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A comunicagao humana Diana Pessea de Barros Quando um rio corta, corta-se de vez 6 discurso-rio de agua que ele fazia; cortado, a digua se quebra em pedagos, em pogos de gua, em agua paralitica. Em situagdo de pogo, a agua equivale a.uma palavra em situagao dicionaria; isolada, estanque no pogo dela mesma, e porque assim estanque, estancada; ‘e mais: porque assim estancada, muda, muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de agua por que ele discorria. O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de agua para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloquéncia de uma cheia Ihe impondo interina outra linguagem, ‘um rio precisa de muita agua em fios para que todos os pogos se enfrasem: se reatando, de um para outro pogo, em frases curtas, entio frase e frase, até a sentenga-rio do discurso tinico em que se tem voz a seca ele combate. “Rios sem discurso” Joao Cabral de Melo Neto 1. Lingua como instrumento de comunicagéo Todos nés nos acostumamos a considerar a comunicagao muito importante (Quem ndio comunica se estrumbica), seja para 0 mundo globalizado de hoje, seja para o mundo de sempre, ja que fundadora da sociedade: ‘Nos estudos da linguagem reconhece-se que a comunicacao teve e tem papel essencial. No entanto, esse papel nem sempre foi julgado positivo para a linguagem e as linguas naturais do homem, nem sempre foi ponto pacifico que uma das fungdes da linguagem, como foi visto em capitulo anterior, é a de comunicagao. No inicio do século xx, a afirmagéo de Saussure de que a lingua ¢ fundamentalmente um instrumento de co- constituiu uma das rupturas principais da linguistica saussureana, em relag’io as concep¢ées anteriores dos comparatistas e das gramaticas gerais do século xix. Para esses estudiosos, a lingua era uma representagao, ou seja, representava uma estrutura de pensamento, que existiria independentemente da formalizagio linguistica, e a comunicagao 26 Introducéo 4 Linguistica a “lei do menor esforgo”, que a caracterizam, seriam as causas da “desorganizacao” gramatical das linguas, do seu declinio e transformagao em “ruinas linguisticas”. O por- tugués ¢ 0 italiano, por exemplo, seriam “restos” em decadéncia do latim, Dessa forma, uma das consequéncias da linguistica saussuriana, principalmente entre os funcionalistas como Malmberg ou Jakobson, foi a introdugio do exame da co- municagao no quadro das preocupagées linguisticas, 2. O modelo de comunicagéo da teoria da informagao Para 0 exame da comunicacio luz da Linguistica, vamos tomar como ponto de partida, tal como fizeram os linguistas que inicialmente se preocuparam com a comuni- cagaio, alguns dados que nao provém dos estudos lingufsticos propriamente ditos, mas da teoria da informagiio e da comunicagao. A teoria da informagao exerceu, sobretudo nos anos 1950, forte influéncia na Linguistica. Antes de tudo, é preciso esclarecer que a teoria da informagio, ao examinar a co- municaggio o faz de perspectiva muito diferente da dos estudos linguisticos e com outros objetivos, que, muito sumariamente, diremos serem os da medida da informacdo (qual a quantidade de informacio transmitida em uma dada informagao) e os da economia da mensagem, tratando de questdes como as de codificagao eficiente, capacidade de trans- missao do canal de comunicagao ou de eliminagao dos efeitos indesejaveis dos ruidos. A teoria da informagao tem por fim solucionar problemas também de outra ordem, tais como os concermentes a telecomunicacio, entre outros. ‘Uma das propostas mais conhecidas entre os linguistas foi a de C.F. Shannon, que propée para a comunicagio o esquema que segue, por nds traduzido: fonte de informagio transmissor receptor destino canal > > —| }-—] mensagem sinal sinal recebido ‘mensagem fonte de ruido O esquema da comunicagao comporta assim um emissor e um receptor, divididos em duas ou mais caixas (hé propostas com subdivisdo maior), que separam a codificagio © a decodificagao da emissio e da recepcao propriamente ditas, um canal, isto é, um suporte material ou sensorial que serve para a transmissio da mensagem de um ponto ao outro, ¢ uma mensagem, resultante da codificagéio e entendida, no momento da trans- missdo, como uma sequéncia de sinais. Antes da transmiss%io da mensagem situam-se as Acomunicagao humana 27 operagées de codificagdo, com as quais se constréi a mensagem, e entre a recepgiio e 0 destino, as operagdes de decodificagao, que permitem reconhecer e identificar os elementos constitutivos da mensagem. Os ruidos intervém durante todo o percurso da informagao e fazem diminuir a eficiéncia da comunicagiio. Ruidos sao os diferentes elementos que interferem na comunicagéo. Podem ser fisicos — barulhos, ruidos, problemas no canal de comunicagao, etc. —, psicolégicos — desatengao, desinteresse — ou culturais — proble- mas de cédigo ou de subcédigo, falta de conhecimentos ou de crengas em comum, ete. Em outras palavras, nesse quadro tedrico, a comunicagao, se simplificarmos bastante, é entendida como transferéncia de mensagens, como a transmissao, de um emissor a um receptor, das mensagens organizadas segundo um cédigo e transformadas em sequéncias de sinais. Uma das preocupagdes desse modelo ¢, portanto, a de melhorar a transmissao dessa mensagem-sinal, dessa mensagem pensada principalmente no plano dos significantes (de sua expresso sensorial). Se pensarmos, porém, na comunicagdo entre seres humanos, mais especificamente na comunicagao verbal, oral ou escrita, seremos obrigados a reconhecer que a comuni- cago tem também outros fins ¢ que ha algumas “dificuldades” nas propostas da teoria da informagao. Vamos tratar aqui de trés dessas “dificuldades”, sob a forma de objegdes ou criticas e de possiveis solugdes: (a) simplificagdo excessiva da comunicacao, ou seja, esses esquemas da comuni- cacao simplificam muito a questao da comunicacao verbal; (b) modelo linear da comunicagao, isto é, a comunicagdo, no Ambito da teoria da informagao, é concebida linearmente e diz respeito apenas, ou de preferéncia, ao plano da expressio ou dos significantes (mensagem como sequéncia de si- nais); & (c) cardter mecanicista do modelo, ou seja, as propostas da teoria da informagao praticamente no levam em considerag&o questées “extralinguisticas” ou do contexto sdcio-histérico e cultural, Nosso préximo passo ser, assim, 0 de verificar de que modo os estudos da lingua- gem procuraram vencer as limitagdes apontadas dos esquemas e modelos da teoria da informagao. Dois caminhos tém sido seguidos: o de procurar, de alguma forma, completar ou complementar as propostas excessivamente simplificadoras de comunicagao; o de rever, de um outro ponto de vista, a questo da comunica¢ao, sobretudo em relagao aos aspectos criticados do carater linear ¢ mecanicista dos modelos anteriores propostos. 3. Simplificagao e “complementacao”: as propostas de B. Malmberg e R. Jakobson Bertil Malmberg (1969) e Roman Jakobson (1969), entre outros linguistas ou teoricos da informagao, fazem parte do primeiro grupo. Suas propostas, de alguma forma, procuraram “completar” ou “ampliar”, para que pudesse ser usado para a co- municagao verbal, 0 modelo de comunicagao excessivamente simplificado da teoria da informagao, da teoria da comunicacao ou da cibernética, ou dele aproveitar apenas 28 Introduce & Linguistica os elementos necessdrios ao exame da comunicagao humana. “Caixas” sio assim. acrescentadas ou excluidas. Malmberg (1969) faz uma descrigo tedrica geral do processo de comunicagdo em que, a partir do modelo da teoria da informagao: (a) introduz a Tepresentacdo do cddigo, como um conjunto de elementos discretos, 08 signos, guardados no cérebro (clementos discretos sito aqueles que se definem pela relagao que mantém com os demais, relagao esta que permite que os elementos sejam recortados de uma continuidade sem forma e delimitados uns em relacao aos outros); (b) representa a relagdo de atualizacao das unidades linguisticas, situando-a entre © cédigo ¢ o emissor; (©) mostra a relacdo de estimulagtio que existe entre o universo dos fendmenos extralinguisticos, continuos, ¢ o emissor; (@) mostra que a representagtio da realidade formada pelo receptor nao coincide com a do emissor; e (e) aponta diferentes fases na codificagao e na decodificagao da mensagem, O esquema da p. 29, por nbs adaptado, representa as fases principais de um processo de comunicagao, tal como concebido por Malmberg, e em que a comunicagao continua a ser entendida como a transferéncia de uma mensagem, linguisticamente estruturada, de um sujeito emissor a um sujeito receptor, Entre os linguistas, porém, a mais conhecida das Propostas de “ampliagao” dos modelos da teoria da informagao é, sem ditvida, a de Roman Jakobson (1969). A proposta teorica e os esquemas de Jakobson sero tomados como base das discussdes sobre comu- nicagdo, que serao feitas a seguir. Para Jakobson, na esteira dos estudos sobre a informagio, hé na comunicagéo um remetente que envia uma mensagem a um destinatario, e essa mensagem, para ser eficaz, Tequer um contexto (ou um “referente”) a que se refere, apreensivel pelo remetente ¢ pelo destinatario, um cédigo, total ou parcialmente comum a ambos, ¢ um contato, isto é&um canal fisico e uma conexaio psicolégica entre o remetente eo destinatario, que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicasao. O esquema que segue permite visualizar, mas sem muitos detalhes, a proposta de Jakobson (1969: 123). CONTEXTO MENSAGEM REMETENTE _,_—- OA DE sTINarARIO CONTACTO CODIGO Tgnicio Assis Silva (1972) propée, por sua vez, uma representagtio mais detalhada do esquema de Jakobson (p. 30), retomando os elementos da teoria da informagao naio explicitados por ele, 29 A comunicagéo humans sujeito receptor souswiguog ‘ sour somumnss a enur Gor : 0 | Tous | | coxsmog | | 8 (ema spuos) | | -o1osp s -goisy |_| -nuos) |_| aeno