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~~ PIERRE DARDOT | \E CHRISTIAN LAVAL SA NOVA BAZAC ENSAIO SOCIEDAN NEOLIBERAL Onn. See INTRODUGAO A EDIGAO INGLESA (2014)* “ind nfo tetminamos com o neoliberalismo” era a primeira frase da Introdugio i primeira edigfo francesa deste lio, publicada em janciro de 2009, Na época, quefamos dissipa o quanto antes as ilusbes que surgiram om 3 filéncia do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Muios pensivam, na Europa e nos Bstados Unidos, que cris inancera soars as badaladas fnais do ncoliberalismo e que setia aver do “rerorno do Estado” «da regulacio ds mercados. Joseph Stiglitz pereorriao mundo anunciando .m do neoliberalismo”, eauroridades politcas, como o presidente frances y proclamavannateabiltacfo da intervencio governamental Perigosas, uma: politica, cess ilysoes no tinham razBes para nos deixar admirados: baseavam- fram erro de diagnéstico amplamente compartlhado, o qual nossa obra linha o objetivo de combacer. Enganar-se sobre a vendadeira natureza do neoliberalism, ignorarsua hstéia, no enxergar suas profundas motivay ociais esubjtiva era condenar-se’ ceguciraecontinuar desarmado diante do que nfo ia demora a acontecer: longe de provocato enfaqucsimento das polieas neolberas, a crise conduriu a seu brutal fotalecimento, na forma de planos de austeridade adotados por Estados cada ver mas ativos ‘Originalmente publcado na Frans, redinda eadaptada em 2013 e revista em: a presente rds tea isa pido orginal ants a digo qu ora se presenta a itor resi porn, pr meio de cot coma supervise dos autores areuio 2 aap seers coeges da edi ingles de 2014, ene las, ta insu est ¢ ampliada. (NE) 14 + Anova rari do mundo na promogio da lgica da concorténcia dos mercados financetos. Prec 08, € hoje nos parece mais do que nunca, que a anise da génese e do funcionamento do neoliberalismo é condisio para uma resistencia eficaz «em escala europeia e mundial. Ainda que preenda tespeitar os critéros da Pesquisa cientfca, este lio nao é académico no sentido tradicional do fermo, mas pretende-se primeito, e acima de tudo, uma obra de exclarcci- mento politico sobre esa ligica normativa global ue € o neoliberalismo, Fm uma palavs, a compreensio do neoliberalismo é, a nosso ves, uma questo exratégica universal Um erro de diagnéstico Aparir do fim dos anos 1970 edo inicio dos anos 1980, 0 neoliberalsmo foi interpretado em geral como se fosse ao mesmo tempo uma idologia ¢ ‘uma politica econdmica diretamenteinspirada nessa idcologia. O mileo duro dessa ideotogia seria constiruldo por uma identficagio do mercado com tuma realidade narural!. Segundo essa oncologia naturalista,bastariadeixac «ssa realidade por sua propria conta para ela alcangar equilibrio, estabilida- de e crescimento, Qualquer intervengio do govern sé poderia desregular « perturbar esse curso espontineo, logo convinha estimular uma atieude abstencionista, © ncoliberaismo compreendido dessa forma apresenta-se «como reabilitasao pura c simples do laisee-fare. Considerado do ponto de vista de sua implantacio politica, foi analisado de pronto de forma muito ‘streita, segundo a perspicaz observagio de Wendy Brown: ‘Como instrumento da politica ccondmica do Estado, com o desmantelamen- to dos auxios sociais, da progressividade do imposto e outrasferramentas dle redisribuiao de riquezasde um lado e com a estimulo da atividade sem éntraves a0 capital mediante a desregulamentasso do sistema de side, do trabalho e do meio ambiente de ouro.? "Ease credo naturale, que era de Jean-Bapriste Say Feédtic Basta, foi per- Feiamenteformulado nos seguimtestermos pelo ensasta fancés Alain Mine: "O «apitalismo nto pode tur cle & estado natural da socedade. A democracia no & 1 ado natural da sociedade. O mercado, sm” (Cambio 16 Madi, 5 dex. 1994), Wendy Brown, Les habits neuf dele politique mondiale, nélibnatiome et nioconser- tte (rad. Chuistine Vivier, Philippe Mangeot elle Suit Saas, Pars, Les Praiies Ordinate, 2007), p. 37. Ese ensaio incisivo nos ajudou muito» formular os prpria compreensso do neolberalismo. Tnroducio &edicéo ingles (2014) + 15 Se admitirmos que sempre hi “intervengao”, esta é unicamente no sentido de uma agéo pela qual 0 Estado mina os alicerces de sua prépria cxistncia,enfraquccendo a missio do servigo piblico previamente confiada ele. “Intervencionismo” exclusivamente negativo, poderfamos dizer, que nada mais € que a face politica ativa da preparagio da reirada do Estado 3 ele proprio, portanto, ce um ant-intervencionismo como principio. (Nia ln cr eg, ‘tampouco negar que ela tenhaalimentado a politica econdmicas impulsio- nadasmacicamentea partir dos anos Reagan e’Thatcher eenconttado em Alan Greenspan, o “maestro de Wall Stee’, seu adepto mais fervoroso ~com as consequéncias que todos conhecemos". O que Joseph Stiglitz chamou com justiga de “finatismo do mercado” &, als, o que os periéicos Wall rect Journal, The Economist e vodos os equivalentes a0 redor do rmundo saber fomentar melhor entre seus letores'. Mas o neoliberalismo esté muito dis tante de se resumira um ato de fé fandtico na naturalidade do mercado. O grande erro cometido por aqueles que anunciam a “morte do liberalismo” é confundira representacio ideoligica que acompanka a implantagio das po- lisicasneoliberais com a normatividade pritica que earacteriza propriamente © neoliberaismo. Por isso, o relativo deserédito que atinge hoje a idcologia do leis fare ndo impede deforma alguma que o neoliberalsmo predomine ‘mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de eerta eficigncia, isto é,capaz de orientarinternamente a pritica eetiva dos governos, das em- presase, paraalém deles, de milh6es de pessoas que néo tém necessariamente consciéncia disso. Este & 0 ponto principal da questio: como é que, apesar das consequéncias caastbficas a que nos conduziram as politica neoliberis, essas politica sio cada ver mais ativas, a ponto de afundar os Estados ¢ as sociedad em crises politicase retrocessos sociais cada ver mais graves? Como € que, ha mais de trinta anos, essas mesmas politica vém se desenvolvendo «se aprofundando, sem encontrar resisténciassuficientemente substanciais, para colocé-las em neque? 5A dei de Frédvic Bastiat (trad. Ronaldo da Silva Legey, 2. ed, Rio de Jancico, Instituto Liberal, 1991, e1a.0 lio de cabeceita de Ronald Reagan no inicio dos anos 1960, Ver Alain Lauren, Le libraizme american (aris, Les Belles Letes, 2006), p. 17. * Joseph Sigh, Un autre monde: contre le fanatione du marché (wad. Paul Chemla, Pais, Fayard, 2006) 16 * Anov rao do mundo A tespostanéo Ge ndo pode ser limitada apenas as aspects “negatives? dhspoliiasneliberas, to, destruigé programada das reulamentagtes & ts instituigses. O neoiberalismo ndo dest apenas regs, institugdes, direitos. Ele também produz ceo tipos de relagées sciais, certas manna dle vives cereas subjetvidedes. Em oucraspalavas, com o neoliberalism, © que std em jogo é nada mais nada menos que a forma de nose exiatcia, isto 6, forma como somos levadosa nos comportar, a nos relacionar com ‘outros e com nds mesmos. O neoliberalisimo define certa norma de vide Bs sciedades ockdemmais , para além dela, em todas as socidades que as Seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impée a cada um de ‘6s que vivarnos num universo de competigéo generalizada intima os ase lnriados ¢ as populages a entrar em lutaecondmica uns conta os outros, ‘ordena as relages sciais segundo 0 modelo do mercado, obrign a justices desgnaldads ada ez mais profundas, mudaatéoindvidvo, que instadoa Ghnatberasi mesmo es comporarsccomouma empress Ha quase um teiyo lo, essa norma de vida rege as politica plies, comanda as relagdes econmicas mundi, transforma a socedade, remodel a subjetvidade. As citcunstincias desse sucesso normative foram descritas iniimeras vezes, Ora sob seu aspecto politico (a conquisa do poder peas foreas ncaliberais),ora sob Salsspeto coonémic (ripe cresimento do capitalism fnanecto glo ballzado), ora sob seu aspecto social (a individualizacdo das relagbessociais As expensas das slidarcdades coletivas, a polarizagio extrema entre ticos¢ Robt), ora sab se aspectosubjtivo (osurgimento de um novo suet o desenvolvimento de novas patologias psiquicas). Tudo isso sdo dimensoeg complementaes da nova