que sio desenvolvidas pelas universidades e pelas empresas de pesquisa estatais, Hé nisso tudo uma inter-relasio entre campesinato ¢ império, onde 0 campesinato soffe, na visio deste autos, txés tendéncias altamente destrutivas. A primeira se refere a privagio de recursos aos camponeses, sejam recursos econdmicos com a climinasio de linhas de créditos para determinadas culturas, seja 4 privagio de recursos naturais como a Agua, seja pela introducio de produtos mais baratos no mercado, A segunda tendéncia se refere & precariedade vivenciada pelos camponeses no mundo, tanto nos paises ricos como nas nagdes em desenvolvimento. A percentagem de camponeses que nao atingem a renda minima difere em paises como a Holanda e 0 Quénia, por exemplo, porém © problema existe em toda parte e afeta o campesinato como um. todo. A terceira tendéncia ¢ decorrente dos diversos processos que vém ocorrendo na agricultura mundial, tanto a introducio de novas mercadorias (aquelas que vém substituir a producio camponesa), como a terceirizasio da produgio de certos bens No processo de terceirizagao esta incluso também a busca pela produsao cada vez. mais barata e realizada em qualquer parte do mundo, assim como ocorre com bens de consumo. Dessa forma, 1s baixos pregos oferecidos em paises mais pobres nao somente afetam os camponeses nativos, mas também o de outros paises cuja produgdo Ihes foi subtraida para ser transferida a lugares onde o custo de produgao é bem menor. Assim, como na introdug20 das teenologias durante a revolusio verde, as tecnologias introduzidas na atualidade tém como caracteristica principal o “novo”, nio importando as consequéncias dessa novidade, pois para o império o que importa € que esse “novo" seja considerado melhor do que aquilo que ele vvem substituir, segundo os que decidem sobre a politica econdmica Tania Garon REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Revista Cor (PLOEG, 2008, p. 288). Do mesmo modo, as sementes hibridas, que foram introduzidas ha mais de 40 anos na regio oeste de Santa Catarina, sio agora substituidas facilmente pelas sementes transgénicas, mesmo que os agricultores produzam em pequena quantidade ou apenas para a alimentagio de animais de lactagao. Ploeg (2008, p. 289-290) escreven sobre a realidade de regides diferenciadas, como a Holanda, o Peru e o estado do Rio Grande do Sul, no Brasil. Ele exemplifica casos destas regides que demonstram a resisténcia do campesinato frente ao que considera © império. Demonstra, por exemplo, como um camponés na Holanda utiliza uma ferramenta jé bem antiga para a eliminacio de ervas daninhas em meio a pastagem, o que, segundo o autor, pode ser considerado como uma técnica antiquada para muitos. Mas para aquele camponés nfo &, pois este esté evitando a utilizasio de agrotéxicos para combater as ervas que prejudicam suas pastagens. Dessa maneira agrega mais valor ao seu leite, além de nao prejudicar sua propria satide ou a dos consumidores ¢, ainda, elimina custos na produgao, o que garante um ganho maior. Um segundo exemplo retrata uma familia de Catacaos, no Peru, que vive em uma Unidade de Produgi0 Comunitéria Se comparado aos camponeses holandeses, esse casal vive em condigées de precariedade, no entanto, suas condigées sto suficientes para garantir uma qualidade de vida que para eles & adequada. Como considera Ploeg, ha uma autonomia relativa do casal que Ihes garante produzir seus alimentos sem depender de trabalhar por um salirio muito baixo, seja na agricultura ou fora dela, tinica alternativa na realidade da regio em que vivem. O exemplo do Brasil apresenta 0 caso de um produtor de tomate que processa produto eo transforma em molho pronto. Mais uma ‘ver, a resisténcia 20 império fica clara tanto na industrializagio de sua produgio, como na diversificasao da propriedade, que garante que os principais alimentos consumidos pela