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Formas e sentidos do barroco na arte contemporanea Maria Leonor Barbosa SOARES * E objectivo desta comunicacdo pensar a relagao entre a arte contemporanea e a arte barroca, Apesar das diferencas nos contetidos e nas linguagens o que tém, alinal, em comum os dols momentos? ‘Como ponto de partida, algumas consideracdes de cardcter genérico se impoem: 1. Ambos os periodosfizeram da imagem o meio de comunicacio privile- giado, E declararam ainda uma predileceao: a imagem que inclui um apelo multisensorial e que provaca o maior grau de envolvimento poss vel do observador 2. Ambos os periods se apresentam possuidores de muitasfacetas no que respetaa formas de expresso, aos materias e as téenicas, ao que se pode aerescentar uim apzeeo notario por realizagoes que combinam varios media 3. Os valores formals adquirem uma grande autonomia, tendendo a liber- tarse do contetido e a tomar 0 protagonismo na obra. Eles tornam-se capazes de proporcionar uma leitura plena e satisfatoria, 36 por si. No século XX isto sert uma das realidades, no periodo barroco € uma ten- dencia mas que permite que haja sempre dois fortes polos de atencio ‘numa dada obra, sendo um constituido pelos elementos formais e outro pela mensagem em presenca. Estes dois registos podem ser lidos simulta- rneamente ot independentemente 4.Podemos dizer que as tematicas circunstanciais destizam sobre um entrancado de preacupagdes cons que, no século XX, podem consti- {wire como temas autsnomos: as fromteiras entre a arte € a realidade, 0 valor da imagem, a sua fungio e 0 seu poder, a intensidade da experitn- cia da comunicagio, a percepcdo e a relatividade da pereepcto da reali- dade, a definicdo eos limites de cada técnica ou medium. A mensagem, 1a epoca arroca, adapta a sia imagem, trabalhad, contudo, de forma a * Departments de ClncaseTenicas do Patra da Faculdade de Letras da Universidade do Porto 334 Maria Leonor Barbosa SOARES responder as preocupacbes referidas. Usufrui da conquista da manipula- ‘clo eximia das técnicas. Pretende-se uma leitura [acil, compreensio ripida e resposta emmotiva do publica, Isto é verdade para os dois perio- dos nos quals o imediatismo reina, 5. Espera-se do observador um papel activo. A sua reaceio, a sua emocdo completa a obra, conferindo-Ihe por vezes o sentido. ‘Temos jé 5 pontos de apoio para construir uma ponte entre as duas epocas. Vamos agora ver alguns exemplos concretos e ensaiar 0 percurso até a0 conceito que compartilham. Mais do que encontrar formas de representacaa coincidentes, iteressa compreender quais os interesses comuns a0s dois peri- odos e detectar as preocupacdes partilhadas mesmo que interpretadas de modo diferente. Partiremos de uma obra contemporainea ¢ com ela viajaremos até & época barroca. Pensemos em Boccion: € nas “Formas tnicas de continuidade no espaco”, ‘obra de 1913, Aonde nos tansporta? A Bernini, a“Apolo e Dafne”, (1622-1625) No Manifesto Técnico da Escultura Futurista, escrito em 1912, Boecioni pro- puna ‘fazer viver os objeitos tornando sensivl,sistematico e plasticoo seu pro- Tongamento no espaco”, defendia uma “escultura de ambiente” capaz de “superar © isolamento da figura do fimdo” mostrando que “os objects nunca terminam e se {nterpoem com infinitas combinacdes de simpatia e choques de aversao” '. Boccioni desenvolveu estas ideias em experiencias de representacio da relagdo dinamica entre os objectos, recorendo & interpenetracio dos objectos e dos planos, como em “Fusio de cabecatjanelasluz” ou “Cabecascasasluz”, realizadas em 1912, Em “Formas tinicas de continuidade no espaco” temos um trabalho con- centrado na deslocacio do corpo € nas alteracoes da forma resultantes desse estado de movimento. O corpo interage com o espaco que esta a atravessar, aceitando as marcas da pressio exterior. As