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Chaim Perelman LOGICA FORMAL E LOGICA INFORMAL* Ainda que a ideia de uma légica formal seja conhecida desde Aristételes, a partir dos meados do século XIX, sob a in- fluéncia de légicos mateméticos, generaliza-se a ideia de que légica ¢ légica formal sdo sinénimos, eliminando-se toda a con- cepgao de uma légica informal. O padre Bochenski, que € um dos representantes desta tendéncia, exprimiu ainda esta ideia num recente coléquio sobre o tema da légica moderna, que teve lugar em Roma, em 1976, Numa comunicagio intitulada "The General Sense and Character of Modern Logic"!, ele identifica a l6gica moderna (ML) com a Iégica formal. Caracteriza a ML por trés principios metodoldgicos: o uso de uma lingua artificial, o formalisme ¢ 0 objectivismo. Insiste af sobre os grandes progressos que o recurso a uma lingua artificial, que permite eliminar os equfvocos, as ambigui- dades ¢ as controvérsias dificilmente elimindveis quando se trata de linguas naturais, introduz. * Texto originaimente publicado in De la Méthaphysique a la Rhétorique, Editions de l'Université de Bruxelles, 1986, pp. 15-21. 1 No volume Modern Logic, ed. por E. Agazzi, Reidel, Dordrecht, 1980, pp. 3-14, Chaim Perelman Com efeito, a condigfo fundamental na construgio de uma lingua artificial € a de que cada signo, tal como cada expressio bem formada, tenha um e apenas um sentido. O objectivismo a que ele faz alusdo pressupde que a légica moderna no se ocupe sendo das propriedades objectivas: verdade, falsidade, probabi- lidade, necessidade, etc., independentes da atitude dos homens, do que eles pensam ou créem. O mesmo se passard com os axio- mas do sistema, enumerados @ partida, bem como com as regras de substituigo ¢ de dedugdo que indicam quais sdo as operagdes permitidas, conformes As regras, e que permitirao distinguir uma dedugdo correcta de uma dedugdo incorrecta. Cada sistema formal serd, portanto, limitado nas suas possibilidades de expresso e de demonstragdo de forma que, dada uma lingua artificial, ela nfo permite dizer tudo; dado um conjunto de axiomas e de regras de dedugao, deve admitir-se, pelo menos se o sistema € coerente, a existéncia de proposigdes indicidfveis, isto é, de proposigdes que nem elas, nem mesmo a sua negacio, se pode demonstrar. Através destas exigéncias diversas uma lingua artificial ¢ um sistema formal opdem-se quer as caracteristicas de uma lin- gua natural quer as de um sistema ndo formal, tal como o sis- tema de direito moderno. Uma lingua natural é um instrumento de comunicagao, em principio universal. Ela deve ser capaz de comunicar seja que ideia for. As condigdes metodoldégicas de uma comunicagao. sensata primam sobre qualquer outra considerago, como seja a unicidade dos signos utilizados. E assim que se presume que 0 que nos dizem no é incoerente ¢ no é desprovido de interesse. 12 Légica formal e légica informal Lendo o célebre fragmento de Heraclito «Entramos e nao en- tramos duas vezes num mesmo rio», a nossa primeira reacgdo nfo € a de acreditar na incoeréncia de Heraclito; procuramos antes interpretar aquilo que ele nos diz de forma a atribuir-lhe um sentido aceitdvel, assinalando por exemplo a ambiguidade da expressao «o mesmc rio» que tanto se refere aos rias como as Aguas que neles correm. Para salvaguardar a ideta de comuni- cago sensata, renuncia-se 4 hipdtese da univocidade dos termos utilizados. Da mesma maneira, quando no César, a célebre pega de Pagnol, o autor faz dizer a Panisse, sobre o seu leito de morte: «Morrer, isso nada me importa. O que me déi € deixar a vida», somos obrigados, para compreender Panisse, 4 nao tratar «morrer» e «deixar a vida» como sinénimos, ainda que contudo seja isso que os diciondrios nos ensinam. Quando se diz «um tostiio é um tostiio», «os negécios sao os negécios», ninguém interpretard estas expressdes como apli- cages do principio de identidade, pois, salvo num curso de 16- gica, para que alguém se dé ao trabalho de exprimir as suas ideias € preciso