familia sejam produzidos ali mesmo. Estes exemplos relatados por Van der Ploeg demonstram priticas de resisténcia camponesa em diferentes regides, semelhantes aquelas desenvolvidas pelas mulheres do MMC. A recuperasio e a produgio das proprias sementes e a utilizagio de técnicas naturais para o controle de pragas sao formas de autonomia frente is indiistrias produtoras de sementes e agrotéxicos. Durante 0 tempo em que estive reunida com as mulheres, ocorreram momentos de trocas de “teceitas” alternativas, por [REVISTA GRIFOS-Noaae aus ‘exemplo, ao combate aos insetos. E importante enfatizar, que tais conhecimentos sio socializados e publicitados nos informativos do movimento, O império, conforme Ploeg (2008, p. 294), utiliza estratégias que criam uma invisibilidade dos camponeses com a criago dos “nao lugares” para a produgio, ou seja, determinados produtos sio cultivados em diferentes regides e sua transformagio em subprodutos faz com que as caracteristicas de quem os produziu se percam. Assim, muitos consumidores nao reconhecem como frutos do trabalho agricola as_mezcadorias encontradas nas prateleiras dos supermercados. Até mesmo para os proprios agricultores, tal reconhecimento nao ¢ imediato. Ploeg (2008, p. 296) faz referéncia também & Burawoy para tratar sobre a dimensio utépica do campesinato, Segundo ele, os camponeses tentam criar “utopias verdadeiramente existentes” em ‘oposicio as “utopias imaginarias”. Podemos pensar a recuperacio de sementes como uma utopia resistente na visio de Ploeg, uma vee que estas mulheres sabem que nio vio salvar 0 mundo com cesta pratica, mas vio assim manter viva a sua esperanga. As priticas também mostram 0 que,na visio de Ploeg (2008, p. 299), € um principio camponés. Para este autor, 0 principio camponés consiste em “enfientar e superar as dificuldades para construir as condigdes que permitem a condigio de agente”. O principio camponés também se relaciona 4 subjetividade, ou seja, 4 forma com que os camponeses se identificam com o espaco rural © 0 seu modo de vida A definigio do MMC de agricultura camponesa ¢ feminista E comum ouvir, seja nos depoimentos das militantes, seja nos discursos dos eventos do MMC ou em seus materiais escritos, que o MMC é um movimento camponés ¢ ferinista No que se refere a camponés, jé demonstrei anteriormente como ‘© movimento significa esta compreensio. Jé, em relag2o & sua posigio feminista, esta é bastante recente, Foi na 11 assembleia do MMC, em 2010, que percebi essa aproximagio com 0 discuss feminista, que quase sempre vem acompanhado do termo camponés. Observa-se nesta posicio uma aproximagio a principios do feminismo marxista, mas sempre relacionados a sua codigo de mulheres camponesas. Tama Gaver REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 ara nés, do Movimento das Mulheres Camponesas, o nosso fer- Jnismo vai pra além das relagdes de géncro: uma proposta, & um projeto de sociedade, que enfrenta a cultura patrazea, a opressio que nds sofremos dos homens e tudo, ¢ também a lita contra 0 capital ea construgio de um projeto de sociedade com mais igual dade, que € 0 nosso sonho. Continuar afirmando que um dia nés queremos uma sociedade socialist, que pra nds a sociedade so- cialista € uma sociedade igualitita, dsteibuigio de renda, que todo undo tenha tera, ¢ 08 dizeitos. Entio, nés, na nossa avaliagio, € trabalhar um pouco essa questio, que quando falamos de femi- nism seja 0 nosso feminismo (Fala de abertura do XX Encontro Estadual do MMC - Xaxim - 21 223 agosto de 2010). Aafirmagio de um feminismo diferente, 0 nosso feminismo”, é construido tendo como referéncia as suas condigées de mulheres camponesas, que ainda precisam lutar muito contra a opressio de género. Entio, a agricultura camponesa feminista é quando as mulheres viram que jogando as sementes pela janela dava pra produzir, nio wm em dinheiro mas sim pensaram