formas parccem descrever dias forcas contrarias, a retencio da massa muscular pela inércia mas também o Iimpulso para a frente, através de uma sugestio de descnrolamento em espiral Podemos perceber o tempo da realizacto dos movimentos, 0 ar a tocar a figura © a moldé-la. Somos levados a pensar no nosso corpo em movimento esfor- ado, caminhando, por exemplo, contra um vento forte. As sensagdes tacteis sturgem associadas as fortes sensagbes visuais. A obra de Bernini, néo trabalha a ligacao com 0 espaco envolvente da ‘mesma maneira: Bernini nao desfaz os limites exteriores da figura. Mas, de facto, ha um interesse proximo pela representagio do movimento em embora integrado na descricdo de uma cena que se pressupde conhecida do observador. E registado o decurso do processo, a passagem sequencial das for- mas. A sugestao de aragem.. quase ouvimos 0s estalidos dos ramos e das folhas... sentimos a respiracao de Dafne, imaginamos a dor do seu corpo a transformar-se "CHIR, Herschel B, ~ Teoras da Arte Moderna Ss Paulo: Martins Fontes, 1988, p 302-308, Formas eSentdos do Baracoa Arte Contemporanea 535, A escultura de Bernini, embora descritiva (mantém a “sublimidade do ‘motivo”, algo eprovado por Boccioni no Manifesto) confere, sem diivida, 20s vvalotes formais grande protagonismo. Nao precisamos conhecer a hist6ria para usufruir intensamente da imagem, observador € envolvido nesse desenrolar de configuracdes obtendo por via sensorial uma percepsto do movimento prdxima da compreensao intelec- tualizada que a obra de Boccioni permite. ‘A tensao dinamica ¢ a apreensdo do movimento como experiéncias vitais tunem estes dois trabalho Pensemos agora no grupo Dada de Zurique e numa das Soirées realizadas no Cabaret Voltaire, pariculaemente aqucla em que Marcel Janco apresentot, as mascaras de caro pirtado Hugo Ball diz-nos qu: quando Janco chegou com as mascaras, foram st~ preendidos pelo seu poder iresistivel. Elas impunham a quem as colocava "gestos patticos, tocando a deméncia” exigindo que dancasse "uma danca tra- ica e absurda” compulsivamente, “O que nos fascina a todos nestas mascaras que elas encamnam (...] em cardcteres € paixdes que ultrapassam a escala humana."? (0 grupo Dada deixou varios testemunhos, dos quais este € apenas um exemplo, de uma entrega total de um individu ou do grupo a um determi- nado estimulo tendo cori resultado tltimo uma experiencia intensa de liber- dade (0 Dadaista afirmavase o homem mais livre da terra. Para li da razao, ser dadaista eta sobretudo uma maneita de estar e de viver num ambiente de rea- valiagto de valores, coma ameaca da morte como pano de fundo. E afinal um. cenatio semelhante, pare o barroco e para o contemporineo, que leva a valoti- zacio do momento, do elémero, as vivéncias exaltadas, a avidez de querer tudo sentir simulténea e rapidamente Hugo Ball falava nas “paixoes que ultrapassam a eseala humana”... os gestos violentos que misturam Jor e prazer... somos conduzidos a reparar na dispont- bilidade barroca para levar os sentimentos ¢ as sensagdes a um nivel extremo. Com diferencas nas orentagoes, reconhece-se um estado de sensibilidade semelhante 'No barroco encontramos a capacidade de viver intensamente um senti- mento que associa amor e temor e que conduz @ liberdade total, 0 sentimento religioso ~ tambem para além da razao, exige corpo e alma. Pensamos no tema dis experiéncias misticas dos santos, nos estados visio- ntios, ena interpretacio Berniniana do “Extase de Santa Teresa” ou da “Beata Ludoviea Alberton” No caso da danca das mascaras Dada, 0s proprios artistas sao intervenien~ tes no transe. Bernini apresenta uma imagem, mas passa para nés a sua capaci- dade de entendimentc do acontecimento, © escultor conhece o &xtase. 2 RICHTER, Hans — Dado: aan an-arLLondon: Thames and Hudson, 1997, p.23. 