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AQUISICAG POR ADQUIRIDO DE. 01 map, 2000 PRED SLA, AENSTRO, te CARDO REGISTRO, at PER Onna 0200 b am Sua cb aoe Dircitos desta edigdo reservados & S 92S, EDITORA ROCCO LTDA. Rua Rodngo Silva, 26 - 52 andar 2011-040 ~ Rio de Janeszo, RY Tel: 2507-2000 ~ Fax: 2507-2284 emul rocco@racce.com br wer roceo.com.br Prinsed in Braril ¢ Inpresso np Brasil CIP-Brasil. Catalogacio-na-fonte, Sindicawy Nacional dos Editores de Livros, | $226n Santiage, Silviano, 1936- Nas malhas da letra: ensaios / Sitviano Santiago. — Rio de Janeiro: Rocco, 2002 | Inclui bibliografia, ISBN 85-325-1404-9 i 1. Ensato brasileiro, 2. Literatura brasileira = CDD-869.94 02.0493 CDU-869.0/81 $¢001171 0 peer 296 Ott Sumirio Nota 3 ptimeiza edigio .... 7 Nota 3 segunda edi¢io .. 9 I Poder ¢ alegria 13 Prosa literitia atual no Brasil 28 © narrador pés-moderno Singular ¢ anénimo.... O Evangelho segundo Jodo i 81 85 ‘A permanéncia do discurso da tradigio no modernismo .. 108 Histéria de um livro .. A estrutura musical no romance © dentro do dentro do dentro . Fechado para balango .... Questao de perspectiva © intelectual modernista revisitado Amizade e vida profissional IE Por qne © para que viaja o europeu?.. Onde a propaganda ¢ onde a arte... at IV Para além da histéria social . . 251 Bibliografia . . 273 Nota final ........ 275 Nota 4 primeira edigao Estes ensaios dramatizam quatro preocupagées da minha inquietagio ctitica, inaugurando novas perspectivas de com- preensio do fenémeno literdrio no contexto cultural brasileiro Uma primeira preocupacia é com as cantemporaneas, isto é aqgueles autores de obras com quem convive a minha propria escrita ficcional ¢ poética. E a maneira como, analisando ¢ ava- liando a producéo literéria pés-64, mapeio escritas, tracos te- miticos e problemas para melhor me situar. Uma segunda preocupagio € com os modernistas. Algumas sugestdes de leitura ¢ algnmas conclusées (ainda que precdrias) podem parecer cruéis a uma sensibilidade ainda afinada com o ideirio de 22. Nao tenho interesse em pedis-lhe desculpas. Asinalo a ténica e a consciéncia que tenho da minha tomada de posigio. O resto & matéria para discussio académica. Em seguida prolongo duas linhas que s¢ enconttam desde Uma Hiteratura nos trdpicas. Retomo a questio das relagdes entre a Europa ¢ as Améri- cas, agora pelo viés de um ensaio de Umberto Eco e pela cri tice de uma inesperada forma de censura artistica em pais tio democratizado quanto a Alemanha pés-hitleriana. Retomo, depois, certa preocupagio teénica que sé encontra disseminada aqui ¢ ali nos meus textos criticos que tangenciam a literatura comparada. Agora o intuito é 0 de questionar 2 metodologia de leitura que se encontra na minha produgao mais recente, © rabicha desta ¢ de outras contradigées, nio é dificil encontré-lo na minha formagio intelectual. Quem ago Nota a primeira edigio se lembra que André Gide disse que era um homem em didlo- go, que tudo nele combatia ¢ se contradizia. Um duplo agradecimento final: ao Instituto de Estudos Avangados (LISP), por um incentive que acabou durande ape- nas dois meses, € a0 CNPq, por uma recente ¢ intermitente bolsa de pesquisa. Maio de 1988 8 NAS MALHAS DA LETRA Nota 4 segunda edicio ‘A Editora Rocco tem pouco a pouco republicado os meus livros esgotadas. Na categoria ensaio sobre literatura e cultura brasileiras, saiu recentemente Ura literatura nos trépicos. Agora langa a segunda cdigio de Nas malhas da letra. Proximamente, estaré reimprimindo Vale quanto pesa. Nas mathas da letra reane os ensaios que escrevi nos anos que sio conhecidos como os do proceso politica de aberttra. livro mamém relacio estreita com os dois livros de ensaios que © antecedem. Utna literatura nos irdpicos viveu de certa euforia narcisista, decorrente da teoria da dependéncia econémica aplicada a0 conhecimento e desenvolvimento das artes e das culturas na- cionais do Terceiro Mundo. A euforia que sustenta os ensaios mais densos do livto, em particular “O entre-lugar do discurso latino-americano” ¢ “Ega, autor de Madame Bovary”, foi per- dendo © vigor nas duas diltimas décadas e praticamente se apa~ gou com o século. Hoje pareceria um livro datado, se 0 novo milénio nio nos tivesse trazide questdes que ali foram expostas ¢ discutidas. No seu estertor, os novos tempos se alimentam de idéias que foram por ele corroidas. Vale quanto pesa tentou conviver criticamente naa so com os descalabros e impasses criados pela repressio e a censura 3s artes, decorrente do regime implantado pela ditadura militar, como também com a emergéncia brutal dos problemas por que passon o artista no momento em que a economia brasilei- ra tornava-se por opcio dos dirigentes do pais uma economia Nota a segunda edigie 9 de mercado. Q nome do sabonete da minha infancia servia de metifora para que se perguntasse qual era o peso € o valor da arte no momento em que a critica perdia sentido € 0 comsu- midor se algava 4 condigdo de irbitro todo-poderoso. Recen- temente a Academia Brasileira de Letras foi convidada a se envolver na questio. Nas mathas da ietra traz ensaios que tentam dramatizar os percalgos da nova literatura brasileira. Ao mesmo tempo em que quer privar-se das forces amarras que mantém com o Mo- demismo, opta por enftentar frente a frente a questio da tra- digdo nacional, © livro passa a encarar a produgio modemista pelo viés da pés-modernidade ¢ a tradigio pelo viés do que foi recalcado pelo Modernismo — o pré-modernismo por exem- plo, Autores como Euclides da Cunha, Lima Barreto ¢ Jodo do Rio estéo ai ¢ ndo nos deixam mentir. O ensaio intitulado. “© nacrador pés-moderno” talvez seja a melhor chave para a sua (re)leitura. Nao € sem modéstia que afirrno que esses ués livros de ensaios, precedidos pelo Carlos Drunmand de Andrade, que pu- bliquei em 1976, acabam sendo de maneira sutil — e talvez por isso mesmo envergonhada — comentérios aos livros de criago (ptosa e poesia) que fii escrevendo no decorrer das dé— cadas finais do século, Criagdo ¢ critica se langam na minha obra com o mesmo impeto e coragem. Criagdo ¢ critica sio intercambiaveis, A leitura do outro, como esta claro nos roman- ces Ens liberdade ¢ Viagem ao México, além de set uma forma de euclausuramento do escricor na tradi¢ao literdria nacional ¢ cosmopolita de que extrai sentido, é também o modo mais vi- vez que encontra para escapar das armadilhas do sujeito singular € imperioso, mera panqueca pés-moderna, que tem servido de engodo a paladares aflitivos e irresponsdveis. © autor Abit de 2002 10 NAS MALHAS DA LETRA Poder e alegria A LITERATURA BRASILEIRA POS-64 - REFLEXOES A Celso Cunha Nés temas que dar ao Brasit 0 que ele nio tem © que por isso até ‘agora nao vives, nis temas que dar uma alma ao Brasil ¢ para isso todo secrifiio & grardioso, & sublime. B nos dé felicidade. |...) Toda a minha obra & transitdria ¢ caduca, on sei. E ew quero que seja transiibria, |...] Mas que importa a eternidade ensve os homens da Terra ¢ a celebridade? Mando-as & merda, Ex no amo o Brasit espiritualmente mais de que a Franga ou a Cochinchina, Mas é no Brasil que me acomece viver ¢ agora sb no Brasil en penso e por ele ido sacrifiquel. Miério de Andrade (1924) Tentemos, primeiro, uma distin¢ao basica que servira para caracterizar tematicamente a literatura brasileira pos-64. Deixa esta de apresentar como tema principal ¢ dominante a explo- ragio do homem pelo homem. Esse tema foi em geral drama- tizado pelo processo de conscientizagZo politico-partidéria de personagens pertencentes ao campesinato € ao operariado, acompanhado de critica velada (simpética) ou aberea (radical) 4 oligarquia rural e ao empresariado urbano. © jogo entre as duas forgas sociais opostas escamoteava por vezes as camadas médias ¢ urbanas da sociedade © era composto de forma a an- tecipar dramaticamente uma evolugdo otimista e sem tropesas do capitalismo para o comunismo ne Brasil, Otimismo e utopia se aliavam para mostrar a vitéria definitiva das forgas de esquerda. E pelo abandono gradativo desse tema (¢ seus subtemas) que a literatura pés-64 se diferencia da literatura engajada que Poder ¢ alegtia 3 Pe lhe foi anterior € encontra a sua originalidade tematica, Esse abandono nio significa que a igualdade econdmica e social tenha sido atingida nesta parte do mundo, que a utopia tenha virado realidade cotidiana entre nds. Pelo contrario. Nos anos 60, através de expedientes de incalculada violéncia, a desigual- dade foi acentuada de tal modo pela América Latina que seria ingénuo acreditar que 0 modelo ficcional proposto pelos mo- derniseas para a supetagio politica da exploragio do homem pelo homem ainda fosse valido depois de 64, De maneira timida e depois obsessiva, a literatura brasileira, a partir da queda do regime Goulart e do golpe militar de 64, passou a refletir sobre 0 modo como funciona o poder em pai- ses cujos governantes optam pelo capitalismo selvagem como norma para © progresso da nagdo e 0 bem-estar dos cidadios. Refletindo sobre a maneira como funciona ¢ atua © poder, a literatura brasileira pés-64 abriu campo para uma critica ra dical ¢ fulminante de toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pre- gada pelas forcas militares quando ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de seguranga nacional. De maneira paralela a0 deslize temitico mencionado, opera- se uma guinada importante no processo evolutivo linear do modernise, concretizade por um gesto de cuptura que, por sua vez, determina o aparecimento de um novo periodo da nossa histéria literdris, chamado de pés-modernista, passivel de ser estudado dentro do idedrio mais amplo do que se con- vencionou chamar de p6s-moderno. Estilisticamente, a literatura brasileira pés~64 péde, por um lado, retomar uma licao do passado, ajustando-se — apdés a obra genial de Guimaries Rosa e 0 esforco universalista dos varios concretismos — a principios estéticos fundamentados pelo realismo dos anos 30. Pade também, por outro lado, apro- ximar-se da literatura hispano-americana que lhe &é contem- poranea, abrindo mio do naturalismo na representagdo, em vittude de problemas graves de censura artistica. Neste segun- do caso, adentra-se o texto literério por uma escrita metafori- ca ou fantistica, até entio praticamence inédita entre nds. Va~ “4 NAS MALHAS DA LETRA Jendo-se, pois, de uma escrita realista ainda comprometida com ‘os anos 30 ou de uma ouga comum aos Jatino-americanos, a L- reratura pés-f4 guarda sempre a obsessio temitica a que nos referimos. Na critica ao autoritarismo € a0 poder militar, a literatura brasileira pés-64 também se distancia ideologicamente dos anos 30: 05 escritores das mais diversas posturas politicas se irmana- vam entao, contraditoriamente, numa op¢ao radical pela de- molicio do liberalismo clissico, rechagando a escolha de go- vernantes através do sufrigio universal ¢ defendendo 2 tomada de poder por um lider carismético a que se entregaria o caminho do pais. © projeto totalitério de Getiilio Varges foi um entre varios, e se foi ele © vencedor foi porque soube congregar de forma habilidosa as diversas forgas conservadoras em jogo no Brasil ¢ no estrangeiro. A partir de 64, gradativamente, as di- versas facgdes esquerdistas foram se aglutinando para formar uma frente ampla que acabou por rejeitar qualquer forma de ditadura, até mesmo a do proletariado, ficande no palco do autoritarismo apenas os velhos compagnons de rowte que se re- cusaram a pensar o préprio passado tenentista, como & 0 caso de Luis Carlos Prestes. ‘A autocritica no plano ideoldgico efetuada apés 64 por si sé comenta a mudanga temitica significativa a que estamos nos referindo no plano artistico, Ambas sao formas de uma mudanga geral que vai afetar o todo das forgas que compdem © cenitio politico do pais, deixando primeiro que o desejo de democracia explodisse para que em seguida o conceito pecasse —e ainda peque — pela sua imprecisio semantica, O concei- to de democracia freqiienta hoje discursos que vio da direita ofendida por uma manifestagio de povo na rua 4 esquerda que volta a tomar assento no Parlamento nacional. Essa indis- criminagio, essa imprecisio politica do conceito é grave, mas simboliza uma vez mais a inércia da histéria social brasileira, ou seja, simboliza as ambigiiidades, covardias, estratégias reté- ricas, espertezas etc., de periodos que se convencionou chamar de transigdo e que fundamentalmente acabam por nao o ser. O surgimento do Partido dos Trabalhadores na década de Poder ¢ alegria 5 70, sua alianca com os movimentos sociais das minorias ¢ sua possivel absorgao de facedes que defendem a ecologia, nio é apenas signo de mais uma dissidéncia intema no chamado Par- tidio, como tantas outras no passado. E antes a necessidade de um novo programa de participagéo politica para o campesina- to ¢ os trabathadores urbanos, afinado com os novos tempos negros dos desmandos do poder por estas terras. Nao se trata de Imar apenas contra o poder burgués sob a sua forma de centralizagio burocratica, legislativa ¢ juridica; a luta é e deve ser mais ampla, pois o poder toma as mais inusitadas formas no cotidiane do cidadio, sub-repticiamente gerando — a partir da negagio da diferenga — forcas repressoras que visam 4 uni. formidade (racial, sexual, comportamental, intelectual cte.}. © deslize das questdes dos ¢ sobre os oprimidos para o questionamento amplo do opressor (do lugar de onde ele fala, da ordens e dita leis; do modo como, mesmo revolucionario, pode ser conservador ete.) nao é umta simples reviravolta re- térica a gosto de politicos com rango titico militar. O deslize esta no centro das rebelides de jovens que se multiplicaram. nas décadas de 60 ¢ 70 e nas suas explosdes libertirias, inspi- radas como sabemos no Free speech movement, inicialmente lo- calizado na Universidade de Berkeley, ¢ nos acontecimentos de maio de 68 em Paris. Os jovens do Pumeiro Mundo, irma- nados por uma educacio universitéria que conseguira despres- tigiar a alta burguesia como Gnica merecedora de escolaridade completa, quiseram impor ao todo da sociedade os seus valores auténticos como justos e pregaram uma compreensio ética (e nao pragmitica, como é de praxe nos partidos politicos tradi- cionais) das relagées humanas na ordem sdcia-econdmica e politica do capitalismo. Para tal, elegetam como inimigo fun- damental as varias forcas repressoras que mantém o staus quo, em nivel tanto macro como microestrutural. Como conseqiiéncia, gerou-se uma surpreendente revira- volta na politica estudantil latino-americana; passa para fundo de cena a atitude tipica dos anos 50 ma Uniio Brasileira de Estudantes, expressa pelo slogan “Yankee, go home”, ¢ Gcam no proscénio 0s javens libertérios americanos © europens, 2 se 16 NAS MALHAS DA LETRA exprintirem pela voz de Joan Baez ou Bob Dylan, de Jim Motrison ou Jimi Hendrix, de John Lennon ou Mick Jagger. De Chico Buarque ou Caetano Veloso. No mbico dos paises do Primeico Mundo, a preocupacio maior dos estudantes era com as microestruturas de repressio do poder (dai o surgimento nos anos 70 de um neo-individua- lismo liberado que explodiu, primeiro, em anarquia ¢, depois, ‘em narcisismo alimentando a sociedade de consumo). Mas, 20 repensatem a atuagio dos paises lideres ocidentais no plano mundial, esses mesmos estudantes descobriram tanto os perigos da corrida armamentista, responsével por um proximo apoca- lipse nuclear como no filme Zabriskie Point, quanto as grandes vitimas da histéria atual, os paises do Terceiro Mundo. A re~ belido estudantil alicerga a busca do “novo homem”, nao nos partidos politicos de esquerda inspirados pela Revolugio Rus- sa, mas em Che Guevara ¢ Cuba. Ao mesmo tempo atua de maneira radical contra as intervencdes militares feitas pelas grandes poténcias a favor do colonialismo europeu (nos paises africanos) ou do colonialismo americano (nos paises asidticos). Atua ainda contra as intervengGes econémicas feitas pelas mul- tinacionais a favor do neocolonialismo americana (nos paises da América Latina), Os movimentos contra a guerra do Viet’, dos sit i nas reitorias ou nas vias puiblicas 2 queima de cartes de reservistas nos campi, resumem tudo. A guerrilha rural do Terceiro Mundo passa a modelo para a guerrilha urbana do Primeito, e poucos meses depois a diferen- sa desaparece, pois o importante passa a ser a teoria dos focos, 95 1001 Vietnas de que fila Guevara. Eis o trago de uniio que irmanava a liberagio do povo vietnamita aos black panthers americanos, que justificava o expansionismo de Cuba pela Amé. rica Latina e a luta armada contra 4 ditadura militar no Brasil, que ligava o jovem soixanie-huitard de Paris aos estudantes me- xicanos que comavam de assalto Tlatelolco. A revolta era oci- dental. Ficou por vir o pior da historia. A reorganizacao da direira pelos paises do Terceiro Mundo, impondo aqui ¢ ali regimes opressores e totalitarios de Ambito nacional (embora articulados Poricr ¢ ategeia 7 pelo governo ameticano}, de uma violéncia organizaia «buto~ cratizada inédita desde os movimentos de independanci: dente a0 colonialismo europew no século XVIII, mas que pldmente relembrava 0 exterminio dos indios e as torturas da exaidio. Uma errata vai sendo pouco a pouco apensa 2» Iwo da década de 60 pelos acontecimentas vitoriosos na décia de 70: onde estava movimento libertario, dever-se-ia ler egime repressor, onde estava imaginagio no poder, deverseia