pela continuagio da essa é a diferenga, E-nés, hoje, a gente esté no movie ‘mento para que a gente possa entender, o movimento faz a gente entender melhor o que é feminismo. Entdo, essa é uma questao que inés temos que levar em conta: o feminismo, o que é a diferenga do machismo, A gente nio quer tomar a frente de ninguém, mas ques sim, firmar e lutar denteo do movimento, ¢ fazer a luta para que a gente possa melhorar a nossa situasio, para que as mulheres tenham mais a ver, possam falar. Entio, aqui é um espago que 0 movimento propée para que cada uma possa colocar as suas ideias agui (Fala de abertura do XX Encontro Estadual do MMC Xaxim - 2123 agosto de 2010) E interessante perceber que, com pouco menos de 30 anos de histéria, o MMC se assume enquanto um movimento feminista, sendo que na pritica sempre o foi. Sua histéria ¢ marcada por posturas feministas. Ocupar os gabinetes dos deputados federais e senadores em Brasilia para garantir a votagio dos direitos previdenciscios, foi uma iniciativa de mulheres e foi concretizada por elas. Comparo esta conquista a aso em prol da aprovacio do Pronafe da diminuisio de juros deste programa na década de 1990. Se nesta tiltima as mulheres participaram através de seus sindicatos, na primeira, toda a organizagio partiu delas, 0 que caracteriza a especificidade do movimento em relagZo as questoes de género, Essa relagio com o feminismo, expressada em seus discursos mais recentes, evidencia mudancas estruturais que vém ocorrendo nas relagdes sociais, mas também mostra uma nova postura nos cespagos coletivos dos movimentos sociais do campo. As mulheres jf ndo se sentem intimidadas ao se assumirem como feministas, ¢ da mesma forma que ressignificam © conceito de camponés, também adotam um feminismo com caracteristicas particulares, voltado para a agroecologia, produgio de alimentos saudaveis, luta contra 0 agronegécio, bandeiras estas que contribuem para o que considero como 2 postura ecofeminista do MMC. Um bom exemplo disto pode ser percebido em suas publicagdes, A cartilha elaborada para preparar a 112 Assembleia estadual do MMC/SC, através de encontros de mutheres nas comunidades rurais, tem como tema do primeiro encontro “Construindo nossa identidade de mulher camponesa e lutadora” Para os encontros ¢ sugerido que as mulheres levem simbolos que retratem a sua vida de camponesa como chapéu, lengo, ferramentas de trabalho, plantas medicinais, sementes, ete. Apés a realizagio de uma dinimica onde sio utilizados os simbolos que @ representam, se discutem os prineipios do MMC, enquanto um movimento auténomo, camponés, feminista e socialista, Nesta diresio, as mesmas so questionadas sobre o que entendem por identidade camponesa e feminista, realizados momentos de estudo, onde ‘Muitas vezes, passa pela nossa cabega que ser feminista€ ter ati tudes opressoras e dominadoras, semelhante ao machismo. Para 0 ‘Movimento de Mutheres ser feminista€ ser mulher que luta pelos direitos, que lnta pela igualdade entre as pessoas e pela transfor masio da sociedade ‘Tem virias formas de entender o significado da palavra identidade. Para nés do Movimento de Mulheres camponesas ~ MMC, iden- tidade camponesa € um processo de ibertagio pessoal e coletiva Entio o projeto de sociedade esti relacionado com a nossa iden tidade camponesa. Isto quer dizer: me identifico com as mulheres ¢ famflias que produzem alimentos saudaveis, praticam a agroceo- logia, recuperam sementes crioulas, plantas medicinais e nativas, protegem as fontes e nascentes, enfim, cuidam da biodiversidade como um todo ara nds, mulheres organizadas, ser um movimento camponés é produzir alimentos saudiveis para o auto sustento da familia e a sgeracio de renda. As mulheres tém um papel fundamental no for- talecimento da agroecologia, pois sempre cuidaram da diversidade evista Garon REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Eaten