soon 5 ap ei0 fe} -1p000p) 7 ysodsax) [J eiouos ssn 20) g sugnbog | | 0192195 5 optang | | epg apep sreinou oe ers any sosindury pai a - oxdeziiemy (o1qax0 ou sopepren3 souais 9p soyunfiros) so8Ip99 Buequijow ap nwanbs3 Introdugao Linguistica 30 12198 08199 eonsnoe wrodeu ounsag, toxdo00y steuis ap vrougnbos ouros woSesuayy quog, Pals SIss¥ O1DDUB] ep DWeNbsz ropeunsaq Acomunicagao humene 31 Na proposta de Jakobson e na explicitagaio de Assis Silva, as principais contribuigdes foram, sem dtivida, a da relagdo com o contexto, com a experiéncia comunicada ou a ser comunicada, que, como vimos, foi tratada também na proposta de Malmberg, e a questo da representacao do cédigo e dos subcddigos, que examinaremos a seguir. O cédigo se define, nesse quadro tedrico, como 0 estoque estruturado de elementos discretos que se apresentam como um conjunto de alternativas de selec para a produgdio da mensagem. O termo cédigo € utilizado em lugar de /ingua, tanto por causa da definiciio mais restrita acima apresentada, quanto por sua maior extensiio de aplicagio a sistemas linguisti- Cos € nao linguisticos, como 0 cédigo de transito, por exemplo. Emile Benveniste (1976), a0 comparar a comunicaeao das abelhas com a linguagem dos homens, conclui que as abelhas nao tém linguagem, mas apenas um cédigo de sinais, pois nao ha, entre as abelhas, didlogo, retransmissao de informagao, metalinguagem, outros dados, além dos de alimentagdo, articu- lagdo, que sao caracteristicas fundamentais da comunicagao entre seres humanos. Para que haja comunicagiio é preciso um cédigo parcialmente ou totalmente comum ao remetente © ao destinatdrio. Umberto Eco (1974) prevé uma caixa para o cédigo, na comunicagdio entre maquinas, e aponta a necessidade de caixas diferentes para cédigos e subcddigos, tal como explicitado por Assis Silva, no modelo de Jakobson. Os subcédigos, dessa forma, introduzem no esquema da comunicagao a questo da variacdo linguistica, examinada, de diferentes perspectivas, pela sociolinguistica, pela dialetologia ou pela geografia linguistica. Cédigos diferentes impedem a comunicagao (a ndo ser que ela se estabelega por outro cddigo, que nao o verbal, por exemplo, como ocorre na comunicagao gestual entre falantes de linguas diferentes). Assim, ndo houve comunicagao entre uma turista brasi- leira eo gargom de um restaurante, em Buenos Aires, pelo fato de nao falarem a mesma lingua, de no usarem 0 mesmo cédigo. Ao perguntar ao gargom qual era a especialidade da casa, a turista foi encaminhada ao banheiro, pois o gargom, que nao falava ou entendia portugués, interpretou a questdo no quadro das perguntas mais usuais sobre a localizagao do banheiro do restaurante. Mas também a pouca intersecgao de subcédi: igos dificulta bastante a comunicagao. Duas histérias com portugueses ilustram a questo. Ao ouvir de professores universitérios portugueses, em um congresso na Espanha, que tinham feito a viagem de Portugal 4 Espanha de caminhonete, um brasileiro surpreendeu-se muito, até saber que, naquele subcédigo, caminhonete ¢ 0 mesmo que énibus. Outro “caso” & de uma estudante brasileira na Europa, com pouco dinheiro, como em geral acontece com estudantes no exterior, que, em um hotel em Lisboa, tendo sujado a pouca roupa que le- vara, nao teve outro jeito sendo deixar um bilhete A camareira, pedindo-Ihe que mandasse lavar, com urgéncia, sua camisa branca, e que teve, ao voltar ao hotel, a triste surpresa de encontrar sua velha camisola (camisa, no subcédigo de Portugal) bem lavada ¢ passada, © camisa de que precisava, ainda suja ¢ amassada, E ainda teve que pagar por isso. Em outras palavras, quanto maior for a intersec¢ao entre os subcddigos do remetente e do destinatario, mais bem-sucedida sera a comunicagio, ‘Uma segunda questo, nem sempre bem explicitada no exame da comunicagiio & relacionada com a questo do cédigo, ¢ a da valoraciio dos diferentes cédigos e subeddigos e da visio que o usuario tem da sua lingua ¢ das variantes que usa. Bons exemplos, em relac&o as diferengas de cddigo e ds visdes que dele tém seus usuarios, podem ser encontrados nas comunicagées entre brasileiros e argentinos, ou dos franceses com falantes de outras linguas. 32 Introducéo @ Linguistica E fato conhecido que os brasileiros entendem melhor os argentinos do que os argentinos os brasileiros, ¢ se hd razOes linguisticas para isso (o sistema vocalico do portugués e do espanhol, por exemplo), hé também motivos de outra ordem: os argentinos consideram a sua lingua melhor, mais importante e difundida do que o portugués, e nao fazem nenhum esforo para entender os brasileiros. Da mesma forma, os franceses julgam que o prestigio de sua lingua de cultura justifica o esforco dos demais em comunicar-se em francés. Em relacdo aos subeddigos, a questiio é muito proxima da acima apontada, pois ha variantes consideradas mais ou menos prestigiosas pelos usuarios. Além disso, porém, deve-se observar que, nesses casos, de grande diferenga de reconhecimento, nem sempre a proximi- dade dos subcddigos, que dissemos ser necessaria 4 comunicagao, é garantia de comunicagtio eficiente. Observem-se dois casos de “linguistizac&o” da politica no Brasil. Um é 0 de Janio Quadros que usava sempre o registro tenso e formal do subeddigo padrao ou culto em sua comunica¢ao com eleitores, falantes de outro subcddigo, mais popular e desprestigiado. No entanto, mesmo havendo pouca intersec¢Ao entre os subcddigos do remetente e do destinatario, a comunicacao era eficiente, porque o subeédigo de Jénio Quadros era considerado pelos proprios falantes do outro subcédigo, mais prestigioso e, portanto, apropriado a um prefeito, governador ou presidente competente, culto e capaz. Ao contrario, mesmo havendo grande intersec¢do entre o subcddigo usado por Lula eo de seus destinatdrios, a comunicagdo nao era bem-sucedida (na eleicdio Lula vs Collor, por exemplo), pois o subcddigo de Lula era julgado por aqueles que usavam 0 mesmo subcédigo que ele, mas que incorporavam fragmentos da ideologia dominante, como sem prestigio € inadequado a um homem publico. Se as propostas de Jakobson ampliam o modelo da teoria da informacao, sobretudo no que diz respeito aos codigos e subcddigos ¢ a variagao linguistica, sua contribuigéio mais conhecida e igualmente relevante para o estudo da comunicagao est relacionada com a questio da variedade de funcdes da linguagem. Jakobson mostrou que a linguagem deve ser examinada em toda a variedade de suas fungdes, e nfo apenas em relagao a fungiio informativa (ou referencial ou denotativa ou cognitiva), que, por ser a fung&o dominante em certo tipo de mensagem e por ser a que interessa ao tedrico da informacao, foi, muitas vezes, no século XX principalmente, considerada a wnica ou a mais importante. Jakobson retoma o esquema triédico de Buhler para as fungdes da linguagem — fungiio expressiva, fungdo apelativa e funcdo representativa ~e acrescenta-Ihe mais trés fungdes — fungao fatica, fun¢do metalinguistica e func’ poética. As fungdes estariam, segundo 0 autor, centradas em um dos elementos do processo de comunicagao por ele Proposto, ou seja, enfatizariam um desses elementos na comunicagao, conforme o es- quema que segue: REFERENCIAL, (centrada no contexto ou referente) EMOTIVA POETICA CONATIVA (centrada no remetente) (centrada na mensagem) (centrada no destinatério) FATICA (centrada no contato) METALINGUISTICA, (centrada no eédigo) Antes de examinar cada uma das fung6es, e mais particularmente as fungdes talinguistica e poética, que fizeram escola, duas observagdes devem ser feitas: * as mensagens (0s textos) ndo tém apenas uma funcdo, mas varias ou mesmo todas, hierarquizadas, ou seja, ha em cada texto uma fung&o dominante; * Os textos-mensagens empregam procedimentos linguisticos e discursivos que produzem efeitos de sentido relacionados com as diferentes fungdes e que nos permitem, identificd-tas. R ¢ Dessa forma, os textos com fungao referencial, informativa ou representativa empregam principalmente os procedimentos que seguem: uso da 3* pessoa, apresentagao de qualidades “objetivas” ou “concretas” (nao so quase empregados, por exemplo, ad- jetivos subjetivos como lindo ou horroroso, ou modalizadores como ew acho, eu quero © © outros), emprego de nomes priprios e de estratégias argumentativas “légicas” (provas, demonstragées, etc.). Os procedimentos usados produzem sobretudo dois efeitos de sentido, o de objetividade (3% pessoa) ¢ o de realidade ou referente (nomes prdprios, qua- lidades “objetivas” ou “concretas”), isto 6, de apagamento ou distanciamento do sujeito e de verdade dos fatos. Os textos com fungo referencial ou informativa sao, portanto, aqueles que tém por fim, na comunicagao, a transmissao objetiva de informag3o sobre © contexto ou referente de Jakobson ou, em outras palavras, sobre os fenémenos extra- linguisticos de Malmberg ou as experiéncias comunicadas de Assis Silva, Nao se pode, porém, esquecer-se de que objetividade e realidade sio efeitos de sentido decorrentes dos procedimentos j4 mencionados. Os textos abaixo transcritos, reconhecidos facilmente como discursos cientifico e jornalistico, podem bem ilustrar a fungao referencial, assim como uma charge de jornal: a) Todo ato depende de uma realidade desprovida de manifestagdo linguistica. Assim, o ato de linguagem 36 é manifestado nos seus resultados e através deles, na qualidade de enunciado, enquanto a enunciagao, que 0 produz, s6 possui o estatuto de pressuposigdo ldgica. O ato em geral s6 recebe a formulagao Linguistica de duas diferentes maneiras: ou quando ¢ descrito, de maneira aproximada e variavel, nos limites do proprio discurso, ou quando € objeto de uma reconstrugao légico-semantica, que utiliza os pressupostos extraidos da andlise do enuneiado, no quadro de uma metalinguagem semidtica, (Greimas, 1976: 57) No discurso cientifico sto usadas marcas de afastamento do sujeito — 3* pessoa, presente do indicativo — que produzem o efeito de objetividade da ciéncia e que caracte- rizam um texto com fungio referencial e informativa. b) J4 houve 209 sequestros no Estado de Sao Paulo neste ano, nimeto que supera a soma de todos os casos registrados nos cinco anos anteriores. Em média, a cada 35 horas alguém ¢ levado para um cativeiro. No ano passado, a proporgdo era de uma ocorréncia desse crime a cada seis dias. (Folha de Sao Paulo, 11/11/01, p. A 41). Observe-se, da mesma forma, no texto jornalistico o uso da 3* pessoa (com recur- sos de verbos impessoais, como haver, de passiva, em é levado) e de dados “objetivos” (nitmeros: 209 sequestros, 35 horas, cinco anos, seis dias; individualizagao do lugar ¢ do tempo: no Estado de Sao Paulo, neste ano, no ano passado) que produzem os efeitos de objetividade, isto é, de nao interferéncia subjetiva do jornal, e de realidade, ou seja, de coisa acontecida, que nos permite reconhecer um texto com predominancia de fungi referencial ou informativa. 