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Pee cent eee sen ee cent ay eer Gh eet meen een tn mentara tividade de elaboragao de projetos. [sso porque um grandes dificuldades que o estudante de Arquiletura encontra a PC es Se RLS A CLL ec OL STOR NC veres a descrigao das idéias em palavras (texto) nilo tem a menor Cee enter teen en et Cnc men questdes cruciais do processo de projeto ¢ a construgio da ponte centre a intengao e 0 gesto, isto é, entre o pensamenta ¢ o pprojeto, td acetone Ue scene ne VWENLALIND YY Wa SWIDNauvay Sv AS APARENCIAS EM ARQUITETURA MARIA LUCIA MALARD UPNG UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitora: Ronaldo Tadéu Pena Vice-Reltora: Heloisa Maria Murgel Starling EDITORA YEMG Diretor: Wander Melo Miranda Viee-Diretora: Silvana Coser CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (presidente) Carlos AmtOnto Leite Brando Jost Francisco Soares Juarez Rocha Guimaries das Gragas Santa Rérbara in Helena Darsasceno ¢ Silva Mega ko Sérgio Lacerda Beirto 1 Coser Maria Lucia MaLarp AS APARENCIAS EM ARQUITETURA Eprrora UFMG Beto Horizonte 2006 (© 2006, Maria Lucia Malard (© 2006, Editora UFMG {Este Livro ou parte dele nio pode ser reprodurido por qualquer meio sem autorizago ceserita do Bator, ‘Malard, Maria Lucia M3878 ‘As apardnclas em arquitetura/ Maria Licia Malard .= Belo Horizonte : Editora UFMG, 2006, 14 p. sil. = (Humanitas Pocket) Inelul referencias ISB: 85-7041-555-9 978-85-7OAL-S5S-4 1. Anquitetura. 2. Arquitetura antiga. 3, Arguitetura moderna, Litulo TL Série cpp: 720 CDU:72 Ficha catalogrifica claborada pela COQC-Central de Controle de Qualidade da (Catalogagiio da Btblioteca Universitérta da UEMG: EDITORAGAO DE TEXTOS, Ant Maria de Moraes REVISAO DE TEXTO E NORMALIZACAO; Maria Stela Souza Rels REVISAO DE PROVAS: Alexandre Vasconcelos de Melo PROJETO GRAFICO: Cissio Ribeiro PRODUGAO-GRAFICA: Warren de M. Santos PORMATAGAO E MONTAGEM DE CAPA: Laiz vio Petrosa EDITORA UEMG ‘Av, Anthnio Carlos, 6627 - Als dieita da Biblioteca Central -Térxeo Campus Pampollta -$1270-501 - Belo HorizontelMG Tels (41) 2499-4650 Faxe (32) 3999-4768 wirmceditora.ufmghr cditora@uimg br Aos meus filhos Gabriel, Humberto e Pedro AGRADECIMENTOS ‘Meus agradecimentos aos alunos e colegas da Escola de Arquitgtura da UFMG, que me encorajaram a escrever € publicar este ensaio, Menciono especialmente Ana Paula Baltazar Santos ¢ Renato César Ferreira de Souza, pela ajuda na selegdo das ilustragbes e bibliografia, ‘Meu reconhecimento e gratidao-ao Caca (Carlos Anténio- Leite Brandio) que, a0 me falar do livre de Foucault sobre ‘0 quadro de Magritte, mostrou-me 0 caminho da cons- trugio do argumento. ‘Devo muito, também, ao meu companheiro AntOnio, pelo constante incentivo, ¢ a minha irma Leticia Malard, pela paciente revisio do texto. LISTA DE FIGURAS 1-MAGRITTE. A traigato das imagens, 1929, Oleo sobre tela. 2 - Dingrama da ginese de espago arquitetonico. 3 - Diagramas das trés possibilidades de integragdo-das dimensoes simbélica, tecnolégica e funcional. 4 = Diagrama do método de Aristételes, 5(a) - Planta da Tgreja de Santo Espirito de Felippo Brunelleschi, Roma, séc. XV. 5(b) - Planta da Igreja de Santo ‘André de Mantua, de Leon Battista Alberti, 1470. 6{a}- Palécio Pitti, construido a partir de um projeto de Bruinelleschi, depois de 1457, em Florenga, Italia. 6{b) - Paldcio Mediet-Riceardi, de Michelozze, construido ‘em 1944, também_em Florenga, Itlia. 7 - La Rotorida, de Andréa Palladio, em Vicenza, Itdlia, segunda metade do século XVI. 19 w 33 or Er 8 - Cas de professores em Dessau, Alemanha. Walter Gropius - 1926. 92 9 Balificlo da Secretaria Estadual de Esportes, Lazer e Turismo de ‘Minas Gerais, de Eolo Maia, Jo Vasconcellos ¢ Silvio de Podesta - Praga da Liberdade, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. 104 10 ‘Torre da Companhia de Telecomonicagdes de Barcelona, SUMARIO Espanha, de Sir Norman Foster, 1992. 107, i ificio na Av. Bandeirantes ~ Belo Horizonte - MG. 108 12+ Museu Guggenheim, projeto de Prank Gehry, Bilbau, Espanha, 1993. 12 13 - Igreja da Pampuiha, de Oscar Niemeyer, 1947. 14 APRESENTACAG n 14 - Desenho representando a Acrépole de Atenas. 14 INTRODUGAO 16 © CONCEITO DE “APARENCIA’ 18 ENTENDENDO A NATUREZA DO ESPACO ARQUITETONICO, 25 © corpo come o sujeito do espaco 26 © espace vivide 28 Espacializagbes 35 ; Espacializagées @ padrées culturais 43 O tempo e 0 espacializagiio a7 © espaco arquiteténico 52 ‘ SUJEITO MODERNO E SUA EXPRESSAO NO AMBIENTE CONSTRUIDO 57 Qs antecedentes SF © Renascimento 60 A espacializogio pés-renascentisia 72 Q Barroco 75 © Iluminismo e a Revolugée Industrial 78 ‘O Movimento Moderno: 0 reenconiro do sujeito com ¢ objeto de seu tempo a9 AATUAL POLEMICA; MODERNISM, POS-MODERNISMO. © Modernisme em Arquitetura © Pés-Modernismo Q Pés-Modernismo Historicista © High-Tech © Desconst sme ‘G MITO DAS APARENCIAS CONCLUSAO INOTAS BIBLIOGRAFIA ‘SOBRE A AUTORA 94 oF 100 101 105 109 6 128 136 139 144 APRESENTAGAO Este ensaio é derivado do seminério apresentado no concurso para Professor Titular do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, em novembro de 1995, intitulado Mo- DERNISMO E P6S-MODERNISMO: © MITO DAS APARENCIAS EM ARQUITETURA, Posteriormente ao concurso, tive a oportunidade de apresentar o argumento central do seminario — que é a questdo dos aspectos visuais da Arquitetura, os quais chamo de“aparéncias” — em aulas dos cursos de graduagio ¢ de pos-graduacio da Escola de Arquitetura da mesma universidade, etambém em palestras proferidas em outras, instituigdes. Em todas as apresentagdes feitas, percebi nos participantes um grande interesse pelo tema, interesse esse manifestado pelas perguntas ¢, sobretudo, pelo desejo de terem uma cépia do texto, Decidi, entio, escrever este livro, ampliando algumas questées sucintamente tratadas no texto primeiro ¢ inserindo discussées que ali no estavam presentes. O objetivo foi o de produzir um texto de cariter didatico, relacionandoa Arquitetura ao ambiente socioecondmico, politico ¢ cultural no qual ela é gerada, com a ambi¢io eo propésite de fundamentar a atividade de projetagao. Isso porque uma das grandes dificuldades que o estudante de Arquitetura encontra na formulagio de um projeto ¢ a de associar formulagdes teéricas (enunciados verbais) a