You are on page 1of 223
(LE oUTRAS POETICAS PoLITiCAS 6 EDICAO _AUGUSTO BOAL TEATRO DO OPRIMIDO E OUTRAS POETICAS POLITICAS ‘Augusto Boal — sabem-no to- dos — & personalidade marcante como autor ¢ diretor teatral, ten- do se empenhado, ao longo de sua carreira, na tenovagdo da cena brasileira, buscando reformular- -Ihe 0 conteddo ¢ transformar o espetéculo num ato de comunhio popular. Teatro para ele sempre esteve vinculado ao povo. Teatro do oprimido € otras potticas politicas € livro em que Augusto Boal expe, com entu- siasmo criativo ¢ lucidez exegéti- ca, o seu idedrio de teatrdlogo ¢ metteur en scone. Mas no livro o autor niio se limita a debater teorias — o que fax com raro brilho eficdcia — ow a expor criticamente as trans- formagdes fundamentais pot que © teatro passou no decorrer dos ‘tempos, ou seja, do sistema trigi- © coercitivo de Aristételes ¢ da poética da virtii, de Maquiavel, até chegar as colocagies propos- tas pelas coordenadas hegelianas © brechtianas. Boal avanga até o que chama poética do oprimido, ‘onde mostra “alguns dos caminhos pelos quais o povo reassume sua fungSo protaginica no teatro ¢ ma Sociedade.” Os escritos de Augusto Boal niio sdo fruto apenas de leituras, resultados eruditos de uma vida compromissada com o estudo, a meditagiio © a pesquisa. Slo, an- tes, produtos de uma vivéncia, Permanente e incansdvel, de um continuo trabalho com a matéria viva dos textos, dos palcos, das arenas, dos picadeiros ¢ de outros locais em que se exerga o oficio artistico — officio que aspira seja encaminhado de modo a que o teatro reencontre a atmosfera de liberdade que lhe é vital. © livro de Boal é polémico, discutidor, como convém a uma obra em que as idéias s3o 0 seu Principal conteiido. Idéias foram feitas para sofrerem, nfo perse- guigdes, mas o mais amplo, vee- mente, candente e caloroso deba- te. A fung&o do leitor, diante deste livro, é discutir também com © autor, ‘Os ensaios de Teatro do opri- mido e outras poéticas politicas foram escritos, com diferentes propésitos, — diz Boal — desde 1962, em Sio Paulo, até fins de 1973, em Buenos Aires, relatan- do experiéncias realizadas no Bra- sil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios paises lati- no-americanos. Epirora CIVILIZAGAO BRASILEIRA Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas Augusto Boal Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas 6° Edicao ene tl "Tat civilizagao brasileira Desenho de capa: pouné Diagramago: Léa CAULLIRAUX Impresso no Brasil Printed in Brazil 1991 Direitos desta edigdo reservados & EDITORA CIVILL O BRASILEIRA S.A. Av. Rio Branco, 99 - fear Centro 20040 - Rio de Janeiro - Tel: (O21) 263-2082 Telex: aly 33798 Fax: (021) 263-6112 Caixa Postal 2356 20.010 - Rio de Janeiro Para meu filho FABIAN ‘© Autor manifesta o seu profundo agradecimento a Enio Silveira que, através da edigio deste livro, concretizou o seu retorno ao Pais, depois de tantos anos. Sumario Explicagio 13 1. O Sistema Trigico Coercitivo de Aristdteles 15 Introdugio 17 A arte imita a natureza 19 Pequeno diciondrio de palavras simples 48 Como funciona o sistema trégico coercitivo de Aristételes 50 Distintos tipos de conflito: harmatia x ethos social 54 Conclusio 62 Notas 65 2. Maquiavel e a Poéiica da Virti 69 I — A abstragio medieval 71 Tl — A concregiio burguesa 78 TIT — Maquiavel © A Mandrdgora 86 TV — Modemas reduges da virtii 94 3. Hegel ¢ Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto? 103 4. Poética do Oprimido 133 — A — Uma experiéncia de teatro popular no Peru 136 Conclusto: “‘espectador”, que palavra feia! 180 — B — O sistema coringa 185 I — Etapas do Teatro de Arena de Sho Paulo 185 Tl — A necessidade do coringa 198 Il — As metas do coringa 205 IV — As estruturas do coringa 213 ‘V — Tiradentes: quest6es preliminares 221 ‘VI — Quixotes ¢ heréis 230 Explicagao STE Livro(*) procura mostrar que |todo teatro € neces- Etitaments politico, porque politicas sfio todas as ativida- des do homem, e 0 teatro é uma delas.) Os que pretendem separar o teatro da politica, pretendem conduzir-nos ao erro — ¢ esta é uma atitude politica, Neste livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o teatro é uma arma, Uma arma muito eficiente. Por isso, é ne- cessdrio lutar por ele. Por isso, as classes dominantes perma- nentemente tentam apropriar-se do teatro € utilizé-lo como instrumento de dominagao. Ao fazé-lo, modificam o préprio conceito do que scja o “teatro”. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberacdo, Para isso é necessdrio criar as for- mas teatrais correspondentes. E necessdrio transformar. _* Este livro redne ensaios que foram escritos com diferentes pro- Pésitos, desde 1962 em Sio Paulo, até fins de 1973 em Buenos Telatando experiéncias realizadas no Brasil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios outros paises latino-americanos. Alguns foram Originalmente escritos em portugués, outros em espanbol Creio que isto explica a diferenga de estilos, bem como possiveis reiteragées de certas idéias © temas, 13 Este livro mostra algumas destas transformagSes funda- )_mentais. “Teatro” era o povo cantando livremente ao ar livre: 9 povo era o criador eo destinatério do espeticulo teatral, que se podia entiio chamar “canto ditirambico”. Era uma festa em que podiam todos livremente participar. Veio a aristocracia - ¢ estabeleceu divisées: algumas pessoas iriam ao palco ¢ 9} elas poderiam representar enquanto que todas as outras per- maneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes scriam 0s espectadores, a massa, o povo. E para que o espetdiculo pudes- s¢ refletir eficientemente a ideologia dominante, a aristocracia \ estabeleceu uma nova divisfo: alguns atores seriam os prota- gonistas (aristocratas) e os demais seriam o coro, de uma forma ou dé outra simbolizando a massa. “O Sistema Trigico Coercitivo de Aristteles” nos ensina o funcionamento deste tipo de teatro. — ! Veio depois a burguesia ¢ transformou estes protagonistas: deixaram de ser objetos de valores morais, superestruturais, e passaram a ser sujeitos multidimensionais, individuos exeep- i) cionais, igualmente afastados do povo, como novos aristocra- tas — esta é a “Poética da Virti'' de Maquiavel. Bertolt Brecht responde a estas cas e@ converte o personagem teorizado por Hegel de sujeito-absoluto outra vez €2\em objeto, mas agora se trata de objeto de forgas sociais, nfo mais dos valores das superestruturas. O “ser social de- ‘termina o pensamento” e nilo vice-versa. Para completar o ciclo, faltava o que est atualmente ‘ocorrendo em tantos paises da América Latina: a destruigao das barreiras criadas pelas classes dominantes. Primeiro se des- tréi_ a barreira entre atores e espectadores: todos devem re- presentar, todos devem protagonizar as necessirias transfor- mages da sociedade. E o que conta “Uma Experiéncia de Teatro Popular no Peru". Depois, destrdi-se a barreira entre 03 protagonistas ¢ o Coro: todos devem ser, ao mesmo tempo, coro € protagonistas — é o “Sistema Coringa”. Assim tem que ser a “Podtica do Oprimido”: a conquista dos meios de [MARX] - Buenos Aires, Junho 1974 eo Augusto Boal 1 O Sistema Tragico Coercitivo de Aristételes tragédia é a criagio mais caracteristica da democracia ateniense} em nenhuma outra forma artistica os conflitos interiores da estrutura social estio mais clara ¢ diretamente apresentados. Os aspectos exteriores do espetéculo teatral para as massas ¢ram, sem ddvida, democriticos. Mas o contetido era aristocrdtico. Exaltava-se o individuo excepcional, rente de todos os demais mortais: isto é, © aristocrata. O Gnico progresso feito pela democracia ateniense foi o de substituir gradual- mente a aristocracia de sangue pela aristocracia do dinheiro, Atenas era uma democracia imperialista € as suas guerras traziam beneficios apenas para a parte dominante da sociedade. A prépria separagiio do protagonista do resto do coro demonstra a im- ularidade tematica do teatro grego. A tragédia € francamente tendenciosa. O Estado ¢ os fowem Ti pagavam as produgdes e naturalmente nao permitiams a encenagio de pegas de conteido contririo ao regime vigente”. Anold Hauser, Histdria Social da Literatura e da Arte. Introducao piscussko sobre as relagdes entre o teatro e a politica é tdo velha como o teatro... ou como a politica. Desde ‘Aristételes ¢ desde muito antes, ji se colocavam os mesmos temas € argumentos que ainda hoje se discutem. De um lado se afirma que a arte é pura contemplagio ¢ de outro que, pelo contrério, a arte apresenta sempre uma visio do mundo em transformagio ¢, portanto, € inevitavelmente politica, ao apre- sentar os meios de realizar essa transformagio, ou de demo- ré-la, Deve a arte educar, informer, organizar, influenciar, incitar, atuar, ou deve ser simplesmente objeto-de prazer ¢ gozo? © poeta (Cémico Aris(éfaries| pensava que “o comedid- grafo nfo s6 oferece prazer como deve também ser um pro- fessor de moral ¢ um conselheiro politico”. Erastdstene# pen- sava © contrario, afirmando que “a fungio do poeta é encan- tar os espiritos dos seus ouvintes, nunca instrul-los”. SSTRABO) argumentava: “A poesia é primeira ligio que o Estado d ensinar a crianga; a_poesia € superior 4 filosofia porque esta se dirige a uma minoria enquanto que aquela se dirige 4s massas.” (Pfafad\ pelo contrdrio, pensava que os poetas de- viam ser expulsos de uma Repiblica perfeita, porque, “a_pot- 17 pura Sia s6 tem sentido quando exalta as figuras © os fatos que devem servir de exemplo; o teatro imita as coisas do mundo, mas o mundo ndo € mais que uma simples imitagio das idéias — assim, pois, o teatro vem a ser uma imitagio de uma imi- tagio.” ‘Como se vé, cada um tem a sua opinifio. Mas serd isto possivel? A relagdo da arte com o espectador é algo susceti- vel de ser diversamente interpretado, ou, pelo contrdrio, obe- dece rigorosamente a certas leis que fazem da arte um fe- némeno puramente contemplativo ou um fendmeno estranha- velmente politico? F suficiente que o poeta declare suas inten- ges para que sua realizagio siga o curso previsto por cle? Vejamos o caso de Aristételes, por exemplo, para quem ia e politica so disciplinas completamente distintas, que devem ser estudadas 4 parte porque possuem leis i porque servem a distintos propdésitos e tém diferentes objeti- vos. Para chegar a estas conclusdes, Aristételes utiliza em sua Poéiica certos conceitos que sic melhor explicados em suas outras obras. Palavras que conhecemos por suas conotagées mais usuais mudam completamente o sentido se eames através da Etica a Nicémaco ou da Grande foral. ‘Atistteles] propos a independéncia da poesia (lirica, épi- ca ¢ dramatica)\em relagio a politica; o que me proponho a fazer neste trabalho € mostrar que, nJo obstante suas afirma- gées, Aristételes constrdi o primeiro sistema _poderosissimo. Poético-politico de intimidagio do espectador, de eliminagio das “mds” tendéncias ou tendéncias “ilegais” do piblico espec- tador, Este sistema é amplamente utilizado até o dia de hoje, no somente no teatro convencional como também nos dra- malhées em série da TV e nos filmes de far west: cinema, teatro ¢ TV, itelicamente unidos_para_reprimir. 9 poyo. Felizmente, o teatro aristotélico nfio é a a maneira de se fazer teatro. A arte imita a natureza A Tuam dificuldade que s¢ nos apresenta para que pos- samos compreender corretamente o funcionamento da tragédia segundo Aristételes consiste na propria definigSo que esse filésofo oferece da arte. Que é a arte, qualquer arte? Para ele, é uma imitagdo da natureza. Para nés, a palavra “imitar” significa fazer uma odpi mais ou menos perfeita de um modelo original. Sendo assim, a arte seria entiio uma cépia da natureza. E “natureza” sig- nifica, para nés, 0 conjunto das coisas criadas. A arte seria pois um oSpia das coisas criadas. Aristételes, contudo, quis dizer uma coisa completamen- te diferente. Para cle, imitar (mimesis) nio tem nada que ver com a eépia de um modelo exterior. A melhor tradugio da palavra mimesis seria “recriagio”. E “natureza" nio & o ‘conjunto das coisas criadas ¢ sim o préprio principio criador de todas as coisas. Portanto, quando Aristételes diz que a arte imita a natureza, devemos entender que esta afirmagio, que pode ser encontrada em qualquer tradug¢io moderna da Poética, 6 wma mf tradugo, originada talvez em uma inter- Pretagfio isolada do texto. “A arte imita a natureza” na verda- 19 de que dizer: ‘A arte recria o principio criador das coisas eriadas”. Para que fique um pouco mais claro como se processa essa “recriagio” ¢ qual € esse “principio”, devemos, ainda que superficialmente, recordar alguns filésofos que elaboraram suas teorias antes de Aristételes. EscoLa pe MiLeTo — Entre os anos 640 e 548 a.C., viveu na cidade grega de Mileto um comerciante de azeite, muito religioso, que era também navegante. Acreditava piamente em todos os deuses mas, ao mesmo tempo, tinha que transportar sua mercadoria por via maritima. Por isso, ocupava uma boa parte do seu tempo em elevar aos céus suas oragGes, para que fizesse bom tempo ¢ mar: tranqililo, ¢ nos seus momentos livres se dedicava a estudar as estrelas, os yentos, o mar e as relagSes entre as figuras geométricas. Tales|— assim se cha- mava esse grego — foi o primeiro ‘cientista a _prever_um eclipse solar. Também a cle se atribui_ um tratado de astro- omia nautica. Como se vé, Tales acreditava nos deuses, mas nao descuidava o estudo das ciéncias. Chegou a conclusio de que o mundo das aparéncias, cadtico, multifacético, na rea- lidade nzda_mais_era do que o resultado de diversas trans- formagSes de uma sé substiincia: a dgua. Para ele, a agua se podia transformar em todas as coisas e todas as coisas se podiam igualmente transformar em dgua. Essas transforma- Ges, segundo Tales, ocorriam porque as_ coisas possui “alma”, As vezes, essa “alma” podia se tornar sensivel ¢ seus efeitos cram imediatamente visiveis: o ima atrai o ferro — esta atrago é a alma. Portanto, segundo ele, a alma das coisas consiste no movimento que as proprias coisas possuem, que as transforma em agua que, por sua vez, se transforma em todas as coisas. ‘ ANAXIMANDRO, que viveu pouco depois (610-546 a.C.), acte- ditava mais ou menos no mesmo, mas para ele a substancia fundamental ndo era a agua e sim algo indefinivel, sem_pre- dicados, chamado “apeiron”, que se condensava ou rarefazia, criando assim as coisas. O “apeiron” era divino, por ser imor- tal _¢ indestrutivel. Outro dos fildsofos chamados da Escola de Mileto, Sane) (450 a.C.), sem variar grandemente as concep- anteriores, Wa_que © ar era o elemento mais pro- © era portanto o principio universal jas aS coisas. Existe algo comum a esses trés filésofos: a busca de uma matéria ou substincia Gnica, cujas transformagoes originam todas as coisas conhecidas; além disso, os trés afirmam — eee te ane antec as ae ae a De "tudo que escreveram, no entanto, muito poucos textos che- garam até os nossos dias. Jd de Herdctito, o primeiro din- fico, temos farta documentagio. Herdcurto & CrAtiLo — Para Herdclito, o mundo ¢ todas as coisas do mundo estio em pemuneni. transformagio, E essa ‘transformagao permanente ¢ a_coisa imutiyel. A apa- Téncia de estabilidade é uma simples iluséo dos sentidos e deve ser corrigida pela razio. E como ocorre essa transformagio? Bem: todas as coisas coisas, da mesma maneira pela qual o ouro se transforma em joias que podem por sua vez ser transformadas em ouro. ‘Mas, como na verdade o ouro nfo se transforma ¢ sim ¢ transformado, existe alguém (o joatheiro), estranho a maté- ria Ouro, que faz possivel essa transformagio. Porém, para Heraclito, o elemento transformador residia dentro da coisa mesma, como uma oposigio: “a guerra é a mie de todas as coisas; a oposigdo unifica, pois o que esté separado cria a mais bela harmo tudo que acontece, acontece téo-soments porque existe luta”. Isto é, cada coisa traz dentro de si mesma 21 perTeGOn It ase um antagonismo que faz com que se mova do que é para © que nao é Para mostrar o cardter de permanente transformagio de todas as coisas, Herdclito dava um exemplo concreto: ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio. Por que? Porque na segunda vez em que entre j4 nfo serfio as mesmas Aguas as que estario correndo, nem sera cxatamente a mesma pessoa, que serd mais velha, ainda que seja de tio-somente alguns se- gundos. Cratilo, seu aluno, ainda mais radical, dizia ao mestre que ninguém pode entrar no rio nem sequet uma 6 vez, pois, a0 entrar, j4 as dguas do rio se estario movendo (¢ em que ‘iguas entraré?) ¢ jé estard envelhecendo a pessoa que tenta entrar no rio (e¢ quem estgré entrando, a mais velha ou a jovem?). S60 movimento das fguas é eterno, dizia Cré- ilo; 6 o envelhecimento é eterno; s6 o movimento existe: tudo © mais so aparéncias vas, PakMENiDEs E ZENKo — No extremo oposto a esses dois de- fensores do movimento, da transformagio, da luta interna que Promove essa transformagio, estava Parménides, que partia, para a criag%io de sua filosofia, de uma premissa fundamental, légica: “O Ser & @ o nJo-Ser niio Efetivamente seria ab- surdo pensar o contrdrio ¢, como dizia Parménides, “os pen- samentos absurdos nao sio reais". Existe portanto uma identi- dade entre o “ser” ¢ o “pensar” segundo o fildsofo. Se acei- tamos esta premissa inicial, dela estaremos obrigados a extrair uma quantidade de conseqiiéncias: 1. @ Ser é tinico, porque, se assim nao fosse, haveria entre um Ser e outro Ser o “nio-Ser", que estaria entre 0s dois; mas j4 accitamos que o “ndo-Ser” nio é, & por- tanto teremos que aceitar que o Ser é dnico, apesar da ‘aparéncia enganosa que nos diz 0 contrério; 2. Ser é eterno, porque, se assim niio fosse, depois do Ser viria necessariamente 0 “ndo-Ser" que, como jé vimos, no €; 3. o Ser é infinito (e aqui Parménides cometeu um pe- queno erro Kégico: depois de afirmar que o Ser € infini- to — pois do contrério, depois de sua finitude, ° néo-Ser — afirmou também que era esférico; ora, pois, se é esférico, tem uma forma, ¢ se a tem, tera igualmente seus limites, além dos quais necessariamente estaria outra vez 0 nfio-Ser. Nao é este porém o Ingar para examinar tais sutilezas. Possivelmente “esférica” seja uma mA tra- dugao ¢ talvez Parménides tivesse querido dizer “infinito em todas as diregdes” ou coisa que o valha); 4. 0 Ser é imurdvel, porque toda transformacio signi- ficaria que o Ser dei de ser o que € para comegar a ser o que ainda nfo é: entre um e outro estado, necessa- riamente estat talado o nfo-Ser, e como este nfo é, nao existe possibilidade alguma, segundo esta légica, de que exista qualquer transformagio; 5. o Ser é imével: o movimento € uma ilusio, porque significaria que o ser se moveria de um lugar onde esté para um lugar onde nfo estd, significando isso que entre os dois lugares estaria o nfo-Ser ¢, uma vez mais, isto seria uma impossibilidade légica. + ‘Destas afirmagSes, Parménides termina por concluir que, como elas esto em desacordo com os nossos sentidos, com 0 que podemos ver, ouvir ¢ sentir, isto significa que existem dois mundos perfeitamente definiveis: o m inteligivel, racio- nal, ¢ o mundo das aparéacias. O movimento, segundo ele, & uma Si, pa porque podemos demonstrar que niio existe; o mesmo em relagiio multiplicidade das coisas reais existentes, jue so, em sua légica, um tnico Ser, infinito, eterno, intrans- formavel, imével. Também Parménides, como era hdbito, tinha seu disci- pulo radical, chamado Zeno. Este tinha o costume de contar duas histérias para provar a inexisténcia do movimento. Duas histérias célebres, mas que vale a pena recordar. |A primeira contava que em uma corrida entre Aquiles (o mais ripido corredor grego) e uma tartaruga, aquele jamais conseguiria ¥ 23 alcangar esta, se 4 tartaruga fosse concedida uma pequena vantagem inicial. Assim era seu raciocinio: por mais rapido que corra Aquiles, teré que vencer primeiro @ distincia que o se- parava da tartaruga no momento em que se iniciou a corrida. Mas, por mais lenta que seja a tartaruga, durante esse breve momento ¢la jé se teré movido, ainda que seja tio-somente alguns poucos centimetros, Quando Aquiles se proponha outra vez a alcangd-la, ter, sem divida, que vencer esta segunda distancia. Durante este lapso de tempo, por menor que seja, uma vez mais a tartaruga teri avangado um pouco mais ¢, para sobrepassi-la, Aquiles tera uma vez mais que vencer a distincia cada vez menor, que continuamente o estard sepa- rando da tartaruga, que, muito lentamente, jamais se deixard wencer.[ 9! shi ‘A segunda histéria consistia em afirmar que se um arquei- {ro dispara uma flecha em dires3io a uma pessoa, esta pessoa no tem nenhuma razio para sair da frente, porque a flecha jamais a alcancaré. Da mesma forma, se cai uma pedra na cabeca de alguém, esse alguém nfo tem a menor necessidade de fugir, porque a pedra jamais the quebrard a cabeca. Por 2? simplesmente, segundo Zeno (obviamente um ho- mem de extrema direita!), porque uma flecha ou uma pedra, Para mover-se, col walquer objeto ou qualquer pessoa, deve mover-se ou no lugar onde esti ou no lugar onde ainda nio estd. No se pode mover no lugar onde esté, porque, se esid af, isso significa que no se moveu. Tampouco se pode mover no lugar onde no esta, porque é evidente que nfo esta Id para | fazer esse movimento. Conta-se que quando Ihe atiravam pe- | dras pela rua por causa de raciocinios como este, Zenio, ape- (sar de sua légica, fugia... » Claro que a légica de Zenfio padece de uma falha fun- d I: o movimento de Aquiles e da tartaruga nio si interdependentes, nem descontinuos. Aquiles no vence pri- meiro uma parte da distlincia, para vencer depois a segunda etapa. Ao contrario, corre toda a distincia sem s¢ relacionar Com a velocidade da tartaruga, ou com a de um bicho pre- Guiga que pode estar por sua livre iniciativa participando da mesma corrida. No segundo caso, 0 movimento ndo se pro- 24 cessa em um lugar ov em outro, ¢ sim de um lugar PARA o outro: © movimento é justamente a passagem de um lugar @ outro ¢ no uma seqiiéncia de atos em distintos lugares. Locos £ PLatio — E& importante compreender que nao pre- tendo aqui escrever a histéria da filosofia, mas apenas tentar explicar o mais claramente possivel o conceito aristotélico de que a arte imita a natureza, ¢ de esclarecer de que natureza se trata, de que tipo de imitagdo, e de que tipo de arte. Por isso, passamos tio sup ‘ialmente por cima de tantos pen- sadores ¢, de -Savratet, quaremes deixar estabelecido tio-so- mente o scu (conceito de logos. Para ele, o mundo real ne- cessitava ser conceituado & mancira dos geémetras. Na natu- reza existem infinidades de formas que se assemelham a uma forma geralmente designada como trifingulo: assim se estabe- lece o conceito, o logos do triingulo: é a figura geométrica que possui trés lados e trés Angulos. Uma infinidade de obje- tos reais podem ser assim conceituados, Existe uma infinida- de de formas de objetos que se parecem ao quadrado, a esfe- ra, ao poliedro; portanto, se estabelecem os conceitos (logos) do poliedro, da esfera ¢ do quadrado. Deve-se fazer o mesmo, dizia Sécrates, com os logos de valores morais & conceituar 0 que € a coragem, o bem, o amor, a tolerincia, etc. (TPoputiliza a idéia socritica de logos, e vai mais longe: 1. te por ser intuitiva, é pura: nhum triangulo perfeito, mas a idéia que temos do trifin- gulo é perfeita. Niio se trata deste ou daquele trifingulo que podemos ver na realidade, mas sim do tridngulo “em geral”. Quando as pessoas se amam, quando realizam o ato do amor, realizam-no imperfeitamente. Mas a “idéia™ de amor, essa idéia é perfeita. Todas as “idéias” sfio per- feitas ¢ siio imperfeitas todas as coisas concretas da rea- lidade. 2. as “idéias” sto as esséncias das coisas cxistentes no mundo sensivel. As idéias so indestrutiveis, iméveis, imu- taveis, intemporais ¢ eternas. 25 — (3) © “conhecimento” consiste em que nos elevemos, ‘através da dialética — isto é, do debate das idéias postas e contrapostas, das idéias © das negagbes dessas mesmas idéias, que sfio por sua vez outras “idéias” — desde o mundo da realidade sensivel até 0 mundo das idéias eter- nas. Esta ascese & o conhecimento. PorTANTO, QUAL £ 0 SIGNIFICADO DE IMITAR? Aqui estamos quando entra ARISTOTELES (384-322 a.C.) ¢ refuta Platio: 1. Platio unicamente multiplicou os seres que para Parménides eram um s6 Ser; para ele s&o infinitos, por- que infinitas sio as idéias. 2. a metaxis, isto é, a participagdo de um mundo em outro, é incompreensivel; na werdade, que tem a ver 0 mundo das idéias perfeitas com o mundo imperfeito das coisas reais? Existe o transito? Como se processa esse transite? Refuta, mas ao mesmo tempo também o utiliza. Intro- duz alguns novos conceitos: “substincia” ¢ a unidade indis- soldvel de “matéria” © “forma”. “Matéria”, por sua vez, ¢ © que constitui a “substAncia’ matéria de uma tragédia sio as palavras que a constituem; a matéria de uma estdtua € 0 m&rmore ou a pedra, “Forma” é a soma de todos os pre- dicados que podemos atribuir a uma coisa, é tudo o que po- demos dizer dessa coisa. Cada coisa vem a ser o que é (uma estétua, um livro, uma casa, uma drvore) porque a sua ma- téria recebe uma forma que Ihe dé sentido e finalidade, Esta ‘conceituagio confere ao pensamento platénico a caracteris- tica dinimiea que the faltava. (0 mundo das idéias nio co- -existe lado a lado com o mundo das realidades, mas, ao contririo, as “idéias” (aqui chamadas “formas”) sio o pré- Prio principio dindmico da matéria.] Em iitima andlise: para 26 Aristételes, a realidade nfo & a cépia das idéias mas, ao con- trario, tende & perfeigao expressa por essas idéias; contém, em si mesma, 0 motor que a levard a essa perfeigio. O bomem tem a tendéncia a ser sauddvel, a ter a pro- porgio corporal perfeita, etc; os homens, em conjunto, ten- dem a familia perfeita, ao Estado. As drvores tendem A per- feigfio da Arvore, isto é, & idéia platénica da drvore perfeita. © amor tende ao Amor platénico, perfeito. ‘matéria”, para Aristételes, era pura poténcia e a “forma” puro ato. E o movimento das coisas em busca da perfeig¢io € o que ele chamava atoalizagio da poténcia, isto é, © trinsito da pura poténcia A pura forma. Para nossos propdsitos, neste momento, interessa in: tir neste ponto: para Aristételes, as coisas tendiam A perfei- gio por virtudes préprias, por sua prépria “forma”, ou motor, ou atoalizago de sua poténcia. Nido existem dois mundos ¢ Portanto nio existe metaxis. O mundo da perfeigio nio é nada mais que um anelo, um movimento que desenvolve a matéria em dire¢lo A sua forma final, #—* Portanto, que quer dizer jitar” para Aristételes? Quer dizer: recriar esse movimento interno das coisas que se diri- gem_ perfeigio. “Natureza” era esse movimento e no o conjunto de coisas j4 feitas, acabadas, visiveis, “Imitar”, por- tanto, no tem nada a ver com “realismo", “cépia” ou “im- Provisagio". E é por isso que Aristételes podia dizer que o artista deve “‘imitar” os homens como deviam ser e niio como so. Isto é, imitar um modelo que nfo existe, PARA QUE SERVEM ENTAO A ARTE E A CIENCIA? Se as coisas por si mesmas tendem A perfeigio, se a per- feigdo é imanente a todas as coisas ¢ ndo transcendente, para que servem entdo a arte © a ciéncia? —+A Natureza, segundo Aristételes, tende a perfeigo, mas isso nléo quer dizer que a alcanceJ O corpo humano tende & Satie, mas pode enfermar-se. Os homens tendem ‘gregaria- 27 mente ao Estado perfeito e & vida comunitdria, mas podem ocorrer guerras. Diriamos melhor portanto que a Natureza tem certos fins em vista, perfeitos, ¢ a eles tende, mas ds vezes fracassa. (Para isso serve a arte © serve a ciéncia: para, “recriando o principio eriador” das coisas criadas, corrigir a natureza naquilo em que haja fracassado.] Alguns exemplos: o corpo humano fenderia a resistir & chuva, a0 vento ¢ ao sol, mas tal ndo se dé, e a pele no é suficientemente resistente para isso. Entra, pois, em agio a arte da tecelagem, que permite a fabricagéo de tecidos para a protegio da pele. A arte da arquitetura constréi edificios @ pontes para a habitagio do homem ¢ para que cruze os rios, A medicina prepara os medicamentos necessdrios para quando determinado 6rgao deixe de funcionar como deve. E a politica serve igualmente para corrigir as falhas que os ho- mens possam cometer, ainda que tendam todos 4 vida comu- nitéria perfeita. Esta é a fungdo da arte e da ciéncia: corrigir as falhas da natureza, utilizando para isso as proprias sugestSes da na- tureza. Artes MaAlorEs E ARTES MENORES: As artes e as ciéncias nfo existem isoladamente, sem que nada as relacione, mas, a0 contrdrio, esto todas inter-rela- cionadas segundo a atividade propria de cada uma. Estio de certa forma hierarquizadas segundo a maior ou menor mag- nitude do seu campo de agao. As artes maiores se subdividem em artes menores € cada uma destas trata dos elementos espe- cificos que compSem aquelas. da felicidade: o exercicio virtuoso da alma racional. ! ~— Agora sabemos que a Tragédia “imita as agdes da alma racional, paixdes transformadas em hébitos, do homem que busca a felicidade, isto é, o comportamento virtuosq™ Muito. bem. Mas ainda nos falta saber o que € a virtude. ET E A VIRTUDE, © QUE £? A virtude é 0 comportamenta mais distante dos extremos de comportamento possiveis em uma situagio dada. A vit- tude nfo pode ser encontrada nos cxtremos: tanto 0 homem que yoluntariamente nio come como 0 comilfio causam da- nos a sua sadde, Nenhum dos dois s¢ comporta virtuosamente. Comer com moderagio sim, é um comportamenta virtuoso. Tanto a auséncia do exercicio fisico como o exercicio dema- siado violento arruinam o corpo: o exercicio fisico modera- do é 0 comportamento virtuoso, Ocorre 9 mesmo com as vir- tudes morai ‘reonte pensa apenas no bem do Estado, en- (quarito-que“Antigona pensa apenas no ‘bem da familia, ¢ por isso deseja enterrar 0 corpo de seu irmio invasor. Os dois se ) \comportam de uma forma nfo virtuosa: seus comportamentos ! ‘sao extremos, A virtude estaria em alguma parte do meio /yNyermo, Seria necessério respeitar os interesses da familia, mas 4 etambém os do Estado. O homem que se entrega a todos os ““crazeres é um libertino, mas o que foge de todos os praze- t) 5 é um insensivel. O que foge de todos os perigos é um i] ‘covarde mas o que enfrenta todos os perigos € um temerario. A virtude nao esté geometricamente no meio, no € equi- distante: a coragem (virtude) de um soldado estd muito mais perto da temeridade do que da covardia. A virtude também nao existe em nés “naturalmente”: € necessdrio aprendé-la. ‘As coisas da natureza nao podem adquirir habites: 0 homem sim, A pedra nfo pode cair para cima, nem o fogo queimar para baixo. Nés, os homens, podemos criar habitos que nos permitam o comportamento virtuoso. Os animais podem criar hdbitos, mas jamais sera capazes de sentir.a felicidade no seu nivel superior. A Natureza, sempre segundo Aristételes, nos da facul- dades ¢ nés temos o poder de transformé-las atos (paixdes) ¢ em hdbitos, Torna-se sibio aquele que exerce a sabedo- Tia, ¢ se tora justo aquele que exerce a justiga, enquanto que o arquiteto adquire sua virtude como arquiteto construin- do edificios. Habitos, ¢ no simples faculdades! Habitos, ¢ Aristételes vai mais longe e afirma que os hdbitos devem ser contraidos desde a infincia ¢ que o jovem no pode fazer politica porque necessita antes “aprender todos os habitos vir- tuosos que Ihes ensinam os mais velhos, os legisladores que Preparam os cidadios para o exercicio dos habitos virtuo- ‘808 = ibemos agora que o vicio é o comportamento extremo € que a virtude é 0 comportamento em que niio se verifica excesso nem caréncia, Mas, para que se possa dizer que de- terminado comportamento é virtuoso ou vicioso ¢ necessirio que se cumpram quatro condigSes indispensiveis: voluntarie- dade, liberdade, conhecimentoe constincia. J4 explicaremos © significado destas expressdes, mas queremos antes deixar bem claro que a “Tragédia imita as aces da alma racional do homem (paixdes habituais), em busca de uma felicidade que consiste no comportamento virtuoso”. Pouco a Pouco, nossa definigio, segundo Aristételes, val-se tomando cada vez mais complexa, Caracteristicas NecessArias A VIRTUDE © homem pode se comportar de uma maneira totalmen- te virtuosa ¢ nem por isso ser considerado virtuoso, ou de uma mancira viciosa € nem por isso ser considerado vicioso. Sao necessirias quatro condighes para que o comportamento seja considerado vicio ou virtude: PRIMEIRA CONDICAO: VOLUNTARIEDADE — A voluntariedade exclui o acidente. Isto é: o homem atua porque decide vo- luntariamente atuar. Um dia um pedreiro pos uma pedra em cima de um muro de tal maneira que um forte vento jogou-a abaixo. Por casualidade, caiu ¢m cima da cabega de um transeunte que ia passando. E ele morreu. Sua vitiva processou o pedreiro ¢ este sc defendeu afirmando que nfo tinha cometido crime algum porque no tinha tido a intengio de matar a vitima, ‘Niio haveria, pois, o comportamento vicioso porque se tra- 33 tava nitidamente de um acidente. Mas o juiz no aceitou esta defesa e condenou o pedreiro, baseando-se no fato de que nio existia voluntariedade em relagio & morte do transeunte, mas sim em colocar uma pedra tal posigfo que podia cair ¢ causar uma morte. Neste aspecto, existiu volunteriedade. Se a acio de um homem é determinada por sua vontade, af existe virlude ou vicio. Se, a0 contrdrio, sua agio nfo estd determinada por sua vontade, ai nfo existird uma coisa nem outra. Quem pratica o bem sem perceber o que est fazendo, nfio é uma boa pessoa. Nem seri m4 aquela que causar um dano involuntirio. SEGUNDA CoNDIGAO: LiBERDADE. — Neste caso se exclui a violéncia exterior. Se um homem faz alguma coisa ma, obri- gado por outro que Ihe aponta um revélver na cabeca, ndo se pode, neste caso, falar vicio. A virtude é o compor- tamento livre, sem pressdes exteriores de nenhuma indole. Uma mulher, abandonada por seu amante, decidiu matd- lo antes de perdé-lo. Levada aos tribunais, declarou, para de- fender-se, que nfo havia agido livremente: havia sido levada ao crime por sua paixSo irracional, Mas também neste caso © Juiz pensou diferentemente: a paixdo é parte integrante da pessoa, € parte da sua “alma”. Nao existe liberdade quando alguém sofre uma violéncia exterior, e este era um impulso interior. E a mulher foi condenada. (55 Tercema CONDI¢AO: CONHECIMENTO — Eo contririo da ignorincia. A pessoa que age tem diante de si uma opgao cujos termos essa pessoa conhece. Em um tribunal, um criminoso bébedo afirmou que havia cometido o crime em estado de embriaguez, ¢ portanto nio tinha consciéncia do que fazia, no momento em que matou outro homem, Também neste caso ‘9 bébedo fai condenado: antes de comegar a beber tinha per- feita consciéncia de que o flcool podia levé-lo ao estado de inconsciéncia. Era, portanto, culpado de ter-se permitido che- gar a um estado em que j4 nilo teria mais conhecimento do que fazia. MM @- ditedacs Em relagéo a esta terceita condigao do comportamento virtuoso, em geral se contrapdem os casos de Otelo e¢ de Edipo. Nos dois casos se discute a existéncia de conhecimento (que confere caracteristicas de virtude ou de vicio ao comporta- mento), ou nio. Na minha opiniio, é conhece a verdade: Iago mente sobre démona, sua ¢sposa, ¢ Otelo, cego de citimes, mata-a. ‘A tragédia de Otelo, contudo, reside em algo muito além do simples assassinato. Sua falha trigica_(e logo discutire- mos o conceito de Aarmatia, falha trigica) (nfo é ter dado morte 4 sua esposa. Este nio era um acontecimento “habi- tual", Ao contrério, o seu constante orgulho’e a sua teme- ridade irrefletida, esses sim, eram habitos. Em varios momen- tos da pega, Otelo conta como arremetia contra seus inimigos sem medir as conseqiiéncias da sua agdo. Sua soberba foi a causa da sua desgraga, € sobre isto Otelo tinha perfeita cons- ciéncia, perfeito conhecimento. Também no caso de Edipo & necessirio considerar qual a sua verdadeira falha trigica (harmatia). Sua tragédia nio consiste em haver assassinado seu pai ¢ casado com sua mde. F légico que estes nfo eram atos “habituais", ¢ como ja vimos o habito é uma das quatro caracteristicas do comportamento virtuoso ou vicioso. Se lemos com atenglo a pega de Séfo- cles veremos que Edip, em todos os momentos importantes de sua vida, revela seu extraordindrio orgulho, sua soberba, sua aulovalorizagao, que faz com que gle se_acredite superior aos proprics deuses. Néo é a Moira (o Destino) que faz com que ele caminhe para o seu fim trigico; ele mesmo, por de- cisfo propria, caminha para a sua desgraga. E sua intolerin- cia que o leva a matar um velho (que descobre, posteriormen- te, ser seu pai), porque este nJo o tratou com o devido res- peito, numa encruzilhada, E, quando decifrou o enigma da Esfinge, foi uma vez mais por orgulho que aceitou o trono de Tebas, ¢ a mio da Rainha, uma senhora com idade sufi- ciente para ser sua mie. Para infelicidade sua, era! Caramba: uma pessoa a quem os ordculos (espécie de macumbeiros ou videntes da época) haviam dito que ia se casar com sua pré- Ptia mie ¢ matar seu proprio pai deveria ter um pouco mais 35 de cuidado ¢ abster-se de matar velhos com idade de ser seu pai, e de casar-se com velhas com idade de ser sua mic, Por que no 0 fez? Por orgulho, por soberba, por intolerancia, por acreditar-se adversirio digno dos préprios deuses. Estas sic as suas falhas, estes séo os. seus vicios. Conhecer ou nfo a iden- tidade de Jocasta, e de Laio, era inteiramente secundirio. O préprio Edipo, quando reconhece seus erros, reconhece estes fatos. Concluimos entio que a terceira condigdo para que o comportamento seja virtuoso consiste em que o agente saiba, conhega, os verdadeiros termos da sua opgio, Quem quer que aja por ignorincia nio pratica vicio nem virtude. Quanta conpigio: ConstAncta — Como as virtudes ¢ 05 vicios so hébitos © mo apenas paixdes, ¢ necessério que o comportamento virtuoso ou vicioso seja também constante, Todos os herdis da tragédia grega agem consistentemente da mesma maneira. Quando a falha tragica de um personagem consiste precisamente na sua incoeréncia, ¢sse personagem deve ser apresentado como “coerentemente incoerente". Mesmo neste caso, nem o acidente nem a casualidade caracterizam o vicio ou a virtude. Assim, pois, os homens que a tragédia imita sfio 03 ho- mens virtuosos que, a0 atuar, mostram. vyoluntariedade, liber- dade, conhecimento ¢ constincia. O homem busca a felici- dade através da virtude, ¢ estas so as quatro condigdes neces- sérias ao exercicio da virtude. Mas, existird uma sé virtude, ou existirlo virtudes de diferentes graus? Os Graus DA VIRTUDE -/Cada arte, cada ciéncia, possui a sua prépria_virtude, porque possui o seu préprio fim, o seu proprio bem, A vir- tude do cavaleiro consiste em andar bem a cavalo; a virtude do ferreiro em fabricar bem instrumento de ferro; @ vittude do artista em criar sua obra perfeita; a do % médico, em restituir a sadide ao doente; a do legislador, em fazer as leis perfeitas que tragam a felicidade aos cidaddos. Vemos assim que cada arte e cada ciéncia possui a sua propria virtude, mas também é verdade que todas as artes ¢ todas as ciéncias entio inter-relacionadas, sio interdependen- tes, © que umas so superiores as outras quando sio mais complexas que as outras, © quando estudem ou incluam se- tores maiores da atividade humana. De todas as artes ¢ cién- cias, a ciéncia e a arte soberana € a Politica, porque nada lhe é estranho. A Politica tem como objeto de estudo a tota- lidade das relagdes da totalidade dos homens. Portanto, o maior bem, cuja obtengio significard a maior virtude, é o bem poli- tico,~ ‘A Tragédia imita as agdes do homem, cujo fim é o bem; mas a Tragédia nfo imita as agdes cujos fins sio fins me- nores, de importincia secundéria. A Tragéd ta as agdes cujo fim é o fim superior, o Bem Politico. E qual sera o Bem Politico? Nao ha duvida: o bem superior € o Bem Politico ¢ o Bem Politico ¢ a Justigal Mas, 0 que & A Justica? Na Etica a Nicémaco, Aristoteles propde (¢ nds aceita- mos) que “justo é o igual e injusto o desigual”, Em qual- quer divisiio, as pessoas que sejam iguais devem receber par- tes iguais, € as pessoas que, por qualquer critério, sejam desiguais, devem receber partes desiguais. Até af estamos de acordo. Mas é necessdrio definir quais sio os critérios de desi- gualdade porque ninguém vai desejar set desigual “para men- nos”, € todos desejardo ser desiguais “para mais”. © proprio Aristételes era contra a lei de Taliio (olho por olho, dente por dente), porque dizia que, se as pessoas nao fossem iguais, tampouco seriam iguais os seus dentes ¢ os seus olhos. Por isso, tinha cabimento perguntar: olho de quem por olho de quem? No caso de se tratar de um olho de senhor por um olho de escravo, Aristteles se opunha porque, para ele, esses olhos nio se equivaliam. Se se tratasse de 37 ‘um dente de homem por um dente de mulher, para Aristételes tampouco havia equivaléncia. Neste ponto, para determinar os critérios de desigualdade e pata que ninguém possa protestar, 0 nosso filésofo utiliza ‘um argumento aparentemente honesto. Pergunta: “de que de- vemos partir, dos principios ideais abstratos ¢ descer até a realidade, ou, pelo contrdrio, da realidade concreta e subir até os principios?” Abandonando qualquer romantismo, ele mesmo responde: “devemos partir evidentemente da realida- de concreta; empiricamente temos que descobrir quais sfio as desigualdades reais existentes ¢ sobre clas basear os nossos cri- térios de desigualdade”. Este raciocinio falaz nos leva a accitar como justas as desigualdades jd existentes. Quer dizer, 2 justiga jA estaria contida na realidade ta qual é. Aristétcles nfo considera a possil de de transformagio das desigualdades jd existentes: ele as aceita como justas, porque séo empiricamente consta- tdveis.|E s6 por isso, Em seguida determina que, existindo na realidade empi- rica homens livres ¢ homens escravos (e¢ no importam os principios abstratos, nlio importa saber se essa realidade pode ser transformada), esse sera o primeiro critério de desigual- dade, Ser homem @ mais do que ser mulher — quem o diz € Aristételes que assim cré interpretar a realidade real ¢ con- ‘creta. Se aceitamos estas desigualdades, os homens livres esta~ riam em primeiro lugar, viriam depois as mulheres livres, em seguida os homens escravos ¢ fechando a fila as pobres mu- Theres. escravas. ‘Assim era a “democtacia” ateniense, que se baseava no valor supremo da “liberdade”. Mas nem todas as sociedades se baseiam nesse mesmo valor: para as oligarquias, por exem- plo, o valor supremo é a riqueza. Nelas, os homens que mais tém sio considerados superiores aos que menos possuem, Sem- pre partindo da realidade tal qual é... i ‘Chegamos assim & conclusio de que a(Justica ndo € a igualdade ¢ sim a proporcionalidade.)E os critérios de desi- gualdade estiio dados pelo sistema politico vigente em cada cidade, ow em cada pais. A Justiga serd sempre a proporcio- nalidade, mas os critérios que determinam esta nfo serio sem- Ely pre os mesmos, variando quando se trate de uma democracia, uma oligarquia, uma repdblica, uma ditadura, etc. E como se estabelecem os critérios de desigualdade para que todos os conhegam? Através das leis! E quem fabrica essas leis? Se as leis fossem feitas pelos seres humanos de ca- tegorias inferiores, como as mulheres, os escravos, os pobres,, etc., evidentemente seriam leis inferiores como seus autores. Para que se facam leis superiores & necessirio que sejam fei- tas pot seres superiores: os homens livres, as ricos, etc. Eu quero deixar bem claro que quem faz esas afirmagoes & Aris- tételes, eu nfo tenho nada que ver com isso... A Constituigio sistematiza o conjunto de leis de umia cidade ou pais. A Constituicio, portanto, ¢ a expressio do bem politico, é a expressiio maxima da Justiga. al Agora, finalmente, com a ajuda da Etica a Nicémaco, podemos chegar a uma conclusio clara do que é, para Aris- toteles, a Tragédia. Sua definicio mais ampla e mais comple- ta seria a seguinte: “A Tragédia imita as agdes da alma racional do homem, suas paixdes tornadas hdbitos, em busca da felicidade, que consiste mo comportamento virtuoso, que é aquele que 6 afasta dos extremos possiveis em cada situagio dada concre- ta, cujo bem supremo ¢ a Justiga, cuja expresso maxima é a Constituigio!” Ufa! >, Em ltima instineia, a felicidade consiste em obedecer ae teil a Ora veja! Aristételes nio diz nem mais nem menos d qué isso, e o declara com todas as letras! Para as pessoas que fazem as leis, parece que isto Ihes vai muito bem. Mas, ¢ os outros? Estes, compreensivelmente se rebelam ¢ nfo desejam accitar os critérios de desigualdade. que a realidade afual, vigente, — mas n§o necessariamente eterna, — propde. Esses critérios sio modificdveis, como mo- dificdvel é a propria realidade. Por que no modific-la? Nes- tes casos, adverte severamente o filésofo, “As vezes a guerra ." Quer dizer, quando nao sfo aceitos por bem, ! x» EM QUE SENTIDO 0 TEATRO PODE FUNCIONAR COMO UM INSTRUMENTO PURIFICADOR B INTIMIDATORIO? J& vimos que a populagio de uma cidade ou pais nfo esti “uniformemente” contente com as desigualdades reais existentes, Por isso é necess4rio fazer com que todas fiquem, se nio uniformemente contentes, pelo menos uniformemente pas- sivos, diante das desigualdades ¢ seus critérios. Como conse- gui-lo? Através das muitas formas de repress: politica, bu- rocracia, policia, habitos, costumes, tragédia grega, etc. Esta afirmagio pode parecer um tanto arriscada, mas nada mais é do que a verdade. Na verdade, o sistema apresentado por Aristételes em sua Podtica, o sistema de funcionamento da tragédia (¢ de todas as outras formas de teatro que até hoje seguem OS seus mecanismos gerais), no sio apenas um sis- tema de repressio: é claro que outros fatores mais “estéticos” também intervém, e devem igualmente ser considerados. Neste ensaio, porém, pretendo analisar fundamentalmente este aspec- to, a meu ver, central: a fungio repressiva do sistema pro- posto por Aristételes. E por que a fungiio repressiva é o aspecto fundamental da tragédia grega e do sistema trigico aristotélico? Simplesmen- te porque, segundo Aristételes, a_finalidade suprema da Tra- pédia & a de provocar a “catarse’ FINALIDADE ULTIMA DA TRAGEDIA © cardter fragmentério do que nos restou da Podtica fez desaparecer a s6lida conexo existente entre as suas partes, como também a hierarquizagio de cada uma destas dentro do todo. $6 esse fato explica que observagdes marginais, de escas- sa ou nenhuma importincia, tenham sido consideradas con- ceitos centrais do pensamento aristotélico. Quando s¢ trata, Por exemplo, de Shakespeare ou do teatro medieval, é muito comum dizer-se que tal ou qual peca nfo ¢ aristotélica por- que nfo obedece A chamada “lei das trés unidades"... Hegel, ha sua Histéria da Filosofia, contesta: “... as trés unida- 40 des... que as Estéticas antigas formulavam invatiavelmente como as régles d'Aristote, la sceine doctrine, embora ele fale Hiio-somente da unidade da ago, e apenas de passagem, da uni- dade de tempo, sem mencionar nunca a tereeira unidade, ou seja, a de lugar.” (pag. 239). A desproporcionada importincia que se di a esta lei & incompreensivel, j4 que sua validez é tio nula como seria a afirmagao de que sio aristotélicas apenas as pegas que apre- sentem um prélogo, cinco episédios ¢ cantos corais e um éxodo. A esséncia do pensamento aristatélico no pode residir em aspectos estruturais como estes. Quando se magnificam esses aspectos menores, isso equivale a comparar o filésofo grego com os modermos e abundantes professores de drama- turgia, especialmente norte-americanos, que nada mais sio do que cozinheiros de menus teatrais. Eles estudam as reagdes tipicas de determinados piblicos e daf extraem conclusées ¢ regras sobre como se deve escrever a peca perfeita, conside- rando-se perfeigio o éxito de bilheteria. Aristételes, a0 contrério, esereveu uma Poética completa- mente orginica, que é o reflexo, no campo da tragédia e da poesia, de toda a sua contribuicao filoséfica; € a aplicacio pritica © concreta dessa filosofia ao campo especifico © res- trito da poesia ¢ da tragédia. Por essa raziio, sempre que nos encontremos com afirma- gGes imprecisas ou fragmentarias, devemos imediatamente re- correr aos demais textos escritos pelo autor. Foi o que preci- samente fez S. H. Butcher no seu livro Aristotle's Theory of Poetry and Fine Art, procurando entender a Poética desde a Perspectiva da Metafisica, da Politica, da Retérica e sobretu- do das trés Eticas. A ele devemos fundamentalmente o escla- recimento do conceito de “catarse”. A natureza tem certos fins em vista; quando fracassa e nao consegue atingir seus objetivos, intervém a arte e a cién- ia, O homem, como parte da natureza, tem certos fins em a saide, a vida gregaria no Estado, a felicidade, a vir- tude, a justiga, etc. Quando falha na consecugSo desses obje- tivos, intervém a arte da Tragédia. Esta correg3o das agdes ‘do homem, do cidadio, chama-se “catarse”. 