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O DIREITO A HISTORIA: O(A)HISTORIADOR(A) COMO CURADOR(A) DE UMA EXPERIENCIA HISTORICA SOCIALMENTE DISTRIBUIDA” Valdei Lopes de Araujo (UFOP) Aos alunos, docentese técnicos administrativos da UERJ que lutam hoje pelo futuro da universidade eda democracia, APRESENTACAO Muito do debate sobre o valor do historiador e da historiografia parte de problemas ligados ao conhecimento da histéria, seja da realidade ou sua representacao. Sem abdicar dessa dimensao, gostaria de refle- tir sobre o desafio contempordneo de responder & percepgao de que todos tém e fazem histéria, inclusive no sentido de serem cada vez mais produtores e difusores de narrativas e apresentacdes hist6ricas Este texto é um convite a repensar a fungao social do historiador de modo a entendé-la também como reposta ao direito de todo huma- ‘no, em sendo histérico, poder ter essa condicao reconhecida ao reali- ‘ar-apresentar suas historias, Pretendemos assim juntar nossa voz 20 convite feito pelo Simpésio Nacional de Histéria ao definir o tema de seu XXIX encontro: “Contra os preconceitos: histéria e democracia”s, 1 Aalonge do texto mesmo nto wzando o recurso deapontar paras diferencas de neo, ape: roqueosletoreseletorasterham na mene, eno como, aexpeinca dese presen da mulher. 0 Iimporanteen.aessocampodeetudos as anda asin nto sfclentementrecoahect, 2. Professor Asclao de Teoria da Histrana Universidade Feral de Ouro Prete, pesqulsador do (CaPyeMembmn do NEHM-PPGHIS-UROP. 4. Tate too fl inielamente produzid eapresentad por conte da Comissto Organiadors do Supésio Nacional do Histéia da Anpuh Aradogo igualmente aos cleges Bont Biss Shi, enrique Hseada, Mara Rodigues, Elan Duta, ede Telerense, Rodi Perez Radigo Tun, Ma an = Gostaria de argumentar que historiografia poderia ampliar suas fung6es tradicionais ligadas as expectativas de “aprender com a his. t6ria” a partir das representagées privilegiadas dos historiadores para se tornar também um espaco de acolhimento, amplificagao e criti cca das mais diversas apresentagdes histéricas produzidas pelos ato. res sociais. No lugar de se pensar apenas como um centro itradiador, 0 campo historiogréfico poderia projetar-se como espago de acolh- mento e convergéncia critica da pluralidade de histérias. De imedia. ‘to gostaria de salientar que essas duas fungdes nao sao contraditérias, nem excludentes, embora nao possam ser tomadas como idénticas ‘0 que esse movimento poderia significar na reestruturagao da for magao do historiador? Qual o papel que o campo da Teoria & Histéria, da Historiografia tem tido e poderé ter nessa transformagao? O que podemos fazer a partir de nossos cursos de histéria para qualificar ‘nossos alunos no enfrentamento desses desafios? LUM RAPIDO PANORAMA DA CONJUNTURA Desde 2013 que presenciamos 0 questionamento progressivo do alcan- ce da democracia no Brasil, quando foram para as Tuas contingente muito diverso de sujeitos sociais insatisfeitos com a representagao po: Iitica e o papel do Estado brasileiro em seus diferentes niveis, Parte das forcas sociais liberadas em 2013 so conduzidas ¢ ressignificadas de modo a serem usadas como legitimagao social para 0 golpe politico- ~juridico de 2016, que abriua conjuntura de incertezas que vivemos eo algamento ao poder de forcas politicas e sociais que conjugam velhas, oligarquias corruptas e parte da elite econdmica que vé no enfraqueci- ‘mento da democracia uma oportunidade para implementar sua agen: dda de reformas e uma concepgao de sociedade desigual e hierérquica. ‘us Peer, atte de Rezende Martins eTemstocls Cezar peas sugestes textos quem fenvardosd épcada labore deste argo, Pute dec ma primeira vero das iin aq 20 ‘sentadas com odacetes da acpin "Teolascostemporinens do tempo histo’ que mit opal sees de 20170 PPCHIS ds UFOP = 192 Como a construgao das Ciéncias Humanas e da Historiografia es- teve sempre intimamente relacionada com as fundagbes do Estado nacional e suas instituigbes, esses questionamentos se retroalimen- tam. De todas as diregdes do espectro politico ideolégico emergem questionamentos e desafios as Humanidades. Bem antes de 2013, 1e- forgado pela crise de 2008, multiplicam-se noticias sobre o desinves- ‘imento piblico nas Humanidades orientados por uma concepgao de ensino e pesquisa mercantilizado e, desde 0 Brexit e tiltima eleicao norte-americana, 0 questionamento agressivo das fungées de media- io da universidade e das ciéncias humanas, em particular. A emer- géncia de uma direita “identitéria” aparelhada por grandes grupos ‘econdmicos interessados em saquear 0 Estado e a Sociedade alimen- tauma guerra cultural de escala inédita’ Em nossos espagos universitérios, observamos um movimento crescente de questionamento de programas e bibliografias suposta- mente indiferentes as novas demandas dos coletivos sociais que rei- vindicam que suas questdes, seus saberes, epistemologias e presen- ‘as sejam reconhecidos nos curriculos, programas e salas de aula. As questies de raca, género e sexualidade nao s4o apenas novos temas ‘ou problemas que poderiam ser simplesmente incorporados, os seus sujeitos reivindicam novas epistemologias, novas disciplinas ¢ insti- tucionalidades. A perda de espago nos currfculos de Ensino Médio, projeto que surge antes do atual governo, mas que as condicdes de fragilizagao da democracia que vivemos ajudou a acelerar, resultando na nova let do ‘ensino médio que aboliu a obrigatoriedade do ensino de Histéria nes- te segmento da educacao bésica, é outro exemplo bem concreto des- sas ameacas. A tentativa de reducao do debate sobre a educacao 20 snmumeramento e letramento, amplamente patrocinada pela OCDE, 4 HC. intnso debate lob sobeos mites as consoquéncin da olen entrar na con enue recote, ver por exempl, (MARK. 