configuragdes espaciais (enunciados plisticos ou visuais). Muitas vezes a descrigio das idéias em palavras (texto) no tem a menor conextio com o que é descrito pelo desenho (© projeto). No meu entendimento, a construgao da ponte entre a intencao €o gesto — entre o pensamento eo projeto —nio ¢ uma questo metodolégica, mas epistemolégica. Portanto, s6 pode ser feita pela Teoria da Arquitetura (se é que podemos falar em algo como tal). Maso que seria uma teoriaem Arquitetura? Em quetra- digo nos inscrevemos? Ou entao, para usaramesma per- gunta feita pelo professor Ricardo Fenati, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciéncias Hamanas desta Universidade, aos nossos mestrandos em Arquitetura: “Quais sdo as pressuposigées da Arquitetura?” Olhar analiticamente para o ambiente construido, nés sabemos fazer. Tanto isso é verdade que existemdezenasde excelentes trabalhos que descrevem ¢ analisam os edificios eas cidades, classificando-os e catalogando-os; agrupan- do-os segundo as épocas em que foram edificados, os estilas e as tipologias fisico-espaciais que os determinam, ajuizando-os estética e tecnicamente, A historiografia da Arquitetura é, de certa forma, isto: uma atividade analitica por exceléne Olhar criticamente para o nosso objeto de estudo nds estamos aprendendo, e muito temos evoluido nesseambito. ‘O Movimento Moderno em Arquitetura foi tio hegemanico que nio poderia passar incélume: dezenas de reputados 12 criticos lhe dirigiram suas atencées, seja para atacd-lo, seja para soprar-lhe as feridas, As vezes, também, para jogar ‘0s nem sempre merecidos confetes nas estrelas da compa- nhia. Hojea atividade critica parece ter amadurecido e ja é capaz de nosrevelar aspectos metodolégicos e conceituais da Arquitetura que podem ser apropriaveis por terceiros, sem o risco de estarem cometende pligio. Mas a pergunta persiste: qual é o devido olhar? O que eu tenho em mente quando olho para 0 meu objeto de estudo? Quais sao os meus pressupostos? Com este ensaio pretendo contribuir nessa diregao, pois ele se soma ao esforgo de atividade tedrica que vem sendo desenvolvido, aqui e alhures, por estudiosos que persistem formulando conjecturas (teorias?) sobre o ambiente cons- truido. Vale mais, talvez, pelo esforgo do que pela efetiva contribuigo que possa trazer ao avango do campo. De qualquer forma, confio na argitcia dos leitores, Eles certa- mente saberio dar sentido a algumas consideragdes aqui feitas, ou mesmo interpretar corretamente as citaces arroladas. Afinal, esta ¢ a serventia de um escrito. Primeiramente discutiremos os aspectos visuais da Arquitetura como imagens de pensamento suscetiveis de se tornarem visiveis. Examinaremos, em seguida, 0 objeto arquiteténico como uma totalidade que ¢ fruida na sua dimensio artistica, usufrufdana sua dimensao funcional e construida na sua dimensio tecnoldgica. Essa totalidade, a “Arquitetura, é um meio onde as relagdes socials se tornam possiveis, se “espacializam’ Ela se revela, portanto, nas suas interagées com o usuario, Nessas interagdes, usudrios € objets arquitetOnicos estardo em harmonia sempre que as trés dimensées, a da fruigdo, a do uso e a da construgdo estejam em equilibrio. 13 Prosseguindo, veremos que é no processo de mediagiio das relagGes sociais que se constituem os dois grandes estatutos das aparéncias em Arquitetura: o antigo e o moderno. O antigo cobre o periodo pés-medieval, do Renascimento ao ecletismo do século XIX. Apresentaremos @ argumento de que o mito das aparéncias se constitui no Renascimento: a Arquitetura passa de artefato (ars mecha- nica) a arte liberal (ars liberalis). Nos edificios eclesiasticos, a dimensao artistica se impde as necessidades funcionais da liturgia. Representar os ideais platénicos de beleza passa a ser a prioridade, em detrimento da ritualistica do culto. A dimensdo tecnoldgica ¢ invocada para reafirmara centralidade do templo ¢ erigir as majestosas cipulas que marcarao a sua presenca, © arquiteto seafasta do canteiro de obras e se constitui no mestre do desenho, o mago das aparéncias. © Barroco € a espacializagaio do poder da Igreja ¢ do Estado, Nele, a dimensio artistica da Arquitetura presta-se A propaganda, na medida em que se revela como “aparén. cia’ do poder. A dimensio de uso é subestimada, pois a fungio primeira dos palacios e das igrejas ¢ estética, para reafirmar a gléria de Deus, através do Papa, ea gléria dos homens, através do soberano absoluto, Embora.o progresso cientifico do periodo seja espantoso, ele nio-contaminaos arquitetos do Rei e do Papa, Sé o poder se expressa. Nos “neo-ismos” doséculo XIX, a aparéncia se degenera em simulacro. Os arquitetas, que ja haviam abandonado canteiro de obras, nao mais dominam as técnicas de construgao. A dimensao tecnoldgica se afasta da dimensio de uso e passa a atender apenas ao simbélico, como no tempo das catedrais. Nao ha mais correspondéncia entre 0 usuiruireoconstruir. A Arquitetura, enquanto totalidade, estd praticamente morta. 14 O reencontro objeto arquiteténico/sujeito moderno acontece no Movimento Moderno, onde um novo estatuto éformulado, tentando reunificar, num discurso totalizador, a Arte, a funcionalidade e a técnica — o fruir, o usufruire fo construir —, gerando a grande narrativa arquiteténica do século XX, que é 0 chamado Estilo Internacional. No pos-guerra, quando se inicia a conformacio do sujeito pds-moderno, objeto arquitetonico ¢ sujeito comegam a se distanciar novamente, pois, enquanto se esgotam as propostas modernistas, quebra-se a totalidade do objeto. A critica a arquitetura moderna centra 0 foco em trés pontos principais: a arquitetura moderna falhou por nao saber dialogar com o payo. A arquitetura moderna falhou porque foi reduzida sua dimensao funcional. A arquitetura moderna falhou por ser totalizadora. Aquia Arquitetura volta a viverum novoecletismo, num fascinante jogo de aparéncias, o qual se manifesta através de diversas tendéncias: o Pés-Modernismo Historicista, que revive aparéncias do passado e volta aos simulacros; o High-Tech, que ¢ a extrema estetizagio do constrt Desconstrutivismo, que € uma tenfitivade dar autonomia ao repertério formal modernista, desmaterializando a Arquitetura. Esse neo-ecletismo pode ser o premincio de um novo discurso que compreenda a Arquitetura na sua