556 Maria Leonor Barbosa SOARES Podemos afirmar que a experiencia estética das emocoes extremas, a experien- cia da entrega do ser humano para além da razdo estabelecem a ligacao entre estes trabathos. Yes Klein - "Um homem no espaco! O pintor do espace langa-se no vazio", Dimanche”, 27.11.1960. A inten¢ao de Wes Klein (de voar) que ficou regis. tada nesta fotomontagem de Harry Shunk colocou, uma vez mais no século XX, a questio de o registo de uma intencao poder ser 80 ou mais importante ddo que a realizacio da acgio a que se reporta, constituindo um dos contributes precoces para a arte conceptual. Ea reafirmagao do autor, do sew poder criador ue the permite atribuir a uma ideia o cardcter de obra de arte Para Wes Klein, este trabalho liga-se também ao sonho sem limites, acesst- vel “mats do que em qualquer outro lugar” no “reino do av azul” °, Corresponde 11 uma estratégia para chegar ao insubstancial promovendo a libertacio total da imaginagao, Pintor do espaco, Yves Klein tenta compreender o infiito numa cor. Cria ‘uma cor, o Internacional Klein Blue, com o qual executa pinturas monocrom- ticas, embebe esculturas-esponjas, cobre relevos, concebe as antropometrias Pela plena percepeao da cor, Wes Klein propde chegar ao intangivel Eduardo Luiz Vertgem, 1985, Glee tela Wes Klein Salo no vazio, 1960 1 Fotomontagem de Harry Shunk ® KLEIN, Wes Sovbome Lecture. Paris: 1959 in HARRISON, Charles ¢ WOOD, Pal (ed) ~ Av in Theory, 1900-1980: An chology of Changing Ides. Blacwell Oxford UK & Cambridge ‘USA, 1995, p 03-805, Formase Sentdos do Banco na Arte Contemporanca 557 Tensio sensualidaderespiritualidade evocada igualmente por Eduardo Luiz nna obra “Vertigem’ de 1983, na qual os meios formals permitem de imediato estabelecer a rela¢ao com o universo visual barroco, ou resolvida por Anish Kapoor, jd num segundo nivel de leitura, em obras como “White Sand, Red Millet, Many Flowers", 1985, em formas delicadas cobertas de pigmento que indua a contemplagio ¢ desmaterializa o objecto, tornando-o um veiculo entre o mundo material ¢ 0 mundo espiritual Esta ligacdo entre os dois mundos € quase uma constante do universo bar- oco sendo a aberturs das absbadas das Igrejas um dos meios usados ensemos, apenas come um exemplo, na Igreja de Santo Inacio e no trabalho de Andrea Pozzo. A expansio do espaco das Igrejas usando a pintuta de arqui- tecturas em trompe Teil e os eximios exercicios de eseorco na figuracao dos seres celestiais falam da superacao dos limites da condicao humana. Ainda na terra torna-se possivel a crente visualizaro transcendente, ‘A evasdo no espaco ou na profundidade do azul como metdfora do encontro com o Imaterial, 0 desejo do ilimitado, a necessidade de superacao da materia- Tidade, sto umn clo entre estas obras. ‘Uma variante deste tema aparece associada & recuperacio do tema dos anjos. Eles povoam a chra recente de Evelina Oliveira, sem a felicidade dos “anjos barrocos porque conhecem a duivida eo esquecimento, Parecem ter como rmissfo conseguir o equiltbrio entre as vontades mais ow menos contraditérias de cada ser. A nao compreensio dos humanos e a nao aceitacio dos seus pro- prios conilitos interiores, bloqueando a resolucto, retira-Thes as asas. Os anjos de Evelina precisam do afecto das pessoas para readquitir asas. Sem ele ficam presos ¢ impotentes. A forma que adquirem reflecte a dor do abandono. E no sentido do tema e nao a0s aspectos plasticos que podemos inscrever 0 nosso caminho, neste caso. ‘A aspiracao a superacio da materialidade esta intimamente relacionada com a dificuldade em aceitar o fim, A morte € um tema recorrente no século XX, ‘mais angustiante, de uma maneira geral, do que no periodo barroco, dlevido & auséncia de uma justificagao ou da consolacao de uma perspectiva de continu- dade noutra dimensto, E um tema que Damien Hirst insistentemente aborda, levando até a0 insu- portivel 