ler censura policial; onde estava liberacgio do homem, deverse-ia Jer tortura militar; ¢ assim por diante. Como a errata ca inptu- dente e¢ desanimadora para os meios de comunicagio de massa, impunha-se escondé-l atris de uma fachada. A fachda nos- sa conhecida, e a propria atualidade dos anos 80 encamgou- se de desmistifici-la: tatava-se de enquadrar a ecnont dos diversos paises da América Latina aos padrées do apidismo tecnolégico, através do dominio autoritirio de uma wereracia burocratizada. Esta seria responsivel, na sua raciondizxio do progresso ¢ pela competéncia indiscutivel dos téaice pela moderizag3o das diferentes nagdes do hemisfério wl, eptan- do-se para isso pot uma entrada macica do capital atrageizo. Por detris da fachada milagrosa, além do autoritansm € da tepressio, vé-se hoje a realidade do endividamento steno ti- Pico do capitalismo selvagem dominante nos nosso puses- Nesse contexto mais amplo ¢ que se pode entenier melhor a reagio revolucionéria da inteligéncia brasileira a0 gape militar de 64 e ao seu recrudescimento a partir de 68. As “maos dadas” de que nos falou Carlos Drummad de Andrade na década de 30 ficaram soltas no ar. © cumpnhei- rismo tevolucionitio ¢ esperangoso de que todos 1s flaram utépica e chaplinescamente nas décadas de 30 ¢ di padeu a sua ra7Zo de ser como luta pnmeira, em virtude de una ésagre- gagdo das forgas de esquerda operada por uma violéacis insus- peitada. A violéncia péde ser visivel nas ruas, coma niitari- zacZo progressiva do Estado, com o grupo dirigente euteyando a si o direito de reprimir o cidadio em nome da segyaya na- cional; péde ser visivel de forma quase invisivel na carta de identidade ¢ nos crachis que se requisitavam par: se entrar 18 NAS MALHA! DATETRA num edificio publico ou num escritério; @ pode ser visivel de forma invisivel na ficha a ser preenchida pelos moradores de um edificio para, caso necessirio, posterior controle policial. ‘A violencia péde passar praticamente invisivel como um todo ce se atenta para os meios de comunicacio de massa, em especial a televisio, direcionados pelo Estado para o controle subliminar da sociedade. Tanto a violéncia visivel quanto a invisivel res- tringiram 20 minimo 0 universo de pensamento ¢ 0 campo de agio dos cidados inconformados (e, entre estes, 0 do artista). Retomemos. A descoberta assustada ¢ indignada da violén- cia do poder & a principal caracteristica cematica da literatura brasileira pos-64. Sio tematizadas as varias origens do poder, na sociedade ocidental e na época colonial brasileira, no tenentismo de 30 e no Estado Novo, também nos nossos dias com © aparato policial convenientemente resguardado da im- prensa pela censura; reflete-se sobre suas formas globais ¢ centralizadas, como também sobre seus esfarelamentos em infinitas particulas moleculares pelo cotidiano. A abrangéncia do poder repressor € vingativo pode ser total ow localizada, conseguindo eficazmente neutralizar os assaltos que Ihe sio feitos pela razéo critica e pelas grandes questdes do século. Dessa forma, 0 escritor brasileiro pés-64 coloca em segundo plano nos seus textos a dramatizag3o dos grandes temas uni- versais ¢ utépicos da modernidade, da mesma forma como guarda distancia dos temas nacionais classicos, e ainda discute sem piedade os temas oriundos de 22 que falavam da indis- pensivel modernizacao industrial do pais. A opsio dramitica é, de maneira geral, pelos temas que, no particular ¢ no cotidiano, na cor da pele, no corpo ¢ na sua sexualidade, representariam uma alavanca que pudesse balan- gar a sélida e indestrutivel planificagio do Estado militarizado 0 aprisionamento de uma populacao pelas fronteiras “natu- ais” do pais Esbogado o quadro, deve-se acreditar que haja atraso na proposta da nova literatura com relacio, por exemplo, 4 pro- posta dos anos 30? Pude-se dizer que a proposta da literatura brasileira pos-64 seja alienada ou alienante? Poder © ulzgsie 8 a Nio houve “atraso” artistico nem alienagio politica no melhor da produgio literana pés-64; houve, sim, a compreensio profunda de que a tio reclamada modetnizecdo ¢ industriali- za¢io do Brasil (que, teoricamente, no tenhamos medo em dizer, era o cerne do projeto modernista ¢ estava nos progra- mas politicos tanto da direita quanto da esquerda nos anos 30) estava sendo feita, mas a custa de tiros de metralhadora e gol- pes de cassetete, espancamentos e mortes, numa escalada de violéncia militar ¢ policial sem precedentes na historia deste pais, ja fora dos padrdes universais de justica por efeito de uma colonizagio européia que se valeu de meios de transfor- magio hoje reconhecidamente discutiveis. Colocar corretamente a questio do poder (e isso foi o que © melhor da produgio literdria fez) ja € investir contra os muros que se ergueram impedindo que 0 cidadio raciocinasse © atuasse, constituisse 0 seu espago de ago ¢ levantasse a sua voz de afirmagées. F orientar, pois, o pais para uma necessiria democratizagio, ainda que esta cenha chegado sé sob forma institucional. E também investir contra o siléncio a que o oprimido economicamente ficou reduzido, perdendo os direitos tabalhistas ¢ de reivindicagdo de classe. E dar voz, pertanto, a todos e a qualquer para que possam manifestar desejo e vonta- de politicos no plano nacional, comunitirio ¢ profissional, para que mais tarde possam ser constituidos governos e organizages sindicais dignos do nome. Pode-se dizer que houve atraso na problematizagio das ques- tées modernas € universais, mas nao se pode dizer que houve atraso nas questdes que 2 literatura colocou. Para ficar no fun- damental: houve, sim, atraso na propria historia social do pais, nas tentativas que houve no pasado por somar a sociedade mais justa ¢ igualitaria. Uma coisa ficou patente: nos vinte anos que seguem a 64 os donos do poder resolveram pér as mangas de fora de vez, assumindo como sosto algo — o poder conserva- dor — que sempre foi dado como transparente pelos trdpicos. Sabia-se que o poder existia 4 fora, mas como falar dele aqui dentro se dele se participava sem participar, se dele nio se tinham © rosto ¢ as mios? 20 NAS MALHAS DA LETRA A partir de 64, a liceratura mostrou que os donos do poder no Brasil tém olhos ¢ ouvidos reais, boca ¢ nariz como qual- quer um, mios injustas e, sobretudo, inteliggncia para se man- ter indefinidamente assentados na dirccdo do pais. Agora, ou do poder conservador nao se participa ou inocente nao se é. Acabam de vez as infindaveis imagens pias dos péncios pilatos nacionais, fossem eles senhores de engenho, cafeicultores ou capities de indistria, Acabam pouco a pouco, num processo altamente positivo de rarefacao, as caricaturas grotescas, ficeis ¢ animalescas. dos donos do poder reacionario (e. portanto, como caricaturas que eram, escamoteavam © conhecimento). Refiro-me 4s famosas caricaturas de macacos ou outros qua- drépedes abundantes em periodos populistas Para desctever 0 poder reacionitio como algo de concreto, dotado de corpo e também de espirito, teve o artista brasileiro {e 0 intelectual contestador de maneira geral) de se distanciar dele. Por isso, a postura politica na literatura pés-64 € a do total descompromisso para com todo ¢ qualquer esforgo de- senvolvimentista para 0 pais, para com todo programa de in- tegragdo ou de planificagio de ordem nacional. E cercamente por essa razio que a boa literatura pés-64 nao carrega mais 0 antigo otimsismo social que edificava, encontrado em toda a litera- tura politica que lhe ¢ anterior. Por essa razao também é que © texto literdrio deixa de se expressar pelos tons grandilogiientes © pelos exercicios de alta retorica. A boa literatura pos-64 prefere se insinuar como rachaduras em concreto, cam voz baixa e divertida, em tom menor ¢ coloquial. Passa a ser do conhecimento de todos 0 que antes era o grande segredo do bruxo Machado de Assis: num. pais de tra- dicio bacharelesca ¢ jesuitica, sabe-se finalmente o que otimis- mo e retérica recobrem. JA se sabe qual é a retérica do otimismo. © qual € © otimismo da retérica. Antes tarde do que nunca. Perdendo o otimismo social edificante e construtivo, a li- teratura pés-64 no pode também ser aproximada, por movi- mentos de semelhanga, da sta precedente imediata — a produ- 30 dos chamados anos democraticos, que vo de 1945 a 1964. Seja na constmagao de Brasilia a partir do mada, sonho de todo Poder ¢ alegria a arquiteto © uietdfora ideal para © artista de vanguarda, seja no transplante macigo de uma indéstria automobilistica estrangeira para © pais, seja nas palavras de um tedrico da poesia concreta que pedia aos pares para construirem “poemas 4 altura dos objetos racionalmente planejados e produzidos” — em tudo isso perpassava um otimismo construtor de tipo intemacionalista que dizia que o bem ¢ 0 bom estavam na capitalizacdo, Na ca- pitalizago das forgas humanas © na capitalizagio dos recursos econémicos estrangeiros e nacionais, ai também estava a “capi~ talizagio” de um saber brasileiro que trabalharis em favor de um Estado nacional forte ¢ pujante, atrevido ¢ esperancoso, que se langaria a uma inédita explosio internacional. © velho Brasil estava entio sendo rejuvenescide pelo sora da industrializacio e do capital estrangeiro. A descoberta do subdesenvolvimento pela geraglo de 30, que retirou 0 pais do paraiso ufanista, cra a garantia hist6rica para uma politica de paisem-desenvolvimente a partir dos anos 50. © alicercamento de um pensamento de esquerda nos anos 30 foi a garantia para a crtacio do ISEB (Institute Superior de Estudos Brasileiros). A Sudene foi o romance do Nordeste no plano das realizagdes admissiveis pela oligarquia rural progressista. E assim por diante. Nos dezenove anos que precedem 64 a ética politica brasi- leira foi a do fazer, mas a do fazer cegamente, jd que os ided- Jogos nacionais do nacional acreditavam que principios éticos advindos da reflexio sobre o agir sé poderiam vir depois do ja- feito. Apenas dois exemplos meio soltos para aclarar a étiea do construtivismo otimista brasileiro que estamos centando apreen- der. E sintomitica a auséncia da figura do openirio nos textos da época — voce 36 poder’ falar dele depois de ele existit, ora ele ainda nio existe por aqui ¢ € por isso que cle “inexiste" no nosso universo de discussio. Talvez seja essa a razio pela qual poucas conquistas fez o sindicalismo durante aqueles dezenove anos, ¢ tenha ele conhecido em contrapartida — grande vita lidade a partir de meados da década de 70. E ainda sintomética a auséncia de qualquer reflexio sobre © puiblico nos textos so- bre 2 literatura escritos na época. Os produtores ¢ teéricos da literatura $6 deverio se preocupar com o piiblico depois que o NAS MALHAS DA LETRA pais se alfabetizar integralmente; até Ji, faga-se a nossa litera tuta no vacuo do mercado cultural, Assim como nio se discu- te 0 objeto de uma revolucio social, assim também no se dis- cute a eficicia do texto artistico. Ou, quando se a discute nos anos que precedem imediatamente 64 —, ¢ para considerar 0 publico como uma massa amorfa, passive] de facil manipu- lacio. Em ambos os casos citados como exemplo, elide-se a ques- to da dominagio, do poder no plano interno, agigantando-se em contrapartida uma ideologia que, para esconder a propria cegueita, beira a xenofobia e se expressa — como vimos — pelo “Yankee, go home”. As lutas contra o imperialismo ame- ricano, ainda que justas, camuflavam as insondaveis questdes sociais internas , conseqiientemente, nio deixavam que se vis- se a problemética do poder nacional. Pairava este como aura —— dourada mas transparente a circundar as poucas cabecas pri- vilegiadas, dando origem a rodizios previsiveis na chefia dos inceresses (econdmicos, politicos, sociais, artisticos etc.) na~ cionais. Apesar de os anos que precedem 64 se proporem como democraticos, € preciso caracterizé-los melhor, talvez e simples- mente como menos centralizadores. O carisma do chefe foi a forma como 05 mcios de comunicagio de massa transmitiam ¢ impunham a voz ¢ a imagem do mesire supremo ¢ dos mestres estaduais ¢ municipais, sem que se tocasse na aura deles, pois das verbas deles se alimentavam. Era com o carisma que pro- gramavam a curiosidade publica € o jogo eleitoreiro nos varios espagos do poder. Eis ai os indicios que permitem compreen- der 0 surgimento de uma tevé nos moldes realizados por Assis Chateaubriand, uma rede ao mesmo tempo descentralizada ¢ todo-pederosa. (A Rede Globo inverte astuciosamente 0 pro- grama de Chateaubriand adaptando-se a 64: para suplantar o império da rival se centraliza desativando as varias estagdes com sede nas capitais dos estados; cm outras palavras, passa a “comprar tempo” das estagSes regionais, impedindo o trabalho de produgio que antes ali existia.) Eis ai um pessivel retraro da enorme importincia de revistas de ampla citculagio nacional Poder ¢ ategria 23 cuja base ¢ fundamento era a fotografia (do homem ¢ dos seus feitos), como O Crizeiro e Manchete. O carisma é, pois, a for- ma pela cual o politico (e mesmo o attista enquanto intelectual) falava e continuava a falar como “consciéncia nacional”, sem que na sua voz transparecesse 0 mandonismo centralizador ou a nsia secreta de poder. O mandonismo nio era falado as cla- ras porque os chefes o contrabalancavam com 2 atitude des- centealizadora, que se exprimia em ultima instincia por uma retérica otimista no melhor estilo populista. A transferéncia definitiva da capital da Republica para Brasilia e a inflexibili- dade dos programas de integragio nacional propostos pelo golpe de 64 dao um fim tragico a esse benéfico esiarelamento politico-ideoldgico do nacional. © fazer de Juscelino é substi- tuido pelo fazer de Andreazza. ‘A geracio que dominou os anos que precederam 64 foi a dos administradores do lugar politico possivel em favor do nome proprio. © nome proprio no lugar apropriado. A perda do lugar na administragao das coisas publicas e nacionais nao foi certamente tio desastrosa quanto se pensa € teoriza, quanto nos querem fazer crer os ex-isebianos. Pelo contrério: a perda do lugar apropriado proporcionou que todos, pela primeira vez ¢ indiscriminadamente, cnxergassem a aura que cercava ¢ cerca © poder. Puderam enxergar a cara da aura. A cara do ca- risma. A cara da ret6rica populista. O espelho nio-narcisista nio sendo o forte dos intelectuais brasileiros (que me perdoe Mario de Andrade), a aura do poder reacionario s6 chegou a ser vislumbrada quando foi adornar a cabeca do outro, ow seja, do usurpador. E muitos dos antigos, j4 fora do poder, conti- nuam procurando cegamente © lugar apropriado perdido, o nome proprio perdido, como se lugar nome pudessem ser os mesmos nos anos 80. Restou-lhes o cultivo em estufa do nome préprio em lugar inapropriado. Se falta a Hteratura pos-64, como dissemos acima, 0 otimis- mo social que edifica, nao se pense que o melhor da producio literaria dos Gltimos anos tenha caido, rastejado, vivido € se alimentado de sombrio pessimismo, interiorizando uma pura negatividade diante dos desmandos politicos da ditadura. Assim 24 NAS MALHAS DA LETRA como a questio do poder deslocou o tema da exploracia (sem abandona-lo, é evidente. como horizonte) para a reflexdo sobre quem € © que est por detris dela, impossibilitando ou dificul- tando a almejada igualdade social, assim também se retirou da cena a oposi¢io maniqueista entre otimismo e pessimismo, tio do nosso agrado ¢ do agtado da nossa imprensa desde a publi- cacao do Retraio do Brasil por Paulo Prado, em 1927. Abando- na-se a oposicao maniqueista, nio para que se diga que somos todos otimistas & pessimistas, dependendo da ocasiao — caso em que no haveria deslocamento semintico, apenas 0 surgi- mento de certa folerdncia cimplice do agrado dos oportunistas de primeira e Gltima horas. Catando palavras no cotidiano (ou: catando feij30, como diria Joio Cabral de Melo Neto), digamos que na cena pés-64 nem o sortiso nem a fossa, nem o sambinha bossa-nova nem 0 samba-cangio de Dolores Duran. Na cena, a boca de Caetano Veloso, na Tropicélia: Alegria! Alegria! A sensibilidade para 0 que existe de impreciso nas oposigdes maniqueistas j4 esti cm Mario de Andrade desde a década de 20 e ficou em siléncio até os anos 60. Enquanto instrumental descritivo para se chegar ao saber, as oposigdes maniqueistas tém de ser trabalhadas por um exercicio na linguagem que o proprio Mario chama de “desassociagao de palavras”, Aconse- Tha ele, por exemplo, a desassociagio da palavra felicidade da sua correspondente prazer, abrindo a brecha para que se des- constrta 0 sentido classica da canceito ¢ se chegue a uma ase sociagio mais exata para explicar 0 que na realidade experimen- tava. Acabou por escrever em prosa e verso ¢ indimeras vezes, como a atestar a sua legitimidade e perenidade: “A propria dor é uma felicidade.” A felicidade, tal como articulada por Mario em associagio 4 inesperada dor, parece-me proxima da lige dionisiaca e nietzschiana do que se deve entender pelo grito de alegria na cultura brasileira pés-64, grito dado no mo- mento mesmo em que o corpo do artista era dilacerado pela Tepressio € a censura. No caso de Mario de Andrade. a desconstrugio do con- ceito classica de felicidade tinha, pelo menos, fungio dupla. Primeiro: distancia a sua atuacdo intelectual do bom-mocismo Poder e alegria a5 de Graga Aranha, que ptegara uma alegria superficial, prentin- cio do otimismo-vencedor Go ao gosto dos futures fascismos, Segundo: precaver os jovers companheiros conta os estragos que © anatolismo havia feito com os mogos brasileitos no ini- cio do século. Ao joven Catos Drummond, vitima provinciana de mestre Anatole Frarce, iconselha Mario: Anatole “escan~ galhou os pobtes mogas fazindo deles uns gistos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem. duvidando se vale a pena qual~ quer coisa, duyidando da feicidade, duvidando do amor [...]