complexidade e nas suas naturezas diversas, desatando-lhe as amarras estetizantes, Seria uma outra grande narrativa, arquiteténica, & semelhan¢a do Movimento Moderno, ou estaremos realmente vivenciando o fim da Histéria, como alguns criticos prenunciam? INTRODUGAO ‘Quanto mais rigommsa 4 nossa busca da origem da modernidade, mats remota ela nos parece. Kenneth Frampton Ao observarmos as cidades ocidentais, percebemos que dois grandes universos de formas — ¢ significados — se definem perante os nossos olhos: o antigo e 0 moderno, ‘0 cidadao brasileiro comum, nao versado na tratadistica de Vitruvio, Alberti, Blondel e outros, nie é capaz de perceber a diferenca existente entre edificios renascentistas, barracos neoclissicos. Entretanto, reconhece sem nenhu- ma dificuldade a diferenca entre 0 que ¢ “antigo” eo que é “moderno’ Se solicitado a fazé-lo, ¢ perfeitamente capaz de separar imagens de edificios antigos daquelas de edificios modernos. Por outro lado, ficaria embaragado se lhe fosse solicitado diferenciar, dentre aqueles que ele distinguiu como “antigos’, os que fossem classicos, renascentistas, barrocos ou rococés. Também estaria em apuros para separar, dentre os designados como “modernos’, aqueles que fossem brutalistas, construtivistas ou, mais contem- poraneamente, high-tech e desconstrutivistas. Talvez esse nosso cidadao os colocasse todos no mesmo saco e os chamasse apenas de “modernos’. ‘0 que existe, entio, de tio marcadamente diferente entre esses dois grandes conjuntos de aparéncias arquite- ‘tOnicas, o.antigo eo moderno? Seriam realmente dois con- juntos bem demarcados? O que existiria de tio parecido entreas manifestacdes arquitetonicas desde a Grécia antiga até 0 inicio do século XX? E o que haveria de tao similar entre os diversos “estilos” que 0 senso comum enquadra sob a designacao de “moderne”? Seria o mederno uma ruptura com tudo o que veio antes? Nio se pretende, neste ensaio, encontrar respostas definitivas para essas questées, mesmo porque a explo- ragao aprofundada de apenas uma delas ja haveria de se constituir num trabalho de muito maior félego. O que se quer discutir — e sobretudo entender — ¢ a importancia que se di As aparéncias quando se examina o objeto ar- quitetinico. A chegada da Arquitetura ao mundo visual se dé através de técnicas de representacdo grafica ou de modelamento tridimensional, sejam elas operadas manu- almente ou mediadas por computadores. Nesse momento, a Arquitetura é apenas uma imagem, uma representagdo daquilo que pode'Vir a ser. Sua existéncia se efetiva no stante em que ela passa a ser um edificio, um abjeto presente no mundo, um artefato que tem um uso pritico € apéia-se em técnicas construtivas, Entretanto, o valor da Arquitetura — o conjunto de atributos que a tornam célebre — reside, na maioria absoluta dos casos, nos seus aspects visuais: suas aparéncias, Sioas aparéncias — que alguns chamam de “forma’, outros de “plastica’, outros tan- tos de “configuracées volumétricas” — que distinguem os edificios e permitem-nosagrupé-los em estilose tipologias, como veremos adiante, Ww © CONCEITO DE "APARENCIA’ famoso cachimbo.. ‘Come fui censurade por isso! Eentretanto... Vacés podem encher de fumo, ‘o meu cachimbo? ‘Nio, nio é mesmot Ele é apenas uma representagio. Portanto, se eu tivesse escrito sob: meu quadro: “isto € um cachimbo" eu teria mentido. René Magritte Magritte refere-se polémica que se instalou em torno de seu quadro, que ¢ mostrado na Figura 1, onde se vé a imagem de um cachimba com a inserigao, em francés, ceei nest pas une pipe [Isto nao é um cachimbo.') Figura 1» MAGRITTE, A traigio das imagens, 1929. leo sobre tela Los Angeles, County Museum of Art, Sobre esse quadro de Magritte, Michel Foucault publi- cou um ensaio intitulade Isto ndo é um cachimibo® no qual ele discute as questdes dos signos verbais (como os enun- ciados) e dos elementos,plisticos (como as figuras). No entendimento de Foucault, nao se pode dizer quea assergaio — isto ndo é um cachimbo — seja verdadeira, falsa ou con- traditéria, pois ela é tudo isso simultaneamente.’ Foucault Parece ter inteira razio, A assercao néio ¢ totalmente falsa porque ¢ inevitivel que relacionemos o texto com a imagem de um cachimbo, Aquilo que se vé no quadro é realmente a figura de um cachimbo. Se Magritte nao tivesse escrito 0 enunciado “Isto nao ¢ um cachimbo', e o quadro fosse mostrado a uma pessoa, perguntando "O que ¢ isto?”. a resposta certamente seria “Isto é um cachimbo". Também ndo se pode dizer que a assergao “Isto ndo & um cachimbo” seja verdadeira ou contraditéria nesse 19 contexto, pois realmente naa se trata de um cachimbo que se possa fumar, Entdo, nio ¢ um verdadeiro cachimbo; ou melhor dizendo, nao ¢ como um cachimbo do mundo real, um objeto que possui uma utilidade pratica parao ato de fumar. Dentro dessa stica, 0 enunciado é verdadeiro e ndo contradiz a situagao. Estamos, portanto, diante de um paradoxo que 0 préprio Magritte elucida, dizendo que 0 desenho é apenas uma representagio, uma aparéncia. Mas o que estaria o desenho representando? © cachimbo? A frase? Ambos? Nada disso? O que é uma aparéncia? Para examinar essa questio € preciso explorar um pouco aque seja a representacao de uma imagem formada no pensamento, Para Magritte, a pintura permite descrever um pensa- mento suscetivel de se tornar visivel. Ele escreve: Este pensamento compreende exclusivamente as figuras que 0 mundo oferece aos nossos olhos: pessoas, cortinas, armas, astros, s6lidos, inscrigdes, ete. A semelhanga une essas coisas numa ordem que evoca diretamente mistério, (,.) A precisioe o encanto de uma imagem de semelhanga dependem da semelhangae no de um modo fantasioso de descrever.' Niopodemos pensar figuras — ou imagens — que ndo conhecemos, que o mundo nao oferece aos nossos olhos. ‘Mesmo as imagens que inventamos, que criamos na nossa imaginagio, tém origem naquelas que conhecemos ¢ que reunimos pela semelhanga, A semelhanga é, entao, a relagdo de sensibilidade que se estabelece entre o sujeito (nocaso, o artista) ¢ as coisas, no pensamento, constituindo uma imagem que € desc 20 num quadro, num desenho, num modelo tridimensional; tais objetos se tornam, nesse proceso, a descricdo (ou representacio, ou aparéncia) de um pensamento suscetivel de se tornar visivel. O seu valor