207) — 193 — [Na segdo seguinte faremos um breve balanco de algumas respostas a.essas questdes que pesquisadores brasileiros do campo da Teoria e Histéria da Historiografia tém oferecido. Nossa intencio nao seré es gotar essa bibliografia, mas apenas indicar alguns de seus caminhos, artigo concentra-se em um esforco de estabilizar as fronteiras entre ohist6rico (disciplinar) e 0 quase-histérico, distingéo que, as autoras reconhecem, 0 piiblico ignora.Jé apontavam as transformagdes epis- temolégicas do final do século XX como uma das causas dessa cres- cente indiferenciacao: FRONTEIRAS DA HISTORIOGRAFIA: PUBLICIDADE E DIVERSIDADE [Nas tltimas duas décadas 0 campo da Teoria & Hist6ria da Historio. grafia se consolidou como um espago dindmico e articulado de de- bates no Brasil. Vimos surgir eventos regulares e especializados, com destaque para o Seminario Brasileiro de Historia da Historiografia, [J fragmentaeao das identidades individuais faz com que o passado as suma [. a caracteristica de ser objeto de busca de algo mitificado como homogéneo, como contraponto do momento vivido, ou camo curiosida- de pela diferenca e exotismo, mas deva, por outro, estar inserido no mer- ‘cado de consumo e lazer cultural (..J, (CHESNEAUX) que no ano de 2018 estard em sua décima edicao; revistas dedicadas a esses recortes, como a Histéria da Historiografia, Revista de Teoria da Histéria, Revista Expedicdes, dentre outras. Diversos nticleos de pes. Tais processos teriam levado a “(... fragmentacdo do que parecia serum campo homogéneo — a histéria-ciéncia cedeu espago a cam- os historiograficos diversos, cada qual com seus objetos, fontes, me- todologia, conceitual analitico, resultados e forma de apresentacai (GLEZER; ALBIERI, 2009: 24). As autoras concluiam afirmando a ne- cessidade de qualquer campo cientifico diferenciar-se das praticas de divulgagao e mesmo da falsa ciéncia, embora admitissem que essa distingao é mais possivel no enfrentamento de casos concretos do que apattir de uma definicao tedrica fechada. Sua resposta apontava ain- da o papel heuristico positivo que esses discursos de fronteira pode- tiam ter ao inspirar campo cientifico por seu uso mais abundante da imaginagao e por operar por fora dos constrangimentos da ciéncia. ‘Uma de suas afirmagdes parece ter adquirido contornos mais dramé- ticos desde entao: quisa e linhas de investigagao estao presentes em Programas de Pés -graduagio espalhados pelo Brasil, com particular énfase em institu ‘ges como PUC-Rio, UFRGS, UFOP, UFES, UEG, UnB, UFMG, UER), UFRRJ, UNIRio, UFBA, URCG, dentre outras. Féruns de debates regu lares esto organizados e movimentam uma cena dindmica, sem fa- lar em iniciativas como o “Observatorio da Histéria’ recentemente langado por pesquisadores da Unifesp, que busca ser um espaco in- tcrinstitucional de pesquisa da cultura histérica. E, portanto, razoavel perguntar-se como o campo tem respondido & conjuntura que des- crevemos acima. Em artigo publicado em 2009, Raquel Glezer & Sarah Albiere ana~ lisaram os impactos sobre @ historiografia do que chamavam de obras de fronteira, ou “quase-hist6rias’(GLEZER; ALBIERI, 2008). Refe- riam-se & grande expans4o no mercado editorial brasileiro de bio- ‘grafias e outras obras voltadas para a demanda crescente de material com contetido hist6rico. Enfatizavam que “[..] nos anos 1990, 20 se rem langados os primeiros volumes das edigdes que denominamos de “fronteirigas’, a comunidade se manifestou de forma contraria @ tais produtos, com certo estardalhaco” ( GLEZER; ALBIERI, 2009: 1) (Contudo, hi um razodvel consenso quanto a todas as especialidades aca- «démicas serem produtoras de conhecimento contiével -incluindo as hu- manidades. E nesse sentido, as falsas representagbes dos pseudo-histo- riadores serlam de natureza muito semelhante Aquelas dos alquin ‘ou crlacionistas (idem: 28) — 196 — = 197 — Hoje esse consenso parece mais ameacado quando 0s governas desafiam o discurso da ciéncia e da autoridade em geral, colocando em risco 0 pacto frégil entre Estado democratico e producao de eo. nhecimento. Em artigo publicado na Revista “Hist6ria da Historiografia’ juran. dir Malerba deslocava o problema das relagbes entre a histéria acade. mica e a historia leiga para o campo da “Public History’, no contexto do debate acerca do projeto de regulamentacao da profisséo de his- toriador. Apés um relevante balango do debate internacional, apon. ta que "Desde o final dos anos 1990, nos Estados Unidos, a Public His. tory encontra--se institucionalizada dentro das universidades" (2013 29). Segue demonstrando como por diferentes formas esse novo cam- po de atuacao do historiador vai se desenvolvendo em paises como Austrélia e Gra-Bretanha. Fica evidente 0 aspecto central da produgao de histéria como entretenimento, controlado por grandes grupos em- presariais de midia, nessa configuragao a atuacao do historiador nao é distinta daquela de outros profissionais da indiistria. Como 0 au- ‘Hoje 0 passado significa “negécios”e, nao menos importante, "poder"! (Idem: 32). Passando pela andlise de franquias como Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Leandro Nar loch, Malerba demonstra como esse segmento do mercado editorial tor resume de modo lapidar: e do entretenimento tem no confronto caricato com a historiografia académica uma de suas marcas de definicao, juntamente com a ma nipulacao e amplificacao de preconceitos e valores antidemocraticos, além de ignorarem as conquistas cognitivas da historiografia desde o século XIX. (Idem: 36). O artigo conclui com um amplo chamamento ‘a0s historiadores académicos entrarem na disputa e na erftica dessa ‘chamada “histéria puiblica” (Idem: 43). Embora ja aqui aparegam al ‘gumas referéncias acerca da conjuntura politica, em especial 0 pro- cesso