. Isso € que esse filho-d:-pua fez”. No caso de 64, a desconstrugio do conceito de alegtia vi- sou, como vimos, a retirar a produgao artistica da pura nega~ tividade, como ainda a liberi-la do espirito de ressentimento, A resposta mais evidente di esquerda tadicional a0 autorica- rismo repressor ¢ i petda do lugar na administracio piblica teria sido o ressentimento. Este teria conduzido o intelectual a se afirmar de novo por um sae sistematico, contraditonamente. A alegria foi o que pemitiu que se alicergasse a possibilidade de 9 artista afirmac — sempre em oposicio as forgas do terror, do dilaceramento ¢ da dor ~ pelo sim, ainda que, para isso, precisasse chegar ao “déréglement de vous les sens”, ou abrir “as portas da percepgio”. Abjado do poder. 0 artista compreen- dia 9 papel corruptor dé um mando privado de reflexdo ética. Condenado 4 inexisténcia politica, o artista nto perdia a bossa ¢ a raga, Destituido de um lugar na administracio publica, o intelectual constituia um lugar envolvente de onde podia de- moli, sem comprometer-se, a construgéo preciria (dada como invencivel) do golpe de 64. A alegria desabrochou tanto no deboche quanto na garga- Ihada, tanto na parédia © no circo quanto ne compo humano que buscava a pleniude de prazer ¢ gozo ma propria dor. A alegre afirmacio do individuo numa sociedade, no entan- to, autoritaria e repressora talvez tenha sido a idéia principal na boa literatura pos-64. Aliada a andlise € 4 cricica radical do poder, essa idéia solidificou a necessidade de uma sociedade democritica na América Latina ¢ 0 descompromisse para com as foreas militares no exercicio do govetno; retirou ainda o 26 NAS MALHAS DA LETRA pensamento ¢ a agio de oposicic dos meandros tortuosos seja do ressentimento, seja do totalitarismo. Otimistas ¢ tristes ficaram as figuras do poder, contradito- riamente. Sacnificados e alegres ficaram os opositores do regi- me, afirmativamente. A ditadura militar foi-se esfarelando nese jogo de forcas, a0 mesmo tempo que a sociedade brasileira se preparava como munca para aceitar um governo legitimamen- te democtatico. Que nao seja decepcionadal [1988] Poiies « alegria Prosa literaria atual no Brasil © que eu peco & critica vem a ser — intensio benévola, mas expressio franca ¢ justa, Aplausos, quando 0s ndo fundamenta 0 mérito, afagam centamente 0 esplrivo, ¢ dao algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender © quer fazer aiguma cousa, prefire a lito que methora ao meido que lisonjeta. {...} A attica decitiré se a obra conesponde ao intuito, ¢ sobretude se 0 openiro fem jeito para ela. Machado de Assis, “Adverténcia da primeira edigio”, Ressurreigéo (1872) Tudo indica que, no estagio atual do tardio processo de modemnizacio por que passa a sociedade brasileira, 0 romancista jovem podera abdicar do trabalho literério como bico, passatem~ po noturno ou atividade de fins de semana, para se consagrar A sua profissio em regime de full time, como um bom esctitor europeu, americano ou, mais recentemente, hispano-america- no. A editora, por sua vez, assume a forma de empresa capita- lista, pois ja diz abertamente que visa ao luero como qualquer outra indGseria do pais; ¢ mais: ja reconhece que nio apenas os operarios do parque grifico ou os funcionarios burocriticos si0 protegidos pelas leis trabaihistas, mas também aqueles a quem © editor chamava carinhosamente de autores “da casa”. A mo- dernizacio, no nosso campo, esta fazendo com que o editor perca a fala ¢ a mascara do mecenas no escritério da sua empre- sa, € © autot, a aura de diletante que flutuava sobre a sia cabega © contrato de edicgao (condicdes. exigéncias, direitos etc.) substitui a conversa a0 pé do ouvido regada a cafezinho, orde- nando as relacdes entre as duas partes dentro dos principios juidicos em vigor no pafs. Transformado em mercadoria dentro da sociedade de consumo, o livro passa a ter um temivel (porque 28 NAS MALHAS DA LETRA evisivel) ¢ subornavel (porque manipulivel) arbitro: o pi- blico. E ete que, segundo a empresa, atesta anénima, econémi- ca ¢ autoritariamente sobre 0 “valor” da obra, digo mercadoria, como em qualquer texte Ibope ou indice de vendagem. Bons escritores sio os que vendem, diz a voz do lucro empresarial. Como as relacdes entre editor ¢ autor ja nio podem ser to amigiveis como antigamente, visto que um dos elementos deixou de fazer concessées e agora luta por equilibrio contra tual, impdc-se a presenga de um parceita incomum para aliviar os conflitos: 0 agente literirio. No jogo da oferta e da procura, dle leiloa a futura mercadoria, entregando-a a quem der mais, e retira da relacdo editor/autor a magica dos encantamentos ¢ seducées pessoais. Este terceiro elemento seri tanto mais con- vincente no seu papel quanto mais abrir as portas da industria ¢ do mercado estrangeiro ao livro nosso. E pelo alargamento do mercado interno ¢ externo que, economicamente (ponto pa- cifico), © escritor brasileiro poderd chegar ao regime de tempo integral. Finalmente, bons autores sio os que vendem aqui ¢ li fora, diz 0 bom senso mercantilista. Nie ha davida de que a substitui¢io do editor paternalista, tipo tapinha nas costas e periédicos ¢ insnficientes vales no cai~ xa, pela relacdéo contratual entre as partes envolvidas na fabrica~ (lo ¢ comercializagio do livro € um passo substantivo no pro- cesso de dar responsabilidade econdmica, social ¢ politica a esse ser peaumbroso que atende pelo nome de romancista brasi leiro. Passo que também seri decisive na configuraio artistica do produco que ele passari a fabricar, o romance. Se 0 romancis- ta brasileiro ndo pode escapar dessa emergente cealidade econd- mica e das ingeréncias da indtistria editorial ¢ interferéncias do mercado sobre a sua atividade profissional, isso no significa que deve pactuar com elas ou abaixar a cabeca como um servo, passando a ser mero figurante passivo em toda a comédia dos variados enganos ¢ desenganos do Brasil modemo, Retomemos a mesma histéria, abandonando agora 0 ponto de vista merca- dolégico que a informava acatando a perspectiva critica. © romancista brasileiro de hoje precisa profissionalizar-se antes de se cormar um profissional das letras. O paradoxo dessa Prosa literdria atuai uo Brasil 29 formula @ apenas aparente, como vamos tentar provar, pois craduz na sua esséncia as ambigilidades numa fase da nossa vida econémica (literdria, no sentido estreito); nesta, a tentagio da economia de mercado & mais forte do que o santo produtor de literatura. Que o romancista se precavenha com lucidez, antes que seja tarde demais. ‘Trés problemas sutgem quando cle quer profissionalizar~ se sem ser profissional. Hi o perigo de o romancista perder a sua identidade ¢ papel social, transmitides pela tradicZo ociden- tal, recebendo como miscara modernizante uma contrafacio caricatural dos frenéticos produtores de mast media; hi 2 ameaca de que a mercadoria que o romancista produz, nie guardando mais 0 perfeccionismo e a gratuidade comercial da produgao diletante ¢ artesanal, seja apressada ¢ descosida, insossa, aten~ dendo que esté exclusivamente as leis do mercado insaciavel; ha, enfim, a possibilidade de o candidato habilitar-se 4 carteira profissional de escritor sem conhecer 0 oficio, virando, para usar uma velha expressio de André Gide, um “moedeiro falso”. Antes mesmo de a critica especializada entrar em campo pata arbitrar o jogo da literatura, cabe ao proprio romancista fazer silenctosamente a sua auto-andlise ¢ 2 andlise da sua obra. O acesso 4 carreira de escritor nfo requer vestibular, curso uni- versitirio ou julgamento de professor e, por isso mesmo, exi- ge um diuturno exercicio de autocritica que visa a impedir o romancista de ser o falso ou passar o falso como verdadeiro, A critica — quando nao é feita com a pena da inveja, 0 acido da vinganga pessoal ou a maledicéncia jornalistica —, a critica apenas diz 0 que o criador jé pressente, licido ¢ atento. A critica & critica, tio em moda nos anos 80 na boca de al- guns cantores de misica popular, e esparramada injustamente para o campo das artes, é 0 sinal preciso da crise cultural por que atravessa o pais. Ao rechacar como imitil e intrometida a reflexio séria sobre a obra, a avaliagio repousa ou no autori~ tarismo autopromocional do artista ou no sucesso de pitblico. A critica 3 critica s6 € justa quando esta deixa de ter — como nos prevenia Machado de Assis hd mais de cem anos — uma “incengio benévola”; a ctitica 4 critica so é justa quando esta 30 NAS MALHAS DA LETRA é eserita, como adiantamos acima, pela inveja, vinganga on maledicéacia. E por esses caminhos tortuosos (embora com- preensiveis) da perversidade humana que a critica erra, mesmo quando em mos comperentes, ¢ € contra isso que 0 artista de- ve lutar, € nio contra a critica em si. Com aquele apatente paradoxo inicial estamos querendo dizer: antes que o romincista, por ingenuidade ou intemperanca dtica, seja submergido pela légica das leis do mercado, ou soja enfeiticado pela fuz dos refletores que o distingue no paleo ar- gistico do Brasil de hoje, que tente andar a-cavaiciro da situa- gio, cransformando-se no mais fino e exigente critico da atual sociedade de consumo, Nesse instante, em lugar de o roman- cista imitar 0s idolos pop internacionais ou as vedetes nacionais da Vénus Platinada, em lugar de macaquear sera o descaroga- dor que, pela probidade ética e profissional (e para isso ndo é necessdrio vestibular ou escolaridade), fari — pela eficicia contra-ideolégica da sua prosa dramética —— a constante triagem de valores no interior da sociedade que esti se convencionando chamar de pés-moderna. Existem equivocos — e sio muitos — dentro da justa eu- foria que toma conta dos produtores de literatura nos tltimos anos. Deixemos de lado os excessos laudatétios da imprensa ow as pichagdes de muro que cercam a publicidade (a palavra J4 se impSe, até mesmo quando consideramos certas matérias “criticas” de Veja ¢ IstoB} de nomes ¢ obras, Se os primeiros ofendem o bom senso dos leitores, espantados com as meias~ verdades propagadas pelo jornal, ja as segundas atestam em favor do vandalismo pablico inerente 4 maioria dos métodos publicitirios, Mas bom senso e mau gosto sio perdodveis em momentos de euforia juvenil dentro de um quadro social catas- wéfico, como é 0 Brasil de hoje. Concentremo-nos em outro Ponto, mais delicado, porque atinge de perto nfo sé 2 comer- sializagio do livro como ainda a avaliagio estética que dele deve ser feita, Refiro-me ao slogan pregado por um cmergente escritor dos anos 70, cujo produto inclusive nio precisava se valer do slogan: livro é mercadoria como qualquer outra, se vende como Prosa Hiierdvia atual no Brasil a sabonete. O equivoco reside no fato de que a formula prega a inexisténcia de diferengas qualitativas entre produtos diferentes a serem consumidos e, mais grave ainda, anula também o es~ forco em distinguir a qualidade entre produtos aparentemente idénticos na vitrina da livraria. Onde fica 0 discemimento do consumidor/leitor em tudo isso? No vale-tudo mercadolégico a formula visa a dar enorme peso 4 auséncia de julgamento por parte de quem compra. Compra porque foi anunciado, e se foi anunciade € porque é bom. Isso nio é verdade, ¢, se 0 for, estamos perdidos. Lembro-me de um velho filme de Frank Tashlin em que uma velhinha diante da televisio ia consumin- do, indiscriminadamente, os produtos anunciados. Equivoco maior ainda esti por detris do slogan acima men- cionado. E 0 que acontece com todo © qualquer elemento ori~ ginal (produto, tema, idéia etc.) quando comega a ser movi- mentado e direcionado unicamente pelas leis do mercado: o da banalizagao. Nesse sentido, a banalizagao do objeto livro, que se esconde por detris da visio mercadolégica radical, pouco se diferencia de fenémeno semelhante como o da banalizagao do corpo encontrada nas potmochanchadas. Como tema instigante dos dltimos anos, 0 corpo é 0 lugar da descoberta do ser, re- tomada da forga dionisiaca em oposicio 4 forca apolinea, e 0 erotismo é a energia que impele 0 corpo a um comportamento nio-racional ¢ nao-reptimido; o corpo € © lugar da liberdade, de onde sai o grito do individuo contra as sociedades repressi- vas. Banalizado © corpo nas pornochanchadas, € ele apenas 0 lugar da confluéncia carnal, deslocando até mesmo a diversi- dade da experiéncia sexual ao dinico dispositive fisico do gozo. Essa rotina da confluéncia carnal nada tem a ver com a paixio encontrada no potencial {instigante de prazer ¢ conhecimen- to) da “forca humana”, para usar a expresso de Rubem Fon- seca, Entre a rotina massacrante da musculag3o (halterofilismo. ou academia de gindstica) © 0 corpo livre do crioulo que dan- ¢a adoidado em frente da loja de discos, entre uma e 0 outro ha a diferenca entre o sabonete anunciado pela televisio e 0 livro comprado com gosto € discernimento, a diferenga entre a banalizacio do corpo e 0 erotismo como forca de saber, En- 2 NAS MALHAS DA LETRA 7x3 G02 ge uma € 0 outro, ha a diferenca entre a compulsio 4 repeti- gdo e 0 jogo prazeroso & desinibido da liberdade individual. Nao estamos querendo com essas reflexdes substituir o direcionamento da literatura a ser dado pelo romancista, como conseqiiéncia da crenga indiscriminada nos valores mercado- logicos do livre. Nao me passa pela cahega ser arauto ou pro- feca € menos ainda messias. Todas essas reflexdes visam a dar de volta ao escritor a indispensavel auto-avaliacio constante do seu trabalho, sem os dengues da euforia e do orgulho ad- vindos das benesses da modetnizagao; visam a entregac-lhe de volta a responsabilidade cultural, ética € politica na dramatizacio dos destinos da sociedade. Aclaro definitivamente: romance néo é 0 que a reflexio critica (esta, por exemplo) sobre o romance diz; romance é o que © romancista faz. Agora, convenhamos, uma safra literdria pode set melhor ou pior; e tudo faz crer que, banalizado o romance como sa- bonete numa sociedade de consumo periférica, contrafcito o romancista a vestir a roupagem de idolo pop, perdido o oficio de compor por preguica ¢ carreirismo, tudo faz crer que a safta nao sera das melhores. Mas a safra atual é boa, nio tenhamos dividas. Levantar equivecos ¢ jogi-los na arena da discussio pode ainda ser um bom meio de buscar “a ligio que melhora a0 ruido que lisonjeia”, como nos lembra Machado, precaven- do-se o romancista contra o passageiro “verniz da cclebridade”. Toma-se dificil classificar 0 que seja ou nio romance hoje. Hi uma explosio das regras tradicionais do género, caracteristica alias dos momentos de transico literaria, quando os padrées comuns que determinam a estética do género em determinado Periodo historico passam a ser insuficientes (ou repressivos & até mesmo inconseqiientes}, nio possibilitando 3 expressio de BoVos anseios ¢ de situagSes dramaticas originals. Parece que © romance 36 pode cheyar a uma nova maestria quando perde Prosa literitia ainal no Brasit vlan . Biblioteca Universitaria VESC passageiramente o leme € 0 rigor. Quem & que ousaria chamar de romance, no final da década de 20, a Memérias sentimentais de Joio Miramar ¢ a Macunatma? Sem eles, teria sido possivel o Grande sertdo: veredas? James Joyce teve a sorte de encontrar, como resenhador do seu romance, T. $. Eliot, mas uma ro- mancista do nivel de Virginia Woolf torcia o nariz diante do desconcertante Ulisses. Se hoje ainda hé alguma voz discor- dante quanto 4 inclusio desses livros no género romance, ela vem de meio intelectual altamente conservador. E 0 conserva- dorismo € isto: apego insensato aos valores do pasado numa sociedade em transformagio — caso nio fosse isso nio seria conservadorismo e mereceria o apreco de todos. Realmente, do ponto de vista do género, nio hi muito em comum entre a prosa de Sempreviva, de Anténio Callado, ¢ a de Zero, de Ignicio de Loyola Brandio; entre Os sinos de ago- nia, de Autran Doarado, e Ordem do dia, de Marcio Souza; en— tre Tebas do men coragdo, de Nélida Pifion, e Com licenga, en vow 4 huta, de Eliane Maciel; entre A festa, de Ivan Angelo, ¢ Mal ra, de Darcy Ribeiro; entre Essa terra, de Antonio Torres, e As paneiras, de Lya Lutt; entre Likcio Flavio, 0 passageiro da agonia, de José Louzeiro, ¢ Confissées de Ralf, de Sérgio Sant’Anna; ¢ assim infinitamente. E se a essa enumeragio (necessariamente incompleta) acrescentassemos os variados titulos da prosa com nitida configuracio autobiogrifica, de Femando Gabeira a Mar- celo Paiva, chegariamos i conchasio de que a anarquia formal é dado importante no mapeamento da questio. Na década de 30, apenas para estabelecer 0 contraste, a situago era diferente; havia mais consenso entre os prosadores sobre quais deviam ser as regras de composi¢io do romance. A anarquia formal no deve ser tomada, a prior, como um dado negative na avaliagio da literatura em prosa de agora. Pe- lo contritio, Demonstra a vivacidade do género, capaz de renas- cer das préprias cinzas; fala da maleabilidade da forma, pronta para se