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A COMUNIDADE CiVICA, EM WALZER E PUTNAM ANTONIO SERGIO ARAUJO FERNANDES © termo comunidade cfvica estd intimamente ligado aos temas da ago e da participaciio do cidadios na vida publica. Uma comunidade cfvica pode ser caracterizada idealmente como um espago politico-territo- rial circunscrito, composto de cidadaos dispostos e capazes de participar da vida publica em suas diferentes dimensdes. A nogio de comunidade cfvica serd discutida aqui a partir de duas correntes de andlise diferentes, me- diante 0 exame do pensamento de dois autores representativos. A primeira corrente de andlise, que expressa uma visio unitéria da comunidade cfvica, ser4 representada aqui pela teoria comunitarista de Walzer (1993; 1990). Esta abordagem segue a tradig’o do humanismo cfvi- co. Podle-se considerar, em primeira aproximagdo, que o trago comum a essa tradigdo é a visdo de que o papel primordial do homem enquanto cidadao de uma democracia republicana é a participagio na vida politica. O trabalho de Walzer Spheres of Justice expressa exatamente essa visio. Spheres repre- senta uma das mais importantes contribuigdes & corrente comunitarista das teorias de justiga, que é critica em relagao & corrente liberal, mais especifi- camente & corrente liberal igualitaria representada por John Rawls. Jé no seu artigo “The Communitarian Critique of Liberalism” Walzer procura fazer uma revisio de sua teoria comunitarista, tentando desenvolver uma critica transigente ao liberalismo de Rawls. Admitindo a validade de alguns dos pressupostos liberais, Walzer tenta construir uma alternativa comunitarista A teoria liberal, 0 que o distancia parcialmente dos pressupostos do huma- nismo cfvico sobre a nogio de comunidade cfvica. “Agradego ao prof. Alvaro de Vita pelas criticas e sugestdes incorporadas no texto final. Meu agradecimento também ao prof. Gabriel Cohn pelo estimulo para que escrevesse este artigo. 2 LUA NOVA N° 51 — 2000 A segunda corrente de anilise é a associativista, com origem em Tocqueville, que tem como contribuigao recente na ciéncia politica empiri- cao estudo de Putnam (1996) acerca do caso italiano, que examinaremos mais adiante. A ABORDAGEM UNITARIA ‘A abordagem unitéria da comunidade civica inscreve-se na cor- rente denominada humanismo cfvico. Esta corrente € origindria do pensa- mento de Aristételes ¢ tem Maquiavel e Rousseau como seus principais autores. Pode-se considerar, em primeira aproximagio, que o trago comum a0 humanismo cfvico € a idéia de que o papel primordial do homem enquanto cidado de uma democracia republicana é a participagdo na vida politica. A politica aqui refere-se & participagao direta nas deliberagdes de governo em assembléia, isto 6, participago direta no Estado. Como con- sidera Aristételes (Politica, livro Il, p.53), “o homem € um animal feito para a sociedade civil”. Para Aristételes o fundamento da virtude cfvica na democracia ateniense consistia em que os cidadaos deveriam dedicar-se unicamente aos assuntos puiblicos ¢ ao bem comum, Isso assegurava a unidade e solidariedade & reptblica!. A boa vida s6 era possfvel na polis através da participagiio cfvica, ¢ isto representava na pritica a participagao direta dos cidados em assembléia nas deliberagdes de governo. Segundo alguns dos mais importantes revisionistas republi canos, como Pocock (1975), Skinner (1990) e Viroli (1990), o tema da vir- tude civica que tem origem em Aristételes é recuperado na era renascen- tista, mais especificamente no pensamento dos humanistas civicos como Leonardo Bruni, Petrarca, Coluccio Salutati, e até Maquiavel. Como lem- bra Bignotto (1991, p.32) essa concepgio exigia do homem, como centro do universo, virtude e busca de grandeza, algo que no contexto do pensa- mento medieval s6 a graca divina poderia conceder. O tema da virtude impés-se em um universo cultural que procurava romper com o pens mento medieval, fazendo da ago humana o niicleo de suas preocupagées relacionadas com a conservagio das estruluras de poder. Segundo ' Sobre o pensamento grego e especificamente sobre 0 pensamento politico grego, a discussio das idéias de repuiblica € democracia ver, entre outros, Finley (1984; 1988); Jaeger (1986); Bignotto (1995); Jones (1986); Andrewes (1991). A COMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM B Kramnick (1982: 630), nessa tradigdo de pensamento, que remonta a Aristételes pasando por Cicero e culminando em Maquiavel, a nogao de virtude civica, ou de cidadao virtuoso, € concebida a partir da idgia de liberdade do homem exercida na vida publica. O homem virtuoso preocu- pa-se primeiro com o bem comum e niio com o interesse privado, conside- rado menor. Segundo Skinner (1990, p.136), para Maquiavel a cidade re presenta um lugar de autonomia no espago politico, cuja dindmica interna & marcada pelo conflito e pela heterogeneidade. A liberdade a partir da v tude cfvica € dada pela capacidade dos cidadaos de participar da vida piiblica, de defender seus objetivos ¢ isto s6 se torna posstvel numa replica. De acordo com Held (1987, p.67) 0 pensamento de Rousseau resgata a idéia de Maquiavel sobre reptblica ea combina com a nogio de consentimento, contida nas formulagdes do contrato social de Hobbes ¢ Locke. Diferentemente de Hobbes ¢ Locke, a sobcrania do povo niio deve- ria ser transferida para o Estado. A soberania ndo apenas se origina no povo como deve ficar com ele, que a exerce através da vontade geral (Burgelin, 1998, p.XVI). Rousseau radicaliza a idéia de cidadios ativos e envolvidos nas questes pablicas, pois para ele todos os cidadaos deveriam se reunir para decidir 0 que € melhor para a comunidade e decretar as leis apropria- das que representassem 0 bem comum, pela manifestacao da vontade geral. No que tange nogo de comunidade ctvica, toda a teoria de Rousseau atir- ma que a participagio individual de cada cidadao na deliberagiio é a dimen- sio central da vida de um individuo numa repdblica. Nao existe espaco para partidos, grupos ou associagdes. Cada individuo a0 mesmo tempo se autogoverna e depende de forma imprescindivel da comunidade (Held, 1987; Pateman, 1992; 1985). Liberdade de pensamento e igualdade politi- cae de propriedade siio os conceitos bisicos de sua teoria, que trata a von- tade geral como a vontade do corpo politico, que € a comunidade de cidadios unida A abordagem unitéria da nogio de comunidad cfvica também sofre influéncia do pensamento de Hegel. Para Hegel (1936) a sociedade civil (0 conjunto dos interesses privados antagénicos entre si) cra algo separado ¢ distinto do Estado politico. Sem o concurso deste, aquela seria incapaz de unificar os individuos ¢ os grupos numa associagiio abrangente. Neste sentido 0 Estado € 0 verdadeiro contetdo, 0 verdadeiro fim univer- sal para os individuos. Somente como membro do Estado € que 0 indivi- duo ascende & sua objetividade, verdade c racionalidade (Brandio, 1999, p-107), Segundo Brando (1999:109), Hegel acreditou na restauragio da 14, LUA NOVA N° 51 — 2000 polis grega. Numa original interpretagdo da repiblica de Platéo, Hegel considera a repiblica, dotada de unidade e totalidade, como a verdade do mundo grego, o sentido para o qual este tendia e que teria alcangado, tivesse sido bloqueado pelo aparecimento da particularidade. A TEORIA DE WALZER? A concepgiio de comunidade civica de Walzer segue a abor- dagem unitdria contida na tradigdo do humanismo civico. Esta vertente de republicanismo encontrada no pensamento de Walzer (1990; 1993) consti- tui um dos principais alicerces de sua teoria comunitarista da justiga. Portanto, s6 pela compreensio das posigées de Walzer com relagio 2 justiga distributiva torna-se possfvel chegar & sua concepgfio de comu- nidade cfvica. Spheres of Justice representa uma das mais importantes con- tribuigdes a corrente comunitarista das teorias de justiga. A teoria da justiga comunitarista é critica & corrente liberal, como se pode ver, por exemplo, nos trabalhos de Michael