artistico (sua qualidade) nao depende da habilidade da pessoa — do artista — no manejo das técnicas dos materiais com que descreve 0 pensamento (que ¢ imagem da semelhanga), mas do pro- prio pensamenta, isto é da relagao de semelhanga que 0 artista consegue estabelecer com as coisas que o mundo lhe oferece. A representagao (aparéncia) é a forma visivel de uma imagem de semelhanga (pensamento) ¢, se 0 artista foi bem-sucedido, ela se deixa aparecer para o mundo em sua totalidade, Torna-se auto-explicativa ¢ comunica-se diretamente aos sentidos, & sensibilidade das pessoas. Nao carece — e nao deve — ser mediada por nenhuma explicagao, por mais nada além do que © préprio artista jd lancou mio: a tela, as tintas, o papel, o Kipis, a camera, 9 computador e outros meios quaisquer. E por isso que Magritte recusa a interpretacao: Uma imagem de semelhanca mostra tudo o que ela é, quer dizer, uma reunido de figuras onde nada é suben- tendido. Querer interpretar ~ a fim de exercer nao sei que falaciosa liberdade ~ ¢ desconhecer uma imagem inspirada substituindo-lhe uma interpretagio gratuita que pode, por sua vez, sero objeto de uma série sem fim de interpretagdes supérfluas.* Mas a imagem nao é o pensamento (como nao é um: cachimbo, como nao é uma cadeira, como nao é um edi- ficio ...}; € uma imagem; éa descrigao do pensamento, sua representacio visivel, sua aparéncia para o mundo, Ao se tornar visivel através de um quadro, o pensamento do 21 artista tornou-se suscetivel de esconder um outro visivel, que éa parede ou outra coisa qualquer que 0 quadro possa estar escondendo; mas nao se tornou suscetivel de esconder um outro pensamento. O quadro esconde o pedaco de parede (que seria visivel) que esta por tras dele, mas nao esconde pensamentos ou idéias a serem revelados por uma interpretacio. A aparéncia — sendo aquilo que traz a0 mundo o pensamento do artista, seja pela Pintura ou pela Fotografia, seja pela Arquitetura — nao é capaz, por. tanto, de esconder pensamentos, intengées, sentimentos, desejos ou outra subjetividade qualquer. Se nao hd nada que possa estar escondido, nao hd nada para ser revelado através de uma interpretagio, A subjetividade poderia ser, nesse entendimento, captada e sentida pela subjetividade do fruidor, endo por qualquer outra objetividade intelec- tual. Essa é uma idéia curiosa e instigante. Magritte, numa carta dirigida a Foucault, chama a sa atenco para o fato de que uma imagem pintada ¢ intangivel por sua prépria natureza, portanto, nio esconde nada, Por outro lado, 0 que é visivel e tangivel esconde sistematicamente um outro visivel. Ele critica os erftieos que conferem primazia ao “invisivel” através de textos confusos que, no seu enten- dimento, sio inteiramente desnecessarios para a recep¢ao de uma obra de arte, ‘Uma vez que o pensamento do-artista se torna visivel, ele passa aser conhecido ea habitar a obra, Porisso, quando se interpreta uma obra de arte, nao se esta revelando nada que ja ndo se conhega acerca da “imagem de semelhanga” descrita pelo artista, A interpretagio de uma imagem é uma descricio — por meiode palavras — de pensamentos que nao estdo descritos na obra ¢ dela nao fazem parte. A interpretacao ¢, pois, pessoal: assim sendo, nao se pode 22 dizer que ela é correta ou incorreta, Se ela nio faz parte da “imagem de semelhanga’, e tio pouco est por ela docultada, ela sempre excede & obra, usando-a como mera similitude, Para que essa idéia fique clara, é pertinente que se explore, um pouco mais, os conceites de “semelhanca” € “similitude” empregados por Magritte. Assim, emergiré com si mais clareza o que seja uma “imagem de semelhanga” que se forma no pensamento e se transforma em quadro, foto- grafia ou projeto arquiteténico. Na carta escrita a Foucault, Magritte distingue os sentidos das palavras “semelhanga” © “similitude”, Para ele, as coisas nao possuem relagao de semelhanca entre si, mas de similitude, As ervilhas, por exemplo, possuem relagGes de similitude, que podem ser visiveis (forma, cor, dimensao) ou invisiveis (sabor, cheiro), Magritte escreve: “S6 ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo 0 que vé, ouve ou conhece, ele torna-se a que o mundo lhe oferece.”* Usar um quadro como uma similitude ¢, nese enten- dimento, 0 mesmo que consider4-lo apenas um objeto decorativo, inserido no sistema dos abjetos do qual nos fala Baudrillard (1968). Ao estabelecer a distingao entre “similitude” e “semelhanga”, Magritte traz. luza diferenga entre o falso eo auténtico, o original ea eépia. Um quadro falso, mesmo quando se trata de uma imitagio perfeita, nao tem valor porque quem o pintou nao produziu a “imagem de semelhanga’,o pensamento que une as coisas ¢ “evaca diretamente 0 mistério”’ As cpias — ou reprodugdes das obras de arte — sio objets que tém similitude com os originais e guardam, entre si relagdes de similitude visiveis, como as ervilhas. Nao tém, por isso, o valor dos originais. Nao sao obras de arte. O mesmo ocorre com outras apa- réncias, inclusive com as aparéncias da Arquitetura, como 2 serd visto adiante. Quando fazemos um edificio que tem similitude com alguma outra obra considerada de boa qua- lidade, estariamos reproduzinde osatributos das ervilhas, no entendimento de Magritte. 24 ENTENDENDO A NATUREZA DO ESPACO ARQUITETONICO Estamos chamando de “aparéncias” aos aspectos visuais, da Arquitetura, ou seja, aos fendmenos arquiteturais tal qual eles se nos apresentam. Entretanto, para compreen- dermos melhor o que seja uma aparéncia em arquitetura, serd preciso que examinemos as caracteristicas do objeta arquiteténico, suas peculiaridades ¢ suas aproximagaes com a Arte, a Técnica e a Ciéncia. E mais: a Arquitetura, ‘para ser bem compreendida na sua totalidade, precisa ser ‘considerada para alémydos aspectos visuais, ou seja, na sua relagio com a natureza do ser. De onde vem a Arquitetura? Quais sao os fatores que determinam sua existéncia? Come ela se constitui no mun- do dos objetos? As respostas a essas perguntas 86 poderio ser obtidas mediante um esforo para compreender 0 ob- jeto arquitetonico em toda a sua complexidade, partindo de sua génese e pasando por seus condicionantes sociais, econdmicos ¢ técnicos. A génese do espaco arquiteténico decorre da espactali- dade inerente ao ser humano:a existéncia humana