moldar idealmente a situagdes dramiticas novas ¢ dis- pares; € exprime a criatividade do tomancista, que busca sem- pre a diccio e © caminho pessoais. Isso porque o romance — 40 contratio dos outros géneros maiores — nasce no momento 34 NAS MALHAS DA LETRA em que se comeca a duvidar do critérie de imitazée como mo- for para 0 novo, De todos 0s géneros, romance, como dizem os anglo-sax6es, 6 0 lawless por exceléncia, Género bandido, moderno porque liberto das prescrigdes das artes poéticas clis- sicas, 0 romance surge como conseqiiéncia de uma busca de guroconhecimento da subjetividade racional. Ian Wats, no seu magnifico The Rise of the Novel, estuda as relacdes estreitas entre o romance inglés (novel) do século XVI e © pensamento care- siano (“Penso, logo existo”). . Se a anarquia formal parece dominar 0 cendrio da prosa no Bras) dos anos 70 € 80, tudo indica no entanto que os nossos romancistas, levados por um desejo de reencontrar as raizes do género para readapti-lo 3 atualidade brasileira, guordam em comum a prcocupagio com o autoconhecimento revelado pela experiéncia da escrita romanesca. Se existe um ponto de acor- do entre 2 maioria dos nossos prosadores de hoje, este a ten- déncia ao memorialismo (histéria de um cli) on 4 autobiogra- fia, tendo ambos como fim a conscientizacio politica do leitor. E claro que essa tendéncia nio é nova dentro das letras brasi- leiras. Queremos dizer é que ela nunca foi io explicita na dicgdo da prosa, deixando ainda mais abaladas as fronteiras estabele- cidas pela critica tradicional entre memidria afetiva ¢ fingimento, entre as rubricas memérias ¢ romance. Sabemos, por exemplo, que a preocupagio memorialistica € um componente forte ¢ definitive dentro de nossa melhor prota modemista. Mas os modos como aquela preocupagio emergia na ficeo eram me- nos abertos do que os modes como afloram em Rachel Jar- dim, Paulo Francis ou Eliane Maciel, para citar apenas uns pou- cos, Se Lins do Rego nio tivesse escrito no final da vida Meus verdes anos, ndo teriamos certeza de que a “ficgdo” de Menino de erigenko era tio autobiogrifica. © mesmo para Oswald de Andrade com 0 tardio Sob as ordens de mamde, subseqiiente ao Jodo Miramar. Essa explicitagio do comportamento memorialista ou auto- Diografico na prosa nio so coloca em xeque o critériy tradicional da definicio de romance como fingimento como ainda apre- senta um problema grave para o critico ou estudioso que se Prosa titerdria atuat mo Brasil 3 quer informado pelas novas tendéncias da reflexio tedrica sobre literatura, tendéncias todas que insistem na observincia apenas do texto no processo da anilise literaria, Deslocada a espinha dorsal da prosa (de ficcio, ou talvez no) do fingimento para a meméria afetiva do escritor, ou até mesmo para a experiéncia pessoal, caimos numa espécie de neo-romantismo que & a t6- nica da época. Pode-se pensar hoje, ¢ com justa razio, que o critico falseia a intengdo da obra a ser analisada se no levar em conta também o seu cariter de depoimento, se nio observar a garantia da experiéncia do corpo-vivo que esti por detrés da escrita, Nao nos cabe resolver esse impasse metodoldgica e critic aqui; tentamo-lo em outro lugar, abandonando o rigor da cri- tica e do género romance ¢ exorbitande o poder da imaginagio ficcional, numa tentativa de aclimatar 0 exercicio do fingimen- to 4 experiéncia pessoal.* Cabe, porém, insistir na apresentagio dos problemas, abri-los para outros ¢ mais competentes estudio- sos, para que ndo se caia em definigdes apressadas ¢ excludences do que seja “romance” hoje, ou que sc incorra cm equivocos criticos, que seréo certamente prejudiciais para o melhor conhe- cimento futuro da época. Um contemporineo deve trabalhar com categorias abrangentes e generosas. O tempo e os criticos posteriores terio 2 perspectiva € a disposicio para aperfeigoa- las afiné-las sem o perigo de incorrerem em exclusdes incons- cientes, transmitidas por uma tradigdo repressiva. Ao contratio de Christopher Tasch, que, ao analisar a déca~ da de 70 nos Estados Unidos, insistia no aspecto narcisista da produgio cultural de hoje (vide The Culture of Narcisism), nio acreditamos que a questao seja tao trangiiila entre nds. A ex- periéncia pessoal do escritor, relatada ou dramatizada, traz como pano de fando para a leitura e discussio do livro proble- mas de ordem filoséfica, social ¢ politica, Nio hi davida de que, no palco da vida ou da fotha de papel, o corpo do autor continua © est exposto narcisisticamente, mas as questdes que levanta nio se esgotam na mera autocontempiacio do umbigo, *V. © romance Bm liklerdade. 36 NAS MALHAS DA LETRA como quer uma critica neoconservadora da produgio cultural no Brasil. Sobretudo aos melhores casos. A narrativa autobio- grifica & 0 elemento que catalisa uma série de questées tedricas is que s6 podem ser colocadas coretamente por intermé- Gio dela. A pega de teatro nao foi um meio eficaz que Sartre encontron para explicar pontos tedricos da sua filosofia? Quais seriam aquelas questdes? De inicio, certa desconfianga da compreensio da histéria pela globalizacio ¢ pela indiferen- ciagio, pelo recalque do individuo no tecido social e politico, como se Ié em Hege! ¢ nos grandes filésofos revolucionarios que se alimentam do seu pensamento. Em seguida, o descrédito por que passa © governo totalitirio ¢ ditatorial, preferindo © intelectual de hoje apegar-se a uma solugo que busque inspi- Tago nos processos revolucionérios de expresso democritica, sem no entanto reaproximar-se do liberalismo econémico chissi- co. Ainda, uma forca de vida que se apresenta pela afirmacio do desejo, pela liberdade ¢ pelo prazer, desprezando 9 ser hu- mano o gosto pelo mattirio e pela dor no processo da civiliza~ cio. Enfim, ¢ menos apressadamente, a questio nacional. A questio nacional é marcada pelos tempos bicudos por que passamos. Historié-la aqui seria longo, mas cabe assinalar quais foram as formas que revestiram a prosa de ficcio durante © periodo, para se chegar finalmente 4 questo tal como ela se apresenta neste inicio de década, Houve uma primeira ¢ camuflada resposta da literatura as anposicées de censura e repressio feitas pelo regime militar: a prosa de intriga fantistica e estilo onitico em que o intrincado jego de metéforas e simbolos transmitia uma critica radical das estruturas de poder no Brasil, tanto a estructura ditatorial centrada em Brasilia como as microestruturas que reproduziam Ne cotidiano o autoritarisme do modelo central. Houve ainda © romance-reportagem (com nitida influéncia da faction de Traman Capote e outros, mistura de fact e fiction), em que se denunciavam os arbitrios da violéncia militar e policial nos anes dutos do Al-5, arbitrios estes que tinham sido escondidos da populagio em virtude da censura imposta as redagées de Jomal ¢ aos estidios de televisio. Prosa literéria stual no Brasti ” Essas duas linhas foram as dominanies nos primeiros anos da chamada “abertura”. E, no entanto, com o retorno dos exilados politicos que se impSe a narrativa de tipo autobiogri- fico. Tecamos algumas considerages histéricas para evitar equi vocos na anilise ¢ na apreciagio do novo material. A narrati- va de tipo autobiografico ji estava sendo, a partir da década de 60, a principal heranca que os velhos modernistas legavam as geragdes mais novas, e isso de Carlos Drummond de Andrade a Murilo Mendes, de Maria Helena Cardoso a Pedro Nava. Por outro lado, se a forma autobiografica ganha forca e toma pé com 0 retorno dos exilados, logo porém extrapola os limites da simples experiéncia guerrilheira, como veremos. Percebem-se, no entanto, algumas diferencas basicas entre 68 textos tardios dos modernistas € os dos ex-exilados. No ca- so dos moderistas, 2 ambicio era a de recapturar uma expe- riéncia nie 36 pessoal como também do cla senhorial em que se inseria o individuo; nos jovens politicos, o relato descuida- se das relagdes familiares do narrador/personagem, centrando todo o interesse no envolvimento politico do pequeno grupo marginal. Devido a essa diferenga de perspectiva, percebe-se © exagerado interesse pelos anos infantis por parte dos moder- nistas € © pouco caso com que tratam esse periodo da vida os ex-exilados. Caso haja interesse em classificar, pode-se dizer que o texto modernista é memorialista (apreensio do cli, da familia), enquanto 0 dos jovens politicos ¢ legitimamente mais autobiografico (centrado no individua). Essa primeira diferenca marca também uma outra de cariter politico-social: o texto dos modernistas, enveredando por uma Jinha que podemos qualificar de “proustiana”, tende a apre- sentar uma visio conservadora da sociedade patriarcal brasi- leira, relatada através da inércia do principal protagonista (cujo protétipo € 0 fancionirio pablico); j4 0 texto dos ex-exilados, admitindo como quase inexistente a decalagem entre o fato vivido ontem € a sua narraco hoje, conta experiéncias proximas © softidas, em que esteve em jogo a liberacio do Brasil pela 8 NAS MALHAS DA LETRA juta armada. Mas, se © personagem principal adquire tons de heroismo no momento em que vive a a¢io (passado), j4 nio se pode dizer 0 mesmo dele enquanto narrador (presente), porque aqui deve explicar e justificar 0 fracasso da empresa € gs insuficiéncias da acio, 0 arrebatamento juvenil ¢ idealisea do projeto politico guerrilheiro. Acrescente-se que 0 fracasso do her6i politico no presente da narragio no se recobre com as (esperadas) tintas sombrias e tristes do desastre. Pelo con- tririo. Prega ele 0 hedonismo, procurando extrair da dor do passado uma ligdo de futuro onde nio se perde a alegria das grandes investidas. Acredita agora que a revolucio, se ela vier, tera antes de passar pela libertagio sensual do proprio indivi- duo. Em contrapartida, o narrador modernista, entrado na velhice, pactua mais ¢ mais com os antepassados patriarcais ¢ com 2 atitude estdica daqueles que, tendo jf uma experiéncia longa de vida, se resguardam das intempéries existenciais. Outro interesse que os relatos autobiograficos escritos pe- Jos jovens politicos apresentam é a sua possivel contribuigao para o melhor conhecimento da nossa histéria no periodo reco- berto pelos Atos Institucionais. De modo geral, 0 historiador futuro teria como subsidio apenas a versio militar dos aconte- cimentos (fornecida pelos varios IPMs e demais documentos dos servicos de informagio); aqueles relatos autobiogrificos devem servir de ponto de referéncia para interpretagdes que apresentario menor coniyéncia com a situagao repressiva. Ja os relatos memorialistas escritos pelos modernistas apresentam maior interesse para a historia literaria ¢ menor para o historia dor, visto que neles se dramatiza quase que exclusivamente a experiéncia no interior das grandes familias na Repdblica Velha. Para uma visio menos comprometida, na Repiblica Ve- tha, com os valores sécio-econdmicos da oligarquia rural, f2- se necessiria a leitura das entrevistas com operirios que Ecléa Bosi transformou em narrativas pessoais no seu livro Lembrargas de vethos (nartativas que nao estio isentas de intercsse “literdtio” Para todos os que admitem que, em cervos periodos, quando Prosa titeriria atnal no Brasil ” se veta o fingimento ficcional, hi um processo de dessacrali- zagio da figura ¢ dos processos do “esctitor”, caindo a responsa- bilidade sobre a figura do “narrador”, que € aquele que sabe © que por isso tem o dom de narrar). Tanto nos selatos me- morialistas quanto nos dos ex-exilados, como também nos re- Jatos operanios, o veio autobiogrifico ¢ explicitado na superfi- cie dos textos. Guardada a dbvia improptiedade da compatacio, pode-se mesmo argumentar que os textos dos ex-exilados € as Jembrangas dos velhos operarios devem ser lidos pela mesma clave que nos di Ecléa: “A veracidade do narrador nao nos preocupou: com certeza seus erros ¢ lapsos sio menos graves em suas conseqiiéncias que as omissdes da historia oficial. Nosso imeresse esté no que foi lembrado (grifo da aucora], no que foi escolhido para perpetuar-se na historia da sua vida.” Essa despreocupa¢o com a “veracidade” do relato, perdoa- da até mesmo pelo historiador interessado por uma historia “dos vencidos”, o sera muito mais pelo critico literério, ¢ € pela estreita viela do desprezo a veracidade que se comunicam a ficgio ¢ a autobiografia, 0 fingimento ¢ 0 telato pessoal, a estoria e a historia. Unindo os relatos dos ex-exilados ¢ as lembrangas dos ve- thos operdrios existe a mesma preocupagio pelos grupos que sio marginalizados pela histéria oficial. Se nio me engano, é pela via da marginalizacio que se propaga c frutifica a formu- la do relato autobiogrifico, ou memorialista (numa visio nio- conservadora), nos anos subseqiientes ao retorno dos exilados. S6 que o fendmeno da marginalizac3o € compreendido como uma espécie de evifio interno: trata-se de determinados grupos sociais que etam e sio desprovidos de voz dentro da sociedade brasileira, cuja voz era e & abafada. Nio é facil explicar como aflora a questio das minorias sociais no Brasil, mas sem divida ela brota por um movimento anti-hegeliano de inflagio do ego. Pode-se comecar 0 raciocinio assinalando duas atitudes. A primeira é a descrenca nos pro- cessos revoluciondrios em que o intelectual ¢ 0 tinico idealizador © porta-voz das aspiragées populares (em lugar de deixar falar, possibilitar a fala do Outro; o intelectual, tio autoritario quanto 40 NAS MALHAS DA LETRA poder central, fala em lugar de, de acordo com os seus pré- pros valores), A segunda é a descoberta de que o tecido social & feito de diferengas apaixonadas e que a negacao das diferen- cas (com vistas a um projeto Gnico para todos) é também o massacre da liberdade individual, o recalque das possibilidades mais autnticas do ser humano. Fiquemos por enquanto por aqui, esperando tet pasado os dados indispensaveis para a mar- cha do raciocinio. ‘A questo das minorias apresenta dupla configuragio; tem vigéncia na histéria (do Ocidente e, em particular, do Brasil) e é atual (reivindicag3o de direitos ¢ de liberdade por parte de grupos sociais, autenticados pelas reflexées modemas no campo das ciéncias humanas). Ela é histérica ne momento em que se ativam as forgas neutralizadoras ou recaleadas pela sociedade branca ¢ patriarcal brasileira; é atual, quando deixa vir 2 tona os temas ligados 3s microestruturas de cepressio moderma, Em suma, a questio das minorias é o reverso da medalha do auto- Titarismo. De um lado, basicamente, a questio do indio e do escravo negro na civilizacio ocidental, bem como a da mulher na sociedade machista; do outro, a questio dos homossexuais, dos loucos © dos ecélogos, ¢ de todo ¢ qualquer outro grupo que se sinta agredido ou reprimido nas suas aspiragées de justi¢a econdmica, social ou politica. Tematizada e dramatizada pela prosa (de ficgio, ou talvez nio) brasileira atual, a questio das minorias aproveitou o canal convenientemente aberto pela prosa modernista e a dos ex- exilados, ¢ se deixou irrigar pelas aguas revoltas da subjetivi- dade. Ella ainda apresenta uma diferenga formal ¢ temitica que se deixa recobrir pela diferenca acima apresentada na sua dupta configuragio. A prosa que envolye a questo das minorias com vigéncia historica se apresenta sob a forma de texto memorialista, aparen- tando-se portanto a0 texto modemista, mas dele guardando distincia, pois a perspectiva historica ¢ outra, Como exemplo, Penso em Majra, de Darcy Ribeiro, que se abre inclusive pelo Prosa titessria atual no Brasil 4 mapa genealégico do indio, ou ainda em As parceiras, de Lya Luft, onde confessa a narradora/personagem: “E isso que co- nhego da histétia das minhas raizes. Uma familia de mulhe- res.” Penso também nos romances de Nélida Pifion e de Lygia Fagundes Telles. Lamento apenas que nao haja exemplo con- vincente de romance negro no presente momento. A prosa que envolve a questio das minorias com vigéncia atual se apresenta sob a forma aparentada 4 das autobiografias e, portanto, é mais préxima dos relatos dos ex-exilados. Como exemplo, penso em Sempreviva, de Anténio Callado, prosa onde se combinam de maneira harmoniosa a preocupagio guerrilhei- ra com a luta pela preservac3o do meio ambiente, penso no r0- mance de Joao Silvério Trevisan, Em nome do desejo, ou ainda nos relatos de Maura Lopes Cangado. No primeiro caso, trata-se de reescrever o passado da nado sob outro farol, iluminando a penumbra das situagdes indivi- duais, ou histérico-sociais, que eram relegadas a segundo plano por um processo civilizatério excludente; no segundo caso, trata-se de dar voz a uma subjetividade ameacada pelas diversas formas do autoritarismo castrador. Deixando de ser a origem presungosa de todos os discursos do saber, 0 intelectual € a figura mais questionada pela prosa dos iiltimos anos. A questio das minorias passa tanto por uma necessiria descentralizagio do poder quanto por uma contun- dente descentralizagio da fala do saber. © intelectual, tal qual se encontra nos melhores romances ¢ memédrias recentes, € aquele que, depois de saber o que sabe, deve saber o que o seu saber tecalca. A escrita @ muitas vezes a ocasifo para se articular uma lacuna no saber com o proprio saber, é a atengio dada 4 palavra do Outro. Diz Paulo Francis, lembrando-se certamente dos antigos anos “festivos”: “A cabeca se libertou das simplificagdes e paliativos. Examina e se auto-examina constantemente. E meu infemo e delicia, minha