de eliminagao da disciplina nos curriculos a partir de iniciati- vas dos Estados e alguns municipios, nao hé ainda a conexio que hoje parece bastante evidente entre essa “hist6ria publica’ e o seu apare — 198 — lnamento direto por grupos politicos cuja agenda passa pelo enfra- quecimento dos valores democréticos e a promogao da ignorincia e do preconceito. Analisando questdes semelhantes Marcelo Abreu e Marcelo Ran- gel (UFOP), em artigo de 2015 publicado na revista “Historia e Cultu- 1 analisam as modalidades de resposta quando o ensino de histéria é desafiado pelas tensdes do mundo contemporaneo. Para os autores, as condigdes de produgao da meméria no mundo atual, que parece desafiado pela austeridade econémica e, ao mesmo tempo, marcado por pressGes homogeneizadoras que se organizam em torno de fend- ‘menos como o Presentismo e o Presente Amplo, nos convidam a pen: sara aula como o “terreno em que memérias maltiplas podem ga- nhar expressao’ e em quea {..] aautoridade do discurso histérico escolar [..] é questionada a todo ‘momento na medida em que ecoam na sala de aula as incessantes pro- dudes de passados efetivadas no mundo da comunicagao/informacdo e outros Ambitos da “cultura histérica! Para competic com essas fontes (0 discurso histérico escolar seria preciso, segunda os autores, “..] fazer das aulas um exercicio de sensibilidade histérica" ao lado dos “..J inves: {imentos ja consolidados da razao histérica” (ABREU; RANGEL, 2015: 21). Aproximando-se tanto dos problemas levantados por Glezer & Al- biere e Malerba, destocados para o espaco do ensino de histéria, rei- vindicam a necessidade de *|..|sustentar a didética da hist6ria na os- cilagdo entre entendimento e imaginacdo, entre sentido e presenca’ O caminho para uma resposta eficaz estaria no equilibrio entre as de- ‘mandas disciplinares por consciéncia histérica e cogni¢ao e a deman- das contempordneas por presenca e performance participativa, Em outra dimensao deste debate, a histéria-meméria da ditadu- ra civil-militar tornou-se um espago privilegiado para a observacao dos fenmenos da democratizagao da historia e seus desafios para 0 = 199 — historiador. Mateus Pereira, em artigo publicado na revista Varia His. t6ria em 2015, observa dois movimentos contraditérios nesse cam. po. Por um lado, o aumento da negagao ¢ do revisionismo em telagao ‘a0 nosso tiltimo periodo autoritério, por outto, o desenvolvimento do que chama de “inscrigao fragil” da meméria da ditadura, motivados pelos trabalhos da Comissao Nacional da Verdade. ‘Afirma, ao estudar as discussdes nos fruns de editores de verbetes da Wikipedia que tratam de 64, que as “batalhas de Meméria” acerca do significado da Ditadura-Civil militar foram ¢ estao sendo cotidic. namente travadas que muitos de seus elementos que pareciam la tentes emergiram nos tiltimos anos, produzindo novos lances em di ferentes constelagées. Pereira procura responder & pergunta de como a memeéria autoritéria, fundada em gestos negacionistas e revisionis. tas, consegue sobreviver aos esforgos historiograticos de critica e es- tabelecimento factual. Conelui, que “ao contrério do que parece de- fender Ricoeur em ‘A meméria, a hist6ria e 0 esquecimento! (2007), conhecer @ factualidade do que ocorreu anteriormente por meio da Jembranca talvez nao tenha nenhum resultado terapeutico, pelo me- nos ligado & cura, & reconciliag4o ou a pacificagao” (PEREIRA, 2015 £880). Sendo assim, o papel da historiografia nao se encerraria no es- tabelecimento de uma verdade factual, mas passaria pela compreen- sao dos modos de funcionamento dessas complexas comunidades de “meméria em rede” (PEREIRA, 2015: 874). A critica hist6rico-factual por sis6 nao seria capaz de refutar o discurso revisionista-negacionis- ta, colocando-se para o historiador os desafios de compreendes, me diar e (des)qualificar os movimentos téticos e estratégicos dessas co. munidade de meméria em conflito, além do imperativo ético de se colocar ao lado da luta por reparacao e justica. Em artigo ainda inédito intitulado “O professor universitério de hist6ria é um professor? Reflexdes sobre a docéncia de Teoria e Me todologia da Histéria e Historiografia no Ensino Superior’ Mara Ro- drigues e Benito Schmidt (UERGS) partem do diagnéstico semelhante ‘aos que jé temos tratado para se perguntar o quanto a érea de Teoriae Hist6ria da Historiografia tem avancado em pensar as transformagées recentes em termos didaticos. Destacam a importancia de agées poli- tico-académicas que visaram trazer licenciatura e a fungao social do historiador como professor da educagao basica para 0 centro do de- bate. Citam diretamente a criagao do Pibid pelo CNPq e os Mestrados profissionais voltados para o ensino em ambito da Capes, em particu- aro Professor de Histéria, Apesar disso, constatam “(.. acaréncia de discusses sobre a atuuagao do/a docente desta érea de conhecimento no Ensino Superior” (SCHMIDT and RODRIGUES, 2017) Os autores nos convidam a diferenciar os objetivos do ensino de Hist6ria na universidade e no ensino bésico. No primeiro seria formar pesquisadores-historiadores, no segundo contribuir para a cidadania plena, salientando a elasticidade desse objetivo, a depender do tem- po e dos grupos sociais em disputa, a cidadania pode significar coisas muito distintas e, por vezes, contradit6rias. Destacam a democratiza- (20 do acesso ea maior diversidade de nossos cursos de hist6ria e se perguntam como podem os nossos planos de curso e curriculos per- manecerem os mesmos? E ainda: Como podemos manter nossa isa de leituraseestratégias de ensino sem ‘modificagdes, se quando as elaboramos, as pensamos, mesmo que in conscientemente, para um grupo de caracteristicas genéricas(seriam lei- tores ¢ ouvintes universals, conformados a parti de um modelo