34 Introdugso & Linguistica DB IR LAB TRAZER TODO. CO DINEIO DB VOLTA POS PURUCOS HI if Accharge mostra 0 uso da 3* pessoa, em lugar da 1*, para produzir efeito de objeti. vidade das informagées prestadas pela personagem. A funcdo referencial ndo é a predomi- nante na fala da personagem (predomina a fungdo conativa), mas aparece bem marcada, sobretudo gragas ao procedimento mencionado de emprego da 3* pessoa em vez da 1*. Os textos com fincdo emotiva ou expressiva, por sua vez, usam, de preferéncia, os seguintes procedimentos: emprego da 1* pessoa, apresentacdo de qualidades “subjetivas”, por meio de adjetivos como fantastico, encantador, medonho e outros, ou de advérbios de modo, utilizagao de modalizadores relacionados com 0 saber, como eu acho, eu considero, etc., uso de recursos prosédicos de prolongamento de vogal, pausas, acentos enfaticos, hesitagdes, interjeigdes, exclamagdes. Os procedimentos empregados criam principalmente 08 efeitos de subjetividade e de emotividade ou de presenga ou proximidade do sujeito que relata nao propriamente os fatos, mas 0 seu ponto de vista sobre eles, os seus senti- mentos ¢ emogdes sobre os acontecimentos. Sao, voltamos a insistir, efeitos de sentido das estratégias apontadas. Os textos que seguem ilustram a Tungao emotiva: a) Todo ovo que eu choco me toco de novo. Todo ovo Acomunicagéo humene 35 éacara €acclara do vovo. Mas fiquei blogueada e agora de noite 86 sonho gemada (Chico Buarque, “A galinha”) O texto acima tem, como fung’o predominante, a fungiio poética, mas também apresenta fungdio emotiva, gragas aos procedimentos de 1* pessoa (que eu choco) e a apre- sentagdo de sentimentos e emogdes (me toco, fiquei bloqueada), que produzem os efeitos de subjetividade, de emotividade ou de aproximagiio do sujeito, préprios da fungdo emotiva. byL2 €:: e:: € Ponteio é uma misica maravilhosa alias uma coisa [ Li () misica maravithosa ... 12 linda ... () mesmo tempo que foram C Li pois € mas aj nao ha 12 premiadas as duas nio é? Ll ai a Marilia entio ... ahn ... eh cantou lindamente ... ¢ mais do que cantar eu acho que a Marilia tem uma forga, dramética muito grande o que faz (com) que se suponha nela ... uma atriz dramética que nao foi aproveitada ... (Castilho e Preti, 1987:248) Observem-se no texto 0 uso de adjetivos (maravilhosa, linda, dramdtica, muito grande) e de advérbio de modo (Jindamente), 0 emprego de 1* pessoa, modalizadores (eu acho que) e de estratégias prosédicas (prolongamento de vogais, representado por ::, € pausas, assinaladas por... ), que levam ao reconhecimento de um texto com predominancia de fungao emotiva. c) Dignidade Nao sei de choro ou dou risada. Sou professora da rede publica do Parana e amargo sete anos sem nenhuma reposigio salarial. Meu marido é um pequeno empresirio do setor de informatica, competente tecni= camente e com boas ideias, mas parece que s¢ isso niio basta. Para fermos uma vida, digamios, digna, acho que vamos precisar abrir um banco, pois, pelo que vejo, s6 eles esto conseguindo se manter neste pais, e muito bem por sinal. Por que sera? (Viviane Bordin Luiz, Cascavel, pr) No texto citado, um trecho de carta de uma leitora de jornal, ha marcas de fungao emotiva: 1* pessoa e verbos de “sentiment” (choro, dow risada, amargo). ae Os textos com predominincia de fimgdo conativa ou apelativa, por sua vez, \ constrocm-se, sobretudo, com os procedimentos qué seguem: uso da 2? pessoa, do impera- tivo, do vocativo, de modalizagiio dedntica (dever), de estruturas de perguntas e respostas. Esses textos produzem os efeitos de sentido de interagao com o destinatario, a que se procura / convencer ou persuadir, e de que esperam, como resposta, atitudes e comportamentos, sejam / eles linguistics ou nao. Sao, voltamos a afirmar, efeitos de sentido de procedimentos do tipo dos apontados. Os textos publicitarios citados ilustram a funcdo conativa: a) Vocé ja tem 0 meu cartiio? Entiio deveria ter. Porque o Super Cartio ¢ .. 36 Introducéo a Linguistica O texto usa a 2* pessoa (vocé), os procedimentos de pergunta e resposta (Vocé ja tem 0 meu cartéo?) e a modalizagao deéntica (deveria ter) para construir um texto com fungiio conativa ou de persuasao do destinatario dominante. b)O Itai tem tudo. $6 falta vocé. Abra jé a sua conta Procura-se um cliente mais ou menos com o seu perfil, com a sua idade e que more mais ou menos J na sua casa. O texto emprega a 2° pessoa (vocé) e o imperative (abra) para produzir o efeito de persuasao. A resposta esperada ¢ a abertura de conta no Itai. ¢) Quando no puder passar no banco, é s6 usar o Real Intemet Banking ¢ o Real Internet Empresa, viu seu Luis? Pode ser do sitio mesmo. Sao usados a 2* pessoa, o vocativo (viu seu Luis), a estrutura de pergunta e resposta, para construir um texto com fungao conativa. Se as trés fungdes ja examinadas sio comumente apontadas, as trés outras devem a Jakobson seu exam dro dos estudos linguisticos. Os textos co fino Js usam principalmente procedimentos prosédicos de pontuagiio da fala pard-manter-o-Contato fisico c/ou psicolégico entre os interlocutores (uhn, ha), formulas prontas para iniciar ou interromper o contato (old, tudo bem?, como vai?, tchau, até logo, bom dia, etc.) e para verificar se hd ou n&o contato (vocé estd escutando?). Os efeitos de sentido sao os de aproximagio e interesse entre remetente e destinatario, de presenga de ambos na comunicagao, de estabelecimento ou manutengao da interagao, Jakobson diz que é a primeira fungiio da linguagem que os homens usam, nas “conyersas” do bebé com a mie (gu gu gd gé...), € que é a tinica que temos em co- mum com as aves falantes, como as maritacas e os papagaios. Pesquisas com a fala de idosos dementes (Mansur, 1996) tém mostrado que é também a fungdo preponderante na comunicagao dessas pessoas, que buscam, a todo custo, mais do que informar, manter 0 contato com o destinatario. Nos inquéritos do Projeto Nurc (projeto de estudo da norma urbana culta), por exemplo, o entrevistador ndo esté preocupado com as informagées que o entrevistado possa dar sobre o tema (fungdio referencial), mas apenas em fazé-lo falar, para obter mais informagdes sobre os usos da linguagem. O importante, assim, é sustentar 0 didlogo, ao contrario de outros tipos de entrevista, em que 0 entrevistador esta interessado em obter certas informagdes. Dois procedimentos sao usados para a manutengo do didlogo com preocupagSes apenas linguisticas: elementos prosédicos como “uhn uhn” e perguntas sobre questées ja respondidas ou perguntas repetidas. Esses procedimentos constroem textos com fungiio predominantemente fatica. No inquérito 250 (Preti e Urbano, 1988:133-147), por exemplo, o entrevistador (Doc.), depois das perguntas iniciais, participa do didlogo mais 36 vezes: em dezenove faz apenas “uhn uhn”, em uma diz “isso...” e em outra, “certo”. Os textos abaixo exemplificam as perguntas repetidas, mesmo quando ja respondidas: a) Doc. ~ © © que vocé costuma comer em cada uma dessas refeigdes? (Preti e Urbano, 1988: 120) Doc. — come em casa... ¢ no café da manha o que vocé come? (Preti e Urbano, 1988: 121) A primeira pergunta ja foi feita apés o entrevistado ter explicado 0 que comia em cada refeicdo. Essas perguntas tém assim a fungao de manter o entrevistado falando. Acomunicagéo humana 37 b)Doe. ~ 0 que precisa uma pega pra cla realmente atingir o piblico?... (Preti e Urbano, 1988:43) Doc. —no seu entender 0 que ¢ 0 imprescindivel pruma:: pega de teatro obter sucesso? (Preti e Urbano, 1988:45) Doc. ~ conta uma coisa... que tipo de peca assim... o estilo da pega... que vocé acha que & mais aceito pelo publico;... quer dizer o:: 0 que o que precisa existir numa pega de teatro pra ela:: atingir realmente a massa?... (Preti e Urbano, 198849) A mesma pergunta, jé respondida, é reiterada, esvaziada, como um recurso fitico de manutengao do didlogo. Um ultimo exemplo pode ser encontrado na foto publicada nos jornais brasileiros por ocasifio da viagem do presidente Fernando Henrique Cardoso aos Estados Unidos e de seu encontro com o presidente George W. Bush. Trata-se de texto com fungdo fatica, expressa na foto gestualmente (maos, expresso facial, sorriso), mas provavelmente acompanhada das férmulas de cumprimento de inicio de comunicag’io. A foto chama, porém, a atengdo pelo fato de, ao contrario do usual, 0 cumprimento inicial da comuni- cagao ocorrer com os dois presidentes sentados. Tudo indica que se trata de foto posada ¢ nao realmente de estabelecimento do contato. De qualquer forma, ela apresenta alguns elementos da gestualidade que estabelece 0 contato necessario ao prosseguimento da comunicagao: 0 sorriso de interesse e satisfagao pelo encontro, o gesto ritual do aperto de mios, a inclinagdo corporal de um em diregao ao outro, os olhares trocados. = Os textos com fimgdo metalinguistica usam os procedimentos que seguem: verbos de existéncia (ser, parecer) ou de existéncia da significagao (significar, ter o sentido de), Os presidentes Fernando Henrique Cardoso e George W. Bush se cumprimentam no Salo Oval da Casa Branca, nos Estados Unidos. 