Sandel e Alasdair MacIntyre’. Essa critica incide mais especificamente na corrente liberal igualitéria inspirada em Rawls (“justice as fairness”), que define a justiga distributiva com prioridade no direito e nao no bem. Os comunitaristas ¢ especificamente Walzer (1993), ao contrario, definem a justiga distributiva a partir do conceito do bem, isto 6, através da forma pela qual uma comunidade se associa para produzir, compartilhar, dividir e intercambiar os bens sociais. Walzer (1993) propoe uma teoria pluralista da justiga segundo a qual ndo existem principios uni- versais de justiga distributiva. Isto é, ndo & possivel encontrar um critério universal de distribuig&o dos bens, pois em diversos lugares existirio mecanismos distintos de distribuigdio dos bens que so produzidos pelas distintas comunidades sociais. Daf os princfpios de justiga serem em si mesmos plurais, uma vez que bens sociais distintos devem ser distribuidos por raz6es distintas ¢ que todas essas diferengas derivam de uma com- preensdo partilhada dos bens sociais pelos membros de uma comunidade. Os bens sociais sio, portanto, produto do seus significados sociais, ou seja, 2 Algumas das principais erfticas a teoria comunitarista de Walzer foram realizadas por Cohen £1986) ¢ Barry (1995), Sobre estes dois autores, ver, entre outros, os trabaihos importantes de Sandel (1982; 1984) e Macintyre (1981). ACOMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM 15 da especificidade histérica ¢ cultural de uma comunidade. E deste modo portanto que se explica a razo pela qual a énfase da teoria de Walzer esté nos significados solidamente produzidos sobre os bens que sero distribus- dos, ¢ nao em um critério de distribuigd0 que € prévio aos signiticados desses bens (como é 0 caso na teoria da justica de Rawls). Um segundo aspecto fundamental que caracteriza a teoria de Walzer como pluralista reside na sua idéia de igualdade complexa. De acor- do com Walzer, dado que os bens sociais possuem significados sociais, entdo © acesso a justiga distributiva se dé pela interpretagio do significado de cada bem social. Assim, cada bem social encontra-se numa esfera distributiva, Buscam-se princfpios internos a cada esfera distributiva. Os valores partilha- dos por uma comunidade que produz um bem social constréem princfpios distributivos e constituem uma esfera de justiga que deve ser auténoma, nao submetida a qualquer poder tirdnico. Em outras palavras, cada bem social possui um determinado conjunto de valores partithados, construfdos dentro da comunidade, os quais nenhum poder politico pode desconsiderar. Como afirma Walzer (1993, p.32): “Converter um bem em outro quando nfo hd uma conexio intrinseca entre ambos significa invadir a esfera na qual_um outro grupo de homens e mulheres governa com propriedade. O monopélio nio € impréprio dentro das esferas. Nada hé de errado, por exemplo, no controle que homens ¢ mulheres (politicos) persuasivos e habeis estabelecem sobre o poder politico. Porém o emprego do poder politico para ganhar acesso a outros bens é um uso tirdnico. Desse modo, uma velha definigdo da tirania € estendi- da: de acordo com os autores medievais, 0 principe se converte em tira- no quando se apodera da propriedade ou invade a familia de seus stiditos. Na vida politica — e também mais amplamente — 0 controle sobre os bens traz consigo a dominagio de pessoas.” ‘Seguindo esta linha de raciocinio, que procura conceber a autonomia das esferas de justiga, € que Walzer constréi seu conceito de ignaldade complexa, que significa a auséncia de dominagao ou tirania na distribuigdo dos bens sociais. Significa isso que nenhum bem social X ha de ser distribufdo entre homens ¢ mulheres que possuam algum outro bem Y simplesmente porque possuem Y sem tomar em conta o sig- nificado de X. Apesar disto, Walzer admite que em algumas sociedades de castas ou fortemente hierdrquicas a dominagdo ou a tirania podem se apoiar em significados sociais. Walzer considera que em algumas comu- nidades a tirania pode fazer parte de uma idiossincrasia social prépria de uma cultura polftica particular, 6 LUA NOVA N° 51 — 2000 Para Walzer a igualdade complexa exige a defesa de fronteiras entre as esferas de distribuigdo dos bens e a diferenciagaio dessas esferas. “S6 podemos falar em um regime de igualdade complexa quando hd muitas fronteiras a serem defendidas” (1993, p.40). Ou seja, existem diferentes es- feras distributivas, cada qual regida por um princfpio de distribuigio que deriva do significado social do bem social em questo. Isto opde-se ao que Walzer denomina igualdade simples, isto 6, a suposi¢o de que hé um bem social domiante (como por exemplo, o dinheiro, ou a riqueza, ou os meios de produgao) que, se fosse distribuido de forma igualitaria, garant realizagiio de igualdade. De acordo com Walzer, 0 tinico entorno capaz de assegurar a igualdade complexa, que mantém as fronteiras entre as diferentes esferas de justiga, é a comunidade politica. Nas suas palavras (1993, p.41): “A comunidade polftica é 0 que mais se aproxima de um mundo de significados comuns. A linguagem, a histéria ¢ a cultura se unem (aqui mais do que em outro iugar) para produzir uma consciéncia cole. tiva”. B a comunidade politica (tomada af enquanto pais, regio ou cidade) 0 lugar onde os cidadaos partitham seus valores, a tim de pro- duzir seus bens sociais, e decidem sobre quais critérios distributivos aplicar. Neste sentido, a descentralizagio das decisées e 0 papel dos cidadaos na participagao ativa numa comunidade politica sio elementos fundamentais para que se assegure a “no-tirania” portanto a justiga distributiva, Pertencer & comunidade torna-se portanto um aspecto essencial para que ocorra a participagdo dos cidadaos. Para participar do poder politico os cidadaos devem ser accitos e devem efetivamente per- tencer A comunidade. Para Walzer, a comunidade politica nao se consti- tui sé como o meio ideal para a produgio e distribuigao dos bens sociais, mas 6 em si mesma um bem social, ¢ 0 mais importante, “A comunidade em si mesma um bem — possivelmente o bem mais importante — que é distribufdo” (1993: 42). Segundo Walzer, o poder politico deve ser exercido democrati- camente, mas néio de modo a conferir apenas uma igualdade simples de dircitos, do tipo um homem, um voto. Para Walzer, a igualdade simples (um homem, um voto) estimula a presenga de elementos extrinsecos i politica (heranga, nascimento, riqueza, etc.), enquanto que a igualdade complexa valoriza os elementos estritamente intrinsecos 2 politica (a palavra, a persuasio, 0 consenso, convencimento, etc.) € portanto é mais justa, Desse modo, deve-se estimular a presenga de partidos, comités ¢ convengées no processo politico, valorizando a participagiio dos cidadios jaa ‘A COMUNIDADE CIVICA EM WAL; 1 ativos. Os comités e convengdes so mais democraticos do que os referen- dos e eleicg&es primérias, uma vez que estas tiltimas se utilizam de meios massivos de comunicagdo sem mediagao politica, num processo que mais parece uma compra de votos, uma vez que o candidato se relaciona com eleitor apenas através do programa de televisio, Na maioria das vezes o candidat que possui recursos financeiros capazes de sustentar uma cam- panha acaba vencendo a eleigio. A igualdade de direitos parece nao gerar, ao contrario do que se pensa, uma igualdade de poder, O papel dos cidadios ativos, dotados de virtude, isto & da vontade de participar do processo politico do Estado, é que vai garantir a tomada de decisdes ver- dadeiramente democraticas, seguindo um princfpio de igualdade com- plexa. Nas palavras de Walzer (1993, p.317): “os candidatos escolhidos em comités ¢ convengdes quase com certeza serdio melhor conhecidos por um maior mimero de pessoas que os candidatos escolhidos nas cleigdes primérias, pois os primeiros, a0 contratio dos dltimos, tero sido vistos de perto sem maquiagem; terio trabalhado em distritos e em regides, terdio sustentado debates, terdo se comprometido de