4 j A Tragédia, em todas as suas partes quantitativas ¢ quali- tativas, existe em fung%o do efeito que persegue: & “catarse”. Sobre este conceito se estruturam todas as unidades da Tra- gédia, todas as suas partes. Eo centro, a esséncia, a fi Uade do sistema tragico. Infelizmente, é também o conceito mais controvertido. Catarse_ é corregao; que corrige? Catarse € purificagio; que purifica? §. H. Butcher nos ajuda com um desfile de opinides de gente ilustre como Racine, Milton ¢ Jacob Barnays. Racine — Na Tragédia “mtostram-se as paixdes para que se possam ver todas as desordens de que siio causadoras, 0 vicio é pintado sempre com cores que fazem conhecer e odiar a de- formidade; era isto o que tinham em vista os poctas tragicos, antes de qualquer outra’ coisa: seu teatro cra uma escola onde as virtudes cram tio bem ensinadas como nas escolas dos fildsofos. Por essa razio, Aristételes quis impor regras 4 cons- trugdo dos poemas draméticos, Seria de desejar que as nossas pegas fossem assim, tio cheias de instrugdes iiteis como as daqueles poctas”. ‘Como sé vé, Racine enfatiza 0 aspecto doutrindrio ¢ mo- ral da Tragédia, ¢ isso estd muito certo, mas ‘hd um pequeno reparo a fazer: Aristételes nio aconselhava o poeta tragico a apresentar personagens viciosos. O herdi trégico deveria so- frer uma transformagdo radical no seu destino, da felicidade a adversidade, mas isto deveria ocorrer “nic como conseqién- tia de um vicio, mas sim de algum erro ou debilidade” (Cap. XIII). J4 veremos o que é a Harmatia. necessério compreender igualmente que @ apresenta- do do vicio ou do “erro ou debilidade” nao era feita de tal maneira a provocar nos espectadores repugnincia. ou édio. Pelo contrario, Aristételes sugeria que se tratass¢ erro ou debilidade com certa compreensio. Quase sempre o estado de felicidade em que s¢ encontra o herdi ao iniciar-se a tragédia € devido precisamente a essa falha, € nao as suas virtudes. Edipo é Rei de Tebas justamente pela jlidade do seu ca- rater, isto é, por seu orgulho. Justamente aqui reside a maior eficdcia de um processo que teria 0 seu poder enormemente diminuido se, desde o comego, a falha ja fosse apresentada 42 como odiosa, o erro como abomindvel. E necessirio, ao con- trario, mostra-los como aceitdveis, para destrui-los depois, atra- vés dos processas poético-teatrais que vamos analisar. Os maus dramaturgos de todas as épocas niio compreen- dem a enorme importincia das transformagSes ocorridas di te do espectador: teatro & transformagio, movimento, ¢ ni simples apresentagao do que existe. E fornar-se © nao ser. Jacon Bernays — Em 1857, Bernays propés uma inte- ligente teoria: a palavra “catarse” seria uma metéfora mé- dica, uma purgagdo que denota o efeito patolégico sobre a alma andlogo ao efeito de um remédio sobre o corpo. Ber- nays toma a definicio de Tragédia dada por Aristételes (“imi- tagiio de agGes humanas que excitem a piedade ¢ 0 terror”); justamente porque essas emogdes se encontram nos coragdes de todos os homens, o ato de exciti-las oferece, depois, um agraddvel relaxamento. Esta hipdtese seria confirmada por Aristételes mesmo que declara que nds sentimos “piedade pelo destino nao merecido do herdi, ¢ terror porque esse inforté- nio acontece com alguém que se parece com nés mesmos”™. Ja veremos o que significa a palavra “empatia”, que se bascia justamente nessas duas emogdes. ‘ Os sentimentos estimulados pelo espeticulo tigico io sio removidos de maneira permanente ¢ definitiva, acrescenta Bernays, cmbora nos trangiiilize durante algum tempo. Assim, © teatro oferece uma descarga inofensiva ¢ agradavel, para os instintos que exigem satisfagiio ¢ que podem “na ficgio do teatro ser toletados muito melhor do que na vida real”. Bernays, portanto, permite que se suponha que a purga- §4o ndo se refira somente 4s emogdes de piedade ¢ terror, como também a certos instintos “no socidveis” ou socialmente proi- bidos. O proprio Butcher, tentando explicar qual é 0 objeto da purgacio (isto é: de que se purga?) “acrescenta por conta Prépria que se trata da “piedade e do terror que temos em nds Mesmos na nossa vida real ou, pelo menos, aqueles elemen- tos que, neles, so inquietantes”. _ Assim nos parece mais claro: talvez o que seja purgado, isto €, o objeto da purgagdo, nao sejam precisamente as emo- ses de piedade e terror; mas sim alguma coisa que est con- 43 tida nessas emogdes, ou misturado com elas. E necessitio de- i preciso qual poder& ser este corpo estranho ido pelo processo catirtico. Neste caso, piedade ® terror s¢riam apenas parte do mecanismo de expulsio, ¢ nao o seu objeto, E precisamente aqui reside a significagio politica da Tragédia. No seu Capitulo XIX diz a Poética: “No conceito de: pen- samento (j& veremos 0 significado da palavra diandia") 9 incluem todos os efeitos que devem ser produzidos pelo dis- curso... a excitago de sentimentos tais como 4 piedade ¢ 0 terror, e outros semelhantes." Perguntamos: por que razio a purgagdo nao se poderia dar em relagio As emogdes seme- lhantes, como por exemplo o ddio, a inveja, a parcialidade na adoragio dos deuses, a desobediéncia as leis, a soberba, ete.? Por que Aristételes explica somente a presenga obrigatéria destas duas emogies? Se analisamos alguns personagens trégicos, veremos que eles poderdio ser culpados de muitos erros éticos, mas dificil- mente poderemos dizer de qualquer deles que possufa em excesso piedade ou terror, No € nunca ai que fracassa sua virtude, Nem tampouco sio impuras, neles, estas emogics. Nem sequer sio elas uma caracteristica comum a todos os personagens tragicos. Por isso podemos afirmar que nio é nos personagens trigicos que se manifesta a piedade e 0 terror, ¢ sim nos espectadores. Os espectadores se ligam aos seus herdis basi- camente através da piedade e do terror, porque, como diz Aris~ tételes, algo imerecido acontece a um personagem que se pa- rece a nds mesmos. _ Dou um exemplo{ Hipélito ama a todos os deuses inten- samente, ¢ isso é bom, mas nio ama deusa do amor e isso @ mau. Sentimos piedade porque Hipélito € destruido apesar de todas as suas qualidades e terror porque talvez nés mes- mos sejamos criticdveis pela mesma razio de nio amar a todos os deuses, como ordenam as leis./Edipo é um grande Rei, 0 povo o ama, seu governo & perfeitove por isso sentimos piedade ao ver a destruigio de uma criatura assim to mara- vilhosa; e sentimos terror ao perceber que @ causa de tio tremendo castigo é a soberba, da qual talvez sejamos também 4 nés culpados, € o desmedido orgulho, que talvez seja um dos nossos préprios pecados, /Creonte defende o direito do Estado © nos causa piedade Ver-que tem que suportar a morte de sua esposa e de seu filho porque, ao lado de tantas vir- tudes que demonstra possuir, possui também a falha trégica de que talvez sejamos igualmente culpados, que é a parciali- dade em ver apenas o bem do Estado ¢ nfo o da familia. E essa possibilidade nos causa terror.) Convém aqui mostrar uma vez mais a relacdo entre as virtudes ¢ a felicidade do personagem, seguida pela desgraca: por orgulho, Edipo se converte em um grande rei; por des- prezar a deusa do amor, Hipdélito amava intensamente todos ‘os demais deuses; por cuidar em demasia dos bens do Estado, Creonte era um grande chefe. Todos sua trajetéria, nas tragédias, no mais alto de sua gléria. ‘Concluimos portanto que piedade e terror sio a forma especifica minima pela qual se ligam espectador ¢ persona- gem — mas de nenhuma maneira estas emogies sfio purifica- das de si mesmas. Isto 6, elas se purificam de algo que, no fim da tragédia, deixa de existir. De algo que o processo tré- gico expulsa. MILTON — “A Tragédia purga a mente de piedade, medo, ter- ror € paixdes afins, reduzindo-as a uma justa medida supor- tivel, através do prazer de ver essas mesmas emoges bem imitadas”. Até aqui, Milton acrescenta mui ucd ao que j4 foi dito, mas em seguida diz coisa melhor: “Em medicina, coisas de uma qualidade melancdlica sio usadas contra a melancolia, o amargo serve para curar o amargo, ¢ o sal para remover humores salgados”. Em dltima andlise, seria uma espé- cic de homeopatia: determinadas paixdes ou emogdes, curan- do_paixdes © emogdes andlogas, mas nio idénticas. Além das contribuigSes especificas de Racine, Jacob Ber- nays © Milton, Butcher vai buscar na propria Politica de Aris~ tételes a explicagio da palavra “catarse”, que nio se encontra na Poética, Ai se utiliza “catarse” para denominar o efeito causado por certo tipo de misica sobre certos pacientes possui- dos por certo tipo de fervor religioso, O tratamento consistia 45 em usar “o movimento para curar o movimento © suavizar a perturbagio interior da mente, através da misica selvagem”. Segundo Aristételes, os pacientes submetidos a esse tratamen- to voltavam ao seu estado normal, como se tivessem sofri- do um tratamento médico ou purgativo. Quer dizer: catdrtico! Neste exemplo verificamos que, por meios homeopiticos (misica selvagem para curar ritmos interiores selvagens), 0 fervor religioso era curado por meio de um efeito exterior andlogo. A cura s¢ processava através desse estimulo. Vejam bem: |como-na Tragédia, a falha do personagem ¢ inicialmen- fe apresentada como causa principal da sua felicidade, essa fatha é logicamente estimulada. : Butcher agrega que, segundo Hipécrates, cararse_signi- ficaria a remoglo de um elemento doloroso ou perturbader do ‘organismo, purificando assim o que permanece, finalmente li- vre da matéria estranha eliminada. Conclui Butcher que, apli- cando-s¢ essa mesma Gio a Tragédia, devemos chegar & conclusio de que a “piedade eo terror” na vida real con- tém um elemento mérbido ou perturbador. Durante o proces- so de excitagio tragica, este elemento, seja qual for, & climi- nado. “Enquanto avanga a ago tragica, 0 tumulto da mente, cialmente estimulado, comega a ceder, ¢ as formas mais bai- xas de emocdo se transformam gradualmente nas mais altas e refinadas.” Este raciocinio € correto e podemos aceité-lo quase que imteiramente, menos na sua insisténcia em querer atribuir im- purezas as emogdes de piedade ou terror. A impureza existe, ‘ni ha divida, e seré ela precisamente 0 objeto da purgacdo catdrtica na mente do espectador, ou, como diria Aristoteles, na sua alma, Mas Aristételes nfo afirma a existéncia de pie- dade pura ou impura, de terror puro ou impuro. A impureza & necessariamente algo distinto das emogSes que vio perma- necer, Esse corpo estranho seri portanto owtra emogao ow paixdo, e nfio a mesma, Piedade ou terror jamais foram vi- cios ou debilidade ou eros, ¢ portanto jamais necessitaram ser eliminados ou purgados. Ao contrério, na Erica, Aristéte- les nos indica quantidades de vicios, erros ¢ debilidades que merecem ser destruidos. A impureza que sera purgada deve Mecessariamente estar entre esses. Deve ser algo que ameaga 46 © individuo no seu equilibrio, e que portanto ameaga a socie- dade. Algo que nio é uma virtude, que ndo € a maior virtude, a Justica, e tudo que é injusto est previsto nas leis. A impu. Yeza que © processo trigico vai destruir é pois algo que alen- ta contra as leis, Se voltamos um pouco atr4s, poderemos compreender melhor agora © funcionamento da Tragédia. Nossa dltima de- finigo foi: “A Tragédia imita as agées da alma racional do homem, suas paixdes tornadas habitos, em busca da felici- dade, que consiste no comportamento virtuoso, cujo bem su- premo é a Justiga, cuja expresso maxima ¢ a Constituigo.” Vimos também que a natureza tem certos fins vista © que, quando falha, a arte ¢ a ciéncia intervém para corrigir a natureza. Podemos agora concluir que, quando o homem falha nas suas agdes, mo seu comportamento virtuoso em busca da fe- icidade, através da virtude maxima que é a obediéncia as leis, a arte da Tragédia intervém para corrigir essa falha. Como? Através da purificagio, da catarse, da purgagdo do elemento estranho, indesejavel, que faz com que o personagem nio alcance os seus objetivos. Este elemento estranho é contré- rio a lei, é uma falha social, uma caréncia politica. Finalmente estamos preparados para entender o funcio- namento do esquema trégico. Mas ainda nos faz falta um pe- queno dicionério que simplifique certas palavras, esclarecendo claramente quais so os elementos que vamos agora juntar, para mostrar como funciona este sistema trégico de coergio. 47 Pequeno diciondrio de palavras simples Heréi TRAGICO — Como explica Arnold Hauser, no come- _g0, © teatro er: 0 Coro, a massa, o povo. Esse era o verda- deiro protagonista. Quando Thespis inventou protagonista, imediatamente aristocratizou o teatro, que antes existia em suas formas populares de manifestagdes massivas, desfiles, festas, etc. O ditilogo Protagonista-Coro era claramente © re- flexo do didlogo Aristocrata-Povo, O herdi trigico, que pas- sou depois a dialogar ndo s6 com o Coro mas também com seus semelhantes (deuteragonista ¢ tritagonista), era apresen- todo sempre como um exemplo que devia ser seguido em certas caracteristicas, mas nZo em outras. O ‘herdi trégico sur- ge quando o Estado comega a utilizar o teatro para fins po- Titicos de coergfo do povo. Nio nos podemos esquecer de que_o Estado, diretamente ou através de mecenas, pagava as Etnos — O personagem atua ¢ a sua atuagio aprescnta dois aspectos: ethos ¢ diandia, Juntos, constituem a agiio desenvol- vida pelo personagem. Sao insepardveis. Porém, para fins di- diticos, poderiamos dizer que o ethos a ptépria agdo ¢ a 48 diandia a justificagiio dessa ago, 0 discurso. O ethos seria o préprio ato ¢ a diandéia o pensamento que determina o ato. Convém esclarecer que o discurso é, em si mesmo, ago, & que, por outro lado, nao pode existir agdo por mais fisica ¢ res- trita que seja, que no suponha uma razio. Podemos igualmente definir o ethos como o conjunto de faculdades, paixdes e habitos. No ethos do herdi trigica, todas as tendéncias devem ser ‘boas, menos uma! Todas as paixdes, todos os hébitos do he- r6i trégico devem ser bons, menos um! Bons ou maus segundo que critérios? Segundo os ‘ctitérios constitucionais, que sio os que sistematizam as leis, isto é, segundo os critérias politicos, pois a politica é a arte soberana, Apenas uma tendéncia de- vera. ser md, reprovavel, condendvel. Somente uma paixio, um hébito, poderd estar contra a lei. Esta caracteristica ma chama-se Aarmatia. HARMATIA — E também conhecida como falha trigica.(E_a ‘nica impureza que existe no personagem,) A harmatia é, por- tanto, @ Gnica coisa que pode c deve ser destruida, para que a totalidade do ethos do personagem se conforme com a tota- lidade do ethos da sociedade, Nesta confrontagio de tendén- cias, de ethos (social e individual) a harmatia & a causadora do conflito. B a Gnica tendéncia que nio se harmoniza com a sociedade, com o que quer a sociedade. Empatia — Quando o espetdculo comega se estabelece uma relagio entre o personagem (especialmente o protagoni: © o espectador. Esta relagio tem caracteristicas bem defir das: o espectador assume uma atitude passiva e delega o po- der de ago ao personagem. Como o personagem se parece a nds mesmos, como indica Aristételes, nds vivemos, vicaria- mente, tudo o que vive o personagem. Sem agir, sentimos que estamos agindo; sem viver, sentimos que estamos vivendo. Amamos e odiamos quando odeia ¢ ama o personagem. A empatia nfo ocorre apenas em relago aos herdis tri- gicos: basta observar uma sesso mating de far west, ou os espectadores infantis de uma série bang-bang pela televisio, ced k | ‘ou os olhares enternecidos dos espectadores mais adultos quan- do o casal sé beija antes do Aappy-end. Trata-se af de pura empatia. A empatia nos faz sentir como se estivesse se passan- do com nés mesmos o que mo palco ou na tela esta s¢ pas- sando com os personagens. Torna nossos, emogdes ¢ pensa~ mentos alheios. ‘A empatia 6 uma relacio emocional entre personagem ¢ espectador. Uma relagio que pode ser constitufda, basicamen- te, de piedade ¢ terror, como sugere Aristételes, mas que pode igualmente incluir outras emogées, como sugere o proprio Aristételes, e que poderio ser o amor, a ternura, o deseja se- xual (como no caso de muitos ¢ muitas artistas de cine em relacio aos seus respectivos {i-clubes), etc. A empatia opera fundamentalmente em relagio ao que © personagem faz, & sua acdo, ao seu ethos, Mas existe igual- mente uma relagSo empética diano-ética: diandia (persona- gem)-razdo (espectador), que equivale a relagio ethos-emo- ao. © ethos estimula a emogio, a diandia estimula a razio. Para a seqiéncia do nosso raciocinio € preciso que fique claro que as emogies empiticas bisicas de piedade © terror se estabelecem a partir de um ethos que revela tendéncias boas (piedade pela sua destruigio) ¢ uma tendéncia mé, uma harmatia (terror, porque também nés a possufmos). Estamos agora prontos para compreender o funciona- mento do esquema trigico, € a sua enorme importincia poli- tica, (COMO FUNCIONA © SISTEMA TRAGICO COERCITIVO DE AnisTOTELES Comega o espetaculo. Apresenta-se o herdi trigico. oO plblico estabelece com ele uma forma de empatia. ‘Comeca a agio trégica. Surpreendentemente, 0 heréi re- vela uma falha no seu comportamento, uma harmatia €, mais surpreendentemente ainda, revela-se que em virtude dessa har- matia © her6i alcanga a felicidade que agora ostenta. ‘Através da empatia, a mesma harmatia que 0 espectadot possui € estimulada, desenvolvida, ativada. » Subitamente, acontece algo que tudo modifica. Edipo, por exemplo, é informado por Tirésias de que o assassino que cle procura é ele mesmo. O personagem que com sua Aarmatia havia subido tGo alto, corre o risco de cair dessas alturas. Isto & 0 que a Podtica qualifica de/PERIPECIA: uma modific: gio radical no destino do personagem. O espectador que entio teve a sua propria harmatia estimulada, comega a sen- tir _crescer seu terror. O personagem inicia seu caminho para a desgraga, Creonte é informado da morte do seu filho ¢ de sua mulher; Hipélito nfio consegue convencer seu pai de sua inocéncia, ¢ este o impulsa, sem querer, A morte. A peripécia & importante porque faz com que seja mais longo o caminho da felicidade & desgraga. Quanto mais alto o coqueiro maior é a queda, diz a cang3o popular. Mais impac- to se cria por esta via. A peripécia que sofre o personagem se reproduz igual- mente no espectador. Porém poderé também ocorrer que o espectador acompanhe o personagem empaticamente até a peripécia ¢ que se desligue do mesmo a partir daf, Para evi- lar que isso aconte¢a, o personagem trigico deve pera = mente pelo que Aristételes chama de ‘AN, explicagao, através do discurso, de sua falha e do ae mento dessa falha como tal, Oo heréi aceita seu proprio erro, confessa seu erro, esperando que, empaticamente, o espec- tador também aceite como m4 sua propria harmatia. Mas o espectador tem a grande vantagem de que cometeu o erro somente de forma vicéria: niio tem que pagar por ele. Finalmente, para que o espectador tenha presente as ter- Tiveis conseqiiéncias de cometer o erro, ndo apenas vicdria mas realmente, Aristételes exige que a tragédia tenha um final ter- rivel, ao que chama fearistorE: Nio se permitem Aappy- endings, embora nio seja necessiria a destruigio fisica do personagem portador da harmatia, Alguns morrem, enquanto que outros véem morrer seus seres queridos. De qualquer for- ma se trata sempre de uma catdstrofe em que ndo morrer é pior do que morrer (veja-se o caso de Edipo). Estes trés ele- mentos interdependentes tém por finalidade tltima provocar no espectador (tanto ou mais do que no personagem) a “ca- 31 tarse”. Quer dizer: @ purificagio da Aarmatia, através de trés etapas bem determinadas ¢ claras: © Primera ETAPA — Estimulo da Aarmatia; o personagem se- gue o caminho ascendente para a felicidade, acompanhado empaticamente pelo espectador. ‘Surge um ponto de reversiio: o personagem © 0 espec- tador iniciam o caminho inverso da felicidade & desgraga. Queda do herdi. SEGUNDA ETapa — © personagem feconhece seu erro: ANAG- ‘orisis. Através da relagio empdtica diandia-razao, 0 espec- tador reconhece seu préprio erto, sua propria harmatia, sua propria falha anticonstitucional. Tercema Etara — CATAsTROFE: QO personagem sofre as conseqiéncias do seu erro, de forma violenta, com sua pré- pria morte ou com a morte de seres que Ihe so queridos. CATARSE — © espectador, aterrorizado pelo espeticulo da catdstrofe, se purifica de sua harmatia. © sistema coercitivo aristotélico pode ser mostrado gra- ficamente assim: erase 28 gvasa Penintem — ANMGNORISIS ah evans Carastanre -PEsSoNAGEM fa Saat eros ed a SS oe or rooted Teanon Prowot . tsrectazon ms cris |S Sis erann ae erate at crane Sancta — react ones! —— Sona 52 Atribui-se a Aristételes a seguinte frase: Amicus Plato, Sed Magis Amicus Veritas (“Sou amigo de Platio, mas mais amigo da verdade”). Nisto estamos totalmente de acordo com ‘Aristételes: somos scus amigos, mas muito mais amigos da verdade. Ele nos diz que a poesia, a tragédia, o teatro, niio tém nada que ver com a Politica. Mas a realidade nos diz outra coisa. Sua prépria Poética nos diz outra coisa. Temos que ser muito mais amigos da verdade: todas as atividades do homem, incluindo-se evidentemente todas as artes, especialmente o teatro, sfio politicas. E o teatro é a forma artistica mais per- feita de coergia, Que o diga Aristételes. 53 Distintos tipos de contflito: harmonia x ethos social co vemos, no Sistema Trigico Coercitivo de Aristéte~ les € fundamental que: a — exista um conflito entre o Ethos do personagem ¢ 0 Ethos da sociedade na qual ‘vive 0 personagem (isto é: alguma coisa que nfio funciona, que nfo se harmonize, que cria atritos.) ; b — exista uma relagSo chamada empatia que consiste em permitir ao espectador que o personagem 0 conduza através de suas experiéncias — o espectador sente como se estivesse atuando ele mesmo, goza os prazeres ¢ s0- fre as dores do personagem, ao extremo de pensar seus pensamentos; © — o espectador sofre trés acidentes de natureza violenta: PERIPECIA, ANAGNORISIS ¢ CATARSE. Sofre um golpe em seu destino (a agio da pega). Reconhece o erro, vi- cariamente cometido, ¢ se purifica da caracteristica anti-social que reconhece possuir. Esta é a esséncia do Sistema Trigico Coercitivo. No tea- ‘tro grego o sistema funci como se demonstra no . ‘Mas, em sua esséncia, o sistema continua sendo usado até ‘8 nossos dias, com modificagSes determinadas pelas novas sociedades. Analisemos algumas destas modificagies: Primemo Tipo: HARMATIA x ETHos SOCIAL PERFEITO (tipo cléssico) Eo caso mais cldssico estudado por Aristételes, Vejamos o exemplo de Edipo. O perfeito Ethos Social é apresentado através do Coro ¢ de Tirésias no seu longo discurso. A coli- slo é frontal, Mesmo depois que Tirésias o informa de que © criminoso buscado é o préprio Edipo, este no o aceita ¢ segue por si mesmo com a investigacio. , 9 homem per- feito, o filho obediente, marido amantissimo, pai exemplar, estadista sem igual, inteligente, belo ¢ sensivel, possui, nio obstante, uma falha trdgica: seu desmedido orgulho, sua so- berba. Por isso, sobe ao cimo da gléria, ¢ por isso é des- trufdo. © equilibrio se restabelece com a catistrofe, com a visio aterradora de sua mie-esposa enforcada ¢ de seus pré- prios olhos wasados. ‘SeGuNDo Tipo: HARMATIA x Eros SociaL PERFEITO x HARMATIA A Tragédia apresenta dois personagens que se encontram, dois heréis trigicos, cada um com sua falha, que se destroem mutuamente, diante de uma sociedade cticamente perfeita. B © caso tipico de Antigona e Creonte: ambos excelentes pes- soas, em tudo e por tudo, menos nas suas respectivas falhas. Nestes casos, o espectador deve necessariamente empatizar com ambos. os personagens, ¢ niio com apenas um, jA que o pro- cesso trdgico deve purificé-lo de ambas harmatias. Um espec- tador que empatize apenas com Antigona poderd ser levado @ pensar que Creonte possui a verdade, ou vice-versa. O espec- 38 === — tador deve purificar-se do “excesso” seja qual for a sua di- regio: excesso de amor ao bem do Estado em detrimento da familia ou excesso de amor 4 familia em detrimento do bem do Estado. Muitas vezes, quando a anagnorisis no é suficiente para convencer o espectador, 0 autor trégico utiliza diretamente ‘0 raciocinio do Coro, que & o possuidor do “sentido comum”, da moderagio, ¢ de outras qualidades. Também neste caso a catdstrofe € necessdria para produzir, através do terror, a catarse, a purificagiio do mal. Tercemo Tipo: HARMATIA NeGaTiva x ETHos SOCIAL PERFEITO Este tipo € completamente diferente dos outros dois j4 vistos. Aqui o Ethos do personagem se apresenta em forma negativa, quer dizer, tem todas as tendéncias defeituosas apenas uma virtude, ¢ nio, como preconizava Aristételes, to- das as virtudes e apenas um defeito ou falha, ou erro de julgamento. Justamente por possuir essa pequena ¢ solitdria virtude, o herdi se salva ¢ niio se produz a caldstrofe, ocor- rendo, ao contririo, o_happy-end. £ importante notar que Aristételes se pronunciava_cla- ramente contra o happy-end, mas devemos notar igualmente que o cardter coercitivo de todo o sistema 6a verdadeira essén- cia de sua poética politica; portanto, modificando-se uma ca- racteristica tio importante como a composigio do ethos do personagem, € inevitével que se modifique igualmente o me~ canismo estrutural do final da pega, para que o efeito pur- gative (que € o que importa) se mantenha inalterdvel. Este tipo de catarse produzido por harmatia negativa x ethos social perfeito foi muito utilizado especialmente na Idade Média. Talvez o mais conhecido drama medieval seja_TODO- (MUNDO) (Everyman). Conta a histéria de um personagem cha- mado Todomundo que na hora da sua morte procura salvar- -se. Dialoga com a Morte e com cla analisa todas as suas 56 ages passadas; desfilam diante deles todos os personagens que acusam a Todomundo e revelam os pecados que cle havia cometido; os Bens Materiais, os Prazeres, etc. sio esses pe: sonagens. Todomundo finalmente compreende todos os pei dos que cometeu, admite a auséncia absoluta de qualquer vir- tude em todas as suas ages, mas ao mesmo tempo confia no perdido divino, Esta confianga é a sua tnica virtude. Esta confianga e o seu arrependimento o salvam para maior plé- tia de Deus... A anagnorisis (reconhecimento de todos os seus pecados) & praticamente acompanhada pelo nascimento de um novo Personagem e este se salva. Na Tragédia, os _atos dos perso- nagens podem ser perdoados, desde que ele se ida _a_mu- dar completamente de vida ¢ transformar-se em um novo per- sonagem. A idéia de uma nova vida (e esta sim é a vida perdod- vel, jf que o personagem pecador deixa de sé-lo) pode ser vista com muita nitidez no CONDENADO POR DESCONFIADO) de Tirso de Molina. O herdi, Henrique, & tudo que se pode dizer de ruim de uma pessoa: bébedo, assassino, ladrio, rufiio, etc. Nenhuma falha, nenhum defeito, nenhum vicio, the é estranho. Pior que ele, nem o Diabo. Tem o ethos mais pervertido que inventou a dramaturgia universal. Ao seu lado, Paulo, o puro, incapaz de cometer o pecadilho mais perdodvel, alma branca, insipida, ingrivida, a perfeigdo absoluta! ‘Mas, algo estranho acontece com esta dupla, que fara com que seus destinos sejam exatamente o oposto do que se poderia pensar. Henrique, o mau, sabe que é mau e pecador, ® em nenhum momento duvida que a Justi¢a Divina o fard arder nas chamas do lugar mais profundo e escuro do Infer- no. Aceita a Sabedoria Divina e sua Justiga, Paulo, ao con- trério, peca por querer manter-se puro. A cada momento se Pergunta se Deus verdadciramente prestari atengio A sua vida de sactificios e caréncias. Deseja ardentemente morrer © imediatamente transladar-se ao Céu para comegar ai uma vida mais prazerosa, Qs dois morrem, e para surpresa de muitos o Ditado Divino € © seguinte: Henrique, apesar de todos os crimes, 57 roubos, bebedeiras, traigSes, etc., vai para 0 (Céu, porque sua absoluta certeza em seu castigo ‘honrava € glorificava a Deus, ‘em quem confiava; Paulo, a0 contririo, nao acreditava ver dadeiramente em Deus, pois que duvidava da sua salvagdo; portanto, vai para 0 Inferno com todas as suas virtudes.. Fm linhas gerais assim & a pega. Observada desde 0 ponto de vista de Henrique, trata-se nitidamente de um Ethos totalmente mau, possuidor de uma 9 virtude. O efeito exem- plar se obtém através do happy-end e 080 ‘através da catds- frofe. Observada a aclo desde © ponto de vista de Paulo, 8 trata do esquema atistotélico convencional, clissico. Nele, trata to vtrtudes, menos sua falha trigica — duvidar de Deus! Para ele sim, existe eatdstrofe. Quarto Tipo: HaRMatia NecaTiva © ETHos SociAL NEGATIVO A palavra “negative” 6 aqui utilizada no sentide de que ce treaPde um modelo exatamente oposto ao modelo OnE nal, dito “positive” — nfo se refere a nenhuma qualidade moral, Como, por exemplo, numa fotografia negativa. tudo o é vice-versa. 7 Vejamos a “Dama das Camélias": cm Oma sociedade corrompida que accita a prostituigao, ‘Margarida Gauthier é ‘vel, sua casa freqiientada pelos melhores homens da socieda- de, considerando-se que s¢ trata de uma sociedade cujo prin- cipal valor é o dinheiro. Sua casa é freqiientada por financis- tas... A vida de Margarida estd cheia de felicidades! Mas, pobrel, todas suas falhas sfio accitéveis, mas nfo sua Unica virtude! Margarida se apaixona. Isto €: ama verdadeiramente. Ah, isso nunca, isso a sociedade nfo pode permitir! A uma falha trdgica! Isso tem que ser castigado! Aqui, do ponto de vista ético, se estabelece uma espé- cie de trifingulo, Até agora analisamos conflitos éticos nos quais a ética social era a mesma para os personagens ¢ para os espectadores; agora se apresenta uma dicotomia. O autor deseja mostrar uma ética social aceita por seus integrantes, mas ele mesmo, 0 autor, niio participa desta ética ¢ propde outra. O universo da pega é um, € © nosso universo, ou ao menos nossa posic¢fo momentinea durante o espeticulo, & outra. Alexandre Dumas diz: esta sociedade & assim ¢ & md; mas nés nfo somos assim, ou nfo o somos no mais intimo do nosso ser. Portanto, Margarida tem todas as virtudes que a sociedade cré que slo virtudes; uma prostituta deve exer- cer com dignidade e eficitncia sua profissio de prostituta, Mas Margarida tem uma falha que a impede de exercer bem @ sua profissio: se apaixona. Pergunta: como pode uma mu- Ther apaixonada pot um homem servir com igual fidelidade ¢ eficiéncia a todos os homens? (Todos os que possam pagar). Nao € possivel. Portanto, amar ¢, em uma prostituta, ndo uma virtude mas ao contririo um vicio.) Nés, porém, espectadores, que nfo pertencemos ao uni- verso da obra, podemos dizer exatamente o contrario: a so- ciedade que permite e estimula a prostituigiio ¢ uma socie- dade que deve ser transformada, uma sociedade cheia de vi- cios. Assim se estabelece o trifingulo: para nés, amar é uma yirtude, mas para o universo da obra é um vicio. E Marga- rida Gauthier € destrufda precisamente por esse vicio (vir- tude!) Também neste gémero de drama romintico, a catdstrofe ¢ inevitivel. E 0 autor romintica espera que o espectador seja 59 purificado nfo da falha trégica do her6i, mas sim de todo o ethos da sociedade. Outro drama romAntico, muito mais moderno, apresenta © mesmo esquema aristotélico modificado: {Um Inimigo do Povo", de Ibsen, Também af o Dr. Stockman apresenta um ethos pericitamente idéntico 4 sociedade na qual vive, socie- dade baseada no lucro, no dinheiro; mas apresenta igualmen- te uma falha: é honesto! Isto a sociedade nio pode suportar, nem pode tolerar! O tremendo impacto que esta pega costu- ma ter baseia-se justamente no fato de que Ibsen demonstra (desejando-o ou nfo) a impossibilidade em que se encontra a sociedade baseada no lucro em apregoar uma “moral ele- vada".[O capitalismo ¢ essencialmente imoral porque a busca do lucro, que é sua é incompativel com a moral que apregoa de valores superiores, de justiga, etc,, © Dr. Stockman & destruido (isto é, perde seus postos na sociedade e o mesmo ocorre com sua filha Petra que per- de sua integragio numa sociedade competitiva), justamente por sua virtude fundamental que ¢, aqui, considerada vicio, erto, ou falha tragica. Quinto Tivo: Etxos Inprvipuat Anacrénico x Ernos SoctaL CONTEMPORANEO E o caso tipico de(Don Quixote: seu ethos social esta perfeitamente sincronizado com o ethos de uma sociedade que j4 nfo existe... Esta sociedade passada, jd inexistente, entra em confrontagdo com a sociedade contemporanea ¢ ‘todos os conflitos sio inevitdveis, O ethos anacrénico de Don Quixo- te, cavaleiro andante, fidalgo espanhol, senhorial, nfo pode viver pacificamente em uma época em que se desenvolve a ‘burguesia, que modifica todos os valores; a burguesia, para quem todas as coisas s¢ transformam em dinheiro ¢ o dinhei- ro se transforma em todas as coisas. Uma variante de “ethos anacrénico” € a do “ethos dia- erénico": o personagem vive em um mundo moral, apregoa- do por uma sociedade que, niio obstante, nfo aceita na, pratica os valores que afirma possuir. Em minha pega José do Parto 4 Sepultura, o personagem José da Silva encarna todos os va- lores que a burguesia diz serem os seus, ¢ sua desgraca advém justamente porque cré nesses valores e por reger sua vida por eles: 0 self-made-man, © trabalhar mais do que se tem a obri- gacdo de trabalhar, a dedicaglo aos patrées, nfo criar proble- mas de tipo trabalhista, etc., etc. Em resumo: um persona- gem que se comporta ‘em obediéncia as Leis do Triunfo de Napoleon Hill ou A Arie de Fazer Amigos ¢ Influenciar as Pessoas de Dale Carnegie! Essa é a sua tragédia! E. que tra- gédial... 6 Conclusio oO SISTEMA TRAGICO Cocrcitivo de Aristétcles sobrevive até hoje gragas & sua imensa eficdcia. £ efetivamente um podéroso sistema intimidatério. A estrutura do sistema variar dé mil formas, fazendo com que seja &s vezes dificil de descobrir todos os elementos de sua estrutura, mas oO sis- tema estara af, realizando sua tarefa bdsica: a purgagdo de todos os elementos anti-sociais. Justamente pot essa razio, 0 Sistema nao pode ser utilizado por grupos revolucionirios durante os petiodos revoluciondrios. Quer dizer: enquanto o ‘ethos social nfo esta claramente definido, ndo se pode usar o esquema trigico pela simples razio de que o ethos do perso- nagem n&o encontraré um ethos social claro ao qual enfren- tar-se. _ _}O Sistema Trigico Coercitivo pode ser usado antes ou depois da Revolugio: mas nfo durante... Na verdade, s6 sociedades mais ou menos estiveis, eticamente definidas, podem apresentat uma tibua de valores que tore possivel o funcionamento do sistema. Durante uma Revolugio Cultural, em que todos os valores estilo sendo ques- tionados ou formados, o sistema nao pode ser aplicado. Vale 62 dizer que o Sistema, enquanto estrutura certos elementos que produzem um determinado efeito, pode ser utilizado por qualquer sociedade sempre e quando possua um ethos social definido. Para o seu funcionamento, tecnicamente nfo impor- ta que a sociedade seja feudal, capitalista ou socialista. Impor- ta que tenha um universo de valores definidos © accitos. Por outro lado, costuma acontecer que muitas vezes se toma dificil compreender o funcionamento do sistema, devido a que se adota uma perspectiva falsa. Por exemplo: as hist6- rias de cine do género far-west sio perfcitamente aristotéli- cas, pelo menos todas as que ja . Mas, para analisd-las, € necessirio. colocar-se na perspectiva do bandido ¢ nfo na do mocinho; do mau, ¢ nfo na do bom. Vejamos: uma histéria de fat-west comega com a apre- sentagio de um bandido (vilio, ladrio de cavalos, assassino, ou © que seja) que, justamente por seu vicio, ou falha tré- gica, por sua harmatia, é o chefe incontestado, 0 homem mais rico, ou o mais temfvel do bairro ou da cidade. Faz todo o mal que pode e és, na platéia, empaticamos com ele ¢, vica- riamente, fazemos o mesmo mal: matamos, roubamos cava- los e galinhas, violamos jovens heroinas, etc. Até que, depois de estimulada nossa propria Aarmatia, vem a PERIPECIA: O heréi toma a dianteira na luta corporal ou através de inter- mindveis tiroteios restabelece a ordem (ethos social), a moral ¢ as relagSes comerciais honestas, depois de destruir (caTAs- TROFE) o mau cidadio. Aqui, o que se deixa de lado é a ANAGNORISIS ¢ a0 vildo se permite morrer sem necessariamen- te arrepender-se: afinal, matam-no a tiros ¢ 0 enlertam com grandes festas folcléricas de square dance... Nés nos recordamos sempre — no é verdade? — de quantas vezes nossa simpatia (EMPATiA, de certa forma) esta~ va mais com o bandido que com o mocinho. O far-west, como os jogos infantis, serve aristotelicamente para purgar todas as tendéncias agressivas do espectador. \ Este Sistema funciona para diminuir, aplacar, satisfazer «7 climinar tudo que possa romper 0 equilibrio social; tudo, Jnclusive |0s impulsos revoluciondrios, transformadores. 63 Que nfo reste nenhuma divida: Aristételes formulou um imo sistema purgatério, cuja finalidade é eliminar tudo que nao seja comumente aceito, legalmente aceito, inclu- sive a revolugio, antes de que acontega... O seu Sistema aparece dissimulado na TV, mo cine, nos circos ¢ nos teatros. Aparece em formas e meios miltiplos e variados. Mas a sua esséncia nao se modifica. Trata-se de frear o individuo, de adaptd-lo a0 que pré-existe. Se é isto o que queremos, este sistema serve melhor que nenhum outro. Se, pelo contrdrio, queremos estimular o espectador a que ‘transforme sua socic- dade, se queremos estimulé-lo a fazer a revolugdo, nesse caso teremos que buscar outra Poética. Notas 1. As caracteristicas do personagem se relacionam com o desenlace. Um personagem totalmente bom que termina um_final feliz nio inspira nem terror nem piedade, nao cria uma dinamica: o espectador o observa e o seu destino é ilus- trado pelas suas agGes, mas nfo se cria nenhuma teatrali- dade. . Um personagem totalmente mau que termina em catds- trofe tampouco inspira piedade, que é parte necessiria ao me- canismo da empatia. ‘Um personagem totalmente bom que termina em catds- trofe tampouco é exemplar, ¢, pelo contrario, viola o sentido de justiga. E 0 caso de Don Quixote que, do ponto de vista da éti- ca da Cavalaria, é totalmente bom ¢, nfo obstante, sofre uma catastrofe que funciona ‘exemplarmente’... Pode-se dizer que ele é totalmente bom, mas que possui uma moral anacrénica que é, em si mesma, uma falha trégica. Esta é a sua harmatia. ‘Um personagem totalmente mau, que termina em final feliz, seria justamente o oposto do que persegue a tragédia Brega, ¢ estimularia o mau, ¢ nfo o seu aperfeigoamento. 65 Portanto, teremos que concluir que as Gnicas possibili- dades slo: 1) personagem com uma falha terminando em catds~ trofe; 2) personagem com uma virtude, terminando em final feliz; 3) personagem com uma virtude, insuficiente, terminan- do em catdstrofe. 2. Para Platio, a realidade € como se um homem estivesse preso em uma cela com uma Gnica jancla, 14 no alto: esse homem poderia distinguir apenas sombras da verdadeira rea- lidade. Por isso, Platdo estava contra os artistas: estes seriam como prisioneiros que em suas celas pintariam as sombras que eles confundiriam com a realidade. Cépias de cépias, dupla corrupgio. 3. A aNnacnorisis é um elemento fundamental ¢ importan- tissimo do sistema. Pode ser o reconhecimenta feito pelo pré- prio personagem que assim, empaticamente, se transfere ao espectador. Mas se nfo o faz o personagem com 0 qual existe uma ligagio empatica, deve ser feita por qualquer outro, pelo Coro inclusive. E arriscado nfo fazer\anagnorisis, ou fazt-la mal, ou insuficientemente. B mecessirio recordar que o espec- tador tem inicialmente estimulada sua propria falha e, a0 nao produzir-se a compreensio de que se trata de uma falha, isto aumentard o seu poder destruidor. Pode acontecer igualmente que o espectador siga empati- camente o personagem até que comece a PeRIPECiA ¢ que oO abandone a partir de entao. Ai esti o perigo © ai o sistema pode funcionar ao contrario! Igualmente, a nfo destruigho da Aarmavia (final feliz) pode estimular o espectador & pritica do vicio: se o perso- nagem fez o que fez ¢ nfo teve maiores conseqiléncias, “a mim tampouco me aconteceré nada”. Isto também o liberaré ¢o estimularé a praticar o mal. 66 4. DEVIR E NAO-SER — QO pensamento fundamental de Aris- tdteles era o Devin ¢ nfo o Ser (DEVIR = TORNAR-SE.) Para ele, devir significava no a aparigéo ¢ a desaparigdo fortuita, mas sim o desenvolvimento daquilo que j4 esté em gérmen. A coisa individual, completa, néo é uma aparéncia, mas sim uma realidade propria, embriondria, existente. 5. Para Aristételes, o prazer estético era dado pela unidade da matéria com uma forma que, no mundo real, the era estra- nha. Esta unidade de matéria com uma forma (estranha) pro- duz © prazer estético. Por exemplo: expressar alegria n&o como na vida real mas em redondilha. E assim que surge o prazer estético. Aristételes insiste igualmente em que as belas artes imitam os homens em agdo. © conceito é amplo ¢ inclui tudo o que constitui a atividade interior e essencial, tudo o que expressa a vida mental, ou que revela a personalidade da alma. O mundo exterior pode igualmente ser incluido, mas téo-somente na medida em que sirva para expressar a agio interior. Pode-se ser feliz enquanto se vive? Para Aristételes sim, j4 que ser feliz é viver virtuosamente. Um homem virtuoso pode ser um desgragado, mas nunca um infeliz. Aristételes acrescenta igualmente que para ser feliz € necessirio um mi- nimo de condigdes objetivas, j4 que a felicidade nio é uma disposico moral, ¢ ao contririo se baseia em fatos ¢ atos efe- tivamente praticados. Nisso, estamos de acordo... Buenos Aires, junho de 1973 67 2 Maquiavel e a Poética da Virti Este ensaio foi escrito em 1962. Destinava-se a apresentar 0 espetiiculo de A Mandrdgora, comé~ dia de Maquiavel, montada pelo Teatro de Arena de Sao Paulo, em 1962-63, e dirigida por mim, Para este livro, pensei jalmente em supri- mir o Capitulo IIT, que trata mais especificamente da peca e de seus personagens. Pareceu-me, no entanto, que essa supressfio faria perder-se o fio da meada. Pretendi também acrescentar alguns ca- pitulos novos, especialmente sobre as Metamorfo- ses do Diabo, mas temi a hipertrofia de alguns aspectos sobre o esquema geral, como um todo. Devo esclarecer que este ensaio nfo pretende estu- dar exaustivamente as profundas transformagéies por que passou o teatro sob o comando burgués. Pretende apenas tentar a esquematizagio dessas transformag6es. Todo esquema é insuficiente — conheci esse perigo antes e depois de empreender a tarefa. Sio Paulo, matgo de 1966. I - A abstragio medieval faunne Arist6teles, Hegel ou Marx, a arte, em qualquer das suas modalidads, géneros ou estilos, constitui-se sempre numa forma sensorial de transmitir determinados conhecimen- tos, subjetivos ou objetivos, individuais ou sociais, particula- res ou gerais, abstratos ou concretos, super ou infra-cstrutu- rais. Esses conhecimentos, acrescenta Marx, sio revelados de acordo com a perspectiva do artista ¢ do setor social ao qual esta radicado, e que o patrocina, paga ¢ consome a sua obra. Sobretudo, daquele setor da sociedade que detém 0 po- der econdmico, ¢ com ele controla os demais poderes, esta- belecendo as diretrizes de toda cri: sja_artistica, cientifi- ca, filosdfica, ou outra. A este setor, evidentemente, interessa transmitir aquele conhecimento que o ajude a manter 0 poder, se 6 que j4 o detém de forma absoluta, ou que o ajude a con- ‘quisti-lo, caso contrério. Isso nio impede, porém, que outros sctores ou classes patrocinem também a sua prépria arte, que venha a traduzir os conhecimentos que Ihe sio_necessarios ¢ que ao fazé-lo utilize a sua propria perspectiya! A arte domi- Bante, no entanto, sera sempre a da classe dominante, ¢is que 7m esta é a dinica possuidora dos meios de difundi-la preponde- fantemente O teatro, de um modo particular, é determinada pela so- ciedade muito mais severamente que as demais artes, dado 0 seu contato imediato com a platéia, ¢ o seu maior poder de convencimento. Essa determinagiio atinge tanto a apresenta- gio exterior do espeticulo, quanto o préprio conteddo de idéia do texto escrito. No primeiro caso, basta lembrar as enormes diferengas entre, por exemplo, a técnica formal de um Shakespeare ¢ a de Sheridan, a violéncia do primeiro e a delicadeza do se- gundo, os duclos, os motins, as fei 8 € os fantasmas, de um lado, e, de outro, as pequeninas intrigas, os subentendi- dos, a complexidade . estrutural dos pequenos subenredos. Sheridan nfo seria eficaz se tivesse que enfrentar a violenta € tumultuosa platéia isabelina, da mesma maneira que Sha- kespeare seria considerado, pelos espectadares do Drury Lane, na segunda metade do século XVIII, um selvagem tru- cidador de personagens. Quanto ao conteido, os exemplos que podem ser cita- dos nfo so assim tio Gbvios, embora a influéncia social possa ser verificada, sem grande esforgo de inteligéncia, tanto nos atuais cartazes do teatro brasileiro, como na dramatur- gia grega. Atnold Hauser, no seu livro(A Histéria Social da Arte, analisando a fungio social da tragédia grega, escreve que os. “aspectos extemos do espetdculo para as massas eram indu- bitavelmente democrdticos, porém o conteido das tragédias revelava-se aristocritico. Fazia-se a exaltagio do individuo excepcional, distinto de todos os demais mortais, isto é, do aristocrata, © Unico progresso da democracia ateniense foi o de substituir gradativamente a aristocracia do sangue pela do dinheiro. Atenas era uma democracia imperialista e as guer- ras traziam beneficios apenas para a parte dominante da so- ciedade, O Estado e os homens ricos pagavam a produgo dos espetéculos, de modo que no permitiriam nunca a encenagdo de pecas cujo contetido fosse contrario ao que julgavam con- ‘veniente”, 72 Na Idade Média, o controle sobre a produgio teatral, exercido pelo clero e pela nobreza, cra ainda mais eficaz, © as relagSes entre o feudalismo ¢ a arte medieval podem ser fa- cilmente contadas através do estabelecimento de um tipo ideal de arte, que, € claro, nfo tem a necessidade de explicar todos 98 casos particulares, embora muitas vezes se encontrem exem- plos perfeitos. A quase auto-suficiéncia de cada feudo, o sistema social de estamentos rigidamente estratificados, a pouca importan- cia © a quase auséncia do comércio deveriam produzir uma arte na qual, diz Hauser, “no existia qualquer compreenso do valor do que é novo e, ao contririo, procurava preservar 0 velho ¢ o tradicional. Faltava & Idade Média a idéia de com- Ppeti¢go que sé é trazida pelo individualismo”. A arte feudal procurava atingir os mesmos objetivos do clero e da nobreza: imobilizar a sociedade, perpetuando o sis~ tema vigente. A sua caracteristica principal era a despersona- lizagio, a desindividualizagao, a abstragdo, “A Arte cumpria uma missio coercitiva e autoritdria, incutinda no povo, sole- nemente, uma atitude de respeito religioso pela sociedade tal qual ela era, Apresentava um mundo estdtico, estereotipado, em que tudo era genérico, homogéneo. O transcendental tor- hou-se muito mais importante, ¢ os fendmenos individuais ¢ concretos nfo tinham qualquer valor intrinseco, valendo ex- clusivamente como simbolos ¢ sinais” (Hauser). A propria Igreja simplesmente tolerava ¢, mais tarde, uti- lizava a arte como um mero veiculo das suas idéias, dogmas, Preceitos, mandamentos e decisSes. Os meios artisticos signi- ficavam uma concesséo que o clero fazia as massas ignoran- tes, incapazes de ler e de seguir um raciocinio abstrato, ¢ que podiam ser atingidas exclusivamente através dos sentidos. A identidade que se procurava impingir entre os nobres © as figuras sagradas era marcante, na tentativa de se estabe- lecer uma inquebrantavel alianga entre os senhores feudais ¢ 4 divindade. Por exemplo: a apresentagio das figuras de san- tos e nobres, especialmente na arte romiinica, era sempre fron- ) tal, © munca essas personagens podiam ser pintados trabalhan- < do, mas sempre em ociosidade, caracteristica do senhor pode- roso. Jesus era pintado como se fosse um nobre ¢ o nobre como se fosse Jesus. Infelizmente, Jesus foi crucificado, vindo a morter depois de intensos padecimentos de ordem fisica: ¢ aqui a identificagio nao mais interessava a nobreza. Porlan- to, mesmo nas cenas de sofrimento mais intenso, Jesus, Sao Sebastifio, ¢ outros martires, nfo mostravam no rosto qualquer sinal de dor, ¢, pelo contrdrio, contemplavam o Céu com extrema bem-aventuranga. Os quadros em que Jesus aparece crucificado dio a idéia de que ele est4 apenas apoiado num pequeno pedestal e de 14 contempla a felicidade causada pela perspectiva de voltar proximamente ao doce convivio do Pai Celestial. ‘Nio é fortuitamente que o principal tema da pintura romfnica tenha sido o Juizo Final. Este tema é, realmente, o mais capaz de intimidar os pobres mortais, mostrando-lhes terriveis castigos ¢ eternos prazeres espirituais, & sua escolha. Serve ainda para lembrar aos fiéis que os seus sofrimentos terrenos nada mais sio do que um substancial acervo de boas agdes que serio langadas a seu crédito no livro-caixa de Sio Pedro, que fecha a conta individual de cada um de nds, no momento da nossa morte, verificando nosso saldo, ou deficit. Este livro de deve-haver &, no entanto, uma invengio renas- centista que ainda hoje opera verdadeiros milagres, fazendo sorridentes ¢ felizes os sofredores que tém suficiente fé no Paraiso. Tanto quanto a pintura, o teatro revelou também uma tendéncia abstratizante, quanto 4 forma, ¢ doutrinante, quanto ao conteddo. Costuma-se freqiientemente dizer que o teatro medieval era nio-aristotélioo. Quando se faz uma tal afirma- glo, acreditamos, é porque se tem em mente o aspecto me- nos importante da Poética, isto é, a infelizmente célebre Ici das trés unidades. Esta lei nfo tem qualqi validade como tal, ¢ nem sequer os trdgicos gregos a obedec rigorosamen- te, N3o passa de uma simples sugestiio, dada de forma quase acidental ¢ incompleta. A Podética de Aristételes é, acima de tudo, um perfeito dispositive para o funcionamento social exemplar do teatro. E um instrumento eficaz para a correpao dos homens capazes de modificar a sociedade. & sob este aspecto social que a Poética deve ser encarada, ¢ somente nr} aqui reside a sua importancia fundamental. Na tragédia, o importante era a sua fungio catirtica, a sua fungio. purifica- dora das harmatias sociais do cidadiio. Todas as teorias de Aristételes se completam num todo harmdnico que demonstra correta de purificar a platéia de todas as idéias ou modificadoras da sociedade. Neste sentido, 0 tea- tro medieval era aristotélico, embora nilo se utilizasse dos mesmos recursos formais sugeridos pelo tedrico grego. Os personagens tipicamente feudais ndo eram seres hu- manos, mas abstragGes de valores morais, religiosos, etc., nio existindo no mundo real ¢ concreto. Os mais tipicos chama- vam-se Luxtria, Pecado, Virtude, Anjo, Diabo, etc. Nao eram personagens-sujeitos da ago dramdtica, mas simples objetas, porta-vozes dos valores que simbolizavam. O Diabo, por exem- plo, nfo tinha qualquer livre iniciativa: apenas cumpria a sua tarefa de tentar os homens, dizendo as falas que essa abstra- go necessariamente diria em tais ocasides. Assim, o Anjo, a Luxiria e todos os demais. Personagens que simbolizavam o bem eo mal, o certo e 0 errado, o justo e 0 injusto, o reco- mendivel e¢ o condendivel — evidentemente segundo a pers- pectiva da nobreza ¢ do clero que patrocinavam essa arte. As pecas feudais tinham sempre um cardter moralizante e exem- plar: os bons eram recompensados e os maus punidos. Podiam, esquematicamente, ser divididas em dois grupos: pecas do pecado e pecas da virtude. Entre as pecas de virtude podemos lembrar a “Repre- sentagio ¢ Festa de Abraio ¢ Isaac, seu Filho" de Feo Bel- cari, quase contemporinea de Maquiavel. Conta a histéria deste fiel servo de Deus, sempre pronto a obedecer, mesmo sendo a ordem superior incompreensivel ¢ injusta. (Da mesma maneira, todo vassalo devia obedecer scu suserano, sem inda- gar da justeza das suas resolugdes). Abraio, bom vassalo, €stava sempre disposto a cumprir as ordens emanadas do Céu. A pega narra o seu cumprimento do dever e, depois, a inter- Vengo hitchcockiana de um Anjo que surge em cena no mo- mento exato em que Abrado baixava a espada sobre o tenro © imocente pescogo do filho, cumprindo assim o scu sagrado dever. O Anjo regozija-se com o pai e o filho, elogiando a servil conduta de ambos, ¢ revelando o enorme lucro que te- 75 fio por terem obedecido tio cegamente 4 vontade de Deus, 0 suserano supremo: como recompensa, o Senhor abrir-Ihes-& as portas dos seus inimigos. E de supor-se que os seus inimi- gos nao fossem tio bons cassalos como eram eles. . . Entre as pegas do pecado, deve ser citada uma também bastante tardia, de autor anénimo inglés: Todomundo, Conta a histéria de Todomundo na hora da morte e indica a ma- neira certa de se proceder a fim de se ganhar a absolvicao nessa hora extrema, por maiores que tenham sido os pecados anteriormente cometidos. Isto se faz através de um bom arre- pendimento, uma boa peniténcia e, € clara, o aparecimento providencial do Anjo portador do perdio e da moral da his- téria, Embora os Anjos nfo tenham sido vistos ultimamente com muita freqiiéncia aqui na terra, esta pega continua sendo representada com bastante sucesso ¢ ainda infunde um certo temor. ‘Nao é de se estranhar que os dois exemplos citados, tal- vez os mais tipicos da dramaturgia feudal, tenham sido escri- tos quando a burguesia jf estava bastante desenvolvida ¢ for- te: os contedidos se aclaram na medida em que se agugam as contradigées sociais. Também nao é de estranhar que © teatro mais tipicamente burgués esteja ainda agora sendo escrito... ‘As pecas demasiadamente dirigidas para um 6 objeto correm o risco de contrariar um principio fundamental do teatro, que 6 © conflito, ou a contradigfo, ou qualquer tipo de choque ou combate. ‘Como foi possivel ao teatro feudal resolver este proble- ma? Pondo em cena os adversirios, porém apresentando-os de tal forma e monipulando o enredo de tal maneira que o desenlace pudesse ser previamente determinado. Em outras palavras: adotando um estilo narrativo ¢, colocando a agao no pasado, evitando-se a dramaticidade © a apresentagao di- presente dos personagens em choque. Karl Vossler (Formas Poéticas dos Povas Romdnticos) observa curiosamen- te que no conhece um sé drama medieval em que o Diabo seja “concebido ¢ apresentado como um digno adversirio de Deus; ele é fundamentalmente o vencido, 0 subordinado”. Embora poderoso, foge a qualquer sinal da cruz. Seu papel 76 € fregiientemente secundrio e muites vezes cémico. Ainda hoje se costuma fazer o diabo falar lingua estrangeira, como acontece com certas pecas gaichas nas quais ele fala espa- nhol, obtendo-se com este recurso um efeito ridicularizante, e mesmo tempo em que se enfraquece uma das paries em litigio. Infelizmente, para a nobreza feudal, nada estaciona neste mundo, inclusive os sistemas politicos ¢ sociais que surgem, desenvolvem-se e dio lugar a outros que virlo a sofrer igual destino. E com a burguesia nascente surgiu um novo tipo de arte, uma nova poética, através da qual comegaram a ser tra- duzidos novos conhecimentos, adquiridos e ‘transmitidos de acordo com uma nova perspectiva, Maquiavel é uma das tes- temunhas dessas transformages sociais ¢ artisticas. Maquia- vel € iniciador da poética da virtii. 