branco, masculino, de classe média, com um repert6ria de leiturase viagens rela- ‘tivamente comum?) e homogéneas? (Idem, p. 10). partir de um diélogo com a hermenéutica de Ricoeur a Gadamer, os autores destacam a necessicade de relativizar a concep¢éo roman- tica de autoria que celebra a individualidade solar e o momento de produgao como uma espécie de isolamento na intimidade, para enfa- tizar a leitura como evento constitutivo dos sentidos dos textos: Sob esta ética, a abordagem do conhecimento histérico em sala de aula indo se restringiria & invocagéo de um passado histrico, mas se ampli, ria Bs possbllidades abertas por um passado pratic,“utilizével” por dite ‘entes grupos, insttuigdes, pessoas particulares e agéncias, conforme sua ‘constituigdo Identitéria, subsidiando suas tomadas de decisbes na vida cotidiana (WHITE, 2014: XII) (Ider: 1). Insistem que as diferencas entre a hist6ria pesquisada e a historia escolar poderiam ser melhor definidas como entre uma historia pes. quisada e uma histéria ensinada, salientando o fato evidente de que nossa prética académica no se reduz.a pesquisa, embora as pressdes do modelo de pés-graduacao tendam a fazé-lo, mas envolve igual mente o ensino, Rodrigo Turim (UNIRIO), em artigo disponibilizado para debate (2017) na plataforma academia.edu, intitulado “Entre o pasado prati- ‘co € 0 pasado hist6rico: figuragées do historiador no Brasil contem- pordneo’, aborda as consequéncias das transformagbes contemporé. zneas do tempo para a histéria disciplina em seu formato universitério. ‘Analisa um conjunto de textos publicados no site da Anpuh nacional que versa sobre os desafios atuais da historiogratia, em particular 0 projeto de profissionalizagao e a Base Nacional Curricular Comum, ‘Também aqui parte-se do mesmo diagnéstico que temos destacado: |.Jobistoriador vé sua autoridade sendo intensamente disputada na ae na piblica, eemaecendo aquela forte distingSo entre profissionals e ama: ores estabelecida desde o século XIX, O que resta dessa distingdo? No que, hoje, pode se sustentar a profissdo do historiadore seu papel na so ciedade dlante dessas novas experiéncias socials e politicas? (TURIN, 2017: 4) Em sua anélise percebe a continuidade de elementos justificativos e virtudes epistémicas construidas pela disciplina desde o século XIX | cia de desmantelamento da universidade puiblica? Valores como a objetividade do conhecimento hist6rico e seus com- promissos com a nacao precisam mediar sua relevancia no contexto de pluralizacao de narrativas identitarias, em suas palavras, a histo- riografia estaria entao entre este passado disciplinar “[..] e um pas- sado pratico, constituido pelas pressdes de um cendrio marcado pela | difusdo e ampliagao dos meios de representagao do passado e pela globalizacdo das memérias sociais e nacionais" (Idem: 10). Em outro artigo disponivel para debate no site “Academia.edu’ e agora publicado na Revista Maracana, Francisco Sousa, Géssica Gui- mardes e Thiago Nicodemo, trés professores do departamento de His- t6ria da UERY, refletem sobre os desafios da historiografia como res- posta A terrivel crise que atravessa aquela instituicdo. Perguntam-se, muito diretamente, “como refletir sobre a historia diante da experién- "(SOUSA et al, 2o17: 01). Propdem pensar sobre a disciplina e as formas de engaja- mento com 0 tempo presente, questao que retorna com forca reno- vada & ordem do dia desde o momento em que ficou evidente a arti- culagao antidemocratica de forgas politicas que viam nas sequéncias dos governos petistas e de suas politicas de inclusao.a maior ameaca a seus projetos de hegemonia econémica e social. O objetivo do artigo 6 pensar a “reativacao dos vinculos entre universidade e sociedade’ Analisando o comprometimento de historiadores do comego do século XX, Crocce, Bloch, Sérgio Buarque, com os vinculos entre pre- sente e escrita da histéria, salientam a persisténcia do conceito mo- demo da histéria como um singular-coletivo como um horizon te naturalizado, Afirmam que a manutengao dessa conjungao entre disciplina, ciéncia e realidade como singular-coletivo resulta em que *L..] ahistéria como disciplina tem participado do amplo movimen- to de produzir para ptiblicos cada vez mais concentrados” (Idem: 07). No enfrentamento dessa conjungao, afirmam que a historiografia pre- cisa enfrentar 03 efeitos limitadores de sua adesdo a um conceito mo- demo de autor que limita o processo da produgio de conhecimento a — 203 — uma concepeao de linguagem difusionista. Retornam a Bakhtin para pensar a linguagem como circulagao, reivindicando uma nova ética, tanto na producdo do conhecimento, quanto na sua configuragio es colar, no acontecimento da aula. Assim, colocam a seguinte pergun- ta: “Nao é evidente hoje, por exemplo, se produzimos como arquipé. lagos ou se seremos capazes de produzir conjuntamente” (Idem: 08) Em conferéncia no 9 SNHH, cujo tema foi “O historlador brasi- leiro e seus piblicos’, Jurandir Malerba expandiu suas reflexdes so- bre histéria pitblica de 2014 para incorporar de modo decisivo aqui. lo que estava ausente naquele texto: os impactos da revolucao digital eamudanga do enfoque das “audiéncias” para “o piiblico geradorde histéria” (MALERBA, 2017: 141) 0 texto avanga no debate 0 propor nao apenas 0 reforgo das fronteiras entre historia disciplinar e leiga, mas a compreensao de “|. como esse conhecimento vem sendo tes- tado e negociado” (Idem: 144). 