38 Introducéo a Linguistica em geral no presente do indicativo, em oragdes predicativas de definig&o (x é y). O efeito de sentido é o de linguagem que fala de linguagem, ou seja, de circularidade da definig&o ¢ da comunicacao. Nao se deve confundir a fungio metalinguistica de Jakobson com a metalinguagem cientifica. Metalinguagem cientifica e fungfio metalinguistica ordinaria caracterizam-se ambas como uma linguagem definidora de outra linguagem, ou seja, como uma linguagem que fala de outra linguagem. Diferenciam-se, porém, pelo fato de a meta- linguagem cientifica ser, por sua vez, definida por outra, uma terceira linguagem, a metalin- guagem metodolégica, o que nao acontece com a fungao metalinguistica ordinaria. Assim, a fang&io metalinguistica produz o efeito de circularidade (de uma linguagem que define outra Tinguagem) e a metalinguagem cientifica produz a ilusdo de superposigdio de niveis (de uma linguagem que define outra linguagem e ¢, por sua vez, definida por uma terceira). Os textos que seguem ilustram a funcao metalinguistica e a metalinguagem cientifica. (a) ... Agora, 0 senhor chega e pergunta: “Cigo, o que que ¢ educagao?” Té certo. Té bom. O que que cu penso, eu digo. Entdo veja, 0 senhor fala: “Edueacdo”; dai eu falo: “educago”. A palavra é a mesma, nio é? A prontincia, cu quero dizer. E uma s6: “Educagao”. Mas ento eu pergunto pro senhor: mesma coisa? E 0 do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?”; ai eu digo: “Nao”. Eu digo pro senhor desse jeito: “Nao, nao é”. Eu penso que nao. Educagao... quando 0 senhor chega ¢ diz “educago”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é 0 lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparagiio, no seu essa palavra vem junto com qué? Com escola, ndo vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado, livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito Jonge de um saberzinho s6 de alfabeto, uma conta aqui ¢ outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. E fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque cu nunca vi isso por aqui. Entio, quando 0 senhor vem ¢ fala a prontincia “educagio”, na sua educago tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme eu sei pronunciar também, ela vem misturada no pensamento com isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? Dos evangelhos: “Semente que cai na terra boa e deu fruto bom”. (..) Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas no é 0 mesmo. A escolinha cai nZo cai ali num canto da roca, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como ¢ 0 resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois, nem trés. Comigo nao foi nem trés. Entdo eu digo “educagdo” e penso “enxada”, 0 que foi pra mim. (Sousa, 1984) (b) 0 Professor Sampaio ensina a0 ministro da Saiide que “em portugués, antraz 6 a denominagdo para um aglomerado de furiinculos, infecedo estafilocécica relativamente frequente”. Em inglés, “anthrax” designa uma infecedo em animais, mas que atinge o homem, grave ¢ eventualmente fetal, cuja tradugao para o portugués é carbiinculo. Em espankol, “carbuneo”, em francés, “charbon”, em alemao, “milz- brandkarbunkel”, Quanto a Rey, Sampaio sugere que consulte obras especializadas, como 0 Dicionéirio de Termos Técnicos de Dalamare, “cujo prefécio & de Carlos Chagas, gloria da medicina brasileira e da Fiocruz, para saber a diferenga entre antraz ¢ carbiinculo”. © que o professor Sampaio esté dizendo, para tranquilizar pessoas que ja foram vitimas do antraz no Brasil, é que essa doenga, mais amena e frequente, ndo pode ser confuundida com carbiinculo (anthrax, em inglés), “uma infecgdo em animais que atinge o homem de forma grave e eventualmente fatal” Sampaio demonstra que tanto 0 clissico Candido de Figueiredo, como outros dicionérios (Aurélio ¢ Houaiss) se equivocaram e uns teriam reproduzido o erro de outros (Ulisses Capozoli, Nés ¢ os outros, na guerra bacteriolégica. Texto recebido pela internet). (©) Se se toma como ponto de partida a definicao proviséria da modalizagdo, segundo a qual esta seria “uma modificagio do predicado pelo sujeito (1), pode-se considerar que o afo—e, mais particularmente —o ato de linguagem — com a condigao de que 0 sujeito modalizador seja suficientemente determinado, €0 lugar do surgimento das modalidades” (Greimas, 1976: 57) Acomuniceeteltimanc 39 (@) Compoe-se a palavra de syllabas, como ug. a palavra Livro, que se co sdo li, e vro. Asyllaba é a comprehensio de um som perfeito, que se pronuncia com um sé. esp na sobredita palavra ivr, tanto Ji, como vro é syllaba, porque cada um delles faz u se profere com um 86 espirito, ou accento. (Lobato, 1837) Os textos (a) e (b) apresentam fungao metalinguistica. No texto, discute-se definig&o de educacdo dada principalmente pela definigao de dois campos semanticos Para @ palavra educagdo: um de escola, livro novo, caderno, caneta, professor fi Tecursos; outro de escolinha cai nao cai, professorinha, enxada, saberzinho, A lingua- gem esta discutindo a linguagem e os sentidos das palavras que variam, conforme varia a insergdo social dos falantes, questao de que trataremos mais a frente. No texto (b), usa-se também a linguagem para falar da linguagem, tanto do plano do contetido (carbimculo, etc), quanto do da expresstio (com z, com x, com th). Os dois casos $40 de funcao metalinguistica, mas néio de metalinguagem cientifica (embora no exemplo (b) possa haver alguma dtivida), Ja 08 textos (c) e (d) ilustram uma metalinguagem cientifica, a da Semidtica ou a da Linguistica. No texto (c) define-se, metalinguisticamente, modualidade e ato de linguagem, termos que, por sua vez, ji pertencem a uma metalinguagem, pois podemos dizer que os termos dever e querer, da lingua portuguesa (1° nivel de linguagem) s&io modalidades (2° nivel de linguagem) e modalidade, por sua vez, deve ser entendida tal como no texto citado (3° nivel de linguagem). E essa superposigaio de niveis que caracteriza a metalinguagem cientifica, No texto (d), como se observa, ao dizer que lie vro sao silabas faz-se metalingua- gem, ou seja, explica-se a lingua portuguesa (/i-vro) com uma metalingua (silaba), ¢ a0 dizer que silaba é a compreensdo de um som perfeito, faz-se metametalinguagem, isto & explica-se a metalingua (silaba) com uma metametalingua (compreensdo de um som, Perfeito). Tem-se ai, portanto, uma metalinguagem cientifica. = Finalmente, os textos com fungao poética empregam procedimentos no plano da expresso, sobretudo as diferentes formas de reiteragéio de sons (tragos dos fonemas, silabas, ritmos, entoagdes, etc). Jakobson diz que a fuunedo poetica projeta v princtpib de equivaléncia do eixo de selegdo sobre o eixo de combinagéo (1969: 130). Em outras Palavras, a fungo postica resulta de duas rupturas, de duas subversdes: a primeira, em relagdo ao plano da expressao, que, em lugar de apenas expressar, “transparentemente”, 0 contetido, chama a atengao enquanto expresso “opaca”, com sonoridade, ritmo, entoacao; a segunda, em relaeo aos dois eixos de organizagao da linguagem, o paradigmético e 0 Sintagmitico, definidos, respectivamente, como eixo das similaridades, em que se faz a seleydo, e como eixo das contiguidades, em que se opera a combinagiio, pois o texto com fungao postica vai combinar, no sintagma, elementos similares, préprios do paradigma. Os efeitos de sentido sao, portanto, o de coisa extraordindria, de novidade, gragas 4 Tuptura ou subversdo da “normalidade”, o de estesia ou de perfeig&o, decorrente da superposigaio dos dois eixos de funcionamento da linguagem ¢ da aproximagdio entre expressao e contetido: 0 de continuidade ou de apagamento das diferencas, tanto entre sintagma e paradigma, quanto entre expressiio ¢ contetido. Jakobson insiste, com razdo, em que fungao poética nao ocorre apenas na poesia, em que, sem diivida, é a fune&o dominante, ou na literatura. Na fala do dia a dia, na publicidade, em textos de jornal ou religiosos, entre outros, ela também é, com frequén- 40 Introducéo Linguistica cia, usada, embora, nesses casos, esteja muitas vezes subordinada a outras funcdes da linguagem. Um bom exemplo s&o os nomes de estabelecimentos comerciais, que tem por fungao primeira a conativa, mas também empregam bastante a postica. Vejam-se os nomes que seguem: a) Doces da Laura b) Cantina do Sargento €) Tok-Stok d) Peg-Pag e) Serv-Lev Todos os nomes tém a fungao conativa de levar o destinatario a ir loja, a doceria ou ao restaurante. A diferenga € que os dois primeiros usam, além disso, a fungao referen- cial, ou seja, informam que os doces sto feitos pela Laura, doceira de prestigio, ou que a cantina € do Sargento, que tfabalhou na cozinha de conhecido dono de restaurante italiano, enquanto os trés tiltimos empregam a fungao poética. Nos nomes c, de ¢ ha, assim, recursos de fungao poética: em c, reiteram-se a oclusiva dental surda [t], a vogal posterior aberta [9] a oclusiva velar surda [k], no mesmo tipo de silaba e na mesma ordem; em d, repetem-se a oclusiva bilabial surda [p] ¢ a oclusiva velar sonora [g], as duas vogais sto abertas, [e] [a], variando apenas o grau de abertura e a posigao delas, 0 tipo de silaba e a ordem dos fonemas stio os mesmos; em e, empregam-se a mesma vogal [e] e a mesma consoante final [v]. Esses nomes produzem, portanto, com a repetigao sonora, os efeitos de sentido de rup- tura da “normalidade”, de perfeigdo e de continuidade mencionados, e procuram, com os recursos poéticos usados, convencer o destinatario, agora j4 no mbito da fungo conativa, a tonar-se cliente de estabelecimentos tao novos, diferentes, bonitos, harménicos. Os textos que seguem tém, por sua vez, ¢ a0 contrario dos anteriores, a fungao pottica como fungiio