can plantando de tudo. Tentidade camponesa feminista 6 também quando as mulheres que produzem alimentos saudaveis e Intam pelos ditetos se en- contram paca refletir sobre suas vidas (Cartlha do MMC). Em outra cartitha cujo tema trata sobre “MMC: organizar a base, produzir alimentos saudiveis e construir caminhos de libertasio” (2007), material também utilizado como referéncia para formacio, se explicita o objetivo de divulgar o projeto de alimentagio saudével e também de estimular a participagio das mulheres no projeto politico do MMC. Os dois primeitos encontros se propdem a discutir a “miso camponesa” de produzir alimentos saudaveis, e da resisténcia e sabedoria da mulher que devem ser utilizadas em defesa da vida. © MMC vem construir junto com as mulheres camponesas 0 sentido politico da resistencia organizada, da resisténcia oculta, do cotidiano das mulheres camponesas marcado pela resisténcia ¢ pela uta permanente em defesa da vida. Como as mulheres foram sibias ao longo da hist6rial Sabem muito bem a importincia, o* istérios ¢ os segredos relacionados & vida! Por isso, mantém este poder de resisténcia, o poder que vem de denteo, de base, de orga- nizagio, de um projeto de vida e de luta por uma nova sociedade (MMC, 2007), Nesta passagem, se observa um discurso mesclado_por valores religiosos e politicos. Ao mesmo tempo em que ressaltam a importancia da mulher na valorizasio da vida, enfatizam a luta por um novo modelo de sociedade. © capitalismo nao somente € responsivel pela opressio de classe, como também contribu para a opressio de género. © movimento em seu discurso se coloca contritio a estes tipos de opressio, contra uma estrutura dominante, enfatizando como alternativa a defesa da vida, evidenciando a relag2o que 0 movimento possui historicamente com as bases da’Teologia da Libertagio. O primeiro capitulo da revista “Mulheres camponesas em defesa da saiide e da vida" (2008) apresenta um texto intitulado “Mulheres: historias de dor, resisténcia e emancipasio”, em que descreve a hist6ria das mulheres e sua relacio com a histéria dos camponeses. A descrigdo, objetiva e resumida, demonstra como as mulheres participaram desde os primérdios da humanidade até os dias de hoje na produgdo © na luta pelos seus direitos. [REVISTA GRIFOS-Noaae aus No fechamento desta discussio, 0 movimento afirma a luta feminista, tendo como base uma perspectiva popular, socialista ¢ agroccolégica (© movimento de Mutheres Camponesas afirma a Tuta feminista, popular na perspectiva socalista e agroecoldgica, construindo uma nova sociedade com novas relages. Estas novas relagées supoem compartithar o poder, as riquezas e o saber, superando a domina 20, opressdo, a exploracao e a violéncia cultivando o respeito & preservacio entre os seres humanos e deste com a biodiversidade, a natureza (MMC, 2008) inicio das mobilizagdes do MMC, pela forte presenga da Igreja, o tema do feminismo era considerado tabu dentro do movimento. Embora as mulheres tivessem uma pritica e postura feministas, isso nao era demonstrado em seus discursos e materiais de formasio. Quando afirmamos que as mulheres camponesas ja apresentavam uma postura feminista mesmo antes de assumirem cexplicitamente tal termo em seus discursos, entende-se que estas, estio relacionadas a um feminismo com viés socialista, onde 0 movimento ja debatia questoes relacionadas & classe e género, Encaminhando a discussio O Movimento de Mulheres Camponesas se reconhece como um movimento social, entretanto, suas praticas recentes vio além desse movimento mais politico. OQ MMC exerce sobre as camponesas a fungao de uma organizaso que libertou as mulheres do papel invisivel de trabalhadoras rurais, a0 lutar pelos direitos trabalhistas e pelo reconhecimento da profissio de agricultora. A organizagao e a troca de experiéncias nos encontros, nos cursos, nas assembleias e passeatas