71 II - A concregao burguesa cm © desenvolvimento do comércio, jd mesmo a partir do século XI, a vida comegou a transferir-se do campo para as recém-fundadas cidades, onde se construiram entrepostos ¢ se estabeleceram. bancos, onde se organizou a contabilidade mercantil ¢ cent! use o comércio. A lentidio da Idade Média foi substituida pela rapidez renascentista. Essa rapi- dez devia-se ao fato, observa Alfred Von Martim (Sociologia do Renascimento), de que cada um comegava a construit para si proprio ¢ nfo para a gloria do Deus eterna que, de tio eterno que era, nao carecia ter pressa em teceber as provas de amor dadas pelos seus tementes ¢ fitis, “Na Idade Média podia-se trabalhar na construgio de uma Igreja ou castelo durante séculos, pois que se construia para a comunidades ¢ para Deus. A partir do Renascimento, comegou-se a construir para os proprios homens pereciveis, ¢ ninguém podia esperar tanto ”. A ordenagio metédica da vida e de todas as atividades humanas passou a ser um dos principais valores trazidos pela burguesia em formagio. “Gastar menos do que se ganha, eco- nomizar forgas ¢ o dinheiro, administrar economicamente tanto 8 © corpo como a mente, ser trabalhador em contraposigio & ociosidade senhoril medieval, estes passaram a ser os meios de que dispunha cada individuo empreendedor pata elevar-se socialmente © prosperar”./A burguesia nascente encorajou o desenvolvimento da por ser ela necessiria ao seu ob- jetivo de promover um aumento de produgio que viesse a fa- cilitar maiores lucros ¢ acumulagao de capitall/Era tio ne-“ cessdrio descobrir novos caminhos para as lids como des- cobrir novas técnicas de produgSo, novas mquinas, que me- thor fizessem render a forga de trabalho que o burgués alv- ava, | A propria guerra passou a ser travada de uma maneira muito mais técnica do que antes, principalmente por causa das novas armas de fogo, aperfeigoadas ¢ usadas mais fartamente. Os ideais da cavalaria deveriam necessariamente desaparecer: dezenas de valorosos CIDS CAMPEADORES poderiam ser minados com a bala de um s6 canhia, disparado pelo mais timido ¢ covarde das soldados. ‘Nessa nova sociedade contabilizada, escreve Von Martin, “o valor ¢ capacidade individual de cada homem tornaram- -se mais importantes do que o estamento do qual tivessem nascido, ¢ até mesmo Deus transformou-se no Juiz supremo dos cimbios financeiros, o invisivel organizador do mundo, sendo o mundo considerado como uma grande empresa mer- cantil. Com Deus travaram-se relagSes de conta-corrente, pré- tica que ainda hoje corresponde &s boas agGes do catolicismo. A propria esmola & 0 modo contratual de assegurar a ajuda divina.(“A bondade cedeu lugar a caridade”, Este novo Deus-Proprictirio, o Deus Burgués, cxigia uma urgente refor- mulagdo religiosa, que nfo tardou a vir na formula do pro- testantismo.| Dizia Lutero que a prosperidade nada mais era do que a mpensa dada por Deus A boa direc3o dos ne- gécios, & boa administragfo dos bens materiais, E, para Cal- vino, no existia mancira mais segura de se verificar, ainda em vida, quais os eleitos de Deus senfo enriquecendo aqui na Deus estivesse contra determinado individuo certa- mente dispunha de poder bastante para evitar que cle enri- quecesse. Se enriquecia, certamente Deus estava do seu lado, nn © Capital acumulado passou quase que a denotar a graga di- vina, Os pobres, os trabalhadores bragais, os operirios ¢ cam- poneses, nada mais eram que uma legido de nao eleitos, que ‘nfo podiam enriquecer porque Deus estava contra eles, ou pelo menos nfo os ajudava. Em A Mandrdgora) comédia de Maquiavel, Frei Timoteo utilizava a Biblia. de-uma mancira tipicamente renascentista, mostranda que-o livro sagrado ti- nha perdido a sua fungio normativa do comportamento dos homens, para se transformar num santo repositério de textos, fatos e [versiculos que, interpretados isoladamente, poderiam. justificar, a posteriori, qualquer atitude do clero, dos homens, qualquer pensamento, qualquer ato, por menos santo que fosse. E o Papa Ledo X, quando a pega foi representada pela pri- ‘meira vez, nfo s6 a aprovou, mas deu-se por muito satisfeito com o fato de ter Maquiavel exposto, com tio extraordindria preciso ¢ arte, a nova mentalidade religiosa e os novos prin- cipios da igreja. O burgués, apesar de todas essas transformagies sociais, tinha ainda uma grande desvantagem, em relagio ao senhor feudal: enquanto este podia afirmat que o seu poder emanava de um contrato efetivamente realizado, em tempos imemo- riais, no qual Deus, ele préprio, outorgara-lhe o dircito a posse da tetra, fizera dele o seu representante na terra, 0 burgués nada mais poderia alegar em sua propria defesa € proveito, a nfo ser a sua propria condigio de homem empreen- dedor, o seu préprio valor ¢ capacidade individuais. © seu bergo nio Ihe dava privilégios especiais. E, se cle os possuia, é porque os tinha conseguido com dinheiro, com sua livre iniciativa, seu trabalho e a sua capacidade fria e racional de metodizar a vida. O poder burgués repousava, portanto, no valor individual do homem vivo © concreto, exis- tente no mundo real. O burgués nada devia ao seu destino ou 4 sua boa fortuna, mas tio-somente a sua propria virtit. Com sua Virti afastara todos os obstdculos que Ihe antepu- nham o nascimento, as leis do sistema feudal, a tradigéo, a religiio. A sua “virtu” era a sua primeira lei. Porém, o burgués virtuoso que negava todas as tradi- gGes © renegava o passado, que outros padrées de comporta- 80 mento poderia eleger sendo unicamente os da propria reali- dade? O certo € o errado, o bem ¢ o mal, tudo isso 36 se pode saber com o referendo da pratica. Como também ne- nhuma lei ou tradigo, mas apenas 0 mundo material e con- creto, poderia Ihe fornecer os caminhos seguros para chegar ao poder. “Os homens so como sio ¢ nio como deveriam ser” — esta frase de Maquiavel poderia ser endossada por qualquer burgués. A “praxis” foi a segunda lei da burguesia. A Virti e a Praxis foram e sio os dois fundamentos burgueses, suas duas caracteristicas principais. Evidentemen- te, nio se pode inferir dai que s6 quem nio era nobre podia possuir Virte ou confiar na praxis, e muito menos que todo burgués devia necessariamente possuir essa qualidade, sob pena de deixar de ser burgués. O préprio Maquiavel censu- rava a Burguesia de seu tempo, acusando-a de namorar as tradig6es do passado, de sonhar demasiado com as neves ro- minticas da nobreza feudal, enfraquecendo-se com isso ¢ dei- xando de, mais rapidamente, consolidar suas posigdes ¢ criar seus préprios novos valores. Esta nova sociedade deveria ne- cessariamente produzir um novo e radicalmente diferente tipo de arte. A nova classe nfo poderia jamais utilizar as abstra- ges artisticas existentes mas, ao contririo devia voltar-se para a realidade concreta e nela procurar suas formas de arte. (Nao podia tolerar que os personagens continuassem sendo os | mesmos valores oriundos do Feudalismo. Precisava criar, no palca € nos et homens vivos td carne € 0580, especial- mente 0 homem virtuoso, © |.» ry ves Em pintura, basta folhear qualquer livro de Histéria de Artes Plasticas, para se dar conta do que aconteceu. Surgi- Moar nas telas, individuos rodeados de paisagem verdadeiras. estilo gético os rostos comegaram ja a se indivi- ee “A arte burguesa era, sob_todes-os-aSpectos, uma arte popular, tanto porque se afastava das tradicionais rela- goes com a Igreja, como porque comegava ipresentar figu- Fas familiares. Um dos fenémenos mais notdveis é o apareci- mento do nu. Nao s6 a cultura clerical, como a aristocritica, ram opostas ao nu. O nu e a morte sip democriticos e neles todos os homens se igualam. As dangas da morte, j4 no fim da Idade Média, processo de aburguesamento, eram con- denadas pela igreja ¢ pela Aristocracia” (Von Martin).| No teatro desapareceu, por exemplo, a figura abstrata do Diabo em geral, ¢ surgiram diabos em particular, Lady Macbeth, Iago, Cassio, Ricardo III e outros de menor poder. Nao eram mais “O Principio do Mal", ou “anjos diabélicos” ou coisa que o valha, mas homens vivos que, livremente, op- tavam pelos caminhos considerados do mal. Homens virtuosos no sentido maquiaveliano, que “apro- veitavam ao maximo todas as suas forgas potenciais, pro- curando eliminar todos os elementos emotives ¢ vivendo num mundo puramente intelectual e calculador. O Intelecto care- ce em absolute de cardter moral. E neutro como o dinheiro” (Von Martin). Nio é de estranhar que(um dos temas mais tipicamente shakespearianos seja a tomada do poder por quem nfo tem ito legal de o fazer. Também a burguesia no tinha o direito de tomar o poder, ¢, mo entanto, tomou-o. Shakes- peare contava, em forma de fibula, a histéria da burguesia. Porém, sua situagio cra dicotémica: embora sua simpatia, como dramaturgo ¢ como homem, estivesse decididamen- te ao lado de Ricardo III (o virtuoso-mor, o representante simbélico da classe em ascensio, o homem que agia confian- derrotando a tradigio ¢ o esquema s0- © consagrado), Shakespeare devia-se cur- var, consciente: f@ ou nfo, 4 nobreza que o patrocinava ¢ que, afinal de contas, ainda detinha o poder politico, Ricar- do € © herdéi indiscutivel, embora acabe sendo derrotado no ‘V.© ato. Era sempre no ¥.° ato.que essas coisas aconteciam. E nem sempre aconteciam convincentemente: Macbeth é der- rotado de maneira criticdvel, do ponto de vista dramatirgico, pelo menos, pelos representantes da legalidade Malcolm © Macduff. Um, o herdeiro legitimo embora covarde e fujio, 0 outro, seu servidor ¢ vassalo fiel. Hauser justifica essa dicoto- mia quando lembra que a rainha Elizabeth era uma das maiores devedoras de todos os bancos ingleses, o que vem mostrar que a propria nobreza inglesa era também dicotémica. Shakespeare afirmava os novos valores burgueses que surgiam, embora apa- 82 rentemente restaurasse a legalidade ¢ o feudalismo no fim de suas pegas. Toda a dramaturgia shakespeariana é um documento com- probatério do aparecimento do homem individualizado no teatro. Todos seus personagens centrais sdo sempre analisados multidimensionalmente. Serd dificil encontrar, na dramaturgia de qualquer outro pais, ou época, um outro personagem que se compare a Hamlet. Ele € analisado em todos os planos ¢ diregdes: nas suas relagdes amorosas com Ofélia, amistosas com Horacio, politicas em relagio a0 Rei Claudio e a For- timbrds, na sua dimens’o metafisica, psicolégica etc. Shakes- peare foi o primeiro dramaturgo a afirmar o homem em toda a sua plenitude, como nenhum outro dramaturgo o fizera antes, no se excetuando sequer Euripedes. Hamlet nfo € a divida abstrata, mas sim um homem que, diante de determinadas ¢ bem precisas circunstiincias, duvida, Otelo nfo é o Ciime em si, mas simplesmente um homem capaz de matar a mulber amada porque descot Romeu nao é o Amor, mas um ra- pazote que se apaixona por uma ceria moga, chamada Julie- ta, que tem tais pais ¢ tal ama, e encontra resultados funes- tos nas suas aventuras amorosas. © que foi que aconteceu com o personagem do teatro? |Simplesmente deixou de ser objeto ¢ transformou-se no sujei- to. da aco dramatica. O personagem tornou-se uma concre- (gdo_burguesa. (Sendo Shakespeare o primeiro dramaturgo da virti © da praxis, € ele, neste sentido ¢ exclusivamente: neste, o pri- ‘meiro dramaturgo burgués) Foi o que primeiro soube tradu- zir, em toda a sua extensio, as caracteristicas fundamentais da nova classe. Antes dele, é claro, e mesmo durante a Idade Média, ja existiam pegas ¢ autores que tentavam o caminho: [Hans Sachs) na Alemanha, o [Ru (ainda sem falar de Maquiavel), na Franga, a célebre( Farsa (do Senhor Paihetin, etc. E preciso acentuar, entretanto, que Shakespeare ndo se utilizava, a nfo ser em casos excepcionais, como Anténio, @ Mercador de Weneza, de herdis que fossem formalmente a3 burgueses. Ricardo III € também o Duque de Gloucester. 0 cardter burgués da obra shakespeariana nao reside absoluta- mente nos seus aspectos exteriores, mas unicamente na apre- sentagdo e criagio de personagens dotados de virtit e confian- tes na praxis.) Nos aspectos formais, o seu teatro apresenta residuos que podemos considerar feudais: o povo fala em pro- sae os nobres falam em versos, por exemplo. ‘Uma critica, ¢ mais séria, que se pode levantar contra esta afirmagdo € a de que a burguesia, pela sua propria con- digtio de alienadora do homem, no seria a classe mais indi- cada para propor justamente a sua multidimensionalizagio. Acreditamas que isto seria verdade se ocorresse sempre um salto brusco e repentino entre dois sistemas sociais que se sucedem, se um deixasse de existir no momento exato em que surgisse o outro. Isto é, se a burguesia criasse a sua pré- pria Superestrutura de valores no momento exato em que o primeiro burgués alugasse a forga de trabalho do primeira operirio e dele auferisse a primeira mais-valia. Como tal niio corre, preferimos analisar mais detidamente este aspecto, Na verdade, Shakespeare no instituiu a multidimensio- nalidade de todos os homens, de todos os personagens, ou da espécie humana geral, mas somente a de alguns homens passuidores de certa excepcionalidade, isto é, daqueles dota- dos de virti. A excepcionalidade destes homens era fortemen- te marcada em duas diregdes opostas: contra a nobreza impo- tente & esfacelada, € contra o povo em geral, a — amorfa. No primeiro caso é suficiente lembrar alguns conflitos fun- damentais estabelecidos pelos personagens centrais. Quem siio 0s opasitores de Macbeth se mio gente mediocre? Duncan e Malcolm nao tém nenhum valor individual que os exalte. Ri- cardo III defronta-se com toda uma corte de nobres decaden- tes, comegando pelo doentio Eduarde IV, um grupo de fala- dores, inconstantes, débeis. E sobre a podridio do reino da Dinamarca nfo € necessdrio acrescentar nada as palavras do Préprio principe. Por outro lado, o povo ou niio se manifesta ou é facil- mente ludibriado ¢ aceita passivamente a troca de —» (Maguiaver: “O povo facilmente aceita a troca de i 84 porque actedita vimente assim poder melhorar”.) © povo & manipulado pela vontade dos virtuosos. Lembre-se a cena em que Brutus e depois Marco Antdnio inflamam o povo, cada ‘um por sua vez ¢ com argumentos apostos. O povo é massa informe ¢ moldivel. Onde estava 0 povo enquanto Ricardo e Macbeth cometiam os seus crimes, ou quando Lear portilha- va o seu reino? Séo questées que no interessavam a Sha- kespeare. A burguesia, conclui-se, afirmava um tipo de excepcio- nalidade contra outro: @ individual contra a estamental. Enquanto sua pri il contradigio era contra a nobreza feu- dal, a(burguesia propunha o homem)— icsse mesmo homem que foi mais tarde, por ela propria, submetido As mais seve- ras redugdes, quando a principal contradigio burguesa pas- sou a ser com o proletariado. Porém, esperou o momento oportuno para iniciar essa nova tarefa e sé comecou a exe- cutéla quando assumiu definitivamente o poder politico. Quando, no dizer de Marx, as palavras do slogan: Liberté? Egalité! Fraternité! foram substituidas por outras que melhor traduziam seu verdadeiro significado: “Infantaria! Cavalaria! Artilharia!" Sé entio comegou a reduzir o homem que ela mesma propusera. 85 TI — Maquiavel e a Mandrégora A Mandrégora & uma pega tipica da transigfo entre o teatro feudal ¢ o teatro burgués, ¢ seus personagens con- tém, equivalentemente, tanto abstraglio como concregao, Ainda nao sio seres humanos completamente individualizados e mul- tidimensionalizados, mas jf deixaram de ser meros simbolos e sinais, Sintetizam caracteristicas individuais e idéias abstra- tas, conseguindo um perfeito equilibrio. No prélogo, (Maquievel desculpa-se por ter escrito uma pega de teatro, género leviano € pouco austero, Parece acre- ditar que deve simplesmente entreter os espectadores) fazen- do-os pensar o minimo possivel ¢ deliciando-os com histérias de amor e galanterias. Por isso, utilizou-se de um jocoso caso de adultério e continuou pensando as idéias sérias © graves que o preocupavam, Maquiavel acredita que a tomada do poder (ou a con- quista da mulher amada) s6 pode ser atingida através de_ra- ciocinio frio ¢ calculador, isento de preocupagdes de ordem moral e voltado unicamente para a factibilidade e¢ a eficdcia do esquema a ser adotado ¢ desenvolvido) Esta & a idéia cen- tral da pega, e divide os personagens em dois grandes grupos: 86. 08 virtuosos € os nio-virtuosos, isto é, aqueles que acreditam nessa premissa € por ¢la se regem, € os que nio. Sob este aspecto, Ligdrio é o personagem central da pega, © personagem pivot, o maior virtuoso. Ele € uma metamor- fose do Diabo que comega, nele, a adquirir livre iniciativa. Ligurio nao é o parasita convencional, de longa tradigio na histéria do teatro, E um homem dotado de grande virtd, que livremente escolheu ser parasita, como poderia ter escolhido ser monge ou cénego. Pouco importa se o autor utilizou uma figura teatral preexistente: importa a nova contribuigio tra- zida. Ligdrio acredita apenas na prdpria inteligéncia, na sua capacidade de resolver, através do intelecta, todos e quais- quer problemas que surjam. Jamais confia no acaso, na boa fortuna ou no destino, como Calimaco; confia apenas nos ¢s- quemas que pensa ¢ preestabelece, e depois metodicamente executa. Em nenhum momento passa-lhe pela cabega qual- quer pensamento ou preocupagio de ordem moral, a nao ser quando medita sobre a maldade dos homens. Medita sem ne- nhum lamento, mas apenas com muito sentido pritico e utili- trio. Medita friamente, como o faria o préprio Maquiavel, sobre 0 bom ou o mau uso que se pode fazer da crueldade, sem atribuir 4 crueldade em si qualquer valor moral. A este respeito, nfio deixa de existir um certo parentesco entre Ma- quiavel e Brecht. Também este é capaz de escrever que as vezes ¢ necessério “mentir ou dizer a verdade, ser honesto ou desonesto, cruel ou piedoso, caridoso ou ladrio”. A praxis deve ser a dinica determinante do comportamento do homem. Ligirio nfo possui uma forma particularmente sua de agir, uma forma pessoal. E um camaledo. Dada a profissio que escolheu, sabe que deve acomodar a sua personalidade a va- rias formas diferentes, de acordo com as conveniéncias dita- das por cada situagio particular e por cada objetivo a ser atingido. Conversando com o doutor, é requintado, procuran- do fazer com que Messer sinta-se um homem viajado, pro- fundo conhecedor dos homens ¢ das redondezas de Florenga. Com Calimaco, faz-se passar por seu amigo desinteressado, Pronto a ajudé-lo no seu maior anseio. Piedosamente, ajuda Frei Timéteo na sua incansdvel busca de Deus ¢ de melhores 87 condigSes financeiras, Para melhor se entender Ligdrio, seria aconselhével uma leitura, répida que fosse, de Dale Carnegie e Napoleon Hill, autores americanos modernas que ensinam a arte de subir na vida. Frei Timéteo, porém — ao contrério de Nicia —, tam- bém € um virtuoso, e muito cedo compreende Ligirio, com ele contrainda enorme intimidade, para proveito de ambos. Os dois executam um plano no qual procuram afastar qualquer interferéncia da corte, e no qual intervém apenas o conheci- mento que ambos possuem dos homens reais, exatamente como so. Ligirio sabe que os homens so maus, porque se afei- goaram demasiadamente ao dinheiro, 0 denominador comum. de todos os valores morais. De posse deste dtil conheci- mento, Ligtrio sabe que seré bem sucedido em qualquer empresa, desde que nfo dé nenhuma importincia aos valores fingidamente prezados, como a honra, a dignidade, a lealda- de e outras interessantes virtudes medievais. Tudo pode ser traduzido em florins. O esquema de Ligirio nfo € maldoso, nem imoral, perverso: € apenas um esquema inteligente ¢ pritico, ¢ dnico capaz de realizar a proeza incrivel ¢ quase impossivel de conquistar Madonna Lucrécia, a honrada, a piedosa, a insensivel aos prazeres carnais, — pelo menos ela reza bastante para acreditar nisso! — a distante, a recatada, aquela diante de cuja honestidade ¢ retidfio até os criados ¢ servidores ficavam temerosos. Tudo & possivel neste mundo, desde que se conte sempre com a realidade dos homens, sem. exaltd-los, sem execrd-los, sem louvd-los ou censurd-los: ape- nas considerando-os como verdadciramente silo, e disso tiran- do partido. Frei Timéteo, por sua vez, no é um frade corrupto, cobi- oso, mas sim o simbolo de uma nova mentalidade religiosa. Se o mundo renascentista se mercantilizava em todos os seus setores (¢ é conveniente lembrar que até frei Luis de Leon compara as mulheres ais pedras preciosas, nfo pelos seus valo- res espirituais, mas pela simples possibilidade que tém de serem ‘entesouradas), também assim o nosso frade admite que a Igre- ja, para sobreviver, necessita contabilizar-se. Timdteo pensa desta maneira, nlo por mé-fé, mas porque compreende a na- tureza dos novos tempos, ¢ hd que progredir ou desaparecer. Timéteo assimila as novas verdades, aceita os novos costumes, adapta-se @ nova sociedade. No mesmo livro, guarda os santos ensinamentos da Biblia e as finangas eclesidsticas. Timéteo, como mais tarde Lutero, j4 acredita que o livro santo pode e deve ser diversamente compreendido, de acordo com cada casa especifico e individual. Nio deve existir uma interpre- tagéo dogmatica, que tenha, objetivamente, o mesmo significa- do e valor para todos. Cada um de nds deve entrar em con- tato direto com Deus e seus santos ensinamentos, ¢ nesta subjetiva relagio homem-Deus encontraremos mais facilmen- te a felicidade de que tanto carecemos, assim na Terra como mo Céu. A Biblia passa a servir unicamente para socorrer 0 frade, para explicar e apoiar as suas decisées) Desta forma, ‘9 procedimento ingénuo das filhas de Lot vem justificar 0 adul- tério de Luerécia. Em todas as coisas deve-se considerar o fim: 9 fim de Lucrécia € preencher uma vaga no Paraiso ¢ isso € 0 que conta. Se, para tanto, necessita trair o marido, pouco importa: importa apenas a pequena alma que seré dada A luz © a Deus. Moisés ndo deixaria de surpreender-se com esta furiosa interpretagdo do seu texto... Este amoralismo de Timéteo tem sido questionado com base num tnico mondlogo no qual ele se confessa arreper do, afirmando que as mds companhias sio capazes de leva um bom homem a forca, Acreditamos, entretanto, que Timé- teo nao sente a consciéncia culpada ou o coragiio pesado, nem nada do género. Para nés, Timéteo nfo esti apreensiva pelos Pecados que possa ter cometido, mas simplesmente muito tris- te por ter sido enganado por Ligurio. Ambos haviam feito um contrato, pelo qual o frade receberia a quantia de trezentos ducados. Porém, esse contrato nfio previa a necessidade disfarce com que enganava mais uma vez Messer Nicia; Timé- teo lamenta ter sido ludibriado na sua boa-fé e ter que pagar mais do que estava combinado. Muito satisfeito ficaria se a ‘sua cota em florins fosse aumentada, mesmo que se aumen- tasse também o niimero de pecados que devia cometer. Nesta trajetéria do Céu & Terra, todos os valores ater- rissaram. Até o préprio Deus humanizou-se, Para Timéteo, Ele deixou de ser o Deus distante, atingivel unicamente atra- vés de preces fervorosas, Timéteo conversa com Deus colo- 89 quialmente, se bem que assumindo ainda uma posigio subal- tera, exatamente como s¢ Deus fosse o dono de uma firma comercial na qual o frade desempenhasse as fungies de ge- rente, Timéteo, nos seus mondlogos, presta contas ao pro- prietério da geréncia dos seus negécios terrenos. Timéteo € o simbolo da Igreja que faz sua entrada triunfal na era mercan- tilista, Ao entrar, porém, ndo despreza nenhum dos elementos encantatérios dos rituais tradicionais, da meiguice paternal que deve caracterizar os membros do clero, a fim de Ihes facilitar © melhor desempenho das suas fungdes. A grande teatralida- de do frade deve-se precisamente a esta dicotomia: fala da ma~ neira mais espiritual possfvel nos momentos em qué trata dos assuntos financeiros mais materiais possiveis. Maquiavel ob- tém assim um efeito energicamente desmistificador, que muito conserva do proceso hiperbélico aristofanesco) ou de scus dis- cipulos mais recentes, (Voltaire) Arapua: Todos estes autores desmistificam, cada HO seu séfor, as verdades “eterna! Mas néo o fazem através do tradicional processo de negd-las, mas sim afirmando-as e tormando-as insustentiveis pelo exces- so de afirmago. Tomando-as absurdas. Ainda restaria acrcs- centar, ao rol dos personagens virtuosos, a mie de Lucrécia, Séstrata, Esta é uma espécie de virtuosa aposentada. Foi, na sua distante juventude, uma respeitdvel ¢ digna dona de bordel, Isso, porém, em nada desencoraja o seu ca- iter impoluto, a sua delicadeza afeita aos bons costumes da corte. Principalmente agora, que é uma mulher enriquecida. © seu comércio em pouco ou em neda difere de qualquer outro tipo de comércio, apresentando inclusive algumas van- tagens interessantes: os produtos comercidveis cram as suas proprias operérias, o que possibilitava um animador aumento da mais-valia que delas se podia auferir. . . © notirio Nicia é um dos personagens mais cativantes de toda a histéria do teatro. Enriquecido com o desenvolvi- mento da vida citadina, lamenta morrer sem ter um herdeiro. a quem deixar sua fortuna avaramente escondida. Nicia, como a maioria dos burgueses, gostaria de ter nascido principe ou conde, ou, pelo menos, um simples bardozinho. Como tal infe- lizmente n@o aconteceu, ele quer fazer com que o seu com- portamento s¢ assemelhe, no que for possivel, ao dos nobres. 90 ‘No seu momento crucial no segundo ato, Nicia apenas consente que a mulher se deite com um estranho, unicamente porque assim também o fizeram alguns nobres exemplares, como o rei da Franga ¢ tantos outros fidalgos que ha por li. A cena 6 admirdvel. A um sé tempo Nicia sofre terrivelmente com 0. adultério consentido e sente-se feliz com a prespectiva de ter um herdeiro, imitando a nobreza francesa. Sente-se nobre, em- bora Ihe doa a testa, Ligdrio manobra Nicia 4 sua vontade, utilizando-se dele até com certa simpatia, diante de tamanha vontade ingénua. Lucrécia é o fiel da balanga. Antes de conhecer Calima- co conduzia sua vida de maneira exemplar, que sé poderia ser elogiada por Frei Luis de Leon (A Perfeita Casada) ou por Juan Luis Vives (Instrugdo a Mulher Crista), Ela era o prépria simbolo desejedo por esses dois escritores. Passava © tempo lendo a vida dos santos mais puros ¢ castos, deixando de lado até mesmo aqueles que tiveram seus pecados perdoa- dos. Guardava os tesouros do marido, jamais ousando dar uma espiadinha pela janela entreaberta, gradeada. Lucrécia, sobre- ‘tudo, orava. E quanto mais o seu corpo sentia a falta de algu- ma coisa indescritivel, tanto mais fervorosa ela se tornava. Muitas, como ela, assim viveram ¢ morreram, sentindo angus- tiantemente a falta de algo impreciso. Lucrécia também acre- ditava que o que Ihe faltava cra o suave bafejo dos anjos, a caricia e o leve rogar do bafo dos habitantes do Paraiso. A Lucrécia sé Ihe faltava morrer para que sua felicidade fosse completa. Ou, entdo, faltava-Ihe Calimaco; este nio havia de tardar. Como idéia, cla representa, no comego da pega, a abs- tragdo medieval da mulher honrada e pura. A sua doce tran- sigdo representa o aparecimento da mulher renascentista, mais afeita as coisas terrenas, mais com os pés em cima da terra, Representa, como diria Maquiavel, a diferenga entre “como se deveria viver ¢ como realmente se vive.” Porém, mesmo depois de operada a mudanga milagrosa ela continua pen- sando no Céu, e nio abdica de nenhum dos valores antigos: simplesmente passa a utilizi-los de uma forma mais prudente © agradavel. Aceita os novos prazetes, fruidos mais pelo corpo do que pelo espirito, ¢ neles ndio vé pecado, mas simples obe- a diéncia a vontade divina: “Se isto me aconteceu 86 pode ter sido por determinagdo de Deus e nio me sinto com forgas para Fecusar aquilo que o Céu quer que eu aceite”, Os demais personagens, a Vitva e Siro, so menos sig- nificativos. A primeira serve quase que exclusivamente para caracterizar, logo na sua primeira cena, a peculiar maneira de pensar do frade e a sua capacidade de tudo traduzir em ter- mos de dinheito, Quando a Vidva Ihe pergunta se os turcos invadiréo @ Itélia, frei Timéteo, sem hesitar, responde que tudo depende das oragdes ¢ missa que ela mandar rezar. AS ofagbes slo gratuitas, porém as missas sic bem pagas. A Viva paga missas para que os turcos no invadam a Itélia, Paga missas que fagam seu inesquecivel marido saltar do Pur- gatorio ao Paraiso, paga, enfim, para que Ihe sejam perdoa- dos os pequenos pecadilhos causados pelo fato que a carne é fraca ¢ nao hé espirito forte que a dome. Quanto a Siro, pouco mais ¢ do que o tradicional cria- do, que tudo faz pelo bem-estar dos patries, cuidando dos Seus interesses e provendo para que se tealizem bem 03 seus planos. E o personagem menos desenvolvido da pega, servin- do apenas no que diz respeito 4 parte técnica, ajudanda Ca- limaco a contar 4 platéia os antecedentes da histéria, Acreditamos que qualquer encenagiio desta pega deve manter sempre uma linha de total clareza e sobriedade de meios. Nio se deve esquecer nunca que este texto foi escrito por Maquiavel ¢ que Maquiavel tinha alguma coisa importante a dizer. A utilizagio de uma simples histéria de amor ¢ de per- sonagens como Nicia, Lucrécia, Séstrata e 0s demais, é pu- Famente circunstancial, servindo apenas Para apresentar, numa forma divertida © teatral — numa forma figurada — o fun- cionamento prético do homem virtuoso. A liberdade do ence- nador diminui na medida em que aumenta a Precisio concei- tual do dramaturgo, O diretor de Maquiavel necessita ser clara ao traduzir teatralmente as suas idéias, A Mandrdgora é, também, uma das experiéncias mais bem logradas de dramaturgia popular. Acredita-se, convencional- Mente, qué o teatro popular deve aproximar-se sempre do cir- ©0, quer como texto, quer como interpretagiio, Esta opinido 92 & bastante divulgada ¢ aceita. Discordamos frontalmente, como discordariamos de quem afirmasse que a novela radiofénica, dada a sua peculiar violéncia emocional, é uma forma valida de arte popular. Acreditamos, ao contrdrio, que a caracte- istica mais importante do teatro que se dirige ao povo deve Ser & sua clareza permanente, a sua capacidade de, sem ro- deios ou mistificagdes, atingir diretamente O_espectador, quer fa sua inteligéncia, quer na sua sensibilidade. A Mandrdgora atinge © espectador inteligentemente e, quando consegue emo- cioné-lo, ela o consegue através do Faciocinio, do pensamento € nunca através da ligagio empdtica, abstratamente emocio- nal. E aqui reside a sua principal qualidade popular. TV — Modernas redugies da virtt Te a burguesia, no seu impeto inicial, tenha levado longe demais as fronteiras do teatro. O homem por ela ins- taurado ameagava expandir-se. O préprio drama shakespearia- no, embora ainda fortemente limitado, podia servir como faca de dois gumes, abrindo novos caminhos que nio se sabia bem aonde poderiam conduzir. A burguesia cedo deu-se conta desse fato ¢, na medida em que assumiu o poder politico, iniciou a tarefa de desarmar o teatro das armas que ela prépria Ihe dera, em seu beneficio.. Maquiavel propunha a libertagio do homem de todos os valores morais, Shakespeare seguia & risca essas instrugdes, embora sempre se arrependesse no quinto ato © res- taurasse a legalidade ¢ a moral, Era necessirio que surgisse alguém que, sem renegar a liberdade recém-adquirida pelo per- sonagem dramético, pudesse impor-lhe certos limites, teorizan- do uma férmula que lhe preservasse a liberdade formal, embo- ra fazendo sempre prevalecer a verdade dogmitica, preestabe- lecida. Esse alguém foi Hegel. Hegel afirmava que o personagem é livre, isto é, “os mo- vimentos interiores da sua alma devem sempre poder ser exte- riorizados, sem peias nem freios". Porém ser livre nao signifi- 94 ca que © personagem possa ser caprichoso e fazer o que the der na veneta: “liberdade é a consciéncia da necessidade ética”. O comportamento do personagem, no drama, é sempre um comportamento ético. Ele porém ndo deve exercer a sua liber- dade sobre o que for puramente acidental ou episédico, mas apenas sobre as situages © os valores comuns a toda a hu- manidade ou & nacionalidade: “os poderes eternos, as verda- des mais”, como, por exemplo, o amor, o amor filial, © patrio- tismo ete. Desse modo, Hegel consegue fazer com que o personagem Passe a incorporar um principio ético, e a sua liberdade consis- te unicamente em traduzir esse principio, em concretizi-lo na vida real, no mundo exterior. Os valores morais, abstratos, adquirem porta-vozes concretos, que sdo os Personagens. Nao Se trata mais do teatro feudal em que a Bondade era um perso- nagem chamado exatamente Bondade: agora ela se chama Fulano ou Sicrano. Porém, Bondade ¢ Sicrano sio uma ¢ a mesma coisa, embora diferentes: um é 0 valor abstrato e o outro a sua concregéo humana. Esses Personagens, portanto, incorporam imanentemente um valor “etermo”, uma verdade “moral”, ou sua antitese. Para que haja drama, no entanto, & necessirio que haja conflito, Logo, os Personagens que incor- Poram esses valores entram em chaque com os personagens que incorporam as suas antiteses, A agio dramatica é o resultado das peripécias advindas dessas lutas, ‘A ago, segundo Hegel, deve ser conduzida a um de- terminado ponto onde possa ser restaurado o equilibrio, O drama deve terminar em repouso, em harmonia (ainda esta- mos bem longe de Bertolt Brecht que afirma o exato oposto). Como, porém, poderd esse equilibrio ser atingido, sendo atra- vés da destruigdo de um dos. antagonistas que conflituam? E necessirlo que o sistema de forcas tese-antitese seja levado a um ponto de sintese ¢ isto, em teatro, s6 pode ser feito atra- vés de duas maneiras: morte de um dos personagens irrecon- cilidveis (tragédia) ou arrependimento (drama roméntico ou social, segundo o sistema hegeliano). Porém, ¢ é ainda Hegel quem afirma, o drama, como qualquer outra arte, é “o luzir da verdade através dos meios 95 sensoriais de que dispée artista”. Como, porém, poderd a verdade Juzir se o personagem portador da verdade “eterna” for destruido? Nao. E necessirio que o erro seja punido. O personagem que incorpora a mentira deve morrer ou arre- pender-se. Hegel poderia admitir, quando muito, a morte do herdi concreto, do homem real, desde que, através dessa ca- tastrofe, luzisse com maior brilho a verdade que ele portava. E isso freqiientemente acontecia no romantismo. O romantismo é, sem diivida, uma reagia contra o mun- do burgués, porém apenas contra o que ele tem de exterior, de acidental. Lutava, aparentemente, contra os valores bur- gueses. Mas o que propunha em troca? £ Hegel quem res- ponde: o Amor, a Honra, a Lealdade. Ista é, os mesmos va- avalaria. Um retorna mal disfargado as abstragdes agora num teatro formulado com maior precisio ¢ complexidade. O romantismo reeditou o tema feudal do Juizo Final, ou melhor, da recompensa pés-terrena: Nio tém outro significado as falas finais de Dona Sol, em Hernani, que, ao morrer, fala do véo maravilhoso que os dois apaixonados empreenderfo, na morte, & procura de um mundo melhor. A verdadeira vida e a verdadeira felicidade nfo é possivel. BE como se dissessem: “Este mundo é por demais nojento e abjeto. Aqui s6 podem ser felizes os burgueses com seus interesses mesquinhamente materiais. Deixemos aos sétdidos dos burgueses a sua sordida felicidade e 0 seu sérdido dinkeiro que apenas compra sér dos prazeres: nds seremos eternamente bem-aventurados. Si cidemo-nos, pois!” Nenhum burgués ficaria seriamente ofendi- do com tais propostas. O romantismo poderia ser considerado apenas como um canto do cisne da nobreza feudal, se nao possuisse também um cardter marcadamente mistificador e alienador. Amold Hauser analisa 0 verdadeiro significado do Roman d'un Jeune Homme Pauvre, mostrando que Octave Feuillet procura incul- car no leitor a idéia de que um homem, mesmo pobre e mise- rivel, pode ¢ deve possuir a verdadeira dignidade aristocriti- ca, que € enssencialmente espiritual. As condigées materiais da vida de cada um pouco importam: os valores sio os mesmos para todos os homens. 96 Procuravam-se, assim, resolver no campo do espirito os problemas que os homens enfrentavam no campo social. To- dos, indistintamente, podiam aspirar 4 perfeigdo espiritual, mesmo que fossem pobres como Jean Valjean, deformados como Rigoletto, ou parias com Hernani. Os homens, embora famintos, devem preservar essa coisa bela que se chama li- berdade espiritual. Quem o diz, com palavras mais lindas, certamente, € Hegel, é Victor Hugo. Esta foi a primeira grave redugio imposta ao homem no teairo: ele passou a ser equa- cionado em relagio aos valores ditos eternos e imutiveis. © icalizao, embora tio louvado por Marx, representow a segunda grande redug%o: o homem passou a ser o produto direto do seu meio ambiental. E verdade que nao assumiu, nas mios dos seus primeiros cultores, as proporgdes este! zantes que veio a assumir mais tarde. Claro estd que Marx nem sequer podia suspeitar o que fariam Sydney Kingsley, Tennessee Williams ¢ outros, modernamente, A principal limitag3o realista consiste em apenas cons- tatar uma realidade que ja se supSe conhecida. Do ponto de vista naturalista, a obra de arte serd tio melhor ma exata me- dida em que melhor logre reproduzir a realidade. Antoine levou esta premissa ds ultimas conseqiiéncias, desistindo de reproduzir a realidade ¢ levando a propria realidade ao paleo: num dos seus espetéculos utilizou carne verdadeira num ce- ‘nario que representava um agougue. Zola, cxpondo a sua célebre teoria de que o teatro deve mostrar “uma fatia da vida", chegou a escrever que o dra- Maturgo nio deve tomar partido, mostrando a vida cxatamen- te como cla é, nio sendo, sequer, seletivo, A vulnerabilidade desta argumentagio é tio ébvia que nfo se torna necessai demonstrar que a propria escolha do tema, da histéria ¢ dos personagens ja significa uma tomada de posigéo por parte do autor. A afirmacao de Zola tem, no entanto, iportiincia de mostrar o beco sem saida onde foi ter a objetividade natu- falista: a propria realidade fotografica.) Além desse ponto nao era possivel, objetivamente, prosseguir, Mas havia o caminho inverso: a subjetivaglo crescente. Jamais, depois de Shakes- Ppeare, o homem foi mostrado multidimensionalmente no pal- co. Quando cessou o movimento objetivo, iniciou-se a série 97 de estilos subjetivos: impressionismo, expressionismo, surrea- lismo. Todos eles tendentes a restaurar uma liberdade, porém meramente subjetiva. Surgiram as emogdes abstratas, o medo, 0 terror, a angustia. Tudo na cabega do personagem que pro- jetava exteriormente o seu mundo fantasmagérico. © proprio realismo procurou caminhos dentro do ho- mem, explorando a psicologia, porém nem ai foi mais feliz. Reduziu o homem a equagdes psico-algébricas. Para se dar conta do que aconteceu, basta lembrar algumas das tltimas produgées de Williams ¢ outros autores de sua escola. A re- ceita varia pouquissimo: juntando-se um pai que abandona a mile logo apés o nascimento do primogénito, com uma mie que se dd ao vicio da embriagués, certamente obteremos um personagem cuja tara deverd ser um tipo qualquer de sado- masoquismo generalizado. Se a me é infiel — a matemitica nao falha — o filho seré um delicado invertido sexual. B Iégico que qualquer evolugo a partir dessas equagSes 86 poderia ser uma, ¢ Tennessee Williams, autor dotado de grande talento, nfo podia deixar de segui-la: a mastiga¢io li- teral dos Grgios sexuais do protagonista. N&o deixa de ter uma certa originalidade... Ir além, s6 entrando para um con- vento, ¢ cremos que Williams, cedo ou tarde, nfo deixaré de fazé-lo. O teatro, modernamente, procurou seguir também os des- caminhos do cismo; a procura de Deus como fuga aos problemas materiais. Eugene O'Neill, mais de uma vez, afir- mou nao estar interessado nas relagdes dos homens entre si, mas tao-somente nas relagSes do homem com Deus. Na falta de Deus, O'Neill interessa-se pelos poderes misteriosos ¢ sobre- naturais que nos circundam ¢ que nio sabemos explicar. Os fenémenos expliciveis parecem niio interessd-lo. Seus olhos esto “além do horizonte”, em busca de trigicos destinos, ou & espera e A espreita do aparecimento de novos deuses. En- quanto Eles néo vém, O'Neill vai fabricando os préprios, para uso caseiros. Nao é isso .o qué acontece em Dinamo? O drama- turgo quase se projeta no terreno da science-fiction. Se ainda vivesse e, da mesma forma que descobriu o Deus-Dinamo, teria 98 ja descoberto o Deus-Sputinik, o Deus-Cinturio Magnitico, ¢ outros habitantes do moderno ¢ cientifica Olimpo. A burguesia descobriu recentemente, talvez ajudada pelas estatisticas de Hollywood, o enorme poder persuasive do tea- tro ¢ das artes afins. Citamos Hollywood e gostariamos de dar um exemplo: no filme Aconteceu Naquela Noite, em deter- minada cena, o ator Clark Gable tira a camisa ¢ revela que nao usa camiseta. Isso foi o bastante para levar a faléncia vi- rias fabricas americanas desse artigo, que deixaram de ter entre os seus clientes os membros dos varios Clark-Gable-fi- -clubes, dvidos de imitar 0 idalo. © teatro, no entanto, influencia os espectadores nfo ape- nas no que se refere & indumentiria, como nos valores cspi- rituais que thes pode incutir, através do exemplo. Surgiu assim um novo tipo de pega e de filme “exemplar”, que procura reiterar alguns valores consagrados da sociedade capitalista, como, por exemplo, a arte ¢ a faculdade de subir na vida, através da livre iniciativa. Séo pegas ¢ filmes biogrificos que mostram a trajetéria fulgurante de determinados cida- dios que galgaram as escadas da fama ¢ da fortuna, partindo das condigoes de vida mais humildes, “Se J. P. Morgam amea- Thou tio considerdvel fortuna, iates, mansies, ete. por que voce nao poderd fazer 0 mesmo? Claro que vocé também pode. A sua Unica obrigagao é respeitar as regras do jogo”. Isto é, do jogo capitalista, Disse Marx que todos os fatos histéricas acontecem pelo menos duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como comédia, Foi o que aconteceu com a obra de Maquiavel. Os seus escritos tinham um sentido de profunda gravidade. Ja os seus discipulos americanos de hoje, inspiradores dessa linha exemplar do teatro e do cinema — Dale Carnegie ¢ outros — néo podem jamais evitar a comicidade de que ine- Vitavelmente envolvem seus conselhos, expressos em livro do tipo How to make your wife keep on loving you tenderly, even after she's got a lover who's a much better guy than you are... Seo leitor perdoar a quase despropositada compara- $40, diriamos que, no entanto, tanto Maquiavel como Dale Carnegie pregam o célebre slogan “Querer é Poder"... 