preponderante: a) A terra lauta da mata produz ¢ exibe um amarelo rico (se no o dos metais): amarelo do maracujé e os da manga, do oiti-da-praia, do caju e do caja; amarelo vegetal, alegre de sol livre, beirando o estridente, de tio alegre, © que 0 sol eleva de vegetal a mineral, polindo-o, até um aceso metal de pele. S6 que fere a vista um amarelo outro, € a fere embora bago (S01 ndo o acende): amarelo aquém do vegetal, e se animal, de um animal cobre: pobre, podremente. : Os reinos do amarelo (Joa Cabral de Melo Neto) No poema de Cabral, é facil perceber a repetic&o, no primeiro verso da estrofe, de vogais abertas ¢ anteriores ou agudas ([a] e [e] ¢ 0 percurso de abertura (de [e] para [a]) € no iiltimo verso, de vogais posteriores ou graves ([9] e [0]) e o caminho do fechamento (de [9] para [o]). Em outras palavras, chama-se a atengao para o plano da expressao e sua sonoridade e produzem-se os efeitos mencionados de novidade, de estesia e de continui- dade decorrentes, sobretudo, da relag’o simbélica que se estabelece entre esses tragos da expressiio e 0 contetido. Correlacionam-se abertura ¢ anterioridade yocalicas versus Acomunicagéo humana 47 fechamento e posterioridade vocalicos, do plano da expresso, com natureza versus cul- tura, do plano do contetido: abertura + anterioridade sess fechamento + posterioridade natureza_ cultura O mundo é refeito ou lido de outra forma, gragas as novas relagoes, nao previamente codificadas, que se estabelecem entre expressio e contetido. +) O que muda na mudanga, se tudo em volta é uma danea no trajeto da esperanea {junto ao que munea se alcanga? (Carlos Drummond de Andrade) O texto de Drummond, como o anterior, mostra, no sintagma, a similaridade propria do paradigma, e produz também uma nova relagao entre expresso e conteiido: nasalidade oralidade manutengao transformagao Mt Devem-se ressaltar, na fungao poética, os efeitos j4 mencionados de novidade, estesia ¢ continuidade e, principalmente, de recriago ou releitura do mundo, por meio. \ do simbolismo que se instala entre expressio e contetido, nos textos em que predominal, , a essa fungao. we Em sintese, as principais contribuigdes de Jakobson para o estudo da comunicacao foram: a introdugdo das questées de variagao linguistica no modelo de comunicagao, por meio dos cédigos e subcddigos e de suas intersec¢des na relagdo entre remetente e desti- natario; 0 reconhecimento de que os homens se comunicam com diferentes fins, tendo em vista a variedade de fungdes da linguagem que ocorrem no processo de comunicagaio, e de ue essas fungdes nao so tinicas ou excludentes, mas se organizam hierarquicamente como ingdes predominantes ou na&o; o exame das fungdes metalinguisticas ¢, principalmente, ética, que contribuiu fortemente para o estudo dos textos poéticos na perspectiva dos tudos da linguagem. oy, Por outro lado, entre as criticas feitas 4 proposta de Jakobson deve ser ressaltada de que, embora aborde questdes de poeticidade, seu modelo tem ainda o caréter me- canicista dos da teoria da informagao, ou seja, nao examina adequadamente as relagdes cio-historicas e ideolégicas da comunicacao, e praticamente nao trata da reciprocidade \cteristica da comunica¢ao humana. Houve, ¢ inegavel, uma expressiva ampliagao e mplementagao do modelo da teoria da informagao, mas a comunicagao continuou a ser fazer-saber, isto é, a transmiss4o de um saber sobre 0 mundo, sobre as emogdes do etente, sobre o cédigo, sobre o plano da expresso da mensagem, sobre o funcionamento contato. Sé na fungao conativa hd, além do fazer-saber, um fazer 0 outro fazer. \ A 42 Introducéo @ Linguistica 4. Modelo linear e modelo circular da comunicacéo: a interagéo verbal Os modelos da teoria da informagao apresentados sao essencialmente lineares, ou seja, tratam da transmissao da mensagem de um emissor a um receptor, sem ocupar-se da reciprocidade ou da circularidade caracteristica da comunicagao humana, ou seja, da possibilidade que tem o receptor de tomar-se emissor e de “realimentar” a comunicagao, ou do alargamento e complexidade da comunicag’io que pode, por exemplo, dirigir-se a um destinatario, mas visando ao outro. Como reagiio aos modelos lineares de comunicagao, desenvolveram-se nos Estados Unidos, ja partir dos anos 1950, estudos, entre outros, de B. Bateson, E. Hall e E. Goffman, que propuseram um modelo “circular” para a comunicagao. Surgiu assim a teoria da nova Comunicagiio, com as nogdes de base de feedback ou de retroagao ¢ realimentagao. A comunicagao deve ser, portanto, repensada, nesse quadro, ndo mais como um fendmeno de mao tinica, do emissor ao receptor, mas como um sistema interacional. Nesse sistema interacional importam nao apenas os efeitos da comunicagio sobre o receptor, como também os efeitos que a reagdio do receptor produz sobre o emissor. Os estudos de Benveniste (1966) sobre a categoria de pessoa apontam j4 para a questo da reversibilidade ou da reciprocidade da comunicag&o. O eu, ao dizer eu, instala 0 tu como seu destinatario, mas esse destinatario pode, por sua vez, tomar a palavra e dizer eu, colocando agora 0 outro como tu. O didlogo, ou seja, a reversibilidade ou reciprocidade da comunicago, é condig’io da linguagem do homem. As abelhas, mostra Benveniste (1976), nao tém diélogo. Como no cédigo de transito, esperam do destinatdrio apenas um comportamento (partir em busca de alimentos, parar no sinal vermelho, e assim por diante). Nao ha didlogo com a luz vermelha do semaforo ou com a placa de “é proibido estacionar”, Nao ha outra resposta, a nao ser a de Parar e a de nao estacionar. Além disso, a reciprocidade da comunicagao é a garantia da possibilidade, a0 menos, de equilibrio de poder entre os interlocutores de uma dada comunicagdo. Nos Tegimes autoritarios nao ha direito de resposta. O patrtio costuma dizer ao empregado, ou os pais ao filho, que ele é muito respondéo ou, em outras palavras, que ele teve a ousadia de usar a reciprocidade caracteristica da comunicago humana e de tomar a palavra, em resposta. Dessa forma, desenvolveram-se, no ambito dos estudos linguisticos ¢ fora dele, principalmente entre os norte-americanos, estudos da interagao entre sujeitos postos em comunicagao. Bakhtin (1981) foi o pioneiro nos estudos da interagao ou do didfogo entre interlo- cutores. O autor russo procurou mostrar que a interagdo verbal é a realidade fundamental da linguagem. Além desses estudos precursores do dialogismo, duas diregdes foram to- madas nos estudos da interagao: a da sociologia da comunicagao, de que Goffman é um bom representante; ea da andlise da conversagao, de linha etnometodolégica, Goffman (1967 e 1973) examina, com essas preocupacdes, os procedimentos de preservacao da face, na comunicagao. Face é a expresso social do eu individual, a auto- imagem publica construida. A interagao poe em risco a face. Ha estratégias tanto para ameagar ¢ atingir a face do outro quanto para protegé-la ou preserva-la, que variam de Acomunicacao humane 43 lingua para lingua, de cultura para cultura, Os procedimentos de atenuag3o do discurso siio bons exemplos de protegio da face: a) Saia jé daqui! b) Saia daqui, por favor. ©) Voeé poderia sair daqui? d) Sera que vocé poderia sair daqui, por favor? No exemplo (a), 0 uso do imperativo saia e do advérbio jd, que produzem 0 efeito de ordem petemptria, ameaga a face ou a imagem publica do destinatario. Os exemplos de (b) a (d) mostram diferentes graus de atenuagdo do discurso, que procuram preservar, também de formas diferentes, a face do destinatario. No exemplo (b), a ordem foi atenuada com por favor. No exemplo (c), a atenuacfio, em grau maior do que no caso (b), ocorreu gracas ao uso da interrogagao e da modalizagio de possibilidade com o verbo poder, que caracterizam o pedido e nao a ordem. Finalmente, em (d), 0 pedido é ainda mais atenuado com uma segunda modalizagao de possibilidade (serd que...?) ¢ com 0 emprego de por favor. Ha, portanto, maior preservagao da imagem publica ou da face do destinatario. A Etnometodologia, por sua vez, procura examinar a interagdo social no compor- tamento cotidiano, diario. A conversagao ou interagao verbal seria uma forma privilegiada de interagdo. Nesse quadro, a analise da conversagiio esforga-se por descrever as estru- turas e mecanismos que organizam a conversago e por correlaciond-los com fungdes interacionais. Cinco aspectos merecem destaque no exame da comunicagiio como interagaio: + em primeiro lugar, a questo de que, no proceso de comunicagao, os falantes "| se constroem e constroem juntos o texto; * em segundo, a questo das imagens ou dos simulacros que os interlocutores constroem na interagaio; | * em terceiro, a questiio do cardter contratual ou polémico da comunicagao; = + em quarto, a questo de que ao considerar a relacao entre comunicagao e intera~ go nao é mais possivel colocar a mensagem apenas no plano dos significantes ou da expressio; ¢ + em quinto, a questo do alargamento da circulagao do dizer na sociedade. O primeiro aspecto, j4 acentuado nos estudos pioneiros de Bakhtin ¢ retomado pelos diferentes estudos do discurso, é, assim, o de que os participantes de uma comunicagao vao- se modificando, vao-se transformando, vao-se construindo na comunicagao. Ha, portanto, uma inversao de perspectiva: os sujeitos da comunica¢ao nao sao dados previamente, mas constroem-se ao comunicar-se. Bakhtin afirma que, no didlogo, constroem-se as relacdes intersubjetivas, mas também a subjetividade. Os sujeitos so, na verdade, substituidos por diferentes vozes que fazem deles sujeitos histéricos e ideolégicos, como veremos a frente. O segundo aspecto é 0 das imagens e simulacros intersubjetivos. Pécheux, no ém- bito da Andlise do Discurso (AD), mostra que emissor e receptor estabelecem um jogo de imagens de que dependem a comunicagiio e a interagdio. Sao elas, principalmente, a imagem que o emissor faz dele mesmo, a imagem que 0 emissor