uma maneira determinada com mulheres e homens determinados. Sua vit6ria seré a vit6ria do partido ¢ exerceriio o poder de uma maneira mais coletiva.” Portanto, para Walzer, 0 poder politico € exercido com a par- ticipagio ativa e explicita dos cidadiios. Fica claro que 0 cotidiano da Participacio politica (nos comités e convengdes partidarias) é que re- presenta para Walzer a participagao politica ativa do cidadao na comu- nidade, a0 contrério do voto em plebiscito por exemplo, que, apesar de representar uma forma de participagio politica direta, para Walzer niio confere o bastante aos cidadios no que tange a uma efetiva participagao politica ativa na comunidade. Num contexto de igualdade complexa cada cidadao torna-se um participante potencial, um politico potencial ¢ ndo apenas um eleitor. Como se vé, essa nogdo de comunidade cfvica desenvolvida por Walzer coaduna-se perfeitamente com a abordagem unitéria de comu- nidade cfvica oriunda da tradigiio do humanismo civico. AREVISAO DO CONCEITO DE WALZER Em seu artigo “The Communitarian Critique of Liberalism” Walzer procura fazer uma revisio de sua teoria, tentando desenvolver uma critica transigente ao liberalismo de Rawls. Admitindo a validade de alguns 8 LUA NOVA N° 51 — 2000 pressupostos liberais, Walzer tenta construir uma alternativa comunitarista A teoria liberal, ou, nas suas palavras (1990, p.15): “uma correc’io comu- nitarista do liberalismo”. O fundamento da critica de Walzer ao liberalismo, neste texto, reside na idéia central de que a base da sociedade liberal € comunitaria, mas a doutrina liberal subverteu essa base, estimulando apenas os valores dissociativos ao invés dos valores associativos. Por conta disso, a socieda- de liberal na pratica tornou-se fragmentada, composta de homens e mul- heres egofstas-racionais, protegidos ¢ divididos por seus direitos inalie- ndveis, buscando apenas minimizar seus riscos e obter seguranga. Além da fragmentagiio, os individuos na sociedade liberal tornaram-se isolados portanto desestimulados a partilhar tradigdes politicas ou religiosas ¢ cul- turais. Junto com a fragmentagio ¢ o isolamento, 0 liberalismo provocou um excessivo deslocamento territorial dos individuos. Este é mais um ele- mento desagregador da base comunitéria, que estimula um declinio de movimentos sociais, partidos, clubes, associagdes urbanas e consolida a existéncia de eleitores separados. Para Walzer hé, portanto, um dilema a ser solucionado. Consiste ele em que a estrutura da sociedade liberal é de fato comu- nitdria, mas a retérica do liberalismo distorce ¢ oculta este aspecto. Eo dilema da experiéncia comunal versus ideologia liberal. A “corregiio do liberalismo” que Walzer sugere como solugdo considera que a socie- dade liberal € totalmente invidvel, e que apenas com a aplicagio de princfpios comunitaristas a convivéneia entre os individuos sera pos- sivel. A idéia de Walzer sugere o reforgo de praticas liberais (tais como © estimulo as associagdes voluntirias) que possam contribuir para desenvolver valores comunitaristas dentro da sociedade liberal. E uma tentativa de agir no contexto da sociedade liberal e nio esperar ideal- mente pela converstio dos valores liberais dos individuos em valores comunitaristas. Nas palavras de Waizer (1990, p.15): “O liberalismo € uma doutrina auto-subversiva: por essa razio, ele realmente requer uma per- i6diea correcaio comunitarista, Mas nao é particularmente itil uma forma de corregdio que sugere que o liberalismo € literalmente incoerente ou que pode ser abandonado em pro! de alguma comunidade pré-liberal ou antilib- eral que esteja & espera logo abaixo da superficie ou logo ali no horizonte. Nada hd & espera: € preciso que os comunitaristas norte-americanos recon- hegam que nio existe nenhuma outra coisa [na sociedade norte-americana] que ndo seres liberais separados, portadores de direitos, que se exprimem ‘A COMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM 79 livremente ¢ que se associam voluntariamente. Mas seria bom se con- seguissemos ensind-los a se reconhecerem como seres sociais, como pro- dutos histéricos ¢ em parte como personificagdes de valores liberais. Pois a corregiio comunitarista do liberalismo no pode ser nada mais do que um reforgo seletivo desses mesmos valores ou, para se valer da conhecida frase de Michael Oakeshott, nada mais do que uma busca dos vestfgios de comu- nidade que existem nesses valores.” Segundo Walzer, o elemento central para realizar esta corregiio comunitarista do liberalismo é a idéia liberal de associagdes voluntérias. O liberalismo na sua teoria e na sua pratica expressa forte tendéncia tanto associativa quanto dissociativa: seus protagonistas tanto formam grupos como rompem os grupos que formaram. Estas associages nio s6 expres- sam configurag6es voluntarias € contratuais (como no caso do casamento ¢ do divércio), mas também expressam a identidade das pessoas, como membros de classe, etnia, religiao ou ideologia politica. Como considera Walzer (1990, p.15): “o liberalismo distingue-se menos pela liberdade para formar grupos sobre a base dessas identidades do que pela liberdade de romper com grupos e mesmo de deixar identidades para tras.” De acordo com Walzer (1990, p.18), 0 sentimento comunal parece mais estdvel do que se pensa e a proliferagdio de associagdes secundarias na sociedade liberal é considerdvel. E desse modo que consi dera que as associagdes sempre so um risco para a sociedade liberal. Dito de outro modo, Walzer tenta mostrar que a doutrina liberal, ao privilegiar seus aspectos mais excessivamente individualistas, termina por ofuscar 0 fato de que a sociedade liberal é um produto social e que é 0 papel ativo dos cidados que garante o funcionamento das instituigdes que asseguram a liberdade individual. Observe-se que, na medida em que Walzer enaltece ¢ destaca o papel central das associagdes voluntarias para realizar o que ele denomina “corregdo comunitarista”, ele agora considera a comunidade (distinguindo- se de Spheres) como algo que nao esti referido ao Estado. Nas suas pala- vras (1990, p.17): “O Estado nao é a mais importante unido social”. Walzer também admite a idéia rawlsiana de uma “unio social de unides sociais” como definidora da configuragio da sociedade liberal. Como atirma Walzer (1990, p. 14), “em sua melhor versio, a sociedade liberal é a unio social de unides sociais que John Rawls descreveu: um pluralismo de gru- pos unidos por idéias partilhadas de tolerancia e democra Para que se possa entender melhor esta afirmagio de Walzer torna-se necessirio compreender a idéia de unido social de Rawls. Para 80 LUA NOVA N° $1 — 2000 Rawls (1997, pp.581-582) a doutrina contratualista nao deve caracterizar os vinculos entre os homens somente a partir dos aspectos meramente instrumentais, isto é, a partir dos mecanismos institucionais estabilizadores das relagdes privadas. A interdependéncia e interacZio cooperativa (e nao conflitiva ou competitiva) entre os seres humanos & que torna possfvel o desenvolvimento das capacidades individuais. Estas capacidades indi duais so semelhantes ou complementares as dos outros individuos e por- tanto sé se realizam num ambiente comum de cooperagao. Ei a unidio so- cial, entendida af como comunidade, o ambiente em que os individuos vio estabelecer objetivos finais partilhados, assim como, instituigGes ¢ ativi- dades comuns capazes de desenvolver 0 exercfcio das capacidades huma- nas, ou seja, onde os individuos vio cultivar suas habilidades, planejar seus objetivos € ordenar sua evolugio, de modo que a satistacao pessoal torne recfproca a apreciagiio ¢ o respeito aos outros. Nas palavras de Rawls (1997, p.583): “Podemos dizer, seguindo Humboldt, que é pela unidio social, fundada nas necessidades e potencialidades de seus membros, que cada pessoa pode participar da soma total dos dons naturais cultivados dos outros. Somos levados 2 nogiio de comunidade da espécie humana, cujos membros apreciam uns nos outros as capacidades € individualidades fomentadas por instituigées livres e reconhecem o bem de cada um como um componente da atividade conjunta cujo esquema em sua totalidade 6 por todos consentido € a todos dé prazer."