tnica justifi- cativa plausivel de alegar que evolui dos macacos. Aceito os riscos € incertezas desta liberdade, essentcialmente modesta, pois me acho disposto a aprender do que ou de quem me persuadir” [erifos do autor] 4a NAS MALHAS DA LETRA Saber € poder sto temas que afloram nos dois romances de Patlo Francis (Cabesa de papel ¢ Cabera de negro) © mais no O afeto que se encera, afloram no romance A festa, de Ivan An- gelo, ¢ no A semigo del rei, de Autan Dourado. Este uma trans- posigéo do mito de Pigmaliio pan os embates entre um inte~ lectual ¢ um chefe de governo Paralelamente a0 questionamento dos processos autoritirios de centralizagio do poder, ha um saudivel retorno da prosa de catéter regionalista, onde se percebem as injustigas que sio feitas em nome de um projeto de nacao unitiria, centrado no sul. Sio romances de grande vendagem e sucesso de ctitica, como os de Anténio Torres ¢ Mircio Souza, os ainda os de Benedicto Monteiro € 0 Satgento Getilic, de Joao Ubaldo. E penso também nos diversos movimentos regionais que, pre- nuncisdos pela idéia do separatismo europeu, encontram sua bandeira de Inta nas injusticas cometidas € pelos processos do que se convencionow chamar de dependéncia intema. Grandes nomes e grandes obras se encontiam fora do eixo Rio-Sio Paulo. Felizmente. {1984] Prosa literétia atual no Brasil “% O narrador pés-moderno Os contos de Edilberto Coutinho servem tanto para colocar de maneira exemplar como para discutir exaustivamente uma das questées bésicas sobre o namador na pés-modernidade. Quem narra uma historia é quem a experimenta, ou quem a vé? Ou seja: € aquele que narra ages a partir da experiéncia que tem delas, ou é aquele que narra agdes a partir de um conhecimen- to que passou a ter delas por té-las observado em outro? No primeiro caso, 0 marrador cransmite uma vivéncia; no segundo caso, ele passa uma informacio sobre outra pessoa Pode-se narrar uma agio de dentro dela, ou de fora dela. E insuficiente dizer que se trata de uma opgio. Em termos concre- tos: narro a experiéncia de jogador de futebol porque sou jo- gador de futebol; narro as experiéncias de um jogador de fu- tebol porque acostumei-~me a observa-to. No primeiro caso, a norrativa expressa a experigncia de ums acio; no outro, a cxperiéneia proporcionada por um olhar langado. Num caso, a apdo & a experigncia que se tem dela, @ & isso que empresa autenticidade 4 matéria que é nartada ¢ ao relato; no outro caso, é discutivel falar de autenticidade da experiéncia e do relato porque o que se transmite € uma informagio obtida a partir da observac3o de um terceiro. © que estd em questio é a nogie de autenticidade. $6 ¢ auténtico © gue eu narro a par tir do que experimento, ou pode ser auténtico 0 que eu narro © conhego por ter observado? Sera sempre o saber humano decorréncia da experiéneia concreta de uma agio, ou 0 saber podera existir de uma forma exierior a essa experiéncia concreta 4 NAS MALHAS DA LETRA de uma agdo? Um outro exemple palpivel: digo que € auténtica 3 narrativa de um incéndio feita por uma das vitimas, pergun- to sé nio é auténtica a narrativa do mesmo incéndio feita por alguém que esteve ali a observélo, Tento uma primeira hipotese de trabalho: o narrador pés- moderno é aquele que quer extrair a si da acio narrada, em atitade semelhante 4 de um repérter ou de um espectador. Fle narra a ag3o enquanto espeticulo a que assiste {liveralmente ou nao) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele mio narra enquanto atuante, ‘Trabalhando com o natrador que olha pata se informar (e nio com o que narra mergulhado na prépria experiéncia), a ficyio de Bdilberto Coutinho di um passo a mais no proceso de techara € distancamenta do narrador classico, segundo a carac- terizacio modelar que dele fez Walter Benjamin, ao tecer consideragdes sobre a obra de Nicolai Leskov. E o movimento de rechago e de distanciamento que toma o narrador pés-mo- derno Para Benjamin os seres humanos estio se privando hoje da “faculdade de intercambiar experiéncia”, isso porque “as agdes da experiéncia estio em baixa, e tudo indica que continuario caindg até que seu valor desapareca de todo”. A medida que a sociedade se modetniza, toma~se mais mais dificil o didlo- go enquanto troca de opinides sobre agdes que foram viven- ciadas, As pessoas j4 nfo conseguem hoje narrar o que experi- mentaram na propria pele. Dessa forma, Benjamin pode caracterizar ués estégios evo- lutivos por que passa a histéria do narrador. Primeiro estagio: © narrador clissico, cuja fungio é dar ao seu ouvinte a opor- tunidade de um intercimbio de experiéncia ((inico valorizado no ensaio); segundo: o nartador do romance, cuja fungio passou a set 2 de no mais poder falar de maneira exemplar ao seu Jeitor; terceito: o nasrador que € jornalista, ou seja, aquele que 86 transmite pelo narrar a informacio, visto que escreve nio Para narrar a a¢io da prépria experiéncia, mas o que aconteceu © nattader pés-moderno 4 com x ou y em tal lugat © a tal hora. Benjamin desvaloriza (o pés-moderno valoriza) o dltimo narrador. Para Benjamin, a narrativa nio deve estar “interestada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informacdo ou um relatério”. A narrativa € narrativa “porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois retiri-la dele”. No meio, fica 0 narrador do romance, que se quer impessoal e objetivo diante da coisa natrada, mas que, no fiindo, se confessa como Flaubert o fez de maneira paradigmatica; “Madame Bovary, c’est moi.” Retomemes: a coisa narrada é mergulhada na vida do nar rador e dali retirada; a coisa narrada é vista com objetividade pelo natrador, embora este confesse ta extraide da sua vi- véncia; a coisa narrada existe como puro em si, ela & informa- go, exterior a vida do narrador. No raciocinia de Benjamin, o principal eixo em toro do qual gira o “embelezamento” (¢ nio a decadéncia) da narrati- va clissica hoje @ a perda gradual ¢ constante da sua “dimensio utilitéria”. O narrador classico tem “senso pratico”, pretende ensinar algo. Quando o camponés sedentario ou o marinheito comerciante narram, respectivamente, tradi¢des da comunidade ‘ou viagens a0 estrangeiro, eles estéo sendo Gteis ao ouvinte, Diz Benjamin: “Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestdo pritica, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer ma- neira, 0 narrador € um homem que sabe dar conselhos.” E ar- remata: “© conselho tecido na substancia viva da experiéncia tem um nome: sabedoria."\ A informa¢io nio transmite essa sabedoria porque a acio natrada por ela nao foi tecida na substincia viva da existéncia do narrador.) —» Tento uma segunda hipotese de trabalho: o narrador pés- modemo € 0 que transmite uma “sabedoria” que é decorrén~ cia da observagio de uma vivéncia alheia a ele, visto que a agio que matta nio foi tecida ma substancia viva da sua exis- céncia, {Nesse sentido, ele & 0 puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma acio que, por nao ter o respaldo da vi- véncia, estatia desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhanca, que € produto da légica interna do relato. O 46 NAS MALHAS DA LETRA nartador pés-modemo sabe que o “real” ¢ @ “auténtico” sd construgées de linguagem. ) {A perda do carater utilitirio ¢ a subtragio do bom conse- Iho ¢ da sabedoria, caracteristicas do estagio presente da narra- tiva, nio sio vistas por Benjamin como sinais de um processo de decadéncia por que pasta a arte de narrar hoje, como sugeri- mos atris, 0 que o retira de imediato da categoria dos historia dores anacténicos ou catastréficos. Na escrita de Benjamin, a perda € as subtrages acima referidas so apontadas para que se saliente, por contraste, a “beleza” da narrativa clissica — a sua perehidade. © jogo bisico no raciocinio de Benjamin é a valorizagio do pleno a partir da constatago do que nele se esvai. E © incompleto — antes de ser inferior — & apenas me- nos belo ¢ mais problemético. As transformagdes por que passa 9 narrador sio concomitantes com “toda uma evolugio secular das forcas produtivas". Nao se trata, pois, de olher para tris para repetir 9 ontem hoje (seriamos talvez historiadores mais felizes, porque nos restringiriamos ao reino do belo), Trata-se antes de julgar belo o que foi e ainda o € — no caso, 0 marra~ dor classico —, ¢ de dar conta do que apareceu come proble- mitico ontem — o narrador do romance —, e que aparece ainda mais problemitico hoje — 0 narrador pés-moderno. } Aviso aos benjaminianos: estamos utilizando 0 conceito de” narrador num sentido mais amplo do que o proposto pelo f- l6sofo alemio. Reserva ele o conceito apenas para o que esta- mos chamando de natrador clissico.} Apoiando-nos na leitura de alguns contos de Edilberto, tentaremos comprovar as hipéteses de trabalho apreender 0 significado e a extensio dos problemas propostos. Tudo isso com o fim de apresentar subsidios para uma discussio ¢ futura tipologia do narrador pés-modemne. Dissemos antes: alguns contos, € sustentamos 0 corte. Caso contrario, haveria a posibilidade de embaralhar nosso designio, © natrador pis-moderno 7 pois a variedade dos nattadores que a ficgdo de EC apresenta é mais ampla do que a analisada. Citemos como exemplo 0 con- to “Mangas-de-jasmim™ (justamente apreciado por Jorge Ama- do). Ele foge ao narrar pés-modero e se aproxima da narrativa que reescreve as tradigées de uma comunidade, padendo ser classificado como narrativa de “reminiscéncia”, como quer Ben- jamin, ¢ que foi tipica do modernismo (Mario de Andrade, ‘José Lins, Guimaries Rosa etc.). A reminiscéncia € que “tece a rede que em lima instincia todas as historias constituem entre si", A nossa intencio hoje nao é a de dar uma pincelada a mais no “embelezamento” da narrativa clissica, trabalho ji feito com. brilho pot leitores brasileiros de Benjamin, como Davi Arrigucci Jc! e Ecléa Bosi.? A nossa idéia € a de comemplar com Ben- jamin o “Angelum Novus”, de Klee, tentando compreender a tazio por que as asas do anjo da histéria nio se fecham quan- do tomadas pela tempestade que é © progresso. Qu seja: tentar compreender o que é problemdatico na atualidade — histéria do véo humano na tempestade do progresso. No conto “Sangue na praca”, um jornalista brasileiro em visita 4 Espanha {e que é 0 narrador do conto) ¢ sua jovem companheira encontram~se numa plaza de foros com 9 roman- cista americano Ernest Hemingway. © jornalista brasileiro é também repérter e encontra-se com 0 romancista americano que também fora repdrter. Otima ocasiio para se tematizar o narrador clissico e dramatizar um “intercimbio de experién- cia”, Mas esse nao é © intento do marrador (c do relato). In- teressa-Ihe dramatizar outras questées. Apresenta a oscilacio entre duas profissSes (a de repérter e a de romancista} ¢ entre duas formas diferentes de produgio narrativa (a jomalistica e a literiria), Esse dilema € certamente nosso contemporaneo e, portanto, nao é gratuito. Como também nio o é, ainda no conto, 4 reaproximacio final e definitiva entre reporter € ro- maneista, entre produgao jornalistica e producio literaria | Enignta ¢ comentario. Sio Paulo, Companhia das Letras, 1987 2 Lembrangas de velhos. Sio Pauto, T. 5. Queirés, 1979, Em particular pp. 4229 48 NAS MALHAS 1A LETRA. Quem tentou embaralhar as duas coisas para Hemingway, sem @xito, foi a romancista Gertrude Stein (ao conto apresen- tada como “aquela mulher de Paris"). Informa Hemingway ao jornalista brasileiro que o entrevista: “Eu estava tentando ser um escritor ¢ ela [Gertrude] me disse praticamente para desistit. Afirmou que eu era ¢ que seria apenas um repérter.” O golpe, pelo visto, foi duro na época para o aspirante a ro- mancista, mas de curta duragio, porque logo ele descobre que nio havia nada de mau em ser repdrter-romancista, ou vice- versa. Conchui: “E foi escrevendo para jornais que realmente aprendi a ser escritor.” Interessa pouco agora vasculhar escritos ¢ biografias dos en- volvidos para indagar sobre a veracidade da situagio e do dié- logo. Estes se sustentam ao propor temas que transcendem as personalidades envolvidas. Contentemo-nos, pois, em apanha- los, situagio e didlogo, na area do conto e descobrit que, nio sem interesse, 0 conto se escreve paradoxalmente como uma... reportagem. Hemingway chegou 3 Espanha e, come sempre, desancou a imprensa, negando-se violentamente a dar entrevistas a0 denegrir pouco eticamente os colegas, © narrador no se in- timida. Vai a iuta com a sua companheita, de nome Clara. Parte da histéria do conto é a insisténcia do tepérter junto a Hemingway para obter uma entrevista, A insisténcia s6 @ que- brada por um outro incidente, téo jomalistico quanto o anterior: 9 toureiro foi atingido pelo touro e € retirado ferido da arena. Reportagem ou conto? Os dois certamente. Leiam, ainda, ‘outros textos de EC como “Eleitorado ou” e “Mulher na jo- gada”. No universo de Hemingway (conforme o conto) ¢ no de Edilbetto (de acordo com a caracteristica da produce) se impéem um desprestigio das chamadas formas romanescas (as que, no conto, seriam defendidas por Gertrude Stein) e um favorecimento das técnicas jornalisticas do narrar; ou melhor, impée-se a atitude jornalistica do narrador diante do persona- gem, do assunto e do texto. Est ali o narrador para informar © seu Ieitor do que acontece na plaza, Essa reviravolta estética nao é sem consequéncia para o tépico que queremos discutir, Visto que a figura do narrador passa a ser basicamente a de © narrator pds-moderno ay quem se interessa pelo outro (e nio por si) e se afirma pelo ofar que langa ao seu redor, acompanhando seres, fatos e in- cidentes (e nio por um olhar introspectivo que cata experién- cias vividas no passado) De maneira ainda simplificada, pode-se dizer que o narrador olha o outro para levi-lo a falar (entrevista), jd que ali nio es- t4 para falar das ages de sua experiéncia. Mas nenhuma escri- ta inocente. Como correlato 4 afirmagio anterior, acrescente- mos que, 20 dar fala 20 outro, acaba também por dar fala a si, s6 que de maneira indireta. A fala propria do narrador que se quer repérter é a fala por interposta pessoa. A oscilacio entre reporter € romancista, vivenciada sofridamente pelo persona- gem (Hemingway), é a mesma experimentada, s6 que em silén- cio, pelo narrador (brasileiro). Por que este no narra as coisas como sendo suas, ou scja, a partir da sua propria experiéncia? Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de EC, “Azeitona ¢ vinho”, Em rapidas linhas, eis o que acontece: um velho ¢ experiente homem do povoa- do (que @ 0 marrador do conto), sentado numa bodega, toma vinho ¢ olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como El Mudo), cercado de amigos, admiradores ¢ turistas ricos, Othan- do ¢ observando como um reporter diante do objeto da sua ma- téria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre a vida do outro, ou seja, © que acontece, aconteceu © deveria acontecer com 0 jovem e inexperiente toureiro, depositando nele as esperancas de todo 0 povoado. Os persomagens ¢ temas sao semelhantes aos do conto an- terior, € o que importa para n6s: a propria atitude do narrador é semelhante, embora ele, no segundo conto, j4 néo tenha mais como profissio o jornalismo, é alguém do povoado. O narrador tinha tudo pata ser o narrador elissico: como velho ¢ experiente, podia debrugar-se sobre as ages da sua vivéncia €, ¢m reminiscéncia, misturar a sua histéria com outras que convivem com ela na tradigio da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais novo ¢ se embriaga com vinho 50 NAS MALHAS DA LETRA a vida do outro. Permanece, pois, como valida ¢ como vérte~ bra da fico de EC uma forma precisa de nerrar, ainda que desta vez a forma jomalistica no seja coincidente com a pro- fissio do narrador (onde a autenticidade como respaldo para a verossimilhanga?