0 caminho sugerido pot Malerba pas- saria por uma reafirmacao da autoridade e responsabilidade do histo- tiador pela cultura histérica democratizada (idem, p.147), ‘OWISTORIADOR COMO CURADOR Parece-me que a énfase hoje dada no debate a uma explosao da de. ‘manda por histéria e de novas formas de representagao tende a exa- ‘gerar 0 seu aspecto recente, pois desde o XIX, pelo menos, que a his- téria disciplinar teve de disputar e conviver com intimeras outras fontes de histéria. Nesse sentido, uma tarefa atual da Histéria da His toriografia tem sido repensar essa relagao que fot silenciada como parte da estratégia discursiva da disciplina. No século XIX, a escolarizagao do ensino de histéria universal e nacional foi um passo ousado e importante naquela conjuntura em 6, Nowa gina intelectual endeu a ec configura numa universdade de cre oxen te(oo senido de um prio pra poucos individu) «que marca no ypenase questo dos ‘masta or procaimenos ce psu, orpertria de twas a sereminvetgados de roost \oincusto orto social ede formas de comunicagi cam o pbc” (er, 6) que democratizagao da hist6ria, a ampliagao de seu valor social, po- litico e cultural fez emergir novos sujeitos e cendrios de disputa. Os regimes de autonomia dos discursos hist6ricos disciplinar e escolar constituiram-se em competigao aberta com o discurso histérico lite- ririo, consagrado no romance, com o regime compilatério e popular que se espalhava pela imprensa periédica em expansao e pelo neg6- cio do livto, Portanto, nao podemos exagerar o ineditismo da situagio contemporiinea, com orisco de opor nosso estado atual a um passado nostalgico cuja existéncia nao resistiria a uma anslise mais rigorosa. aspecto positivo dessa constatagao é que podemos olhar para o pas- sado da disciplina em busca de algumas respostas. Intimeras pesqui- sas em andamentos tém revelado uma rica “historiografia popular” no século XIX que disputava e negociava fronteiras com a disciplina, Nomes como Justiniano José da Rocha, Francisco Solano Constan- cio, Abreu e Lima, Joao Francisco Lisboa, Joaquim Felicio dos Santos, Mello Moraes, entre outros, tém se destacado nessas novas pesqui- sas, Estes autores produziram no século XIX uma historiografia vol- tada para o livro impresso ou mesmo para as folhas periddicas com 0 duplo objetivo de intervir na vida prético-potitica e atender a um de- sejo crescente por histéria, Do mesmo modo, nao podemos absolutizar a oposicao entre his- toriografia disciplinar e outras formas de discurso no esquema bind- rio prdtico versus cientifico-tedrico, como tem sido difundido a par- tirda recepgao das reflexdes mais recentes de Hayden White acerca dos "passados praticos’ Se deixarmos o campo das definicdes tipi- co-ideias para o da hist6ria da historiografia veremos facil mente que nem 0 mais cientificista projeto historiogréfico esteve despro- vido de dimensoes e objetivos praticos, éticos e politicos. A hist6- ra no século XIX s6 pode tornar-se uma ciéncia no momento em que conseguiu convencer a sociedade e o Estado das vantagens pré- ticas evidentes do conhecimento que poderia produzir, em particu- lar em sua pretensao de orientar na conjuntura, amplificar novas = 205 = identidades politicas e mediar conflitos nas relacdes internacionais Esse processo de delimitacdo de fronteiras entre 0 prético e 0 clen. tifico nao foi linear nem carente de ambivaléncias, mas construido por meio de disputas e polémicas que podem e estéo sendo recons. trufdas.(MALERVAL, 2015; VARELLA, 2011; SANTOS, 2013; FERREL- RA, 2017; ARAUJO, 2015), 0 cenario atual se destaca nao tanto pela centralidade da nogao do ptiblico como audiéncia, mas pela reivindicagao de uma cidada. nia que quer ser pensada como polo ativo na produgio de uma histo- riografia socialmente distribuida, ou seja, da democratizagio das con. torias, aqui entendida como digdes de escrite ¢ apresentagao de his intervengdes sobre a historicidade que extrapolam os regimes discur- sivos estabelecidos ao longo do processo de modernizagao. Esse fen meno nao pode ser visto apenas como uma ameaga & historiografia profissional, mas como uma reagao compensat6ria que nao tem sido suficientemente respondida no interior do campo. Em artigo recente, procurei caracterizar 0 que chamei de “regime de autonomia avaliativo; fruto do modelo de pés-graduagao implan- tado e monitorado pela Capes desde meados dos anos 1970. Sem ig norar 0s grandes avangos que este regime discursivo tem permitido, dois aspectos precisam ser apontados: a exterioridade dos modelos, cientificos e de avaliacdo construfdos a partir de uma elite administra- tiva fortalecida nas agéncias, e (2) a baixa comunicacdo e legitimida- de social do conhecimento academicamente produzido neste contex- to A legitimagao pelo desempentho, para retomar a reflexio clissica de Lyotard, surge como efeito e, ao mesmo tempo, aprofunda a crise de legitimagao da ciéncia. Portanto, a cena atual nao poderd ser res pondida apenas pelo reforco da ldgica da produgao de conhecimen- to cientifico-especializado, embora essa mesma logica precise ser, 10 caso das Humanidades, defendida frente das forgas destrutivas que se levantam contra a disciplina. A legitimagao pelo desempenho, ce lebrado no modelo de avaliagao das agéncias, em especial da Capes, = 206 = éndo apenas uma forga domesticadora das Humanidades, mas tem igualmente aprofundado sua crise de legitimagao. Uma das direcdes da resposta passa necessariamente pelo apro- fundamento critico de modelo disciplinar, seja pelo enfrentamen- to das armadilhas da politica de desempenho e do modelo avaliativo, que ampliam a pesquisa reduzindo seu auditério e impacto. A bus- cade novas ferramentas criticas passa por conceitos mais complexos que atualizem a aporia do discurso hist6rico, para me utilizar da for- mulacao de Luiz Costa Lima, Para este autor, uma das condi¢des de- finidoras da escrita da hist6ria esta na reivindicagao de alguma au- toridade na busca da verdade do que aconteceu. Naturalmente, as formas pelas quais as sociedades administram seus regimes de ver- dade sdo diversas e precisam ser continuamente recolocadas, mais do que