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Musica, semidtica musical e a classificagao das ciéncias de Charles Sanders Peirce José Luiz Martinez (*) Enquanto a Arte cifra, as ciéncias decifram. (Santaella 1992: 130) A rekevancia da teoria geral dos signos, ou semeidtica, tal como desenvolvida pelo polimata (principalmente quimico, fisico, lbgico e filésof) Norte-Americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), tem sido progressivamente reconhecida como eficaz no entendimento de questées musicais de significagao. Desde cerca de 25 anos, académicos tais como Wilson Coker (1972), Willy Corréa de Oliveira (1979), Eero Tarasti (1987, 1994), David Lidov (1987), Vladimir Karbusicky (1987) e outros tem usado em suas andlises musicais conceitos derivados direta ou indiretamente das teorias de Peirce. Inicialmente, aplicou-se & misica apenas conceitos semidticos isolados, muitas vezes apresentando desvios epistemol6gicos em relagao a teoria original. Mais recentemente, com uma compreenstio mais ampla da idéia de semiose, isto é, do processo de agdo signica, e de suas varias facetas musicais esta sendo possivel obter andlises semidticas mais precisas, tais como se pode encontrar em Robert Hatten (1994) e William Dougherty (1994). Meu préprio trabalho se dirige para esta area ¢, em 1997, propus como tese de doutorado junto ao departamento de musicologia da Universidade de Helsinki, uma teoria semistica da miisica pautada Jogicamente em Charles Peirce. A area de aplicagdo que escolhi para este trabalho foi a misica clissica Hindustani (vide Martinez. 197A). Parece claro que as principais dificuldades em criar tal teoria so duas. Em primeiro lugar, a compreensio correta dos escritos deixados por Peirce. Este problema vem diminuindo progressivamente, no somente ‘com um melhor acesso aos manuscritos de Peirce, a sua publicagdio cronoligica realizada de acordo com aos padrdes de publicagao cientifica (vide Peirce 1982-), mas ainda a sua interpretagdo e mesmo expansio por destacados especialistas em semitica pura peirceana, Em segundo lugar esta o problema da aplicagdo da semidtica & musica, Aqui é preciso reconhecer que a teoria geral dos signos foi concebida como um sistema kigico destinado a compreensio de relagdes de significagao com um largo espeetro de aplicabilidade ¢, portanto, necessariamente, com um alto grau de generalidade. A sua aplicago 4 um disciplina espectfica como a miisica pressupde a necessidade da construgao de uma teoria intermediiria! , ou seja, uma teoria semidtica da misica, que distinguindo os campos de investigago, seus niveis, os diversos pontos de vista analticos dos problemas especificamente musicais, constituisse um novo paradigma musicolégico, com capacidade pritica efetiva de compreensio da significagdo musical em suas miltiplas facetas. Assim, pode- se passar de maneira adequada do alto grau de generalidade da teoria geral dos signos de Peirce para o estudo dos fendmenos musicais em sua especificidade. Dentre as numerosas trihas que se pode seguir para a realizagao de tal tarefa, encontra-se o estudo da classificagdo das cigncias de Peirce, onde pode-se situar a misica e seu estudo, e estabelecer suas interrelagdes epistemolbgicas com outras ciéncias. O que se busca & a compreensio dos relacionamentos e dependéncias dos estudos musicoligicos com relagdo as ciéncias de maior generalidade, que Ihes fornecem principios de varias naturezas; e de ciéncias correlatas que podem fimcionar como estudos complementares. Tudo isso traz.A tona a idéia de interdisciplinaridade, que parece ser 0 modo proprio de existéncia dos estudos musicais. Licia Santaell, judiciosamente, indica que “é na cartografia das ciéncias [de Peirce] que podem ser encontradas as vias mais sofisticadas e complexas para se comesar a pensar a interdisciplinaridade em vos menos cegos’ (1992: 105). E preciso, antes de mais nada, indicar ao menos brevemente 0 conecito epistemolégico de citneia