# Segundo Rawls (1997, p.586) a unidio social possui como ca- racteristicas basicas a existéncia de fins dltimos partilhados ¢ atividades comuns valorizadas em si mesmas. Muitas formas de vida posstiem ca- racterfsticas de unio social, desde a ciéncia, a arte, as famflias, as asso- ciagdes, grupos de amizade ¢ outros grupos. A sociedade em si mesma por englobar todas estas unides sociais é uma “unio social de unides sociais”, Nas suas palavras (1997, pp.586-587): “uma sociedade bem organizada (correspondendo a justiga como eqitiidade) € em si mesma uma forma de unido social. De fato é uma unio social de unides so- ciais, Os dois. tragos caracteristicos esto presentes: a implementagio bem sucedida de instituigdes justas € 0 objetivo final partilhado por todos os membros da sociedade ¢ essas formas institucionais sio va- lorizadas em si mesmas (...) os membros de uma sociedade bem organi- 4 A traduga0 dessa passagem foi um pouco alterada. ACOMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM, 8 zada tm o objetivo comum de cooperarem juntos para realizar a sua natureza ea dos outros de modos que so permitidos pelos principios da justiga. Essa intengio coletiva é conseqiiéncia do fato de todos terem um senso de justiga efetivo.” Em suma, Rawls est argumentando que uma estrutura bi ica liberal justa comporta a nogdo de unio social ou comunidade. Esta comu- nidade, porém, néio tem uma concepgio unitaria, como foi vista anterior- ais”, ou seja, um conjunto de gru- mente, € uma “unio social de unides soci pos, comunidades, associagdes de toda ordem que se apesar de distintas na concepgao do bem e no modo de vida esto unidas por instituigdes que pos- suem objetivos comuns partilhados de justiga e liberdade. Apesar de Walzer inserir em sua revisdo do conceito de comu- nidade a idéia rawlsiana de unio social, ao mesmo tempo ele procura sus- tentar que os limites do liberalismo impedem o desenvolvimento das asso- ciages voluntirias, ou seja o desenvolvimento das varias unides sociais. Um destes limites do liberalismo é a prescrigdio de um Estado neutro, Para Walzer, a correciio comunitarista prevé a existéncia de um Estado niio-neu- tro, dotado de soberania ¢ que seja capaz de criar mecanismos institu- cionais que estimulem o associativismo. Na opinido de Walzer (1990, p.19), “um bom Estado liberal (ou social-democrata) aumenta as possibil- idades para reproduzir cooperagio” De acordo com Walzer, o estabelecimento de um Estado niio- neutro capaz de estimutar os cidadiios ao associativismo s6 pode ser enten- dido em termos republicanos. A proposta de Walzer é de um revival re- publicano (denominado por cle republicanismo neoelissico), na sua versio conhecida em filosofia politica como humanismo civico. O humanismo civico, diferentemente do republicanismo classico, entende a epublica de modo unitirio ¢ integrado, composto de comunidades homogéneas e pe- quenas onde a virtude primeira dos cidadios consiste no comprometimen- to politico de participagaio na vida publica. Como considera 0 proprio Walzer (1990, p.20): “o republicanism (...) é uma doutrina unitéria ¢ integrada na qual a energia ¢ © comprometimento sao focados primaria- mente no mundo politico. E uma doutrina adaptada (em ambas versées, nas suas formas cliissica ou neoclssica) para as necessidades de comunidades pequenas e homogéneas, nas quais a sociedade civil é radicalmente indife- renciada”. Segundo Rawls (1995, p.206) 0 humanismo cfvico, “como uma forma de aristotelismo, é 4s vezes apresentado como a vistio segundo a qual © homem € um animal social, ou mesmo politico, cuja natureza essenciat 82 LUA NOVA N° 51 — 2000 se realiza mais plenamente numa sociedade democratica na qual existe uma participagdo ampla e vigorosa na vida politica. A participagiio no é encorajada como algo necessério 4 protegiio das liberdades basicas da cidadania democratica e como algo que, por si mesmo, constitui um bem entre outros, por mais importante que possa ser para muitas pessoas. A par- ticipagio na politica democratica, ao invés disso, é [para o humanismo cfvico] considerada o locus privilegiado da vida digna de ser vivida. Isso significa voltar a dar um lugar central aquilo que Constant denominava ‘liberdade dos antigos’, ¢ tem todos os seus defeitos.” Para Walzer, contudo, esta versio de republicanismo é ideal para a concepgaio de seu tipo de Estado ndo-neutro, descentralizado e par- ticipativo que desempenhard um papel fundamental na esfera local, seja na cidade, no distrito ou na vizinhanga. Neste aspecto Walzer se mostra contraditério, visto que ele assume inicialmente que o Estado nao é a principal unio social, porém agora enuncia como formato politico ideal uma corrente republicana nao pluralista, que em principio é incompa- tivel com o liberalismo. Neste sentido, Walzer parece distanciar-se de Rawls c de sua idéia de unido social, e conservar 0 conceito de comu- nidade politica formulado em Spheres, quando assume uma visio de comunidade politica unitaria, homogénea ¢ ligada estritamente ao poder do Estado (a comunidade ¢ 0 Estado), consoante portanto os principios do humanismo cfvico. O proprio Walzer (1990, p.19) assume essa dis- cordincia com Rawls: “existem realmente unides, igrejas e vizi- nhangas na sociedade norte-americana, mas virtualmente néio existem exemplos de associagio republicana nem de movimentos ou partidos visando promover tais associagées, Dewey provavelmente nio reco- nheceria seu piiblico, nem Rawls sua unido social como versdes de republicanismo, n&o fosse por nenhuma outra raziio por que nesses dois casos a energia ¢ 0 comprometimento foram desviados da associa- gio nica e estritamente politica para as mais diferentes associagdes da sociedade civil” (grifos do auton’: Rawls (1995, p.205) considera que 0 humanismo cfvico é incompativel com um formato de liberalismo politico concebido em sua 5 Cabe uma ressalva nesta citagio, uma vez que, além de Rawls, Walzer (1990, p.19) refere- sea John Dewey, que publicou em 1927 de The Public and This Problems, Walzer considera Dewey, que em seu tempo era conhecido como pluralista, como um autor cujas idgia comungam com sua critica comunitarista ao liberalismo, principalmente no tocante a0 que Dewey chamava de grupos primiirios dentro do Estado. ACOMUNIDADE CIVICA EM WALZE! E PUTNAM 83 teoria de justiga como eqilidade, porém admite que com o republicanismo classico o liberalismo politico nao possui nenhuma oposigiio fundamental De acordo com Rawls, no republicanismo classic, que tem Tocqueville um dos principais representantes, os cidadios de uma sociedade democriti- ca preservam seus direitos e liberdades basicas, ao mesmo tempo que tém um grau de virtude politica que os predisp8e a tomar parte na vida piibli- ca. A seguranga das liberdades democraticas requer a participagiio ativa do cidados que possuem virtudes politicas necessarias para manter o regime constitucional. Segundo Rawls (1995: 205), sem uma participag’o ampla na politica democrdtica por um corpo de vigorosos e informados cidadaos as instituigdes polfticas falhardo, pois serio entregues a individuos que buscar’do dominar o aparato de Estado por raz6es de classe, interesse econdmico, fervor religioso ou nacionalismo fandtico. Como diz Rawls: (1995, pp. 205-206)."Com o republicanismo classico assim compreendido, a justiga como eqiiidade entendida como uma forma de liberalismo politi- co nao tem nenhuma incompatibilidade fundamental. (...) Mas, com o humanismo cfvico, como 0 entendo, de fato existe uma oposigiio funda- mental...” Para finalizar esta segdo, é importante observar que a revisiio do conceito de comunidade politica de Walzer neste texto nao esta totalmente desvinculada do seu conceito originério em Spheres. Apesar de admi pressupostos liberais e