fez com que muitas mulheres se conhecessem como mulheres com direitos iguais aos homens € nao mais submissas. Alem de assumirem a igualdade de direitos, a vivéncia no movimento proporciona 4 mulher o olhar em tomo de suas subjetividades e particularidades, como por exemplo, em relasao 4 importincia da saide da mulher, onde se discute sobre as doengas «que as acometem, como se prevenir e como questionar a atitude dos médicos que atendem as pessoas com indiferenga. © MMC surgiu em Santa Catarina com o objetivo de serum movimento em que as mulheres agricultoras pudessem expressar evista Garon REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Revista Cor suas ideias e promover suas lutas em busca de direitos. Durante sua trajetéria, destacam-se momentos importantes e particulares. Em um primeiro momento, as lutas pelo reconhecimento profissional, que possibilitaram as mulheres do campo se tornaram ‘produtoras rurais’, ampliando as lutas pelos direitos trabalhistas € © reconhecimento de uma identidade. Se no primeiro, 0 reconhecimento como agricultora nos blocos de produtor, nos registros de casamento ¢ nas certidées de nascimento dos filhos valorizou o trabalho realizado pelas mulheres, no segundo, essa valorizasio foi institucionalizada e considerada um direito. Outro momento importante ¢ marcado pela insergio da discussio de género no movimento. As questées ligadas aos direitos trabalhistas eram urgentes e foram colocados em primeiro plano, mas acabaram por suscitar questoes mais abrangentes, nfo somente em relagio a discriminasio das mulheres, mas também ao receio de enftenté-la. A participas2o no movimento estimulou muitas mulheres a vencer 0 medo de enfrentar maridos © comunidades machistas. Assim, agricultoras se tornaram liderangas politicas, contrariando os proprios “companheiros” de partido que néo acreditavam em suas forgas. Outro ponto importante em sua trajet6ria foi a relasao que 0 movimento estabeleceu com outras organizagdes sociais do campo. Ao mesmo tempo em que mantinha sua autonomia através de reunides, assembleias e outras formas de organizagio, participava ¢ ainda participa das lutas por politicas.puiblicas para os camponeses/agricultores familiares, juntamente com os sindicatos de trabalhadores rurais, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabathadores sem ‘Terra (MST), além de movimentos urbanos, especialmente de mulheres. Além disso, buscou a articulasio com os outros movimentos de mulheres trabalhadoras rurais, especialmente com 0 Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), do Rio Grande do Sul. Da articulagio com os demais movimentos de mulheres trabalhadoras rurais é que surge 0 MMC que, embora seja uma onganizagio que agrega movimentos de varios estados do Brasil, manteve sua identidade propria em Santa Catarina. Para além desta articulasio politica do MMC, o que busquei destacar neste artigo foi a importancia da fase experienciada a partir do ano de 2001, periodo em que o MMC, além das lutas, empreende priticas concretas. Na verdade, as priticas que busquei destacar sempre estiveram presentes no cotidiano das mulheres, [REVISTA GRIFOS-Noaae aus como por exemplo, 0 cultivo de ervas medicinais. Entretanto, tal pratica anteriormente nio se caracterizava como projeto politico do movimento, Esse fato esta relacionado a mudangas que o meio rural na regio oeste passou nas tiltimas trés décadas, que tiveram, como consequéncia a diminuigio do cultivo de diversas variedades de alimentos que antes eram comuns 4 mesa das familias rurais. Coube ao MMC fazer o resgate desses cultivos. rato essa fase do movimento como algo diferente porque a discussio feminista toma o primeito plano, sem que a discussio de classe ¢ luta popular sejam abandonadas. Ao mesmo tempo, ocorte a auto identificasao das mulheres enquanto camponesas, quando da reconfiguragéo do movimento junto