99 A mais recente ¢ a mais severa redugio do homem, con- tudo, é a que vem sendo realizada pelo antiteatro de Eugéne Tonesco, que procura retirar do homem até mesmo a sua ca- pacidade de comunicagio. O homem torna-se incomunicavel, nao no sentido em que The é impossivel transmitir as emo- gdes mais intimas ou as nuangas de seu pensamento, mas literalmente incomunicdvel. Tanto assim que todas as pala- vras podem ser traduzidas numa sé: char (“Jacques ou a Submissio"). Todos os conceitos valem chat, Tonesco decla- ra este absurdo com muita graga ¢ nds — burgueses ¢ peque- nos-burgueses — rimos bastante. Mas j4 niio o achariam tio engracado, operdrios & espera de um pronunciamento das clas- ses patronais quanto 4 necessidade de um imediato aumento dos niveis salariais, que recebessem_em resposta um discurso como aquele que encerra a pega \As Cadeiras, pronunciado por um mensageiro mudo. Ou sc Ihe dissessem que “aumento de salario” é chat, “miséria” & chat, “fome” é chat, tudo é chat. Esta tentativa de andlise e estas objegdes nfo significam que pretendemos afirmar que estes autores carecem de impor- tincia. Pelo contririo, acreditamos que eles sio extremamente significativos, por serem justamente as testemunhas da fase final da sociedade ¢ do teatro burgueses. Sdo eles que con- cluem a trajetéria deste teatro, quando o homem multidimen- sionalizado & submetido a redugdes que o transformam por completo em novas abstragdes, quer sejam elas de ordem psi colégica, moral ou metafisica. Neste sentido, Ionesco leva a palma a todos os seus demais companheiros, na ingente ta- refa de desumanizar o homem. Foi ele quem escreveu o dlti- mo personagem burgués, Béranger, 4 volta do qual todos os personagens vio gradativamente se transformando em rino- cerontes, ou seja, em abstracdes. No que se terd transforma- do este ultimo representante da espécie humana, ultimo ¢ nico, quando todos os demais jd desapareceram, se no pre- cisamente na absfragdo da espécie humana? Béranger nada mais € do que a negagdo do rinoceronte, ¢ portanto, ele pro- prio, um nio-rinoceronte alienado! Ele nao possui qualquer outro conteddo, além da simples negagio. 100 Esta foi a trajetéria desenvolvida pelo teatro desde o surgimento da moderna burguesia. Contra esse teatro deverd surgir um outro, determinado por uma nova classe, ¢ que dele divirja n§o apenas em caracteres estilisticos, mas de forma muito mais profundamente radical. Esse novo teatro, mate- rialista dialético, serA forgosamente também um teatro de abs- tragGes, pelo menos, em sua fase inicial. Nio mais apenas abstragées superestruturais, mas também infra-estruturais. Seus personagens ainda revelam, em algumas pegas de Brecht, a sua condigo de simples objetos. Objetos de fungdes sociais determinadas que, entrando em contradig0, desenvolvem um sistema de forgas que determina o movimento da ago dra- mitica. Trata-se de um teatro que mal acaba de nascer ¢ ms, embora rompendo com todas as formas tradicional niio teve os seus fundamentos teéricos suficientemente bern formulados. $6 a prética constante fard surgir a nova teoria. 3 Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto? Conceito do “Epico”’ A Malor dificuldade para compreender as extraordindrias transformagées que sofre o teatro, com a contribuigio do Pensamento marxista, consiste na deficiente utilizaglo de cer- tos termos. Justamente porque essas gigantescas transforma- gGes no foram imediatamente percebid: as novas teorias foram explicadas com o velho vocabuldrio: para designar no- vas realidades se utilizaram velhas palavras, tentou-se utili- Zar novas conotagdes para palavras j4 cansadas e exaustas por suas velhas denotagoes. Tomemos um exemplo: que quer dizer “épico"? No co- mego, Bertolt Brecht chamou seu novo teatro com essa velha palavra. Aristételes, € verdade, nfo fala de reatro épico, mas sim de poesia épica, de tragédia ¢ de comédia, Estabelece di- ferengas entre poesia épica ¢ tragédia que se referem ao verso, para ele necessariamente presente nas duas formas, a dutagiio da agio e finalmente a0 que é mais importante, ao fato de que @ poesia épica é formalmente narrativa, ao contrério do que acontece com a tragédia. Nesta, a ago ocorre no presente; na- quela, a ago, ocorrida no passado, é agora recordada. (Ari: tételes acrescenta que todos os elementos da poesia épica se encontram na tragédia, mas nem todos os elementos da tragé- 105 dia sio encontriveis na pocsia épica. Fundamentalmente, ambas “imitam” as agSes de personagens de “tipo superior”. Erwin Piscator, contemporineo de Brecht, utiliza um con- ceito completamente diferente do “épico": faz um teatro opos- to ao preconizado por Aristételes ¢ usa, para designi-lo, a mesma palavra. Piscator utilizou, pela primeira vez em um espeticulo teatral, o cinema, os slides, os grificos de uma infi- nidade de mecanismos ¢ recursos extrateatrais que podiam aju- dar a explicar a realidade verdadeira na qual a pega se ba- seava, Esta absoluta liberdade formal, com a inclusiio de qual- quer clemento até entio insdlito era chamada por Piscator “forma épica”. Esta imensa riqueza formal rompia a ligagio émpatica convencional ¢ produzia um efeito de distanciamento; este efeito foi depois aprofundado por Brecht, ¢ ja o estuda- remos mais adianté.| Quando Piscator montou [As Moscas, de Sartre, em Nova York, pata que nenhum espectador deixasse de entender que Sartre estava falando da Franga ocupada pelas forgas nazistas, exibiu, antes do espetéculo, um filme sobre a guerra, sobre a ocupacio, a tortura e outros males do ca- pitalismo. Piscator no queria permitir que se pensasse que @ obra tratava dos gregos, que cram aqui simples elementos sim- bélicos de uma fabula que contava coisas pertinentes do mundo atual, Hoje em dia a palavra “épico” estd outra vez de moda em uma nova acepcao, em relag%o a certos filmes sobre 0 assassinate macigo de indios pelos ianques, ou filmes sobre @ guerra expansionista norte-americana contra o México. Em resumo, filmes a “céu aberto”. Esta é a concepgiio mais fre- qiiente que tem a palavra: um filme com muitos personagens, com muitos cavalos ¢ tiros e lutas ¢ ocasionalmente algumas cenas de amor, no meio de mortes, sangue de ketchup, viola~ gGes ¢ estupros, tudo isso embrulhado num pacote para maio- res de 18 anos. (Em todas estas acepgdes, a palavra épico tem a ver com tudo-que seja amplo, exterior, objetivo, a longo prazo, etc. Também na acepgio de Brecht a palavra tem estas caracte- risticas € algumas outras. Brecht usa a expresso “teatro épico” principalmente em contraposigio & definigio de “poesia pica” que nos di He- 106 gel. Na verdade, toda a Poética de Brecht ¢, basicamente, uma _resposta € uma contraproposta a Poética idealista hege- liana.) Quero que isto fique claro: a postica de Brecht nie & uma categoria (épica) de uma poética ay terior, mas se vons- titui, a0 contrério, em uma poética inieiramente nova que inclyi (como a de Hegel) os géneros litico, épico ¢ dramsti- co.,A confrontagio central entre estas duas Poéticas (hege- liana e brechtiana) se di no conceita de liberdade do perso- nagem, como ja veremos: para Hegel o personagem € inteira~ mente livre quer se trate da poesia lirica, épica ou dramitica; para Brecht (© para Marx) o Personagem ¢ objeto de for¢as ‘sociais,) | . Para que se entenda o que significa “épico” para Hegel € necessdrio lembrar inicialmente que, dentro do seu “Siste- ma das Artes”, cle atribuiu importancia fundamental ao maior ou menor grau em “o espirito se liberia da matéria", Para explicé-lo melhor, digamos que Arte, para Hegel, era “o Iuzir da verdade através da matéria". Por isso, dividia as artes em simbélicas, classicas ¢ rominticas. Nas primciras pre- domina a matéria ¢ o espirito & muito Pouco visivel. Neste caso esti, por exemplo, a arquitetura, No segundo caso, o espirito ja se liberta um Pouco mais da matéria e consegue © equilibrio; € © caso da escultura: 0 rosto de um homem, sua fisionomia, sua expression, seu Pensamento, sua dor, con- seguem transparecer através do marmore, Finalmente, as artes chamadas romanticas séo aquelas em que o espirito se con- Segue libertar completamente da matéria. Neste caso esta a Poesia, A matéria da poesia sao as palavras e no o cimento ©u o mérmore, Por isso, o espirito pode alcangar, na poesia, relinamentos impossiveis na arquitetura, onde pesadamente ‘pre domina a matéria, a pedra, a terra. GENEROS DA PoESIA EM Hecer Para Hegel, a poesia épica é aquela que apresenta “o mundo moral sob a forma de realidade exterior”. Para ele, tudo © que acontece é determinado Por poderes morais, “se- jam divinos ou humanos, ¢ os obstéculos exteriores que se 107 Ihes opdem, retardando sua marcha”. Em outras palavras: o espirito de um Deus ou de um homem inicia uma agio que se defronta com obstéculo no mundo exterior: a poesia épica narra esses encontros € esses conflitos do ponto de vista da sua ocorréncia no mundo exterior, ¢ nfo do ponte de vista do espirito que Ihe deu origem. “A ago toma a forma de um acontecer que se desenvolve livremente, e ante o qual se cobscurece a figura do poeta”, O importante sdo os fatos ¢ nfo subjetividade do poeta que os conta, ou do personagem que os realiza. “A missio da poesia épica consiste em recordar tais acontecimentos, Representa assim o objetivo na sua prépria objetividade”, diz Hegel. O poeta épico, ao contar como ocorreu tal ou qual ba- talha, deve descrever a batalha com o maximo possivel de detalhes objetivos, sem se preocupar a sua propria ma- neira particular de sentir esses fatos. Um cavalo deve ser des- crito. como um cavalo, objetivamente, e mio através de ima- gens subjetivas que o pocta possa imaginar quando vé um cavalo. A poesia lirica € exatamente o oposto da poesia épica, © expressa o “subjetivo, o mundo interior, os sentimentos, as contemplagdes e emogSes da alma”, “Em vez de recordar © desenvolvimento de uma ago, sua esséncia ¢ finalidade con- siste cm expressar os movimentos interiores da alma humana”. O importante na poesia lirica no é o cavalo em si Mo, mas sim as emogGes que o cavalo pode despertat no poeta. Nao sio importantes os fatos concretos de uma batalha cam- pal, mas sim a sensibilidade do poeta estimulada pelo ruido das espadas! A poesia lirica € completamente subjetiva, pessoal. Finalmente, a poesia dramatica, para Hegel, combina o principio da objetividade (épica) com o principio da subje- tividade (lirica): “o cardter objetivo da agdo que é apresen- tada diante dos nossos olhos ¢ © carter subjetivo dos moti- ‘vos interiores, que movem os personagens ¢ seu destino, que 36 pode ser 0 resultado necessdrio de suas paixdes € ages”. A agio no se apresenta como na poesia épica, como algo j4 sucedido, mas sim como algo que ocorre no momento mes- mo em que o estamos presenciando. Na poesia épica, a ago 108 © O8 personagens vivem um tempo distinto dos espectadores; Na poesia dramdtica, os espectadores so transportados 4 épo- ca © ao lugar onde ocorre a aglo, ¢ ambos esto no mesmo tempo ¢ lugar. Por isso, a empatia, a relaggo emocional pre- sente ¢ viva & possivel apenas na Pocsia dramatica ¢ nio na Poesia épica, A poesia épica “tecorda” ¢ a Poesia dramatica “revive. ) ‘Vemos assim que na poesia dramitica coexistem a obje- tividade ¢ a subjetividade, mas é importante notar que, para Hegel, esva precede aquela: a “alma” é 0 sujeito que deter- mina toda a ago exterior e interior. Como em Aristételes, eram igualmente as paixdes convertidas em atos as que moviam a acio. Nestes dois fildsofos, o drama mostra a colisio exterior de forcas originadas ‘na interior, ista &, © conflito objetivo de forcas subjetivas, Para Brecht, como Jd veremos, tudo acontece a inversa. CaracTeRIsticas DA POoesta DRAMATica, SEMPRE SEGUNDO HEGEL Hegel pensa que temos a necessidade de ver 08 atos € as relagdes humanas apresentados diante de nds ao vive, de cor- Po presente. Mas, acrescenta, “a poesia dramatica nao se lie mita & simples realizacio de uma empresa que segue o seu curso pacificamente, mas, ao contrario, se desenvolve essen cialmente em um conflito de circunstdncias, Paixdes € carac- teres que leva consigo agies ¢ reagdes, mais um desenlace final; assim, © que se apresenta A nossa vista € o espeticulo mével e continuo de uma luta animada entre Personagens vi- ventes que perseguem desejos opostos, em meio a situagdes cheias de obsticulos ¢ de perigos". Sobretudo, Hegel insiste em um ponto fundamental que marcard sua profunda diferenga com a poética marxista de Brecht: “a agao nfo parece nascer de ‘circunstancias exterio- res._mas sim da vontade interior e dos caracteres dos persona- gens". Deste conflito surge o desenlace, que deve ser, como 4 acto mesma, ‘subjetivo e objetivo a0 mesmo tempo’; depois do tumulto de paixdes e agdes humanas, sobrevém o repouso”. ? 109 bee —s———_CS Para que isto possa ocorrer, & necessiirio que os persona- gens sejam: livres, isto é, € necessério que “os movimentos inte- Tiores da sua alma se possam exteriorizar livremente, sem freios & sem qualquer tipo de limitago". Em resumo, o per- Somagem ¢ sujeito absoluto de suas agées. LIBERDADE DO PERSONAGEM-SUJEITO Para que o personagem seja realmente livre & necessario que a sua ago nio seja limitada a no ser pela vontade de ‘outro personagem, igualmente livre, Hegel dd algumas expli- cages sobre o tema da liberdade do Personagem sujeito: 1. 0 animal é inteiramente determinado pelo seu meio-am- biente, © portanto niio & livre, estando determinado por suas necessidades bisicas de comer, ete. Até mesmo 0 homem, em certa medida, nfo livre, porque possui igualmente uma parte animal. As necessidades exteriores que sofrem os homens, as nécessidades materiais, siio uma limitagio ao exercicio da sua liberdade. Por essa razio, os melhores personagens para a Poesia dramética, segundo Hegel, so os que menos sentem as pressdes das necessidades materiais. Os Principes, por exem- Plo, que ndo necessitam trabalhar fisicamente para ganhar o Pio nosso de cada dia, e que tém multidées de servidores a sua disposigdo, que podem lazer suas necessidades ma- teriais, permitindo assim ao Principe que exteriorize livre. mente os movimentos do seu espirito... Segundo Hegel, essa multidio que cria ao Principe as melhores condigdes para que se converta em personagem dramftica nao pode, ela mes- ma, servir aos mesmos fins — nfo é bom material para o drama... 2. uma sociedade altamente civilizada tampouco é a mais indicada para oferecer bom material dramdtico, Pois os per- sonagens devem aparecer come essencialmente livres, capazes de determinar seus Préprias destinos, e os homens de uma so- cidade desenvolvida estao atados de és © maos a todos os tipos de leis, costumes, tradigSes, instituiges, etc., nesta floresta legal ndo podem facilmente exercer sua liberdade. Com efei- 110 to, se Hamlet tivesse medo da Policia, dos advogados, dos tribunais, dos Promotores piblicos, etc., talvez nao exteriori- Zasse os livres movimentos do seu espirito matando a Polé- nio, Laertes e Cléudio. E, segundo Hegel, o personagem dra- mitico necessita de toda sua liberdade! Caramba! 3. Convém esclarecer que a liberdade ndo se refere funda. mentalmente ao aspecto “fisico: Prometeu, por exemplo, é Tem poder suficiente Para terminar com esse atroz castigo; basta artepender-se diante de Zeus, o Deus maior, ¢ este o Perdoaré. A liberdade de Prometeu consiste em que pode ter- minar com seu Proprio supli no momento em que assim o desejar, mas livremente decide no fazé-lo. Hegel conta também a histétia de um quadro de Murilo que mostra uma mie a ponto de bater em seu filho que, de- safiante, continua comendo uma banana. A diferenga de po- tenha liberdade suficiente para enfrentar sua mae mais po- derosa. Por essa razlio, pode-se escrever uma Pega sobre um Personagem que esieja na priséo, desde que ele tenha a liber- dade moral de eleger. Existem outras caracteristicas que sio importantes para 4 construgdo de uma obra dramética: 1. a liberdade do Personagem que nao deve ser exerci- da sobre o acidental, o menos importante, 0 contingente, mas sim sobre o mais universal, @ mais racional, maig essencial, o que mais importe vida humana. A familia, a pdtria, o Estado, 8 Moral, a Sociedade, etc. sio interesses dignos do espirito humano e portanto da poesia dramitica, 2. a arte em geral ea Poesia dramética em Particular tra- tam de realidades concretas ¢ nio de abstrages: Portanto, ¢ necessério que o particular se Veja no universal, A filosofia trata de abstragdes, a matemdtica de nimeros, mas 0 teatro trata de individuos. B pois necessirio mostré-los em toda sua concregiio. 3. justamente porque so universais os interesses gerais com que trabalha o teatro (e nfo, pelo contrario, caracteristicas idiossincraticas), esas forgas motrizes do espirito humana sfio eticamente justificaveis. Isto é: a vontade individual de um nagem € a concregio de um valor moral ou de uma opgao ética, Exemplo: o desejo comereto de Creonte de nio permi- tir o enterro do irmio de Antigona é a concregio, em termos de vontade individual, da intransigéncia Stica em defesa do bem do Estado; 0 mesmo pode dizer-se em relag¢io & vonta- de férrea de Antigena de dar sepultura a seu irmao, que é a concregao de um valor moral, o bem da famflia. ‘Quando se chocam estas duas vontades individvais, na verdade esto $6 chocando dois valores morais, B necessiirio que este confli- to termine em repouso, como quer Hegel, pata que a disputa moral possa ser resolvida: quem tem razio? qual é 0 maior valor? etc. Neste caso particular, conclui-se que ambos valo- yes morais sdo aceitéveis € corretos ainda que neste cas0 S¢ apresentem exagerados: o erro nio & o valor em si mesmo, mas © SU EXCESS, 4. para que ocorra a tragédia, para que seja_verdadeiramen- te tragédia, € necessirio que 0% fins perseguidos pelos perso- nagens sejam irreconcil ‘Aveis; se por acaso existe uma ‘possi- bilidade de reconciliagio, @ obra dramatica pertenceraé a outro género: o drama. De todas estas afirmagSes hegelianas, a que mais obvia- mente caracteriza sua Poética é a que insiste no cardter de Sujeito do personagem. Isto é, que todas as agoes exteriores: tém origem no espirito livre desse persomagem. ‘A MA Escota DE UMA PALAVRA A Poética marxista de Bertolt Brecht nfo se contrapde a uma ow outta questio formal, mas sim & verdadeira essén- cia da Poética idealista hegeliana, 20 afirmar que o persona- 112 gem nio é sujeito absoluto e sim objeto de forgas econdmicas, ou sociais, 48 quais responde, ¢ em vittude das quais atua. Se fizermos uma anilise légica da agio dramitica tipi- camente pertencente & Poética hegeliama, diremos que se tra- ta sempre de uma oracao simples com sujeito, predicada ver- bal ¢ objeto direto. Exemplo: “Kennedy invadin a Praia Gi- ron”. Aqui o sujeito hegeliano é “Kennedy”, cujos movimen- tos interiores do seu espirito se exteriorizaram de forma a ordenar a invasiio de Cuba. “Invadiu” é 0 predicado verbal ¢ “Praia Girén” & © objeto directo. Se fizermos agora uma andlise ldgica da agio dramatica segundo uma poética marxista, como a que prope Brecht, a frase que a explicaria deveria necessariamente conter uma oragdo principal e uma oragio subordinada ¢ nesta o perso- nagem “Kennedy” continuaria sendo sujeito, mas o sujeito da oragio principal seria outro. Esta frase seria mais ou menos assim: “Forgas econdémicas determinaram que o presidente Kennedy invadisse a Praia Giron!” Creio que esta claro o que propée Brecht: o verdadeiro sujeita so as forgas econdmi- cas que atuaram atrés de Kennedy. A oragdo principal, nesta poética, é sempre uma inter-relagao de forgas econdmicas. O personagem nio é livre, em absoluto. E objeto-sujeito! Agora, vejam bem: em toda a Poética hegeliana — em toda e¢ nao apenas em uma de suas partes — o espirita é sujeito! A poesia épica mostra as agdes determinadas pelo espirito; a poesia lirica mostra os préprios movimentos desse espirito; finalmente, a poesia dramitica mostra, diante dos nossos alhos, 0 espirito ¢ as suas agdes no mundo exterior. Esta claro? Nos trés géneros de poesia ocorre o encontro da subjeti- vidade € da objetividade, mas igualmente nos trés géneros é sempre a subjctividade, sfio sempre os movimentos interiores da alma, € sempre o espirito, & sempre ai que se produz a objetividade. Em toda a poética hegeliana esse pensamento surge ¢ ressutge, ¢ constantemente se revela. ‘A objegio de Marx e Hegel ¢, portanto, de uma Poética marxista a uma poética idealista, inverte os termos da pro- posta, Qual dos dois termos precede o outro? Para Brecht, evidentemente a objetividade é anterior. Se, por um lado, para a poética idealista, 9 pensamento condiciona o ser social, por Ma outro lado, para a poética marxista, o ser social condiciona © pensamento social. Para Hegel, o espirito cria a ago dra- matica; para Brecht, a relagio social do Personagem cria a agio dramatica, Brecht se contrapdc a Hegel frontalmente, totalmente, globalmente, Portanto é um erro utilizar, para designar sua ca, um termo que ica um género da Poética de . A Poética brechtiana nfio é simplesmente épica: & mar- xista €, sendo maraista, pode ser lirica, dramtica ow épica. Muitas de suas obras pertencem a um género, outras a outro € outras ao terceiro. Na Poética de Brecht existem pegas liri- cas, dramaticas © também pegas épicas. O prdprio Brecht percebeu sew erro inicial e j4 em seus ~liltimos escritos comegou a chamar sua poética de Poética _ Dialética.(O que também é um erro, considerando que igual- mente a Poética de Hegel € dialética. Brecht devia chamar a sua por scu nome: Podtica Marxistal)Mas, quando pos em divida e designagao inicial, j4 muitos livros haviam sido escritos © jd a confusio estava estabelecida. Utilizando © quadro de diferengas entre a sua Poética ¢ as poéticas idealistas, que Brecht inclui seu preficio a isar quais so as diferengas de géne- ro e quais as de espécie... Nesse quadro incluimos também outras diferengas mencionadas por Brecht em outros trabalhos, Este quadro no é “cientifico” ¢ muitos dos seus termos slo ‘Vagos @ imprecisos. Mas se tivermos sempre presente a dife- renga fundamental (Hegel propie o personagem como sujeiio absoluto ¢ Brecht 0 propde_com objeto, como porta-voz de forgas econdmicas e sociais)| se tivermos isto bem presente, todas as diferengas secunddrias ficario muito mais claras. Algumas diferencas mostradas por Brecht, referem-se a diferengas reais entre as formas Epica, Dramitica ¢ Lirica. Elas sao: 1. equilibrio subjetividade-objetividade; 2. forma de enredo, que tende ou nao as trés unidades; 3. cada cena determina ou nio, casualmente, a préxi- ma cena; 14 6. 7. ritmo climatico ou ritmo linear narrativa; curiosidade pelo desenlace ou curiosidade pelo de- senvolvimento; suspense ou curiosidade cientifica por um proces: evolugdo continua ou saltos? Sugestées ou argumentos? DIFERENGAS ENTRE AS CHAMADAS FoRMAS “DRraMAricas” & “EPICAS” pe TEATRO, SEGUNDO BRECHT — QuapRo Tomapo bo PReFécio DE MAHAGONNY E bE outros Escritos A CHAMADA FORMA “DRAMA- A CHAMADA FORMA “EPICA”, TICA” SEGUNDO BRECHT — SEGUNDO BRECHT — pogti- POETICA IDEALISTA CA MARXISTA 1. O pensamento determi- 1. © set social determina nao ser (0 persona- © pensamento (persona- gem-sujeita) ; gem-objeto) ; 2. 0 homem é dado como 2. o homem € alterivel, fixo, imanente, inalterd- ‘objeto de estudo, esta vel, considerado como “em processo”; conhecida; 3. © conflito de vontades 3. contradigées de forgas livres move a agio dra- econémicas, sociais ou Miatica; a estrutura da Politica movem a agio pega é uma estrutura de dramdtica; a pega se Vontades em contflito; ‘baseia em uma estrutu- ra dessas contradigdes; 4. cria_a “empatia", que 4. historiza a agio drama- consiste em um com- tica, transformando o Promisso emocional do espectador em observa- espectador que lhe reti- dor, despertando sua ra a possibilidade de consciéncia critica © ca- agir; pacidade de gio; 5. no final, a catarse puri- 5. através do conhecimen- fica o espectador; to, @ espectador é esti- mulado 4 agio; us 6. emogio; 6. razio; 7. no final, o confito se re- T. 0 conflito nio se resol- solve na criagio de um ve © emerge com maior novo esquema de von- clareza a contradigio tades; fundamental; 8. a harmatia faz com que %. as falhas que o perso- © personagem nado se Magem possa ter pes- adapte 4 sociedade ¢ & soalmente (Aarrmatias) incipal da nio sio nunca a causa direta. ¢ fundamental da agdo dramitica; 9, a anagnorisis justifica a 9. @ conhecimento adqui- sociedade; rido revela as falhas da sociedade; 10. a ago & presente; 10. é narragio; 11. vivéncia; 11. visio do mundo; 12. desperta sentimentos, 12. exige decisdies, O PeNsSAMENTO DETERMINA © SER OU VICE-VERSA? Como j4 vimos, para todas as poéticas idealistas (Hegel, Aristételes ¢ outros) © personagem ja “nasce” com todas as suas faculdades e propenso a certas paixdes. Suas catacteristicas ““fundamentais so imanentes| Para Brecht, ao contrario, nao exis- te “natureza humana” ¢, portanto, ninguém € o que € porque sim! E necessdrio buscar as causas que fazem com que cada um seja o que €] Para esclarecer esta diferen¢a fundamental podemos citar alguns exemplos de pegas de Brecht em que a ago é determinada pela funcio social que cumpre o persona- gem. Primeiro, o cléssico exemplo do Papa dialogando com Ga- lilew Galilei, © mostrando-lhe toda a sua simpatia e todo o Seu apoio enquanto seus auxiliares o vestem de Papa. Quando ja esta vestido, o Papa revela que, embora do ponto de vista pessoal possa estar de acordo com suas idéias, Galileu ter que voltar atriis cm suas opinides ¢ responder 4 Inquisigio. O Papa, enquanto Papa, atua como Papa. 6 Eisenhower propés a invasio da Vietnl, Kennedy comegou a tornd-la efetiva, e Johnson levou essa Querra a extremos ge- nocidas. Nixon, que é talvez © mais facinora de todos, foi obri- gado a fazer a paz. Quem é 0 criminoso? O Presidente dos Estados Unidos da América do Norte. Todos ¢ qualquer um que exerga esse cargo © que seja, portanto, obrigado a tomar as decisées que esse cargo exige e compele. Outro exemplo: a boa alma Shen Te, pobre prostituta, recebe uma enorme heranga e se converte em miliondria. Como € uma pessoa bonissima, niio pode evitar dar todo 0 dinheiro que Ihe pedem os amigos, parentes ¢ vizinhos, ou simples co- nhecidos. Mas, como é agora rica, decide assumir uma nova personalidade: Shui Ta, em quem se disfarga, ¢ de quem se_ diz ser prima, |A bondade e a riqueza niio podem caminhar® juntas. Se um rico pudesse ser bom, fatalmente deixaria de ser fico, porque daria toda sua riqueza, por bondade, aos neces- sitados... 7 Nessa mesma pega, um aviador sonha poeticamente com formoso céu azul. Mas Shen Te (Shui Ta) Ihe oferece a inve- javel posigio de capataz de uma fabrica, com étimo salario. Imediatamente o poético aviador se esquece do céu azul ¢ passa a preocupar-se somente em explorar mais ¢ mais os seus operirios, ¢ aumentar seus Jucros. Sao exemplos de que o ser social, como dizia Marx, de- termina o pensamento social. Por isso, em momentos criti Os, as classes dominantes podem aparentar bondade e podem se tornar reformistas: € aos seres socials “operirios” lhes ofere- cem um pouco mais de carne ¢ pio, esperando que esses seres sociais, menos famintos, se tornem igualmente menos revolu- ciondrios. E este mecanismo funciona. Nio é Por outra raza que as classes operdrias dos paises capitalistas-imperialistas su to pouco revoluciondtias e chegam a ser reaciondrias, como maioria do proletariado norte-americano: trata-se de seres so~ ciais com geladeiras, carros e casas, que certamente ndo tém OS Mesmos Pensamentos sociais dos seres latino-americanos que, €m sua maioria, vivem em favelas, tem fome e nenhuma segu- ranga contra a doenga ¢.o desemprego. 17 E Atterdvet 0 Homem? Em “Um Homem E um Homem”, Brecht mostra Galy Gay, um bom homem que desconhece quem foram seu pai € sua mae, um ser obediente que uma bela manha sai de sua casa para comprar um peixe para o almogo. Na metade do caminho se encontra com uma patrulha de trés soldados que perderam de vista o quarto soldado, do qual necessitam para poder voltar ao quartel. Agarram Galy Gay ¢ o fazem vender um elefante a uma velha, para comprometé-lo. Como no tém elefante 4 mao, dois dos soldados se disfargam de elefante. A velha concorda em comprar o elefante, pelo qual paga algum dinheiro, e 0 pobre Galy Gay se convence de que um clefante € qualquer coisa que alguém esteja disposto a comprar como sendo elefante, desde que aparega o dinheiro. Vendendo este elefante, Galy Gay comete o ato de roubar, jd que se tratava de um elefante de Sua Majestade, O pobre Galy Gay, que uma bela manha saiu de casa para comprar um peixe para o almogo, rouba um elefante que nao é elefante, vende-o a uma velha que nio era uma com- pradora e, para nfo ser castigado, abandona sua identidade se disfarga de Jeriah Jip, converte-se em Jeriah Jip e termina como herdi de guerra, atacando ferozmente seus inimigos ¢ afirmando sentir um atévico ¢ ancestral desejo de sangue! Diante dos espectadores, diz Brecht, mostra-s¢ ¢ se desmonta um ser humano, uma “natureza humana”. Para que fique claro, Brecht nado afirma que em outras Poéticas o ser humano no se modifica jamais. Em Aristételes mesmo, o herdi termina por compreender seu erro e por modi- ficar-se. Mas Brecht propde uma modificagio mais ampla ¢ total; Galy Gay nao é Galy Gay, mio existe, pura ¢ sim- plesmente — Galy Gay no & Galy Gay senfo que & tudo o que Galy Gay, em situagGes determinadas, concretas, é capaz de fazer. Na Tafaricia de wn Chefé) Sartre mostra um jovem que, por casualidade ¢ sem convitgao, afirma que nfo gosta de determinada pessoa porque se trata de um judeu. Divulga-se em seguida que ele nfo gosta de judeus. Em uma festa & apresentado a um senhor ¢, ao saber que é um judeu, o futuro 118 chefe retira sua mio ¢ nfo o cumprimenta. Mais tarde, esse senhor se converte em um furioso anti-semita. Nos procedimentos de Sartre ¢ Brecht existe muito em comum e existem muitas diferengas. E comum o fato de que © anti-semitismo, como o heroismo de Galy Gay, nio sio ima- hentes, ndo nasceram com os personagens, nfo sio faculdades aristotélicas transformadas em paixdes ¢ em hibitos, mas, a0 contririo, sio caracteristicas acidentalmente adquiridas na vida social. Mas existem diferengas fundamentais: o Chefe evolui rea- listicamente, psicologicamente, através de uma seqiiéncia de causas € efeitos, enquanto que o herdéi brechtiano € dissecado, € montado, desmontado ¢ remontado. Nao existe aqui nenhum realismo: existe uma demonstragio quase cientifica através de s artisticos. ‘CONFLITO DE VONTADE OU ConTRADIC¢Ao DE NECESSIDADES? Como ji vimos, ndo importa quem seja o Presidente dos Estados Unidos, pois sempre terd que defender os interesses imperialistas mais reaciondrios. vontade individual nada determina-) A agdo se desenvolve como se desenvolve~ porque ele é como se desenvolveria da mesma maneira ) ainda que ele fosse completamente diferente do que é) } E necessirio esclarecer a possivel confusdo originada no fato de que também Hegel insiste em que o conflita tragico € uma inevitabilidade, uma necessidade. Aqui, cle fala de neces- sidade, sim, mas de uma necessidade de natureza moral. Isto &, moralmente os personagens nio podem evitar set 0 que slo ¢ fazer o que fazem. Brecht, ao contririo, nfo fala de neces- sidades morais, mas sim de necessidades sociais ou econémi- cas. Mauler se faz de bom ou de mau, absolve ou manda matar, nao por caracteristicas pessoais de bondade ou maldade, nfo por pensar desta ou daquela forma, mas sim porque se trata de um burgués que tem que aumentar cada vez mais o seu lucro, Quando a mulher de Dullfeet, assassinado por Arturo Ui, com ele se encontra, tem yontades psicolégicas de cuspir-lhe Qa cara, mas vem como proprietdria, e termina ao seu lado, 19 ‘os dois de brago dado, com as caras muito satisfeitas, seguindo co caixio do morto: assassino ¢ vitiva sio sécios ¢, entio, que importam seus sentimentos pessoais? Eles ttm que se amar, sempre em busca do lucro maximo! ‘Brecht nfo quer dizer que as vontades individuais mio intervém nunca: quer afirmar, isso sim, que nfo sdo nunca o fator determinante da agio dramdtica fundamental. Neste ulti- mo caso citado, por exemplo, a jovem viva, quando comega a cena, deixa livre sua vontade psicolégica, seu ddio contra Ui, e toda a cena se transforma quando, pouco a pouco, Ui ihe demonstra a inoperfncia das vontades ¢ a determinagio inflexivel das necessidades sociais. A cena se desenvolve, a agio dramatica se desenvolve através da contradiglo de necessida- des sociais (meste caso, ¢ quase sempre no capitalismo, trata~ +s do desejo de lucro crescente). EMPATIA oU 0 Qui? Emocio ov Razio Coma vimos no Sistema Trigico Coercitivo de Aristételes, empatia é a relagio emocional que s¢ estabelece entre perso- nagens © espectadores, ¢ que provoca, fundamentalmente, a de- legagSo de poderes por parte destes que se transformam em objetos daqueles: tudo o que acontece com o personagem, acon- tece vicariamente com o espectador; tudo o que pensa 0 perso- nagem, pensa vicariamente © espectador. No caso de Aristételes, a empatia que preconiza consiste numa ligagdo emocional que se refere a duas emogdes basicas: piedade ¢ terror. A primeira nos liga a um personagem que sofre um destino trigico imerecido (considerando suas milti- plas virtudes) ¢ a segunda se refere ao fato de que o perso- nagem sofre as conseqiiéncias de possuir uma falha que nds igualmente possuimos. Mas a empatia nfo se refere obrigatoriamente a essas duas emogdes, e pode-se realizar através de qualquer outra. A nica coisa importante a observar na empatia € que o espectador assume uma atitude “passiva", delegando sua capacidade de ago. Mas a emogiio, ou as emogdes que provocam esse fend- 120 meno, podem ser quaisquer: medo (ver filmes de vampiro), sadismo, desejo sexual pela estrela, ou o que seja. Convém igualmente observar que, j4 em Aristételes, a em- patia n&o se apresentava sozinha, mas sempre simultaneamen- te com outro tipo de relacio: diandia (pensamento do persona- gem — pensamento do espectador). Isto é, a empatia era o resultado do Ethos, mas a a¢io da Diandia também provocava © que John Gassner chamou de enlightenment ¢ que se pade- ria traduzir como “esclarecimento” ou algo parecido. © que afirma Brecht é que, nas pecas idealistas, a emog5o atua por si mesma, produzindo o que ele chama de orgias emocionais, enquanto que as poéticas materialistas, cujo objeti- vo nao € tio-somente o de interpretar a mundo mas também © de transformé-lo, © tomar esta terra finalmente habitdvel, tém a obrigagio de mostrar como pode este mundo ser trans- formado. ‘Uma boa empatia ndo impede a compreensio ¢, pelo con- tririo, nece: da compreenso, justamente para evitar que o espeticulo se converta em uma orgia emocional e que o espec- tador possa purgat seu pecado social. O que faz Brecht, funda- mentalmente, é colocar a énfase na compreensio (enlighten ment), na diandia, 7 ‘Em nenhum momento, Brecht fala contra a emogio, ainda que fale sempre contra a orgia emocional. “Seria absurdo negat emo¢io a Ciéncia Modema”, diz, esclarecendo que sua posigaio € inteiramente favordvel & emogio que nasce do conhecimen- to, € contra a emogio que nasce da ignoriincia, Diante de um quarto escuro de onde parte um grito, uma crianga pode assus~ tar-se: Brecht est contra que se emocione o espectador com cenas deste tipo. Mas se Einstein descobre que E = MC’, que € a formula de transformagao da matéria em energia, essa € uma emogio extraordindria! Brecht esté totalmente a favor deste tipo de emogdo. Aprender ¢ emocionante ¢ no existe razio para que a emogio seja evitadal Mas, ao mesmo tempo, a ignordncia causa emogées, © deve-se evitar estas emogoes, como se deve evitar a ignorincia; ambas devem ser comba- tidas. ‘Como nio vai o espectador emocionar-se com a MAE CO- RAGEM que perde os seus filhos, um a um, na guerra? FE ine- 121 _————--- r——, vitavel que nos emocionemos todos até as lagrimas. Mas de- ve-se combater sempre a emogiio causada pela ignorincia: que ninguém chore a fatalidade que levou os filhos da Mie Cora- gem, mas sim que se chore de raiva contra o comércio da guerra, porque é esse comércio que rouba os filhos 4 Mie Coragem. Outra comparagio poderé esclarecer melhor: existe uma semelhanca notivel entre Cavaleiros ao Mar do irlandés J. M ‘Synge ¢ Os Fuzis da Senhora Carrar. As duas peas sic tremen- damente emocionantes. As duas histérias muito parecidas: duas mies que perdem seus filhos no mar. Na pega de Synge, é o proprio mar o assassing; as ondas sio a fatalidade! Na de Brecht, ‘so as soldados fascistas que disparam contra pescadores ino- centes. A peca de Synge produz uma violenta emogio causada pelo mar desconhecido, impenetravel, fatal; a de Brecht, pro- funda emogio de édio contra Franco ¢ seus sequazes.! Nos dois casos aflora a emog%o, mas de distintas cores, por distin- tas causas ¢ com distintos resultados. E necessirio insistir: o que Brecht nfo quet ¢ que os ‘espectadores continuem pendurando o cérebro junto com o cha- péu, antes de entrarem no teatro, como o fazem os espectado- res burgueses. (CATARSE E REPOUSO, OU CONHECIMENTO E Agko? Diz Hegel: “Ao tumulto de paixbes ¢ agdes humanas, que constituem a obra dramAtica, sucede @ repouso”. Aristételes propSe o mesmo: um sistema de vontades, que representam concretamente, individualmente, os valores éticos justificaveis, entram em colisio, porque um dos persomagens possui uma falha tragica, ou comete um erro tragico. Depois da catdstro- fe, quando a falha é purgada, necessariamente volta a sereni- dade, ¢ restabelecido o equilibrio. Os dois filésofos parecem dizer que 0 mundo retoma sua perene estabilidade, seu infinito equilibrio, seu eterno repouso. Brecht era marxista: por isso, para ele, uma pega de tea- tro nfo deve terminar repouso, em equilibrio. Deve, pelo contrério, mostrar por que caminhos s¢ desequilibra a sociedade, para onde caminha, e como apressar sua transicdo. 122 Num estudo sobre teatro Popular, Brecht afirma que o artista popular deve abandonar as salas centrais ¢ dirigir-se aos bairros, porque s6 ai vai encontrar os homens que estio verda- deiramente interessados em transformar a sociedade;) nos bair- ros, deve mostrar suas imagens da vida social aoe ‘operirios, due estio interessados em transformar essa vida social, j4 que sdo suas vitimas. Um teatra que pretende transformar aos transformadores da sociedade néo pode terminar em repouso, niio pode restabelecer o equilibrio, A Policia burguesa procura restabelecer o equilibrio, impor o Tepouso; um artista marxista, a0 contririo, deve propor o movimento em diregdo a libera- glo nacional ¢ a liberagio das classes oprimidas pelo capital, Hegel ¢ Aristételes purgam as caracteristicas anti-establish- ment de seus espectadores. Brecht clarifica conceitas, revela verdades, expe contradigdes ¢ Propée transformagSes. Os pri- meiros desejam uma quieta sonoléncia ao final do espetaculo: Brecht deseja que o espetéculo teatral seja o inicio da agéo, o equilfbrio deve ser buscado transformando-se a Sociedade e nio Purgando o individuo dos seus justos reclamos ¢ de suas ne- cessidades, No que diz respeito a esta caracteristica, vale a pena dis- cutir o final da pega Os Fuzis da Senhora C. » lantas vezes chamada de “pega aristotélica’, Por que se afirma tal coisa? Porque se trata de uma Pega realista, que obedece As famosas “trés unidades”, de tempo, lugar ¢ agio. Mas ai terminam as Pretensas caracteristicas oristotélicas desta pega. Quando se diz que Os Fuzis da Senhora Carrar € aristotélica Porque a heroi- Na se purga de uma falha, argumenta-se falsamente, eludindo-se a esséncia do problema. Por isso é necessrio repeti catarse retira a0 personagem (e Por isso ao espectador, que é empati- camente manobrado pelo personagem) sua capacidade de ago. Isto 6, retira o orgulho, a Prepoténcia, a unilateralidade no amor aos deuses, ete., que padem levar a sociedade a des trans- formadoras; ao contrario, Carrar se purga da niio-ago: sua ig- norincia impedia que ela atuasse em favor da causa justa, © Por isso desejava a neutralidade na qual acreditava, ¢ tentava abster-se, negando-se a oferecer os fuzir que tinha guardados. O personagem trdgico grego perde suas caracteristicas ati- vas; a senhora Carrar, ao contrario, empenha-se ativamente na 123 guerra civil, porque, enquanto a anagnorisis justifica a socieda- de, “o conhecimento adquirido revela as falhas, no do perso- nagem, mas sim da sociedade que deve ser modificada”. Ou, coutra vez em/palavras do préprio Brecht, “o teatro idealista desperta sentimentos, enquanto que © teatro marxista exige de- cisdes". A senhora Carrar st decide © comega a agir. Portanto, nio & aristotélica. (Como INTERPRETAR AS Novas Peas? Melhor que explicar longamente qual a relagéo que Brecht propde para substituir a relagio de natureza emocional, para- lisante, que ele condenava no teatro burgués alemio, ou ‘bur- gués de qualquer outra nacionalidade, sera transcrever alguns versos de um poema que escreveu em 1930: “Sobre o Teatro de Todos os Dias”: “Olhem aquele homem na mua, olhem-no;, ele esta mostrando como ocorreu o acidente, submete ‘o choler & sentenga da multidao, pela forma como dirigia, imprudentemente. Olhem agora: esti fazendo o papel de atropelado, (pelo que se pode deduzir, era um ancido). Dos dois personagens, o chofer ¢ 0 anciao, ‘este homem mostra tio-somente 0 essencial para que se compreenda como foi o desastre. — E isso basta para apresentar os dois diante de vocés. Nada mais necessdrio. (Mostra que era possivel evitar o acidente; ¢ o acidente & compreendido, a seja incompreensivel, pois tanto um como o outro podiam ter agido de outra forma. Olhem-no: agora o homem esté mostrando como cada um dos dois personagens podia ter agido para evitar _ _@ acidente. (Nada de superstigSes no seu testemunho ocular: ele nio atribui o destino humano & nenhuma estrela, ti0- ‘“_-somente a falhas cometidas, falhas proprias. 124 Observem ainda a seriedade e o cuidado da representagao: ele sabe que da sua fidelidade dependem muitas coisas: que nao se arruine o inocente, © que a vitima tenha indenizagio. Olhem-no agora repetindo o que ja fez: quando tem alguma duvida, faz um esforgo de meméria, sem estar muito certo de haver representado bem, © pede a este ou aquele que o corrija. Esse detalhe, olhem com respeito: com admiragdo devem notar que esse imitador nao se perde em nenhum papel. Nio se confunde jamais com o personagem que est4 inter- Pretando, permanece como intérprete, sempre, sem confusdes, Os personagens nfo Ihe fizeram nenhuma confidéncia, e com eles, ele no comparte nenhum sentimento ou Ponto de vista: deles sabe muito pouco. De sua interpretagio nfo nasce ninguém, filho de intér- prete e de interpretado, pulsando com um sé cora- _ $40, pensando como um 56 cérebro: sua forte personalidade € a de um intérprete \que interpreta a dois vizinhos estranhos! Nos vossos teatros a fabulosa transformagio que se pretende que ocorra entre o camarim e¢ 0 i — um ator sai do camarim, um rei entra no palco — esse trugue migico (que, como ja tantas vezes vi, provoca boas gargalhadas nos maquinistas que se riem enquanto tomam suas cervejas) aqui, neste caso, aqui no tem cabida. Nosso ator, num canto da ma, ndo é nenhum sonimbulo com quem ninguém pode falar; nio € nenhum sumo sacerdote no seu divino oficio... 125. Podem interrompé-lo em. qualquer momento, e certamente cle Ihes responderd com toda calma, prosseguindo depois com sua exibigao. Mas, senhores, nio digam: “Este homem nao é um ARTISTA!” Porque se vocés puserem tamanha barreira entre vocés ¢ o mundo, ‘vocis FICARAO FORA DO MUNDO’; se vocés nfo The derem o titulo de artista, talvez ele, a voo’s, nao Ihes dé o titulo de homens. ‘A restrigto que thes pode fazer ele a vocs € muito mais grave do que a que Ibes potlem fazer voces a ele por isso digam: \f UM ARTISTA PORQUE & UM SER 'HUMANO.”” © poema segue ¢ diz muito mais coisas, mas a nés por ora nos basta com o que aqui se transcreve. Isto j& esclarece muito bem as diferengas que existem entre 0 artista burgués, sumo sacerdote, 0 artista eleito, 0 ‘inico (que justamente por Ser nico pode ser vendido ao melhor prego: a estrela cujo nome aparece antes do titulo da pega, antes do assunto, do tema, do contetido do que se vai ver) ¢, do lado oposto, o outro artista, o homem: o homem que, por ser homem, é ca- paz de ser 0 qué 05 homens sao capazes de ser. rte & ima- nente a ToDos os homens ¢ ndo apenas @ alguns eleitos; a arte nao se vende como no se vende o respirar, o pensar ¢ o amor. A arte nao é uma mercadoria. Mas, para @ burguesia, tudo mercadoria: o homem é uma ihercadoria. uma mercadoria, serd jigualmente mercadoria tudo o que © homem produzir. Todo o sistema burgués se prostitui, o amor ea arte. O homem ¢ @ suprema prostituta burguesa! © Demais N&o ImporTa: Sho Pequenas DIFERENGAS FORMAIS ENTRE 0S Tris GENEROS ‘As demais diferengas que Brecht assinala entre sua propos- ta de teatro € as propostas aceitas em sea momento, sso simples diferengas entre 0s trés géneros possiveis de pacsia. 126 Por exemplo: no que se refere ao equilibrio entre a sub- jetividade ¢ a objetividade, também pode ocorrer o predominio objetivo (épica), subjetivo (lirica) ov o equilibrio (dramati- ca). Neste caso, é evidente que personagens como Mie Cora- gem, a Senhora Carrar, Galileu Galilei, Mauler e outros per- sonagens “dramaticos" sio objetos de forgas econdmicas que atuam na realidade e, por sua vez, eles mesmos atuam sobre a realidade. Ao contrério, personagens como o Coolic, ou 0 Comerciante de A Excecéa e a Regra, os companheiros da Deciséo, Galy Gay, Shui Ta e outros, sio personagens nos quais predomina nitidamente o cardter de “porta-voz objeti- vo": a subjetividade desses personagens esté atrofiada em fun- gio da clareza de exposigio. No extremo oposto, a subjetivi- dade teina desenfreada nos personagens liricos de Na Selva das Cidades e de outras obras ainda expressionistas. O expres- sionismo “expressa” subjetivamente o real, sem mostri-lo. Enquanto 4 tendéncia a concentrar a agdo, o tempo e¢ o lu- gar, observado por Brecht nas Poéticas anteriores, isso é ver- dade apenas no que se refere 4s pegas “draméticas” anteriores. As obras “liricas” (expressionistas, surrealistas, etc.) nao ten- dem a essa obediéncia, como tampouco o faziam as obras shakespearianas ¢ isabelinas em geral. A concentragio a que se refere Brecht é prépria to-somente do género dramitico © estd totalmente excluida dos géneros lirico e épico. Mas € pré- pria do género dramético nas duas Poéticas, idealista ou ma- terialista, hegeliana ou marxista. Todas as pegas caracteristicas de que nos fala Brecht sio igualmente caracteristicas do “género” dramético ¢ nio da “Poética” hegeliana ou brechtiana. Evolugo continua ou em saltos? Nao se pode dizer que o desenvolvimento de A Viagem de Pedro) o Afortunada, de Strindberg, tenha um desenvalvi- mento continuo, com seus personagens surrealisticamente trans- formando-se em animais ou coisas semelhantes. E que dizer de filmes como O Gabinete do Dr. Caligari, Metropolis, etc.? Freqlientemente, as pegas idealistas de estilo altamente subje- tivo perdem seus compromissos com a credibilidade, com a ab- jetividade: & algo proprio a esses estilos que, no surrealismo, chega ao paroxismo do nio-compromisso com o real. 127 O mesmo no que sé refere a que “Cada cena determina casualmente a proxima cena” ou nao. Isto é verdade para as pegas draméticas, mas nao pata as pegas épicas... oF liricas. O item n? 5 diz que na poética brechtiana existe uma curiosidade cientifica pelo processo © niio uma curiosidade mér- bida pelo desenlace. E isso & verdade. Mas é necessdrio toma- lo dentro de toda sua relatividade: nao se pode dizer que nao. exista curiosidade pelo desenlace do julgamento de {com quem ficard finalmente o menino Miguel? qual € & “yerdadeira” mie?). A mérbida ‘curiosidade existe na sua ple- nitude (em cardter exclusiva) tio-somente mas peas policiais fi la Agatha Christie ou filmes & la Hitchcock com ou sem vam- pitos. Da mesma maneira que existe “eyspense” 10 julgamento te profunda curiosidade cientifica pelo desenvolvimento dos mecanismos burgueses Tiberais do Inimigo do Povo. Brecht lu- ‘tava pela instauracio de uma nova Poética €, portanto, ne- cessatiamente radicalizava suas posigdes © suas afirmagoes. Mas essa tadicalizaglo ‘necessiria tem que ser entendida dialetica- mente. Porque o mesmo ‘Brecht era o primeiro em fazer, apa- rentemente, o conttdrio do que cle mesmo predicava, sempre que necessirio. Repito: sempre que necessirio. Também o iiltimo item é bastante impreciso: sugesties ou argumentos? Brecht niio que dizer que, antes dele, nenhum outro autor utilizow argumentos em suas pegas, ¢ sim apenas sugestées. O pensamento brechtiano ficard mais claro se re produzimos uma frase sua muito esclarecedora: “Q dever do artista no € o de mostrar como sio as coi- sas verdadeiras ¢ sim o de mostrar como verdadeiramente 830 as coisas”. Como faz#-lo? E para quem fazé-lo? Ninguém nos explica melhor qué 0 proprio Brecht: “Nés, filhos de uma época cientifica, temos que assumir uma posigio critica diante do mundo. Diante de um rio, nossa atitude critica consiste no seu aprovei- tamento; diante de uma Arvore frutifera, em enxerti-la; diante do movimento, nossa atitude critica consiste em construir veiculos « avides; diante da sociedade, EM FA- ZER A REVOLUCAO. Nossas representagdes da vida social devem estar destinadas aos técnicos fluviais, aos cuida- dores das drvores, aos construtores de veiculos ¢ aos revoluciondrios. Nés os convidamos pata que venham a05 nossos teatros e Ihes pedimos que nfo se esquegam de suas ocupagdes (alegres ocupagbes), para que nos seja possivel entregar o mundo e nossa visio do mundo as ‘suas Mentes © aos seus Coragdes, PARA QUE ELES MODI- FIQUEM © MUNDO AO SEU CrITéRIo”, (As maiiisculas sio minhas.) Empatia ou Osmosis? A empatia tem que ser entendida como a arma terrivel que realmente é. A empatia é a arma mais perigosa de todo © arsenal do teatro de artes afins (cinema e TV). Seu mecanismo, as vezes insidioso, consiste em justapor duas pessoas (uma ficticia, outra real), dois universos, ¢ fazer com que uma dessas pessoas (a real, o espectador) ofereca & ‘outra, a ficticia (o personagem), seu poder de decisio. O homem abdica, em favor da imagem, do seu poder de decisio. ‘Mas existe aqui algo monstruoso: o homem, quando cle- ge, clege em uma situagio real, vital, elege em sua propria vida; @ personagem quando elege, (¢ por isso, quando induz o homem a eleger), elege em uma situagio ficticia, irreal, des- provida de toda densidade de fatos, matizes ¢ complicagdes que a vida oferece, Isto faz com que o homem, real, cleja segundo situagdes ¢ critérios irreais. | A justaposigio de dois universos (real ¢ ficticio) produz ( outros efeitos agressivos: 9 espectador vivencia a ficcdo incorpora elementos da ficcdo. O espectador, que & ‘homem real e vivo, assume como realidade ¢ como vida o que se Ihe apresenta na obra de arte como arte: osmosis estética. 