0 confronto com a morte. Consideremos a obra “The Physical Impossibility of death ia the mind of someone living” de 1991, na qual ¢ apre- sentado ao abservadar um tubarao dentro de um grande aqudrio... mas esta rmorto e, em vez de agua, flurua em formol. O titulo desta obra reflecte exacta- -mente a rejeigao do fim ¢ o paradoxo e frustracdo das tentativas de preservacao do corpo. [Em “Fotografia com cabeca de morto” de 1991, Damien Hirst trata 0 mesmo assunto colocando-se ruma situagio em que sentimento de repulsa é de tal ‘maneira atroz que s6 pelo absurdo Ihe é possivel sobreviver. Perante a hortivel imagem e presenca da morte, a repugnancia sentida até ao insuportavel da lugar a anulaeao dos sentimentos. No limite, a repulsa ¢ transformada em indi- 558 Maria Leonor Barbosa SOARES ferenca. Depois disto nada ¢ possivel sentir com maior intensidade, Hirst criou neste trabalho, através do paroxismo, um antidoto contra a dor com que nao consegue lidar. Sem 0 apoio de uma justificagao religiosa, Damien Hirst defende-se vivendo antecipadamente a sua prépria morte, ada humanidade ¢ a de todos os seres, globalmente. Embora num enquadramento reigioso que permite perspectivar uma conti- ‘nuidade da existencia e ur: reencontro com quem se ama, @ ceriménia de ex¢- quias barroca, elaborada e espectacular, funciona também como um expedi- ente contra uma magoa que dificilmente se supera. Concede aos vivos um tempo de adaptacio a perda, colocando 0 acontecimento num registo de ‘outra-realidade” para o que contribui a ornamentacao da igreja, a riisica, os ‘eanticos,ailuminacao, os cheitos. Unidos ¢ ocupados na preparacio da ceriménia, compartilhando memérias © medos, homenageando ¢ recriando em conjunto a imagem do falecido, 05 vivos reforcam os lacos afectivos e de solidariedade. Um conjunto de emocdes se confundem e entrelacam, sobrepondo-se de quando em quando a0 luto € proporcionando pequenos instantes de alheamento. Antes da ruptura fisiea efinitiva que coincide com o encerramento do timulo, © aparato associado & morte protege contra a dor ral A experiencia estética da encenacao da morte, distanciando ¢ resolvendo uma convivencia dificil com a precariedade da vida é uma estratégia presente no contempordneo ¢ no barroco. As intervencdes efémeras na paisagem de Christo Javacheff (como “Little Bay”, Australia de 1969, 0 diptico das “Sombrinhas” no Japao e no Canada apresentado em 1991 ow c Reichstag Embruthado em 1995, entre outros tra bathos) criam um outro tipo de cendrio também estimulante no ambito desta reflexio porque nos envia para a arte efémera associada a festa barroca, Com ‘um manifesto carécterhilico, em ambos os casos, € proposto que se veja € use © espaco com olhos e disponibilidade novos. Espago cenografico com grande impacto, chama a si o observador através do destumbramento mas tembém das experiéncias multisensoriais que propor- ciona, A dimensio usada, a disfungio imposta aos objectos ou as arquitectu- ras, a ireveréneia, sto catalisadores de uma nova maneira de sentir um lugar. ‘Mas a fruicao da obra, tal como a sua realizado, nao ¢ solitaria. A experiéncia estética € ampliada pela presenca dos outros e une os espacos da obra e da vida do publico a que ¢ destinada. Ficam indicagdes que tem continuidade para lem do contacto com a obra: reparar nas formas em nosso redor libertas das fungées utiltéias, repensar a nossa relacdo com 0 que nos rodeia, reavaliar as definigdes sobre as coisas, inclusivamente sobre as artes, como a fronteira entre escultura e arquitectura E criado um espaco migico, apelando aos sentidos, que ¢ plenamente viven- ciado em comunidad ou em grupo. Este € um outro aspecto que nos faz viajar entre os dois momentos historicos estudados, ao qual acrescentamos a monu- ‘mentalidade dos trabalhos, 0 envolvimento das populacaes lacais, necessério a Formas