a Via Campesina, significando desdobramentos politicos importantes no confronto com 0 modelo econdmico do agronegécio. Estes dois aspectos estio interligados e revelam que as mulheres camponesas, em seus diversos depoimentos, se auto definem como ‘camponesas, além de expor como conseguem compor essa definisio ‘mesmo em situagdes diferentes. Assim, é camponesa a mulher que cultiva sem agrotéxicos, porque o modelo de agricultura camponesa idealizado por elas € agroecolégico. Ao mesmo tempo, observa-se que este projeto é construido em meio a contradigdes e desafios, na medida em que em suas propriedades, seus maridos ainda utilizam, agrotéxicos na produgio de outras culturas convencionais, 0 que toma a transigio para um modelo alternativo um processo lento devido aos anos de imposig’o do mercado sobre os agricultores, principalmente no que se refere ao uso de insumos. Mesmo neste contexto, € camponesa a mulher que faz regaste de sementes crioulas € busea produzir grande parte dos alimentos consumidos nna propriedade. Mas também nao se excluem aquelas que possuem integrasbes, porque este ainda é “um mal necessirio” para muitas familias se manterem no campo. Para resolver o impasse, classficam, dois tipos de agronegécio: 0 que visa apenas lucro (dos grandes produtores, dos monocultivos ¢ dos empresirios) ¢ 0 dos agricultores familiares, que ainda mantém vinculo com atividades convencionais ‘que visam a permanéncia no campo, No que se refere as atividades produtivas em que as mulheres estio. vinculadas, destacam-se interpretagées diferentes entre as principais liderangas. Assumi essas diferengas como sendo proprias de seu papel social. A renda principal de algumas liderangas nao vem da agricultura, outras possuem integragées, outras jé séo aposentadas ¢ também ha aquelas que produzem evista Garon REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 BS kan Gane somente com base na agroecologia. Essa diversidade se reflete nas suas concepsées de agricultura camponesa Este modelo de agricultura camponesa proposto pelo MMC € sustentivel, na medida em que busca a agroccologia, a protecio do meio ambiente (elas tiveram formasio sobre o Bioma Mata Adantica para aprender a preservar ea recuperar areas degradadas), € a recuperasio nio somente de variedades de alimentos como também de algumas tradigdes que foram se perdendo com a modernizagio da agricultura, tendo em vista um novo projeto de sociedade, o enfrentamento da cultura patriarcal, a luta contra o capital e a construgio de uma sociedade mais igualit Para nés, do Movimento das Mutheres Camponesas, 0 nosso feminismo vai pra além das relagies de género: € uma proposta, € um projeto de sociedade, que enfrenta a cultura patriarcal, « opressio que nds sofremos dos homens e tudo, ¢ também a futa contra o capital e a construgio de um projeto de sociedade com. sais igualdade, que é 0 nosso sonho (geifos da autora) Trata-se da construsio de um modelo de feminismo que se adequa as necessidades que sio sentidas pelas camponesas, de luta por espaco dentro da propriedade e das relagées sociais, mas também um feminismo que busca mais do que direitos para as mulheres, busca transformagées de relagdes que vio além das diferengas de sgénero, se caracterizando como transformasées politicas. Neste sentido de uma transformasio politica ¢ cultural, se destaca o projeto de resgate de sementes crioulas de hortaligas que permeia diversas esferas, como a da agroecologia, da seguranga e da soberania alimentar. E importante destacar que essas bandeiras de luta sio também as bandeiras da Via Campesina e do MPA, além de movimentos que primam pela produgao agroecolégica c/ou organica. O resgate de sementes crioulas, de hortaligas ¢ de outros alimentos pode também ser percebide como um modo de recampesinizasio, conforme coloca Ploeg (2006, p. 47). Nao € um retomo ao passado, mas uma “reconstituisio