que elas comuniquem algo diferente de uma tautologia. Recordo-me de uma histéria auténtica. Os pais foram & estagdo esperar o regresso do seu jovem filho apds uma longa auséncia no estrangeiro. Quando o filho apareceu na porta da carruagem, © pai ndo péde conter lagrimas de emogio. Vendo isso a mae exclamou: «Vejo agora que ndo sé uma mae é uma mae, como também um pai é um pai». Se a mae tivesse necessi- 13 Chaim Perelman dade desta ocasido comovente para admitir que um pai era um pai, este enunciado ndo podia ser tautolégico. Ha outras situagdes que nos impéem interpretar um texto de uma forma ndo habitual. E conhecido o pensamento de Pas- cal: «Quando a palavras de Deus, que é veridica, é falsa literal- mente, ela ¢ verdadeira espiritualmente»2, Para salvaguardar a verdade do texto sagrado, Pascal aconselha-nos a afastarmo-nos do sentido literal. Igualmente em direito, opor-se-4 & letra, o espirito da lei, de forma a dar do texto uma interpretagio aceitd- vel. A possibitidade de conferir a uma mesma expressiio senti- dos miltiplos, por vezes inteiramente novos, de recorrer a meté- foras, a interpretagGes controversas, estd ligada As condi¢des de uso da linguagem natural. O facto desta recorrer amiude a no- goes confusas, que dao lugar a interpretagdes miltiplas, a defi- nigées variadas, obriga-nos quase sempre a efectuar escolhas, a tomar decisGes que nao coincidem necessariamente. Donde a obrigacio tio frequente de justificar as escolhas, de motivar es- sas decisdes. Em direito, contrariamente ao que se passa num sistema formal, quase sempre 0 juiz € simultaneamente obrigado a tomar uma decjsio ¢ a motivd-la. O célebre artigo 4 do Cédigo Napolefo proclama com efeito que «o juiz que recusar julgar sob pretexto do siléncio, da obscuridade ou da insuficiéncia da lei, serd culpado de denegagio de justiga». Quando o texto Ihe parece, & primeira vista, apresentar uma lacuna, uma antinomia 2 Pascal — Penstes 553 (31) em L’Euvre, Bibl. de la Pléiade, p. 1003. 14 Légica formal e ldégica informal ou uma ambiguidade, ele deve interpretar o sistema, através das técnicas do raciocinio juridico, de maneira a encontrar uma so- lugao e a motivd-la. Em todos estes casos dever-se-d recorrer a légica informal que é a ldgica que justifica a accao, que permite resolver uma controvérsia, tomar uma decisio razodvel. Por isso Aristételes tinha oposto, aos raciocinios analiti- cos, 0s raciocinios dialécticos, isto é, aqueles que se encontram. nos debates, nas controvérsias de toda a espécie, quando se trata de destacar a opiniao razo4vel (euloges). Enquanto a Iégica formal & a légica da demonstragio, a légica informal é a da argumentacdo, Enquanto a demonstragiio € correcta ou incorrecta, constringente no primeiro caso ¢ sem valor no segundo, os argumentos sio mais ou menos fortes, mais ou menos pertinentes, mais ou menos convincentes, Na ar- gumentagdo ndo se trata de mostrar, como na demonstragao, que uma qualidade objectiva,como a verdade, passa das premissas para a conclusio, mas que se pode fazer admitir o cardcter ra- zodvel, aceitével de uma decisdo, a partir daquilo que o audité- rio j4 admite, a partir de teses As quais ele adere com uma inten- sidade suficiente. O discurso persuasivo visa, pois, uma transfe- réncia de adesdo de uma qualidade subjectiva que pode variar de espfrito para espfrito. Essa é alids a razdo pela qual a falta de raciocinio chamada «petigao de principio» é uma falta de argumentacao, na medida em que ¢la supde admitida uma tese contestada. Pelo contrario 0 principio de identidade, se p, entao p, longe de ser uma falta de raciocinio, € uma lei légica que nenhum sistema formal pode desconhecer, Chaim Perelman Um sistema formal mostra-nos quais so as consequéncias que decorrem dos axiomas, sejam estes considerados como pro- posigSes evidentes ou como simples hipéteses convencional- mente admitidas. Num sistema formal os axiomas nao sfo nunca objecto de uma controvérsia; eles sdo considerados como verdadeiros, objectivamente ou por convengio. O