Sentdes do Baraco na Arte Contenporanea 559 sua execucdo, a capacidade de um maximo empenhamento desprezando 0 tempo, « evasio proporcionada pela reconstrucao da realidade durante um per'- cdo que se sabe excepcional e que se accita muito exigente mas se espera simul- taneamente muito arrebatador. A reinveneio da realidade, apoiada na alteragao das dimensoes dos objec~ tos, presente no trabalho de Claes Oldenburg conduz-nos a outas situacoes fem que esse recurso viss a surpresa e 0 fascinio, A alteracio para uma dimensao superior a ordinria deslumbra de imediato sas, para um leitor mais demorado, dirige a reflexdo para a relacio entre as coisas, E essa foi uma dhs estrategias barrocas. Basta lembrar o Baldaquino de Bernini... As causas sAo diferentes, os objectos trabalhaclos sto diferentes, os meios sao semelhantes ara um objectivo semelhante: através da alteracao da ‘scala, recriar a vida e dar ao observador razdes para se emocionar e sentir que esta num lugar onde pode ser plenamente... Sejam as motivacdes religiosas ‘num 380, ot predominantemente lidicas e totalmente profanas nowtro, ha ‘uma consciencia da relaividade da percepedo do espaco por parte dos artistas € 4 iligagao do conhecimento da psicologia do observador. A atencio dada a percepcio, uma das vertentes da obra de Sanchez-Cotin, ¢ retomada com relevante aproximagio formal por Eduardo Lutz nas duas ver- soes complementares de “Au Boucher Végétarien” (6leos de 1969 ¢ 1971) € que citam * Marmelo, Couve, Meldo, Pepino * de Sanchez-Cotén, de 1602, Sanchez-Cotin faz pensar nos pressupostos com que olhamios as coisas € que nos impedem de ver aquilo que nao valorizamos. Pela concentracao em deta- Thes considerados desinteressantes ou humildes o monge obriga 0 observador ‘pensar nos limites qu habitualmente se impoe e a procurar uma atitude de ura a novas possibilidades. © mado como percebemos 0s espacos, como condicionamos culturalmente a visto ¢ abordado pelos dois pintores, usando ‘como meio a contradicio dos sistemas de referéncias da hierarquia de valotes € «a logica, De Caravaggio, ¢ concretamente de “A ceia de Emaus”, Eduardo Luiz vai referir a preocupacto com o tema da representacao em si, através da citagdo do cesto na tela *Natureza Ressuscitada” de 1972. Hai na obra de Caravaggio uma deslocagao do contetide para a propria pintura que Eduardo Luiz valoriza. Em posigao de equilbrio precirio no leo de Caravaggio, o cesto distrai da serie dade da mensagem. Apenas por um recurso da perspectiva, toda a leitura € dlinamizada e os valores formais evidenciados. Embora esta coincidencia no formato de representacdo nao aconteca nas imagens de sofrimento fsico, este € um tema que tem uim peso impressive nos dois periodos {As performances de Hermann Nitsch dos anos 60 e 70 que ele considera “uma forma estética de rezar" sto compostas, frequentemente, por um ritual sangrento durante o qual um cordeiro morto ¢ aberto perante 0 publico ¢ 0 seu sangue despejado sobre o performer, amarrado a uma cruz. Propondo-se ‘como um ritual com uma componente de purificacao pelo sofrimento pretende 560 Maria Leonor Barbosa SOARES Hermann Nitsch Performance do Orgies Mysteries Theatre, Austria, 1975 funcionar também como terapia da agressividade latente e instintiva mas repri- ‘ida pela sociedade Chris Burden infringe a si proprio tormentos colocando-se em situagoes limite, por vezes em perigo de vida. Isso permite-Ihe uma auto-consciéncia acrescida, a partir da analise das suas reaccdes e das reaccdes dos outros situ acdo por ele concebida, ¢ 0 conhecimento de aspectos da realidade desconhe- cidos da maior parte das pessoas, Em “Through the night softly", performance realizada em Los Angeles em Setembro de 1973 ¢ registada em video, arrasta- se sobre o chao coberto com pedras e vidros partidos. O registo transmite a progressto do corpo