congregar a idéia de unido social de Rawls, Walzer retorna ao conceito de comunidade politica enunciado em Spheres, a0 as- sumir 0 humanismo civico como formato politico ideal para conceber a comunidade politica. Conclui-se portanto que h4 uma aproximagiio parcial do conceito de comunidade politica de Walzer com a idéia de unio social de Rawls: ao mesmo tempo que Walzer congrega seu conceito de comu- nidade politica com 0 conceito de unio social de Rawls, ele também, num momento seguinte, incompatibiliza-se com este. AABORDAGEM DE PUTNAM Partindo de uma orientagao tedrica que se situa dentro da corrente denominada na ciéneia politica contemporiinea “neo-institucionalismo”, Putnam desenvolveu o livro Comunidade e democracia (1996). O novo insti- tucionalismo é amplo ¢ dividido em subcorrentes, que possuem como aspec- to comum 0 estudo dos processos politicos tendo como varisivel explicativa as instituigées. Isto o faz diferenciar-se do “velho institucionalismo”, que 84 LUA NOVA N° $1 — 2000 tinha até entio como modelos dominantes na ciéncia politica norte-ameri- cana 0 comportamentalismo e o pluralismo® (Limongi, 1994). Tendo como referéncia central a nogio de Tocqueville sobre comunidade cfvica, Putnam (1996) estudou empiricamente durante mais de 20 anos 0 proceso de descentralizagéio do governo italiano a partir da década de 70, analisando comparativamente o cardter da mudanga ¢ do desempenho institucional entre os governos de suas varias regiées. Seu estudo revela que ha uma forte correlago entre modernidade econémica e desempenho institucional, ¢ que o desempenho institucional esta forte- mente correlacionado a natureza da vida efvica. Utilizando para scu estudo das 20 regides entre o norte ¢ 0 sul italiano uma metodologia comparativa a partir de andlise fatorial e regressao imédltipla, foram realizadas, entre 1976 € 1989, mais de 700 entrevistas com conselheiros regionais; trés bate- jas de entrevistas com lideres comunitérios (banqueiros, lideres rurais, prefeitos, jornalistas, lideres sindicais e empresariais); e, entre 1968 c 1988, seis sondagens eleitorais junto & populaciio. Para criar um indice de desempenho institucional foram estabelecidas doze variveis para compo- lo, quais sejam: estabilidade do gabinete; presteza orgamentiria; servigos estatfsticos e de informagiio; legislagiio reformadora; inovagao legislativa; creches; clinicas familiares; instrumentos de politica industrial; capacidade de efetuar gastos na agricultura; gastos com saneamento local; habita desenvolvimento urbano; e sensibilidade da burocracia, Em sua investigagio Putnam constata que certas regides da Itélia (notadamente as regides situadas ao norte) contém padroes ¢ sis- temas dinamicos de engajamento civico, Isto €, seus cidadzos so atuan- tes ¢ imbuidos de espirito piblico, as relagdes politicas siio igualitérias € a estrutura social est firmada na confianga e colaboragiio, Em con- © H6 uma grande dificuldade na delimitagto das fronteiras da abordagem neo- nalista, Ao mesmo tempo também toma-se dificil supor a existéncia de um tinico novo institucionalismo, Prefere-se aqui estabelecer uma distingzo entre os neo-insttucionalistas que utlizam o individua- lismo metodolégico, e que sio considerados como adleptos da escolha racional, € as que nio uti- lizam o individualismo metodotégico, e que sio considerados como neo-institucionalistas socio- Fégicos ~ que seguent a linha de estudos encaminhada por March & Olsen (1989; 1984) — e neo institucionalistas hist6ricos — que adotam a conduta tedrico-metodolégica sugerida por Skocpol etal, (1985). Ver, entre outros, que jf fizeram trabalhos tentando delimitar as diferengas entre as correntes do neo-institucionalismo, Lowndes (1996); Rhodes (1995); Kato, (1996); Hall e Taylor (1996). Foi com base na orientacto testico-metodoldgica do novo institucionalismo, trazida grande parte por March & Olsen (1989; 1984) — nuina dimensio sociotégica -, bem como por Skocpol, Evans e Rueschmeyer (1985) ~ numa dimensio histérica ~. que Putnam (1996) dirigiu um estudo com relagio ao easo da Itélia, buscando compreender as razbes hist6ricas que marcam 0 desem- penho das instituigdes em diferentes regices do pais, ACOMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM 85 traste, outras regides da Itdlia (notadamente as situadasagsul) padecem de uma politica verticalmente estruturada, ¢ a vida social é caracteriza- da pela fragmentagao, pelo isolamento e por uma cultura dominada pela desconfianga’, De acordo com Putnam, tais diferengas na vida efvica sao fundamentais para explicar 0 desempenho diferenciado das instituigdes e das governos regionais, ¢ também, em conseqiiéneia, o grau de desem- penho econdmico das diferentes regides italianas. O argumento de Putnam (1996) para evidenciar as distingdes de comunidade civiea que efetivamente caracterizam a diferenga de desempenho institucional ¢ econdmico das regides italianas busca apoio na histéria do pars. Para tanto recua quase um milénio, quando se estabeleceram em diferentes regides da Itdlia dois regimes politicos contrastantes c inovadores ~ uma poderosa monarquia no sul e um conjunto de reptiblicas comunais no centro e no norte - que por longo tempo acumularam diferengas regio- nais sistematicas nos modelos de engajamento civico e solidariedade so- cial. E importante ressaltar que este é um aspecto do estudo de Putnam que tem gerado grande polémica, relativamente 4 dimensio metodolé- gica de seu trabalho. Ao tratar da histéria complexa e milenar da Itélia de forma répida (em apenas um capitulo) para explicar as diferengas de civismo nas varias regides do pats, Putnam incorre em inferéncias imprecisas que levantam 0 clamor e 0 protesto de historiadores ita lianos8. De acordo com Tarrow (1996, p.392), “sua imagem do norte medieval e das cidades estados como um protétipo de republicanismo & telescépica, para dizer o minimo”. Na tentativa de explicar este estoque de comunidade civica acu- mulado historicamente no norte italiano, que legou ao longo das geragdes uma organizacio social haseada em agdes coordenadas entre individuos mediante regras de cooperagiio e confianga reciproca, fazendo aumentar 0 desempenho das instituigdes ¢ a eficiéncia da sociedade, Putnam adota o TH mm importante estudo realizado por Banfield (1958), dentro de uma perspectiva sécio- psicoldgica, do caso do sul da Itslia que chega a conclusio de que a identidade social dos habitantes de Montegrano, pequena cidade situada ao sul da Telia, nfo ia além dos limites da familia imediata, Esta forma de identidade social encontrada no caso de Montegrano foi denominada por Banfield (1958) “familismo amoral” 8 Algumas das principais eriticas & abordagem da histéria italiana realizada por Putnam para demonstrar a diferenga de comunidade efviea nas diferentes resides podem ser observadas, entre outros, em Pasquino (1994); Bagnasco (1995); Cohn (1994y; Sabetti (1995), 86 LUA NOVA N° 51 — 2000 conceito de capital social?. Foi a presenga de capital social nas regides do norte da Itélia e auséncia deste nas regides do sul italiano que explica a diferenca de desempenho econdmico ¢ institucional dos governos locais na Itélia. Para explicar as razbes deste diferente desempenho inst tucional Putnam mostra que o grau de desempenho institucional est cor- relacionado com o grau de participagdo cfvica das regides, isto é, 0 grau de interesse dos cidadaos pelas questdes pablicas. Em seu estudo empiri- co sobre © grau de participagio cfvica ou de comunidade civica das regides italianas 0 principal indicador utilizado 6 a existéncia de associa- ges civi Putnam (1996, pp.106-113) traz como evidéncia de sua pesquisa a correlagao da presenga de capital social nas regides mais civi- cas da Ildlia est4 com a existéncia de associagdes civis!