rato do mundo. Devers entender, por isso, que essa tazdo ¢ glob, nos dois sentidos que pode ter o teemo: “mundial”, no fentido de que vale de imediat para o mundo todos e, ademas, ange de limitar-se&esfera ccondmica, tende&totalizago, isto & a “fixer 9 mando? Por sea poder de integracao de sodas as dimensoes da existéncia humang Rado do mundo, mas a0 mesmo tempo uma “razdo-mundo”® Frontlin (Léthique protean et Uaprit du captain, ad sbele Kain dats Cans Hatnmation, 2000, p. 93-4 lel. brs: A dice pene a opi Qe sipitliome: ccd, Jot Marcos Mariani de Macedo, el. Amnio Flivio ic oc, Sto Paulo, Companhia das Less, 2012)). Contudo, numa pstagem dest enc, Introdusao edigo ingles (2014) + 17 O neoliberalismo como racionalidade A tese defendida por esta obra € precisamente que neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma politica econémica, é em primeitolugat © fandamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar © organizat nio apenas a acio dos governantes, mas atéa propria conduta dos govetnados. A racionalidade neoliberal em como caracteristca principal a ‘encralizagio da concorténcia como norma de conduta eda empresa como modelo de subjetivagso, O termo racionalidade nio éempregado aqui como tum eufemismo que nos permite evtar a palavra “capitalismo”. O neolibera- lsmo €neadodo capitalise coniemporinco, deum capitalism desimpedido de suas referencias arcaizantes ¢ plenamente assumido como consttucio historia e notma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como © conjumto de discursos, priticase dispositivos que determinam um novo ‘iodo de governo dos homens segundo o principio universal da concorréncia, O conctito de “racionalidade politica” fi claborado por Michel Foucaul em relasdo deta com as pesquisas que dedicou & questio da “governamen- talidade”. Assim, encontramos na explanacéo do curso dado no Colldge de France em 1978-1979 — publicado como tiulo de Natcimento da biepolt ‘aca — uma apresentasio do “plano de andlise” ecolhido para o estudo do neoliberalismo: uatase, diz Foucault, em resumo, “de um plano de andlise Possivel -o da‘razdo governamental iso &, dos tipos de raconalidade que sio empregados nos procedimentos pelos quis se dirige, através de uma administragio de Estado, a conduta dos homens”. Uma racionalidade ppolikca é,nesse sentido, uma racionalidade “governamental”. ‘obra dedicada ao carter “elativo" ¢“impesioal” do amor ao pihimo no calvin mo, encontramos a expresio “configuracto racional do cosmo saci” libidem, 175). News sentido, e desde que o social no sejareduzidlo «apenas mas urpa dos Aimensbes da exséncis humana, poderiamos dizer que a cso neoliberal ¢ muito recsamente a razdo de ness “cosmo soca Michel Foucault, Naivance de le bipelitique (Pais, SeuilCallmard, 2004) led bras: Narcimeno da bioplitc, rad, Eduardo Brandio, Sso Paulo, Matins Fontes, 2008), Ese curs consul a refeénca central pea qual se ordena toda uandlive do ncolerlismo ensiada nesta oba, biden, p 327; reproduido em Dit et drt (1976-1988) Pars, Calli, 2001), . 823, Sobre a noc de raionalidace poe, ver ainda esa lima abr, p. 818 ©1.685-6, 18 + Ano rao do mundo Devemos nos estender ainda sobre o sentido dessa nogio de “governo” “Tratas [..] no da instieuigho ‘governo’, mas da atividade que consiste em regeraconduta dos homens no interior de um quadro e com instrumentos de Estado” Foucault retoma véras vezes ess ideia do governo como atividade, € nfo como instituigio. Assim, no resumo do curso do College de France intitulado Do governo dos vivs*, essa nocio € “entendida no sentido amplo de técnicas e procedimentos destinados a dirigira conduta dos homens”, (Ou entio, no preficio & Histiria da sexualidade™*, bd este esclarecimento retrospectivo de sua andlise das priticas punitivas: ele se diz interessado, acima de tudo, nos procedimentos do poder, ou se, “na elaboracao e na implantacio desde o século XVII de ténicas para ‘governar os individuos, isco é para ‘conduzir sua condute’,eiss0 em dominios tio diferentes quanto escola, 0 Exércio, a fibrica"®, O termo “governamentalidade” foi intro-

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