129 Exemplificando; 0 universo do Tio Patinhas esté cheio de dinheito, de problemas causados pelo dinheiro, de dnsia de ter e de guardar dinheiro, etc. O Tio Patinhas é um personagem muito simpatico ¢ por isso cria empatia com seus leitores, ou tom os espectadares dos filmes em que aparece. Por essa empatia, pelo fenémeno da justaposigao de dois universos, 0% espectadores passam a viver como reais, como suas, essas dnsias de lucro, essa capacidade de tudo sacrificar pelo dinheiro. oO publica adota as regras do jogo, como ao jogar qualquer jogo: Nas peliculas de far-west é fora de davida que @ capaci- dade de usar o revélver, a pericia de quebrar um prato voando com um 86 tiro ou a forga para nocauteat a 10 inimigos com poucos tabefes, cria a mais profunda empatia entre esses cow- -boys € 08 meninos das matinés infantis. Isso ocorre mesmo que se trate de um piblico mexicano ‘colhando a 10 mexicanos ‘nocauteados em defesa de sua terra. Os meninos, empaticamen- te, abandonam seu proprio universo, sua necessidade de defen- der sua terra, € assumem, empaticamente, 0 universo do inva sot ianque, seu desejo de conquistar terras alheias. A empatia funciona mesmo que exista uma colisio de interesses entre o universo ficticio ¢ 0 universo real dos espec- tadores. Por isso existe censura: para impedir que um universo indesejavel se justaponha ao universo dos espectadores. ‘Uma histéria de amor, pot mais simples que seja, pode ser o veiculo de valores de outro universo que nao o do espectador. Estou convencido de que Hollywood causa muito ‘mais dano aos nossos paises com as peliculas inacentes do que com as que diretamente tratam de temas mais ou menos poli- ticos. As histérias de amor idiotas do tipo Love Story sio mais perigosas, dado que sua penettagao ideolégica se faz su- ‘armente: o heréi romantica trabalha incansavelmente para poder merecer o amor de sua amada; o mau patric se Tegenera ¢ passa @ ser bom (mas continua sendo patriio), etc. © mais recente éxito da TV ianque, Sesamo Street é uma amostra evidente da “solidariedade” norte-americana ¢m rela- giio aos nossos pobres paises subdesenvolvidos: eles querem nos ajudar a nos educarmos € nos emprestam seus métodos educa tives... Mas, como educam? MOSTRANDG UM UNIVERSO —M 130 QUE OS MENINOS APRENDEM. Que aprendem? Claro, as letras, as palavras, etc. Aprendizagem feita 4 base de ietas em que se mostram criangas aprendendo a usar o dinheiro, a eco- nomizar dinheira nos seus cofrezinhos ¢ se explicam as dife- rengas entre um cofre caseiro ¢ um banco, etc, Assuntos © te- mas escolhidos entre os valores de uma sociedade capitalista competitiva. Os pequenos e indefesos espectadores sio expo: tos a esse mundo competitivo, organizado, coerente © coercit vo! Assim nos educam. Por osmosis! Buenos Aires, julho de 1973 131 4 Poética do Oprimido A — Uma Experiéncia de Teatro Popular no Peru B — O Sistema Coringa No PRINCIPIO, o teatro era o canto ditirimbico: o povo livre cantando ao ar livre. O carnaval. A festa. Depois, as classes dominantes se apropriaram do teatro & construiram muros divisérios. Primeiro, dividiram 0 povo, se~ parando atores de espectadores: gente que faz e gente que observa. Terminou-se a festa! Segundo, entre os atores, sepa- rou 08 protagonistas das massas: comegou o doutrinamento coercitivo! © povo oprimido se liberta. E outra vez conquista 0 tea~ tro. E necessario derrubar muros! Primeiro, o espectador volta a representar, invisivel, teatro foro, teatro ima- gem, etc. "Segundo, & necessirio eliminar a propriedade privada dos personagens pelos atores individuais: Sistema Coringal Com estes dois ensaios procuro fechar o ciclo deste livro. ‘Neles se mostram alguns dos caminhos pelos quais o povo reas- sume sua fungdo protagénica no teatro ¢ na sociedade. 135 A — Uma experiéncia de teatro popular no Peru* E* 1973, © Governo Revolucionério Peruano iniciou um plano nacional de alfabetizagiio Integral, com o objetivo de erradicar o analfabetismo em um prazo aproximado de 4 anos. SupSe-se que haja no Peru entre 3 a 4 mithdes de analfabetos ‘ou semi-analfabetos, em uma populacao de 14 milhées de pessoas. Em toda parte, ensinar um adulto a Jer ¢ a escrever & um problema delicado, ¢ dificil. ‘No Peru, talvez seja mais di- dicil ainda, considerando-se o enorme numero de linguas ¢ dialetos que falam os seus habitantes. Segundo estudos re- © (Bsta experiéncia foi realizada com de Alicia Saco, dentro do Programa de Alfabetizacao Integral (ALFIN) Girigido por Alfonso Lizarzaburu, e com a participasio, nos diversos Setores, de Estela Liftares, Luis Garrido Lecea, Ramén Vilcha ¢ Jesus Ruiz Durand, entre outros, em agosto de 1973, nas cidades de Lima zagio utilizade por Alfin cra, fie ) — Marco, Buenos Aires, 1974. 136 centes, calcula-se que existem pelo menos 41 dialetos das duas principais linguas indigenas, 0 quechua e o aymard. Investi- gages feitas na provincia de Loreto, ao norte do pais, che- garam a constatar a existéncia de 45 linguas distintas nessa regio, Quarenta e cinco linguas e nao apenas dialetos. E isso numa provincia que é, talvez, a menos povoada do pais. Essa enorme variedade de linguas certamente facilitou 4 compreensio, por parte dos organizadores da Operagio Alfa- betizagio Integral (ALFIN), de que os analfabetos niio siio “pessoas que nao se expressam", mas simplesmente sio pes- soas incapazes de se expressarem em uma linguagem determi- nada, que € 0 idioma castclhano, neste caso. E importante compreender que fodes os idiomas sdo linguagem, mas nem todas as linguagens sdo idiométicas! Existem muitas linguagens além de todas as linguas faladas e escritas. (© dominio de uma nova linguagem oferece, 4 pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a realidade, ¢ de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem € absolutamente insubstituivel, Todas as linguagens se comple- mentam no mais perfeito e amplo conhecimento do real. Isto 6, a realidade é mais perfeita ¢ amplamente conhecida através da soma de todas as linguagens capazes de expressé-la. O ensino de uma linguagem deve necessariamente partir desse pressuposto. E isto era perfeitamente compreendido considerado pelo projeto ALFIN que considerava os seguintes pontos essenciais: 1) alfabetizar na lingua materna e em castelhano, sem forgar o abandono daquela em beneficia desta; 2) alfabetizar em todas as linguagens possiveis, especial- mente artisticas, como o teatro, a fotografia, os titeres, 0 cine, o periodismo, etc. (Wer Quadro de Linguagens, a0 final deste ensaio.) A preparagio dos alfabetizadores, selecionados nas mes- mas regiGes onde se pretendia alfabetizar, desenvolveu-se em. quatro etapas, segundo as caracteristicas especificas de cada grupo social: 137 1) barriadas ou pueblos jdvenes que correspondem as nossas favelas (cantegril, villamiséria...)5 2) regides rurais; 3) regides mineiras; 4) regides onde a lingua materna no era o castelhano, e que incluem 40% da populagio. Destes 40%, metade «ste constituida por cidadios bilingiles que aprenderam © castelhano depois de terem dominado a lingua materna indigena, A outra metade nao fala castelhano. O Plano Alfin ainda esta comegando ¢ é demasiado cedo para avaliar scus resultados, Neste trabalho, quero tio-somente relatar o que foi minha participagio pessoal no setor de teatro ¢ contar todas as experiéncias que fizemos, considerando o tea~ tro como linguagem, apto pata ser utilizado por qualquer pes- soa, tenha ou no atitudes ‘artisticas. Quero mostrar, através de exemplos priticos, como pode o teatro ser posto a0 servigo dos oprimidos, para que estes s¢ expressem e para que, 20 vuti- lizarem esta nova linguagem, descubram igualmente novos con- tetidos. Para que se compreenda bem csta Poética do Oprimido deve-sé ter sempre presente scu principal objetivo: transfor- mar © povo, “espectador”, ser passivo no fenémeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da agio dramatica, Espero que as diferencas fiquem bem clatas:(Aristételes propde uma Poética em que os espectadores delegam poderes ao persona- gem para que este alue € pense em seu lugar, Brecht propoe uma Poética em que o espectador delega poderes ao personagem. para que este atue em seu lugar, mas s¢ reserva 0 direito de pensar por si mesmo, muitas vezes em oposigaa a0 personage. No primeira caso, produz-s¢ uma “catarse”; no segundo, uma Ffonscientizago". © que a Poética do Oprimido propoe & a propria agio! © espectador néio delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense ‘em seu lugar: ao contrario, sumé um papel protagénico, transforma a agao jalmente proposta, ensala solugdes possiveis, de- bate projetos modificadores: em resumo, 0 espectador ensaia, preparando-se para a ago real. Por isso, eu creio que 0 teatro 138 nio é revolucionério em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente “ensaio” da revolugio. O espectador liberado, um. homem integro, se langa a uma agio! Nido importa que seja fi importa que é uma acio. Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revo- luciondrios devem transferir a0 povo os meios de produpdo tea- tral, para que 0 proprio povo os utilize, @ sua maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma ¢ é 0 povo quem deve ma- nejé-la! Como deve, porém, ser feita esta transferéncia? Quero co- megar dando um exemplo do que fez Estcla Lifiares, orientado- ra do setor de fotografia de ALFIN. Qual seria a velha maneira de se utilizar a fotografia num plano de alfabetizagio? Sem divida, seria fotografar coisas, Tuas, pessoas, panoramas, comércios, etc., mostrar essas fotos aos alfabetizandos, ¢ discuti-las. Quem tiraria as fotos? Os alfabetizadores, capacitadores ou instrutores. Mas quando se trata de entregar ao povo os meios de produgao, deve-se entre~ gar, neste caso, a maquina fotografica. Assim se fez em ALFIN. Entregava-se uma maquina ds pessoas do grupo que se estava alfabetizando, ensinava-se a todos a ut ja, ¢ se faziam pro- postas: —|“Nés vamos fazer perguntas a vocés. Nossas per- guntas vio ser feitas em castelhano, © vocés vio nos respon- der. Mas vocés nao podem responder em castelhano: vocés tém que ‘falar’ em fotografia. Nés vamos perguntar coisas na lin- gua castelhana, que € uma linguagem, E vocés vio nos respon- der em fotografia, que também € uma linguagem.” As perguntas que se faziam eram muito simples as res- postas, isto é, as fotos, eram depois discutidas pelo grupo. Pot ‘exemplo: quando se perguntou: “Onde é que vocé vive?” obti- veram-se fotos-respostas dos seguintes tipos: 1) uma foto mostrando o interior de uma choga. Em Lima, praticamente nio chove nunca e por isso as palhogas slo feitas de esteira de palha em lugar de paredes e tetos. Em geral, sio feitas num s6 ambiente que serve de cozinha, sala e dormité- io; as familias vivem na maior promiscuidade, sendo muito fre- liente que os filhos menores assistam 4s relagdes sexuais de 139 seus pais, 0 que faz com que scja muito comum que irmios ¢ irmas de 10 ou 12 anos de idade pratiquem o sexo entre si, simplesmente por imitar seus pais. Uma foto que mostre o inte- rior de uma choga responde perfeitamente a pergunta “Onde é que vocé vive?” Todos os elementos de cada foto possuem um significado especial que deve ser discutido por todos os participantes do grupo: os objetos enfocados, 0 Angulo esco- Thido para tirar a foto, a presenga ou auséncia de pessoas n& foto, etc. 2) Para responder A mesma pergunta, um homem tirou uma foto da margem do Rio Rimac. A discussfio em grupo escla: ceu o significado: o Rio Rimac, que cruza Lima, cresce muito em certas épocas do ano, Isso tora extremamente perigosa & vida nas suas margens, j4 que é freqlente o desmoronamento de grandes extensées de terra, superpovoada de chogas, ¢ & conseqiiente perda de vidas humanas. E muito comum ‘também que criangas caiam ao rio, enquanto brincam e, quando esto altas as Aguas, ¢ quase impossivel salvar as pequenas vitimas. Quando um homem responde a essa pergunta com foto, est contundentemente expressando toda a sua angistia: como poderd trabalhar em paz se o seu filho esta brincando na beira do rio, e talvez se afogando? 3) Outro homem tirou uma foto de uma parte desse mesmo rio, onde os pelicanos costumam vir comer o lixo que se acu- mula, em épocas de grande fome; os homens, igualmente fa- mints, capturam os pelicanos, matam-nos ¢ comem-nos. Mos- trando essa foto, esse homent expressava, com uma grande ri- queza lingiiistica, que vivia em um lugar onde se bendizia a fome, porque esta atraia os pelicanos, que saciavam sua pré- pria fome. 4) Uma mulher, que havia emigrado de um pequeno povoado interiorano, respondeu com uma foto da “rua” principal da favela onde morava: de um lado da rua viviam os antigos ha- ditantes limenhos, do outro lado os que vinham do interior do pais. De um lado, os que sentiam seus empregos ameagados pe- los recém-chegados; do outro lado, os pobres que tudo deixa- ram atras, em busca de trabalho. A rua dividia esses irmilos, igualmente explorados, que se encontravam frente a frente, 140 como s¢ fossem inimigos. A foto ajudava a constatar sua seme- Ihanga: miséria dos dois lados. As fotos dos bairros elegantes, Por outro lado, mostravam os verdadeiros inimigos. A foto da Tua divisria mostrava a necessidade de reorientar a violéncia que pobres exerciam contra pobres, O exame e a discussio dessa foto ajudava a sua autora ¢ aos demais a compreender sua realidade. 5) Um dia um homem tirou uma fotografia do rosto de uma crianga de poucos meses, como Tesposta 4 mesma pergunta. Claro, todos pensaram que esse homem tinha se enganado, ¢ reiteraram a pergunta: — “Vocé nao entenden bem: o que nés queremos é que nos mostre onde é que vocé mora, onde vive. Queremos que tire uma fotografia mostrando onde é que vocé vive, nada mais, ‘Qualquer foto serve: da rua, da casa, da cidade, do rio...” — “Esta aqui é a minha resposta: eu vivo aqui..." — “Mas é uma crianga..." — “Olha bem no rosto dela: tem sangue. Esse menino, como todos os outros que vivem onde eu vivo, vivem amea- gados pelos ratos que pululam nas margens do Rio Rimac. Quem cuida dessas criangas sio os cachorros que atacam os Tatos ¢ nio deixam que cheguem perto. Mas houve por aqui uma epidemia de sara ¢ a Prefeitura teve que pegar a maio- ria dos cachorros, ¢ Ievou embora. Esse menino tinha um ca- chorro que cuidava dele, Durante o dia, o pai e a mie jam ‘trabalhar e ele ficava sozinho, com o cachorra tomando conta. Agora jé nao. Na semana passada, quando vocé me pergun- tou onde é que eu vi 0S ratos tinham vindo de tarde, en- quanto o menino dormia, ¢ comeram uma parte do nariz dele. Por isso ele tem tanto sangue no rosto. Olha bem a fotografia: essa é a minha resposta. Eu vivo num lugar onde coisas como ssa ainda acontecem.” Eu podia escrever uma novela sobre os meninos que vi- vem is margens do Rio Rimac, mas tio-somente nessa foto- grafia e em nenhuma outra linguagem nao fotogréfica podia- -88 expressar a dor daqueles olhos infantis, daquelas lagrimas ‘misturadas com aquele sangue. E, para maior ironia e raiva, a foto era em kodakrome, made in USA... 14L A utilizag3o da fotografia pode igualmente ajudar a des- cobrir simbolos valides para toda uma comunidade ou grupo social, Ocorre muitas vezes qué grupos teatrais bem intencio- nados nao conseguem conectar-se com um piiblico popular porque utilizam: simbolos que, para esse piblico, nada signi- ficam, Pode set que uma coroa real seja um simbolo de po- der... mas apenas para as pessoas que aceitam, como simbolo de poder, uma coroa real... Um simbolo s6 é um simbolo se € aceito por dois interlocutores: 0 que transmite € 0 que Fre- cebe. A coroa pode provocar um tremendo impacto em uma pessoa e deixar uma outra completamente insensivel. © que é a exploragdo? A tradicional figura do Tio Sam , para muitos grupos sociais espalhados por todo o mundo, 0 mais perfeito ¢ acabado simbolo da exploragdo. Expressa com perfeigio a rapina do imperialismo ianque. ‘Na experiéncia teatral limenha também se perguntou & varias pessoas o que era exploragdo, exigindo-se a resposta cm fotografia. Muitas fotos-respostas mostravam 0 dono do arma~ zém, ou o homem que vinha cobrar o aluguel, ou um balcio de uma venda, ou uma repartigio publica, etc. Um menino res- pondeu a essa pergunta com uma foto que mostrava um prego na parede. Para ele, ess prego cra © simbolo mais perfeito da exploragio. Quase ninguém entendeu porque, mas todos os demais meninos estavam totalmente de acordo. A discussdo da foto esclareceu o porque. Em Lima, os meninos comegam tra- balhando para ajudar a economia doméstica, quando chegam 4 idade de $ ou 6 anos: comecam como engraxates. E légico que nas favelas onde vivem no existem sapatos para engraxar, € por isso essas criangas devem ir ao centro de Lima exercer 0 seu offcio, Levam consigo uma caixa dentro da qual colocam todos os apetrechos necessdrios 4 sua profissio. Mas evidente- mente nfo podem ficar carregando todas as manhis ¢ todas ‘as noites suas caixas, do trabalho A casa e da casa ao traba- tho, Por isso, si obrigados @ alugar um prego na parede de um bar, ¢ 0 proprietério Ihes cobra o aluguel de trés soles por noite © por prego. Quando véem um prego, esses meninos odeiam a opressdo; se véem uma coroa real, o Tio Sam ow uma foto de Nixon, etc, o mais provavel é que ndo compreen- dam nada. 142 E muito facil dar uma maquina fotografica a uma pessoa que jamais tirou uma foto, dizer-Ihe por onde deve olhar para poder enfocar, ¢ que botiio deve apertar. Basta isso, ¢ os meios de produgdo da fotografia estario em mos dessa pessoa. Mas, eomo proceder no caso especifico do teatro? Os meios de produgdo da fotografia estio constituidos pela maquina fotografica, que ¢ relativamente facil de manejar, mas os meios de produgio do teatro estio constituidos pelo proprio homem, que ja niio € to facil de manejar. Podemos mesmo afirmar que a primeira palavra do voca- buldrio teatral € 9 corpo humano, principal fonte de som ¢ movimento. Por isso, para que se possa dominar os meios de Produgdo teatral, deve-se primeiramente conhecer o prdprio corpo, para poder depois torné-lo mais expressive. $6 depois de conhecer o préprio corpo ¢ ser capaz de torné-lo mais ‘expressivo, o “espectador" estar habilitado a praticar formas teatrais que, por etapas, ajudem-no a liberar-se de sua condigao de “espectador™ ¢ assumir a de “ator”, deixando de ser objeto ® passando a ser sujeito, convertendo-se de testemunha em protagonista. O plano geral da conversio do espectador em ator pode ser sistematizado no seguinte esquema geral de quatro etapas: PrimMeiza ETAPA — Conhecimento do Corpo — Seqiiéncia de exercicios em que se comeca a conhecer o préprio corpo. suas limitagdes ¢ suas possibilidades, suas deformagies soci e suas possibilidades de recuperagio; Sécunpa Etara — Tornar o Corpo Expressivo — Seqiléncia de jogos em que cada pessoa comega a se expressar unicamen- te através do corpo, abandonando outras formas de expressiio mais usuais e cotidianas; Terceika ETarA — O Teatro como Linguagem — Aqui se comega a praticar o teatro como linguagem viva ¢ presente, ¢ ao como produto acabado que mostra imagens do passada: 143 Paro GRAY — Dramaturgia Simultdnea: 08 especta- dores “escrevem”, simultaneamente com os atores que re- presentam; SecuxDO Grau — Teatro-Imagem: os espectadores inter- vém diretamente, “falando” através de imagens feitas com os corpos dos demais atores ou participantes; Tercemo GRAU _— Teatro-Debate: os espectadores inter- vém diretamente na agdo dramitica, substituem os atores © representam, atuam! Quarta Erara — Teatro como Discurso — Formas simples em que o espectador-ator apresenta 0 espetéculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas agdes. Exemplo: 1) teatro-jornal 2) teatro invisivel 3) teatro-fotonovela 4) quebra de repressio 5) teatro-mito 6) teatro-julgamento 7) rituais ¢ mascaras PriMema ETAPA — ‘Conhecimento do Corpo “fazer teatro”. O mais provavel é que nunca hajam ouvido falar de teatro ou, se alguma idéia tem @ respeito, formada pela televisio, pelo mau cine ou por algum grupo cir- cense. E muito comum também que essas pessoas associem “teatro” com écio ou perfumes. De modo qué é necessirio ter cuidado, ainda que o contato inicial se dé através de um alfa- semi-alfabetizados, ainda que viva entre eles em uma choga semelhante 4 deles, com a mesnia falta de eomodidades. O 144 simples fato de que o alfabetizador vem com a missdo de alfa- betizar (que se supde ser uma ago coercitiva, impositiva) ten- de a afasté-lo da gente do lugar. Por isso, convém que a apli- cagio de um sistema teatral comece por algo que mio seja ‘estranho aos participantes (como por exemplo certas técnicas teatrais dogmaticamente ensinadas ou impostas); deve, ao con- trario, comegar pelo proprio corpo das pessoas interessadas em participar da experiéncia. Enxiste uma enorme quantidade de exercicios que se podem praticar, tendo todos, como primeiro objetivo, fazer com que ‘0 participante se torne cada vez mais consciente do seu corpo, de suas possibilidades corporais, e das deformagdes que o seu corpo sofre devido ao tipo de trabalho que realiza. Isto é: cada um deve sentir a “alienagiio muscular” imposta pelo tra- balho sobre o seu corpo. Um pequeno exemplo poderd esclarecer este ponto: com- Pare-se as ¢struturas musculates do corpo de um datilografo ‘com as de um vigia notumo de uma fabrica, O primeiro realiza seu trabalho sentado em uma cadeira: do umbigo para baixo, seu corpo s¢ converte, durante o trabalho, em uma espécie de pedestal, enquanto que os seus bragos e os seus dedos se agi- lizam. O vigia, ao contrdtio, é obrigado a caminhar de um lado para outro durante oito horas seguidas e, conseqilente- mente, desenvolverd estruturas musculares que o ajudem a caminhar. Qs corpos de ambos se alienam segundo os traba- ihos que realizam respectivamente, © mesmo que acontece com esses dois trabalhadores acontece igualmente com qualquer pessoa, em qualquer fungdo, em qualquer status social. O conjunto de papéis que uma pes- soa desempenha na realidade impde sobre ela uma “mascara social” de comportamento. Por isso terminam por patecer-se entre si pessoas que realizam os mesmos papéis: militares, clé- rigos, artistas, operdrios, camponeses, professores, latifundid- rios, nobres decadentes, etc. Compare-se a placidez angelical de um cardeal passeando sua bem-venturanga pelos jardins do Vaticano, com um beli- coso general dando ordens aos seus subalternos. O primeiro caminha suavemente, ouvindo misica celestial, colhendo flores coloridas com as mais puras cores impressionistas. Se, por ca- 145 sualidade, um passarinho cruza pelo seu caminho, supe-se que o cardeal Ihe dir alguma coisa ternamente, alguma palavra amavel de estimulo cristéo, Ao general, pelo contririo, nio fica bem falar com os passarinhos, mesmo que tenha vontade, Um general deve falar como se estivesse sempre ordenando, mesmo: que esteja dizendo & sua mulher que a ama. Um militar deve usar esporas, sempre que possivel, mesmo que se trate de um almirante ow de um brigadeiro. Por essa raz%o, todos os ge- nerais se parecem entre si, e @ mesmo acontece com todos os cardeais; mas os cardeais sio completamente diferentes dos ge- nerais. Os exercicios desta primeira etapa t#m por finalidade “desfazer” as estruturas musculares dos participantes. Isto &: desmonté-las, verificd-las, analisé-las. No para que desapare- Gam, mas sim pata que se tornem conscientes. Para que cada operdrio, cada camponés, compreenda, ‘veja ¢ sinta até que pon- to seu corpo esti determinado pelo seu trabalho. Se uma pessoa é capaz de “desmontar” suas préprias estru- turas musculares, sera certamente capaz de “montar” estrutu- ras musculares proprias de outras profissGes ¢ de outros status sociais, estar mais capacitado para interpretar outros perso- nagens diferentes de si mesmo. Todos os exercicios desta série estiio, portanto, destinados a “desfazer"; nfo interessam os exercicios acrobaticos, atléti- cos, que tendam a criar estruturas musculares proprias de atle- tas e de acrobatas. A titulo de exemplificagio, descrevo alguns destes exer- cfeios: _ 1) Corrida em Camara Lenta — Os participantes so convi- dados a fazer uma corrida com a finalidade de perdé-la: ganha © diltimo! O corpo de cada um, ao mover-se em cAmara lenta, em cada centimetro em que se desloque o seu centro de gra- vidade, terd que reencontrar uma nova estrutura muscular que promova o equilibrio. Os participantes nio podem nunca interromper o movimento, uma vez iniciado, e ficar parados; devem também dar o passo mais comprido que puderem ¢, a0 “correr”, os seus pés devem passar por cima dos joelhos. Neste exercicio, uma corrida de 10 metros pode ser mais cansativa 146 que uma corrida convencional de 500 metros: o esforgo ne- cessdrio para manter o equilibrio em cada nova posigio, a cada pequeno deslocamento, é enorme ¢ muito intenso. 2) Corrida de Pernas Cruzadas — Os Participantes se unem em duplas, se abragam pela cintura e cruzam suas pernas (a Perna esquerda de um com a perna direita do outro), apoian- do-se cada um na perna no cruzada, Durante a corrida, cada dupla se move como se fosse uma 56 Pessoa, e cada pessoa se move como se o companheiro fosse sua pera, A “perna” nio peoes saltar sozinha: tem que ser movida pelo seu compa- iro, 3) Corrida do Monstro — Formam-se “monstros” de quatro pés, com duplas em que cada um abraga o térax do compa- , estanda um de cabeca para baixo, de tal forma que as pernas de um encaixam no pescogo do autro, formando um monstro sem cabega € com quatro patas. Correm, levantando cada um o corpo inteiro do outro, dando uma volta no ar, firmando-se outra vez no chao, ¢ assim sucessivamente, 4) Corrida de Roda — As duplas formam rodas, cada um agarrando os tornozelos do companheiro, e correm uma corrida de rodas humanas. 5) Hipnotisme — As duplas se pSem frente a frente e cada um coloca a m&o a poucos centimetros do nariz do compa~ nheiro, que esti obrigado a manter essa distincia permanente- mente; © primeiro comega a mover a m&o em todas as diregies, para cima e para baixo, para a esquerda ¢ para a direita, mais ripida ou mais lentamente, enquanto que o segundo move todo o seu corpo de tal mancira a manter a mesma distiincia entre o seu nariz € a m§o do companheiro, Nestes mavimen- tos, os participantes so obrigados a assumir posigdes ais que jomais assumem na vida didria, “reestruturando” per- manentemente suas estruturas musculares, Em seguida, formam-se grupos de trés: um lidera e os outros dois acompanham cada uma das mios do lider que pode, 47 por sua vez, fazer qualquer coisa, cruzar os bragas, separar as mis, etc., enquanto que os outros dois devem manter sem- pre a mesma distancia. Deve-se observar qué sé a mio do li- der esti com os dedos para cima, o rosto do que o segue deve igualmente estar na vertical, e se a mao se inclina pata a horizontal, igualmente se inclinard o rosto. Em seguida, formam-se grupos de cinco, sendo que um Ti- dera € os outros quatro seguem as mios € os pés do lider, que pode fazer o que sentir vontade, inclusive dangar. Neste tipo de exercicio, o lider deve procurar permanentemente “desequi- librar” 0 corpo do companheiro que, assim, sera forgado a buscar um novo equilibrio através de posigdes corporais abso- lutamente novas; quanto mais ridiculas essas posigdes, mais novas sero, menos usuais, ¢ portanto mais ajudario a “des- montar” as estruturas musculares usuais ¢ mecanizadas. 6) Luta de Box & Disténcia — Os participantes so convida~ Jos a praticar uma luta de box, mas nfo se podem tocar uns aos outros. Cada um deve lutar como se estivesse lutando de verdade, mas sem tocar o companheiro que, no obstante, deve reagir fisicamente como se tivesse recebido cada golpe. Estas lulas podem chegar a ser extremamente violentas ¢ @ ‘nica coisa que se profbe € que os jutadores se toquem. .. 7) Far-West — B uma variagio do exercicio anterior. Os par- ticipantes improvisam uma cena pica das mis comédias de jar-west, representando o pianista bébedo, o gargom afemina- do, as bailarinas-prostitutas, 0s homens maus que entram dando pontapés nas portas de vaivém, etc. Toda esta cena muda se representa sem que os participantes possam tocar-se, mas de tal maneira a reagir a todo gesto ou fato que ocorra, como por exemplo uma cadeira imagindria que se atira contra uma fila de garrafas, cujos fragmentos saem disparados em todas as diregdes: € necessario reagir a0 movimento da cadeira, as gar- rafas quebradas, etc. No fim da cena estario todos brigando contra todos. No meu livro 200 exercicios E JOGOS PARA O ATOR E FA, © NAO-AUTOR COM VONTADE DE DIZER ALGO ATRAVES DO ‘TEATRO sistematizei diversas séries de exercicios que podem ser 148, . Creio, porém, que & sempre conveniente Propor um exercicio € ao mesmo tempo propor que os parti- cipantes inventem outros. E importante manter uma atmosfera criadora: todos esto criando, os que ensinam e os que apren- dem. Todos devem inventar. E, esta etapa, é necessdrio ima- ginar e praticar exercicios que “analisem' as estruturas muscula- res de cada participante Seaunpa Etapa — Tornat o Corpo Expressivo ‘© objetivo da segunda etapa é o de desenvolver a capaci- dade expressiva do corpo. Estamos acostumados a tudo comu- nicar através da palavra, o que colabora para o subdesenvolvi- mento da capacidade de expressio corporal. Uma série de “jogos” pode ajudar os participantes a desenvolver os recursos do corpo, como forma de expressio. Trata-se de “jogos de sa- lio” ¢ nio necessariamente de exercicios de laboratério, Os Participantes sio convidados a “jogar” e nao a “interpretar™ Personagens, mas & certo que “jogardo” tanto melhor quanto melhor “interpretem". Alguns exemplos de “jogos”: distribuem-se entre os par- ticipantes pequenos papéis com nomes de animais, macho ¢ , corporal, do animal que lhes tocou. & proibido falar ou fazer ruidos ébvios que denunciem o animal, ja que a comunicacio deve ser exclusivamente corporal. Portanto nio se pode miar no caso de “gato” ou “gata”, nem ladrar, no caso de “cachorro” ou “cachorra”. Depois dos dez minutos iniciais, e obedecendo a um aviso do orientador, cada participante deve procurar o seu par, entre os demais participantes, que tambem estario imitando seus animais, sempre em suas versées “macho” ou mea”. Quando dois participantes estiverem convencidos de que eles formam um casal, saem de “cena™ e¢ s6 entio se hes permite falar para saber se realmente sio um casal, ¢ 0 jogo termina quando todos os “animais” hajam encontrado seus companheires. E isto terd sido feito através da comunicagio 149 exclusivamente corporal, sem @ utilizagéo de palavras, nem sequer de ruidos ébvios. Nos jogos deste tipo, © importante nfo & “acertar™; © importante & fazer com que todos os participantes s¢ esforcem para expressar-se através de seus corpas, coisa a que nao ¢stao acostumados. Ainda que s¢ cometam todos os ¢rros imagind- veis, o exercicio sera jgualmente bom s¢ 05 participantes ten- tarem se expressar fisicamente, sem o recurso da palavra. Deste modo, e sem que se déem conta, estarfio j4 “fazendo teatro”. .» Eu me lembro que uma vez, numa favela, a um homem The tocow interpretar 0 colibri, © pobre coitado nfo tinha a menor idéia de como seria possivel expressar fisicamente um colibri, mas se lembrou de que esse passarinho voa muito tapi- damente de flor em flor, fica parado no ar por alguns instantes, enquanto beija cada flor ¢ emite um ruido particular. Com os bragos, o homem comegou & jmitar o bater frenético de asas do beija-flor, € “voando" de participante em participante, como se seus companheiros fossem flores, detinha-se diante de cada um por alguns instantes € emitia um ruido que supunha pro- prio dessa a" “Breeeremmn!” Durante dez minutos todos tive- ram que aguentar 0 aguetrido senhor fazeado “Brreceerrrr!” diante de uns ¢ outros. Depois, quando comegaram todos a bus- car o companheiro, este homem olhava a todos os demais nenhum The parecia suficiente “colibri” para atral-lo. Final- mente, descobriu um senhor gordo ¢ alto que, com suas mios, fazia com desalento um movimento pendular ¢ nao teve divi- das, pensou que ele era @ sua amada colibri, ¢ partiv pra cima do gordo, dando voltas 20 seu redor, cada vez cantando com mais galhardia Brerreeeeerererere!!! , Mais amorasa- mente batendo suas asas ©, dando beijinhos no ar, esperou qué © gorda o seguisse. O gordo tentava escapar de todo jeito, mas vinha sempre em cima © colibri macho enamorado, cantando alegremente, até que 0 gordo, enquanta os outros morriam de riso, decidiu acompanh4-lo para fora da “cena” © assim termi- nar seus padecimentos, embora estivesse certo de que nao se tratava de um casal. Quando sairam (© 56 entio se permitia falar), cheio de alegria, 0 thomem quase gritou: 150 — “Eu sou o colibri macho ¢ vocé € a colibri fémea, no & verdade???" © gordo desalentado olhou pra cle ¢ disse assim: _— “Nao, imbecil... voc€ nfo viu que eu sou o touro?..."" (© movimento da mio significava (ou pretendia!) o mo- vimento que fazem os touros na arena antes de investirem contra o toureiro. Mas nunca saberemos de que mancira um gordo interpretando um touro convenceu ao pobre hamem scr um delicado e canoro colibri, Niio importa: 8 nica coisa im- portante é que, durante 15 ou 20 minutos, toda essa gente ten- tou “falar” com seu corpo. Este tipo de jogo pode variar ao infinito e os papéis po~ dem conter, por exemplo, nomes de profissbes. Se os participan- tes mostram animais, talvez isso nada tenha que ver com @ ideologia. Mas se um camponés deve interpretar um latifundiad- rio, ou s¢ um operdrio deve interpretar um dono de fabrica, ‘ou se a mulher de um destes deve interpretar um policial, nestes casos a ideologia também conta e encontra sua expresso atra~ vés do jogo, Os papéis podem também conter os nomes dos proprics participantes, de tal forma que uns interpretario os ‘outros, desta maneira revelando suas opiniées ¢ fazendo fisica- mente suas criticas mituas. Também nesta etapa, como na primeira, existem muitiss mos jogos que s¢ podem utilizar, ‘tratando-se sempre de fazer com que os participantes jnventem outros, © que nao sejam teceptores passivos do divertimento que vem de fora. Tencema Etara — Teatro como Linguagem Esta etapa se divide em trés partes, significando cada uma um grau diferente ¢ progressivo de participagio direta do espectador no espetdculo. Trata-se de fazer com que 0 espec- tador se disponha a intervir na ago, abandonando sua condi- gia de objeto ¢ assumindo plenamente © papel de sujcite. ‘As duas ctapas anteriotes sio preparatorias € esti cen- tradas no trabalho do participamte com o seu proprio corpo. Esta nova etapa enfatiza o tema @ ser discutido, ¢ promove © passo do espectador A aglio verdadcira. 1st Primeiro Grau: Dramaturgia Simultinea — Este € o primeira convite que se faz a0 espectador para que intervenha, sem que seja necessdria sua entrada fisica em “cena”. Trata-s¢ aqui de interpretar uma cena curta de 10 ou 15 minutos, proposta por alguém do lugar, por um vizinho da favela, ¢ improvisado pelos atores, depois de discuti-la com o “autor” ¢ delinear o enredo. Pode-se, inclusive, ¢ sempre que jaja tempo, escrever a cena, que no tem que ser necessariamente improvisada. Em qualquer caso, o espetécula ganha em teatralidade se a pessoa que pro- a cena, qué contou @ histéria, estiver presente na platéia. ‘A cena deve ser representada até o ponto em qué s¢ apresente o problema central, que necessite uma solugio. Neste ponto, os atores patam de interpretar ¢ pedem a0 piblico que ofere¢am solugées possiveis, para que as jnterpretem, para que a5 amali- sem, Em seguida, improvisando, interpretam todas as salu- gdes propostas pelo piblico, uma a uma, sendo que todos os espectadores tém o direito de intervir, corrigindo agdes ou falas inventadas pelos atores, que sio obrigados a retroceder © @ jnterpretar outra vez as mesmas cenas ‘ou dizer as movas pala- ‘yras propostas pelos espectadores. Assim, enquanto a platéia 4escreve” a pega, a elenco simultaneamente @ interpreta. Tudo © que possam pensar 0s espectadores & discutido “teatralmen- te” em cena, com a ajuda dos atores. Todas as solugdes pro- postas ¢ opinides slo expostas em forma teatral. A “discussio” neste caso nfo se produz através da utilizagio de palavras so mente, mas sim de todos os elementos teatrais possiveis. Um pequeno exemplo: numa favela de San Hilarién, em Lima, uma senhora propos um tema candente. Era ela analfa- beta ¢ seu marido Ihe havia dado para guardat, anos atras,, certos “documentos” que, segundo ele, eram de suma impor- tincia. A boa senhora os guardou sem suspeitar de nada, Um belo dia, os dois brigaram ¢ @ mulher se lembrou dos tais “documentos” e quis saber exatamente de que s¢ tratava, pois temia que s¢ relacionassem com a casinha que possuiam. Como- nao sabia ler, pediu a ajuda de uma vizinha, Muito amavel, veio a vizinha € leu os “documentos” que, pata posterior di- versio de todo o bairro, ndo cram documentos € sim cartas. de amor escritas pela amante do marido da pobre analfabeta. A mulher traida jurou vinganga. Mas, como vingar-se? Os 152 atores improvisaram a histéria que ela Ihes contou até o ponto em que o marido retorna a casa, depois de um dia de trabalho ¢ quando a mulher acaba de ser informada do mistério das cartas. Aqui se interrompia a ago ¢ a participante-atriz, que interpretava a senhora analfabeta, perguntava aos demais parti- cipantes-espectadores qual devia ser a sua atitude frente ao ma- rido. Todas as mulheres da platéia se alvorogaram, comegaram a discutir ¢ a expor suas opinides. Os atores ouviam as dife- rentes sugestées e representavam segundo as normas. dadas pelo Pablico, procuranda ser intérpretes figis desse piblico-dra- maturgo. Todas as possibilidades de feminina vinganga foram examinadas a quente, em teatro, e nio a frio, em palavras. Neste caso particular, foram estas as solugdes propostas: 1) Chorar muito para fazer com que @ marido se sentisse culpado. Foi uma jovem que sugeriu que a mulher se pusesse a chorar muito para que o marido se desse conta de como havia se comportado mal. Os atores nfo podem recusar as solugdes propostas, gostem ou nfo dessas propostas. Devem interpretar todas. A atriz portanto chorou muitissimo, enquan- to o marido a consolava e lhe assegurava que dguas passadas nao movem moinhos, que-jé se havia esquecido desses amores juvenis, que a amava, etc., ¢ quando cla parou de chorar, ele pediu que ela servisse o jantar e tudo ficou por isso mesmo, na santa paz de Deus. O piiblico no aceitou essa solugio, pois pensavam todos (especialmente as mulheres presentes) que 0 marido merecia maior castigo. 2) Abandonar a casa deixando 0 marida sozinho, como cas- digo. A atriz, sem discutir, interpretou esta sugestéo e, depois de mostrar ao marido como havia sido ruim, agarrou as suas coisas, meteu tudo dentro de uma mala ¢ foi embora, batendo a porta na cara do marido, que ficou sozinho, muita sozinho, dentro de casa. Mas, assim que saiu, perguntou ao publico o que deveria fazer em seguida, Para castigar seu maridu, ter- minava por castigar-se a si mesma. Aonde iria agora? Em que casa paderia viver? Esse castigo positivamente nao. servia, J4 que recaia sobre ela mesma. 153 3) Expulsar o marido de casa, Também esta variante foi ensaiada. O marido pediu ¢ pediu que o deixasse entrar, mas a mulher decidiu que ficasse de fora. Depois de muito rogar, 9 marido comentou: — “Muito bem, eu vou embora. Hoje foi o dia de pagamento € eu vou com esse dinheiro viver com a minha amante, porque eu gosto muito mais dela do que de vocé, ¢ vooé que se vire sozinha!” E foi embora. A atriz co- mentou que néo havia gostado dessa solug%o, porque o marido iria agora viver com outra ¢ ela, pobre, que faria? Nao ga- nhava o suficiente para viver sozinha ¢ nio podia prescindir do marido. 4) A dltima solugio foi apresentada por uma senhora gorda ¢ exuberante, ¢ foi aceita pela ut idade do piblico pre- sente, homens e mulheres. Disse a experiente senhora: “Wocé faz assim, coma eu te digo: deixa ele entrar, agarra um pau bem comprido ¢ bem forte, e quando cle entrar, baixa a Jenha com toda tua forga, bate bastante. Depois que tiver Ihe dado uma boa surra, para que se arrependa, voc’ joga fora o pau, vocé serve o jantar a ele, com muito carinho, ¢ depois vocé o perdoa...” A atriz representou essa versio (depois de vencer as re sisténcias naturais do ator que representava o marido ¢ que nao queria apanhar) ¢, depois de lhe dar uma boa tunda, para diversio do piblico presente, os dols s¢ sentaram & mesa, co- meram, e discutiram amistosamente as dltimas medidas do go- verno, nacionalizando companhias ianques... Esta forma de teatro produz uma grande excitagfo entre os participantes: comega a demolir-se 0 muro que separa ato- res de espectadores. Uns escrevem ¢ outros representam quase simultaneamente, Os espectadores sentem que podem intervir na ago, A agio deixa de ser apresentada deterministicamente, como uma fatalidade, como o Destino. O Homem ¢ 0 Destino do Homem! Pois entio 0 Homem-Espectador € 0 criador do Destino do Homem-Personagem. Tudo esté sujeito & critica, A retificago. Tudo € transformdvel, e tudo se pode transfor- mar no mesmo instante: os atores devem estar sempre prontos a aceitar qualquer proposta ¢ nfo rechagar nenhuma: devem simplesmente representi-las, ao vivo, mostrando quais serio a3 134 soas conseqiléncias, suas indicagdes e contra-indicagées. Todo espectador, por ser espectador, tem o direito a experimentar sua versio, Nada de censura prévia. E a propria Tepresentagio teatral que mostrard os acertos ou desacertos de cada Proposta. © ator no se modifica em sua fungdo principal: continua sendo o intérprete. O que se modifica é a quem tem que inrer- Pretar! Se antes interpretava a um senhor que escrevia fecha- do em seu escritério (e nao tenho nada contra esses senhores: sou um deles!), aqui, ao contrério, deve interpretar um pi- blico popular, um dramaturgo coletivo, que nia Ihe oferece um texto acabado mas sim solugdes, sugestées, cenas, frases, earacteristicas — ¢ ele deve reunir tudo isso na apresentagiio perfeita de um personagem vivendo uma histéria, Esse drama- turgo coletivo vive numa favela, ou trabalha numa fabrica, ou sdo os vizinhos que se retinem na sociedade dos amigos do bairro, ou os paroquianos de uma igreja, ou os camponeses de uma Liga Camponesa, ou os estudantes de uma escola. Os atores tém a missio de interpretar os Pensamentos destes gru- pos de homens e mulheres. O ator deixa de interpretar © indi- viduo e passa a interpretar o grupo; deixa de interpretar um texto jd escrito, acabado, e passa erpretar uma dramatur- gia embrion4ria. Isto é muito dificil, nao resta ddvida, mas é igualmente muito mais criador! 7 j Segundo Grau: Teatro-Imagem — Neste segundo grau 0 spec tador deve intervir muito mais diretamente. Pede-se que cle expresse sua opiniiio sobre um tema determinado, de interes- se comum, que os participantes desejem discutir. Esse tema pode ser amplo, abstrato, coma por exemplo “o imperialismo”, ou pode mais concretamente referir-se a um problema local, como a auséncia de Agua encanada, coisa que costuma acon. tecer em quase todas as favelas latino-americanas, Pede-se ao Participante que expresse sua opinifio, mas sem falar: deve apenas usar os corpos dos demais participantes para “esculpir™ com eles um conjunto de estdtuas, de tal maneira que suas opinides © sensagdes resultem evidentes, O participante deve~ rd usar os corpos dos demais como se ele fosse um escultor, © como se os outros estivessem feitos de barro. Deverd deter- minar a posigio de cada corpo até os detalhes mais sutis de 155 suas expressbes fisiondmicas. Nao & permitido falar em nenhu- ma hipétese. O maximo que pode fazer cada escultor é mos- trar com o seu proprio rosto @ expresso que deseja ver no rosto do participante-estétua. Depois de organizado este con- junto de estiituas, deve-se discutir com © demais participantes, se todos esido de acorde ou se propdem modificagdes. Todos. tém © direito de modificar o primeiro conjunto, no todo ou em parte. O importante é chegar a um conjunto modelo que, na opiniao geral, seja @ concregio esculiural do tema dado, isto é; este modelo € a representagio fisica deste tema! Quan- do finalmente se chega @ uma figura aceita mais ou ‘menos und- nimemente, pede-se ao escultor que faga outra imagem mos- trando como cle gostaria que fosse o tema dado. Em outras palavras: © primeiro conjunto deve mostrar @ imagem real, enquanto que © segundo mostrard a imagem ideal, Tendo-s¢ estas duas imagens, ‘pede-se a qualquer participante que mostre qual seria, a sew Ver, ‘a imagem de trdnsito. Isto é: temas uma fealidade que queremos transformar; como transforma- cla? Isto deve ser mostrado através de imagens formadas pelos corpos dos participantes. ‘Cada um tera o direito de, sempre sem falar, esculpir modificagSes na imagem real, mostrando como seria possivel chegar-se ‘A imagem. ideal, isto é, mos- trard concretamente uma imagem de transito (visivel, palpavel, concreta!) qual seria © melhor caminho para a ‘transforma- gio, a revolugdo, ou qualquer outra palavra que s¢ queira ntifizar, Todo o debate & feito pelos “escultores” que moditi- cam “esculturas": cada escultura tera inequivocamente um sig- nificado, ¢ cada modificacio, igualmente, tera um significado particular. Um exemple concreto ajudara a esclarecer este processo. Uma jovem alfabetizadora que vivia num pueblo pequeno, cha- mado Otusco, foi encarregada de mostrar como era se por ‘voado natal aos demais participantes. Em Otusco, antes do atual govern revolucionirio, houve uma revolta. camponesa, ‘os latifundistas (j4 nfo exisiem mais no Peru) prenderam © lider dessa rebelido, conduziram-no 4 praga central do povoa- do e, diante de todos, castraram-no. A moga de Otusco compas: c miagem da castragio, colocando um dos participates ne chiio, enquanto que outro fazia o gesto de castri-lo, ¢ outro o 156 agarrava por trds, tornando-o indefeso. Diante destes trés ho- mens, a moga colocou uma mulher ajoelhada, rezando, de um lado ¢ do outro um grupo de cinco homens, igualmente ajoe- Thados, com as mios atadas atras das costas. Atrés do homem castrado, a moga pis outro participante em ostensiva atitude de poder e violéncia e, atrés deste, dois homens armados apon- tando suas armas contra o prisioneiro caido. Esta era a imagem que a moga tinha do seu povoado. Ima- gem terrivel, tragica, pessimista, derrotista, mas, ao mesmo tempo, imagem de algo realmente acontecido. Quando se lhe pediu que mostrasse como ela gostaria que fosse seu povoado, a jovem compés outro conjunto de gente que se amava, que trabalhava, enfim, um Otusco feliz e contente. Primeiro a ima- gem real, depois a imagem ideal. A partir dai, comegava o tra- balho: como se poderia, a partir da imagem real, chegar 4 ima- gem ideal? Como produzir a modificagao, a transformagiio, a revolugio? Esta discussio, feita através das imagens, se cons- titui na parte mais importante desta forma teatral. ‘Cada participante tinha o direito de, a partir da primeira imagem, reordenar o grupo para mostrar de que mancira, na sua opiniao, a realidade poderia ser transformada, reordenando as forgas significadas pelas imagens. Cada um devia mostrar a sua opiniao feita de imagens. Havia discussdes ferocissimas, sem palavras. Quando alguém exclamay — “Eu acho que...” era imediatamente interromp! “Wao diga o que pensa: venha e mostre!" O participante mostrava, fisicamente, visualmente, o seu pensamento, ¢ a dis- cussio prosseguia. Neste caso particular, observaram-se especialmente as se- guintes variantes: 1) Quando se pedia a qualquer moga do interior do pais que fizesse a imagem de transito, essa moga jamais modificava a imagem da mulher ajoelhada, significando claramente que nao via na mulher nenhuma forga transformadora, revoluciondria. ‘Naturalmente, essas mocas se identificavam com essa figura feminina, ¢ como niio acreditavam em si mesmas como pro- tagonistas possiveis da revolugio, tampouco modificavam a imagem da mulher ajoelhada, Quando, ao contrdrio, pedia-se 157 o mesmo a uma moga de Lima, esta, mais “liberada”, come- gava por modificar justamente essa imagem, com a qual se identificava. Esta experiéncia foi feita repetidas vezes ¢ sem- pre produziu o mesmo resultado, sem variagdes. Certamente nso sé trata de uma ocorréncia fortuita, mas sim de uma ¢x- pressio sincera ¢ visual da ideologia e da psicologia das par- ticipantes. As mogas de Lima sempre modificavam a imagem feminina, mas cada uma A sua maneira: umas faziam com que a mulher se ogarrasse A figura do homem castrado, outras que se dispusesse a lutar contra o castrador, outras contra a po derosa figura central, ete. Enquanto jss0, as mogas do interior do pais no faziam mais do que permitir que a mulher levan- tasse as maos em atitude de oragio. 