de Peirce. Para ele, cigncia é uma atividade diligente, um modo de vida: ‘se um homem arde por apreender e se coloca comparando suas idéias com resultados experimentais de modo que ele possa corrigir aquelas idéias, todo homem de cigncia 0 reconhecerd como um imio, nio importa o quo pequeno seu conhecimento possa ser” (CP 1.44). Assim, 0 trago distintivo do modo cientifico de vida nio est em titulos, colocagdes académicas, ou no volume de conhecimento adquirido, mas sobretudo na atitude sincera de busca da verdade. E esta, é preciso destacar, é entendida por Peirce ndo como um dogma cientifico ou de qualquer outra natureza, mas ‘como um proceso de busca incessante, essencialmente falivel e limitada num determinado momento, ¢ cuja procura implica em pesquisa contina por uma comunidade de investigadores (vide CP 5.565, 7.55). A classificagao das ciéncias Peirce pensou a classificagdo das ciéneias segundo uma concepgao dindmica, onde idéias so trocadas entre 0s diferentes ramos em niveis diversos de abstragdo e aplicagdio. Segundo Beverley Kent, ‘as cigncias no alto da escala fornecem principios reguladores para aquelas que esto abaixo, enquanto que as cigncias mais especializadas alimentam com dados ¢ problemas aquelas que esto acima’ (1987: 93). A base da classificagdo das cigncias esté nas categorias universais, elementos ligicos do mais alto grau de generalidade, presentes em todos os fendmenos, e que funcionam como instrumentos de anilise fenomenoligica. Essas categorias foram concebidas por Peirce como primeiridade, secundidade e terceiridade, obedecendo a ogica dos relativos: ‘Uma coisa considerada em si mesma é uma unidade, Uma coisa considerada como correlata ou dependente, ou como um efito, é um segundo em relagio alguma outra coisa. Uma coisa que de algum modo traz uma coisa em relagdo a outra é um terceiro ou um médium entre os dois’ (Peitce 1992: 280). Em termos simples, as categorias podem ser explicadas da seguinte maneira: ‘O primeiro é o inicio, aquilo que é fiesco, original, esponténeo, livre. O segundo é aquilo que é determinado, terminado, finalizado, cortelativo, objeto, necessitado, reagente, O terceiro é o médium, o transformar-se, o desenvolver-se, 0 efetuar’ (ibid.)°. Com base nas categorias universais, em 1897, Peirce estabeleceu o nivel de primeira generalidade na classificagdo das idéias: “A primeira principal divisio na classificagdo das idéias refere-se 4s qualidades de sentimento e as qualidades sensiveis; a segunda, as idéias de vida e experigncia cotidianas; e a terceira[...] refere-se as ciéncias’ (Kent 1987:104). Fica claro aquia base Iogica do sistema de numerag’o, 1no qual todas as cigncias so indexadas a partir do nimero trés. De fatto, ciéncia s6 poderia ser terceiridade Em 1903, Peirce atingiu aquilo que Beverley Kent chamou de ‘versio perene’ de sua classificagdo das cigneias (1987:121). O fato de Peirce ter reproduzido o mesmo esquema em todos os seus subseqiientes artigos sobre légica, indica que ele atingiu um nivel satisfatério na busca por uma classificagdio adequada das cigncias. Segundo esse esquema, as cigncias se dividem em trés ramos maiores, distintos de acordo com seus propésitos fuandamentais: 3. CIENCIAS 3.1 Cigneias heuristicas 3.2 Cigneias da revisio 3.3 Cigneias priticas ‘As cigneias heuristicas, ou cigncias da descoberta, investigam exchisivamente novos fatos de verdade. Seu propésito é a descoberta ela mesma. O segundo ramo, cigncias da revisio, lida coma critica e a assimilagtio das descobertas efetuadas pelas ciéncias do primeiro ramo, convertendo as novas idéias em informagao potencializada. Por fim, as cigneias priticas, de acordo com Kent, ‘procuram satisfazer os desejos humanos” (1987: 131), Cada um destes trés principais ramos esté dividido em trés classes: matemyitica,filosofia e idioscopia ou cigncias especiais. Contudo, descrever as cineias e sua arquitetura tal como concebeu Peirce, ainda que minimamente, estaria alm dos limites deste artigo. Assim, os keitores devem recorrer aos escritos de Peirce (CP 1.180-283), a obra de Beverley Kent (1987), ¢ ainda & Liicia Santaella (1992: 101-140). Para 0 momento, basta o esquema da classificago perene, de acordo coma Tabela 1, onde foram expandidos apenas os ramos mais significativos para as discussdes que seguem abaixo, em especial com referéncia A semidtica e & misica. TABELA 1 A CLASSIFICAO DAS CIENCIAS DECS. PEIRCE 3. CIENCIA, 3.1 CIENCIAS HEURISTICAS 3.1.1 Matematica 3.1.2 Filosofia 3.1.2.1 Fenomenologia 3.1.2.2 Ciéneias Normativas. 