no chio, o esforco, o sacrilicio e a capacidade de resisten- cia dor fisica por parte do artista, O sofrimento suto-infringido € também uma forma de superacao das angustia. Para o observador a tensio e ansiedade vao crescendo durante a visualizacao do video acentuando a sensacao de liber- tagio e relaxamento quando concluido, Embora com intengOes diferentes, Stuart Brisley levou a cabo, com idéntico espitito de sacrificio, em 1972, uma accao em Londres na Gallery House “And for today nothing”, permanecendo durante 2 semanas dentro de wma banheira ‘mergulhiado num liquido negro ¢ rodeado de detritos, pondo em causa a satide fisica e mental, tendo como objectivo chamar a atengio para a passividade, a despolitizagio ¢ alienacao dos individuos na sociedade comemporanea, Petante estas situagbes de agressio fisica, somos levaclos a pensar em todas 4 interpretacoes plistcas de martiio que o Barroco produait, por vezes com extrema violencia. Para além das componentes de fé e de homenagem e reco- hecimento aos martires, a catarsis ¢ af igualmente conseguida através do enyolvimento a que as imagens obrigam. Diferentes no formato, num caso pin- tra e escultura, no outro aso performances com registo em suporte de foto- grafia ou video, encontranos ainda a estetizacdo de situacées extremas, a representacao do sofrimento como meio de superacdo das fraquezas, de aperfi- oamento ou testemunho de um ideal, como ideias partithadas por estas obras, Formase Senidos do Barroco na Arte Contempordnea 561 Pedro Tudela Sem titulo, 199 (ese grafte tela Relacionavel com o conflito vida/morte ¢ © trabalho de Giovanni Anselmo rho qual reconhecemos preocupagdes que vemos presentes também na pintura de vanitas: a descricao da continua transformacao fisica das coisas induzindo a conscitncia da fragilidade do organico em contraste com possibilidade ou 0 desejo de permanéncia. Na Arte Povera, sem simbologia, pela observacao das coisas banais (apresentacio de elementos que reagem entte si, processos qui- micos ou de transferenea de energia) trabalha-se também a um nivel metalo- rico, com intencoes éticas, incluindo igualmente a utilizacao didactica da cons- lante muta¢ao no mundo natural. Em comum: a preocupacdo com o mutavel, a nogao de ser um elemento num processo continuo, a vontade de retivar dessa constatacao ¢ da observacao da natureza em geral, ligdes para a vida, Pedro Tudela apresertou na Galeria Nasoni ¢ na Galeria Atlantica um tra balho multimedia tendo 0 coracdo como protagonista, podendo ser entendido ‘como simbolo do ser humano integral, Sem narracio, mas através da diversi- dade e riqueza dos efeitos plasticos, da multiplicidade e intensidade de sensa- ‘cdes vividas perante a irstalagao, do estimulo das varios sentidos e, em parti- cular, do olfacto, a obra envolvia fisicamente 0 observador, provocando a ‘memoria e a imaginacto. Conciliando na forma ¢ no sentido a sensibilidade barroca e contemporanea, este trabalho lembra o que de facto une globalmente 0 dois momentos: a capacidade de sentir de forma extrema a paixzo, Biliografia ARGAN, Ginlio Carlo ~ LA Baroque. Geneve: Ski, 1989. CATALOGO "Eduardo Lue". Lisboa: Fundagto Calouste Gulbenkian, 1990, CATALOGO "Pedro Tudela: Cnc... all” Port: Galeria Nason, 1994 CATALOGO “Triunfo do Barro". Lisboa: Fundagao das Descoberta/CCB, 1993. CCHiPR Herschel B, ~ Teorasda Arte Moderna Sao Paulo: Martins Fontes, 1988. 562 Maria Leonor Barbosa SOARES DIGIONARIO DA ARTE BARROCA EM PORTUGAL. Lisboa: Editorial Presenga, 1989, FINEBERG, Jonathan ~ Art since 1940: Strategies of Being. London: Laurence King Publishing 1995, GOLDBERG, Roselee ~ Performances: Vart en action, Pais; Editions Thames & Hudson SARL, 1999, HARRISON, Charles; WOOD, Paul (ed.) ~ Art in Theor 1900-1990: An Anthology of ‘Changing leas. 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