2) Todos os participantes que acreditavam no Governo Re- volucionério comegavam por transformar as figuras armadas, no funda do conjunto, isto é, os dois homens apontando suas armas contra o castrado: passavam a apontar suas armas con- tra a figura central, ou contra os castradores; quando, ao con- trério, © participante nfo tinha a mesma fé em seu Governo, modificava todas as outras, menos essa5 figuras armadas. 3) As pessoas que acreditavam em solugdes migicas, ou €m transformagdes “de consciéncia” das classes exploradoras, co- megavam por modificar os castradores que s¢ transformavam de moto proprio, ¢ a poderosa figura central também se rege- nerava sozinha, Mas aqueles que nao acreditam nessa modali- dade de trinsito social, transformavam primeiramente 03 ho- mens ajoclhados, fazendo com que estes assumissem posigdes de luta, atacando os seus dominadores. 4) Uma jovem, depois de fazer com que todas as transforma- gdes fossem obra dos homens ajoelhados que se liberavam & atacavam seus verdugos, ¢ os capturavam, fez também com. que uma das figuras do “povo” se dirigisse a todos os demais participantes, indicando claramente que, em sua opinifio, as transformagdes sociais sfo feitas pelo povo em seu conjunto, nfo apenas por sua vanguarda. 138 5) Outra jovem, no extremo oposto, fez todas as modifica- gées possiveis ¢ imagindveis, deixando intocados unicamente os cinco homens de mfos atadas. Esta jovem pertencia & classe média alta, ¢ no se sabia porque estava af nesse plano de alfabetizagio. Depois de varias tentativas, a jovem ja esta- va nervosa por no poder imaginar nenhuma outra transfor- magio e por sentir que talvez algo mais houvesse, alguém The perguntou sobre a possibilidade de transformar primeiramente as figuras atadas. A moga olhou espantada: “Que coisa... eu nio tinha reparado nesses...” E era verdade. Era no pove que ela nfo tinha reparado nunca... Esta forma de teatro-imagem & sem ddvida, uma das mais estimulantes, por ser tio facil de praticar e por sua extraordindria capacidade de tornar visivel o pensamento. Isto ocorre porque, quando se usa a linguagem idioma, cada pala- ‘vra utilizada possui uma denotagio que é a mesma para todos, mas possui igualmente uma conotagio, que & a Unica para cada um. Se eu digo a palavra “revolugio”, evidentemente todos compreenderio que estou falando de uma transforma- gio radical mas, ao mesmo tempo, cada um pensara na “sua” revolugio, em seu conceito pessoal de revolugio. Mas s¢, ao inwés de falar, ew tiver que fazer um conjunto de estdétuas que signifique a “minha” revolugSo, meste caso nfo existird a di- cotomia denotagio-conotagio. A imagem sintetiza a conotagdu individual ¢ a denotagGo coletiva. No meu conjunto que sig- nifica “revolugio"? Que fazem as “estdtuas"? Tém armas na mio, ou simplesmente votos? As figuras do povo estéo unifi- cadas numa atitude de luta contra as figuras que significam ‘os inimigos comuns a todos ou, pelo contrario, as figuras po- pulares estio dispersas, ou em atitude de discutir entre elas, enquanto se unificam as da opressio? Meu conceito de “re- volugio" ficard perfeitamente claro se, ao invés de falar, mos- tro com imagens o que penso. Recordo que em uma sesso de psicodrama uma jovem comentava repetidamente os problemas que tinha com sew hoivo, ¢ sempre comegava mais ou. menos com a mesma frase: “Ele veio e me abragou ¢ entdo...” Sempre o mesmo abrago iniciando seus relatos, e¢ todos nés entendiamos que cles se abragavam, isto é, entendiamos o que a palavra “abrago” de- 139 nota, Um dia foi-lhe pedido que mostrasse, representando, como eram esses encontras © esses abragos. Fai isto o que ela mostrou: o noivo sé aproximando, ela cruzando os bragos sobre o proprio peito, como se estivesse sé defendendo, ¢n- quanto o noivo a agarrava ¢ a apertava, € cla mantinha sem- pre as mos fechadas, continuamente s¢ defendendo, Essa era a sua conotagdo particular da palavra “ braco”. Quando com- preendemos qual era o “ " abrago, pudemos afinal com- preender os problemas que tinha com 0 noivo..- No teatro-imagem pode-se também utilizar outras téc- nicas: 1) permitir que cada participante transformado em estétua realize um movimento, um gesto, © apenas um, cada vez que © orientador bata palmas. ‘Neste caso o conjunto de imagens se transformard segundo 0 desejo individual de cada partici- pante-estdtua; 2) pede-se aos participantes-estituas que guardem de memé- ria a imagem ideal, que voltem a imagem real primitiva ¢ depois, a um sinal do orientador, realizem os movimentos: ne- cessdrios para outra vez retornarem. A imagem ideal, mostrando assim o conjunto de imagens «m movimento ¢ permitindo ana- lisar a viabilidade ou nfo dos trinsitos propostos. Através deste processo, seri possivel observar s¢ um conjunto se trans~ forma em outro (real em ideal) por obra graga do Espirito Santo, ou s¢ a ‘transformagio se opera pelas forgas em contra- digo no seio mesmo do conjunte; 3) pede-se ao participante-escultor que, uma vez terminada sua obra, procure colocat-se- ele mesmo dentro do conjunto que criou: ‘assim, muitas pessoas percebem que as vezes pos- om uma visio cdsmica da realidade, como se no estivesse também dentro dessa mesma realidade. © jogo com imagens oferece muitas outras possibilidades. © importante 6 sempre analisar a viabilidade de transformagio. 160 Terceiro Grau: Teatro-Debate — Este € 0 iltimo grau desta etapa e aqui o participante tem que intervir decididamente na acio dramatica ¢ modifici-la. Este € 0 processo: inicialmente, pede-se aos participantes que contem uma histéria com um problema politico ou social de dificil solugdo. Deve-se a se- guir improvisar ou ensaiar um texto que se escreva baseado na histéria contada, ¢ s¢ apresenta a cena de 10 ou 15 minutos, que inclua uma solu¢o proposta para determinado problema, e que se deseja debater. Quando termina a apresentagdo, per- gunta-se aos participantes se estio de acordo com a solu¢io apresentada, Como quase sempre se apresenta, para fins de discuss%i0, uma m4 solugio, é evidente que os participantes- -espectadores ditio que nfo esto de acordo. Explica-se entio que a cena sera representada uma vez mais, exatamente da mesma maneira que da primeira vez. Porém agora qualquer pessoa terd o direito de substituir qualquer ator e conduzir a agdo na ditegdo que Ihe pareca mais adequada. O ator subs- tituide deve aguardar do lado de fora, pronto para reintegrar- -se no momento em que o participante dé por terminada sua intervengio. Os demais atores, que permanecem em cena, de- vem enfrentar as novas situagSes criadas pelos espectadores, examinando “a quente” todas as possibilidades que a nova pro- posta oferega. Os participantes que intervenham devem obrigatoriamente continuar as agdes fisicas dos atores que sio substituidos, de modo a que a “marcagdo" continue mais ou menos a mesma. Nao é permitido entrar em cena ¢ simplesmente ficar falando, falando, falando: devem todos realizar os mesmos trabalhos ou as mesmas atividades dos atores que estavam em seus lu- gares. Em cena, a atividade teatral deve seguir a mesma. Qualquer pessoa pode propor qualquer solugdo, mas para deverd ir a cena, af trabalhar, fazer coisas, agir, ¢ nao sim- plesmente falar. E ninguém pode propor nada na comodidade de sua cadeira. Muitas vezes, em debates posteriores a espe- téculos convencionais, tenho visto espectadores sempre discon- formes que revelam ser extraordindrios revolucionarios... po- rém sentados nas suas poltronas. Falar 6 muito facil, é muito facil sugerir atos herdicos ¢ maravilhosos. O mais dificil € Tealizéi-los. Esses mesmos espectadores se dardo conta de que 161 as coisas io um pouco mais dificeis do que pensam se tive- rem que fazer eles mesmos os alos que preconizam. Um exemplo: um jovem de 18 anos trabalhava na cidade de Chimbote, um dos portos pesquciros mais importantes do mundo. Existe ali uma infinidade de fabricas de farinha de pescado, principal produto de exportagio do Peru. Algumas ‘do enormes e outras contam com apenas 8 ou 10 operirios. ‘Numa destas, trabalhava 0 nosso jovem. Tinha um patrao terri- velmente explorador, que obrigava scus operdrios a trabalhar da 8 da manhd as 8 da noite, ou vice-versa, em dois tumas. Total: 12 horas de trabalho continuo, Todos pensavam em lutar contra essa exploragio desumana. Cada um tinha uma idéia, uma proposta, como, por exemplo, realizar a “opera- gio tartaruga”, isto é, trabalhar bem devagarzinho, especial- mente quando 0 patriio nfo esté olhando. Mas este rapaz teve uma idéia brilhante: trabalhar o mais rapidamente possivel ¢ encher a maquina de peixe de tal maneira que, com © peso excessive, a m4quina s¢ quebrava ¢ parava de funcionar. Para repard-la, cram necessarias duas ou trés horas, ¢, durante esse tempo, 08 operdrios poderiam descansar trangiiilos. Esse era o problema: a exploragdo patronal; ¢ essa, wma solugio, inven- tada pela esperteza nativa. Mas seria essa a melhor solugaio? Preparou-se uma cena que foi apresentada a todas os par- ticipantes. Alguns atores representaram OS operarios, outros 0 patrio, o capataz, o alcagticte. A cena se converteu numa fabrica de farinha de peixe: um operdrio descarregava 0 peixe, outro pesava sacos cheios de peixe, outro transportava 08 sacs até a maquina, outro cuidava da méquina, enquanto outros faziam outras tarefas pertinentes. Enquanto trabalhavam dialo- gavam, propunham solugoes ¢ as discutiam, até que finalmente aceitavam a proposta do rapaz, arrebentavam a m4quina de tanto peixe que Ihe metiam dentro, vinha © patriio com o engenheiro enquanto 0s operirios dormiam durante o tempo de conserto da miquina. Terminado o conserto, ‘voltavam todos ao trabalho. ‘A cena foi apresentada pela primeira vez ¢ se propés & discussio, Estavam todos de acordo? Positivamente nfo! Pelo contrario, o desacordo era total. Mas cada um tinha, pelo seu Jado, uma proposta diferente: atirar uma ‘bomba ¢ incendiar 162 a fabrica, fazer uma greve, formar um sindicato, etc. Foi entao que se propés ao piiblico uma sesso de teatro-debate, A cena seria representada outra vez, de forma idéntica, porém agora teriam todos o direito de ensaiar suas solugGes e¢ propostas, intervindo diretamente na agio ¢ modificando-a. O primeiro que interveio foi o da bomba: levantou-se, substituiu o ator que interpretava o jovem ¢ propés jogar uma bomba na méqui- na. E claro que os demais atores o dissuadiram, pois isso significaria a destruigo da fAbrica, e portanto de uma fonte de trabalho, Aonde iriam parar tantos operdrios se a fabrica fechava? Por quanto tempo teriam que viver sem salirio? Inconformado, o homem tentou jogar a bomba sozinho, mas logo percebeu que nfo sabia como fazé-lo, nem muito menos como fabricd-la. Acontece que muita gente, em discusses ted- ricas, é capaz de atirar muitas bombas, mas que na realidade io saberia que fazer com uma bomba verdadeira ¢ seria capaz de explodir com ela no bolso. Depois de experimentar a solu- ¢io-bomba, o homem voltou ao seu lugar, ¢ o ator retomou © scu papel, até que veio um segundo espectador experimentar a solugdo da greve. Depois de muita discussie com os demais, conseguiu fazer com que se interrompesse o trabalho, indo todos embora ¢ deixando a fabrica vazia. Neste caso, o patrio, o capataz ¢ © alcagiicte, que haviam preferido ficar, foram até a praca (que era a platéia) buscar outros operdrios que se pres- tassem a substituir os grevistas: no Chimbote existe um tre- mendo desemprego massivo. Esse espectador-praticipante experimentou uma solugdo, a greve, ¢ percebeu que, sozinha, era ineficaz: com tanto de- semprego, 0$ patrées encontram sempre operdrios suficiente- mente famintos e pouco politizados que substituirio os gre- vistas. A terceira tentativa foi a de formar um sindicato destina- do a lutar pelas reivindicagSes operdrias, a politizar os operd- ios, ocupados ¢ desocupados, a formar caixas de assisténcia miitua, etc. Nesta sessio de teatro-debate, esta foi a solugio que pareceu melhor, a critério do piblico presente. No teatro- -debate nfo se impoe nenhuma idéia; o pablico (o povo) tem a oportunidade de experimentar todas as suas idéias, de ensaiar todas as possibilidades € de verificé-las na pritica, isto é, na 163 pritica teatral. Se a platéia tivesse chegado & conclusiio de que seria necessirio dinamitar todas as f4bricas de farinha de peixe do Chimbote, isto também seria certo do ponto de vista do funcionamento do teatro-debate, que é uma técnica teatral ndo- -impositiva. Esta forma teatral nfo tem a finalidade de mos- trar o caminho correto (correto de que ponto de vista?), mas sim a de oferecer os meios para que todos os caminhos scjam estudadas. Pode ser que o teatro nfo seja revoluciondrio em si mes- mo, mas estas formas teatrais sio certamente um ensaio da revolugdo, A verdade & que o espectador-ator pratica um ato real, mesmo qué o faga na ficglio de uma cena teatral. Enquan- to ensaia jogar uma bomba no espgo cénico, est4 concretamente ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar uma greve, esté concretamente organizando uma greve. Dentro dos seus termos ficticios, a experiéncia é concreta. Aqui ndo se produz de nenhuma maneira o efeito catdr- tico, Estamos acostumados a pegas em que os personagens fazem a revolugdo no palco, ¢ os espectadores se sentem revo- luciondrios triunfadores, sentados nas suas poltronas, ¢ assim purgam seu impeto revolucionario: para que fazer a revolugio na realidade, se j4 a fizemos no teatro? Mas isto nao acontece neste caso: o “ensaio” estimula a praticar o ato na realidade. O teatro-debate e estas outras formas de teatro popular, em ‘vez de tirar algo do espectador, pelo contrario, infundem no es- pectador o desejo de praticar na realidade o ato ensaiado no teatro, A pritica destas formas teatrais cria uma espécie de insgtisfagto que necessita complementar-se através da aco real. Quarta Etarpa — © Teatro como Discurso Jorgem Ishizawa dizia que o teatro da burguesia ¢ o espe- ticulo acabado. A burguesia j4 sabe como é 0 mundo, o seu mundo, ¢ pode portanto apresentar imagens desse mundo com- pleto, terminado, A burguesia apresenta o espeticulo, O pro- letariado ¢ as classes exploradas, ao contrario, nfo sabem ainda como sera o seu mundo; conseqientemente, o seu teatro sera © ensaio ¢ no o espeticulo acabado. Isto tem muito de 164 verdade, ainda que seja igualmente verdadeiro que o teatro pode apresentar imagens de “trinsito”. Em toda minha atividade, em tantos ¢ tio diferentes pai- ses da América Latina, pude observar esta verdade: os pibli- cos populares estio sobretudo interessados em experimentar, ensaiar, ¢ se chateiam com a apresentagio de espetdculos fe- chados. Nestes casos, tentam dialogar com os atores em agao, interromper a histéria, pedir explicagdes sem esperar “educada- mente” que o espetéculo termine. Ao contrario da educagao burguesa, a educago popular ajuda e estimula o espectador a fazer perguntas, a dialogar, a participar. Todas estas formas que expus até aqui sfio formas de teatro-ensaio ¢ niio de teatro-espetdculo. Sdo experiéncias que se sabe como comecam mas nfo como terminam, porque o espectador est4 livre de suas correntes, e finalmente atua e se converte em protagonista. Porque respondem a necessidades reais do piblico popular, sio sempre praticadas com éxito ¢ com alegria. Mas nada disso impede que um piblico popular possa igualmente praticar formas mais “acabadas” de teatro. Na ex- periéncia peruana foram utilizadas igualmente muitas outras formas desenvolvidas antes em outros paises, principalmente Argentina ¢ Brasil, ¢ que, também ali, tiveram grande eficdcia, Algumas destas formas foram: 1) Teatro-Jornal — Foi desenvolvido inicialmente pelo gru- po Nicleo do Teatro de Arena de So Paulo, do qual fui di- retor artistico desde 1956 até 1971, quando tive que abando- nar o Brasil por motivo de forga maior. Consiste em diversas técnicas simples que permitem a transformagio de noticias de jomal ou de qualquer outro material nio-dramatico em cenas. teatrais. Exemplos: a) leitura simples — a noticia € lida destacando-se do contexto do jornal, da diagramagio, que a torna falsa ow tendenciosa — isolado do resto do jornal readquire sua verdade objetiva; 165 b) leitura cruzada — duas noticias sio lidas de forma cruzada, uma langando nova luz sobre a outra, ¢ dando- -The uma nova dimensio; ¢) leitura complementar — & noticia do jornal acres- centam-se dados ¢ informagdes geralmente omitidos pelos jornais das classes dominantes; a) leitura com ritmo — a noticia é cantada em vez de lida, usando-se o ritmo mais indicado para se transmi- tir o conteddo que se deseja: samba, tango, canto gre- goriano, bolero, de tal forma que o ritmo funcione como verdadeito filtro critico da noticia, revelando seu verda- deiro contetido, oculto nas paginas dos jornais, ) acdo paralela — paralelamente 4 leitura da noticia, ‘os atores mimam agies fisicas, mostrando em que con- texto o fato descrito ocorreu verdadeiramente; ouve-se & noticia ¢, ao mesmo tempo, véem-se imagens que a com- plementam; f) improvisagdo — a noticia é improvisada cenicamen- te, explorando-se todas as suas variantes © possibilidades; g) histdrico — a noticia é representada juntamente com outras cenas cu dados, que mostrem o mesmo fato ‘em outros momentos histéricos ou em outros paises, ou em outros sistemas soc hh) reforgo — a noticia é lida, ou cantada, ou bailada, com a ajuda de slides, jingles, cangdes ou material de publicidade; i) concreg@o da abstragéo — concreta-se cenicamente o que a noticia as vezes esconde em sua informagdo pura~ mente abstrata: mostra-se concretamente a tortura, a fome, o desemprego, etc., mostrando-se imagens graficas, reais ou simbélicas; j) texto fora do contexto — uma noticia é representada fora do contexto em que sai publicada: por exemplo, um ator representa o discurso sobre austeridade pronunciado- por um ministro da economia enquanto devora um enor- me jantar; a verdade do discurso fica assim desmistifi- cada: quer austeridade para o povo, mas nao para si mesmo. 166 2) Teatro Invisivel — Consiste na representagio de uma cena em um ambiente que nfo seja o teatro, ¢ diante de pessoas que nfo sejam espectadores. O lugar pode ser um restaurante, uma fila, uma rua, um mercado, um trem, etc. As pessoas que assistem A cena serdio as pessoas que ai se encontrem aciden- talmente. Durante todo o “espeticulo”, essas pessoas niio de- vem sequer desconfiar de que se trata de um espetéculo, pois se assim fosse, imediatamente se transformariam em “especta~ dores”. Um espeticulo de teatro invisivel deve ser minuciosamen- te preparado (com texto ou simples roteiro), no apenas no que s¢ refere A cena em si mesma ¢ as relagdes entre os atores, como também no que diz respeito 4 provavel participacio dos “espectadores”: todos os atores devem estar preparados para incorporar nas suas interpretagdes todas as interferéncias pos- siveis dos espectadores: estas possiveis interferéncias deverio ser previstas na medida do possivel, durante os ensaios, ¢ for- mario uma espécie de texto optativo. © teatro invisivel deve “explodir” em um determinado local de grande afluéncia de pessoas, Todas as pessoas préxi- mas devem ser envolvidas pela explosic, ¢ os efeitos desta muitas vezes perduram até depois de muito tempo de termi- nada a cena. Um pequeno exemplo mostra o funcionamento, em linhas gerais, do teatro invisivel: num enorme hotel de Chaclacayo, onde estavam hospedadas as brigadas de alfabetizadores, além de mais 400 pessoas, os atores se reuniam no restaurante, ¢ S¢ sentavam em mesas separadas. Os gargons comegaram a servir. O protagonista, em voz mais ou menos alta para atrair @ atengo dos demais, mas ndo em forma Sbvia, informa a0 gargom que nao pode continuar comendo a comida que esse hotel habitualmente oferece porque, na sua opinido, é muito ruim. O gargom no gosta da observagiio mas diz que ele pode- ra escolher 0 que quiser do menu, algo que The agrade. O protagonista escolhe uma comida chamada “Churrasco de Pobre". O gargom adverte que custa 70 “soles”, mas o prota- gonista, com a voz sempre razoavelmente alta, diz que nao tem problema. Minutos depois, o gargom traz o churrasco, 0 protagonista come rapidamente ¢ se prepara para ir embora do restaurante, quando o gargom traz a conta, O protagonista faz cara de preocupado, diz aos scus vizinhos de mesa que o churrasco estava excelente, ¢ que sem divida era muito me- Ihor do que a comida que eles ¢stavam comendo, mas que fa uma pena que agora teria que pagar a conta. — “Mas nfo se preocupe nfo, que eu vou pagar. Comi o ‘Churrasco de Pobre ¢ vou pagar. 56 que tem um problema: ‘eu nfo tenho dinheiro nenhum...” — “E como € que vai pagar se nfo tem dinheiro?” — perguntou indignado o gargom. — O senhor sabia muito bem qual era o prego antes de pedir o churrasco. Wai ter que pa- gar de qualquer maneira...” E claro que os vizinhos seguiam atentamente esse didlo- go; muito mais atentamente do que se soubessem que era uma cena de teatro ¢ se estivessem sentados numa platéia. O pro- tagonista continuou: — “Nio se preocupe no, meu amigo, eu vou pagar, como nfo? Mas, como eu no tenho dinheiro, vou pagar em forga de trabalho. . .” — “Em forga do qué"? — perguntou o gargom aténito. — “Em forga de trabalho, nada mais nada menos. Di- nheiro eu nfo tenho, mas posso alugar a minha forga de tra- balho. Quer dizer: eu posso trabalhar pra vocés durante tantas horas quantas sejam necessdrias pra pagar o meu Churrasco de Pobre que, pra dizer a verdade, estava uma delicia, estava muito melhor do que essa porcaria que vocés servem a todo mundo...” Nesta altura, alguns dos comensais intervém, fazem co- mentirios entre eles mesmo em suas mesas, discutem o prego da comida, a qualidade dos servigos do hotel, etc., e o gar- gom chama o maitre para decidir a questo. O protagonista, uma vez explica o assunto — esse de alugar a forga de trabalho, ¢ acrescenta: — “Além disso tem outro problema: eu estou disposto a alugar a minha forga de trabalho, mas, na verdade, eu nio sei fazer nada, ou quase nada... Por isso, vooés vao ter que me dar um emprego bem humilde, bem modesto... Por exemplo: 168 posso jogar fora o lixo do hotel. Quanto ganha o lixeiro: que trabalha pra vocés?" © maitre, como & légico, néio quer dar neahuma informa- ‘ga0 sobre salarios, por isso um segundo ator, sentado em outra ‘mesa, jf esti preparado para essa eventualidade Previsivel, ¢ explica que ele € amigo do lixeiro © que este ganha nada mais do que sete soles por hora. Os atores fazem as contas ¢ o Protagonista exclama: — “Nio € possivel! Quer dizer que, se eu trabalhar como lixeito, vou ter que trabalhar 10 horas pra poder comer este ‘Churrasco de Pobre?! Dez horas pra pagar um churrasco que comi em 10 minutos??? Néo pode ser! Vocés vo ter que aumentar o saldrio do lixeito ou diminuir o prego do chur- rasco! Mas, no meu caso, talvez eu possa fazer uma coisa mais especializada, como por exemplo, posso cuidar dos jardins do hotel, que séo tao bonitos, que estio tio bem cuidados; o jardineiro € uma pessoa com muito talento, nfo resta ddvi- da... Quanto ganha o jardineiro deste hotel? Eu vou traba- ihar de jardineiro. Quantas horas vou ter que trabalhar nesse jatdim pra poder pagar o meu Churrasco de Pobre?” Outro ator, noutra mesa, explica sua amizade com o jar- dineiro, que é oriundo do mesmo povoade que ele; por isso, sabe que o jardineiro ganha 10 soles por hora. E outra vez o Protagonista mio se conforma: — “Como é possivel uma coisa dessas??? © homem que Cuida desses jardins tio lindos, que passa os dias af fora expos- to ao vento, ao sole 4 chuva, tem que trabalhar 7 horas se- guidas para poder comer um churrasco em 10 minutos? Nao pode ser!!! Explique como é que é isso, seu Maitre?" O Mattre j esta desesperado; vai e volta, d4 ordens em voz alta aos demais gargons para distrair a atengio dos co- mensais, rie fica sério, enquanto que todo o restaurante se transforma em uma assembléia. O protagonista termina por per- guntar ao préprio gargom quanto é que ele ganha para servir @ mesa, e se oferece para substitui-lo o tempo que seja ne~ cessirio. Um outro ator, proveniente de um pequeno povoado interiorano, informa que no seu povoado ninguém, absoluta- mente ninguém, ganha o salério de 70 soles por dis, ¢ por- 169 tanto, ninguém do seu povoado poderia comer esst ‘Churrasco de Pobre. (A sinceridade desse ator, que além disso estava di- zendo a verdade, comoveu todos que ¢stavam perto de sua mesa.) Finalmente, concluindo a cena, um outro ator propée: — “Companheiros, isso est4 dando a impressio de que nés estamos contra o gargom ¢ contra o maitre ¢ isso no tem sentido, isso no é verdade. Eles sio companheiros nossos, trabalham como nés, e no tém culpa se os pregos so altos. Proponho fazer uma coleta: nds quatro, desta mesa, vamos pedir que cada um contribua com o que pode, um sol, dois soles, cinco soles, com o que puderem. E com esse dinheiro, vamos pagar o churrasco. E sejam generosos, porque © di- nheiro que sobrar fica de gorjeta para o gargom, qué é nosso companheiro e € um trabalhador.” Ato continuo, os que estio com ele na mesma mesa s¢ levantam & comegam a coletar dinheiro para pagat a conta. Algumas pessoas dio um ou dois soles, outras comentam, rai- vosas: — “Ele disse que a comida que nés comemos aqui éuma porcaria, © a quer que a gente pague o Churrasco que ‘ele comeu. trees paces quem vai comer? Eu? Nio dou um tostio, para que aprenda, Que va lavar os pratos...” ‘A arrecadagiio quase chegou aos 100 soles, ¢ a discussio continuou durante toda a noite. & importante insistir que, nesta forma de teatro invisivel ‘os atores nio se podem revelar como tais: precisamente nisto reside o carater invisivel desta forma de teatro. E precisamente este cardter de invisibilidade far com que o espectador atue livremente, totalmente, como se estivesse vivendo uma situagdo real: afinal de contas, a situagdo é real! Deve-se insistir igualmente em que o teatro invisivel nfo é 0 mesmo que o happening ow o guerrilla-theatre: nestes, fica bem claro que s¢ trata de “teatro” e, portanto, surge imediata- mente o muro que separa atores de espectadores, ¢ estes so obviamente reduzidos & impoténcia: wm espectador é sempre menos do que um homem! No teatro invisivel, os rituais teatrais slo abolidos: existe apenas o teatro, sem as suas formas ve- 170 Ihas ¢ gastas. A energia teatral é completamente liberdade, ¢ 0 impacto que este teatro livre causa é muito mais violento ¢ duradouro, No Peru, fizeram-se espetéculos de teatro invisivel em distintos lugares, Wale a pena narrar brevemente o sucedido no Mercado del Carmen, no bairro de Comas, a uns 14 quild- metros do centro de Lima. Duas atrizes protagonizavam uma cena diante de um vendedor de verduras. Uma, que se fazia Passar por analfabeta, insistia em que o vendedor estava rou- bando nos pregos, aproveitando-se de que ela nio sabia ler; ‘@ outta refazia as contas que estavam corretas, ¢ aconselhava a primeira a entrar para um dos cursos de alfabetizagio de ALFIN. Depois de muita discussio sobre qual era a melhor idade para comegar a estudar, da qual participaram todas as pessoas préximas, feirantes e compradores, depois de discutir como ¢ com quem estudar, a primeira continuava insistindo em que era demasiado velha para essas coisas. Foi ai que uma velhinha, dessas que jd se apdiam em uma bengalinha, comentou indignada: — “Minha filha, isso nfo é verdade, Para aprender ¢ para fazer o amor, no ha idade!” E claro que todos os que presenciaram esta cena come- garam a rir da violéncia amorosa da velha dama, ¢ as duas atri- zes nio encontraram ambiente para continuar a cena. 3) Teatro-Fotonovela — Em muitos paises latino-america- nos existe uma verdadeira epidemia de fotonovelas, que se utilizam do mais baixo que se possa imaginar em matéria de subliteratura, além de servir sempre como vefculo da ideclo- gia das classes dominantes. O Teatro-Fotonavela objetiva a desmistificagdo da fotonovela e consiste em ler para os parti- cipantes, em linhas gerais, o texto de uma fotonovela, pedin- do-Ihes que representem a histéria que se vai contando. Os Participantes nfo devem saber aprioristicamente que se trata de fotonovela, Deve representar a histéria da maneira que Thes parega mais correta. Quando terminem, compara-se a his- ‘ria tal como foi representada com a versio original da foto- Rovela, ¢ se discutem as diferengas. 11 Por exemplo, conto uma histéria de Corin Tellado, talvez o mais horrivel autor deste gnero embrutecedor, E uma hist6- ria bastante imbecill, que comega assim: “Uma senhora esté esperando que o seu marido retorne A casa; esté em companhia de uma outra senhora que a ajuda nos trabalhos de casa.” Na favela, os participantes representavam essas indica~ gdes da mancira como estavam habituados, segundo seus cos- tumes: uma mulher que esté esperando o regresso do marido, naturalmente estard preparando o jantar; s¢ uma mulher a aju- da, naturalmente trata-se de uma vizinha que vem conversar ¢ bate-papo enquanto di uma miozinha; o marido volta can- sado depois de um intenso dia de trabalho; a “casa” € uma choga de uma sé habitacao, etc., etc. Em Corin Tellado, é tudo ao contrario: a mulher esté com um vestido de noite ¢ cola- res de pérolas, a mulher que a ajuda é uma empregada negra que nao diz mais que “sim, senhora", “pois nio, senhor: *g jantar esté servido, senhora”; “al vem o senhor, senhora™, a casa é um palicio cheio de m&rmores; 0 marido regressa de- pois de uma jornada de trabalho em “sua” fabrica, onde havia discutido com os operirios porque estes, “ndo compreenden- do a crise em que vivemos todos, queriam aumento de sald- rigs..." e por ai afora. Esta histéria, particularmente, era uma pore: via como excelente exemplo de penetragao ideolég' senhora recebia uma carta de uma desconhecida, ia visi descobria que se tratava de uma ex-amante de scu marido; a amante Ihe contava que o marido a havia abandonado porque se queria casar com a filha do dono da fabrica, ou seja, a jo- vem senhora. Num rompante, a “outra” exclamava: — “Sim, ele me traiu casando-se com vocé. Mas eu o perdéo porque, afinal de contas, ele sempre foi muito ambi- cioso ¢ sabia muito bem que comigo nfo podia subir demasia- do alto. Mas com vod, sim, pode.” Quer dizer: a ex-amante perdoava o tapaz porque ele possuia no mais alto grau a dnsia capitalista de tudo possuir! ‘A vontade de ser proprictirio de fabricas, de subir na vida a qualquer prego, esta apresentada como sendo algo tio nobre que até se perdoam algumas traigdes pelo caminho. 172 A jovem esposa nio deixa por menos: faz de conta que esté doente para obrigar o marido a ficar ao seu lado € para que, através dessa artimanha, finalmente se apaixone por ela. ‘Que ideologia! O mais putrefato happy-ending coroa esta his- téria de amor, E evidente que essa histéria, sem os didlogos de Corin Tellado, ¢ contada por gente do povo, toma caracteristicas completamente diferentes. Quando, no final da representagao, 9s participantes sfio informados da origem da histéria que aca- bam de representar, sofrem um choque. Por qué? Bem, se os participantes se péem a ler Corin Tellado sabendo de quem S¢ trata, imediatamente assumem o papel passivo de especta- dores. Mas se, ao contrdrio, eles mesmos tém que representar uma histéria cuja origem ignoram e, depois, Iéem a versio de Corin Tellado, j4 agora terfo uma atitude critica, comparativa, olhando a casa da jovem senhora e comparando-a com a sua propria choga, lendo as atitudes do marido e comparando-as com as suas préprias atitudes, etc.(Em resumo, estarao ja | preparados para detectar o veneno qué se infiltra através des- sas fotos, como também através de historietas cémicas, tele- | novelas e outras formas de dominagSo cultural e ideolégica,) | Tive uma grande alegria quando, meses depois de reali- zada a experiéncia com os alfabetizadores, de regresso a Lima, fui informado de que em varias favelas muitas pessoas estavam utilizando a mesma técnica para analisar as telenovelas, fonte inesgotavel de veneno contra o povo. Representavam eles mes- mos as histérias da TV ¢ depois comparavam as duas histérias, os dois elencos de personagens, os dois conteidos. Esta ¢ uma forma poderosa de desmistificagia dos meios massivos de co- municagio. 4) Quebra da Repressdo — As classes dominantes dominam as dominadas através da represso; os velhos dominam os jo- vens, através da repressiio; certas ragas a certas outras, o3 homens 4s mulheres, sempre através da repressdo. Evidente- mente nunca através do entendimento cordial, da honesta troca de idéias, da critica ¢ da autocritica. Nao. As classes dominan- tes, os velhos, as ragas “superiores”, o sexo masculino, pos- suem os seus quadros de valores ¢, pela forga, os impdem as 173 classes dominadas, aos jovens, as ragas que eles consideram inferiores, ¢ as mulheres. © capitalista nio pergunta ao operdrio se ele esté de acordo com que o capital seja de um e o trabalho de outro: simplesmente poe um policial armado a porta da fabrica © acabou o assunto. Fica decretada a propriedade privada. A raga, classe, sexo ou idade dominada sofrem a mais constante, diéria ¢ onipresente repressfio. A ideologia se torna concreta na pessoa do dominado. O proletariado € explorado- através da dominagSo que se exerce sobre todos os proletérios. A sociologia ¢ a politica se tommam psicologia, Nao existe a opressZo do sexo masculino “em geral” contra o sexo feminino “em geral”, Existe a opressao concreta de homens (individuos) contra mulheres (individuos). A técnica da quebra de repressio consiste em pedir a um participante que se recorde de algum momento em que se sen- ‘tia particularmente reprimido, ¢ em que accitou essa repres- siio, passando a agir de uma maneira contréria aos seus interes- 8¢3, OU aos seus desejos.| Esse momento tem que ter um pro- fundo significado pessoal; eu, proletério, sou oprimido! nés proletérios, estamos oprimidos! portanto, o proletariado é opri- mido! Deve-se partir do particular para o geral © nio vice- -versa; deve-se escolher alguma coisa que aconteceu a alguém particularmente, mas que, a0 mesmo tempo, seja tipico do que ‘acontece com todas as demais pessoas nas mesmas circuns- ‘tincias. A pessoa que conta a histéria escolhe entre os demais participantes todos 0s que intervirio na reconstrugio da cena. Em seguida, depois de receber as instrugSes dadas pelo pro- tagonista (0 que conta o fato), ¢ obedientes a essas instru- gSes, 0s participantes e o protagonista representam a cena tal como ocorreu na realidade, tentando recriar a mesma cena, as mesmas circunstincias ¢ as mesmas emogies originais. ‘Uma vez terminada a “reprodugéo” dos fatos aconteci- dos, pede-se que o protagonista repita a cena, mas desta vez sem aceitar a repressdo, lutando para impor sua vontade, suas idéias ¢ seus desejos. Os demais participantes sio instados a tentar manter a mesma repressio da primeira vez. O choque que se produz ajuda a medir a possibilidade que uma pessoa 174 4s vezes tem de resistir e nio resiste, ajuda a medic a ver- dadeira forca do inimigo. Igualmente permite ao Protagonista ter a oportunidade de tentar outra vez, ¢ de realizar, na fiegdo,. © que nfo pode realizar na realidade passada, preparando-se para, talvez, realizar na realidade futura. Jd vimos que estes processos nfio so catirticos: o fato de haver ensaiada tesistir 4 opressio preparard o protagonista para resistir efetivamente & repressiio futura, quando a mesma volte a se apresentar. Por outro lado, é necessdrio fazer com que se entenda sempre 0 cardter genérico do caso particular apresentado. Neste tipo de experiéncia teatral, é necessario sempre partir do par- ticular, mas & igualmente necessirio chegar sempre ao geral. Durante a prépria cena ou depois, durante o debate, deve-se realizar @ ascese desde o fendmeno até a lei. Desde os fend- menos que sfo apresentados ma trama até as leis sociais que fegem esses fendmenos. Os espectadores-participantes devem sair da experiéncia enriquecidos com o conhecimento dessas leis, obtido através da andlise dos fenémenos, 5) Teatro-Mito — Trata-se simplesmente de descobrir 0 ébvio atrés do mito: contar uma histéria (um mito conhecido) de uma forma légica, revelando as verdades, evidenciando as ver- dades escondidas. Numa localidade chamada Motupe existia um pequeno morro, com um caminho muito estreito através das drvores que o cobriam © do denso matagal que © cobria até o topo. No meio do caminho havia uma cruz: até ai se podia su- bir, porém ultrapassar a cruz era perigoso ¢ mesmo fatal, As poucas pessoas que o haviam tentado jamais retornaram. Exis~ tia na regidio o mito de certos fantasmas sanguindrios que ha- bitavam o topo da montanha, Mas também se conta a histé- ria de um jovem corajoso que subiu até o cimo, armado, e ali encontrou os “fantasmas", que nada mais eram do que ianques, Proprictérios de uma mina de ouro situada precisamente no topo daquele cerro. Conta-se também a histéria da lagoa de Cheken: antiga- mente (assim diz a lenda) af nfo havia agua e todos os cam- Poneses morriam de sede ¢ tinham que viajar quilémetros para conseguir um copo de dgua. Hoje existe uma lagoa que, antes 175 da Reforma Agraria, foi propriedade de um latifundista do lugar. Como surgiu essa lagoa, ¢ como se converteu em pro- priedade de um s6 homem? A lenda assim o explica: quando ainda nfo existia fgua, em um dia de intenso calor, quando todo 0 povo chorava pedindo aos céus que thes enviassem pelo menos um misero riachuelo, — ¢ os céus impiedosos nfo res- pondiam nem com um chuvisco — em um dia como esse, ou melhor, & meia-noite desse dia, surgiu no horizonte um se- nhor com um comprido poncho negro, montado em cavalo negro ¢ assim falou com o latifundista (que nessa época era ainda um pobre camponés, como todos os demais): — “Eu te dorei uma lagoa, mas tu me tens que dar o que de mais preciosa possuas!"* © pobre homem, muito aflito, gemeu: — “Eu nada tenho de meu, sou tio pobre e miserdvel. Aqui sofremos muito pela falta dagua, vivemos todos em mi- serdveis chocas, padecemos a fome mais cruel. De precioso naio temos nada, nem as nossas vidas, que tio pouco valem. E eu, particularmente, de precioso tenho minhas trés filhas, ¢ nada mais...” — “E das trés a mais bela é a maior! — assegurou o ¢s- tranho personagem vestido de negro, montado em negro cavalo. E te darci uma lagoa cheia da gua mais fresca de todo o Peru, mas em troca tu me dards tua filha, a maiorzinha, para que eu me case com ela...” O futuro latifundidrio pensou muito ¢ muito chorou, ¢ perguntou & sua aterrorizada filha mais velha que deviam fa- zer, se aceitar ou no tio insdélita proposta de casamento. A filha obediente assim se expressou: — “Se é para a salvagiio de todos e para que se. termine a sede e a fome de todos os camponeses, se é para que tenhas a lagoa com a 4gua mais fresca de todo o Peru, se é para que essa lagoa te pertenga a tie 86 a ti, © que faga a sua pros- peridade pessoal ¢ a tua riqueza, pois que poderds vender essa gua tio maravilhosa a todos os demais camponeses, que serio teus fregueses, pois para eles seri muito mais barato comprar @ Ggua aqui tio perto sem ter que viajar para tio longe, se & para que tudo isso acontega, vai dizer ao senhor de negro poncho, montade em negro cavalo, que vou com ele, embora 176 desconfie em meu corag%o da sua verdadeira identidade e dos lugares aonde me leva...” Dito ¢ feito: feliz ¢ contente (e também, é claro, com algumas lagrimazinhas) foi o bondoso pai contar tudo ao ho- mem de negro, enquanto a filha maior, antes de ir embora, ¢ para adiantar o trabalho, escrevia o prego do litro dégua em uns cart6ezinhos muito bonitinhos. O senhor de negro desnu- dou a jovem, pois que nada queria levar dessa casa mais do que a jovem em si, ¢ montou com ela, em seu cavalo, que partiu a galope em diregio a um vale. Quviu-se entio uma ‘enorme explosio, € apareceram chamas ¢ fumaga no lugar por onde iam cavalo e cavaleiro, que desapareceram no mes- mo instante, juntamente com a jovem desnudada! Produziu-se no solo um buracSo enorme e, enquanto a fumaga se dissipava, come¢ou ai a brotar uma fonte que formou a lagoa de Cheken, | ade agua mais fresea de todo o Peru. ~~ Este mito esconde por certo uma verdade: o latifundista s¢ apropriou daquilo que nao lhe pertencia. Se antes os nobres atribuiam a Deus (nada menos!) a outorga de suas proprie- dades e direitos, ainda hoje s¢ usam explicagdes nfio menos mé- gicas. Neste caso, a propriedade da lagoa era explicada pela perda da filha mais velha, que era o que de mais precioso pos- sufa o Jatifundista: houve, portanto, uma transacio! E para que todos se lembrassem disso muito bem, dizia a lenda que, em noite de lua cheia, podiam-se ouvir os cinticos da jovem desnuda no fundo da lagoa, chorando de saudade de seu pai e de suas irmis, penteando seus longos cabelos com um pente de our... H na verdade, para aquele latifundidrio, aquela la- goa era de ouro... 6) Teatro-Julgamento — Um dos participantes conta uma histéria © em seguida os atores improvisam. Depois se decom- poe cada personagem em todos os seus papéis soci e que os participantes escolham um objeto fisico, cenografico, Para simbolizar cada papel. Por exemplo: um policial matou um ladrfo de galinhas. E o policial pade ser assim decompostot a) € um operario, porque aluga sua forga de trabalho; simbolo: um macacio; 177 'b) é burgués, porque defende a propriedade privada & a valoriza mais do que a propria vida humana; sim- bolo: uma gravata, um chapéu, etc. c) é repressor, porque € policial; simbolo: um revdlver. E assim sucessivamente até que os participantes tenham analisado todos os seus papéis possivels: de familia (sim- bolo: a carteira de dinheiro?, ou uma cadeira maior do que as outras?), companheiro de uma sociedade de amigos de bair- ro, etc, B importante que os simbolos sejam escolhidos pelos participantes presentes ¢ que nlio venham “de cima”. Para determinada comunidade, a carteira de dinheiro pode ser o simbolo de um pai de familia, por ser a pessoa que controla ‘as finangas da casa e que, através disso, controla a familia. Para outra comunidade, pode este simbolo niio simbolizar nada, isto é, pode ser que nao seja simbolo. Depois de decomposto © personagem, ou Os personagens (4 conveniente que esta operagio se.faga apenas com 0 perso- nagem ou com os personagens centrais, para maior simplici- dade ¢ eficdcia), tenta-se contar outra ver a mesma histéria, wma agora retirando-se alguns simbolos a cada personagem, ¢ conseqlientemente alguns papéis sociais. Seria a histéria exatamente a mesma se: 1 — 0 policial nio tivesse a gravata (ou chapéu)?; 2 — se o ladrfo tivesse uma gravata (ou chapéu)?; 3 — se o ladrao tivesse um revdlver?; 4 — se © policial e o ladrio tivessem ambos o simbo- lo de uma sociedade de amigos do bairro? Pede-se aos participantes que fagam combinagSes, propos- tas que devem depois ser ensaiadas pelos alores ¢ criticadas por todos os presentes. Assim se poderd perceber, graficamen- te, que as ages humanas nio sio fruto exclusivo nem primor- dial da psicologia individual: quase sempre, através do indi- viduo, fala a sua classe! - 7) Rituais e Mdscaras — As relagdes de produgio (i ~tstrutura) determinam a cultura de uma sociedade toene. trutura). As vezes, modifica-se a infra-estrutura, mas a super- estrutura permanece, por algum tempo, a mesma. No Brasil, os latifundidrios nfo permitiam que os camponeses olhassem. para eles cara a cara, olho no olho, porque isso seria consi- derado falta de respeito. Os camponeses se haviam acostuma- do a falar com os senhores da terra com os olhos pregados no chio: “Sim senhor, sim senhor, sim senhor!” Quando (evi- dentemente antes de 1964) o governo decretou a Reforma Agriria, os funcionérios governamentais iam a0 campo comu- nicar aos camponeses a nova lei, segundo a qual sc poderiam converter em proprictirios da terra que cultivavam, os cam- poneses, olhando o chio, murmuravam: “Sim companheiro, sim companhciro, sim companheiro... A cultura feudal estava to- talmente impregnada em suas vidas... As relagdes do campo- nés com o latifundidrio ¢ com o companheiro do Instituto de Reforma Agraria eram completamente diferentes, porém o ri- tual continuava o mesmo, A razAo talvez resida no fato de que, nos dois casos, 0 camponés era o espectador passivo: no primei- ro caso lhe tiravam a terra, no segundo lhe outorgavam. Cer- tamente nio aconteceu o mesmo em Cuba: ai os camponeses foram protagonistas da reforma agriria! Esta particular técnica de teatro popular (Rituais ¢ Mas- caras) consiste precisamente em/Tevelar as superestruturas, o3 rituais que coisificam todas as relagées humanas, ¢ as méscaras de comportamento social que rituais impSem sobre cada pessoa, ‘segundo os papéis que ela desempenha na sociedade ¢ os rituais que deve representar. Um exemplo muito simples: um homem vai ao confessor confessar seus pecados. Como o fara? Claro que se ajoclha, confessa seus pecados, ouve a peniténcia, faz o sinal da cruz vai embora. Mas todos os homens s¢ confessardio sempre da mesma maneira diante de todos os padres? Quem ¢ o homem quem é o padre? Isto importa muito. Neste caso sio necessirios atores versiteis para represen- tar 4 vezes. a mesma cena da confisso: 179 1 — 0 padre o fiel so latifundidrios; 2 — o padre é latifundifrio ¢ o fiel é camponés; 3 —o padre é camponés ¢ o fiel é latifundidrio; 4 — 0 padre e 0 fiel sic camponeses. O ritual é aqui sempre o mesmo, porém as méscaras so- ciais so diferentes ¢ farfio com que as quatro cenas sejam Jgualmente diferentes. Esta técnica € extraordinariamente rica e possui intimeras variantes: o mesmo ritual mudando de mdscaras, o mesmo twal feito por pessoas de uma classe social ¢ depois de outra; intercimbio de mascaras dentro do mesmo ritual, etc., etc., etc. CancLusio: “ESPECTADOR”, QUE PALAVRA FEA! Sim, esta é, sem divida, a conclusio: Espectador, que pa- lavra feia! O espectador, ser passive, € menos que um homem necessdrio re-humanizé-lo, restituir-Ihe sua capacidade de agio em toda sua plenitude, Ele deve ser também o sujeito, um ator, em igualdade de condigdes com os atores, que deve. por sua vez ser também espectadores. Todas estas experiéncias de teatro popular perseguem © mesmo objetivo: libertagiio do espectador, sobre quem © teatro se habituou a impor visbes acabadas do mundo. E considerando que quem faz teatro, em geral, sio pessoas direta ou indiretamente ligadas 4s classes do- ‘minantes, & légico que ¢ssas imagens acabadas sejam as ima- gens da classe dominante. O espectador do teatro popular (0 povo) nao pode continuar sendo vitima passiva dessas imagens. Como vimos no primeiro ensaio deste livro, a poftica de Aristételes 6 a Poética da Opressia: o mundo ¢ dado como ‘conhecido, perfeito ou a caminho da perfeigio, ¢ todos os seus valores sio impostos aos espectadores. Estes passivamente de- legam poderes aos personagens para que atucm ¢ pensem em seu lugar. Ao fazé-lo, os espectadores se purificam de sua falha 180 trigica — isto é, de algo capaz de transformar a sociedade, Produz-se a catarse do impeto revoluciondrio! A agéo dramdti. ca substitu’ a ag@o real. A poética de Brecht é a Poética da Conscientizagio: o mundo se revela transformdvel e a transformagao comega no teatro mesmo, pois o espectador ja nio delega poderes ao per- sonagem para que pense em seu lugar, embora continue dele- gando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiéncia € reveladora ao nivel da consciéncia, mas nao globalmente ao nivel da ago. A acdo dramdtica esclarece a acdo real. O espe- ticulo é uma preparagio para a acao. A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberagaio: a espectador j4 nfo delega poderes aos persona- “gens nem para que pensem nem para que atuem em seu lugar. Oo es se libera: pensa ¢ age por si mesmo! Teatro é ~ Pode ser que o teatro nao seja revolucionario em si mes- mo, mas no tenham dividas: é um ensaio da revolugdo! Buenos Aires, dezembro de 1973 Quapro pe Diversas Lincuacens COMUNICAGAG = CONSTATACAO TRANFORMAGAO DA REALIDADE DA REALIDADE DA REALIDADE Linguagem Léxica (vocabuldrio) axe Idioma Palavras Oragdo (sujecito, ob- jeto, predicado ver- bal, ete.) Misica Instrumentos musicais, Frase musical, me- e seus sons (timbre, lodia e ritmo tonalidade, etc.) notas Pintura Cores ¢ formas Cada estilo possui sua propria sintaxe Cinema Imagem (secundaria- Montagem: corte, mente, a misica ¢ a fusio, superposicio, palavra) faden-in, fade-out, travelling, etc. ‘TEATRO SOMA DE TODAS AS ACKO DRAMATICA ‘LINGUAGENS Poss[VEIS: palavras, cores, formas, movimentos, sons, ttc. 183 B — O sistema “coringa” 1 - Etapas do Teatro de Arena de Sio Paulo INTRODUGO © swt desejou publicar uma espécie de inventdrio do tea- tro brasileiro nestes iltimos quinze anos. Geralmente, os inven- trios sfio publicados depois da morte definitiva do falecente. Neste caso, publica-se com pequena antecedéncia: o teatro, 10 Brasil, vive seus momentos agénicos. Para este panegirico polifénico muitos artistas foram con- vidados, O que dissemos em nossa declaragdo, pretendemos ‘Neste artigo resumir. Deve-se notar que falamos sempre segun- do a perspectiva muito especial do Teatro de Arena — isto no por hipertrofia da participagdo deste ¢lenco no teatro pau- lista, mas sim por terem sido estes os limites impostos a este depoimento. Pensando no Teatro em Sao Paulo, devemos constatar que, em verdade, A classe teatral no cabe nenhuma culpa desta mor- te juvenil. Nio foram os elencos que subitamente passaram a 185 apresentar espetdculos inadequados as suas platéias. A presente morte niio vem para “certas tendéncias” ou “certas correntes”: é morte total, genérica. De quem a culpa, se ha culpados? Este inventdrio 36 tera sentido se procurar descobri-los, j4 que se destina, creio, a encontrar solugdes possiveis ¢ imediatas, ¢ ndo é contempla- ¢Jo nirvinica do sucedido. Devemos isar as causas do atual malogro, para melhor vislumbrar as vias de fuga ao desastre, utilizando esta série de artigos como entendimento do passado ¢ organizagao do futuro. Um inglés, certa vez, pretendeu habituar seu cavalo a vi- ver em condigdes perfeitamente normais, porém sem alimenta- go. Para isso, dava-lhe cada vez menos comida até que um dia o eqiiino, j& quase acostumado A inanigSa, inesperadamente morreu. © inglés pés-se a procurar profundas causas ciolégicas lage explicar © passamento. Veio um profeta ¢ disse: “morreu de fome”. Esta histéria esopiana nfo pretende afirmar que o teatro seja eqiiestre ¢ a plat ia, capim; mas, sem platéia, os artistas nio comem, por mais istas que sejam. E, portanto, o feijao com arroz nossos de cada dia devem ser Procurados alhu- res na TV ou em outras profissies. Os artistas debandam, como conseqiléncia mecinica da debandada do pablico. E por que debanda 0 publico? Tempos atrés, o dinheiro ¢ a inflagio apostavam corrida. Hoje, o dinheiro parou de crescer ¢ a inflagdo 36 acabou para quem tem mordomo e lio vai & feira. A em geral, constitui-se de gente sem mordomia. Por isso, a caréncia de dinheiro elimina do ocpamento doméstico todas as atividades familiares dispens4veis ou substituiveis: quem niio tem clo caga com gato, quem nio vai ao teatro vé televisiio do vizinho. © sucesso de uma pera, alé 1964 mais ou menos, promo- via o sucesso de outras: a platéia ficava com um foce, queria mais, Floje; os poucos espectadares fansticos Temanescentes sio disputados 4 faca pelas poucas com- panhias remanescentes ¢ fandticas. O espectador que vai uma vez ao teatro pratica, assim, sua boa agio de cada ano ¢ dificilmente volta a repetir a experiéncia onerosa. 