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma visio do mundo, como preferimos, uma caracteristica do conto de EC que tanscende até mesmo as regras minimas de caracteriza¢io do narrador. A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes afirma que o essencial da ficgao de EC nio € a discussio sobre o narrador enquanto repérter (embora o possa set neste ou naquele conto), mas o essencial é algo de mais dificil apreensic, on seja, a propria arte do narrar hoje Por outro Jado, paralela a esta constatacio, surge a pergunta ja anunciada anceriormente ¢ estrategicamente abandonada: por que o narrador nfo narra sua experiéncia de vida? A his tétia de “Azeitona e vinho” narra agées enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela é basicamente a experiéncia do olhar langado ao outro. ‘Atando a constatacio 4 pergunta, vemos que o que esta em jogo mos contos de EC nio é tanto a trama global de cada conto (sempre é de facil comprecnsio), nem a caracterizagao e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o proté- tipo), mas algo de mais profundo que € 0 denso mistério que cerca a figura do narrador pés-modemo. © narrador se subteai da agio narrada (hd graus de intensidade na subtragio, como veremos ao ler “A lugar algum”) e, a0 fazé-lo, cria um espago para a ficcdo dramatizar a experiéncia de alguém que é obser- vado ¢ muitas vezes desprovido de palavra. Subtraindo-se 4 ago nartada pelo conto, o narrador identifica-se com um segundo observador — o leitor. Ambos se encontram privados da exposig¢io da propria experiéncia na ficcio € sto observadores atentos da experiéncia alheia, Na pobreza da experiéncia de ambos se revela a importincia do personagem na ficcao pés-modema; nartador e leitor se definem como espectadores de uma acio alheia que os empolga, cmociona, seduz ete. © narrader pis-raoderno 4 A maioria dos contos de Edilberto se recobrem ¢ se enri- quecem pelo cnigma que cerca a compreensio do olhar huma- no na civilizagio modema. Por que se olha? Para que se olha? Razio e finalidade do olhar langado ao outro nao se dio a primeira vista, porque se trata de um didlogo-em-literatura (isto é, expresso por palavra) que, paradoxalmente, fica aquém cow além das palavras. A ficgio existe para falar da incomunica- bilidade de experiéncias: a experiéncia do namador e a do per sonagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo tecido de uma relagio, relagio esta que se define pelo othar. Uma pomte, feita de palavras, envelve a experiéncia muda do olhar ¢ torna possivel a narrativa. No conto “Azeitona ¢ vinho”, insiste o natrador: “Pabli- to no sabe que © estou observando, naquele grupo.” E ainda: “Nao se lembrari de mim, mas talvez nao tenha esquecido as coisas de que Ihe falei.” Permanece a fixidez imperturbavel de um olhar que observa alguém, aquém ou além das palavras, no presente da bodega (de uma mesa observa-se a outra), ou no passado revivido pela lembranca (ainda 0 vejo, mas no pasado). Nao é importante a retribuicéo do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo narrador em que ele nao cobra lucro, apenas participacio, pois o lucro esti no proprio prazer que tem de olhar. Dou uma forga, diz o narrador. Senti firmeza, retruca © personagem, Ambos mudos. Nio hi mais o jogo do “bom conselho” entre experientes, mas 0 da admiragio do mais vetho. A narrativs pode expressar uma “sabedoria”, mas esta néo advém do narrador: é depreendida da agio daquele que € observado € no consegue mais narrar — 0 jovem. A sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido. H4 uma desva- lorizagio da aco em si. Fis nas suas linhas gerais a graca ¢ 0 sortilégio da experiéncia do nasrador que olha. © perigo no conto de EC nio sio as mordagas, mas as vendas, Como se o nacrador exigisse: Dei- xem-me othar para que vocé, leitor, também possa ver. © olhar tematizado pelo narrador de “Azeitona ¢ vinho” é um olhar de generosidade, de simpatia, amoroso até, que recobre o jovem Pablito, sem que o jovern se dé conta da da- 32 NAS MALHAS DA LETRA diva que lhe esta sendo oferecida. Mas, atengio!, 0 mais ex- periente nio tem conselho a dar, ¢ & por isso que nio pode visar lucro com o investimente do olhar. Nie deve cobrar, por assim dizer. Eis a razio para a briga entre Hemingway (observador e também homem da palavra) ¢ o toureire Do- minguin (observado e homem da agio): Nessa época Dominguin o chamava de Pai. Pap’. Agora dizia que o velho andava 2ureta. Pai pitado. Poucos dias depois pude mostrar a Clara uma entrevista em que Do- minguin contava: Eu era seu héspede em Cuba. Vieram uns jornalistas 2 casa dele, para entrevistar-me. [...] Quando uum joralista quis saber se era verdade que eu procurava os couselhes o grifo ¢ nosso} do dono da casa, para melhorar a minha arte, compreendi bem como pudera ter surgido 0 despropositado boato, s6 de ver o rosto dele. Pensei em dat uma resposta diplomitica, mas mudei de idéia ¢ falei com toda a franqueza: Nao creio, no ponto a que cheguei, precisar dos conselhos de ninguém em questio de tourada, © “filho” nio pode olhar submisso © rosto do “pai”, sob pena de destruir © mistério do investimento afetivo dado pelo olhar paterne. De nada adianta a diplomacia se o pacto for quebrado —— Dominguin € curto e grosso. O filho no pode reconhecer o pai enquanto fonte de consetho, ow reconhecer a dfvida que proporciona o lucro do mais velho, pois € ele préprio a fonte da sabedoria. Pai. Papa. Velho zureta. Pai pirado. Eis as metamorfoses do velho que quer usurpar valor de uma agio que nao é experimentada por ele, mas apenas observada, Subtraia-se pelo ofhar — eis 0 nico consglho que lhe pode dar o observado, se houver lugar para o didlogo. A vivéncia do mais experiente é de pouca valia. Primeira constatagio: a ag%0 pés-moderna & jovem, inexperiente, ex- clusiva ¢ privada da palavra — por isso tudo € que nao pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma agio que &, ao mesmo tempo, incomodamente auto-suficiente. O joven pode acertar errando, ou errar acertando. De nada vale o pa- © narnador pis-moderno 53 temalisme respansivel no direcionamento da conduta. A nio set que © patetnalismo se prive de patavras de conselho e seja um longo deslizar silencioso ¢ amoroso pelas alamedas do olhar. Caso o olhar queira ser recomhecide como conselho, surge a incomunicabilidade entre o mais experiente e o menos. A palavra j néo tem sentido porque jf nao existe mais o olhar que ela recobre, Desaparece a necessidade da narrativa. Existe, pesado, 0 siléncio, Para eviti-lo, 0 mais experiente deve sub- trairese para fazey valer, fazer brilhar o menos experiente. Por a experiéncia do mais experiente ser de merior valia nos tempos pos-modernos € que ¢le se subtrai, Por isso tudo também € que se tora praticamente impossivel hoje, numa narrativa, 0 cotejo de experigncias adultas e maduras sob a forma mitua de conselhos. Cotejg que seria semethante ao encontrado na narra tiva classica € que conduziria a uma sabedoria pritica de vida. Em virtade da inconunicabilidade da experiéncia entre gerarées diferentes, percebe-se como se tornou impossivel dar continui- dade linear a0 processo de aprimoramento do homem ¢ da so- ciedade. Por isso, aconselhar — ao contrario do que pensava Benjamin —— nig pode ser mais “fazer uma sugest3o sobre a continuagio de yma historia que esti sendo narrada. A hist6- ria n§o € mais visumbrada como tecendo uma continuidade entre a vivéncia do mais experiente ¢ a do menos, visto que 0 paternalismo € excluido como procesio conectivo entre gera- gdes. As narrativas hoje so, por defini¢io, quebradas. Sempre a recomegar. Essa & a ligio gue se depreende de todas as gran- des rebelides de menos experientes que abalaram a década de 60, a comecar pelo Free speech movement, cm Berkeley, ¢ indo até os événenients de mai, em Paris. No entanto, o elo de simpatia cimplice entre o mais expe- riente € © menag (sustentado pelo othar que € recoberto pela narrativa) asseguya o clima das agdes intercambiiveis. As agdes do homem naa gio diferentes em si de uma geracio para owtra, muda-se @ modo de encaté-las, de olhi-las. O que esti em jogo nio & o surgimento de um novo tipo de acao, intei- Tamente original, mas a maneira diferente de encarar. Pode-se encari-la com a sabedoria da experiéncia, ov com a sabedoria 4 NAS MALHAS DA LETRA da ingenuidade, Nao hi, pois, uma sabedoria vencedora, pni- vilegiada, embora haja uma que seja imperiosa. Hi um confli- to de sabedorias na arena da vida, como hi um conflito entre natrador € personagem na arena da narrativa. Como pensa € nos diz Octavio Paz: “La confianza en los poderes de la es- pontaneidad esti en proporcién inversa a la repugnancia fren- te a las constcucciones sistematicas. El descrédito del futuro y de sus paraisos geométricos en general.” Dai pode concluir: “En la sociedad postindustrial las luchas sociales no son el resultado de la oposicion entre trabajo y capital, sino que son conflictos de orden cultural, religioso ¢ psiquico.” © velho na bodega ja tinha passado por tudo pelo que passa o joven El Mudo, mas o que conta é 0 mesmo diferente pelo que 0 observador passa, que © observado experimenta na sua juventude de agora. A ago na juventude de ontem do ob- servador ¢ a agio na juventude de hoje do observado sio a mes- ma. Mas 0 modo de encara-las € afirma-las é diferente. De que valem as glérias épicas da narrativa de um velho diante do ardor lirico da experiéncia do mais jovem? — cis 0 proble- ma pés-moderno. Aqui se impde uma distinggo importante entre 0 narrador pdsemodemo € 0 seu contemporineo (em termos de Brasil), o narrador memoralista, visto que 0 texto de memérias tomou- se importantissime com o retorno dos exilados politicos. Re- ferimo-nos, & claro, 2 literatura inaugurada por Fernando Ga- beira com o livro © que & iss, companheiro?, onde o processo de envolvimento do mais experiente pelo menos se apresenta de forma oposta ao da narrativa pés-moderna, Na narrativa memorialista o mais experiente adota uma postura vencedora. Na narrativa memorialista, 0 narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto personage menos experiente, extrain- do da defasagem temporal e mesmo sentimental {no sentido que Jhe empresta Flaubert em “educagio sentimental”) a pes- sibilidade de um bom conselho em cima dos equivocos cometidos por ele mesmo quando jovem. Essa namativa wata de um pro- O nerrader pis-moderno 33 cesso de “amadurecimento” que se di de forma retilinea. Ji o narrador da ficgio pés-modema no quer enxergar a si ontem, mas quer observar 0 seu ontem no hoje de um jovem. Ele delega a um outro, jovem hoje como ele foi jovem ontem, a responsabilidade da agdo que ele observa. A experiéncia ingé- nua € espontinea de ontem do narrador continua a falar pela vivéncia semelhante mas diferente do jovem que ele observa, ¢ néo através de um amadurecimento sébio de hoje. Por isso, @ narrativa_memorialista 6 necessariamence hist6- rica (e nesse sentido € mais préxima das grandes conquistas da prosa modemnista), isto é, é uma visio do passado no presente, procurando camuflar o proceso de descontinuidade geracional com uma continuidade palavrosa ¢ racional de homem mais experiente, A ficgio pés-moderna, passando pela experiencia do narrador que se vé — ¢ nio se vé — a si ontem no jovem de hoje, ¢ primado do “agora” (Octavio Paz). Retomemos Benjamin. Diz ele: “Com a guerta mundial, tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos [0 grifo € nosso] do campo de batalha. néo mais ricos ¢ sim mais pobres de experiéncia comunicavel.” Por um desses finos jogos de ironia, quem fala no conto, o velho, nio narra a propria vida para o leitor. Importa apenas a juventude cora- josa do jovem que ele admira ¢ que € chamado sintomatica~ mente de El Mudo e que “mudo” fica durante todo 0 conto. Dar palavra ao olhar langado ao outro (30 menos experien- te, a Fl Mado) para que se possa narrar o que a palavra nao diz. H4 um ar de superioridade ferida, de narcisismo esquarte~ jado no narrador pés-moderno, impavide por ser ainda porta dor de palavra num mundo onde ela pouco conta, anacrénico por saber que o que a sua palavra pode narar como percurso de vida pouca utilidade tem. Por isso ¢ que olhar ¢ palavra se voltam para os que dela sio privados. A literatura pés-moderna existe para Glar da pobreza da experiéncia, dissemos, mas também da pobreza da palavra es- crita enquanto processo de comunicagio. Trata, pertanto, de um didlogo de surdos e mudos, ji que o que realmente vale 36 NAS MALHAS DS LETRA na relagio a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital (grifemos: vital), silenciosa, prazerosa ¢ secreta. ‘A resposta mais radical A pergunta “Por que se olha?" nos foi dada por Nathalie Sarraute: olha-se do mesmo modo como as plantas se voltam para o sol num movimento de tropismo. Luz ¢ calor — eis as formas de energia que o sol transmite is plantas, empinando-as, tonificando-as. Transposto para a expe- riéncia humana de que nos ocupamos, o tropismo seria uma ¢s- pécie de subconversa (“sous-conversation”, diz Sarraute) em que, contradicoriamente, 0 sol é 0 mais jovem, ¢ a planta, o mais experiente. A velha planta se sente atzaida pelo jovem sol sem que se evidenciem os motivos da subconversa. Nio se estranha, pois, que Edilberto tenha criado a sua ficg3o em cima dessa falta de evidéncia da razio e da finalidade do olhar. © conto diz que © narrador olha, © conto diz que o personagem é olhado. Mas ficam como enigma a razio ¢ a finalidade desse olhar. Em termos apocalipticos, olha-se para dat tazio ¢ finalidade A vida. De maneira sutil, Benjamin torna paralelo o embelezamento da narrativa classica com outro embelezamento: o do homem no leito de morte, © mesmo movimento que descreve 0 de- saparecimento gradual da narrativa classica serve também para descrever a exclusio da morte do mundo dos vivos hoje. A partic do século XIX, informa-nos Benjamin, evita-se o espe- téculo da morte. A exemplaridade que dé autoridade & narrativa clissica, traduzida pela sabedoria do conselho, encontwa a sua imagem ideal no espetaculo da morte humana. “Ora, é no momento da morte que o saber ¢ a sabedoria do homem ¢ sobretudo sua existéncia vivida — ¢ é dessa substancia que sao feitas as historias — assumem pela primeira vez uma for- ma transmissivel.” A morte projeta um halo de autoridade — “a autoridade que mesmo um pobre-diabo possui a0 morrer” — que esti na origem da narrativa classica. Morte ¢ narrativa cléssica cruzam caminho, abrindo espaco para uma concepe3o do devir humano em que a experiéncia da vida vivida é fechada em sua totalidade, ¢ & por isso que & exemplar. A nova geracio, aos ainda vivos, ¢ exemplo global ¢ imével da velha geragio. Ao jovem, o modelo e a possibili- © marrader pés-moderno 7 dade da c6pia morta. Um furioso iconoclast oporia ao espeti- culo da morte um grito lancinante da vida vivida no momento de viver. A exemplaridade do que ¢ incompleto. O coureiro na arena sendo atingido pelo touro. Ha — nao tenhamos divida — espetdcuio espeticulo, continua © joven iconoclasta, Hi um olhar camuflado na es- crita sobre o narrador de Benjamin que merece ser revelado ¢ que se assemefha ao olhar que estamos descrevendo, s6 que os movimentos dos olhares sio inversos./O olhar no raciocinio de Benjamin caminha para o leito da mérte, 0 luto, o sofrimen- to, a ligrima, e assim por diante, com todas as variantes do as- cetismo socratico/ 7O olhar pés-modemo (em nada camutflado, apenas enigmé- Co) olha nos olhos o sol. Volta-se para a luz, 0 prazer, a ale gria, o riso, € assim por diante, com todas as variantes do he- donismo dionisiaco/O espeticulo da vida hoje se contrapée ao espeticulo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, enere gia e potencial de uma experiéncia impossivel de ser fechada ina “saa totalidade ‘niortal, porque ela se abre no agora em_mil possibilidades. Todos os caminhos o caminho. O corpo que olha prazeroso (ji dissemos), olha prazerose um outro corpo ptazeroso (acrescentemos) em aio. “Viver & perigoso”, j4 disse Guimaries Rosa, Hi espeti— culo ¢ espeticulo, disse o iconoclasta, No leito de morte, exu- mac-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo de morrer, porque ele j@ € Reina dnica a imobilidade trangiiila do ho- mem no leito de morte, reino das “belles images”, para reto- mar a expressio de Simone de Beauvoir diante das gravuras fanebres dos livros de histéria, Ao contrario, no campo da vida exposta no momento de viver o que conta para o olhar é o movimento. Movimento de corpos que se deslocam com sen— sualidade e imaginagio, inventando agées silenciosas dentro do precario. Inventando 0 agora. Num conto pés-modemo, morte e amor s¢ encontram no meio da ponte da vida. A tinica pergunta que faz o narrador de “Ocorréncia na ponte”, diante da imagem da morte, “uma dama feia e triste, da cor da lama”, a Gnica pergunta que The 58 . NAS MALHAS DA LETRA faz: “Era possivel reinventar a vida para o rio ou para ela?” A resposta é também tnica: pelo desejo se reinventa a vida na morte, E naquele rosto de mulher, depois da copula, depois da morte, exprimia-se, dir-nos 0 nartador, "qualquer coisa como uma absurda esperanga”. © olhar humano pés-moderno € desejo ¢ palavra que ca- minham pela imobilidade, vontade que admira ¢ se retrai int- til, atragio por um corpo que, no entanto, se sente alheio 3 atragio, energia propria que se alimenta vicariamente de fonte alheia, Ele é 0 resultado critico da maioria das nossas horas de vida cotidiana. Os tempos pés-modernos séo duros e exigentes. Querem a agdo enquanto energia (dai o privilégio do jovem enquanto personagem, ¢ do esporte enquante tema). Esgotada esta, pas- sa atuance a ser espectador do outro que, semelhante a ele, cocupa 0 lugar que foi o seu. “Azeitona ¢ vinho”. E essa altima condigio de prazer vicétio, ao mesmo tempo pessoal e passivel de generalizagio, que alimenta a vida cotidiana atual e que EC dramatiza através do narrador que oiha. Ao dramatiz-lo na forma em que o faz, revela o que nele pode ser experiéncia auténtica: a passividade prazerosa ¢ o imobilismo critico. Sio cessas as posturas fundimentais do homem contemporineo, ainda € sempre mero espectador ou de agdes vividas ov de agdes ensajadas e representadas. Pelo olhar, homem atual e nazrador oscilam entre 9 prazer © a critica, guardando sempre a postura de quem, mesmo tendo se subtraido 4 acio, pensa e sente, emociona-se com © que nele resta de corpo e/o cabega. © espetéculo toma a acio representagao. Dessa forma, ele retira do campo semintico de “aio” © que existe de experién- cia, de vivéncia, para emprestarelhe © significado exclusive de imagem, concedendo a essa acao liberta da experiéncia condicio exemplar de um agora tonificante, embara desprovide de pala- vra. Luz, calor, movimento —- ttansmissio em massa. A expe- néncia do ver. Do observar. Se falta 4 agio representada 0 respaldo da experiéncia, esta, por sua vez, passa a ser vinculada narradar pés-tederna 39 ao olhar. A experiéncia do olhar. fo