®. Nas regides consideradas mais cfvicas, como a Emilia-Romagna, os cidadaos par- licipam ativamente de todo o tipo de associagdes locais — clubes desportivos, entidades de recreagio, grémios literdrios, grupos orfedni cos, organizagdes de servigos sociais e assim por diante. Além disso, acompanham com interesse os assuntos cfvicos veiculados na imprensa local, e por fim, compareceram &s urnas nos cinco principais referendos 9 De acordo com Portes (1997, p.3) a primeira andlise contemporanea sobre capital social foi produzida por Pierre Bourdieu (1980) que definiu 0 conceito como “o agregado de recursos i \dos por posse de uma rede durdvel de relagées mais ou, 8 @ nhecimento mituo” (Bourdiew, 1985, p.248, apud Portes, 1997: 3). Segundo Coleman (1990, p.300), 1a década de 1970, Loury (1977) introduziu o conceito de capital social como relagdes de contianga que melhoram 0 uso dos recursos individuais. Loury, apesar de nao desenvolver o conceito de capital social em . utiliza 0 termo capital social como sendo uma parte de recursos das relagdes de familia € da organizagao da comunidade social que sio ites para o desenvolvimento cogni- tivo ou social de wm jovem ou uma crianga. Além de Bourdieu ¢ Loury, este conceito foi an: lisado de modo mais completo e sistemstico por Coleman (1988; (990). Coleman (1988 pp.106-107; 1990, pp.314-315) tenta mostrar em seus trabalhos que entre duas ou mais com niidades com os mesinos recursos de instrugio e materiais 0 que distingue o desempenho de seus membros é a existéncia de capital social, isto €, a cxisténcia de lagos de confianga e re~ ciprocidade estabelecidos que tornario possiveis a mobilizagao dos individuos para a agcio coletiva. Ide uma associagio, grupo ou comunidade amplia sua capacidade de acdio coleti fa cooperagaio matua necesséria para a otimizagio do uso de recursos materiais e humanos disponiveis. 10.6 indice de comunidade civica constru‘do por Putnam para medir 0 grav de engajamento civico nas diferentes regides da Italia tem como varidveis, além do nimero de associagdes, 0 riimero de leltores de jomal c a participagao dos cidadios nos cinco referendos realizados centre 1974 e 1987. Além disso, ele utiliza como indice de clientelismo 0 voto preferencial centre as eleigdes de 1953 a 1979. ACOMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM 87 ocorridos no pafs entre 1974 e 1987 (sobre divércio, financiamento piblico dos partidos, terrorismo ¢ seguranca publica, escala mével dos salétios e energia nuclear) com uma participaciio média do eleitorado de aproximadamente 90% ¢ baixa taxa de votagiio preferencial (pessoal). J nas regides consideradas menos cfvicas, como a Calibria, verifica-se a quase inexisténcia de associagdes civicas e a escassez de meios de comunicagio locais, além de um {ndice alto de voto preferencial (que caracteriza um voto de clientela) de 90% com baixa taxa de participagio nos referendos acima citados. Segundo Putnam (1996, pp.103-104), as associagées civis contribuem para a eficacia a estabilidade do govern democratico, no 86 por causa dos seus efeitos internos sobre o individuo como também pelos seus efeitos externos sobre a sociedade. No Aimbito interno, as associagdes incutem em seus membros hdbitos de cooperagiio, soli dariedade, senso de responsabilidade comum para com empreendimen- tos coletivos, bem como espirito puiblico. No Ambito externo, a articu- lagdo e agregagdo de interesses sio intensificadas com uma densa rede de associag6es secundarias!!. Como observa Abu-El-Haj (1999, p.71; 1999a, p.90), Putnam defendeu a nogdo de complementaridade entre a burocracia de Estado ¢ as iniciativas coletivas emanadas do associa- cionismo horizontal. Para Putnam, a confianga interna em associagdes provocaria, por um lado, um intenso engajamento civico. Por outro lado, a normalizagao do espago puiblico reproduziria e intensificaria a gene- ralizagio das iniciativas coletivas. A reciprocidade mitua das instancias piiblicas ¢ privadas aumentaria o potencial transformador, valorizando 0 bem-estar geral da sociedade. 11 importante ressalvar que nem toda e qualquer associagio secundaria, dotada interna- mente de capital social, necessariamente contribui para 0 actinnulo de civismo do todo social, ‘ou seja, para 0 desenvolvimento de capital social numa dada Sociedade. Um exemplo disto & ‘caso da Mafia, A Malia & uma organizagio associativa que vende a seus consumidores pro- tegdo contra a violencia em troea de coberturas para violagdes da lei. Do ponto de vista inte no, a Métia em si mesina & uma espécie de holding familiar, dotada de capital social, pois existe normas de reciprocidade, lagos de confianga, fidelidade e redes entre as familias, Do ponto de vista externo, a Mafia & uma organizagio que preda as insttuig6es pablicas através das priticas de corrupgio, alicinmento, coagio fisica através de violéncia sobre servidores piiblicos ecidados, ou mesmo sobre concorrentes no mercado, para assegurar seu oligop6li. De aconlo com Putnam (1996, p.157) a presenga das organizagées mafiosas na Ilia prevalece nas regides menos cfviens do pais, onde predormina uma estrutura de relagées tipi camente verticais de autoridade e dependéncia, buscadas no clientelismo © no mandonisme, havendo pouca ou nenhuma solidariedade horizontal entre os cidadios, A Mafia é um exem= plo do que pode ser chamado de capital social negativo 88 LUA NOVA N° 51 — 2000 Dentro de uma abordagem histérico-cultural!2 0 trabalho de Putnam (1996) deixa como conclusiio uma pergunta central a ser respondi- da, Se a comunidade civica, e conseqtientemente a existéncia de capital social, tem causas histéricas, como é possfvel defender a0 mesmo tempo a idgia de reforma institucional? De acordo com a conduta do scu pensa mento, na Itdlia cada governo regional estaria fadado ao destino histérico tragado por sua comunidade. Generalizando, nio haveria saida para qual- quer pais do Terceiro Mundo, ov mesmo para qualquer cidade ou regio nfio-civica em qualquer parte do planeta vir tentar a torna-sc civica, isto 6, obter capital social, caso um governo com forte propésito nesse sentido o desejasse, pois 0 determinismo histérico-cultural ja os havia condenado. Diante disto ¢ que Putnam deixa uma questo ao final de seu trabalho, se governos so capazes de criar capital social. “A comunidade civiea tem rafzes histéricas. Esta é uma afi magio deprimente para os que vém a reforma institucional como estratégia de mudanga politica. O presidente da Basilicata ndo pode transferir seu governo para a Emilia, e o primeiro-ministro do Azerbaijio nao pode trans- ferir seu governo para o Béltico. Uma teoria da mudanga que dé prioridade a0 ethos pode ter conseqiiéncias desastrosas (...). Pode acabar solapando as iniciativas de mudanga por acreditar-se que as pessoas esto inapelavel- mente enredadas num ethos. Mais de um regionalista italiano declarou-nos em particular que a divulgagiio de nossos resultados pode involuntaria- mente prejudicar o movimento da reforma regional. Um competente pres- dente de uma regio nao-cfvica ¢ partidério da reforma regional exclamou a0 ouvir nossas conclusdes: ‘isso é aconselhar 0 desespero! O que vocés esttio me dizendo & que nada que cu venha a fazer melhorard nossas pers '2 Para explicar 0 aspecto relativo ao determinismo histérico-cultural como argumento que cexplica as diferengas regionais na Ititia no aedmulo de capital social, Putnam (1996, pp. 189. 