3.1.2.2.1 Estética 3.1.2.2.2 Btica 3.1.2.2.3 Légica ou Semidtica 3.1.2.2.3.1 Gramitica Especulativa 3.1.2.2.3.2 Critica Logica 3.1.2.2.3.3 Retorica Especulativa 3.1.2.3 Metatisica 3.1.3 Ciéneias Especiais Fisica Psiquica 3.1.3.1 Ciéncias Nomolgicas Ciéncias Nomoligicas 3.1.3.2 Ciéncias Classificatérias Ciéncias Chasificatérias 3.1.3.3 Cigncias Explanatérias Cigneias Explanatérias 3.2 CIENCIAS DA REVISAO 3.2.1 Matemitica 3.2.2 Filosofia (...) 3.2.3 Cigneias Especiais (...) 3.3 CIENCIAS PRATICAS 3.3.1 Matemittica 3.3.2 Filosofia (...) 3.3.3 Cigneias Especiais (...) A cigncia da misica Peirce deixou em seus escritos algumas indicagdes sobre onde a musica e seus estudos poderiam se localizar em seu sistema de classificag3o das cigneias. Em 1892, Peirce havia pensado as cigneias psiquicas como divididas em quatro grupos, um dos quais seria a psiquica pritica, na qual ele relacionou a misica entre a politica econdmica, a ética, a poesia, os jogos e outros. Em 1895, ele incluiu entre a psiquica classificatoria 08 estudos etnologicos, onde se pode certamente localizar a etnomusicologia (em sua concepgao clissica) como um estudo dos ‘modos ¢ costumes’ das diferentes sociedades. Ainda no mesmo estudo, a psiquica descritiva abrange a histéria das artes e da literatura, Desta forma, pode-se pensar a histéria da misica como pertencendo a psiquica descritiva, Em uma outra classificagdo datada de 1895, Peirce denomina as cigncias priticas como artes. Aqui, ele conchui que as artes ‘dependem tanto do conhecimento psiquico como do fisico; algumas artes so quase inteiramente psiquicas, tais como a retérica, a ética, a religiio, a jurisprudéncia; outras so inteiramente fis como a vidraria, a horologia; e ainda outras requerem ambas ? como a pintura, a misica, etc.’ (em Kent 198799). Quando Peitee menciona misica entre a vidraria e a pintura parece claro que ele refére no apenas aos estudos musicolégicos mas & pritica musical em si mesma, Eis aqui um bom ponto de discussao, a misica é uma cigneia ou uma arte pritica? ‘As consideragdes de Peirce sobre a misica como uma arte dependente de ambos ramos das ciéneias especiais fisica e psiquica, parecem indicar que ele pensou até mesmo a pritica da masica como uma ciéncia especial pratica. Seria proveitoso relembrar aqui a definigdo de misica de Pierre Boulez. como ‘a0 mesmo tempo uma arte, uma cigneia e um oficio’ (1986: 32). Boulez, desta forma, declara que a misica é um complexo, e discrimina seus componentes essenciais. Pode-se aplicar as categorias universais de Peirce e reclassificar os trés elementos da misica que Boulez destaca e compreender melhor suas interrelages. Em seu aspecto de primeiridade, a misica se justificaa como uma arte, pois diz respeito principalmente ao propésito estético, entre eles, a admirabilidade em simesma. A secundidade da misica remete ao seu aspecto de oficio, isto é, a sua praxis, a musica s6 de fato existe quando é executada, Enquanto terceiridade, a miisica é uma cigncia tanto quanto envolve aprendizado, conhecimento musical, desenvolvimento continuo © a existéncia de uma comunidade de misicos, ouvintes e musicélogos. A posigdo de Boulez, contudo, no & revohiciondria, J4 em 1884 Guido Adker relacionou a musicologia & pritica musical, afirmando que a ‘musicologia originou simultaneamente coma arte de organizar tons’ (1981: 5). De qualquer maneira, as varias formas de