tem uma dimensio espacial que é parte da propria experiéncia do homem no mundo, pois todas as.agdes humanas ocorrem no espace. Entretanto, o espago no éapenas um paleo para essas agdes, mas, ao. contrario, é um componente essencial delas. Homem e espago sio entidades indissociaveis no mundo, conferme nos ensina Heidegger (1962) ao discutir a esséncia do ser, descrevendo-o como “ser-ne-mundo", Ble entende que o homem ¢ o mundo néo sao entidades distintas ¢, por isso, nao sao compreensiveis separada- mente. O mundo nao € um container no qual o homem. é (existe), nem 0 homem pode “ser-no-mundo” como se © mundo fosse uma extensio (um espaco) independente dele. Ao contririo disso, homem e mundo, ser e espago issocia iidacle & parte integrante da natureza do ser. O ser é espacial. O espago é, portanto, constitutivo da existéncia humana, pertence a esséncia do ser. Ele nao é apenas funcional, racional ou simbélico, Sendo existencial, ele é tudo isso, uma vez que incorpora as necessidades, expectativas ¢ desejos que fazem parte da existéncia humana. A espacialidade da existéncia, por sua vez, implica na existéncia de um corpo e nas ages desse corpo em diregao as coisas do mundo. o que examina- rentos na préxima se¢ao. © CORPO COMO O SUJEITO DO ESPACO A caracteristica existencial do espago estabelecida por Heidegger é discutida também por Merleau-Ponty (1971), no livro Fenomenologia da percepeto, no-qual um capitulo inteiro ¢ dedicado a discussio das questées envolvidas no fendmeno da percepgao espacial, Merleau-Ponty enfatiza a idéia de que o espago nao € uma categoria apartada das 26 coisas, mas um mediador de suasexisténcias, uma condicéo preliminar para que as coisas sejam dispastas ¢ conectadas, isto é, para que ascoisas fagam sentido, Isso implica numa relacdo de reciprocidade: nem as coisas podem ser compre- endidas sem a nogao da espacialidade, nem esta faz sentido fora de sua relagio com as coisas. Esse entendimento sobre a espacialidade das coisas parece ser inteiramente fundamentado nas idéias de Heidegger. Entretanto, Merleau-Ponty o desenvolveu mais amplamente naquilo que pode interessar a Arquitetura, notadamente ne que diz respeito A percepgao espacial. Isto porque ele considera 0 corpo como 0 panto de referencia para toda ado que tomamos em diregao as coisas, no espago. Portanto, o corpo ¢ a referencia de toda a percep- ao espacial, de toda a nose que temos da espacialidade. E a Ancora que permite o estabelecimento de um plano espacial e, conseqitentemente, de uma orientagéo para 0s acontecimentas, O nosso corpo — através das nossos sentides — estabelece as conexdes entre as coisas, arran- jando-asadequadamente percep¢io ¢, conseqtientemente, A experiéncia esBacial, Assim compreendido, o corpo nao ‘€uma “coisa” no espago, mas um sistema de possibilidades deacio; um corpo virtual, cujo lugar fenomenal édefinido pelas tarefas que executa. Merleau-Ponty escreve: “Meu corpo esti onde hi algo a ser feito.”* A énfase dada aocorpo marca o pensamento de Merleau- Ponty, Para ele, possuir um corpo implica na habilidade de compreender espaco, porque o corpo € dirigido ao mundo ¢ @ mundo € tomado pelo corpo. Assim, o corpo € © sujeito do espago, Entender essa relagio orginica entre corpo e espaco ¢ fundamental para a compreensio do espago arquiteténico, pois a tomada do mundo pelo 27 sujeito/corpo faz acontecer 0 evento € produz o lugar. Ai certamente est a origem da Arquitetura: intengio, desejo, corpo e evento fazendo lugares, Se o meu corpo esta onde ha algo para ser feito, ele se move por intengdes (para atender a necessidades objetivas) ou desejos (para atender a necessidades subjetivas). Esse movimento gera eventos que, para acontecerem, s¢ espacializam, formando os luga- res. Foi assim que o mundo comesou a ser marcado pelos eventos humanos e, conseqiientemente, pela Arquitetura. Obviamente nao chamamos de Arquitetura as primitivas sinalizagdes de atividades humanas, embora elas estejam na raiz desse processo de apropriagio e modificagio da paisagem natural para finalidades sociais, Cabe, entio, a pergunta: como se desenvolveu 0 espago arquiteténico tal qual ele se nos apresenta hoje? Procuraremos responder a essa pergunta examinando outras categorias quee esto pre- sentes no objeto ao qual chamamos arquifetura: 0 espa¢o vivido, a distincia vivida ¢ o tempo vivido. © ESPACO VIVIDO A nogdo de “espago vivido” pode ser construida a par- tir de Heidegger. quando ele discute a espacialidade das coisas. Ele escreve: © “acima’ € 0 que esti no teto; 0 “abaixo” ¢ 0 que est no chao; o “atras” é o que esti na porta; todas os “onde” sio descobertos circunspectivamente e interpretados na medida em que lidamos com a nosso cotidiano; eles nao sio certificados ecatalogados pela medisioobservacional do espaga? 28 ‘Ao afirmar que todos os “onde” sio descobertos na nossa experiéncia do dia-a-dia, Heidegger nos diz que eles sao vivenciados, experimentados e reconhecides por nés, respectivamente ao nosso-corpo. Para estabelecer as relagdes espaciais (os “onde”) entre ‘05 objetos e suas caracteristicas geométricas — de modo aperceber o mundo circundante —, 0 sujeito do espaco, que ¢ 0 corpo, tem de estar situado e consciente de sua experiéncia no mundo. Tem de estar situade tanto no ‘espaco como no tempo, pois a consciéncia da experiéncia do mundo nao é fragmentada. Ao contririo, ela apresenta uma continuidade, uma temporalidade. Isso equivale a dizer que cada percepcao pressupde um determinado passado (um corpus de conhecimento prévio, um estar consciente do mundo) o qual da a ela significagio. Por exemple, o que ocorre no pracessade vivenciar (perceber) 0 espago arquiteténico é governado pelo passado ou peta cultura, como se queira. Se 0 individuo desconhece o teatro coma instituigie cultural, ndio perceberd um espago para atividades de teatro, Nao reconhecera um teatro de arena, por exemple. ~ E, pois, o passado do sujeito — sua tradigao cultural — que governa a percep¢io do espaco presente, que 0 faz reconhecer os lugares. Nio um passado histérico (ou o es- pago da passado), mas o pasado que nos fala das experién- Cias cotidianas que jd vivemos, no espago: 0 espaco vivido, O espaco no qual estéo impregnadas as nossas emogdes, boas e ruins, advindas dos eventos nos quais tomamos parte, seja