mesmo nao se passa com a argumentagdo, onde o ponto de partida deve ser admitido pelo auditério que se quer persua- dir ou convencer pelo discurso. As teses de partida consistem em lugares comuns, isto é, em proposi¢ées comummente admi- tidas, quer se trate de proposi¢ées do senso comum ou de teses nao contestadas numa disciplina particular. Por vezes, como nos didlogos socraticos, o orador assegurar-se-4, de forma expressa, da adesao do interlocutor as teses sobre as quais ele funda a sua argumenta¢do. Mas contrariamente aos axiomas, que nfo dio lugar & con- trovérsia no seio do sistema, os lugares comuns, sobre os quais existe um consenso geral, dizem respeito a nogdes vagas, confu- sas, controversas ¢ das quais nao se pode tirar consequéncias sem procurar clarificd-las. Deste modo todos estaro de acordo sobre o facto da liberdade ser melhor do que a escravatura, de se dever procurar a justica ou o bem comum; mas para daf derivar uma linha de conduta particular, ter-se-4 de precisar 0 que se en- tende por estas teses que, A partida, parecem incentest4veis. Por outro lado, os lugares comuns, que esto presumidamente ad- mitidos & partida e que ninguém contesta quando se apresentam isoladamente, podem dar lugar a incompatibilidades. Que fazer quando a procura do bem comum se opde, pelo menos & pri- meisa vista, a realizacZo da justiga? Alguns dirdo que o bem 16 Légica formal e ldgica informal oposto a justiga nao € sendio um bem aparente; outros dirfio que bem comum se opde a uma justica aparente. Como decidir qual é o valor auténtico e aquele que nao € sendo ilusério? Trata-se de dar a uma nogdo habitual um sentido novo, mais adaptado 4 situagao. Mas esta mudanga de sentido nao pode fa- zer-se sem razdo, pois contrariamente ao sentido habitualmente admitido e que € o sentido pressuposto, a mudanga de sentido deve ser justificada. E Aquele que se opée ao sentido habitual que incumbe 0 encargo da prova. Esta nogao de encargo da prova, desconhecida em fégica formal, tal como acontece com a nogao de presungao, é impor- tada do direito, no qual ela dispensa a prova do facto. E assim que a presungdo de inocéncia impée o encargo da prova aquele que a quer inverter. De igual modo, sendo o marido da mae-o presumivel pai da crianga, ele nao tem que apresentar a prova da paternidade. Esta nogao de presun¢gdo, com a nogdo correspondente de encargo da prova, ¢ de uso corrente no dominio das nornias ¢ dos valores. E isto explica, como o mostrou P. Day na sua co- municagio "Présumptions”3, o pluralismo filosdfico. Desde que adiramos a um principio ou a um valor, nao temos que justificar aquilo que se Ihe conforma, mas unicamente o comportamento que o viola ou se lhe opde. Ele distinguiu trés tipos de atitudes que qualifica de conservadora, de liberal ¢ de socialista, carac- terizando-se cada uma pela sua adesio a prinefpios e a valores diferentes. Assim, a presungao conservadora valoriza o que ¢, ¢ 3 Publicada nas Actes du XIV congres international de Philosophie, Herder, Viena, 1970, vol. V, pp. 137-143. 17 Chaim Perelman manifesta-se pela regra segundo a qual somente a mudanga, em todas as situagGes, sempre e em tudo, exige uma justificag&o. Deste modo, aquele que se conforma aos precedentes, ao cos- tume ou a tradigo, nfo tem que se justificar, mas todo o desvio deveria ser justificado. A presungio liberal encontra-se exem- plarmente expressa nesta frase de J. St. Mill (On Liberty, Capf- tulo V): «deixar as pessoas fazer o que elas querem & sempre melhor, ceteris paribus, do que constrangé-las». A liberdade vale por si, s6 a limitagdo da liberdade exige uma justificagao. Tsajah Berlin exprime a presungdo socialista quando escreve: «Equality needs no reasons, only inequality does» "Equality", Proceedings of Aristotelian Society, 56, 1955-1956, p. 305). Mas pode-se generalizar a sua tese: aquele que est4 em confor- midade com a regra de ouro, ao imperativo categdrico ou ao principio do utilitarismo, ndo tem que justificar a sua conduta. ‘86 aquele que viola um