faz do receptor, a ima- gem que o receptor faz dele mesmo e a imagem que o receptor faz do emissor. Osakabe 44. Introducdo & Linguistica (1979) acrescenta outras imagens possiveis, como por exemplo, a que faz 0 receptor ao Perguntar-se © que 0 emissor pretende falando daquela forma, Um bom exemplo do jogo de imagens péde ser observado quando parte da im- Prensa brasileira comentou que 0 enttio Presidente Fernando Henrique Cardoso disse, em seu discurso, na Franga, 0 que o piiblico queria ouvir, pois criticou os Estados Unidos ¢ a imposieao que faz de politicas a outros paises, na mesma diregao assumida pela esquerda no Brasil, de cuja opinido o presidente e seu partido haviam discordado em discursos “internos” anteriores. O que a imprensa esta dizendo é que o presidente elaborou a men- Sagem a ser comunicada conforme a imagem que faz do receptor e, quem sabe, também da imagem que faz de si mesmo (de grande estadista). Outro exemplo é 0 do texto que segue: Em 1968, os candidatos Anténio Rodrigues e Vingt-Un Rosado disputavam a Prefeitura de Mos- soré (RN), Aluizio Alves, cacique politico do Estado, correu para tentar salvar a candidatura de Rodrigues, que perdia nas pesquisas por 4.000 votos. No iiltimo comicio, abordou diretamente o alcoolismo do can. didato, uma das causas da sua rejeigao. Depois de enumerar as razbes pelas quais as pessoas bebem, Pedi que a plateia imaginasse como o rival, Vingt-Un, se eleito prefeito trataria um bébado que fosse Procuri-lo no gabinete. Segundo Alves, ele nem seria atendido. Alves pediu ento que a plateia pensasse num outro cenério: ~ Imaginem 0 Toninho prefeito. O assessor diz que tem um bébado querendo dar uma palavrinha, O prefeito ordena: “Mande logo o colega entrar!” Foi uma gargalhada geral. Rodrigues venceu por 98 votos. (Folha de S. Paulo, 11/11/01, 44) Nesse exemplo, 0 cacique politico constréi um texto com base na imagem do Teceptor, que aprecia ou perdoa as falhas decorrentes de bebida. A comunicacaio, com fungao predominantemente conativa, foi bem-sucedida, pois levou o receptor a votar no candidato proposto pelo emissor, Com outro receptor, a estratégia poderia ter sido a de mascarar 0 alcoolismo do candidato ¢ nao de apresenté-lo como qualidade (tolerancia com os “pequenos erros” que o receptor também comete). E inegavel que nao falamos da mesma forma com aqueles em que acreditamos gostarem de nds, concordarem conosco e com aqueles de que estamos convencidos terem conosco sérias divergéncias. Igualmente, o receptor, ao receber e interpretar a mensagem, levara em conta as imagens que constréi do emissor e de si mesmo. Assim, uma mesma fala, vinda dos que consideramos amigos ou dos que julgamos inimigos, sera entendida de modo muito diferente em cada caso. Quando a mie, por exemplo, diz a filha que nao é adequado vestir-se daquela forma em festa de casamento, a filha poder nao acreditar nisso, tendo em vista a imagem de conservadorismo que faz da mae. Se, porém, uma amiga fizer a mesma observagao, haverd muita possibilidade de a menina trocar de roupa. No Ambito da semiética de linha francesa, Greimas (1990), por sua vez, desenvolve a questéo da construgao de simulacros, Os simulacros so Tepresentacdes das competén- cias respectivas que se atribuem reciprocamente os participantes da comunicagao e que intervém como algo prévio, necessério a qualquer relactio intersubjetiva. Os simulacros sio objetos imagindrios que os Sujeitos projetam e que, embora nfo tenham nenhum fundamento intersubjetivo, determinam de maneira eficaz o comportamento dos sujeitos eas relagdes entre eles, Redagées de vestibular com o tema de uma festa de desconhecidos ajudam a enten- der melhor a questao. Nessas redagées, 0 sujeito constréi um simulacro do “dono da festa” ou da casa: o dono da festa tem a obrigagdo de ocupar-se dos participantes da festa, de dar-lhes atengdo ¢ de ajuda-los a relacionarem-se na festa. Mesmo no caso desses textos, em que o sujeito nio tinha sido convidado para a festa e no conhecia o dono da festa. O simulacro construido determina a relagdo entre eles e leva o sujeito a criticar 0 dono da festa que nao cumpriu o “acordo”, a ter raiva e até mesmo a querer vingar-se dele. Da mesma forma, um reitor conservador, em reunidio com professores que pediam a palavra, deu a vez a uma professora mais velha e trajada elegantemente e nao aos professores mais jovens e vestidos de modo informal, com base no simulacro de que a primeira professora estaria mais de acordo com ele, com seus valores. Diga-se, de passagem, que isso nao aconteceu, para surpresa do reitor, que viu seus simulacros ser quebrados. Em sintese, as imagens dos interlocutores ou os simulacros dos sujeitos constroem e determinam as relagdes de comunicagao e de interagiio entre sujeitos. Passemos agora a terceira questo, no item sobre comunicagiio e interagao, a do cardter contratual ou polémico da comunicagao. Os estudos de Goffman, como vimos, mostram os dois lados da comunicagiio ao tratar da preservagtio e das ameagas 4 face. Ja os primeiros estudos de andlise da conver- sagao enfatizavam, sobretudo, o lado contratual da comunicagao, 0 que levava os europeus, sobretudo os franceses, a referéncias, um tanto irdnicas, ao “angelismo dos americanos”. Tomemos como exemplo os trabalhos de Deborah Tannen (1985 e 1986) sobre a repeticao na fala. Tannen mostra a necessidade de uma teoria interativa da repeticao ¢ afirma que esta cria envolvimento interpessoal, cria afinidade. Diz a autora que os interlocutores, com a repetigdo, sentem-se “coerentes no mundo”, pois quando o ritmo conversacional € compartilhado e estabelecido sem esforgo, quando mensagem ¢ metamensagem sao congruentes, quando as inten¢des dos interlocutores sio bem compreendidas, tem-se a sensac&o de que tudo vai bem e de que o mundo é um lugar confortavel. Houve mudangas eaanilise da conversagZo mais recente cedeu um espago maior 4 polémica conversacional. A propria Deborah Tannen publicou um livro sobre a interago marido-mulher. Vejamos a seguir um exemplo de conversagdio mais polémica (os grifos sdio nossos): L2 é familia toda interessante inteligente ela o irmao.. © irmao ¢ maestro né? u (que) acho que nao [ L2 © irmao ela tem uma irma que ¢ poetisa que € muito inteligente também (né?) i Li € mas eu acho que nao I, [ 12 jomalista e poetisa Li eu acho que o maestro Julio Medaglia ele é Me-da-gli-a e ela é Medalha com Le H C 12 eu acho que ela modificou cele ¢ inmao dela .. LL no nao ... ((clique)) parece que nao... eu nfo Posso 46 Introducéo & Lingui Jurar sobre os evangellios mas me parece que ... ahn ela seria Medalha com Le Ht .. [ 12 ewacho que ela modificou scunome... ela ( ) nome Li cele MeDA-glia 12 ()... tenho impressao.. Li a irma dela eu conhego que é jornalista né? é uma moga jomalista . 12 poetisa Li poetisa... (Castilho e Preti, 1987; 249) No texto citado, uma jornalista e uma escritora conversam sobre a familia Meda- glia/Medalha. Ha varias estratégias de discordancia, sobretudo a corregdio do outro (hete- Tocorre¢iio) ¢ o fato de as duas falarem ao mesmo tempo (sobreposigao de vozes), tentando, uma delas, tomar a vez da outra (assalto ao turno), € a outra, manter a vez. Os casos de heterocorrecao esto sublinhados no texto e os de sobreposig&o de-vozes assinalados por [. H4, sem divvida, atenuacées da polémica: nfio nao... parece que nao... eu nao Posso jurar sobre os evangelhos mas me parece; acho que nao; é mas eu acho que nao. No trecho da conversa citado, ha apenas uma concordancia, quando, no final, L,, que L, corrigiu o tempo todo, discorda, por sua vez, de L,, ao dizer que a moga niio é ou no € apenas jornalista, mas poetisa. Nesse momento, L, concorda e repete poetisa. Aquarta observagio, neste item sobre comunicacao ¢ interagiio, diz respeito ao fato de a mensagem ser considerada, nos modelos da teoria da informagao, prioritariamente como plano da expressdio, como sinal, em geral sonoro, que circula da boca de um ao ouvido do outro. Pécheux propée a substituigdio do termo mensagem pelo de discurso no esquema de comunicagao. Discurso ou texto, conforme variem os quadros tedricos, essa substituigio resolve uma das objegées inicialmente apresentadas, pois discurso ou texto devem ser ai entendidos como tendo duas faces: a da expresso ou dos significantes, que circula, como um sinal, entre emissor ¢ receptor, a do contetido ou dos significados, inseparavel da expresso que a “expressa” e que também circula entre destinador e destinatario. Finalmente, a quinta e tiltima observagao é a de que, em estudos recentes, tem havido a preocupacéo em mostrar que a comunicagao rompe muitas vezes o cardter “intimista” de um didlogo entre 0 eu € 0 tu, aqui e agora. Nesses casos, rompe-se o dialogismo mais estreito ¢ alarga-se a circulacao do dizer na sociedade, Pode-se exemplificar com uma entrevista ou com um juri. No caso das entrevistas, na televisdo ou na imprensa escrita, estabelecem-se trés relacdes de comunicagao: entre 0 entrevistador e o entrevistado, entre o entrevistador e 0 piblico, entre o entrevistado eo piiblico, Em outras palavras, a relaciio entre o entrevistador € 0 entrevistado, que é a tinica explicitada nessa comunicagiio “alargada”, dependerd nao 80 dos fatores jé mencionados, mas também das relagdes dos interlocutores com o piblico. Na verdade, a comunicacio com 0 piblico € 0 objetivo primeiro da comunicagao entre entrevistador ¢ entrevistado. Cria-se entre entrevistador e entrevistado uma interacdo parti- cular, em que sao eles ctimplices nas tarefas de informar e convencer 0 ptiblico e, ao mesmo ‘tempo, oponentes na conquista dessa audiéncia. Os lacos interacionais entre entrevistador e entrevistado sao, por conseguinte, em geral frouxos, Pois cimplices ou oponentes, esto ambos mais preocupados em interagir com 0 destinatario-publico. Vejamos: Acomunicagéo humana 47 a) Inf. -é 0 cu fa! o que eu fale... ag6/ na gravago nao eu falei fora da gravagdio pra vocés... 