singelamente abandonadas. Como a intrigante epigrafe do gran- de romance de Joao Ubaldo, “O problema da verdade é o seguinte: 1nGo existem fatos, s6 existem hist6rias’ assim, o problema da verda de néo comega ou termina pelos fatos, mas pelas condigées de ver- dade das histérias que tornam os fatos eventos significativos’. Ao lado dessa tarefa, é urgente a busca de novas formas de organizar e repre- sentar a avalanche de informagdes da era digital ea complexidade de nosso mundo integrado. A promessa da chamada web 3.0 de transfor- ‘mar, através das redes semanticas, toda informagao em dado, é, para as Humanidades, ao mesmo tempo, uma ameaca e um desafio. Em todas essas frentes, adisciplina precisa ser defendida e renovada. Essa nova onda democratizante e esse desejo renovado por his- A6rias precisa ser respondido em diversas frentes que articulem um conceito mais amplo de “direito & historia: Quando digo direito & his- ‘ria me refiro ao acesso as condigdes plenas de desenvolvimento € experiéncia de nossa condicao humana, e no uma espécie de difu- 1 Agrdego a Luana Meo cer chamado minha atone para ess fase que sore o romance Vvw 0 pov bra, — 207 = so de versdes simplificadas de cardter pragmético a servico de proje. tos de estados, nacdes, especialistas ou mercados: Aafirmagio da disciplina passou sempre pela conscléncta da dificuldade ‘em negoclar constantemente suas fronteiras frente as miltiplas pressoes, afiemar que a historlografia foi apenas uma “ferramenta” dessas forcas& ignoraro que ela tem de mais fundamental, a capacidade de alargar nos. sa experiéncia e conhecimento da historia, de voltar-se contra si mest, de suas fronteiras os recursos para f28-Io, pois mesmo que buscando for ‘idela de autonomia disciplinar nao 6 alhela & porosidade de suas fron. teiras, muito antes a exige (ARAUIO, 2016 89). Portanto, ha importantes diferencas na natureza do trabalho do historiador quando definimos sua tarefa como a de gerantir 0 “direi- to Ahist6ria’ e, por outro lado, afirmar que “Saber histéria é um direi- to como muito oportunamente foi definido pela ANPUH como uma bandeira de luta para o campo. A disciplina produz um conhecimen- to controlado e é natural que espere que a sociedade possa terlivree amplo acesso a esse “produto” Por outro lado, isso nao deve nos im. pedir de reconhecer que o saber histérico sempre teve outras fontes, em iiltima instncia pelo simples fato de, em existindo, 0 ser hurmano constantemente produzir interpretagdes sobre sua situacao. Produzi historiografias depende da constante interpretacao da situagao hist6- rica. E impossivel separar completamente esses dois polos. 0 mundo moderno tem constantemente democratizado o acesso as condigées, para a escrita e representacdo da hist6ria. A representagao especia- lizada do historiador que desde o século XIX procurou garantir seu valor privilegiado enfrenta hoje novos e renovados desafios, mas nao” devemos ver esses desafios nem como um convite irrecusdvel para 0 desfazimento das diferencas entre o conhecimento hist6rico discipl- nar e aquele produzido fora da disciplina em diferentes ambitos, nem como um fenémeno marginal que possa ser simplesmente ignored. = 208 — A democratizagao das condigies de produgao de representacoes his- téricas é um fendmeno complexo e ambivalente, insepardvel do pro- cesso de modemnizacao em geral, que tanto pode apontar para a ba- nalizagdo e congelamento da experiéncia da histéria, quanto para seu alargamento, 0 historiador sempre teve e pode continuara ter um papel central nessa luta pelo direito & historia A luta pelo direito & histéria nao passa apenas por gestos indivi- duais e voluntérios, mas pela disputa institucional e politica, como foi aquela que permitiu a criagao de arquivos, universidades e profissdes que garantissem as condig6es minimas para a producao do conheci- mento historiogréfico modero. Hoje essa luta passa pela regulagéo da midia, da propaganda, da circulagao de noticias falsas, por uma educacéo emancipadora que permita ao cidadio ter acesso as condi- es de reflexividade sobre sua situacao existencial. A simples expan- so do discurso sobre a histéria ea meméria nao pode ser confundida com sua “democratizacio; se algumas dessas fontes esto mais com- prometidas com a afirmagao de poderes, privilégios, preconceitos, ou a edificagao de lucrativos negécios. Nao queremos apenas colaborar com os processos de naturalizagao da temporalidade do mercado ¢ do capitalismo contemporaneo, ser mais uma fonte de distragao e en- tuetenimento, nao apenas ser atual, mas fazer a histéria colidir com 0 “presente atualista"(ARAUJO; PEREIRA, 2016) Assim como hoje o en: 10 de historia nao pode ser resumido & ideia de transposigdo de um saber disciplinar para 0 espago escolar, também a relacéo com a demands e produgdo social de histérias ndo serd atendida apenas pelas préticas de divulgagao cientifica, embo- "a elas sejam fundamentais, mas deve partir do reconhecimento dos diversos sujeitos e suas produgdes locais e epistemologias, surgin- do dai mais a imagem de uma circulagao do que a de uma difusdo ara auditérios cada vez mais amplos. Nesse circuito, talvez 0 histo- tiador possa desenvolver uma nova e distinta fungaio social, apare- cendo como “curador de histérias” No capitulo “Meméria coletiva = 209 ~ ‘como afirmacdo" da coletanea “Heritage and Social Media’ de 2012, Neil Silberman e Margaret Purser assim resumem o problema a par- tir da perspectiva das politicas de patriménio, trata-se de: (..J capa- citar comunidades contemporaneas a digitalmente (te)produzir am- bientes histéricos, narrativas coletivas e visualizagSes geograficas que aglutinem essas perspectivas individuals em formas e processos de lembranga” (GIACCARDI, 2012: 14) Os autores salientam que nes- ses atos de