190) toma como referencia de anise o trabalho de North (1993) e sua idéia de dependéncia de rota (path-dependence) no processo de mudanga institucional. Para North (1993, pp.121- 131) as instituigdes eficientes ao longo do tempo adquirem estabilidade, o que as faz conser- var sua estrutura normativa, tornando qualquer caminho de mudanga dependente desta estru ‘ura pré-estabelecida, Putnam (1996, pp.189-190) visando ilustrar o argumento das distingdes {Gricas entre o norte ¢ o sul da Itélia determinando o desempenho atwal de suas instituigdes, utiliza a idgia similar desenvolvida por North (1993, pp.146-151), da distingio no novo mundo entre os Estados Unidos ¢ a América Latina. Tal qual no caso italiano, os Estados Unidos tm um desempenho econdmico melhor do que a América Latina porque os norte- americanos foram herdeiros da tradigfio comunitaria horizontal britdnica, enquanto que os latino-americanos descendem da estrutura de relagoes verticais ibéricas, baseadas no autori= tarismo centralizado, no familismo e no clientelismo. A COMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM, 89 pectivas de éxito. O destino da reforma j4 estava tragado a s6culos’ (...) Criar capital niio ser ficil, mas € fundamental para fazer a democracia fun- cionar:” (grifos do autor, pp. 192-194). Ao deixar como uma de suas conclusdes esta questiio, se 0s g0- vernos siio capazes de criar capital social, Putnam abre um campo de pesquisa, que vai tratar de sob quais circunstincias ¢ condigées as institui- ges ptiblicas so capazes de estimular o civismo por meio da elaboragio e implementagao de politicas que visem desenvolvimento econdmico ¢ social. Dentro do grupo de discuss do capital social!, um dos estudos mais consistentes, que representa no sé erftica mas também complemen- taridade & teoria de Putnam, ¢ 0 trabalho organizado por Evans (1997). Evans e seus colaboradores, com base na andlise de casos de politicas rea- lizadas por paises em desenvolvimento, sustentam a idéia do papel central das instituiges na formagio de capital social, através de uma sinergia na relagiio entre Estado ¢ sociedade civil quando da implementagiio de pro gramas de desenvolvimento social. Vale destacar que em seu artigo publicado em 1995 (“Bowling Alone: America’s Declining Social Capital”), Putnam, ao discutir as razdes pelas quais ele afirma estar declinando capital social nos Estados Unidos, tais como mobilidade social c territorial, transformagdes demogréficas e tec- nolégicas, aponta uma saida para este contexto de erosio das vizinhangas ¢ redes associaciativas de confianga ¢ solidariedade. Trata-se de explorar cria- tivamente 0 potencial que as politicas publicas podem incutir na mobilizagiio de civismo e em conseqiiéncia de capital social (Putnam, 1995, pp.75-76). Em seu mais recente trabalho, que leva o mesmo titulo do artigo publicado em 1995, e que & a sua continuagao ¢ aprofundamento, Putnam (2000, p.90) alirma que estado e sociedade juntos podem produzir civismo ou capital social. Neste sentido nenhuma parte poderd prescindir da outra. Nas palavras do préprio Putnam (2000, p.413) ao analisar 0 caso americano: “O papel das instituigdes locais e nacionais em restaurar a comunidade americana necessitam ser complementares; nenhuma delas sozinha pode resolver o problema. Outro falso debate € se © governo ¢ 0 problema ou a solugiio. A resposta acurada, jul- gando 0 registro hist6rico, € que ambos [Estado c sociedade] sfio importantes.” '3.Q grupo “Social Capital and Public Affairs Project” foi criado pelas fundagdes Carnegie, Ford e Rockfeller na American Academy of Ants and Sciences sob a dinegiio de Robert Puta € com a participagio de importantes e prestigiados cientstas sociais que estudam a questa dos govemos na implementagio de politicas de desenvolvimento econdmico © social, tais como Peter Evans, Elinor Osttom, Judith Tender, Guillermo O'Donnell 90 LUA NOVA N° 51 — 2000 DE TOCQUEVILLE A PUTNAM Durante 0 seu estudo do caso italiano Putnam (1996) toma a nogiio de comunidade civica de Tocqueville como referencial de anilise para encontrar suas evidéncias. Com relagio a influéncia direta que o pen- samento de Tocqueville teve no trabalho de Putnam, no que tange & definigdo de comunidade cfvica a partir da existéncia de associagées civis, afirma este (1996, p.103): “Certas estruturas e priticas sociais incorporam e reforgam as normas e os valores da comunidade civica. Nesse campo 0 tedrico social mais importante continua sendo Alexis de Tocqueville. Ao analisar as condigGes sociais que sustentavam a Democracia na América, Tocqueville atribuiu grande importancia A propensio dos americanos para formar organizagdes civis e politicas.” (O aspecto fundamental na teoria democrética de Tocque-ville!4 6 a associagiio entre liberdade e igualdade. E a igualdade o prin-cipio demo-erdtico fundamental que vai explicar a democracia. Essa igualdade a que Tocqueville se refere é uma igualdade cultural e politica entre as pes- soas, ndo econémica, que poderia ser traduzida, segundo Zetterbaun (1996; 1967), como iguais oportunidades de educagio € uniforme garantia de direitos. Assim, a democracia estard sempre associada a um processo igualitario que no poder ser sustado, desenvolvendo-se em diferentes povos conforme suas variagdes culturais. Porém a varidvel independente que explica a democracia, isto &, 0 aspecio-chave de que vai depender a democracia, é a aco politica dos cidadaos, como um dos instrumentos de vigilancia do povo que asseguram a igualdade. Ao estudar a experiéncia norte-americana Tocqueville afirma que a igualdade s6 pode existir num governo livre, isto 6, num governo que no seja despético. O despotismo estimula e gera o individualismo, na medida em que isola os individuos e nao lhes da responsabilidade pelo bem comum, nem incentiva a ago politica dos cidadiios. Os homens presos de modo egofsta aos seus compromissos privados niio se interessam pelo interesse comum ¢ acabam deixando 0 destino dos negécios publics a uma s6 ou poucas pessoas."O despotismo, que por natureza é suspeitoso, vé no isolamento dos homens a medida mais certa da sua prdpria per manéncia ¢ via de regra dedica todos os seus cuidados a isolii-los. Nao hit vicio do coragdo humano que tanto concorde com ele quanto 0 egoismo: '4 Sobre 0 pensamento de Tocqueville ver, entre outros, Zeitlin (1971): Lambs el Corral (1989); Mayer (1965); Jasmin (1997). 4 (1989): Diez. A COMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM o1 um déspota perdoa facilmente aos governados 0 fato de no o amarem, desde que ndo se amem entre si. No Ihes pede que o ajudem a conduzir 0 Estado; basta-hes que nunca pretendam dirigi-lo sozinhos. Chama espiritos turbulentos ¢ inquietos aqueles que pretendem unir os seus esforgos para criar a prosperidade comum, ¢ mudando o sentido natural das palavras, chama bons cidadaos aqueles que se encertam fortemente em si mesmos. (...) A igualdade pde os homens ao lado uns dos outros, sem lago comum a manté-los. O despotismo eleva barreiras entre eles e os separa. Dispde-nos a nfio pensar nunca em seus semelhantes ¢ faz para eles, da indiferenga, uma espécic de virtude publica.” (A Democracia na América, livro 2, p.125). Como se vé, ao afirmar que a igualdade poe os homens ao lado uns dos outros, sem lago comum a manté-los, Tocqueville procura logo em seguida mostrar que o problema da igualdade, de tender a transformar-se em individualismo, foi resolvido na América por meio da autonomia do poder local, Como torna-se dificil para um cidaddo dedicar-se aos negécios pblicos na esfera nacional, € na comunidade que os individuos aprendem a ocupar-se do bem comum na aco publica. “Os americans combateram, por meio da liberdade, o indivi- dualismo que a igualdade fazia nascer, e 0 venceram. Os legisladores da América nfo acreditaram que, para curar uma enfermidade to natural a0 corpo social nos tempos democraticos, ¢ tdo funesta, bastava conced- er A nagdo inteira uma representacdo de si mesma; pensaram que, ade- mais disso, seria conveniente dar uma vida politica a cada porgao do ter- ritério, a fim de multiplicar ao infinito, para os cidaddos, as ocasiées de agir em conjunto ¢ de fazé-los sentir todos os dias que dependem uns dos outros. Isso cra conduzir-se com sabedoria. Os negécios gerais de um pafs ocupam apenas os principais cidadiios. Estes s6 de longe em longe se retinem nos mesmos lugares; como ocorre muitas vezes se perderem de vista depois disso, ndo se estabelecem lagos durdveis entre eles. Mas quando se trata de regular os negécios particulares de um dis- trito pelos homens que nele habitam, os mesmos individuos estiio sem- pre em contato e, de certo modo, forgados a conhecer-se ¢ agradar-se uns aos outros. (...) AS