estudos musicais, como a clissica divisio de Adler em musicologia historica i (vide 1981: 14-15), ou os estudos de base etnoligica, ou ainda o lado pritico da miisica, ete., estariam localizados em diversos niveis na classificago perene das cigncias de Peirce. Em lato senso, pode-se, portanto, filar de estudos musicais heuristicos, assim como daqueles que pertencem 2 rea das cincias da revisio e A pritica musical, Disciplinas tais como a semidtica da misica, a musicologia (quer histérica como sistemitica), a etnomusicologia, tentam encontrar novas formas de compreensdo da . s formas mais puras. Pode-se ainda pensar a composigto, quando relacionada com novas realizagSes musicais (miisica de vanguarda), ‘como uma cigncia heuristica Toda uma série de atividades relacionadas coma misica, tais como a critica de concertos e de composigées, resenhas de livros e artigos musicais, livros para educago musical, enciclopédias da misica, arquivos, etc., podem ser classificadas como ciéncias da revisio. As ciéncias priticas da misica constituem os campos de composigaio musical para fins comerciais, pesquisa de campo, execugdo, regéncia, educagdio musical, produgdo de eventos musicais, ete A interrelagio das ciéncias musicais Peirce foi muito perspicaz em compreender a dupla dependéncia da misica sobre as cigneias fisicas ¢ psiquicas. Hé, de fato, uma complexidade de disciplinas interrelacionadas que sustentam os estudos musicais. Com relagio As cigneias fisicas, por exemplo, a aciistica, a mecdnica ondulatéria, o comportamento dos rmateriais e suas propriedades aciisticas (nas varias espécies de madeiras, ligas metilicas, cordas, etc), ¢ ainda a fisiologia da audio, a fisiologia dos movimentos musculares, etc. Nas cigneias psiquicas, a misica se relaciona coma neurologia, psicologia, sociologia, antropologia, etnologia, historia e assim por diante. A estética musical é um campo aplicado da estética geral, sendo ainda uma ciéncia especial psiquica. Estudos especiticos tais como harmonia, orquestragdo, formas musicais, historia da misica, ¢ outros so combinagdes diversas das ciéncias fisicas e psiquicas. Para compreender melhor estas relagdes e dependéncias, convém, a0 menos sumariamente, examinar as conseqiiéneias musicais dos objetos de estudo das cigncias heuristicas, percorrendo-se a classificagdo das ciéncias de Peirce no sentido das cigncias mais gerais para particulares. s mais No esquema de classificagdo das ciéncias de Peirce as principais areas de investigagiio organizam-se, simultaneamente, de acordo com um diagrama hierirquico e dinimico. Aqui, em estrito senso, os estudos musicais somente aparecem no nivel das cincias especiais. Eles dependem, portanto, de prineipi estabelecidos por todas as outras ciéncias de maior generalidade, as quais se encontram acima das ciéncias especiais; da matemitica as cigncias normativas, incluindo a metafisica (vide Martinez 1997b). Nao ha nada novo em relacionar miisica e matemitica, Mas deve-se lembrar que, em sua classificago, Peirce inclui na ‘matemitica aspectos complexos tais como conjuntos finitos e infinitos, dedugo pura, etc. dos quais compositores ocidentais contempordneos tem feito feqtiente uso em suas obras. Os estudos musicais certamente dependem da flosofia,e fiisofos de todos os periodos e culturas tiveram alguma coisa a dizer sobre a misica, Para Peirce, a filosofia lida com fenémenos que so percebidos de forma comum, isto é, sem instruments especiais. Por esse ponto de vista, os fendmenos acisticos em geral sio objetos de estudo filoséfico, ¢ este compreende trés ciéncias, a fenomenologia, a estética, ¢ a semistica, O iis genérico dos estudos filoséficos esti na fenomenologia que, de acordo com Peirce (CP 1.284), estuda 0 phaneron, 0 fendmeno tal como presente para uma consciéncia, Peirce escreve que ‘A fenomenologia determina e estuda as espécies de elementos universalmente presentes nos fendmenos; entendendo-se por fendmeno, 0 que quer que