narrador que olha é a con- tradigio e a redengdo da palavra’na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa. ° “ebecéeulo torna a agdo representagio. Representacio nas suas variantes iddicas, como futebol, teatro, danga, masica popular etc.; e também mas suas variantes técnicas, como cine- ma, televisio, palavra impressa ctc. Os personagens observados, até entio chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representagio humana, exprimindo-se através de acdes ensaiadas, produto de uma arte, a atte de representar. Para falar das virias facetas dessa arte & que 0 narrador pés-modemo — ele mesmo detendo a arte da palavra escrita — existe. Ele narra agdes ensaiadas que existem no lugar (0 palco) e no tempo (0 da juventude) em que hes é permitido existir. © narrador tipico de EC, pelas razées que vimos expondo, vai encontrar na “sociedade do espetaculo” (para usar 9 cancei- to de Guy Debord) campo fértil para as suas investidas eriticas. Por ela é investido ¢ contra ela se investe. No conto “A lugar algum”, transcri¢ao ipsis litteris do script de um programa de televisio, em que ¢ entrevistado um jovem marginal, a realidade concreta do narrador é grau zero. Subtraiu-se totalmente. O narrador é todos ¢ qualquer um diante de um aparelho de te- levisio, Essa também — repitamos — é a condicio do leitor, pois qualquer texto é para todos e qualquer um. Em “A lugar algum”, © narrador é apenas aquele que repro- duz. As coisas se passam como se o narrador estivesse apertan- do © botio do canal de televisio para o leitor. Eu estou olhando, olhe vocé também para este programa, ¢ nao outro. Vale a pena. Vale a pena porque assistimos aos ultimos resquicios de uma imagem que ainda nio é ensaiada, onde a ago (0 crime) & respaldada pela experiéncia. A experiéncia de um jovem marginal na sociedade do espetacula. Para testemunhar do olhar e da sua experiéncia é que ain- da sobrevive a palavra escrita na sociedade pés-industrial. [1986] 60 NAS MALHAS DA LETRA Singular ¢ anénimo Para os mestrandos de Paris-lIf Ao contritio do que propée Roman Jakobson em esquema famoso € sempre citade, em discordancia com o que pode ca- ber na palavra “intransitiva” que Roland Barthes usou para defini-la, a linguagem poética existe em estado de continua travessia para o Outro. Ela nomeia 0 Ieitor, como o fanitico da alta-fidelidade indica o melhor lugar na sala para se apreciar convenientemente o som. “Se meu verso nfo dew certo, foi seu ouvido que entortou” — quem nos diz é Carlos Drummond de Andrade, Charles Baudelaire ja nomeava o seu leitor no preficio-poema as Flores do mal: “— Leitor hipécrita, — meu semelhance, — meu irmio!” T. S. Eliot, como se sabe, seguiu as pegadas de Baudelaire, recitando o verso em The Waste Land, © poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no en— tanto lugar para um destinatario que, apesar de ser sempre sin- gular, nio é pessoal porque necessariamente anénimo. Singu- lar e anénimo o leitor, ele no é todos como também nijo ¢ uma Gnica pessoa. O poema nio é um discurso em praca pa- blica para a masa indistinta, nem papo a dois confluente ¢ in- timo, apesar de ser linguagem em travessia — aclaremos. Paul Valéry disse preferir um leicor que Ié muiras vezes um poema a muitos leitores que o leriam uma 36 vez. Nada de elitismo ai, por favor. O poema nfo é ficil nem dificil, ele exige — como tudo o que, na aventura, precisa scr palmilhado passo a paso. Nio se avanga sem contar com o desconhecido € o obstéculo. A escalada da leitura. As exigéncias para a leitura sio as mais variadas e miltiplas, 0 poema que as nomeie com clareza e Singuier ¢ andhimo 6t destemor. Porque, nomeando-as, abre-se a linguagem para a configuracio do leicor. Ana Cristina César institui dois protocolos simuleineos e semelhantes para que o leitor atue com proveito mituo na cena da sua poesia. © primeiro protocolo se situa no nivel do conhecimento ¢ do reconhecimento que de sua obra estavam fazendo os compa- mheiros de gera¢io (que aparece sob a forma de um depoimen- to pessoal no livre Retrato de época). O segundo protocolo se enuncia no préprio corpo de seu livro de poemas A teus pés, quando o texto desalimenta (quer dizer: desestimula a progte- dir a leitura) o leitor, desalimenta e desmistifica os equivocos do que podemos chamar de leitor autoritario. E leitor autori tario © que enfrenta as exiggneias do pocma com idéias precon- cebidas ¢ globalizantes. Um poem exige pouco € muito: olhos abertos e, entre tantas outras coisas, paciéneia imaginacio. LEITURA DE VARA CURTA Em depoimento a Carlos Alberto Messeder Pereira, en- contrado em Retrato de époce, Ana Cristina no sé chama a aten¢do para duas linhas que constituem a sua poesia ¢ que nela se constituem, como ainda comenta o equivoco de leitu- ra que este caminho que se bifarca ia sendo produzido pelos seus pares. Cita o exemplo do poeta e critica Cacaso, amigo também, com quem mantinha discusses permanentes: +» uma vez, eu li [para Cacaso] um poema meu que eu ti- nha adorado fazer [...] € ¢ Cacaso olhou um olho comprido [...] leu esse poema e disse assim: “E muito bonito, mas nao se entende {...J 0 leitor est excluido.” Ai eu mostrei também © meu livro pro Cacaso [...] ¢ ele disse: “Legal, mas 0 melhor sio os diirios porque se entende... sio de comunicagio facil, falam do cotidiano.” a NAS MALHAS DA LETRA ‘Cacaso se enganava ao acreditar que num grupo de poemas (os que chamava de poems dificeis) estava “exclufdo o leitor”, enquanto no outro grupo, o de “comunicagio facil”, o leitor se aproximava do texto sem cansagos, entendendo-o, ja que no se sentia alijado do sett bojo. Num ¢€ noutro caso, o leitor esta, por assim dizer, imcluido. A linguagem poética nunca exclui o leitor. Com o seu depoi- mento, Ana Cristina parece apontar para Cacaso 0 fato de que — ele proprio, Cacaso — é que se excluia vokintariamente dos poemas do primeire grupo no movimento da sua leicura. As vezes 0 Ieiter nio é feito para certos poemas, assim como muitas vezes nic fomos feitas para quem, no entanto, queremos amar; “.,. foi sea ouvido que entortou”, ecoa © verse. A dicotomia facil e dificil (tio daninha nestes trépicos de sombra agua fresca) nio existe para quem tem a forga de so- brecarregar de significado a linguagem para que ela viaje (sig- nificativamente) em direcfo a0 outro, para que ela sempre se organize ¢ se bere pela dinamica da travessia. O importante, insistia Ana Cristina no depoimento, € que era “um poema que [ela] tinha adorado fazer”. A dicotomia citada sé existe (e sio eles que, em geral, a estabelecern — & claro) para os que abandonam a viagem, pulam do trem em movimento com medo de uma pedra que vislumbram no meio do caminho, ou simplesmente porque a curiosidade € curta. Ficou “dificil” con- tinuar no tem, péem-se as mochilas nas costas ¢ se dio por terminadas as “impressGes de viagem”, para usar a metifora tao reveladora de Heloisa Buarque de Holanda. ‘Um sertanejo diria — em ajuda de Ana Cristina —, diria apropriadamence que & arriscado cutucar hoi brabo com vara curta, Os chamados textos ficeis (os verdadeiros, faco a distingio) nao conseguem impulsionar a linguagem 20 infinito da travessia (seriam eles poemas?), reduzidos que sempre ficam a uma via~ gem cujo percurso é passageiro e batido, embora as vezes aci- dentade ¢ Gtil, como, por exemplo, quando se empenham num Proceso de conscientizagio. Trens suburbanos — se permitem. Singular ¢ andnino 6a DESESTIMULAR PARA MASSAGEAR Parece que esse desestimulo 3 leitura equivocada do poema, que se escuta na fala de Ana Cristina a Carlos Alberto, ¢ 0 melhor estimulo para que prossiga a leitura, que niio ¢ feita sé de sucessos (caso em que uma simples vista d’olhos pelo texto seria suficiente), mas quase sempre de fracassos mais ou menos confessados, Uma bela interpretagdo, vistosa como roupa do- mingueira, o é gracas 4 habilidade que teve o intérprete em camuflar os becos sem saida que, no entanto, apontaram. para © bom caminho finalmente trilhado. Assinalando 0 fracasso que existe na leitura, ainda que esta seja de um “bom leitor” (assim Ana o tratava) como Cacaso, © poeta di uma massagem revivificadora no processo de co- nhecimente da obra. A morte de todo e qualquer poema se encontra na esclerose otimista (justa, imediata, apressada, pouco importa a qualidade neste estigio do raciocinio) da sua com- preensio. A partir da compreensio — agora a justa — 0 poema dei- xa praticamente de existir (semanticamente) por algum tempo, pasando a circular no seu lugar o simulaxro menos ambiguo e mais rigoroso da sua interpretagéo. Que cada um de nés tenha a sinceridade de dizer quantos “poemas” lemos menos pelo ori- ginal do que pelo simulacro! Sera que s6 assassinando 0 poe- ma pelo simulacro é que um grupo de leitores pode estar de acordo quanto ao seu significado? Para que os leitores se con- greguem em tomo de algumas idéias comuns, é preciso que o poema desapareca, apagado pela imaginacio restritiva do in- térprete e dos seus seguidores. Uma leitura é sempre passagei- ra porque & abrangente mas incompleta. $6 quando se descobre a falicia do abrangente € que o poema renasce ¢ a comunida- de dos feicores é desfeita. 64 NAS MALHAS DA LETRA PESSOAL EF INTRANSFERIVEL “Fica dificil fazer Literatura tendo Gil como leitor” —— co- mecemos a ler um trecho no final da Conespondéncia completa, longo poema-carta de Jiilia, enderecado a “My dear” Dizendo que é dificil fazer literatura para Gil, 0 poema nos diz que ele nio existe para um leitor de nome proprio. O lei~ tor, quando nomeado pocticamente, € anénimo, é aquele a quem realmente foi enderecado o poema: “My dear” — hipé- crita, semelhante ¢ irmao. No poema citado, o leitor nao tem ¢ nio pode ter nome proprio. O leitor se di nome, isto @, per sonaliza a relagio poema-leitor, quando ele proprio, leitor, se alga ao nivel da produgao dita publica (papo, artigo, livro, sala de aula, conferéncia etc.), nomeando a si coma tal, assinando, responsabilizando-se. Quanto da assinatura do poeta nio se apega na assinatura do leitor (critico, professor, exegeta etc.). Ana Cristina sabe 0 perigo que existe para o poema ¢ para © seu poema quando o leitor chega a assinar 0 nome proprio dele, interrompendo num ponto-de-parada a travessia infinita a que o convidara ininterruptamente a linguagem poética. Tendo pasado pelos bancos das letras universitérias, Ana tinha mais agudamente do que a maioria dos companheiros de geracio a fobia da explicago otimista e vencedora, convin- cente ¢ légica, redonda ¢ massacrante, que existe em toda lei- tura bem-sucedida de um poema, pata retomar o jé assinalado acima, agora em outra perspectiva. Como uma assinatura, uma leitura nao é transferivel, sob o risco de falsificagio ou imitasdo barata. Vocé endossa uma leitura quando dela se apropria, ates- tando a sua qualidade ¢ fidelidade a0 original, assumindo a propriedade dela. Sera que se pode facilitar a Ieitura (como se ela nio fose tecida em cima de fracassos!) ao se apresentar didaticamente (como ensinar © fracasso?) 0 poema? — é a pergunta e as dé- vidas que nos ficam depois de uma aula, A melhor. Em didé- tica tradicional, 0 que s¢ pede — no tenhamos divida —- € 0 Singular ¢ andnimo 65 endosso do aluno 4 assinatura oral do professor. A didatica moderna é apenas mais iluséria, incorrendo na falicia do co- letivo, ao acreditar que se pode fazer uma leitura com a fita durex que emenda as impresses mais acertadas (de que ponto de vista?) © as mais dispares dos alunos. Nem um unico nem todos. Qualquer, desde que enfrente as exigéncias: singular e anénimo. Personificado passageiramente com o nome préprio, © leitor avanga um desejo, isto projeta-o como dominante e asfixiante do objeto, dai que a percepgio do processo de teitura por parte do poeta seja sempre vista como castragio no poten- cial das ambigiiidades, das dissonancias, dissonancias estas que alimentam a perenidade do poema. Quanto mais avanga 0 lei- tor, mais retrocede o poema. © poema, nessa marcha e contra marcha, passa a dar corpo ¢ voz ao desejo do outro, do seme- Inante e itmio, hipécrita. Como dar corpo € voz ao desejo de todos? Nao é tornar indiferenciado 0 que, por definicao, é singular? A leitura na sala de aula se alimenta da mesma ilusio que existe no mito da grande stor, Encaracio do indiferenciado desejo coletivo, ela no pode ser carne nem & corpo, volétil como a imagem que se desfaz ao passar as paginas de uma revista, a0 soar a hora do recreio. Ensina-se — isso sim — a estrueura de um poema, com quantos paus se Gz uma canoa, da mesma forma como sc des- vela o esqueleto de um corpo numa plancha anatémica, sem nunca se referir ao funcionamento dele/nosso, 4 sua miquina caprichosa. QUE FRATERNIDADE? QUE COMUNIDADE? Retomemos a leitura onde a deixamos: Fica dificil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lé para desvendar mistérios ¢ fiz perguntas capciosas, pensan- 66 NAS MALHAS DA LETRA do que cada verso oculta sintomas, segredos biogrificos. Nio perdoa o hermctismo. Nio se confessa os praprios sentimentos. J4 Mary me 18 toda como literatura puta, € nio entende as referéncias diretas, O terreno em que se alicerga 0 poema de Ana Cristina © da cumplicidade inimiga, das rela¢des ambivalentes na ter- nura: nem Gil nem Mary, os dois, em posigdes diametralmente opostas ¢ complementares. Cada um tem razio nio a tendo inteiramente. © equivoco deles é pensar que a rario propria (de cada um) é global, globalizante, totalitaria. O poema sem- pre escapa aos olhos assassinos de leitores asfixiantes, escapa com uma pirueta pelo avesso. Gil ¢ Mary se complementam desentendendo-se em prin- cipio sobre o que é a poesia, nos diz o poema, e completamos: se desentendem como novos Esai e Jacé, Somos todos “ir méaos", mas, como somos também “hipdcritas”, estaremos sem- pre criando uma comunidade (de “semelhantes") em cima — ¢ nio por cima — dos desentendimentos, dos desentendidos ¢ das ctaigdes. Que seria do poema se todos (@ fraternidade dos leitores} endossissemos uma dnica leitura para sempre? Havera forma mais profunda e radical de pensamento fascista? E este 0 pro- blema capital que tode poema coloca emblematicamente: como compor com o singular e andnimo o coletivo, sem se recorrer 4 uniformizacio, sem se valer da indiferenciagio? Como cons- ttuir uma comunidade onde reine a justiga sem amassa-la? Pa~ ta aal 6 preciso que apenas a imaginagio fique no lugar singu- lar ¢ anénimo do poder Alerta-nos Carlos Drummond na sua utopia de A rosa do pove: um jeito s6 de viver, mas nesse jeito a variedade, a multiplicidade toda que ha dentro de cada wn. Singatar ¢ andnina or A maneiza como Ana Cristina acredita poder lutar por “um jeito sé de vive”, mas abrindo-se ele para a “variedade” ¢ a “multiplicidade” do singular e anénimo, est no desejo de passar, pela linguagem poética, a temtura, No € 0 que o poema que estamos lendo tenta apaixonadamente (¢ em vio) passar, © mesmo poema que fala do desentendimento entre “irmios Nao estou conseguindo explicar minha ternura, minha ter- nura, entende? Quando o texto tematiza apenas os bons sentimentos, o poeta escapa pela tangente. Mas é preciso tentar. “Eis se ergue © vento!... Ha que tentar viverl"" — diz Paul Valéry na tradu- ¢do de Jorge Wanderley, As forcas se exaurem. O poema se escreve. A morte nio ¢ 0 cansago da forga? Nao ¢ 0 que nos diz Guimarles Rosa na metifora do pai-remador que ¢ levado a abandonar a instabilidade estivel da “terceira margem do rio” quando forgas nfo tem mais para temar contra-a-corren- te? Desce rio abaixo, imerte na canoa, até o mar: “Nossas vi~ das sio os trios / Que vio langar-se no mar / Que é o morrer” — prolonga Guimaries Rosa o espanhol Jorge Manrique na tradugaa de Rubem Amaral Jr. Quando as forgas se esgotam, esti finalmente escrico o pocma. Abandonado. Morto. Ainda que a “ternura” nio tenha sido de todo explicitada ao outro (ela o seré algum dia?). Ain- da que 2 fraternidade (pura, transparente, global, utépica) no tenha sido conseguida. No poema e na morte, o homem encon- tra a Gnica forma conhecida e justa de uma comunidade que respeita o singular ¢ © anénimo. A redengio de um ¢ da outra se encontram, respectivamente, no prazer fecundo da leitura no prazer fecundo da proctiagao. Ai estd toda a precariedade do permanente — a da poesia e a do ser humano. Poema (e leitura), morte (e vida) existem como bastio numa corrida de revezamento. Em travessia pelo possivel nos- so de todos os dias e todas as noites. 