de relagses ¢ elementos (velhos e novos, materiais e simbélicos) que ajudam a encarar o mundo moderno[...] de forma mais adequada e atrativa’. No que se refere & valorizasio pessoal das mulheres ou a sua autoestima, constatou-se que a participasao no movimento é muito significativa para estas mudangas, conforme demonstram os depoimentos apresentados, caracterizando também importantes da identidade camponesa mudangas em relasio a valorizasio [REVISTA GRIFOS-Noaae aus como contraponto A ideia generalizada e de senso comum de que ‘0 camponés e a camponesa seriam “atrasados”. Observou-se também, que as mulheres possuem um discurso derivado, em grande parte da Igreja, ou melhor, de sua influéncia sobre elas, Isso se percebe principalmente nas falas de abertura dos encontros, nos textos que so lidos, nas cangdes € nas misticas apresentadas, Porém, ja se nota um afastamento dos prinefpios religiosos mais rigidos e a incorporagio de ideais advindos de outras vertentes. E essa capacidade de se ampliar, renovar ¢ atualizar que faz do MMC um movimento que nao desapareceu depois das conquistas trabalhistas, como muitos imaginavam, mas que € parte de um movimento mais amplo que luta pela construsdo da cidadania das populagdes rurais brasileiras. Referéncias ABRAMOWAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agririo em {questio. Sio Paulo: Hucitee: ANPOCS: Editora da Unicamp, 1992, BONI, Valdete. Poder ¢ Igualdade: as relagies de género entre sindicalistas rurais — Chapecé/SC. Trabalho de Conclusio de Curso (Cigncias Sociais), Centro de Filosofia e Ciéncias Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianspolis, 2002. CHAYANOY, Alexander V. Sobre a teoria dos sistemas econdmicos indo capitalistas. In: SILVA, Jose Graziano da; STOLCKE, Verena. A Questio agrisia, Sto Paulo: Brasiiense, 1981 DELGADO, Guilherme C.A questio ageisia no Beas, 1950-2008. In: ‘Questio sociale politica sociasno Brasil contemporiineo/ Luciana Jaccoud, organizadora; Frederico Barbosa da Sia... [etal] Bras : PEA 2006. GRISA, Citi, SCHNEIDER, Sérgio. “Plantar pro gasto": a importincia do autoconsumo entre familias de_agricultores do Rio Grande do Sul, RER, Piracicaba, SP, ol. 46, n® 02, p. 481-515, abr/jun 2008 — Impressa em junho 2008, MOVIMENTO DE MULHERES AGRICULTORAS DE SANTA CATARINA. Nossa historia, nossas lutas, Chapecs/SC: MMAVSC, 2000, 24p. MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS. Sementes de vida nas maos das mulheres camponesas; Campanha pela produgio de alimentos saudiveis. Disponivel em: Acesso ‘em 20/09/2007. evista Garon REVISTA GRIFOS- Niwas 2037 Revista Cor PLOEG, Jan Douwe Van der. Camponeses ¢ impérios alimentares: Jutas por autonomia ¢ sustentabilidade na era da globalizasio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. PLOEG, Jan Douwe Van der. “O modo de produgio camponés evisitado”. In: SCHNEIDER, Sérgio. A diversidade da agriculeura familiar. 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Abstract ‘The Movement of Peasant Women (MMC) was created in 2004 as a result of the fasion of several movements of women from the countryside: farmers, sherwomen, and extractivists. Particularly in Santa Catarina, this movement has a history of nearly three decades and during this period, political and structural changes have occurred in the countryside influencing its posture. I intend to analyze & specific aspect of this trajectory, which I regard as the peasant in the movement. How is this concept claborated and justified by peasant women? What is the relationship between feminism and peasantry in the discourse of these women? These issues are discussed taking into account a brief rescue of the concept of peasantry in vogue in academic discussions today. Keywords: Movement of Peasant Women, Peasantry. Feminism. [REVISTA GRIFOS-Noaae aus

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