esteja presente em qualquer momento ¢ de qualquer modo para a mente’ (CP 1.186). A misica, portanto, dependendo das cigncias mais genéricas, herda da fenomenologia todas as suas proposigdes. Entre elas, estiio as categorias universais e suas formas degeneradas, que ? se corretamente aplicadas ? so ferramentas basicas para o estudo da miisica (vide Martinez 1991: 31-37; 1996: 58-59; 1997a: 55-64). A segunda divisio da filosofia consiste nas ciéncias normativas: estética, ética e semidtica. Elas formam o coragao da filosofia, ja que abordam o estudo dos fendmenos em s s com uma mente possivel. De acordo com Peirce, as ciéncias normativas “investigam as leis universais ¢ necessdrias da relagio dos Fendmenos com os Fins, isto 6, [sua relagdo] coma Verdade, 0 Correto e o Belo’ (CP 5.121). As idéias de bel, correto ¢ a verdade enquanto propésitos referem diretamente as disciplinas da estética, ética e Kbgica (ou semidtica). Os prineipios das mais basicas e significantes leis musicais dependem das ciéneias normativas tanto quanto estas dependem da fenomenologia. Assim, por exemplo, a trfade componente das cigncias, normativas esti relacionada diretamente com as categorias universais; a estética esti para a primeiridade, assim como a ética para a secundidade e a semidtica para a terceiridade. O conceito de primeiridade especialmente significativo para a compreensio dos propésitos estéticos ¢, portanto, dos fins musicais. Herman Parret (1990: 218), discorrendo a respeito das idéias de Peirce sobre estética, discute 0 paradoxo da primeiridade, que ¢ simukaneamente primeiro (uma qualidade) e tikimo (um ideal). O objeto estético pode ser considerado como a apresentagdo e o desffutar de qualidades; enquanto que, no outro extremo, a primeitidade define 0 summum bonum, o mais alto ideal, que para Peirce, é também um sentimento imediato 9s rela adotado sem outa razio que a sua exceléncia. Isto &, 0 summum bonum & uma coisa ow uma idia admirivel, cuja admirabilidade depende ‘mica e exclusivamente de simesma, Parece nfo haver nenhuma dificuldade em reconhecer este principio como também valido em miisica. A mais abstrata e geral capacidade da misica é a admirabilidade em si mesma. A miisica é um fenémeno que pode ser apreciado por nenhum outro motivo alm da admirago de suas qualidades musicais. Esta nog3o conduz diretamente as idéias de misica pura ou absoluta. No entanto, todas outras concepgdes musicais herdam este principio, na medida em que qualquer misica pode também ser percebida e desfiutada como fuxos de qualidades sonoras puras. De acordo com Peirce, a ética recebe seus principios basicos da estética. Assim, a ago deve ser baseada ematos admiraveis (e portanto controlados por esse principio), remetendo mais uma vez ao summum bonum. Com relagao 4 misica, estas idéias se aplicam em relago aos atos corretos, tanto mentais como fisicos, Este principio rege respectivamente os estudos musicais, ou a musicologia; e a pritica e a performance musical, A eficiéncia de ambas atividades depende de uma ética de pensamento e de execuso apropriadas, nao no sentido moral, mas antes no sentido I6gico filosé fico. A terceira das cigncias normativas, a semeidtica (de acordo uma das formas ortogréficas mais peculiares que Peirce empregou), “é a cigncia das leis necessérias do pensamento, ou melhor (j4 que o pensamento sempre ocorre por meio de signos), é semeistica geral, considerando ndo apenas a verdade, mas também as condigdes gerais dos signos se tornarem signos’ (CP 1.444). Qualquer coisa pode ser signo. O processo de signficagao, ou semiose, consiste na relagao de trés elementos, ou relatos: um signo que representa um objeto para um interpretante (vide CP 8.343, Santaella 1995), Freqientemente, os trés relatos so também signos, e a significagdio ocorre em redes de semiose continua, Seguindo recursivamente o esquema operante na cassificago das ciéncias, os principios elementares da semidtica residem na estética e