186, O que esté acontecendo com o teatro brasileiro no mo mento, nfo difere do que acontece com os demais setores da atividade nacional. E, da mesma forma que as faléncias ¢ con- cordatas de tantas indiistrias e comércios nao se explicam pela de do produto que fabricavam ou vendiam, também a ia teatral nfo se explica pelo valor ou caracteristicas esté- ticas das pegas apresentadas, Bons ou maus produtos, indus- triais ou estéticos, encontravam antes compradores que hoje ji nao compram. Falta dinheiro no bolso da Platéia, como falta capim no estémago do cavalo: ambos emagrecem. E, apoiando a teoria do inglés da fabula, todos os Servigos ¢ Comissdes de Teatro (em qualquer nivel: federal, estadual ¢ municipal) orientam- -se pelo pensamento falaz de que as companhias de teatro po- dem-se habituar a quaisquer condigdes & minguam também suas ragGes. ‘De um lado, o teatro perde seu publico; de outro, perde © apoio econémico que poderia promaver o barateamento dos ingressos, facilitando o retorno das platéias, Os sintomas da crise hi muito vém sendo notados; a evi- déncia da morte, no fim de 1966, em Sio Paulo, foi dada pelos amincios em jornais: apenas uma Pega em cartaz, O Farddo, €m temporada popular, pela metade do Prego; ¢ 0 piblico, ain- da assim, nio comparecia. Se a carreira desta pega fosse inter- rompida, sairia de cartaz o teatro paulista. Dado o malogro do teatro no ter raizes estéticas ea Perdurarem as atuais causas econémicas, restar-lhe-i tiio-somen- te o retomo re merry © aos teatros-intimos, como as si- las restaré voltar as forjas domésticas, os cartos 208 co- ae © poder a Pombal. 7 © TEATRO DE ARENA DE Sio PAULO Os clencos nacionais, independentemente da qualidade de Seus espetdiculos, dividem-se em clssicos e revoluciondrios. ‘Si classicos no os que montam obras classicas, mas os que pro- Curam desenvolver ¢ cristalizar um mesmo estilo através de seus Varios espetéculos.| Neste sentido, o senhor Oscar Ornstein se~ 187 ria um produtor “clissico”, j4 que seus espetéculos procuram aperfeigoar sempre a novela radiofénica em termos vagamente teatrais. “Cldssico” foi o TBC dos dureas tempos: muita gente ainda sofre de saudades da elegincia de todos as seus espe- téculos: Ralé e Antigona, Goldoni ¢ Pirandello, cram formo- sos, A formosura era a suprema meta classica daquelas neves de antanho. Classico, portanto, é qualquer elenco que se desen- volva ¢ se mantenha dentro dos limites de qualquer estilo, lou- ‘vvel ou pecaminoso. Assim, o “teatro de eaminhio” dos varios Centros Populares de Cultura mantinha-se numa linha clis- sica, J4 o Teatro de Arena de Sio Paulo clabora a outra ten- déncia, a do teatro revolucionfrio — ¢ eu estou sempre falan- do no bom sentido. © seu desenvolvimento € feito por etapas que nifio se cristalizam nunca_e qué sé sucedem no tempo, co- ordenada ¢ necessariamente. A coordenagio é artistica e a ne- cessidade social. ‘PRIMEIRA ETAPA! Niko Era Possive. Contmuar AssiM Em 1956, o Arena iniciou sua fase “realista”. Entre outras caracteristcias que trazia, esta etapa significou um “ndo” res- pondido ao teatro que se praticava. Qual? Ainda nesse ano, o panorama paulista cra dominado pela estética do (TBC). teatro fundado — ¢ quem o disse foi seu fundador — entre dois copos de whisky, para orgulho da “ci- dade que mais cresce”. Feito por quem de dinheiro para quem também o tivesse. Luxo indiscriminado cobrindo Gorky ¢ Gol- doni. Teatro para mostrar ao mundo: “aqui também se faz 0 bom teatro europeu. On parle frangais. “Somos Provincia dis- tante, mas temos alma de Velho Mundo”. Era a nostalgia de estar distante, mas alegria de fazer qua- se igual. O Arena descobriu que estévamos longe dos “gran- des centros” mas perto de nés mesmos — ¢ quis fazer um tea- tro que estivesse perto. 183 Perto de onde? De sua platéia. Quem era? Bem, aqui vem outra histéria, Quando surgiu o Tac, em nossos palcos estavam os divas, atores-empresdrios, que em si centralizavam todo o espetdculo, majestosamente Pisando num pedestal de supporting-casts @ “N. N.". As platéias eram impedidas de ver Os personagens, j4 que as estrelas se mostravam, Prioritaria- mente, idénticas a si mesmas, em qualquer texto, Eram Poucas as estrelas ¢ jé tinham todas sido vistas. A platéia fartou-se e abandonou-as. Com isto rompeu o TBC. Teatro de equipe: conceito novo. A platéia voltou para ver ¢ misturou-se aos freqiientadores de esiréias. Se estes eram a elite financeira de Sio Paulo, aquela era a classe média. A principio, este conibio foi feliz. Mas a incompatibilidade de génios das duas platéias cedo ia mos- A primeira etapa do Arena veio responder ds necessidades desta ruptura, ¢veio satisfazer a classe média. Esta, fartou-se das encenagdes abstratas e belas ¢, & impecdvel dicgo britani- ca, preferiu que os atores, sendo pagos, fossem gagos; sendo brasileitas, falassem portugués, misturando tu e voce. ‘Arena devia responder com pecas nacionais ¢ interpre- tages brasileiras. Porém, pegas nfo havia.|Os poucos autores nacionais de entio preocupavam-se especialmente com mitos gregos. Nelson Rodrigues chegou a ser ovacionado com a se- guinte frase, que consta da orelha de um dos seus livros: “Nel- son cria, pela primeira vez no Brasil, o drama que reflete o verdadeiro sentimento trdgico grego da existéncia”. Estavamos interessados em combater o italianismo do TBC, mas ndo ao Prego de nos helenizarmos, Portanto, s6 nos restava utilizar textos modernos realistas, ainda que de autores estrangeiros. O realismo tinha, entre outras vantagens, a de ser mais ficil de realizar. Se antes usava-se como padrfo de exceléncia a imitagio quase perfeita de Guielgud, passdvamos a usar a imitagio da realidade visivel e préxima. A interpretagia seria tao melhor na medida em que os atores fossem eles mesmos ¢ no atores. Fundou-se no Arena o Laboratério de Interpretagao. Sta- nislawsky foi estudado em cada palavra e praticado desde as nave da manh& até a hora de entrar em cena. Gianfrancesco 189 Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Flavio Migliaccio, Milton Gongalves & Nelson Xavier — sio alguns dos atores que fun- damentaram esse period. As pegas selecionadas nessa época foram, entre outras: Ratos ¢ Homens de John Steinbeck, Juno e o Pavado de Sean O'Casey, They Knew What They Wanted de Sidney Howard, e outras que, embora vindo mais tarde, pertencem estetica- mente a esta etapa, como Os Fuzis da Senhora Carrar de Ber- tolt Brecht, este dirigido pot José Renato. O palco tradicional ¢ a forma em arena divergem ¢m suas adequag6es. Podia-se pensar, inclusive, que fosse o palco a forma mais indicada para o teatro naturalista, ja que a arena revela sempre o cardter “teatral” de qualquer espetaculo: pla- téia diante de platéia, com atores no meio, ¢ todos os meca- nismos de teatro sem véus ¢ visiveis: refletores, entradas ¢ sai- das, rudimentos de cendrios, Surpreendentemente, a arena mos- trou ser a melhor forma para o teatro-realidade, pois permite usar a técnica de close-up: todos os espectadores esto proximos de todos os atores; o café servido em cena é cheirado pela © macarriio comido é visto em processo de degluti- fo; a lagrima “furtiva” expde seu segredo. .. © palco italiano, ao contrario, usa preferentemente o long-short, ‘Quanto 4 imagem, Guarnieri, num dos seus artigos, obser- vou a evolugio do cenério em Arena, segundo seus trés mo- mentos, Primeiro: a forma envergonhada procurava fazer-se passar por palco convencional, mostrando estruturas de portas eé janelas. Como imagem, arena era apenas um paleo pobre. Segundo: a arena toma consciéncia de ser forma auténoma ¢ elege 0 despojamento absoluta — algumas palhas no chido dio idéia de celeiro, um tijolo é uma parede, e o espetdculo se concentra na interpretagio do ator, Terceiro: do despoja- mento nasce a cenografia prépria dessa forma — o melhor exemplo foi o cendria de Flavio Império para O Fitho do Cao. Quanto A interpretagio, o ator reunia em si a caréncia de fendmeno teatral, era o demiurgo do teatro — nada sem ele se fazia € tudo a ele se resumia. Porém, s¢ antes 05 nossos caipiras cram afrancesados pe- los atores luxuosos, agora, os revoluciondrios irlandeses eram gente do Brés. A interpretagao mais brasileira era dada aos 190 atores mais Steinbeck ¢ O'Casey. Continuava a dicotomia, ago- ra invertida. Tornou-se necessiria a criagao de uma dramaturgia que criasse personagens bri rOS para os nossos atores. Fun- dou-se o Semindrio de Dramaturgia de Sio Paulo. No principio era a descrenga: como seriam transformadas em autores jovens de pouca idade, quase experiéncia de vida ou de palco? Juntaram-se doze, estudaram, discutiram, escreveram. E péde-se iniciar a segunda etapa. ‘SEGUNDA ETAPA: A FOTOGRAFIA Em fevereiro de 1958, comegou. Eles ndo usam Black- tie, de Gianfrancesco Guarnieri foi a primeira, e ficou todo o ano em cartaz até 59. Pela primeira vez, em nosso teatro, o drama urbano ¢ proletario. Durante quatro anos (até 1962) muitos estreantes foram langados: Oduvaldo Vianna Filho (Chapetuba F. C.), Rober- to Freire (Gente como a Gente), Edy Lima (A Farsa da Esposa Perfeita), Augusto Boal (Revolugiio na América do Sul), Flavio Migliaccio (Pintado de Alegre), Francisco de Assis (O Testamento do Cangaceiro), Benedito Ruy Barbosa (Fe Frio) © outros. Foi um longo perfodo em que o Arena fechou suas portas fr aturgia estrangeira, independentemente de sua excelén- | cia, abrindo-as a quem quisesse falar do Brasil as platéias bra- \Lsileiras, Esta etapa coincidiu com o nacionalismo politico, com o florescimento do parque industrial de Sao Paulo, com a criagio de Brasilia, com a euforia da valorizagio de tudo nacional. (*) As pegas tratavam do que fosse brasileiro: suborno no futebol intetiarano, greve contra os capitalistas, adultério em Bagé, vida subumana dos empregados em ferrovias, cangago no Nordeste ¢ a conseqiiente aparigio de Virgens e Diabos, ete. * Na mesma época nasceram a Bossa Nova ¢ 0 Cinema Novo. 191 © estilo pouco variava ¢ pouco fugia do fotogrifico, se- guindo demasiado de perto as pegadas do primeiro éxito da série, Eram as singularidades da vida o principal tema des- te ciclo dramatdrgico. E esta foi a sua principal limitagio: a platéia via o que jf conhecia. Ver o vizinho no palco, ver 0 homem da rua, ofereceu de inicio grande prazer. Depois, todos pereeberam que podiam vé-los fora do palco sem pagar entrada. A interpretagio, nesta fase, continuou o caminho j4 tri- Ihado antes, continuou Stanislawsky. Porém, antes, a énfase interpretativa era dada a “sentir emogGes", agora, as emogdes foram dialetizadas e a énfase passou a ser posta no “fluir de emogies”. Se se permite a metéfora m4o-tsé-tunguiana, no mais “lagos, mas sim rios emocionais”... Aplicaram-se leis da Dia- Ktica: © conflito de vontades opostas desenvolve-se quantitati- va ¢ qualitativamente, dentro de uma estrutura conflitual inter- dependente. Assim, Stanislawsky foi pasto dentro de um sis- tema. Apesar da resisténcia do diretor russo em aceitar “siste- mas”, todas as suas teorias cabiam perfcitamente dentro deste. ‘A chegada de Flavio Império, que passou a integrar a equi- pe, trouxe, pela primeira vez, a cenografia ao Arena. Esta fase necessariamente deveria ser superada. Suas van- tagens foram imensas: os autores nacionais deixaram de ser considerados “veneno de bilheteria", jd que quase todos obti- veram imenso éxito; entusiasmados pela existéncia de um tea- tro que s6 apresentava autores nacionais, muitos aspirantes con- verteram-se em dramaturgos, contribuindo com suas obras para a formagio de um teatro mais brasileiro ¢ menos mimético. Porém, a desvantagem principal consistia em reiterar 0 Sbvio. Queriamos um teatro mais “universal” que, sem deixar de ser brasileiro, nfo se reduzisse as aparéncias. OQ novo cami- nho comegou em 63. TERCEIRA ETAPA! NaciONALIZAGKO Dos CLAssicos: Escolhemos A Mandrdgora, de Maquiavel, em. tradugdio de Mario da Silva. Maquiavel foi o primeiro idedlogo da bur 192 guesia entdo nascente; nossa produgio inseria-se no século da sua decadéncia. E 0 ideélogo deste ultimo alento é Dale Carnegie. De fato, a maxima de cada um desses pensadores sio idénticas, em- bora opostas por quatro séculas de Histéria. O self-made-man do decadente ¢ o mesmo “homem de virti" do florentino. A Mandrdgora, em nossa versio, foi feita nio como pega académica, mas como esquema politico ainda hoje utilizado para a tomada do poder. O poder, na fibula, era simbolizado por Lucrécia, a jovem esposa guardada a sete chaves, mas mes- mo assim acessivel a quem a queira ¢ por ela lute — sempre que sc lute tendo em vista o fim que se deseja e nfo a moral dos meios que se usam. Depois da Mandrdgora, outros classicos vieram, alguns fora O Novico de Martins Penna, O Melhor Juiz, o Rei, ¢ Vega, O Tartujo de Molitre, O Inspetor Geral de A “nacionalizacdio” era feita diversamente, dependendo dos objetivos sociais do momento. Assim, por exemplo, O Me- thor Juiz, o Rei sofreu alteragdes profundas no texto do ter- ° ceiro ato, a ponto de fazer com que a autoria se atribulsse mais aos adaptadores do que ao autor. Lope escreveu quando a evo- lugio da Histéria exigia a unificagio das nagGes, sob o do- minio de um Rei. A obra exalta o individuo justo, que em suas milos retine todos os poderes, caridoso, bom, impoluto. Exalta o carisma, Se, para sua época, sua fibula se adequava, para a nossa e para o Brasil corria o grave risco de se trans- formar em texto reaciondi Por isso, tornou-se necessirio alterar a propria estrutura para devolver ao texto, séculos de- pois, sua idéia original. Por outro lado, Tariufo foi encenada sem que se lhe alterasse um alexandrino. Na época em que o texto foi mon- tado, a hipocrisia religiosa era profusamente utilizada pelos tar- tufos conterraneos, que, em nome de Deus, da Patria, da Fa- milia, da Moral, da Liberdade, etc., marchavam pelas ruas ¢xi- gindo castigos divinos e militares para os impios. Tartufo pro- fundamente desmascara esse mecanismo que comsiste em trans- formar Deus em parceiro de luta, ao invés de manté-lo ma posi- go que The compete de Juiz Final. Nada era preciso acrescen- 193 tar ou subtrait ao texto original, nem mesmo considerando qué réprio Moliére, para evitar censuras tartufescas, tivesse sido rigado a fazer, ao final, imenso clogio ao governo; bastava aio texto em toda a sua simplicidade para que a platéia se pusesse a rit: a obra estava nacionalizada. Esta etapa oferecia, de inicio, alguns problemas impor- tantes, entre eles o de estilo, Muita gente acreditava que a mon- tagem de pegas classicas seria um retormo ao TBC, ¢ assim nfo se dava conta do alcance, bem mais distante, do novo pro- jeto. Quando montévamos Molitre, Lope ou Maquiavel, nunca o estilo vigente desses autores era proposto como meta de chegada. Para que se pudesse radicar no nosso tempo e lugar, tratavam-se esses textos como se no estivessem radicados a tradigio de nenhum teatro de nenhum pais, Fazendo Lope nfio pensévamos em Alejandro Ulloa, nem pensdvamos nos elen- cos franceses, fazendo Moliére. Pensivamos naqueles a quem nos querfamos dirigir, ¢ pensdvamos nas inter-relagdes humanas © sociais dos personagens, validas em outras Epocas @ na nossa. Claro que chegivamos sempre a um “estilo” — porém nunca aprioristicamente. Isto nos dava a responsabilidade de artistas criadores ¢ nos retirava os limites da macaqueagio. Quem prefere o it conhecido, o j4 avalizado pela critica dos grandes centros, que ndo podia gostar — ¢ muitos assim reagiram. A an entretanto, sentiu-se fascinada pela aventura de aan que um clissico sé é universal ni . Nio existe o “clissico universal” que 560 Old Vic ou a "Comedie podem reproduzir, Nés tam- bem somos universo. Ainda no terreno interpretative, outra énfase foi deslocada. Cada vez mais passou ao primeiro plano a interpretagSo social. Os atores passaram a construir seus personagens a partir de suas relagdes com os demais, e nao a partir de uma discutivel esséncia. Isto é, os personagens passaram a ser criados de fora para dentro, Percebemos que o personagem é uma redugio do ator, ¢ ndo uma figura que paira distante e flutua até ser alcan- gada por um instante de inspiragdo. Mas redugado de que ator? Cada ser humano forma seu proprio personagem na vida real: ri da sua maneira propria, anda, fala, cria vicios de linguagem, de pensamento, de emogdes: o enrijecimento de cada ser hu- 194 mano € 0 personagem que cada um cria para si mesmo, Porém, cada um é capaz de ver, sentir, pensar, ouvir, emocionar-se mais do que o faz no ‘a-dia. Uma vez libertado o ator de suas mecanizagdes cotidianas, estendidos os limites de sua per- cepgfo ¢ expresso, este ator, assim liberto, reduz suas passi- bilidades Aquelas exigidas pelas inter-relagdes nas quais desen- volve seu personagem. Uma vez desenvolvida esta etapa, verificou-se sem grande esforgo que, se a anterior restringia-se além do desejdvel na exaustiva andlise de singularidades, esta reduzia-se demasiado & sintese de universalidades. Uma apresentava a existéncia nao conceituada; outra, conceitos etéreas, Era necessfrio tentar a sintese. QUARTA ETAPA: Musicals O Arena tem uma vasta produgao de musicais. Desde que iniciou, iis segundas-feiras, apresentagdes de cantores e instru- mentistas, reunindo espetdculos sob a denominagio genérica “Bossarena", com produgio de Moracy do Val e Solano Ribei- ro, até algumas experiéncias feitas por Paulo José, como Hi torinha ¢ Cruzada das Criangas; desde a co-ptodugao reali- zada com o Grupo Opinidio, do Rio de Janeiro, do musical Opi- nido, do qual participaram Nara Leo, Maria Bethania, Zé Keti e¢ Jodo do Vale, até o one-man-show A Criagdo da Mundo Segundo Ari Toledo, passando por Um Americano em Brasilia de Nelson Lins de Bartos, Francisco de Assis ¢ Carlos Lyra, Arena Conta Bahia, com Gilberto Gil, Caetano Veloso Gal Costa, Tomzé ¢ Piri, Tempo de Guerra com Maria Bethania. Muitos outros foram feitos de cardter mais episédico e circuns- tancial. De todos, o que me parece mais importante, pelo me- nos na seqiiéncia desta argumentagio, é Arena Conta Zunbi, de Guarnieri ¢ Boal, com musica de Edu Lobo. Zumbi propunha-se a muito ¢ o conseguiu bastante. Sua Proposta fundamental foi a destruigho de todas as convengdes 195 teatrais que se vinham const volvimento estética do teatro, Procurava-se mais: contar uma histéria nfo da perspecti- va césmica, mas sim de uma perspectiva terrena bem localiza- da no tempo ¢ no espago: a perspectiva do Teatro de Arena, e de scus integrantes. A hisiéria no era narrada como se exis- tisse autonomamente: existia apenas referida a quem a con- tava. Zumbi era pega de adverténcia contra todos os males pre- sentes e alguns futuros. E, dado o cardter jornalistico do texto, requeria-se conotagdes que deveriam ser, e foram, oferecidas pela platéia. Em pegas que exigem conotagao, o texto é arma- do de tal forma a estimular respostas prontas nos espectadores. Essa armagio ¢ esse cardter determinam a simplificagio de toda a estrutura. Moralmente o texto torna-se maniqueista, 0 que pertence A melhor tradigio do teatro sacro-medieval, por exemplo. E da mesma forma ¢ pelos mesmos motivos porque ‘a teatro sacro da Idade Média requeria todos os mcios espeta- culares disponiveis, também, no caso de Zumbi, o texto dever ser amparado pela miisica, que, nesta peca, tinha como missio principal preparar Iudicamente a platéia a receber as razGes contadas. Zumbi destruiu convengies, destruiu todas que pode. Des- truiu inclusive o que deve ser recuperado: a empatia. Nio po- dendo jdentificar-se a nenhum personagem em nenhum mo- mento, a platéia muitas vezes se colocava como observadora fria dos feitos mostrados. E a empatia deve ser reconquistada. Isto, porém, dentro de um novo sistema que a enquadre ¢ a faga desempenhar a fungio que lhe seja atribuida. (ConeLusio Este é o caminho que vinha o Arena percorrendo e que percorre. Cada uma de suas etapas sempre ligadas ao desenvol- vimento social do Brasil. Quando a fase nacionalista do tea- tro foi sucedida pela nacionalizagao dos classicos, o teatro che- Bou povo, indo buscd-lo nas ruas, nas conchas acisticas, 196 nos adros de Igrejas, no Nordeste ¢ na periferia de Sio Paulo. Estes espetdculos, festas populares, eram gratuitos; mas o artis- ta € um profissional. Conseguia-se apoio econdmico que tor- nava o desenvolvimento possivel. J4 nao se consegue. A pla- téia foi golpeada. Que pode agora acontecer? O unico cami- nho que parece agora aberta é o da elitizagio do teatro. E este deve ser recusado, sob pena de transformarem-se os artistas em bobos de corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo a sua inspiragdo ¢ 0 seu destino. © beco nao parece ter saida. A quem interessa teatro seja popular? Descontando-se o povo ¢ alguns artistas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder. Vindo o que vier, neste momento de morte clinica do teatro, muitos so os responsiveis: devemos todos analisar nossas agbes ¢ omissdes. Que cada um diga o que fez, a que veio ¢ porque ficou. E que cada um tenha a coragem de, nao sabendo porque per- manece, retirar-se. 197 II - A necessidade do “coringa” MONTAGEM dé Arena Conta Zumbi foi, talvez, o maior JA esto artisico # de piblico logrado pelo Teatro de Are- na até hoje. De pdblico, por seu carater polémico, por sua proposta de rediscutir um importante episédio da Historia na- cional — utilizando para isso uma tica moderna — e por ter revalidado a luta negra como exemplo de outra que se deve instaurar em nosso tempo. Artistico, por ter destruido algumas das convengdes mais tradicionais e arraigadas do teatro, ¢ que pet jam como mecinicas limitagGes estélicas da liberdade criadora. Zumbi culminou a fase de “destruigio” do teatro, de to- dos os seus valores, regras, preceitos, receitas, etc. Nao podia- mos aceitar as convengdes praticadas, mas era ainda impossivel apresentar um novo sistema de convengies. Convengio é habito criado: em si mesma no é boa nem ma. As convengGes do teatro naturalista, por exemplo, nio sSo boas nem més — foram e s&o Uteis em determinados momentos ¢ circunstincias. O préprio Arena, durante o perio- do que vai de 1956 a 1960, valeu-se fartamente do realismo, de suas convengOes, técnicas e processos. Esse uso respondia & 198 necessidade social ¢ teatral de mostrar em eena a vida brasi- leira, especialmente nos seus aspectos aparentes, Pedinds em- prestada a frase a Brecht, estavamos mais interessados em mostrar “como sdo as coisas verdadeiras” do que em “revelar como verdadeiramente sio as coisas". Para isto, utilizivamos a fotografia ¢ todos os seus esquemas. Da mesma forma, estd- vamos dispostos a utilizar o instrumental de qualquer outro estilo, desde que respondesse as necessidades estéticas e socials de nossa organizagéo como teatro atuante — isto é, teatro que procura influir sobre a realidade e nao apenas refleti-la, ainda que corretamente. A realidade estava ¢ esti em trinsito; os instrumentais es- tilisticos, perfeitos e acabados. Queriamos refletir sobre uma realidade em modificagao, e tinhamos ao nosso dispor apenas estilos imodificdveis ou imodificados, Estas estruturas reclama- vam sua propria destruigéo, a fim de que ndo destruissem a possibilidade de, em teatro, surpreender o movimento, E que- riamos surpreendé-lo quase no dia-a-dia — teatro-jornalistico. Zumbi, primeira pega da série “Arena Conta...” desco- ordenau o teatro, Para nds, sua principal missao foi a de criar 9 necessirio caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a eta- pa da proposicio de um novo sistema. A sadia desordem foi Pprovocada por quatfo (écnicas, principais que se usaram. A pri ia na desvinculago ator-personagem. Certamente nao foi esta a primeira vez que personagens e ato- res estiveram desvinculados. Para sermos mais exates: assim masceu o teatro. Na tragédia grega, dois e depois trés atores alternavam entre si a interpretagiio de todos os personagens constantes do texto. Para isso, utilizavam mdscaras, o que evi- tava a confusio da platéia. No nosso caso, tentamos também a utilizago de uma miscara; nfo a mascara fisica, mas sim o conjunto de agies ¢ reagdes mecanizados dos personagens. Cada um de nds, na vida real, apresenta um comportamento mecanizado preestabelecida. Criamos vicias de pensamento, de linguagem, de profissio. Todas nossas inter-relagées se padro- nizam na vida cotidiana. Estes padrées sia nossas “mascaras”, como sio também “as miscaras” dos personagens. Em Zumbi. independentemente dos atores que representavam cada papel, Procurava-se manter, em todos, a interpretagdio da “mascara” 199 permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violén- cia caracteristica do Rei Zumbi era mantida, independentemen- te do ator que interpretava em cada cena. A “aspereza” de Don Ayres, a “juventude", de Ganga Zona, a “sensualidade”, de Gongoba, etc., igualmente nio estavam vinculados ao tipo fisico ou caracteristicas pessoais de nenhum ator, F verdade que as proprias aspas j4 dio uma idéia do cardter penérica de cada “méascara”. Por certo, este processo jamais serviria para interpretar uma pega baseada em escritos de Proust ou Joyce. Porém Zumbi era texto maniqueista, texto de bem e mal, de certo ¢ errado: texto de exortago ¢ combate. E, para este género de teatro, este género de interpretagio adequava-se per- feitamente. Mas nfo seria necessério citar a tragédia grega, ja que tantos exemplos de teatro moderno desvinculam persomagem de ator, (A Decisio de Brecht, as Histérias para serem Conta- das, do dramaturgo argentino (Oswatdo- Dragun, sao dois exem- plos. Ao mesmo tempo se assemelham e se diferenciam de Zumbi. Na peca argentina, em nenhum momento se estabelece um conflito teatral; o texto tende & narragio lirica: os perso- nagens sio narrados como se se tratasse de poesia, ¢ os atores se comporiam como se estivessem dramatizando um pocma. Também no texto brechtiano narra-se distanciadamente o que no passado ocorreu com uma patrulha de soldados: a morte de um companheiro é mostrada diante dos juizes: o “tempo presente” € a narragio do fato acontecido e nio o fato acon- tecendo. Ji em Zumbi — e isto nfo é qualidade nem defeito — cada momento da pega era interpretada “presentemente” e “con- flitualmente", ainda que a “montagem" do espeticulo no per- mitisse esquecer a presenga do grupo narrador da histéria; al- guns atores permaneciam no tempo e€ no espago dos especta- dores, enquanto outros viajavam a outros lugares e épocas. Resultava dai uma “colcha de retalhos" formada por pe- quenos fragmentos de muitas pegas, documentos, discursos ¢ Exemplos de desvinculagio sio inumerdveis. Lembre-se ainda Les Fréres Jacques ¢ todo 0 movimento do Living News- paper do teatro americano, Uma das pegas deste movimento, 200 “E = MC, narrava a histéria da teoria atémica desde De- mécrito, e da Bomba Atémica desde Hiroshima, propugnando pela utilizagio pacifica desse tipo de energia. As cenas silo totalmente independentes uma das outras © se relacionam ape- nas porque se referem ao mesmo tema. Existe, em geral, vigente, o Bosto de inserir cada pega na- cional no contexto da Histéria do Teatro; ¢, muitas vezes, esquece-se de inseri-la no prdprio cantexto da sociedade brasi. leira. Assim, embora a Histéria do Teatro seja farta de amos- tras anteriores, na, referia-se principalmente & necessidade de extinguirmos a influéncia que sobre o elenco tivera a fase realista anterior, na qual cada ator procurava exaurir as minticias Psicolégicas de cada personagem, @ ao qual se dedicava com exclusividade. Em Zumbi, cada ator foi obrigado a interpretar a totalidade da Pega € néo apenas um dos participantes dos conflitas expostos. Fazendo-se com que todos os atores fepresentassem todos Os personagens, conseguia-se segunda objetivo técnico dessa pri- meira experiéncia: todos os atores agrupavam-se em uma tni- ca perspectiva de narradores. © espetdculo deixava de ser rea- lizado segundo o ponto de vista de cada personagem e passa- va, narrativamente, a set contado por toda uma equipe, segun- do critérios coletivas: “Nés, somos o Teatro de Arena” e “nds, todos, juntos, vamos contar uma histéria, naquilo que seme- Thantemente pensamos sobre ela”, Conseguiu-se assim um nivel de “interpretaco coletiva™, A terecira técnica de criagdo de caos, usada com éxito em Zumbi, foi a do ecletismo de género e estilo. Dentro do mes- mo espeticulo percorria-se o caminho que vai do melodrama mais simplista ¢ tenenovelesco A chanchada mais circense e vo- devilesca, Muitos julgaram perigoso o caminho escolhido ¢ va- rias adverténcias foram feitas sobre os limites por onde cami- nhava o Arena; tentou-se mesmo uma enérgica demarcagio de fronteiras entre a “dignidade da arte” e o “fazer rir a qualquer Prego”. Curiosa que as adverténcias foram sempre dirigidas & chanchada e nunca ao melodrama que, no extremo oposto, cor- ria os mesmos riscos. Talvez isso se deva ao fato de que a nossa platéia ¢ a nossa Critica ja se habituaram ao melodrama 201 ¢ as oportunidades de riso andem muito escassas nos dias que correm., . . Também em estilo, e nio apenas em géneros, instaurou-se o salutar caos estético. Algumas cenas, como a do Banzo, tendiam ao expressionisma, enquanto que outras, como a do Padre ¢ da Senhora Dona, eram realistas, a da Ave-Maria sim- bolista, a do fwist beirava o surrealismo, ete. Em teatro, qualquer quebra desentorpece. As regras tra- jonais do Playwriting americano reccitam o comic relief como forma de estimulo. Aqui, obtinha-se uma espécie de stylistic relief ¢ a platéia recebia satisfeita as mudangas bruscas ¢ vio- lentas. Ainda uma quarta técnica foi usada. A(misica tem o po- der de, independentemente de conceitos, preparar a platéia a curto prazo, ludicamente, para receber textos simplificados que 86 poderfio ser absorvidos dentro da experiéncia simultinea razio-misica. Um exemplo esclarece: sem misica, ninguém acreditaria que ds margens plicidas do Ipiranga ouviu-se um grito herdico ¢ retumbante (*) ow que, qual cisne branco em noite de lua, algo desliza no mar azul (**). Da mesma maneita, ¢ pela forma simples com que a idéia esté exposta, ninguém acreditaria que este “é um tempo de guerra” se nio fosse a melodia de Edu Lobo. Finalmente, usando estas quatro técnicas, tinha Zumbi a missiio est¢tica principal de sintetizar as duas fases anteriores do desenvolvimento artistico do Teatro de Arena. Durante todo o periado realista, tanto a dramaturgia como a interpretagio do Arena buscavam sobretudo o detalhe, Como diz o Coringa em “Tiradentes": “Pegas em que se comia ma- carréo e se fazia café ¢ a platéia aprendia exatamente isso: fa- zer calé ¢ comer macarrlio — coisas que ja sabia". Foi todo um periodo em que a preocupagio maxima consistia na busca de singularidades, na descrigdo mais minuciosa ¢ veraz da vida brasileira, em todos os seus aspectos exteriores, visiveis ¢ aci-~ dentais. A reprodupio exata da vida como ela é — esta a prin- * Hino Nacional. ** Hino da Marinha, 202 cipal meta de toda uma fase. Esse caminho, embora neoessirio no seu momento, apresentava grande perigo © risco de tornar a obra de arte inutil. Arte é uma forma de conhecimento, portanto © artista se abriga a interpretar a realidade, tornando-a inteligivel. Porém, se ao invés de fazé-lo, apenas a reproduz, nao estard conhecendo nem dando a conhecer, E quanto mais “iguais” forem a realidade ¢ a obra, tio mais desnecessdria sera esta. O critério de semelhanga é a medida de ineficdcia, C lamente, O§ autores representados nessa época no se limitavam 48 constatagdes. Porém a utilizagao do instrumental naturalista reduzia a possibilidade de andlise. Os textos se tormavam am- biguos ou bivalent uem € o herdi: o pequeno-burgués Tido. ou 0 proletério Otdvio? Qual é a solugio de José da Silva: dei- ar como esta pra ver como é que fica, morrer de fome, ou fazer guerrilha? (*) Na fase posterior, quando se procurava “nacionalizar os clissicos", contrapuseram-se as metas: passa- mos a tratar apenas com 8, Vagamente corporificadas em fa- bulas, Tartufo, O Melhor Juiz, o Rei, etc. Pouco nos importava reproduzir a vida na época de Luis XIV ow na Idade Média. Don Tello ¢ Tartufo nio eram seres humanos radicados no seu momento, mas Lobos de La Fontaine que bem se asseme- lhavam 4 gente paulista e brasileira; Dorina e Pelayo eram cordeirinhos com alma de raposas. Toda o elenco de persona- gens se constituia de simbolos tornados significativos pelas fei- GGes semelhantes 4 gente nossa. Eram “universais” flutuando sobre o Brasil. Havia que sintetizar: de um lado o singular, de outro o universal. Tinhamos que encontrar © particular tipico. © problema foi em parte resolvido utilizando-se um epi- sédio da Histéria do Brasil, o mito de Zumbi, ¢ procurando-se reched-lo com dados ¢ fatos recentes, bem conhecidos pela pla- téia, Exemplo: o discurso de Don Ayres, ao tomar posse, foi escrito quase que totalmente tomando-se por base recortes de jornais de discursos pronunciados na época da encenagio. (*) Personagens de Eles Ndo Usam Black-tie ¢ Revolugie na América Sul. 203 A verdadeira sintese, é certo, nfia se lograva: conseguia-se apenas — ¢ isto jd era bastante — justapor “universais” © “singulares”, amalgamando-os: de um lado a histéria mitica com toda a sua estrutura de fabula, intacta; de outro, jornalismo com © aproveitamento dos mais recentes fatos da vida nacional. A jungio dos dois niveis era quase simultnea, o que aproxi- mava © texto dos particulares tipicos. Zumbi preencheu sua fungi e representou o fim de uma etapa de investigago. Concluiu-se a “destruigio” do teatro ¢ propés-se o inicio de novas formas. Coringa & © sistema que se pretende propor como for- ma permanente de se fazer teatro — dramaturgia e encenagao. Reine em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena ¢, neste sentido, € simula do jé acontecido. E, ao reuni-las, tam- bém as coordena, ¢ neste sentido é o principal salto de todas as suas etapas, Il = As metas do “coringa” U" SISTEMA ndo se propSe porque sim. Vem sempre em. Fesposta a estimulos e necessidades estéticas e sociais, JA foi exaustivamente estudada a estrutura dos textos isabelinos como decorréncia das condigdes sociais de sua época, de sua platéia, e até mesmo das caracteristicas especiais do seu teatro como edificio. Em geral, todas as pegas de Shakespeare se ini- ciam com cenas de violéncia: criados em luta corporal (Romeu Julieta), movimento reivindicatério de massas (Coriolano), aparigio de um fantasma (Hamlet), de trés bruxas (Macbeth), de um monstro (Ricardo III), etc. Néo era por coincidéncia que o dramaturgo elegia iniciar suas obras assim de maneita violenta. Sobre 0 comportamento barulhenta de sua platéia nar- tam-se muitos detalhes, alguns bem curiosos. Por exemplo, a linguagem roméntica das laranjas: durante 0 espetéculo um se- nhor, desejoso de cortejar uma jovem da platéia, comprava uma dizia de laranjas, aos gritos, nfo importando fosse a cena, ho Momento, um terno soliléquio. Pelo vendedor, enviava as frutas 4 desejada. Dependendo do comportamento desta, ele entendia tudo. Se a dama devolvesse o pacote, convinha no insistir; se devolvesse metade, quem sabe? Se as guardasse, as 205 esperangas eram muitas. E, Deus seja louvado, se as comesse ali mesmo, durante o “Ser ou nao Ser", no havia dvida: 0 jovem casal no assistiria ao final da tragédia, preferindo inven- tar sua propria comédia buedlica alhures. Tmagine-se que estas nfio ctam condig6es ideais para o de- senvolvimento da dramaturgia maeterlinckiana. Laurence Oli- vier, no seu firme Henrique V, deu uma imagem precisa da pla- téia isabelina , insultos, brigas, ameagas diretas aos ato- res, circulagdo ininterrupta de espectadores, nobres no palco, ete. Para silenciar esta platéia seria necessdria uma introdugio vigorosa e decidida. Os atores deveriam fazer mais ruido no paico do que os espectadores na platéia. Assim se ia formando a técnica de plawriting shakespeariana. Também as condigdes de desenvolvimento da ciéncia pro- pe a possibilidade de novos estilos: sem a eletricidade, seria impossivel o expressionismo. Mas niio sé os aspectos exteriores determinam a forma teatral, Sem seus sessenta mil s6cios proletdrios, nfo seria pos- sivel 0 Volksbuhne, bergo do teatro épica modern, como sem a platéia novaiorquina so seriam possiveis as aberragdes se- ‘xuais, castragSes © antropofagias de Tennessee Williams. Seria absurdo oferecer A Mae de Brecht & Broadway, ou Noite de Iguana aos sindicatos berlinenses. Cada platéia exige pegas que assumam sua visio do mundo. Nos paises subdesenvolvidos, no entanto, costuma-se ele- ger o teatro dos “grandes centros” como padrio e meta. Re- cusa-se a platéia de que se dispde, almejando a distante. O artis- ta no se permite receber influéncias de quem o assiste ¢ so- nha com os espectadores chamados “educados” ou “de cultu- ra”. Procura absorver tradigSes alheias sem fundamentar a pré- pria; receber a cultura estranha como palavra de ordem divina, sem dizer sua palavra. No momento, o teatro brasileiro atravessa sua maior crise, a nica que chegou simultaneamente em todos os niveis de suas preocupagGes: crise econdmica, de platéia, de caminhos, de ideologia, de repertério, de material humano. E a crise, de sau- déivel, traz apenas a necessidade urgente de reformulagdes, que também se pretendem em niveis diversos. A timida introdugio do sistema de cooperativa pretende resolver o problema de Fo- 206 Tha de Pagamento em termos argentinos. A montagem de pecas de dois ou trés personagens, pretende resolvé-lo em termos de eaixa de mdsica, A paralisagao de muitas companhias em ter- mos de “assim nao € possivel", Também relagao ao reper- tério, muitas esperancas so acalentadas: @ pornografia talvez solucione o problema de outras companhias além da de Dercy Gongalves; a formagio de elencos com astros de TV talvez atraia fi-clubes; a montagem de textos internacionais, vindo quentinhos de Paris ou Londres, talvez seduza gente up-to- ~date. Outros grupos, percebendo que atualmente a montagem de qualquer texto representa risco total de tudo ganhar ou per- der, ousam espetdculos que sempre quiseram fazer: estéo anun- ciados Peter Weiss, Brecht, e outros autores da mesma impor- tincia. O Teatro de Arena também se encontra diante das mes- mas indagagées coletivas do teatro paulista. E suas respostas fu- turas deverdo refletir as experiéncias que vem realizando. O “Sistema do Coringa” também nfo nasceu porque sim, mas foi determinado pelas caracteristicas atuais da nossa sociedade e, mais especificamente, da nossa platéia. Suas metas sio de cardter estético e econdmica, 0 primeiro problema a ser resolvido consiste em apresen- tar, dentro do préprio espetéculo, a pega e sua andlise. Eviden- temente, qualquer pega jd inclui, em cada encenagao, critérios analiticos préprios. Todos os espetéculos de Don Juan, por exemplo, sio diferentes entre nda que se baseiem todos no mesmo texto de Moliére. Coriolano pode ser montada como peca fascista ou como condenagSo ao fascismo. O herdi de Jilio Cesar pode ser Marca Anténio ou Brutus. Pode o dire- tor moderno optar pelas razies da Antigona ou de Creon, ou pela condenagdo de ambos. Pode a tragédia de Fdipo ser a Moira ou seu orgulho. A necessidade de analisar o texto ¢ revelar essa andilise & platéia; de enfocar a ago segundo uma determinada e prees- tabelecida perspectiva ¢ sé dessa; de mostrar o ponto de vista do autor ou o dos recriadores — essa necessidade sempre exis- tiu ¢ sempre foi respondida diversamente. © mondélogo, em geral, serve para oferecer a platéia um Prisma através do qual possa entender a totalidade dos confli- 207 tos do texto. O Coro da tragédia grega, que tantas vezes atua como moderador, analisa também o comportamento dos prota- gonistas. O raisonneur das pegas de Ibsen quase munca tem uma fung4io especificamente dramitica, revelando-se a cada ins- tante porta-voz do autor. O recurso do “Narrador” € também freqiientemente usado, como o foi por Arthur Miller em Pa- norama do Alto da Ponte e, pelo mesmo autor, de forma mo- dificada, em Depois da Queda, onde o protagonista dirige-se explicativamente a alguém, que tanto pode scr o psicanalista como pode ser Deus — a Miller pouco importa e muito menos a nds. Estas so algumas das muitas solugdes possiveis ¢ jd ofe- recidas. No sistema do Coringa, o mesmo problema se oferece € uma solugio parecida se propde, Em todos estes mecanismos citados, © que mais nos desagrada é a camuflagem que a sua verdadeira intengio termina por assumir. O funcionamento da técnica € escondido, envergonhadamente. Preferimos o despu- dor de mostri-lo como é ¢ para que serve. A camuflagem aca- ba criando um “tipo” de personagem, muito mais préximo dos demais personagens do que da platéia: “Coros”, “narradores”, etc., sfio habitantes da fabula e nio da vida social dos especta- dores, Propomos o Coringa contemporiineo ¢ vizinho do espec- tador. Para isto, é necessdrio o esfriamento de suas “Explica- gées"; & necessério o seu afastamento dos demais personagens, € necessdria a sua aproximagio aos espectadores. Dentro do sistema, as “Explicagées” que ocorrem periodi- camente procuram fazer com que o espeticulo se desenvolva em dois niveis diferentes e complementares: o da fabula (que pode utilizar todos os recursos ilusionisticos convencionais do tea- tro) e o da “conferéncia”, na qual o Coringa se propoe como exegeta, A segunda meta estética refere-se ao estilo, Certamente muitas pegas bem logradas ut m dois ou mais estilos, como é 0 caso de Lilion, de Ferenc Molnat ¢ A Maquina de Somar, de Elmer Rice (realismo e expressionismo, para as cenas de terra e Céu). Porém sempre também os autores s¢ dio a enor- mes trabalhos para “justificar” as mudangas estilisticas. Admi- te-se o expressionismo desde que a cena se passe no Céu: ora, isto se constitui num disfarce do realismo que permanece. 