curadoria o elemento central é 0 processo ativado, mais do que simplesmente o produto final (Idem: 26). Este mesmo volume traz o interessante estudo de Sophie B. Liu intitulado “Curadoria so- cialmente distribuida do desastre de Bhopal’, em que estuda as for- mas pelas quais a meméria da catéstrofe de 1984 fot reativada social- mente através das medias digitais. A autora parte da premissa de que “4s emergentes tecnologias de informago e comunicagao como as, ‘medias sociais estao transformando as memsrias digitais’ em artefa- tos que podem ser copiados, remixados, (re)presentados e, finalmen- te, curados on line de modo distribuido" (GIACCARDI, 2012: 31) Esses movimentos ndo esto apenas usando o pasado, mas pro- duzindo saberes hist6ricos. Quando comunidades como as de Bento Rodrigues, cujo espago de existéncia foi dizimado pela catastrofe da Vale-Samarco-BHP, contam e produzem suas historias no contexto da. luta por reparagao, o trabalho do historiador nao pode pretender ape- nar substituir esses relatos por historiografias profissionais, mas tam- bém, e fundamentalmente, contribuir para amplificé-los em suas di- mens6es cognitivas e pratico-politicas. Um esforgo para o qual olivro “Vozes de Tchernébil’ de Svetiana Aleksiévitch, pode nos servir como inspiragao. 0 seu trabalho de promover, recolher, selecionar e editar | “enable contemporary communities to gal (eroducehsrial environments, lect arta and goographial isulizlone tht cluster individual perspectives in share forms and procera of emembeing: 4 "BmergingICT esol mea ace transforming gt memories int rats tatean bo pic reed (presented and ulinaaly cured online ina dsuibuted aston: relatos orais de pessoas comuns sobre a catéstrofe esté mais préximo da tarefa de um curador do que da de um autor de historias: Quase vinte anos. Encontrei e conversei com ex-trabalhadores da cen ‘tal, clentistas, médicos, soldados, evacuados, residentesilegals em zonas Prolbidas.] Essas pessoas conversavam, buscavam respostas, Nés pen vamos juntos. (..) O que a experineia de Tchemndbil nos deu? Teré nos onduzido a esse mundo secretoesilencioso dos ‘outros’ (ALEXSIEVITH, 1997: 47). (O mesmo poderia ser dito acerca das narrativas produzidas e di- fundidas pelos movimentos sociais, os coletivos negros e de género, © Movimento de Atingido por Barragens, dos Sem Terra e Sem Teto, pelo Passe Livre eas ocupacées, mas também por empresas ¢ corpo. rages a partir de outra I6gica e posicdo, ou ainda pelas pessoas co- ™muns, que gracas as ferramentas "sociais’, colaborativas e de com- Partilhamento da Web 2.0, cada vez mais tém acesso aos meios de produgao e difusdo e sentem-se motivadas a contar as suas historias. Ohistoriador pode e deve tratar essa pluralidade de fendmenos como fontes para uma historiografia disciplinar, mas pode também atuar tornando essa nova dimensao um problema em si mesmo. O foco aqui seria menos a autoria e a producao, como na pesquisa, mas 0 acolhimento critico e a amplificagao de oportunidades e ferramentas Nao me parece, portanto, acidental que diversos trabalhos elenca- dos nesse balanco reivindiquem a necessidade urgente de se pensar novas formas de autoria e autoridade nas humanidades, apontando para formas mais colaborativas e compartilhadas de produgéo de co- nhecimento, Nao deixa de ser promissor o fato de que muitos dos ar- {igos citados sao em co-autoria, o que pode ser um bom sinal da su- eragao da légica romantica do autor com sua definigdo metafisica de subjetividade, que se acopla & légica liberal do trabalho intelectual como equivalente & propriedade individual e privada, Pensar uma nova estratégia de comunicagao, circulagao e demo- cratizacao do direito & histéria nao passa apenas ou sobretudo pela reivindicagao de que o historiador deveria escrever melhor, mais lite- rariamente, seja lf 0 que isso signifique. Muitas vezes é apenas a con- solidacéo de preconceitos linguisticos vindos de uma época em que o audit6rio privilegiado do historiador era formado pelas elites letradas, Trata-se, na verdade, de compreender os regimes de autonomia que organizam a circulagao dos discursos em nosso mundo e atuar em to: das as suas dimensées. Ao lado do historiador-pesquisador e do his- toriador-docente estamos vendo emergit 0 historiador-curador, para {sso precisamos reestruturar nossos cursos, em particular nossos ba- charelados, hoje limitados pela tarefa de reproduzir quadros para a universidade e a pesquisa. Precisamos transformar nossas gradua- es, criar instrumentos institucionais como laboratérios de audio. visual, ampliar os produtos nos quais se espera que um historiador ppossa se comunicar,redefinir os currfculos de modo que possam atin- ‘gir um novo universo de competéncias, aproximar o campo de areas ‘comoa comunicagao, a antropologia ¢ as ciéncias da informacdo. Tal- ‘vez, explorando a dimensao curatorial do trabalho do historiador, po deremos enfrentar mais decididamente a extenséo universitatia, que tem sido apontada por autores como Rodrigo Perez, da UEBA, como ‘uma das respostas na busca de uma epistemologia para tempos de golpe e desmonte da democracia, Ao destacar essas trés vocacdes do trabalho do historiador nossa intengdo néo é produzir qualquer tipo de isolamento. No limite, as habilidades em jogo nas teés éreas séo muito parecidas, deslocando- -se apenas as énfases. Da mesma forma, espera-se que certas préticas desenvolvidas em um ambito possam contribuir para os demais. Tan- toasala de aula do ensino basico quanto a pesquisa podem se benefi- ciar por conceitos como “produgao distribusda” (crowdsourcing) ¢ es- ‘pacos comunitarios de cooperagao e aprendizado, duas praticas que o historiador norte-americano Charles Upchurch nos convida a mo- bilizar nas salas de aula do ensino superior, cada vez mais