0 que © brasileiro tem (...) (Preti e Urbano, 1988:44), O entrevistado (Inf.) repete o que ja dissera aos entrevistadores, mas que nao fora gra- vado, manifestando assim preocupag3o com as condigdes de relacionamento com o piblico. b)Doc. entiio e qual era a dieta de seu regime? Inf. nfo era nada extraordinario viu era:: até muito comum (Preti e Urbano, 1988:235), No material de lingua falada do Projeto nurc-sp, de que foram extraidos os exemplos. de fala, pode-se perceber que as entrevistas, ao contrario de outras formas de comunicagao, usam bastante, como no exemplo acima, a negag%o polémica. Na negacao polémica, 0 entrevistado (Inf.), em lugar de corrigir ou negar a fala do entrevistador (Doc.), “corrige” a voz do outro, a voz do senso comum, implicita, mas identificada com a do piblico. No exemplo citado o informante “corrige” 0 subentendido de que as dietas de regime so muito rigidas e dificeis, algo que nao fora explicitamente dito pelo entrevistador. Observe-se ainda, sobre a questo do alargamento da comunicagao, a noticia de jornal sobre o julgamento dos jovens que mataram o indio patax6: A plateia chegou a dividir com os jurados a atengdio da acusagdo ¢ da defesa. Os advogados as vezes se distanciavam das sete pessoas designadas para decidir 0 caso e discursavam diretamente para o piiblico presente, que reagia prontamente aos argumentos, levando a juiza Sandra de Santis a tocar a campainha. No texto, relata-se o alargamento da comunicagao, em principio estabelecida entre os advogados ¢ os jurados (¢ 0 juiz) e, em alguns momentos, com extensdo ao piiblico que, colocado entao como destinatario da comunicagao, a ela respondia. No exame do aspecto interacional da comunicagao observamos: a reciprocidade ou reversibilidade da comunicagao sempre dialdgica, por definigao; o carater ao mesmo tempo contratual ¢ polémico da comunicagao; a construgdo de simulacros que regem as relagdes entre os sujeitos e, também, a constituicao dos proprios sujeitos que dialogam; eo alargamento da circulagao do dizer. 5. Cardter mecanicista e carater “humanizante” das concepgées de comunicagdo: competéncia modal e semGntica dos sujeitos da comunicagdo Por fim, chegamos a ultima quest&o, a do carater demasiadamente mecanicista dos modelos de comunicagiio, mais apropriados 4 comunicagao entre maquinas e que nao levam em consideracdo, por exemplo, a insergio sécio-histérica e ideolégica dos sujeitos envolvidos na comunicagao. Dois aspectos serao assim observados, além dos que j4 foram tratados no item sobre interagdo: o da competéncia modal dos sujeitos que se comunicam, o das formagies ideolégicas, ou da competéncia semantica, responsiveis pelo discurso comunicado. Greimas (1979 ¢ 1990), no Ambito da teoria semidtica, aponta a necessidade de si- tuar a comunicagao no quadro mais amplo das atividades humanas. As atividades humanas desenvolvem-se segundo dois eixos principais: 0 eixo da producdo ou da acio do homem 48 Introducdo @ Linguistica sobre as coisas, por meio da qual o homem transforma a natureza; 0 eixo da comunicacdo ou da agao do homem sobre outros homens, criadora das relagdes intersubjetivas, fun- dadoras, por sua vez, da sociedade. Segundo Greimas, ainda, a tradigao antropolégica francesa (Marcel Mauss e Lévi-Strauss) interpreta as atividades de comunicagao como transferéncia de objetos de valor ¢ como comunicagio entre sujeitos, ou, especificando mais, como trocas de mulheres (que correspondem 4s estruturas de parentesco), como trocas de bens e de servigos (que equivalem as estruturas econémicas) e como trocas de mensagens (que correspondem as estruturas linguistico-discursivas). Nesse quadro mais amplo, a comunicagdo entre sujeitos ocorre mediante objetos de valor (os discursos ou textos-mensagens) que circulam entre eles e que os constituem como sujeitos. E preciso, assim, rever as nogdes ¢ as denominagdes de “emissor” e de “receptor” da comunicagao, pois, nessa perspectiva, os sujeitos da comunicagao nao podem mais ser pensados como casas ou caixas vazias de emissao e de recep¢ao de mensagens. Os sujeitos da comunicagao devem ser considerados, em primeiro lugar, como sujeitos competentes, ou seja, o destinador ¢ o destinatdrio (termos menos restritivos e, portanto, mais adequados do que emissor e receptor) tém de ter certas qualidades que permitam que eles se comuniquem. Essas qualidades sao de dois tipos: modais — 0 querer ou 0 dever, o saber e 0 poder fazer, no caso, comunicar-se ~ e semdnticas — valores, projetos, que determinam a comu- nicagao. Os sujeitos so, nessa perspectiva, considerados “plenos” ou “preenchidos” tanto por qualidades modais necessérias a suas competéncias comunicativas quanto por valores decorrentes das relagdes histéricas, sociais e ideoldgicas. Para examinar as qualidades modais ¢ preciso, em primeiro lugar, saber 0 que é realmente esse fazer comunicativo que os sujeitos querem ou devem, podem e sabem realizar, Para tanto, é preciso retomar a questio das fungdes da comunicagao, de pers- pectiva diferente da de Jakobson. Se, em geral, o fazer comunicativo é entendido como um fazer-saber, do destinador, e um adquirir-saber, do destinatario, pesquisas tm mos- trado, porém, que, tal como indicado acima, para apreender o saber é necessério que 0 destinatario queira fazé-lo. Isso nos obriga a pensar na comunicagio, ou melhor, no fazer comunicativo do destinador nao apenas como um fazer-saber, mas principalmente como um fazer-crer ¢ um fazer-fazer, ¢ no fazer comunicativo do destinatario essencialmente como um interpretar. A comunicagao confunde-se, dessa forma, com a manipulagao e tém ambas a mesma estrutura. O destinador exerce, portanto, dois fazeres: 0 fazer emissivo, de que jé falamos bastante, e o fazer persuasivo, de que trataremos a seguir. O fazer persuasivo engloba os procedimentos utilizados pelo destinador para persuadir o destinatario, isto é, para fazé-lo crer e para fazé-lo fazer. O destinador, de forma explicita ou implicita, propée a0 destinatario um contrato, em que oferece valores modais ou descritivos que o destinatario deseja ou teme. O destinatario, em contrapartida, realiza, além do fazer receptivo, um JSazer interpretative, em que poe em jogo modalidades veridictérias e epistémicas para interpretar a persuasao do destinador e, a partir dai, nele acreditar ou nao. O destinatario vai interpretar se o destinador parece ou no e é ou no confidvel, se os valores que ele oferece parecem ou nao, ¢ stio ou nao desejaveis. A fibula de Millér Fernandes, O gato ea barata, ilustra uma relagao de comunicagao-manipulagiio: Accomunicasio humana 49 A baratinha velha subiu pelo pé do copo que, ainda com um pouco de vinho, tinha sido largado @ um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e comegou a lambiscar 0 vinho, Dada a pequena distan- cia que nas baratas vai da boca ao cérebro, o alcool lhe subiu logo a este. Bébada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e ja quase morria quando deparou com o cardo do gato doméstico que sorria de sua afligio, do alto do copo. —Gatinho, meu gatinho — pediu ela —, me salva, me salva. Me salva que assitn que eu sair daqui eu Geixo vocé me engolir inteirinha, como vocé gosta. Me salva, — Vocé deixa mesmo eu engolir vocé? ~ disse o gato, — Me saaalva! — implorow a baratinha — Eu prometo. © gato entdo virou 0 copo com uma pata, o liquido escorreu com ele a baratinha que, assim que se viu no chao, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada, ~ Que ¢ isso? — pergunton o gato — Vocé nfo vai sair dai ¢ cumprir sua promessa? Voeé disse que deixaria eu comer vocé inteira. ~ Ah, ah, ab, - riu entdo a barata, sem poder se conter ~ E vocé ¢ to imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bébada? Moral: As vezes a autodepreciagao nos livra do pelotao. A barata procura convencer o gato de que ele gosta de comer baratas e de que ela é confidvel e se deixard comer, como estratégias para que ele a salve. Ora, sabemos muito bem que os gatos domésticos, gordos e bem alimentados, ndo comem baratas. Mesmo assim, a baratinha conseguiu convencer 0 gato ¢ leva-lo a salva-la. A baratinha realizou, assim, um fazer persuasivo (além do emissivo). Ao gato, por sua vez, coube o fazer interpretativo, isto 6, ele interpretou a persuastio da baratinha, nela acreditou e fez o que ela queria. No final do texto, 0 que a baratinha diz ao gato é que ele nao soube interpretar, ou seja, que com base em seus conhecimentos e crengas ele deveria ter interpretado que uma barata velha e bébada nem parece nem é confidvel e que nao poderia, portanto, nela ter acreditado. Outro bom exemplo € o do livro Zélia, uma paixdo, de Fernando Sabino: Ele Ihe dissera, no comego, que ela nfo era “a sua muther inaugural, mas sua estreia nos sentimentos”. Zélia acreditou. E ainda acreditava. Naquele dia 17 de maio, ja tio distante, no restaurante Oasis, no Rio, uma churrascaria na ITha do Governador, ele a pedira em casamento, Nesse texto, Bernardo Cabral procura persuadir Zélia de que é confidvel e de que vai casar-se com ela ¢ cla interpreta o que Ihe é dito e nele acredita. A comunicac&o mostra claramente os fazeres persuasivo e interpretativo que a caracterizam e que dependem de crengas, conhecimentos, aspiragées e projetos do destinador e do destinatario. Como se observou, nos textos examinados, tanto o destinador, para realizar 0 fazer persuasivo, quanto o destinatario, para exercer o fazer interpretativo, usaram sua compe- téncia semantica, constituida por seus sentimentos, valores, crengas e conhecimentos. Para persuadir e para interpretar 6 preciso comparar os conhecimentos, valores, crengas, da competéncia semantica dos sujeitos, com aqueles que esto em jogo na comunicagao. Dai a afirmagao de que os sujeitos da comunicagéio nao podem ser considerados como casas vazias e sim como casas cheias de