liberdades locais que fazcm um grande ntimero de cidadaos perfazcrem a simpatia de scus vizinhos ¢ préximos levam pois, sem cessar os homens uns aos outros, a despeito dos institntos que os separam ¢ os forgam a se ajudar mutuamente” (A Democracia na América, livro 2, pp.126-128). A expressio da agiio piblica, voltada para o bem comum, que assegura a ndo tirania da maioria, se dé na criagio de associagées. Sobre o. 92 LUA NOVA N° 51 — 2000 cardter associative da sociedade americana discorre Tocqueville: “Os americanos de todas as idades, de todas as condigoes, de todos os espiritos se unem sem cessar, Nao apenas t&m associagdes comerciais ¢ industriais que todos participam, mas possuem além destas mil outras: religiosas, morais, graves, fiteis, muito e muito particulares, imensas e mintisculas; os americanos se associam para dar festas, fundar semindrios, construir alber- gues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missiondrios aos antipodas: criam desta maneira hospitais, prisdes, escolas. Enfim, sempre que se trata de por em evidéncia uma verdade ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo eles se associam” (A Democracia na América, livro 2, p.131). Embora Tocqueville achasse que fossem necessirias outras medidas para assegurar a democracia, tais como a descentralizagdo admi- nistrativa e a autonomia do poder local, a criagiio de leis que assegurem a igualdade de dircito, a liberdade de imprensa, as cleigdes indiretas, a justica independente, a separagio entre Igrejae Estado, para ele o suporte maior da liberdade com igualdade esté colocado na ago politica dos cidadaios e na sua participagiio nos negécios ptiblicos. E é através da criagiio e desenvolvimento de organizagGes ¢ associages livres que esti- mulem a cidadania que se pode assegurar a manutengio do espago da palavra e da agiio. De acordo com Whitehead (1999, p.18), Tocqueville foi 0 primeiro tedrico de importancia a apresentar a sociedade civil como uma contrapartida indispensAvel para uma democracia estdvel e vigorosa, ao invés de uma alternativa a ela, Como considera Tocqueville: “E claro que se cada cidadio, & medida que se torna individual- mente mais frdgil e conseqiientemente mais incapaz de preservar isolada- mente a sua liberdade, nao aprendesse a arte de se unir a seus semelhantes para defendé-la, a tirania necessariamente cresceria com a igualdade. (...) As sociedades aristocriticas sempre encerram no seu seio, no meio da mul- lidiio de individuos que nada podem sozinhos, um pequeno niimero de cidaddos muito poderosos e muito ricos; cada um deles pode executar soz- inho grandes empreendimentos. Nas sociedades aristocraticas, os homens nao tém necessidade de unir-se para agir, porque sao fortemente mantidos juntos, Cada cidadao rico e poderoso forma ali como que a cabega de uma associagiio permanente e necessaria que € composta de todos aqueles que faz concorrer para a execugio de seus desfgnios, Nos povos demoeraticos, pelo contrario, todos os cidadaos silo independentes e frageis; quase nada podem sozinho se nenhum dentre eles seria capaz de obrigar scus seme- Ihantes a Ihe emprestar seu concurso. Por isso, caem todos na impoténcia A COMUNIDADE CIVICA EM WALZER E PUTNAM 93 se no aprendem a se ajudar livremente. (...) Sdo as associagdes que, nos povos democraticos, devem tomar o lugar dos particulares poderosos que a igualdade de condigdes fez desaparecer” (A Democracia na América, livro 2, pp.131-135). Ao falar da qualidade dos americanos de criar associagées de todos os tipos, desde empresas a partidos politicos, associagdes religiosas, de lazer, Tocqueville tenta mostrar uma correlagdo entre a presenga de associagées e organizagoes civis ¢ a igualdade, numa sociedade democrati- ca. A autonomia do poder Jocal, junto com a existéncia de associagdes civis, € que define a comunidade cfvica para Tocqueville. CONSIDERACOES FINAIS A partir da apresentagio das linhas gerais dos dois autores, Putnam (1996) e Walzer (1993; 1990), um dos pontos fundamentais de divergéncia é a filiagdo te6rico-conceitual de cada um, estando Walzer inti- mamente ligado as tradigdes do humanismo civico e Putnam influenciado pelo republicanismo cléssico de Tocqueville. Um dos pontos comuns que podem ser observados nos doi autores € a idéia de que a comunidade civica pode ser melhor observada em unidades descentralizadas do territério de um pats. E no nivel do estado, Tegidio, cidade ou distrito que sera possivel a convivéncia mtitua dos indi- viduos em organizagées civis de toda natureza e a participagao direta mais intensa dos cidadios na politica. No nivel nacional, portanto, para ambos os autores a expressio de uma comunidade cfvica torna-se praticamente inexeqiifvel. Este aspecto parece corroborar a afirmagio de Macpherson (1978: 99), de que a democracia participativa parece niio se adequar a um nivel nacional, apesar de nfo se desconsiderarem nesse nfvel as iniciativas populares. Um outro ponto comum, que refere-se especificamente a Putnam (1996) em relagio ao segundo texto de Walzer (1990), 6 a idéia da existéncia de associagées como elemento importante para desenvolver 0 civismo numa comunidade. Apesar de Walzer (1990) assumir uma versio de humanismo civico denominada por ele republicanismo neoclissico, seus argumentos sobre a importincia de associagées civis para construir uma comunidade civica vio ao encontro da visdio de Putnam (1996). E evi- dente que Walzer (1990) s6 se desvencitha parcialmente da tradigio do humanismo cfvico, mas o fato de admitir que as associagdes so impor- 94 LUA NOVA N® 51 — 2000 tantes junto com uma participagiio politica mais intensa é uma grande tran- sigéncia de seu argumento em relagiio a Spheres, seu primeiro trabalho. Para finalizar, cabe observar que ambas as abordagens possuem © grande mérito de complementarem-se ¢ assim contribuir com o pensa- mento politico visando ampliar o entendimento do que vem a ser virtude civica e de como a virtude cfvica da coletividade pode produzir um aumen- to de democracia. Tanto a participagio direta na vida politica do Estado quanto em associagdes civis sio de grande importincia para ampliar a democracia e criar comunidade cfvica. ANTONIO SERGIO ARAUJO FERNANDES é doutorando em Cigneia Politica na Universidade de Sao Pauto, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABU L-HAJ, Jawdat (1999). “O debate em torno do capital social: uma revisdo critica”. BIB =Boletin Informative e Bibliogrifico de Ciéncias Sociais, 0 47, 1999, pp. 65-79. (1999a). A mobilizagde de capital social no Brasil. O caso da reforma saniaivia no Ceard. Sio Paulo. Annabluine, 1999. ANDREWES, A. (1991). Greek Society. London, Penguin Books, 1991 ARISTOTELES. A Politica. Sao Paulo. Martins Fontes, 1998, 2° edigio. BAGNASCO, Amaldo (1994). “Regioni, tradizione civiea, modernizzzione italiana: un com- ‘mento alla rierea di Putnam." Stato ¢ Mercato 40 (abril), pp. 93-104 BANFIELD, Edward (1958), The Moral Basis of a Backward Society. New York. 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Argumenta-se que o republicanismo de Walzer permanece tributério do humanismo cifvico ¢ de sua visio da unidade social fundada em uma concep¢io especftica da boa vida (a vida do cidadio ativo e imbutdo de virtude). As pesquisas empfricas de Putnam sobre 0 “capital social”, em contraste, inspiram-se no republicanismo mais pluralista e mais liberal de Tocqueville. WALZER AND PUTNAM ON CIVIC COMMUNITY The article contrasts two conceptions of civic community: Michael Walzer’s and Robert Putnam's. It is argued that Walzer’s republi- canism remains heavily influenced by civic humanism and its view of social unity as founded on a specific conception of the good life (that is, the life of the active and virtuous citizen). In contrast, Putnam’s empirical researches on “social capital” derive inspiration from Tocqueville's more pluralistic and liberal conception of republicanism.

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