complexifi- cadas pelas demandas identitérias (UPCHURCH, 2017). ‘A curadoria de histérias como um espago de promogao, selecdo, edigdo e reapresentacao de histérias soctalmente distribufdas e com- partilhadas deve, entretanto, responder ao desafio de decidir que his- térias curar. A premissa da democratizacao e do acolhimento da di- versidade nao poderia nos levar ao risco de silenciar frente aos relatos fundados no preconceito, no édio e na manipulago? Mesmo aqui devemos nos perguntar quais as aporias do discurso histérico disci- plinar comprometido com o direito a histéria? Quais so seus valo- res incontornaveis? Aqui listaremnos apenas trés que consideramos in contornéveis. A pergunta pela verdade do acontecimento, a defesa da democracia e 0 respeito a diversidade. Celebrar e amplificar a diver- sidade que celebre a diversidade, que saiba se alimentar do outro a ‘mesmo tempo em que o edifica, e condenar a diversidade autorreferi- da, que para se afirmar precise reduzir o outro a si mesmo. Certamen- te que ndo poderemos contar com uma prescrigao te6rica que nos ga- ranta uma formula para guiar nossas decisdes concretas, mas como historiadores sabemos que a sabedoria pratica, a que vem da expe- rigncia, é capaz de nos guiar nas decis6es, ao mesmo tempo em que znos mantém aberto & continua reflexao. A democracia e a verdade sto valores aporéticos e condigdo para a universalizacao do direlto & his- t6ria que devem orientar o historiador em sua fungao social de cura- dor de histérias. Isto nos permititia desqualificar qualquer discurso hist6rico que tenha como pressuposto a negacao desses valores. A curadoria de hist6rias em sua dimensao critica certamente en- volve 0 enfrentamento dos relatos de ddio e preconceito. A fungéo de “curador” aponta nessa direcao, nao apenas visando 0 silenciamen- to dessas (anti)histérias, mas sim sua desestabilizagao. Muitas vezes © deixar falar em um ambiente de didlogo paritério pode contribulr para desestabilizar essas narrativas, isso para néo dizer dos procedi- ‘mentos criticos, que precisam ser reforgados, mas que sozinhos nao — 28 = resolver. A curadoria em histéria deve igualmente contribuir para a ‘construgao de politicas ptiblicas que sejam eficazes na defesa do di- reito ahistéria, protegendo a sociedade de usos espuirios e da privati- zagao e mercantilizagao desses valores, certamente mais ameagados do que nunca quando a Web 3.0 promete tornar toda informagéo, no limite todo o real, em um imenso banco de dados organizado por re- des semanticas cujas logicas estruturadoras estardo a servigo dos in- teresses que as promovem. No debate acerca do movimento “Escola sem Partido” hé uma ten- déncia de reforcarmos o papel quase doutrinal do Ensino de Hist6ria, Mesmo com as boas intengdes de sempre, esse gesto é bastante artis cado por diversos motives, a comecar por alimentar a prépria agen- da supostamente anti-doutrinéria dessas propostas. O ponto que gos- taria de insistir € que o foco poderia deixar de ser apenas 0 “saber” ou “conhecer” histéria, mas também a amplificagéo de nossa capacida- de de contar e ouvir (ler, ver, tocar) histérias como gesto de alarga- mento do humano, como condigao de empatia e educagao para a de- mocracia. Gostaria de concluir este artigo recordando as palavras de Temis. técles Cezar em recente artigo de balanco sobre os impactos do Giro Linguistico na historiografia brasileira, considerado por ele uma ‘[..] brecha, um gap no sentido que Ihe atribui Hannah Arendt, ou seja, um “estranho entremeio no tempo hist6rico, onde se toma conscién- cia de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas ‘que nao séo mais e por coisas que nao sao ainda’ (CEZAR, 2035: 451). Frente a esses momentos de crise, nos caberia “[..] tentar nos reapro- ximar do clima hist6rico marcado pela instabilidade, que, ao mes- ‘mo tempo, assusta e incita” (Idem, p. 455). Ou, em uma pardlrase de Foucault, as ciéncias Humanas estardo em perigo enquanto forem perigosas. BIBLIOGRAFIA ABREU, Marcelo, and RANGEL, Marcelo, Memoria, Cultura Histérica E En- sino de Histéria No Mundo Contemporaneo. Histdria E Cultura 4 (2): 7-24, 2016 ALBIERI, Sara; GLEZER, Raquel. 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PROJETOS DE DEMOCRACIA EM DISSOLUCAO NO BRASIL DESDE 2016 Daniel Pinhiat inTRoDUGKO ‘Talvez nenhum conceito tenha sido tao disputado politicamente na hist6ria recente quanto 0 conceito de democracia, especialmente se considerarmos 0 contexto Pés Segunda Guerra Mundial. Ele é con- siderado um valor universal e um pressuposto de regimes politicos dos mais diversos, por vezes antagonicos, nas mais distintas matri- 2es ideoldgicas. Em contraposigao aos autoritarismos praticados pe- los regimes de orientagao nazi-fascistas, 0 cardter democratico de um. regime politico ganhou status de adjetivo, associagao quase imedia- taa uma ideia, ndo menos universal, de liberdade. Em funcao destes usos indiscriminados, a democracia ganha nao s6 legitimidade uni- versal, mas se apresenta como regime capaz de garantir 0 consenti- ‘mento dos governados. Por outro lado, estes mesmos usos tendem a sustentar abusos gerando, consequentemente, um esvaziamento do conceito - basta lembrarmos, por exemplo, da retérica democratica presente nas Ditaduras de Seguranga Nacional da Am anos 1960-70. O caso brasileiro é referencial neste sentido. A Reptiblica brasileira conhece no século XX duas experiéncias ditatoriais - 0 Estado Novo de Vargas (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985) ~ que, a des- peito das suas diferengas, apresentam como trago comum: 1. a sus- -a do Sul nos 2 Douror em Histéla Social da Culture pela PUC-Rio «Professor Adjunto de Hitia do Bes da Universidade do Esade do Rie de aia

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