destes princfpios se deve justificar. A existéncia destes principios variados, que podem alids entrarem conflito nas situagées concretas, explica a diversidade das filo- sofias, cada qual inserindo-se numa corrente de opiniao que € geralmente admitida num dado meio e momento. Por af se vé que a légica informal, apoiando-se sobre factos, principios, opi- nides, lugares, valores admitidos pelo auditério, é necessaria- mente situada, e por isso nfo pode aspirar a objectividade da lgica formal. Mas, nesse caso, o critério ao qual se deve submeter a 16- gica informal consiste unicamente na eficdcia, no facto de per- suadir 0 auditério a que o discurso se dirige? Esta era a grave objecgdo de Platao contra os sofistas ¢ os demagogos que utili- zayvam meios indignos de um filésofo, a mentira e a lisonja, para ganhar a adesdo de uma turba ignorante. A esta objecgdo que 18 Légica formal e légica informal apresenta no Gérgias, ele opde, no Fedro, uma outra retérica que seria digna de um filésofo, aquela que poderia convencer os préprios deuses (273e). Noutros termos, a eficdcia de um dis- curso persuasivo nao basta pata garantir o seu valor, Como a eficdcia € fungdo do auditério, a melhor argumentagao é aquela que poderia convencer 0 auditéric mais exigente, o mais critico, © melhor informado, como o que é constitufdo pelos deuses ou pela razdo divina. E assim que a argumentacdo filoséfica se apresenta como um apelo a razdo, que eu traduzo na linguagem da argumentagao, ou na da nova ret6rica, como um discurso que se dirige ao auditério universal, Uma argumentagio racional ca- racteriza-se por uma intengdo de universalidade, ela visa con- vencer, isto é, persuadir um auditério que, no espirito do fil6- sofo, incarna a raz3o. Enquanto uma demonstragio formal € v4- lida, na medida em que ela est4 conforme com critérios pura- mente formais, ndo se pode falar de validade de uma argumen- tagdo, de um raciocinio nfo formal. Com efeito, uma argumen- taco ndo € nunca constringente ¢ permite sempre uma argu- mentagao em sentido oposto. Daf o principio fundamental do procedimento judicidrio, segundo 0 qual € sempre preciso ouvir a parte adversa, Mas nao € por existirem tanto argumentos em favor de uma tese como em favor da antitese que todos estes ar- gumentos tém o mesmo valor. Como apreciar o valor dos argu- mentos? Isso depende da filosofia e da metodologia adoptada. Assim, o utilitarismo toma essencialmente em consideragio o valor das consequéncias, o aristotelismo valoriza 0 que é con- forme com a esséncia, o neoplatonismo funda-se sobre uma hie- rarquia ontolégica, etc. Mas cada uma destas concepgées admite a regra de justiga formal segundo a qual é preciso watar da mesma maneira situagGes essencialmente semelhantes. Aquele que admitiu num caso o valor de uma argumentaciio deverd, 19 Chaim Pereiman ceteris paribus, admitir o valor desta mesma argumentago num caso essencialmente semelhante. Esta regra justifica a confor- midade aos precedentes, nao apenas em direito, mas em qual- quer matéria. £ ela que permite elaborar uma metodologia pré- pria a cada disciplina. Uma tltima questio: podem formalizar-se as técnicas ar- gumentativas?’ Poder-se-ia tentar reduzir os argumentos, me- diante certas convengées prévias, a um c4lculo de probabilida- des, E hd casos em que nos podemos, sem grande dificuldade, por de acordo sobre tais convengdes. Mas isto supde sempre um acordo sobre as nogées utilizadas. Ora quando o desacordo in- cide sobre estas, como é 0 caso com as nogGes fundamentais da filosofia tais como a realidade, a liberdade, a justiga, o bem, se- melhante reducionismo parece-me impossivel. Servindo-se de técnicas de argumentaco a filosofia propde-se apresentar uma visio razodvel do homem nas suas relagdes com a sociedade com 0 universo, a qual nao me parece redutfvel A visio que seria a mais provdvel. E por issp, alids, que toda a filosofia original é obra de liberdade. (Traducdo de Rui Alexandre L. M. Gracio) 20

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