como agentes, seja como receptores. O espago vivido 0 espago da nossa experiéncia no mundo, das agdes empreendidas pelo nosso corpo ao tomar esse mundo. Eo espago que comporta as espacializagées que nos fizeram 29 felizes, ansiosos, tristes ou alegres, que nos trouxeram recompensas ou softimentos, que nos engrandeceram ou castigaram. Ao nos defrontarmos com tais espacos —. ou com espagas que a esses nos remetem — ndsexperimentamos sensag6es que podem ser prazerosas ou doloridas; de paz ou de tormento; de angiistia ou de serenidade. E por isso que dizemos que esses espagos sio. “significativos” para nds. Na verdade, sio espacos onde, camo seres-no-mun- do, tivemos experiéncias significativas. Sao os lugares da nossa vida. Nao parece correto, portanto, falar de espacos significativos, pois 0 significado esta na nossa experiéncia, na nossa vivéncia, Nao estd na Arquitetura, mas nos luga- res que ela configura. A Arquitetura ¢ tao-somente, como diz Magritte, uma imagem de semelhanga que “une essas coisas numa ordem que evoca diretamente o mistério” A Arquitetura é uma “aparéncia” que incorpora lugares ¢ estes nos remetem ao significado. Ha, no entanto, elementos de comunicasio no espago. Elementos que podem ser decodificados e compreendidos pelos membros de uma mesma cultura, Elementos fixos, constitutivos do edificio, e elementos méveis, a ele acopladas. Esses elementos so moldados pela nossa vivéncia no mundo. Para esclarecer melhor esta questdo, vale a pena examinar oensaiode Bollnow (1967) Lived space [© espaco vivido] que propicia uma descrigio da constitui¢io espacial da vida humana e traz uma expressiva contribuigéo & compreensio da dimensio vivida do espago arquiteténico. Bollnow comeca por distinguir a diferengaentre o espago soncreto onde o homem vive e o espago matemitico. De acordo com sua visio, a propriedade mais evidente do espaco matemitico éa suaheterogeneidade, pois em Mate- ‘matica nenhum pontoe nenhuma direcao tém preferéncia 20 sobre os outros pontos € as outras diregées. Uma pessoa pode tomar qualquer ponto como a coordenada zero, ¢ qualquer direcao como o eixo de coordenadas. Trata-se de uma escolha arbitraria, a partir da qual as demais relagdes se estabelecem. Ao contririo disso, no espago vivido ha sempre um ponto de referéncia fixo, isto é um ponto zero predeterminado, o qual depende do lugar onde o sujeito da percepcao (0 corpo) se encontra. Quanto ao eixo de coordenadas, este também é sempre relativo a posigio do corpo no espaco vivido. A posigao vertical, que é fisica- mente determinada pela forca de gravidade, estabelece a sua contrapartida, que é a horizontalidade. Dessa forma, 0 conceit de espaco vivido aplica-se apenas ao ser humano que percebe 0 espaco e nele se movimenta, e deve ser considerado a partir doesquema de diregées relativo.ac corpo: acima eabaixo, em frente e atras, Adireita ea esquerda, Bollnow entende que o eixo vertical ésempre peculiar, pois éele que estabelece o equilibrio do corpo, porque é determinado pela diregdo da gravidade. Acima ¢ abaixe também sio peculiares porque essas nogdes permathecem as mesmas, independentemente do fato deo corpo estar em pé ou deitado. S40 nogdes que também se ancoram na fora da gravidade. Uma pessoa sempre sabe adiregao para qual 0 seu corpo pesa. Fssas duas diregées (acimae abaixo) sfo definidas pelo planohorizontal e pelo eixo vertical, a ele perpendicular, Quanto is demais dire- es (em frente e atrés, a direita ¢ & esquerda), nenhuma é peculiar, uma vez que mudam sempre que o corpo gira em torno de si mesmo. Bollnow conelui que o eixo vertical eo plano horizontal sio as duas diregdes imutaveis que formam o sistemadde referéncia do espaco vivido, Podemos observar que o eixo vertical pode ser “sentido” pelo corpo H em qualquer posi¢do, mesmo em repouso, enquanto que o plano horizontal é melhor percebido pelo corpo em movi- mento. Fora desse contexto, 0 eixo vertical é quase sempre uma abstracao, um construto intelectual. Em Arquitetura, a verticalidade & sempre imbuida de um certo mistério: © que esti além do alcance de nossa escalada nos parece inatingivel e, como tudo o que ¢inatingivel, misterioso. A horizontalidade, por sua vez, evoca 0 tempo, pois evoca 0 movimento de ir até 4, de ir ao encontro de alguma coisa. A horizontalidade suscita em nés a nogae de distancia. Bollnow também explora o conceito de “distancia vivida’, que, por conta da horizontalidade, é fortemente relacionado ao espaco vivido. Segundo cle, a distancia vivida nao pode ser confundida com a distancia geométrica abstrata, que é medida em metros e centimetros. A distan- cia vivida implica em muitas circunstancias favoriveis ¢ desfavordveis. Para exemplificar, ele pergunta qual seria a medida da distincia vivida entre um ponto na parede da casa geminada onde ele moravae um ponto do lado oposto, ha mesma parede, na casa deseu vizinho. Do ponto de vista geométrico, a resposta seria dada pela medida da distancia entre os dois pontos, que certamente seria igual 4 espes- sura da parede. Mas, se considerada a distancia vivida, a questaotoma outra complexidade: para ir casa do vizinho ele teria de deixar 0 seu quarto, sua casa, ir 8 rua, bater & porta do vizinho, Este, se nic o conhecesse bem, haveria de estranhar a sua visita, ou entio nem recebé-lo. Enfim, a distancia que nos separa das pessoas ¢ das coisas nao é acessivel pela Geometria ou pela Matemitica, exclusiva- mente. A distancia vivida evoca 0 tempo, portanto evoca ‘omistério. Como podemos constatar, Bollnow advoga que nciamos segue as linhas de aestrutura do espago que 32 forga de nossa situagao concreta de vida. Talvez seja por isso que, em Arquitetura, a verticalidade e a horizontali- dade sao trabalhadas como categorias estétieas e no rato definem a beleza de um edificio, Merleau-Ponty (1971) tem a mesma compreensio de Bollnow nessa matéria. Ele entende que hi duas catego- rias de distancia. Uma, éa distincia geométrica, que é um construito humane para expressar o intervalo fisico entre as. coisas, ¢ entre o homem ¢ as coisas, Esta distancia ¢ obje- tiva, uma vez que ela se origina na relagio entre objetos (0 préprio homem aqui considerade apenas nasua dimensio objetual). Outra, que ¢ distineia vivida, que expressa 0 engajamento que existe entre o homeme as coisas que