208 Mesmo em cinema, o célebre Gabinete do Dr, Caligari nada mais € do que um filme realista disfargado — no fim, pede-se desculpas pelo instrumental estilistico usado, justificando-se pelo fato de que s¢ tratava de uma visio do mundo segundo a stica de um louco, "O préprio espetéculo de Zumbi, com todas as liberda- des que assumia, apresentava-se unificado por uma atmosfera geral de fantasia: com os mesmos instrumentos de fantasia tra- balhava-se indistintamente todas as cenas: a vatiedade de esti- lo era dada pela diferente maneira de utilizar o instrumental ¢ a unidade por se trabalhar sempre com os mesmos instrumen- tos: absorgao pelo corpo do ator das fungGes cenograficas, éti- ca de branco & preto, mau e bom, amor e tom ora nostal- gico ora exortativo, dialética tanque panzer x Ave-Maria, etc, No Coringa pretende-se propor um sistema permanente de fazer teatro (estrutura de texto e estrutura de elenco) que inclua em seu bojo todos os instrumentais de todos os estilas ou géneros. Cada cena deve ser resolvida, esteticamente, segun- do os problemas que ela, isoladamente, apresenta, Toda unidade de estilo traz o empobrecimento inevitdvel dos processos possiveis de serem utilizados. Habitualmente, se- lecionam-se os instrumentos de um sé estilo, daquele que se re- vela ideal para o tratamento das principais cenas da pega; em seguida, os mesmos instrumentos so aplicados 4 solugao de to- das as cenas, mesmo quando se mostrem absolutamente inade- quados. Por isso, decidimos resolver cada cena independente- mente das demais. Assim, o realismo, surrealismo, pastoral bu- célica, tragicomédia, ou qualquer outro género ou estilo estio permanentemente A disposi¢io de autor ¢ diretor, sem que estes, por isso, se obriguem a utilizd-los durante toda a pega ou espe- tdcullo, O perigo que este procedimento acarreta é razoavelmente grande: pode-se perfeitamente cair na total anarquia. A fim de evité-lo, dé-se total @nfase as “Explicagdes", de forma a que o estilo em que sao elaboradas se constitua no estilo geral da obra, e ao qual todos os demais devem ser referidos. Pre- tende-se escrever obras que sejam fundamentalmente julga- mentos. E, como num tribunal, ou fragmentos de cada inter- vengio podem ter a sua prépria forma, sem prejuizo da forma 209 especial de julgamento, também assim no Coringa cada capi- tulo ou cada episédio pode ser tratado da maneira que me- Thor Ihe convier sem prejuizo da unidade que seré dada, nao pela permanéncia limitadora de uma forms, mas pela pletora estilistica referida & mesma perspectiva. Deve-se ainda observar que a possibilidade de extrema variagio formal € oferecida pela simples presenga, dentro do sistema, de duas fungGes extremadamente. opostas: a fungio Protagénica que é a realidade mais concreta e a fun¢fo corin- ga que é a abstracgio mais conceitual, Entre o naturalismo fotogrifico de um, singular, e a abstracio universalizante do outro, todos os estilos estiio incluidos e sio possiveis. © teatro moderna tem enfatizado em demasia a origina- lidade, As duas guerras deste século, a guerra permanente de libertagio de colénias, a ascensio das classes subjugadas, o avango da tecnologia, desafiam os artistas, que respondem com uma chuva de inovagdes, especialmente formais: a rapidez com que evolui o mundo significa também uma impressionante rapidez com que evolui o teatro, Uma lideranga, porém, faz-se entrave: cada nova conquista da ciéncia fundamenta a con- quista seguinte, nada se perdendo e tudo se conquistando. Ao contrario, cada nova conquista do teatro tem significado o arrasamento do j4 conquistada. Portanto, © principal tema da técnica teatral modema fi- cou sendo a coordenagio de suas conquistas, de forma a que cada novo produto venha enriquecer o patriménio existente ¢ niio substitui-lo. E isto deve ser feito dentro de uma estrutura que scja inteiramente flexivel e absorvente de qualquer desco- berta ¢, a0 mesmo tempo, imutdvel e sempre idéntica a si mesma, A criagio de novas regras e convengées em teatro, den- tro de um sistema que permanega imodificado, permite aos espectadores conhecerem as possibilidades de jogo de cada espe- ‘culo, © futebol tem regras pré-conhecidas, uma estrutura ri- gida do off sides © penaities, 0 que nio imede a improvisagio © @ surpresa de cada jogada. Perderia todo o interesse o fu- tebol no momento em que cada jogo fosse disputada em obe- digncia a leis legisladas apenas para esse jogo; se os torcedo- res tivessem que descobrir, durante a partida, quais as leis 210 que regulam o andamento das jogadas. O pré-conhecimento & indispensavel total fruigio. No Coringa, uma mesma estrutura sera usada para Tira- dentes ¢ Romeu e Julieta. Porém, dentro dessa estrutura imu- tivel ou pouco modificdvel, nada dever4 impedir a originali- dade de cada “jogada” ou cada “cena”, “capitulo”, “episé- dio" ou “explicagio”. Nio sé o esporte oferece exemplos: o espectador de um quadro, ao examinar a parte, pode inseri-la na totalidade que também se mostra visivel. O detalhe de um mural € visto, simultaneamente, isolado ¢ inserido no todo. Em teatro, este efeito, s6 podera ser conseguido se a platéia conhecer de an- femio as regras do jogo. Finalmente, um dos propdsitos estéticos no menos im- portante do sistema consiste em tentar resolver a opgfio entre Personagem-sujeito e personagem-objeto, que, csquematica- mente, deriva da consideragdo de que o pensamento determina a agio ou, ao contririo, a agio determina o pensamento. A primeira posigio é exaustivamente defendida por He- gel em sua poética, ¢ muito antes por Aristételes. Afirmam os dois, com palavras pouco diferentes, que a “agio dramatica resulta do livre movimento do espirito do personagem”. Hegel vai ainda mais longe ©, como se estivesse Ptemonitoriamente pensando no Brasil atual, afirma que a so- ciedade moderna vai-se tornando incompativel com o teatro j4 que os personagens de hoje se aprisionam num emaranhado de leis, costumes e tradigdes que vio aumentando e se vio tomando mais complexos na medida em que se desenvalve ¢ civiliza a sociedade. Assim, o heréi dramftico perfeito seria o “principe medieval” — isto é, um homem que em si enfei- xasse todos os poderes: legislativo, j i @ que nfo deixa de ser uma das mais caras aspiragdes de alguns politicos atuais, medievos de coragio. $6 tendo em suas Mos o poder absoluto poderd o personagem “livremente exte- riorizar os movimentos do seu espirito"; se esses movimentos o levam a matar, possuir, agredir, absolver, etc. — nada estra- nho a ele poder impedi-lo de fazé-lo. As agGes concretas tem origem na subjetividade do personagem. 2 Brecht — o tedrico e nfo necessariamente o dramatur- go — defende a posigdo oposta: o personagem é o reflexo da agio dramitica ¢ esta se desenvolve por meio de contradigées objetivas, ou objetivas-subjetivas, isto €, um dos pdlos é sen- pre a infra-estrutura econémica da sociedade, ainda que seja © outro um valor moral. No Coringa, a estrutura dos conflitos é sempre infra- -estrutural, ainda que se movam os personagens ignorantemente deste desenvolvimento subterrfinea, isto é, ainda que sejam he- gelianamente livres. Procura-se assim restaurar a liberdade plena do persona- gem sujeito, dentro dos esquemas rigidos da andlise social. A coordenagio dessa liberdade impede 0 caos subjetivista condu- cente aos estilos liricos: expressionismo, etc. Impede a apre- sentaciio do mundo como perplexidade, como destino ineluta- vel. E deve impedir, esperamos — intepretagdes mecanicistas que reduzam a experiéncia humana 4 mera ilustragio de com- péndios. Muitas sfio as metas deste sistema. Nem todas so esté- ticas ou tiveram na estética a origem de sua proposigio. A violenta limitagio do poder aquisitivo da populagio determi- nou a rarefagdo do mercado consumidor de produtos supér- fluos: o teatro entre cles, Nio se pode ficar esperando que ocorram modificagdes fundamentais na politica econémica, de forma a que se de- volva ao povo a possibilidade de compra. Deve-se enfrentar cada situagio no fimbito da propria situagio, ¢ no segundo Perspectivas otimistas. E estes sfo os dados: falta mercado consumidor de teatro, falta material humano, falta apoio ofi- cial a qualquer campanha de popularizagio ¢ sobram restri- g6es oficiais (impostos e regulamentos). Nesse panorama hostil, a montagem obediente ao sistema do Coringa toma-se capaz de apresentar qualquer texto com numero fixo de atores, independentemente do nimero de per- sonagens, j4 que cada ator de cada coro multiplica suas. possi- bilidades de interpretagio. Reduzindo-se o énus de cada mon- tagem, todos os textos so vidveis. Estas sio as metas do sistema. Para tentar consegui-las hi que criar ¢ desenvolver duas estruturas fundamentais: a de elenco e a de espeticulo. 212 IV — As estruturas do “coringa”” E M ZUMBI todos os atores representavam todos os persona- gens: a distribuigho de papéis era feita em cada cena ¢ sem nenhuma const{ncia; procurava-se mesmo evitar qualquer periodicidade na distribuicio dos mesmos Paptis aos mesmos atores. Mal comparando, parecia uma equipe de futebol de varzea: todos os jogadores, independentemente de suas posi- ges, estiio sempre onde esté a bola. Em Tiradentes, ¢ dentro do sistema do Coringa, cada ator tem a sua posigiio pré-de- terminada, ¢ move-se dentro das regras estabelecidas para essa posig’o, Também aqui nao se distribuem personagens aos ato- fes, mas sim fungSes de acordo com a estruturagSo geral dos conflitos do texto. A primeira fungo é a “Protagdnica” que, no sistema, re- presenta a realidade concreta e fotogrifica. Esta é a Ginica fun- ¢So na qual se dé a vinculagio perfeita e permanente ator-per- Sonagem: um sé ator desempenha 86 0 protagonista ¢ nenhum outro, Varias slo as caracteristicas necessdrias a esta fungSo, na qual deve o ator valer-se da interpretacdo stanislawskiana, ha sua forma mais ortodoxa. O stor nao pode desempenhar ne- 213 nhuma tarefa que exceda os limites do personagem cnquanto ser humano real: para comer necessita comida; para beber, be- bida; para lutar, uma espada. Seu comportamento em cena deve-se assemelhar ao de um personagem de Eles Ndo Usam Black-tie ou de Chapeiuba F. C. O espago em_que se move deve ser pensado em termos de Antoine. © ator “pro- tagOnico” deve ter a consciéncia do personagem e nao a dos alores, Sua vivéncia nao se interrompe nunca, ainda que simul- taneamente possa estar 0 Coringa analisando qualquer detalhe da pega: ele continuard sua agio “verdadeiramente” como per- sonagem de outra pega perdido em cendrio teatralista. E a “fal- ta de vida", neo-realismo, o cine-verdade, o documentirio ao vivo, a mimdcia, o detalhe, a verdade aparente, a coisa ver- dadeir: No $6 0 comportamento do ator deve obedecer critérios da verossimilhanga, mas também sua concepgio cenogrifica: sua roupa, seus aderegos, devem ser — perdoando o termo — ‘os mais “auténticos” possiveis. Ao vé-lo, deve a platéia ter sempre a impressio de quarta parede ausente, ainda que este- jam ausentes também as outras trés. Esta fungio procura reconquistar a “empatia” que se perde todas as vezes em que espeticulo tende a um alto grau de abstragio. Nestes casos, a platéia perde o contacto emo- cional imediato com o personagem ¢ sua experiéncia tende a reduzir-se ao conhecimento puramente racional. Nao importa nem é 0 momento de descobrir quais as principais razOes desse fato: basta por ora constatd-lo. E cons- tata-sé que a empatia sé produz com grande facilidade no mo- mento em que qualquer personagem, em qualquer pega, com qualquer enredo ou tema, realiza uma tarefa facilmente re- conhecivel, de cardter doméstico, profissional, esportivo, ou qualquer outro. A empatia nio € um valor estético: € apenas um dos mecanismos do ritual dramitico, ao qual se pode dar bom ou mau uso, Na fase realista do Arena, nem sempre esse uso foi louvavel ©, muitas vezes, 0 reconhecimento de situagSes verda- deiras ¢ cotidianas substituia o carater interpretativo que deve ter o teatro. No Coringa esta empatia exteriot sera traba- Thada lado a lado com a exegese. Tenta-se ¢ permite-se o re- 214 conhecimento exterior desde que se apresentem simultanea- mente andlises dessa exterioridade. A escolha do protagonista nfo coincide necessariamente com o personagem principal. Em Macbeth pode ser Mac- duff; em Coriolano pode set um homem do povo; em Romeu e Julieta poderia ser Mercutio, no fosse sua morte prematura: em Rei Lear pode ser o Bobo. Desempenha a fungio “pro- tagdnica” o personagem que o autor deseja vincular empatica- mente A platéia. Se “ethos” © “diandia" pudessem ser separa- dos — e s6 a podem para fins didéticos — diriamos que o Protagonista atribui-se um comportamento “ético”, e 0 Coringa, “dianoético”. A segunda funglio do sistema & 0 proprio Coringa. Pode- riamos defini-la como sendo exatamente o contrario do Pro- tagonista. Sua realidade é mégica: ele a cria. Sendo necessério, in- venta muros mégicos, combates, banquetes, soldados, exércitos, Todos os demais personagens aceitam a realidade magica cria- dae descrita pelo Coringa. Para lutar usa arma inventada, Para cavalgar inventa o cavalo, para matar-se cré no punhal que no existe, O Coringa é polivalente: é a tnica fungdo que pode desempenhar qualquer papel da peca, podendo inclusive subs- tituir o Protagonista nos impedimentos deste, determinados por sua realidade naturalista, Exempla: inicia-se o segundo ato de Tiradentes com este cavalgando em cena fantistica; como nio serd prudente trazer o cavalo para o cendrio, esta cena serd desempenhada pelo ator que fizer o Coringa, montado em po- tro de pano, economizando-se o desnecessdrio farelo. Todas as vezes em que casos como este ocorrerem, os dois Corifeus desempenhario momentaneamente a fungio Co- ringa. A consciéncia do ator-coringa deve ser a de autor ou adaptador que se supSe acima e além, no espago € no tempo, da dos personagens. Assim, no caso de Tiradentes no teri ele a consciéncia e o conhecimenta possivel, aos inconfidentes do século XVII, mas, ao contrério, terd sempre presente os fatos que desde entio se passaram. Isto deverd ocorrer ao nivel da Histéria e ao nivel da propria f4bula — ja que neste aspec- to ele representa também o autor ou o recriador da fabula, conhecedor de principios, meios e fins, Conhece portanto o 215 desenvolvimento da trama ¢ a finalidade da obra. E onisciente. Porém, quando o ator Coringa desempenha nfo apenas essa fungo em geral, mas em particular um dos personagens, ad- quire tio-somente a consciéncia de cada personagem que inter- Assim, todas as possibilidades teatrais so conferidas & fungiio Coringa: € mfgico, onisciente, imorfo, ubiquo. Em cena funciona como menneur du jeu, raisonneur, mestre-de- -ceriménias, dono do circo, conferencista, juiz, explicador, exe- geta, contra-regra, diretor de cena, regisseur, kurogo, etc. Todas as “explicagSes” constantes da estrutura do espeticulo slio feitas por ele, que, quando necessirio, pode ser ajudado pelos Corifeus ou pela Orquestra Coral. Todos os demais atores estiio divididos em dois Coros: Deuteragonista ¢ Antagonista, tendo cada um seu Corifeu, Os atores do primeiro Coro podem desempenhar qualquer papel de apoio ao Protagonista: isto é, pgpéis que representem a mesma idéia central deste. Assim, no caso de Hamlet, por exemplo: Horacio, Marcelo, os comediantes, o Fantasma, etc. E 0 Coro-Mociaho. © outro, o Coro-Bandido, ¢ integrado por todos os atores que representem papéis de desapoio. No mes- mo exemplo: o Rei Cléudio, a Rainha Gertrudes, Laertes, Polénio, etc. Os coros nfo possuem nimero fixo de atores, podendo variar entre um Episédio e outro. Existirio dois tipos de fi- gurino: um bdsico, relative a fungio e ao Coro a que per- tence. Outro, referente nfo a cada personagem, mas sim aos diferentes. papéis sociais desempenhados no texto ¢ em confli- to na trama. Poderd haver apenas um figurino para cada papel : Exército, Igreja, Proletariado, Aristocracia, Poder Judi- cidrio, etc. Pode acontecer que coexistam no paleo dois ow mais atores que desempenhem o mesmo papel: soldado, por exemplo, Neste caso, deve o figurino ser de tal forma a que possa ser usado por igual némero de atores, simultaneamente, © que permita a platéia, visualmente, identificar todos os ato- res que desempenham o mesmo papel. Ou tantos figurines como personagens. Atores ¢ atrizes poderiio representar indiferentemente per- sonagens masculinos ou femininos, menos, é claro, nas cenas em que o sexo determina a prépria agdo dramiatica. Cenas de 216 amor, por exemplo, deverlio ser desempenhadas por atores do Sexo oposta — a menos que, inesperadamente, resolva-se 0 Arena a contar Tennessee Williams, coisa que nfo ocorrera. Completando esta estrutura, esté a ‘Orquestra Coral: vio- lao, flauta e bateria. Os trés misicos deverio também tocar outros instrumentos de corda, sopro ¢ percussio. Além de apoio musical, deve a Orquesta cantar, isoladamente ou em conjunto com 0 Corifeu, todos os Comentarios de carater in. formative ow ilusionistico. Esta € a estrutura bisica do sistema que deverd ser flexi- vel bastante para adaptar-se A montagem de qualquer pega. Por exemplo, em caso de necessitar o texto a Presenga de trés blocas em conflito, pode-se criar 0 Coro Tritagonista, manten- do-se © esquema intacto em tudo o mais. No caso de uma pega como Romeu ¢ Julieta, pode-se aumentar o nimero de Protagonistas para dois, mantendo-se um sé Coringa, ow atri- buindo-se suas fungdes 20s Corifeus que, por sua vez, represen- tariam os chefes das Casas de Montequio ¢ Capuleto. No caso de pegas que nfo apresentem interesse especial em mostrar nenhum protagonista, pade-se abolir esta funcio e criar dois Coringas que poderio também absorver as funcdes dos Cori feus. Finalmente, no caso em que uma das forgas em con! to necessita apenas de um ou dois atores durante a mai ir Parte do desenvolvimento da ago, Pode-se, mantendo-se os Corifeus, agrupar todos os demais atores num tnico Coro do Coringa. A adaptagdo de cada texto em particular determinard as modificagSes necessérias, mantida a estrutura e a Proposta fundamental, Além desta “estrutura de elenco", o Coringa terA também, em carater permanente, uma tnica “estrutura de espetéculo” Para todas as pecas. Este divide-se em sete partes principais: Dedicatéria, Explicagio, Episédio, Cena, Comentario, Entre- vista e Exortagao, Todo espetdculo sera sempre iniciado com uma Dedica- ‘t6ria a alguém ou a alguma coisa. Poderd ser uma cangdo cole- tiva, uma cena, ou simplesmente um texto declamado, Poderd ainda ser uma seqiléncia de cenas, poemas, textos, etc. Em Tiradentes, por exemplo, a Dedicatéria se constitui de uma 217 cangiio, um texto, uma cena ¢ novamente uma cangio coletiva, dedicando-se o espetdculo a José Joaquim de Maya, o primeito homem a tomar medidas concretas pela libertagéo do Brasil. Uma explicagio é uma quebra na continuidade da agio dramética, escrita sempre em prosa ¢ dita pelo Coringa, em termos de conferéncia, e que procura colocar a ago segundo a perspectiva de quem a conta — no caso, o Arena ¢ seus inte- grantes. Pode conter qualquer recurso prdprio da conferé Slides, leitura de poemas, documentos, cartas, noticias de jor- nais, exibigio de filmes, de mapas, etc. Pode inclusive refazer cenas a fim de enfatiz4-las ou corrigi-las, incluindo outras que no constem do texto original, no caso de adaptagées ¢ a fim de maior clareza. Por exemplo: contando o irresoluto Hamlet pode-se apresentar uma cena do decidido Ricardo III. As Expli- cagGes dao o estilo geral do espeticulo: conferéncia, forum, debate, tribunal, exegese, andlise, defesa de tese, plataforma, etc. A Explicagio introdutéria apresenta o elenco, a auto- ria, a adaptagio, as técnicas utilizadas, a necessidade de reno- var o teatro, propésitos do texto, etc. Como se va, todas as Explicagdes podem ¢ devem ser extremamente din&micas, mo- dificando-se na medida em que so apresentadas cidades. ou datas diferentes. Assim, quando a pega for apresentada em cidade onde nunca se fez teatro, sera mais oportuno expli- car o teatro em geral do que o Coringa em particular. Se algum fato importante ocorrer no dia da apresentagio ¢ se estiver relacionado com. o tema da pega, esta relagio deverd ser analisada. Cremos ficar bem marcado o cardter transité- rio & efémero deste sistema permanente: objetiva-se aumen- tar a velocidade de refletir o espetéculo o seu momento, dia ¢ hora, sem reduzir-se & hora, ao dia e ao momento. A estrutura geral ser dividida em Episédios que reunirio cenas mais ou menos interdependentes. O primeiro Tempo con- tera sempre um episédio a mais do que o segundo: 2 e 1, 3 e 2,463, etc. Uma cena ou lance, é um todo completo de pequena mag- nitude, contendo ao menos uma variagio no desenvolvimento qualitativo da a¢io dramatica. Pode ser dialogado, cantado, ou resumir-se 4 leitura de um poema, discurso, noticia ow documento, que determine mudanga de qualidade no sistema de forgas conflituais. As cenas se ligam entre si pelos Comentarios, escritos pre- ferentemente em versos rimados, cantados pelos Corifeus ow pela Orquestra ou por ambos, servindo para ligar uma cena 4 outra, ilusionisticamente, Pode-se constituir também pela sim- ples enunciagfo do local e tempo onde se passa a agio. Con- siderando que cada cena tem seu estilo proprio, quando ne- cessirio, os Comentarios deverio advertir a platéia sobre cada mudanga. As Entrevistas no tém colocagio estrutural propria predeterminada, j4 que sua ocorréncia depende sempre de oca- sionais necessidades expositivas. Muitas vezes o dramaturgo sente-se obrigado a revelar A platéia o verdadeiro estado ani- mico de um personagem ¢ nfo obstante nfo pode fazé-lo na presenga dos demais personagens, Por exemplo, os atos de Hamlet sé serio bem entendidos se o seu desejo de morte for exposto; porém, no poderd fazélo diante do Rei, da Rainha, nem mesmo de Hordcio ou Ofélia, Shakespeare re- corre entdéo ao mondlogo, como o expediente mais pritico e rapido de informagio direta. Pode acontecer também que esta necessidade informativa esteja presente ¢ perdure durante toda a agio, O'Neill resolveu o problema forgando seus persona- gens de Estranho Interliédio a dizerem o texto falado ¢ o texto pensado durante toda a pega, em tons diferentes, aju- dados pela iluminagio e outros recursos teatrais. Em Dias Sem Fim chegou & exigéncia de dois atores para o desempenho do protagonistas John Loving: um interpretava John, a parte que se mostrava, ¢ outro, Loving, a intimidade subjetiva. Tam- bém o aparte tem sido largamente usado através da Histéria do Teatro. O fato de estar hoje esta técnica fora de uso, deve- -se, talvez, a que o aparte cria uma estrutura paralela de ca- rater intermitente, que mais interfere na ag&o do que a cx- plica. No Coringa, esta necessidade serd resolvida utilizando-se recursos de outros rituais que no o teatral. Durante as dispu- ‘tas esportivas, futebol, box, etc., nos intervalos entre um tem- Po ¢ outro, ou durante as paralisagdes tempordrias e acidentais das partidas, os cronistas entrevistam atletas e técnicos que di- tetamente informam a platéia sobre o sucedido em campo. 219 Assim, todas as vezes que for necessério mostrar 0 “lado, de dentro” do personagem, o Coringa paralisaré a agio, mo- mentaneamente, a fim de que ele declare suas razOes. Nestes casos, O personagem entrevistado deverd manter a consciéncia de personagem, nfo devendo o ator assumir prépria cons- ciéncia de hoje ¢ aqui. Em Tiradentes, toda a jogada politica do Visconde de Barbacena, com rela¢io ao langamento da Derrama, seria fatalmente atribuida ao seu “bom coragio’ nio 4 frieza do seu pensamento, se este fosse revelado inti- Mmamente aos espectadores. Finalmente, a tltima “porgdo” da estrutura do espeticulo consiste na Exortagio final, em que o Coringa estimula a pla- ‘téia segundo o tema tratado em cada pega. Pode ser em forma de prosa declamada ou em cang4o coletiva, ou uma combi- nagio de ambas. Estas, as duas estruturas bisicas do sistema. E o que ja ficou dito, aqui se reitera: o sistema € permanente apenas den- tro da transitoriedade das técnicas teatrais. Com ele no se Pretendem solugdes definitivas de problemas estdticos: preten- de-se apenas tornar o teatro outra vez exequivel em nosso pals. E pretende-se continuar a pensé-lo dtil. 220 V - Tiradentes: quest6es preliminares wy PEGA deve ser analisada segundo os crilérios que pro- pde, © nio segundo uma teoria geral do teatro. Sempre que se discute um texto, é comum Prover-se o discutidor de todas suas teses pessoais sobre © teatro em geral e nelas en- quadrar uma pega em particular, ainda que os critérios que Presidiram a elaboraglo desta tenham sido diametralmente ‘opostos. Nao se pode entender Tonesco munido do instrumen- tal estético de Racine, nem este com o de Bertolt Brecht. boragio. E muito freqiiente ouvir-se autores que, diante de res- trigdes possiveis, exclamam: “Mas foi exatamente isso que eu quis fazer”. Ora, pode suceder que ndo se reconhega validade ‘exatamente a “isso”. A mediocridade da obra acabada nio jus- tifica nem se justifica por propostas mediocres. Portanto, hd que inserir os critérios particulares de cada texto dentro dos critérios mais gerais, que ndo necessitam ser apenas artisticos. Seria pois necessério, antes da andlise de cada pega, ana- lisar os instrumentos de sua fabricagdo. Estes, porém, no po- dem. ser recusados em fungo de preferéncias por nenhuma escola, género, estilo, tendéncia ou Epoca, Nem podem, s6 por isso, ser aceitos. A validade de uma pega deve considerar-se sobretudo em fungio do piblico ao qual se destina, sem que 8¢ permita tomar abstratamente a palavra piblico, Na relagdo peca-piblico deve-se considerar este como parte da populagdo, esta como povo, este como nagSo, ¢ esta no mundo de hoje. Ha que se considerar o texto como fenémeno social presente — portanto, liberto da historiografia teatral — idéntico ou se- melhante a outros fenémenos sociais de natureza nio estética comicios politicos, assembléias, partidas de futebol, lutas de box, Um texto nfo ser vélido senfio ma medida da sua eficd- cia teatral ¢ do seu acerto social, ¢ este nfio ser outro que a humanizagio do homem, ¢ esta nfo seri nunca uma atitude puramente contemplativa, mas um fato concréto de condigdes e diregdes de vida no sentido de uma sociedade que se desa- liene progressivamente ¢ aos saltos. Os meios empregados no importam, s6 importam os objetivos que se desejam. O principal objetivo de Arena Conta Tiradentes € a ana- lise de um movimento libertGrio que, teoricamente, poderia ter sido bem sucedido. Estava inserido no movimento inevitdvel do avango social usando uma expressio corrente, “estava ... Seus principais integrantes, detinham . de Paula Freire dz Andrade era o Comandante da Tropa Paga — segundo se dizia, a segunda pessoa em importancia dentro da Capitania; Alvarenga, o Padre Carlos de Toledo, o Padre Rolim, e outros, eram gente que levantava gente; Gonzaga, melhor que nin- guém, faria leis; dinheiro ¢ pélvora havia bastante — pelo menos para dois anos de assédio, segundo Alvarenj eo povo estava industriado por Tiradentes. Melhores condigées objetivas para uma revolugdo dificilmente se encontram. No entanto, este grupo fracassou. Ruiu como tui castelo de areia, embora fosse este construido com armas, dinheiro, gente ¢ pro- Ppésitos definidos. Esta é uma das questées preliminares que Tiradentes prope: pretende-se do fata sucedido extrair um esquema ana- 222 lgico aplicdvel a situagdes semelhantes. Poder-se-ia, ao con: tario, pretender a andlise exaustiva dos fatos histéricos escrever obra cientifica ¢ verdadeira, tomando-se “verdadeira”” no sentido em que ficgio e realidade se confundem, Tiradentes trilha o meio caminho: s6 modifica os fatos conhecidos na medida em que manté-los significaria perda de analogia. Muitas de suas cenas foram escritas com base em documentas da época; porém, desses documentos extraiu-se uma fabula que se pretende auténoma. Desta vez, nfo resistimos & tentagio de sermos aristotélicos, preferindo “provaveis impos- sibilidades a improvaveis possibilidades”. Esta preferéncia per- mitiu-nos colocar dentro da mesma obra textos inteiros dos Autos da Inconfidéncia (especialmente depoimentos de Tira- dentes, Gonzaga, Padre Carlos, Francisca de Paula ¢ outros), lado a lado com cenas absolutamente fantdsticas, como a falsa cena dos Embugados na casa de Alvarenga Peixoto — (anti- ga tradico mincira) ¢ com, ainda, digamos assim, alguns mo- dernismos jornalisticos. Considere-se que a avaliaglo da “pro- babilidade” nfo foi feita sobre intempestividades psicolégicas, mas sim sobre a totalidade personagens-idéia-enredo-sistema Coringa. ‘O microcosmo teatral ¢ o macrocosmo social se constituem, na segunda questo preliminar que devemos expor. Cada obra de teatro supde e pressupde o mundo, sem nunca poder mos- tri-lo em sua totalidade, que se infere presente. Se a dor de cotovelo de uma criatura de Nelson Rodrigues ¢ a guerra do Vietna interdependem, ha, nfo obstante, que eleger 0 centro de concentragio da ago dramitica, pois estas antipodas inter- dependem de tudo o mais, inclusive de Lyndon e Feydeau, niio tio antipodas: e o mundo nfo cabe em duas horas. Em Tiradentes, foi necessirio escolher. A Inconfidéncia Mineira desenvolveu-se em trés planos principais: povo, re- lagSes internacionais ¢ conversas palacianas. Sempre nos fascinou a idéia de mostrar essa revolugio gorada segundo a perspectiva do povo de entio, e os efeitos de cada lance inconfidente no seio desse povo, A vida do ga- timpeito, do mineiro, do pequena negociante, da costureira, do carrasco, do soldado, interessam-nos mais do que as liras de Gonzaga e Cliudio. Porém, o tema de Tiradenies & pouco 223 ‘uma revolugio popular, nem poderia sé-lo. Para mostrar 0 povo, melhor fariamos contando o Conselleiro, Os Alfaiates, © outros. Também sempre nos interessaram as relagdes politicas € econdmicas entre Inglaterra, Portugal, Espanha, Franca ¢ Estados Unidos no século XVIII. Por que razio mandou a Franga 100000 soldados e 30 navios ajudarem os alemies contratados ¢ os americanos-ingleses contratantes a fazerem a Independéncia no Norte? E por que para ci nfo mandou nem um professor de literatura francesa? Por que Jefferson, que tanto amava a liberdade, reduzia o exercicio desse amor 4s fronteiras do seu pais? Por que foram deixados sos dez ho- mens degradados ¢ um na forca baloigante? Todos esses assuntos merecem varias trilogias, porém para a andlise do comportamento desses paises melhor seria escolher como tema outra Independéncia que nfo a nossa, ja que tio sés fomos deixados. Escolhemos o paldcio e isso nos forgou a exclusfio quan- titativa do pavo e dos estrangeiros. Nosso tema nos parece, assim, melhor servido, Explicamos: hoje é comum o exercicio do poder em nome do povo. Em todas as Constituigées dos paises ditos democra- ticos (e quase todos se dizem) consta que do povo o poder mana e que seu nome serd exercido, Em nenhuma, que nos conste, consta frase como esta, que imaginamos a titulo de exemplo: “Todo o poder emana de uma camarilha que o assumiu, e serd exercido em ome do fo um". Ainda que isto possa as vezes ser prati escrita. Sendo o mundo como est, esta ¢ outras inconfidén- cias menos femotas ou em curso, vitoriosas ou derrotadas, tendem a interpretar o povo sem ouvi-lo, traduzindo em sua propria linguagem de elite palavras que em nenhuma parte foram pronunciadas. Ao povo, depois, informam sua tradugio. Assim, Gonzaga, Alvarenga, Francisco de Paula, Silvério € 08 outros sio, em nossa versio, intérpretes do povo nio perguntado. Sua estratégia e suas metas so fabricadas sem consulta prévia. A Inconfidéncia se move em casas particula- Fes, poucas, ¢ nos gabinetes oficiais. 2 Inconfidéncia palacia- 224 na. E, sendo palaciana, a pega é escrita dentro dos cémodos do paldcio e poucas casas, © no na rua ¢ nas minas. Referéncias aos outros dois niveis sio feitas, a fim de que tenham os espectadores os instrumentos necessdrios para enquadrar a agSo em coordenadas mais amplas, Porém, estas referéncias sio apenas flashes, curtos ¢ espagados. Lé-se em. cena a carta de José Joaquim da Maya a Thomaz Jefferson, © sua resposta extraida da correspondéncia com John Jay ¢ com o préprio Maya. Vé-se o povo na taberna, depois da proibicio da mineragdo de diamantes, que passaria a ser feita exclusivamente pela coroa; vé-se o povo na festa ¢ feira do enforcamento exemplar; vé-se as minas ¢ conta-se a histéria de Manuel Pinheiro, cagado ¢ preso pelo proprio Tiradentes, a mando do Governador Luis da Cunha Menezes; vé-se Ti- radentes conversando com as Pilatas. E mais nfo se vé nem 8€ mostra: espera-se que se suponha. Outra questiio preliminar que se deve discutir refere-se A causalidade da ago dos personagens. Estamos de hé muito habituados 4 técnica de playwriting americana: nela, todos os atos ttm suas razSes perfeitamente discerniveis ¢ cuidadosa- mente comunicadas pelo dramaturgo. O cinema a isto nos ha- bituou. Quando Blanche Du Bois entra em cena, ¢ durante seus primeiros didlogos, a platéia fica indagando as causas do seu comportamento estranho. Descobre-se depois sua ninfo- mania, mas imediatamente vem o perdio e a causa: seu ma- rido era homossexual, ¢ ela muito jovem quando se casou, a ponto de nfo saber descobri-lo. O choque foi tao violento que a pobre senhora sé se péde refazer aderindo & ninfoma- nia. Neste tipo de explicagdo cria-se uma mecinica relagio de causa ¢ efeito, ¢ a platéia fatalmente extrapola uma rela- ¢4o mais geral e eterna: todas as senhoras que venham a des- cobrir seus maridos em ternos coléquios reprovdveis estario condenadas a ouvir a Varsoviana todas as vezes que se apro- ximarem, com fins lucrativos, de jovens imberbes. Outro exemplo, também terrivelmente redutor é a expli- cago fornecida por Miller sobre o dio entre pai e filho em Morte de um Caixeiro Viajante: o pobte Biff, certa vez, sut- preendeu o pai, num hotel de Boston, em companhia de uma loura extranumeriria; dai comegou sua vida a ser um inferno; 225 © isso foi acontecer logo com ele, pobre menino que prometia tanto. .. Se quiséssemos explicar as agdes de Tiradentes de forma facilmente inteligivel, recursos como esses nio faltariam, como nfo faltaram aos historiégrafos. Conta-se, Por exemplo (¢ dis- to citam-se como prova préprios Autos da Inconfidéncia e ‘© quarto interrogatério a que foi submetido o Alferes), que Tiradentes julgava-se preterido em varias nomeagies, jf que outros militares tinham, segundo suas palavras, “caras mais bonitas ou melhores comadres”. O violento e constante desejo de liberdade do herdi estaria assim diretamente relacionado com a falta de promogio nas fileiras da Tropa Paga. Ou, se esta informagdo causal nfo bastasse, ainda se poderia acrescen- tar outro fato que parece ter sido verdadeiro: Tiradentes, per- dido de amor pela sobrinha do Padre Carlos, pediu a este que intercedesse junto ao pai da moga para que Ihe desse sua mio. O bondoso sacerdote fez o que pdde, porém a menina jd estava destinada pelo pai a quem tinha melhor cara ou me- Thores comadres que o Martir da Independéncia. Desiludido no amor e no servigo militar, nada mais restaria a0 nosso Protagonista do que converter-se em Herdi Nacional. Solugdes deste tipo, nfio devem parecer incriveis JA que foram usadas até mesmo por Castro Alves. No drama Gonza- ga, ow a Inconfidéncia Mineira, o vate investiga os aconteci- mentos de Ouro Preto sob o prisma do triingulo amoroso Gon- zaga-Marilia-Barbacena. © Visconde, indignado pela recusa do seu amor, resolve pér tuda em pratos limpos, impiedosa- mente castigando os que tramaram contra a Coroa e contra 0 seu temo coracao. Porém, se recusamos explicagdes causais ‘simples e si plérias, restam dois caminhos a seguir: aprofundar a pesqui- sa psicolégica do personagem ou esquematiz4-lo em fungio do enredo e da ago dramftica, considerada como fabula. O primeira caminho é mais proprio da pega que pretende reconquistar um tempo da Histéria; o segundo é mais préprio da fabula © da verdade de agora. Este foi escolhido, Esta deciséo leva A conseqiiéncia inevitével de ser neces- io, muitas vezes, limitar o personagem ao seu aspecto mais Util a0 desenvolvimento da trama e da idéia, eliminando-se 226 caracteristicas que, embora integrem o ser humano tratado, so dispensveis & idéia e A trama. Um exemplo talvez con- cretize: certamente os intelectuais da Inconfidéncia nfio eram. gente que apenas se mostrava disposta a fabricar disticos para a bandeira, balangando-se comodamente em redes ¢ discutindo 0 clima da cidade de Salvador. Porém, o que nos interessava ‘mostrar, na principal cena em que participam, era justamente a caracteristica de se preocuparem com detalhes de importin- cia secundaria, quando decisSes primdrias deviam ser tomadas; a tendéncia a esperar o acontecimento dos fatos para entio sabiamente interpreti-los, ao invés de se anteciparem criando os fatos ou modificando-os. Enquanto Barbacena pée seus soldados na rua, os poetas da Arcddia celebram o aniversi- rio da filha de Alvarenga, a “Princesinha do Brasil”. E claro que nem todos os dias celebravam aniversdrios ou discutiam S84 de Miranda e o clima tropical; nem todos os dias Bar- ‘bacena punha os soldados na rua; porém, se os autores preten- dem agredir a atitude contemplativa, nfo poderiio contempla- tivamente conceder que foram esses mesmos intelecti que langaram as bases tedricas da sedigio. Isto importa i definitivo daqueles personagens histéricos ja falecidos, porém em nada contribui para que nos questionemos todos nés, que estamos vivos, diante de situagies semelhantes: njio estaremos todos batizando nossas filhas enquanto Barbacenas e outros ‘Viscondes poem seus soldados na rua? Questées preliminares deste tipo devem ser discutidas a fim de que se evitem certos mas que inevitavelmente surgem. B freqiiente no comentarismo teatral de hoje, dentro ¢ fora do periodismo, rotularem-se pegas, espeticulos ¢ perso- nagens. Isto é feito com o fito de livrar-se cada um da ne- cessidade de entender, j4 que o processo de entendimento é penoso e, entre outras coisas, obriga a uma tomada de posi- g4o ndo apenas frente A obra (problema que o rétulo solucio- na), como também frente ao tema tratado. Esta peca € facil de rotular, especialmente seus persona~ gens; nela, sem maiores dores de cabega, pode-se afirmar que Tiradentes é um quase santo, Silvério o deménio, Cliudio pu- sikinime, Alvarenga a perfei¢do do canalha, pois chega ao ex- tremo de denunciar sua propria mulher. 227 Grande ¢ compreensivel é o desejo generalizado de que cada cena revele sempre facetas inesperadas dos personagens conhecidos. Um dia chegar-se- ao extremo de lamentar que um texto sobre o descobrimento do Brasil peque pela falta de originalidade ¢ entio se diri: “Ainda uma vez, nesta pega, o descobridor do Brasil é Pedro Alvares Cabral e o remetente da carta, Caminha"” — falta imperdodvel. Também em Tira- dentes, o primeira delator serd Silvério, e disso j4 sabem todos. Estes dois problemas se unem: de um lado o gosto pela novidade, de outro o gosto pela complexidade. Recusa-se com extrema facilidade ¢ sem remorsos qualquer personagem de facil compreensio, sob o pretexto de que o romantismo é uma escola passada, e s6 a ele se permitia mostrar inteiramente bons os personagens bons ¢ inteiramente maus os personagens maus, Muito mais agrada o santo que se revela crépula ou © canalha que se heroiciza. ‘Concordamos em que o romantismo assim muitas vezes procedia, porém parece-nos igualmente romantismo disfargado preferir motivagées contririas ¢ opostas 4 caracterizagio mais obviamente revelada, Tiradentes poderia ter secretos planes de fortuna individual se sobreviesse a Inconfidéncia: preferimos mostri-lo como um homem que deseja a liberdade, nio para si mesmo, mas para o povo; preferimos accitar a visio que dele se tem tradicionalmente, ainda que seja esta talvez mis- tificada. Concluindo: nenhum personagem desta pega pode ser analisado isoladamente — nenhum tem vida fora do teatro. Todos devem ser entendidos dentro do esquema geral que ¢ a pega, isto é, nas suas miltiplas relagSes de interdependéncia. Entenda-se que todos os personagens sio contados pelo Co- ringa ©, neste estilo, atribui-se ao Coringa o dircito de contar ‘como bem Ihe parecer, a fim de demonstrar sua tese. A ilti- Ma questo preliminar refere-se ao uso da emogiio ou ao uso dos mecanismos té&nicas que conduzem & emogio. Cremos, como Brecht, que hé dois tipos distintos de emogiio. O pri: meiro tipo assalta o espectador que sente a inevitabilidade do destino humano, a perplexidade da vida; ¢ a emogio que surge diante do desconhecido — ¢ esta é propria do teatro bur- gués. Choramos diante da protagonista de Cavaleiros ag Mar 228 de Synge porque a pobre mie de pescadores perde seus filhos no mar, um a um. O outro tipo de emogio sobrevém exata- mente em virtude do conhecimento adquirido: choramos com Mae Coragem nio porque seus filhos Mmorrem, mas porque entendemos a estrutura comercial A qual ela se alienou. No caso da pega de Synge, a emogio sobrevém pela inevitabilidade da morte; no caso da Mie Coragem, porque compreendemos (a0 contrério da protagonista) a evitabilidade dessas mortcs. Em Tiradentes, usou-se um outro mecanismo mais apa- rentado ao segundo: uma vez ‘compreendidas as estruturas (ow Supostamente compreendidas) o préprio Coringa, que até o Pentiltimo episédio distancia-se racionalmente da trama, pas- Sa, no Ultimo, a dela participar, nela se integrande, como se Subitamente néo mais interessassem Pega, personagens, idéia central, nada, a nfo ser acompanhar 0 “herdi” no seu marti- fio. Em outras palavras: a morte de Tiradentes era evitavel; Porém nio foi evitada. A Inconfidéncia tinha todos os meios coneretos para libertar o Brasil ¢ proclamar a Republica, po- rém 2 liberdade ndo veio © a Republica nfo se proclamou, Por- tanto, depois de mostrar todas as “evitabilidades” e “poss lidades de éxito", o espetéculo se comove com o “inevitado” eo fracasso, sem que neste momento, simultaneamente, man- tenha qualquer distancia critica, que 86 sera recuperada no epi- lo; Esta é a questiio: a emogio foi usada de todas as formas. que se julgaram possiveis, sempre criticamente, ainda que em alguns casos estivesse o nivel critica defasado. No Ultimo epi- sédio, idéia ¢ emogao se desconjugam em lances isolados, ainda que estejam conjugadas, uma yez considerada a totalidade da obra. Estas sio algumas das questécs preliminares propostas Por Arena Conta Tiradenres. Outras surgirio na sua montagem. 229 VI - Quixotes e herdis STE é o sistema do Coringa, e estas sio suas metas ¢ estru- turas. EB este é o herdi: Tiradentes, E este o perigo: foi herdi. Hoje em dia os heréis nio sio bem vistos, Deles, falam mal todas as novas correntes teatrais, desde o neo-realismo, neo-romantico da dramaturgia recente americana, que se com- praz na dissecago do fracasso ¢ da impoténcia, até o novo brechtianismo sem Brecht. No caso americano, é pacifico o entendimento dos objeti- vos ideolégicos-propagandisticos da exibigio de fracasso: & sempre bom mostrar que no mundo ha gente em pior situagio do que a nossa — isto tringililiza as platéias mais cordatas que, facilmente, agradecem a Deus a disponibilidade financeira que Ihes permitiu comprar um ingresso de teatro (ao contra- rio dos personagens que nao o poderiam fazer), ou agradecem. sua pequena felicidade caseira (ao contrério dos personagens. atormentados por taras, esquizofrenias, neuroses e outras enfer- midades do trivial psicanalitica). O herdéi, seja qual for, traz sempre em si o movimento ¢ o nao, ¢ o teatro americano 20 deve sempre dizer que sim — Sua miso principal ¢ sedativa © trangiiilizante. complic: a. Cabe perguntar: foi Brecht quem eliminou os heréis, ou fo- roi ou, digamos moderadamente, em atengio A sua Ssantidade, teve um gesto “impensado"? Nenhum critério de heroicidade detmistiicady Ttle340. © heroismo de Sig Martinhe wats sti Por uma simples © bastante razio: nfo é he. Noutro poema, também sobre herdis, Brecht enfatiza o Indo Sine, quando um general vence una barmnense 2 Jado combatem milhares de soldados; quando Jilio César atra- Vessa © Rubicon, leva consigo um cozinheiro. Evidentemente i aks Saber cozinhar, nem contra o Porém, afirma-se jue Brecht deseroiciza. Cita-se, como exempla, Galilew diane do Tribunal da Inquisigfo, “covarde- mando pamma 4.8 BOW, €, mais heroicamente ainda, sust, taria as chamas, Eu prefiro pensar que para ser herbi oko indispensé i Brecht Bo fustiga o heroismo “em si”, Pois tal nfo exis- O'seun pPanss eros concsitos de heroisme & cad cht een sabes dintda Bum poema que alirma que o heme om “saber dizer a verdade © mentir, esconder-se © expor-se, matar e morrer”. Soa bem distante do herdi de Kipling, do “seras um homem meu filho”. Soa bem préximo 4s tdticas guerrilhei- ras do maoismo: “Sé se deve atacar o inimigo de frente quan- do se é proporcionalmente dez vezes mais forte do que cle”. Ouvindo Mao, certamente Orlando ficaria bem mais furioso do que costumeiramente ouvindo o tio. O heroismo de Ama- dises e Cides era determinado por estruturas de vassalagem © suserania, ¢ quem pretender reedité-lo fora dessas estruturas deverd necessariamente pelejat contra moinhos de vento e pipas de vinho diante dos olhares curiosos de prostitutas, outrora castelis. Tal foi a sorte de D. Quixote ¢ tal sempre sera. Sempre os herdis de uma classe serio os Quixotes da classe que a sucede. © inimigo do povo, Dr. Stockman, & um heréi burgués. Em que consiste seu herofsmo? Se necessdrio, ele é capaz de optar por fazer desaparecer sua cidade, pois considera honrada apenas a atitude de denunciar a poluigiio das aguas das ter- mas, Unica ou principal fonte de renda do Municipio. No tex- to de Ibsen revela-se a contradigao entre a necessidade de cres- cimento burgués da cidade ¢ os valores morais que os cidadios apregoam possuir. Stockman fica com os valores e comete 0 erro da pureza — af reside seu tipo especial de herofsmo. Podemos condend-lo por sabermos que a solugdo verdadecira (desde que se considere a verdade de outra classe que no a burguesa) no € a que Stockman propGe, ¢ nem sequer nfo est contida nos termos do problema que a pega expde. Porém, se o condenamos, nJo condenaremos o seu heroismo, apenas, e sim a burguesia ¢ todas suas estruturas, inclusive morais. © heroismo de Stockman é determinado ¢ avaliado pelas estruturas burguesas que o patrocinam ¢ informam. Cada clas- se, casta ou estamento tem seu herdi préprio ¢ intransferivel. Portanto, o heréi de uma classe sé poderd ser entendido pelos critérios e valores dessa classe. Qu poderiio as classes domi- nadas entender os herdis das classes dominantes, enquanto per- manecer a dominagio, ‘lusive moral. Heroicamente, o Cid Campeador arriscou sua vida em defesa de Alfonso VI, ¢ he- roicamente suportou a humilhagio como recompensa. Hoje, € ainda heroicamente, o Campeador teria processado seu Senhor na Justiga do Trabalho, e organizado piquetes na porta da fi- 232 brica, enfrentando gés lacrimogéneo ¢ cassetete. Nao foi tolo © Cid-Vassalo por ter feito o que fez, nem o seria o Cid- ~Proletério por fazer o que faria, Foi e seria heréi. Lidando com heréis, pode a literatura indiferentemente apresenté-los como seres humanos reais, ou mitificd-los, A for. ma de usé-los deve depender tSo-somente dos fins a que cada obra se propde. Idlio César sofria varias doencas: isto pode ser revelado no personagem, como. pode-se também, ao mito, fazé-lo gozar espléndida satide. © mito é o homem simplificado — contra isto nada se tem a objetar. Porém a iticagio do homem ndo tem ne- cessariamente que ser mistificadora — Pois contra isto muito se pode e deve objetar. Em nada nos aborrece o mito de Espartacus, embora saibamos que talvez no tenha sido tio enorme sua valentia. Nada nos aborrece em Caio Graco © sua rane Agréria. Porém o mito de Tiradentes nos perturba. ‘or qu © processo mitificador consiste em magnificar a esséncia do fato acontecido ¢ do comportamento do homem. mitificado. O mito de Caio Graco é muito mais revolucionério do que deve ter sido o hamem Caio Graco, porém é verdade que o homem distribuiu terras aos camponeses € foi Por isso morta pelos senhores da terra. A diferenga entre o homem ¢ 0 mito é, aqui, apenas de quantidade, pois a esséncia da comportamento e dos fatos € a mesma: magnificam-se os dados essenciais e elimi- nam-se os circunstanciais, Seus cozinheiros, seus vinhos ¢ seus amores, por exemplo, nfo integram o mito, embora possam ter integrado o homem. Para a instituigiio do mito Caio Graco, levante saber se o romano tinha amantes ou se gostava delas, como para a instituigio do mito Tiradentes & igualmente irrelevante acrescentar-Ihe sua filha ilegitima e sua concubina, embora para Joaquim José pudessem ser as duas relevantissi- mas — o que em nenhum momento duvidamos. Se a mitificagio de Tiradentes tivesse consistide exclusi- vamente na eliminagiio de fatos inessenciais, nenhum mal ha- veria, Porém as classes dominantes tém por habito a “adapta- Go” dos herdis das outras classes. A milificagao, nestes ca- Sos, € sempre mistificadora. E sempre é o mesmo 0 Pprocesso: eliminar ou esbater, como se fosse apenas cireunstincia, o 233 fato essencial, promovendo, por outro lado, caracteristicas cir- A condigSo de esséncia. Assim foi com Tiraden- tes. Nele, a importincia maior dos que praticou reside no seu contetido revoluciondrio. Epi mente, foi ele também um estéico. Tiradentes foi revoluciondrio no seu momento como © seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pre- tendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressio e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de Promover a felicidade do seu povo. Isto ele pretendeu em nosso pais, como certamente teria pretendido em qualquer outro. No entanto, este comportamento essencial ao herdi & esbatido ¢, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forea, a aceitagio da culpa, a singeleza com qué beijava © crucifixo na caminhada pelas ruas com baraco ¢ pregacio. Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes como o Martir da Independéncia, e esquece-se de pens4-lo como herdi revolu- cionario, transformador da sua realidade. O mito est misti- ficado. Nao é 0 mito que deve ser destruido, & a misti a Nao é o heréi is deve ser empequenecido; é a sua luta que deve ser magnificada, Brecht cantou: “Feliz 0 povo que niio tem heréis". Con- cordo. Porém nés néo somos um povo feliz. Por isso precisa~ mos de herdis, Precisamos de Tiradentes. Sdo Paulo, janeiro de 1967 234

You might also like