na ética. Por sua vez, a légica concede seus principios por sobre todas as cigneias especiais. Precedéneia esta que toma clara a relevancia da semitica para o estudo de todas as outras disciplinas, Portanto, em relago & misica, pode-se conceber uma semistica dos sistemas musicais, das formas musicais, da histéria da miisica (0 deciftar e a interpretagdo de indices), de fatos sociais igados & misica, etc. Evidentemente, a semidtica exerce uma forte influéncia sobre a estética musical, a percepgo ¢ a composigio Aqui, como em todos os niveis da classificagaio das ciéncias de Peirce, & importante fazer distingdes entre cigncias puras e ciéncias aplicadas. A semitica ¢ um caso notério, A semidtica formal ou pura é uma cigneia altamente abstrata, geral e de dominio teérico. E estritamente uma das cigncias heuristicas, como explicado acima. A semiética aplicada, ou deseritiva, trata de campos priticos ¢ de questdes especi especificas (Houser 1990: 208). Assim, a légica ou semistica, semistica formal, que fornece seus prineipios e ferramentas analiticas para todas as semisticas aplicadas, tais como a semistica da misica. Uma semidtica aplicada, qualquer que seja seu campo, é uma cigneia especial. como uma ciéncia normativa heuristi De acordo com o esquerm acima (Tabela 1), a semiética esta dividida em trés sub-campos: 1. gramitica especulativa, 2. lbgica critica, ¢ 3. retérica especulativa ou metodéutica, De acordo com Nathan Houser, © estudioso da gramética especulativa lida com a natureza intrinseca dos signos ¢ da semiose (agdo dos signos, ou seu processo), examinando as relagGes entre os signos, a natureza dos correlates que tomam parte na semiose (signo, objeto e interpretante), as tricotomias Peirceanas, e suas dez ou ? no modelo mais expandido ?-as 66 classes de signos. O estudo da ligica critica trabalha com o signo em relago aos seus objetos, especialmente as condigdes de referencia dos signos em relago aos seus objetos. Conseqiientemente, a critica lida coma questo da verdade. Ela abrange o estudo dos trés tipos de argumentos (abdugdo, indugdo dedugo). A retérica especulativa estuda os signos em relago aos seus interpretantes, Assim, coma semiose focada no nivel da interpretagdo, procura-se compreender como os interpretantes eles mesmos se tomam signos durante os processos semisticos (Houser 1990: 210-211) No inicio deste artigo, destacou-se que um dos maiores problemas no estabelecimento de uma teoria semiética da misica em bases Peirceanas consiste em como aplicar os conceitos semidticos gerais e amplos. discutidos na semidtica formal para um objeto de estudos especifico: a miisica (ou as diversas concepgdes de miisica). Parece claro que entre a semiética formal e a misica deve haver uma teoria semiética intermedia, uma teoria semistica da misica. Para isso, deve-se levantar as principais questdes de significaséio musical, estabelecer sua classificagdo, e determinar os instrumentos semisticos para seu estudo. O pressuposto defendido neste e em outros trabalhos (vide Martinez 1991: 51-2, 1992: 77-81, 1996: 67-69, 1997a: 52, 80-191) & que as questdes de significago musical podem ser estudadas segundo o mesmo principio que Peirce empregou para dividir a semi6tica formal em trés dreas interrelacionadas. Na semidtica musical, este principio nio é da mesma ordem de generalidade que o principio que rege a classificagao da semi6tica em sgamitica especulativa, critica bgica ¢ retérica especulativa, contudo, pode funcionar diagramaticamente da mesma maneira, Portanto, situando-se em nivel intermediirio entre a semidtica pura e a aplicada, tem-se as seguintes trés dreas, referentes: 1. As “condigdes gerais dos signos serem signos’ (CP 1.444), isto a natureza intrinseca da semiose, ou o estudo dos signos e seus sistemas de relacionamento intemo; 2. ‘a teoria geral das condigdes de referéncia dos Simbolos e outros Signos em relagiio aos seus Objetos propagados” (CP 2.93), isto é, a relagio dos signos com seus objetos; e 3. ‘as condigdes necessérias de transmissio de signficados por meio de signos de uma mente para outra, ou de um estado mental para outro’ (CP 1.444), isto é, as relagdes dos signos com seus interpretantes e sistemas de interpretago. De acordo com uma perspectiva ainda mais restrta, a mesma divisio opera nas relagdes basicas do modelo de semiose de Peirce: 1. 