tém significado para ele. A distancia vivida é subjetiva, uma vez que ela se refere ao homem como sujeito da percepsio. Merleau-Ponty diz: Além da distincia fisica ou geométrica que existe entre mim ¢ todas as coisas, uma distancia vivida me une as coisas que sao. importantes eexistem para mim e as une entre si, Esta distancia mede, a cada momento, a amy tude de minha vida.” Dentre os autores que se dedicam exclusivamente ao trato dos problemas da Arquitetura, Norberg-Schulz (1971) & provavelmente,o que mais aprofundou as questées rela- tivas ao carter existencial do espago, Em Existéncia, espago arquitetura," partindo da interpretagao de Heidegger do “ser-no-mundo” e das descobertas de Bollnow sobre a peculiaridade do eixe vertical e do plano horizontal, Norberg-Schulz tenta estabelecer as bases de uma teoria do espago existencial. A partir dai, ele desenvolve a idéia de que 0 espaco arquitetonico pode ser entendido como 33 a concretizagéo de schemata ou imagens que sio partes necessariamente integrantes da orientacao geral do ser humano. Ele discuteo conceito de espaco arquitetonico na Teoria da Arquitetura e critica a atitude da maioria dos estudiosos desse campo, dizendo que eles se colocam sempre de duas maneiras: ou selimitam a discutir os aspectos da geometria das obras, sem levar 0 homem em consideragio; ou redu- zem a participacio do homem a impressOes e sensagdes. Norberg-Schulz adota o ponto de vista de Bollnow de que as conceitos espaciais s6 tém significado se tomados a partir da posigae do corpo no espaco. O homem nao poderiaagir em direcdo as coisas se ele nao tivesse nenhum senso de diregio, isto ¢, se ele nao tivesse numa posigao definida no-mundo, Para Norberg-Schulz, 0 espago nao é uma categoria particular de orientagio, mas, ao contrario, € umaspecto de uma orientacio geral. Adicionalmente a isso pode ser dito que o posicionamento do homem no mundo — sua orientacdo geral — ¢ relativa ao seu prdprio corpo. Ou, como diz. Merleau-Ponty, a existéncia é espacial. até aqui, pode-se coneluir que ‘0 espace possui caracteristicas que vio muito além de suas relagdes geométricas ¢ de suas propriedades fisico-cons- trutivas. Tais caracteristicas nado podem ser captadas pelas cigncias explanatérias, uma vez que elas néo pertencem exclusivamente ao objeto, mas a relagdo entre o sujeito € © objeto, Portanto, para compreender 0 espago arquitetd- nico em toda a sua abrangéncia, ¢ preciso que se compre- endami as interagées sujeito/objeto que fazem os lugares da Arquitetura. Poderiamos dizer que esta se compoe de aparéncias e lugares. As aparéncias siio os elementos que 34 ‘visualizamos. Os lugares sio elementos que vivenciamos. As aparéncias evocam os lugares. Evocam, portanto, as imagens de semelhanga: 0 mistério. ESPACIALIZAGOES Nas secdes precedentes, foram desenvolvidos alguns conceitos que sdo fundamentais para a compreensio das interagdes do homem com o espago. Foi visto que: a) O homem é um “ser-no-mundo”, logo, homem e espago sao indissocidveis. b) Todos 0s eventos humanos acorrem no espaco. c) “Espago vivido" ¢ “espago geométrico” sao categorias diferentes, O primeiro experienciado, logo ¢ relacionado ao ambiente construido (arquitetura) onde os eventos ocorrem; o segundo é um construto abstrato da ciéncia. A distancia vivida e a distincia geométrica também sio categorias diferentes, pelas mesmas razoes. Dados esses conceitos fundamentais, préximo passo sera conceituar o espago arquiteténico como o lugar para as interagdes existenciais do homem com o mundo. Antes de iniciar tal conceituagao, é importante que se definam as nogdes de “evente’, “espaco arquiteténico” e “ambiente construido” que sio aqui empregadas, uma vez que ja ndo ha, na literatura arquiteténica atual, um consenso em torno do significado. desses termos. “Eventos” sao as atividades humanas que implicam na interagio com coisas (objetos) ou com outras pessoas, Assim, as atividades intelectuais que implicam apenas em pensar (ou refletir) nao sio consideradas eventos, no contexto deste ensaio. “Ambiente 35 construfdo” é todo.o meio que sofreu qualquer intervengio humana com o fito de realizar algum evento; o ambiente construido se contrapée ao ambiente natural. “Espa¢o arquiteténico” é 0 componente do ambiente construfdo ondeos eventos ocorrem (edifictos, ruas, passeios, pracas); 0s outros. componentes sao classificados como infra-estru- tura. Dados esses parimetros gerais, resta agora definir 0 que seja uma “espacializagio”. Nasuacondigio de “ser-no-mundo’ o homem lida com as coisas ¢ age em diregao a elas movido por intengdes, que tém origem no desejo. Tal agdo & diferente daquela destinada a satisfagio de necessidades, pois a satisfagao de uma necessidade niio € necessariamente precedida de intenges. As agdes intencionais sao elaboradas intelec- tualmente, ainda que o seu motor seja o desejo. As ages para a satisfagao de necessidades sio compulsivas; no seu estado primitivo nao sao elaboradas intelectualmente. Um exemplo claro é “comer”. Quando um individuo se precipita Para a comida porque tem fome, ele estd satisfazendo a uma necessidade biolégica, tao-somente. Quando prepara uma iguaria, ele esta lidando com as coisas e agindo em dirego a elas movido por intengaes (as de fazer uma iguaria) que tiveram origem no desejo de comer um determinade tipo de alimento; numa experiéncia cultural, de que hé bons alimentos. ‘Ao realizar atividades — na sua lida didria de “ser-no- mundo” —, o homem faz acontecer no espago (espacializa) as suas intengdes, 0s seus desejos. Nesse proceso, ele dispée objetos, sinais.e marcas, para adequar o ambiente Aquilo que ele quer espacializar; assim ele cria lugares, dando forma fisica as suas intengdes, aos seus desejos. A disposigao dos objetos e dos sinais, bem como a marcagio 36 do ambiente nao sao feitas aleatoriamente. Flas sagintencio- nais;sio paraum fim especifico, um propésito e, por isso, elas possuem um significado, E dessa maneira que 0 homem cria os lugares significativos: os lugares arquiteténicos. Como as intengoes tém fundamento no desejo, o que foi criado para a manifestagio das intengées contém os significados do desejo, Pade-se dizer, entio, que o espaco arquiteténico é a espacializacao do desejo. O diagrama da Figura 2 ilustra essa idéia. figura 2 - Diagrama