projetos, aspiragdes, emogdes, conhecimentos, cren- gas, que vao determinar os modos de persuadir e as formas de interpretar. As estratégias de persuasao e as interpretagdes variam, assim, historicamente, de cultura para cultura, de sociedade para sociedade (de classe social para classe social). Fecha-se 0 circulo: os conhecimentos, crengas, sentimentos ¢ valores dos sujeitos sao resultantes de outras tantas relagdes de comunicagao-manipulacao-interagao anteriores e vao-se modificando 50 Introducéo @ Linguistica e construindo, portanto, outros sujeitos a cada nova relagaio de comunicacao, Sao sujeitos dotados de outras competéncias, velhas e novas, modais e semanticas. Para terminar, algumas palavras sobre a questo da ideologia na comunicagdio Do que foi dito até agora, é facil concluir que nenhuma comunicacao é neutra ou ingénua, no sentido de que nela esto em jogo valores ideolégicos, dos sujeitos da co- municagao. Em outras palavras, as relagdes entre sujeitos sio marcadamente ideolégicas © os discursos que circulam entre eles ¢ que estabelecem os lagos de manipulaeao e de interagao sao, por definigao, também ideolégicos, marcados por coergdes sociais. Duas questées merecem destaque: em primeiro lugar, a da relacao entre lingua (enquanto sistema linguistico) ideologia; em segundo lugar, a dos niveis de determinagao ideoldgica do discurso, ou seja, de que forma e em que nivel de organizacio linguistico- discursiva se da a relacao entre linguagem e ideologia. A relacao entre lingua e ideologia é muito diferente da existente entre discurso e ideologia. Para Bakhtin (1981: 46) “o discurso reflete as mais imperceptiveis alteragdes da existéncia social”, enquanto na lingua as modificagdes se processam lentamente. Na lingua, segundo 0 autor, imprimem-se, com o tempo, tragos dos discursos ideoldgicos, muitas vezes opostos ¢ contraditérios, pois classes sociais diferentes utilizam 0 mes- mo sistema linguistico e produzem discursos ideologicamente diferentes. Com isso, instalam-se na lingua, no sistema linguistico, choques e contradigdes, em que se atraem € se rejeitam elementos tidos como inconciliéveis, confrontam-se indices de valor con- traditorio, que fazem da lingua, ainda no dizer de Bakhtin, “a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Assim, 0 dicionario (Aurélio) vai, por exemplo, definir liberdade ao mesmo tempo como “supressdio ou auséncia de toda a opressiio considerada anormal, ilegitima, imoral”, quanto como “intimidade as vezes abusiva”, “intimidade sensual” ou “linguagem grosseira”. De um lado, tem-se liberdade como a auséncia de opressio, de outro como bagunea, grosseria, abuso. Sao tracos contraditdrios, impressos na lingua a partir de discursos ideologicamente diferentes. O poema de Frei Betto trata justamente dessa complexidade dos signos linguisticos: Sequestro da linguagem Primeiro, disseram que nao haveria mais guerrillas. Acreditei e, com as botas, abandonei sonhos revoluciondrios, Em seguida, disseram que terminara a luta armada. Tomei-me pois violento pacifista. Depois, disseram que a esquerda falira, E fechei 03 olhos ao olhar dos pobres. Enfim, disseram que o socialismo morrera, E que uma palavra basta: democracia Entio nasceu em mim A liberdade de ser burgués. Sem eulpa, Na mesma diregdo, mas avangando um pouco mais, José Luiz Fiorin (1988) procura verificar qual o lugar das determinagdes ideol6gicas na linguagem. O autor vai explicar as razdes que nos permitem dizer algo aparentemente contradit6rio: “que a linguagem é deter- minada pelas condigdes sociais” e, ao mesmo tempo, “goza de certa autonomia em relagdio as formagées sociais” (1988: 8-9). Para isso, Fiorin (1988) distingue o sistema virtual e abstrato Accomunicagéo humana 51 (a lingua), entendido como um conjunto de elementos com uma organizagao interna, de sua realizagdo concreta, em que separa, por sua vez, discurso e fala. “Os discursos sao as combinagées de elementos linguisticos usadas pelos falantes com o propésito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou de seu mundo interior, de agir sobre 0 mundo. A fala é a exteriorizagao psicofisico-fisiolégica do discurso” (1988: 9). Assim, a “mensagem’” que circula na comunicagao é, como ja foi visto, um discurso, exteriorizado pela “sequéncia de sinais” de fala, também ja mencionada. Fiorin vai procurar mostrar, na mesma dirego do que vimos em Bakhtin, que é o discurso que sofre determinagdes sociais, que é 0 discurso que é marcadamente ideolégico, acrescentando, porém, as reflexdes de Bakhtin duas quest6es fundamentais: a da relativa autonomia do sistema linguistico em relagao as formagées sociais; e a do lugar das determinagées sociais nos discursos. Mostra, com riqueza de detalhes e de exemplos, que o sistema, em geral, se altera em razo de causas internas ao préprio sistema, isto é, de fatores especificamente linguisticos. Se fatores sociais determinaram, em algum momento, o aparecimento ou a alteragaio de categorias linguisticas, e com toda certeza o fizeram, essas causas perderam-se no tempo eas categorias ganharam autonomia. Odiscurso, por outro lado, ¢ 0 lugar por exceléncia das determinagées sociais, jé que, como vimos, é produzido por sujeitos “preenchidos” de crengas, conhecimentos ¢ valores, ¢ circula entre sujeitos também “cheios”, ideologicamente. Resta esclarecer em que ponto da organizagao discursiva ocorrem essas determinacoes. Fiorin distingue, coma teoria semidtica do discurso, o nivel da sintaxe do discurso ou dos processos de estruturagaio, do da seman- tica discursiva, ou dos contetidos investidos na organizacdo sintatica abstrata. No primeiro caso, no da sintaxe, tem-se, por exemplo, o procedimento de produgao de um discurso em I* pessoa, que produz efeitos de subjetividade, ou em 3* pessoa, que cria a ilusio de obje- tividade. Esses e outros procedimentos da sintaxe discursiva tém uma certa autonomia em relagdo as formagGes sociais, pois constituem, com os efeitos de sentido produzidos, o lugar da manipulagao consciente (ou relativamente consciente) para a persuasio do destinatdrio da comunicagao, tal como vimos nos itens anteriores, quando examinamos 0 jogo de imagens e de simulacros que se instala entre destinador e destinatario e que determina as escolhas de procedimentos que fazem os sujeitos da comunicagio. Jaa semantica do discurso, que preenche a organizacao sintatica com contetidos, é 0 lugar das determinag6es sociais inconscientes. Esses elementos semanticos resultam, como vimos, de outros discursos, de outras comunicagdes e constituem a maneira de ver 0 mundo numa dada formagao social. A seméintica discursiva organiza os contetidos e, portanto, os discursos em dois tipos, conforme variem os graus de concretizaciio dos contetidos: os tematicos e os figurativos. Os discursos temiaticos tratam os contetidos de forma mais abstrata ¢ os figurati- vos concretizam sensorialmente (com forma, cores, sons, gestos, cheiros) esses temas. Tanto os temas quanto as figuras sofrem as determinagées sociais inconscientes ¢ sao, por exceléncia, o lugar da ideologia no discurso e na linguagem, como se pode observar no exemplo que segue: La vem o graio-senhor em seu ginete. Ploc, ploc, ploc. Ouve-se 0 som do galope, ploe, ploc, cada vez. mais préximo. Agora ele diminui a velocidade, ploc, enfim chega a porta do castelo. Entfo salta da montaria ¢ enfia-se direto castelo adentro ~ claro que no se preocupa em amarrar o cavalo, menos ainda em desatrelé-lo. Nao sto coisas para pessoa de sua categoria. Quando chegou, o servigal a0 qual 52 _Introdugio & Linguistica se dé 0 nome de palafreneiro, ou cavalarigo, ou estribeiro, jé estava a postos para executar o servigo. Da mesma forma, quando 0 senhor voltar a sair, lé estard 0 criado, presto, com o ginete no jeito para que as augustas botas nao se deem ao trabalho de outro passo senao galgar o estribo. Hoje 0 nome do palafieneiro é manobreito, ou manobrista. Manobreiro no Rio de Janeiro, manobrista em Sao Paulo, Os tempos mudaram, ¢ com eles 0s trajes e muitas outras coisas. Os castelos rareiam, como habitagdo, ¢ os animais perderam terreno, como meio de transporte, mas-no pais chamado Brasil © equivalente do palaftenciro continua firme e forte, & porta dos restaurantes. “Boa tarde, doutor, pode deixar ai mesmo”, O doutor larga o carro onde Ihe for de maior conforto. O manobrista (ou manobrei- ro) cuida do resto. (Roberto Pompeu de Toledo, “Pode deixar o carro ai mesmo, doutor”, em Veja, $20 Paulo, n.1447, p. 142, 5 jun. 1996) No texto citado 0 tema € 0 do atraso medieval do Brasil em que se mantém as desigualdades e em que triunfam o interesse individual sobre o coletivo, com duas cober- turas figurativas, relacionadas metaforicamente, a do grao-senhor, do castelo, do cavalo, do criado, das botas, do palafreneiro e a do manobrista-manobreiro, do doutor, do carro, do restaurante. A relagdo entre o tema e as figuras que o investem assinala, claramente, a posi¢ao ideoldgica do destinador, os valores comunicados em seu discurso e a determi- nagao social desse discurso, que dialoga com outros tantos: para opor-se ao de direito ao privilégio e aos interesses individuais da classe social dominante; para concordar com 0 do carater medieval e burro de uma elite que nao se atualizou; ou Para pér-se de acordo com os discursos de preocupagio primordial com a coletividade e nao com os interesses individuais, e assim por diante. Nesse cruzamento de vozes que concordam ou polemizam entre si, constroem-se os discursos e os sujeitos da comunica¢ao, determinados socialmente ¢€, portanto, sempre hist6ricos ¢ ideoldgicos, 6. Bibliografia Bakunin, Mikhail, Le principe dialogique. Paris, Seuil, 1981. Banventste, Emile. Problemas de Linguistica geral. Sto Paulo: Nacional/Edusp, 1976 Castitno, A. T de e Pren, D. (org,) 4 linguagem culta na cidade de Sao Paulo. vol. Il. 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