0 signo consigo mesmo, 2. o signo em relagdo aos seus possiveis objetos, 3. 0 signo em relagdo aos seus possfveis interpretantes. As trés reas so interdependentes de acordo coma seguinte logica: {3[2(1)]}. De maneira andloga, para se entender os fenémenos musicais de um ponto de vista amplo, uma teoria semistica da miisica deve investigar as trés dreas definidas acima, Cada campo de estudo em particular interage com os outros dois, tanto numa relagdo de dependéncia lbgica como de concretizagdo efetiva, constituindo uma unidade tridica imedutivel. Conseqtientemente, qualquer investigagaio demasiado limitada ou super-especializada arrisca abordar os fendmenos musicais de maneira a isolar aspectos esseneiais da semiose musical. A sua integridade sé estara manifesta quando os elos de um dos campos de estudos com os outros dois forem claramente indicados. Desde que os fndamentos cientificos da semistica estio na fenomenologia de Peitce, segue-se que o estudo prévio dos fendmenos musicais segundo este prisma ¢ um passo necessério para se estabelecer uma teoria semidtica da misica, A seguir, de acordo coma tripla diviso da semistica formal, existem trés campos relevantes de investigagtio musical: 1. Semiose Musical Intrinseca, ou o estudo das condides gerais dos signos musicais, isto é, suas qualidades e propriedades, suas ocorréncias, ¢ as estruturas que determinam efetuagdo; 2. Referéncia Musical, ou o estudo das condigSes de referéncia dos signos musicais em relago a0s seus objetos, isto é, a natureza dos objetos representados em miisica e por que meios musicais se realiza essa referéncia; 3, Interpretag’io Musical, ou o estudo das condigses efetivas de semiose musical, isto &, a cognigio dos signos musicais ¢ as formas de causagdo eficiente e final em miisica A posigtio defendida aqui ¢ a de que os trés campos de investigagtio musical cobrem todos os aspectos da musicologia em sua concepgiio mais ampla. Nao se trata de substituir uma ciéncia pela outra, mas de definir as relagdes epistemolégicas de dependéncia de prineipios gerais, por um lado, e da andlise de questdes da matéria musical efetiva por outro. A semidtica da musica é portanto uma cigncia que oferece uma visio estrutural flexivel e ferramentas teéricas adequadas ao estudo de questies de significagao musical nas diversas disciplinas musicais de um grau de especializagdo maior, tais como o estudos dos sistemas musicais (modalismo, tonalismo, serialismo, aleatorismo, miisica eletro-actistica, etc.) e suas técnicas (contraponto, harmonia, sintese, etc.) histéria da misica, estética musical e assim por diante. E, significago aqui é compreendida de um ponto de vista amplo, jé que, de acordo com Peirce, todo pensamento se dé por meio de signos. Nota do Autor 1 De acordo com Liicia Santaella, comunicagao pessoal 2 Referéneias aos Collected Papers de C.S. Peirce so normalmente fomecidas pela indicagdo CP, seguida do nimero do volume e parigrafo 3 Vide Peirce 1992: 242-280, CP 1.302-349, e ainda Santaella 1992: 71-75. Referéncias: ADLER, Guido (1981). The Scope, Method, and Aim of Musicology, tradugo de Erica Mugglestone. 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Martinez obteve 0 titulo de Doctor of Philosophy em musicologia na Universidade de Helsinki em 1997, coma tese Semiosis in Hindustani Music, publicada pelo International Semioties Institute. Martinez. é pesquisador associado ao Programa de Pés-graduagiio em Comunicagio e Semidtica da PUC-SP, através de concessio de pés-doutorado da FAPESP.

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