da genese do espago-arquitetonico, Espacializagdes sao a expressao, no espa¢o, das intera- gées entre es eventos (formas sociais) ¢ as coisas (formas fisicas), Aireside o mistério das aparéncias arquitetonicas: co pensamentodo arquiteto retine figuras e coisas do mundo empiric para compor as “imagens de semelhanga” das formas sociais. ‘Uma espacializagao refere-se, portanto, ao modo de ser, no espago, de um fato social, £ a forma fisico-espacial de a7 umacontecimento. Por isso, ela “significa” esse acontecimento. Por exemplo, a aula expositiva é a forma social com que um grupo transmite conhecimentos institucionalmente; a sala com carteiras, voltadas para quem vai expor, éa forma fisica que significa “sala de aula expositiva” paraas pessoas que pertencem aquela cultura. A espacializacio “aula expositiva’ ndo é apenas um leiaute. Nela esto impressos alguns significados: todas as carteiras-estao valtadas para um mesmo lado, o que sugere que a atencio daquelas pessoas estar para ali dirigida; na parede desse lado ha um quadro de escrever, mostrando que escritos e griificos fazem parte da atividade; em frente as carteiras ¢ ao lado do quadro fica uma escrivaninha onde se sentard a pessoa a qual estarao todos atentos; essa escrivaninha ¢ maior do que as carteiras e ocupa uma rea relativa também maior, o que significa que a pessoa a ocupa-la tem posicao de destaque naquele contexto; se ha alguém em quem todos os outros prestam atengio, essa pessoa édecididamente maisimportante do que as outeas, nesse grupo. Enfim, uma espacializago revela nado somente a estrutura organizacional da atividade, como a estrutura de poder da comunidade. Como vimos, na disposigio espacial do mobilidrio e dos equipamentos pode-se “ler” a atividade “aula expositiva’, com todas as suas implica- goes da pedagogia de quem “sabe” ¢ de quem “aprende” Um ambiente construido engloba as espacializagées — as configuragdes arquiteténicas — que sao prescritas pela tradicdo cultural da comunidade que o habita, pois é essa tradi¢éo que determina as formas sociais Cabe aqui uma pequena digressio para dizer que essa idéia nao pode ser tomada pelos arquitetos como uma justificativa — ou um dlibi — para nao propor inovagbes 38 nas organizagées espaciais e nas formas arquitetnicas, Ao contrario, oarquiteto deve ser um agente ativo na tessitura das tradicGes, principalmente no que diz respeito 4s apa réncias arquiteténicas, acelerando o processo cultural no estabelecimento de novas possibilidades de organizagao, uso ¢ construgao dos espagos. A disposicao de objetos nas espacializagdes consolida que Baudrillard (1968) chama de “sistema dos objetos funcionais”. Tal sistema compreende duas estruturas: a estrutura do arranjo ea estrutura da ambiéneia. A estrutura doarranjo esta relacionada com a dispasi¢ao ¢ combinagao dos abjetos, de forma a se obter um conjunto funcional capaz de comunicar valores sociais, A disposicao espacial das edificios no territrio urbano, por exemplo, bem como adisposigdo de mdveis num escritério, obedecem a certas regras que possam garantiro funcionamento desses arran- jos ¢ a0 mesmo tempo comunicar os valores da cultura que os gerou. E por isso que o ambiente construido é, por si 86, um sistema de comunicagdo, uma vez que através dele sio veiculadas diversas manifestagées do imagindrio coletivo ou, como iz Rapoport (1982), * comportamento social” A estrutura doarranjo revela essas diretrizes, como vimos no exemplo da sala de aula. Segundo Baudrillard, todas as sociedades sempre orga nizaram o seu cotidiano através da producao edo arranjo dos abjetos, Analisando a disposicio da mobilia em dois contextos diferentes, o de uma casa burguesa eo de uma_ casa moderna, popular, ele mostra que a primeira ¢ a ex- presstio da estrutura do gosto e das tradigdes.da burguesia, enquantoa casa moderna veicula valores mais populares, O interior burgués é patriarcal, uma ver.que ele é organizado- para demonstrara hicrarquia ¢ 0 estilo de vida da familia. 39 As salas e os quartos so espacos definidos, separados e decorados de acordo com os padrdes sociais a0s quai obedecem. Os interiores modernos, por outro lado, si0 mais funcionaise até certo ponto despidos de rigidos con- dicionantes sociais. Os objetos so arranjados em varias combinagées, de forma a propiciar o uso diversificado dos espacos. A mesa seré arranjada de um modo tal que possa ser usada para escrever ou para comer; o sofa muitas vezes & também polivalente, ou seja, é um sofa-cama. Enquanto na casa burguesa as diversas unidades funcionais (comer, estar, ler, dormir etc.) sio alocadas em espagos bem defini- dos ¢ delimitados por quatro paredes, na moradia moderna esses ambientes so delimitados por divisdes mais indefini- das, come estantes divis6rias, biombos ¢ similares, O que define as unidades funcionais na casa moderna é a arranjo dos objetos, e ndo as paredes da edificagao. A posigao de uma mesa com algumas cadeiras define e delimita o lugar destinado.as refeigdes, Sofas e poltronas definem o estar, e assim por diante. Esses arranjos expressam a familia moderna na qual a autoridade é difusa ¢ compartilhada por diversos membros, Eles também revelam 0 homem modernocomo ser primordialmente organizacional, capaz de organizar e controlar os objetos, produzindo sistemas de ordem e comunicaga Além da estrutura do arranjo, o sistema dos objetos funcionais possui a estrutura da ambiéncia, que é 0 meio pelo qual cores, materiais, forma ¢ textura sio combinados ho ambiente construido, em suporte aos arranjos. Para Baudrillard, enquanto a estrutura dos arranjos revela aspectos organizacionais, de hierarquia e de poder, a estru- tura da ambiéncia revela aspectos do chamado “estilo de vida’. Nos ambientes tradicionais, as cores, os materiais 40 eas formas costumavam ser mais ligados as fungdes que 05 objetos tinham de desempenhar. As cores geralmente expressavam.o proprio material (branco para o algodio e a pintura de caiagdo, marrom para a madeira, cinza para a pedra e assim por diante). Os objetos deveriam durar muite tempo, de modo que eles eram feitos de materiais duriveis, como a madeira e a pedra e tinham a cor natural desses materiais. Com 0 tempo, os abjetos produzidos com propésitos funcionais tornaram-

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