68 NAS MALHAS DA LETRA ro NEM DETETIVE NEM VESTAL - OS DOIS Gil quer desvendar © poema a partir do desejo-do-outro, vicaria € parasitariamente, e ndo compreendé-lo a partir do seu proprio desejo. Gosta de acumular sem gastar Gil € 0 leitor medroso de se afirmar, de quebrar a barreira que interdita 0 outro, de cransgredila prazerosamente em favor de uma comunhio/combustio. Tem medo de avangar como sua (na leitura) a obra do outro. Gil ¢ 0 leitor que se fixa na alteridade que separa o sujeito do objeto, guardando a distancia dita objetiva. Esquece-se de que, no ler, busca-se exatamente a maneira de se identificar com o outro, guardando no entanto os proprios sentimentos, 2 individualidade, a intimidade Por isso Gil se esconde na aba do autor, mascarando-se de detetive de histéria cm guadrinhos. Fica esquadrinhando todo canto e recanto do poema (com a lente na mio), 4 procura de uma pista que Ihe revele o autor, quando o problema da leitu- ra mio € o autor, mas ele prdprio, leitor, ¢ as melhores pistas para a resolucio desse mistério s6 podem estar é nele. Inape- lavelmente. Gil esta certo no principio (todo poema guarda sintomas e dados biograficos), mas errado na solugio: “lé para desvendar mistérios”. A poesia nio é mistério que se resolve com “per- guntas capciosas” feitas ao autor, nos diz Ana, Se a condigio da lcitura é a da alteridade transgredida, a sua esséncia sé. po- de ser o “hermetismo”. (Alijs, Gil “ndo perdoa o hermetismo”, relemos no poema.) E, em hermetisme, frisemos o lado fecha~ do, aprisionado, indevassivel, o lado vagio fechado ¢ lactado desse trem em constante travessia para o outro, Onde a chave? Vamos tomar chi das cinco e eu te conto minha grande histéria passional, que guardei a sete chaves. A cuuiosidade insistente ¢ daninha do ouvinte, que, a se- melhanga de Gil, the pergunta se se trata de “mais um roman 4 dé", a contadora de dramas pessoais se recothe: Singulat @ andnimo 69 Eu nem respondo. Nio sou dama nem mulher moderna. Para quem quiser entrar no segredo fechado a sete chaves do passional (que, no entanto, foi liberado pelo poema), é preciso incorpori-lo, apropriéto, diz 9 final do poema, $6 a0 que ocupa 0 espago do poema como seu, 36 a ele € que © poema “passa o ponto e as Iuvas”. O passional, no poema. nao é simples efeito de confissio. Se o fosse, diante dos con- fessiondrios, pelas igrejas do mundo, estariam se esparraman- do obras-primas. Para penetrar no poema (para ressuscité-lo no timule da escrita), @ preciso tomar posse dele, & preciso avangar a prd- pria forca transgressora de leitor, abrindo © caixio fechado a sete chaves, permitindo que a linguagem exista como é — em travessia para o outro. E preciso desavergonhadamente abrit brechas e janelas por onde deixar desejo e ar circularem de novo no recinto hermeticamente fechado ¢ até mesmo mofa- do pelo tempo, tempo que é a condi¢ao do perene. Nio custa insistir: quem se exercita na leitura nio é 0 autor (ele ja deu o que tinha de dar ma concretizagao do poc- ma}, mas 0 leitor, E este que di vida 4 morte, Gil se subtrai e. a0 se subtrair, nio encontra as boas pistas — nio as que re~ solvem 0 mistério do autor, pots mistério ndo ha, mas as que servem para abrir o hermético de cada um. O prazer fecundo da leitura. Gil “nfo se confessa os préprios sentimentos”, eis a razio do problema. Incégnita para si, busca mascarar 0 receio € a vergonha que tem de si com a caragem maldosa de interpelar © outro sobre a intimidade dele, com a curiosidade que esca~ rafuncha 03 sintomas ¢ a biografia do outro. Tudo o que esta aqui jé estd em vocé, s6 que vocé niio sabia, e & por isso que esta me lendo, senao nao precisaria me ler — Ihe diz Ana Cristina. Os sintomas ¢ os dados biogrdficos existem, mas — quando cm travessia pela Jinguagem poética — sio os de todo e qualquer, porque o poema consegne falar para o singular e o anénimo, desde que este tenha a coragem de ser leitor. De ser cidadio. a NAS MALHAS DA LETRA Ja Mary toma hermetismo ao pé da letra: 0 poema ¢ inde- vassivel a0 leitor coma uma doutrina esotérica. E preciso se iniciar diante do que, por mais que nos adentremos, nio perde a condicgao de enigma a desafiar infinitamente a curiosidade do homem. Como Gil, Mary esté certa no principio (0 poema certamente coloca exigéncias para os que dele querem fruir), mas errada na mancira como generaliza tal principio, como que mitificando © que existe de fiterdrio no poema (mas nio sé de literario vive um poema, poderia Ihe dizer um Gil mais hi- cido). Assim sendo, © poema s6 pode ser para ela “literatura pura”: “‘me [é toda como literatura pura”, diz o poema. Por isso é que Mary “nao entende as referéncias diretas” Sio estas que rompem o processo de mitificagio do literirio pelo literaria, rompem o circulo vicioso, corroendo-o, instau- rando a possibilidade, na leitura, de uma “comunhao”. As re- feréncias diretas, como vimos atris, tanto se referem ao autor quanto ao Ieitor; j4 a alteridade, na linguagem poética, existe para ser transgredida, para ser compreendida pela cumplicida- de na temura. Mary monumentaliza 0 poema, mascarando-se — a sua porta — de vestal ¢ guardii ¢, portanto, mantendo com rela gio a ele uma atitude subalterna, asséptica e resguardada. Mor- rera virgem como o monumento, Ao monumentalizar o poesia, resguarda-o também do comum dos mortais. Este passa por ele — nem mesmo ousa levantar os olhos — em atitude de reveréncia, respeita ¢ medo. Cabega baixa, sabe o leitor — a vestal ¢ guardid lhe significa isto — que, tocando o monumento (ou pisando a grama dos nossos jatdins ditos piblicos), 0 cidadio é passivel de mutta. Pela primeira vez infringi a regra de ouro ¢ voei pata cima sem medir mais as conseqiiéncias. [...] @ agora, nesta con- tramio. [1985] Singular € andnimo n O Evangelho segundo Joio CARACTERIZACAO A firia do corpo, de Joio Gilberto Noll, é um romance de acéo. Nao no sentido tradicional do termo: capa-e-espada, bandido-e-mocinha, policiais, espides, CIA e KGB, Nao se me- dem aqui a qualidade ¢ o valor da agio humana pelas forgas positivas do bem ¢ da lei, ou da civilizagio e do progresso his- torico. Forgas estas que sio, por sua vez, defendidas e impostas a ferro e fogo pelo herdi com o fim de se chegar a uma so- ciedade mais ordeira, mas também e sempre mais repressiva e, por isso, mais injusta. © personagem desse romance nio & mosqueteiro, nem John Wayne, nem Rambo. As forgas positivas desse romance — como jé diz 0 titulo — sio as da faria e do corpo. Nelas residem a coragem e 2 audicia do personagem e do projeto ficcional de Joio Gilber- to: numa sociedade repressiva ¢ conservadora, deixar 0 corpo rolar com raiva ¢ generosidade (isto 6: com paixio) pelos ca- minhos ¢ vielas de si mesmo, do Outro ¢ da cidade. Nao se dramatiza nessa prosa caudalosa o corpo racional, musculosa € arquiteturado do atleta ou do bailarino, dos sur fistas de ocasiio ou dos académicos das artes marciais — te- mas que a melhor literatura contemporinea tem explorado com humor e cinismo, jd que o resplendor da forga fisica é do grande agrado dos regimes totalitirios ¢ militares, Busby Ber- keley e Leni Riefenstahl nio se deram as maos cinematografi- 2 NAS MALHAS DA LETRA camente antes da Segunda Grande Guerra? No Brasil de hoje, bailarinos e ginastas no paleo: o Teatro Municipal tem a sua extensio no Maracanizinho, onde todos se dio as maos numa festa de corps ordeiros (liberados, dizem) ¢ de hora marcada. Profissionais da acio humana e da forca fisica de que ela de- pende. Russia, Estados Unidos e Brasil se abracam sem colo- rido ideolégico, a nao ser o tecnicolor global que repete © espetéculo para milhdes de brasileiros. A grande festa do Rio de Janeiro torna-se a cnorme festa do Brasil. Tempos marciais exigem dos cidadios disciplina e rigor: ritmo na tecnologia do corpo, eficiéncia na tecnologia da mi- quina. Confundem-se a satide da maquina do corpo com a satide do corpo da miquina. Eis de forma complementar a vi- sio tecnolégica do homem de que foi arauto emblemiatico o técnico Coutinho nos anos 70. As ginastas comunistas, os baila- rinos americanos (ou serio mussos? ou serio alemies?) ¢ a Rede Globo Iutam a favor de uma “arte maior” patrocinada pelas IBMs da vida, multinacionais que ultrapassam as arcaicas barrei- ras nacionais € as mapeadas diferengas ideolégicas, como é do gosto do Mério Vargas Llosa articulista politico. A Telé Santana e Dalal Achcar, a Gilberto Braga ¢ Romulo Arantes, juntem- se doses macigas de Rambo e de bom-mocismo televisivo, eis o Brasil-Ibope deste inicio dos anos 80. Academia de dan- gas em Ipanema, natago em clube, artes marciais no subiirbio, dente-de-leite no Flamengo e muito oper nos calgaddes. Va- mos nessa! Goebbels nao tiraria o revdlver para matar essa “arte maior” que se populariza pelo video e dia a dia ganha mais adeptes silenciosos, a tal ponto que o balé ja nao é visto como coisa de bicha. A fiiria do compe tira o revélver. A biissola das caminhadas em A fiiria de corpo nada tem a ver com o percurso quilometrado ¢ circular das maratonas promovidas pelo Jornal do Brasil, Sua bissola marca uma tnica Tota, um Gnico desvio, pois se trata de dessublimar o desejo que se recalcou por detras das aulas de danca e de natagao, de gindstica ¢ de musculagao, ou seja, por detras das atividades corporais coletivas feitas com regras e assepsia. O corpo que sua em A fiiria e que, sedento, pede um copo d’igua de bica, © Erangethe segundo Joie n gratis, em bares de Copacabana, nao teanspirou em vapores de sauna ou em macacdes de jogging. Sua gindstica foi outra: ele sua como dois corpos em orgia noite adentro: © coletivo entra pelos buracos misteriosas dos corpos em desafio e mio passa pelo ritmo de cor e salteado dos exercicios em aula. Nio passa pelo narcisismo, pelo culto da beleza fisica, pela sade ¢ pelo aprimoramento da raga; passa pela graga ¢ a raga do erotismo, pela fome brasiliensis ¢ pela nossa miséria larvar. Copo d’agua gratis no botequim. Por tudo isso, A fitria do corpo quer deixar o personagem abandonar a Cidade (um determinado e detinivel pais?) onde avassaladoramente se restringem as liberdades do individuo. A repressio ao potencial de gozo ¢ justificada pela melhoria so- cial oriunda de uma sociedade onde o progresso econémico é desequilibrado ¢ pela ordem que se serve da maquina buro- critica para catalogar as relagdes humanas, Esse romance fala, indiretamente, do nosso hoje ¢ da Polénia distante ¢ pexcebe a trama universal e sutil dos varios autoritarismos militares no poder. Todos cles finalmente irmanados no cume dos dois blo- cos hegeménicos ¢ nas cordilheiras do Terceiro Mundo, onde se danga ao ritmo das aulas de musculagio. ROMANCE DE CONVERTIDO A firia do corpo & um romance cristio. Diremos melhor: um romance de convertido. Nio € a-toa que © seu narrador/ personagem nio tem pasado, nome ¢ profissio. Diz © texto: “Me chame como quiser, fui consagrado 2 Jodo Evangelista... “Bis Joao, o Evangelista, escritor dos novos tempos, isto é 0 que marca o que veio antes ¢ 0 gue vird depois, 0 antes como cinzas © pd e 0 depois como profecia exeqitivel. O Evangelista canoniza e libera, divulga 0 corpo divino na sua eternidade. Fala da instauracio de Deus no homem e do sacrificio divino- humano. Fala da violéncia ¢ do sagrado. "4 NAS MALHAS DA LETRA A op¢io nao-racional, espiritual, pelo corpo cm firia ¢ pelo desejo de um desejo como caminho espiritual ja foi fala- da por Mutilo Mendes depois do seu encontro com Jackson de Figueiredo na década de 30. Foram falados ¢ ficaram em si- léncio, em siléncio relativo, pois eles est3o no melhor da obra de Jorge de Lima e no que os romances de Clarice Lispector ram de genial. Em siléncio relativo, pois eles pespontam no inicio da poesia de Ferreira Gullar (penso, em particular, nos vigorosos € pouco lides poemas em prosa de A luta corporal, como “Carta ao inventor da roda”), no Pan-América, romance de José Agrippino de Paula (que recebeu bela leitura de Evelina Hoisel em © supersaos) e em Um copo de célera, de Raduan Nassar. A firia do corpo proporciona também a oportunidade para se levantarem os irmios desta familia espititual e artistica, bra~ sileira — os “Inmios do Reino”. Autores que agridem a socie- dade de consumo capitalista com 0 punho aberto da liberdade individual. Avtores que questionam a legitimidade da andlise da histéria pelo legado da fé. Autores que acreditam na transi- toriedade das solugdes econémicas para os grandes problemas do homem ¢ fincam pé na transcendéncia do projeto humano preso-is ¢ livre-das, vicissitudes do aqui e agora. Os Irmios do Reino ensejam uma critica ao marxismo que se daria por um ligeiro toque anarquico e pelo definitivo primado da eter- nidade sobre 9 temporal, para ficar com uma dicotomia cara a Mutilo Mendes. Diz ele, em negligenciado aforismo: “O co- munismo revolucionério com relagio a0 capitalismo e reacio- nario com relago ao ctistianismo.” A fecha do tempo © da historia existe para ser redimensionada pelos valores da f € do etemo, da salvagio, pelo eterno retorno apocaliptico. Esses textos questionam portanto os bons sentimentos da religiao, bons sentimentos que apenas tomam acessivel a Igreja 3 bur guesia, ¢ questionam ainda a massificagio do homem dada pelas falsas revolugées libertarias. A liberdade individual € uma forga motriz (a “faria do corpo”) que nio pode ser negligenciada pelos verdadeiros mo- vimentos revolucionatios. $6 0 € pelos governos posteriores 4 © Evangello segundo Joao 6 revolugio, que terminam pela burocratizagio enquamto forma de coergio do homem pelo homem. Guarda-se a liberdade in- dividual como se guarda uma ceia para convivas famintos. Diz © poeta Murilo: “Pelos cinco sentidos também se chega a Deus.” A palavra do convertido é profética e marca necessariamenite © desvio de uma teligiio que se estiola em catequismo, bom comportamento, pieguismo e, sobretudo, abstragdes. O con- vertido moi no aspero e no concreto. Exige a agio na religiio, © corpo no sacrificio/prazer do cotidiano. Ele desespiritualiza 9 discurso da religiio bem-pensance pelo desvio do desejo, dos cinco sentides, para melhor se chegar 20 contato com o divino. O convertido — como o santo € o mistico — exige ali, na bucha, a forga-fiiria do corpo-ardente. Ele nio se con- tenta com os albergues do tempo, com as esmolas para a co- mida, com o INPS para a saiide. Foge de cudo isso em busca da Casa e do Pai. © fim do longo caminho da vida para Joio nJo a lei do bem ou a ordem do progtesso. A vida apaixo- nadamente vivida desemboca inexoravelmente na Casa do Pai. © convertido retraga sempre os caminhos do Filho Prédigo. UMA GRAFIA POROSA Para possvir a “Nova Palavea”, 6 preciso abandonar antes uma relago racional ¢ analitica com a Hinguagem: “Afrodite responde que ela ji desaprendeu o que seja adjetivo, que pare uma palavra ser palavra € preciso que ela tenha submergido na merda destilado finos ficores, que nio tem essa de ficar cha- mando a palavra de adjetivo ou de verbo.” Afrodite, como a Jandira de Murilo Mendes ou a Beatriz de Dante, é 0 princt- Pio eo fim das coisas na terra, € a musa-de-passagem que abre caminho no presente para a comunhio do homem com Deus. Afrodite é pois altar © palavra, lugar do rito ¢ do amor. E dela que vem 2 palavra verdadeira, impregnada de Vida, cri- tica de toda visio analitica e fristica da lingua, 16 NAS MALHAS DA LETRA Para escritores como foio Gilberto uma frase nio € com- posta. Ela poreja. Gilberto-Evangelista se situa aos antipodas de um projeto construtivista de arte. A frase sai aos borbotdes, pois ela € 0 ser do homem que fala. A frase surge das instincias do desejo e da afirmagio individual com vistas a0 coletivo. EB comunhio com 0 outro ¢ celebragio do divine sobre a terra. Articula o real na sua essencialidade. Diz o romance: “o que Afrodite diz séo palavras, sio sons que fandem sua existéncia de tudo, as népcias de Afrodite com o mundo conduzem 4 eterna celebracio”. Tal & a palavsa do convertido, ou dos que renascem, para usar a expressio de Noll. Para o convertido existem apenas duas categorias de homem (de linguagem, de escritor): “os mortos-vivos € os que renascem”. Aqueles usam palavras mortas © ocas de sentido, tipo conversa-vai, conversa-vem, uma pala~ vra tio desprovida de significado que, a ela em sua ridiculez, & preferivel o siléncio. Os que renascem exprimem-se pela pa lavra que é pensamento bruto, suor, leite, esperma — “que para a palavea renascer tem que se reencarnar no seio que a gerou”. A palavra verdadeira encontra o seu metro no seio de Atrodite. Prazer e alimento, excremento. Essa Hinguagem inchada e dura do convertide {inchado ¢ duro, como se diz do pénis quando descobre sua outra ut dade, diante do objeto de desejo} busca em A fiiria do corpo uma grafia porosa. (Nao confundir com pornografia, porno- chanchada, ou movimento porné em poesia.) A palavra se submerge na merda e no suor para encantar-se em esperma, para abrir-se em oferenda 20 outre. Os buracos do corpo (da palavea) viabilizam a saida dos excrementos que constituem o solo concreto da realizacio erdtica. Do pénis saem 0 mijo € 0 esperma: eis também a con- digio ambigua da palavra viva: da boca saem as palavras e 0 cuspe que lubrifica, Exctemento ¢ palavra-social vive do mesmo manancial corpéreo. O corpo é util como a maquina nio o @, porque ele € 0 lugar da Vida que renasce a cada mi- nuto ¢ da Palavra que a celebra. A palavra se cola i vida e 4 aco. A grafia porosa ¢ a representag3o mais audaciosa de um © Brangethe segunde Jodo n corpo que € excremento, esperma ¢ palavra, que € vida ¢ celebragio da vida, que é busca ¢ entrega sem limites. Drama e linguagem se casam no livro de Joo Gilberto como a¢des idénticas. Viver-escrever. Escrevivendo, como diz Jomard Muniz de Britto 4 no Recife. © erotismo repousa no poro do corpo: merda ¢ palavra, Uma grafia ficcional porosa que, pelo seu angustioso percurso sexual e pelo seu borbulhar andrquico- religioso, pode lembrar uma escrita surrealista. (1982 78 NAS MALHAS DA LETRA H O dentro do dentro do dentro Homenagem a Telé Porto Ancona Lopez Em 1924 uma caravana de paulistas, composta de jovens modernis- tas ¢ gente da sociedad, excursiona pele interior de Minas, em com- panhia do poets suizo Blaise Cendras, que entio nos visitava, Des- ssa viagem nos dé conta Onwnld de Andrade no “Roteino das Minas” (in Pau Brasil, 1925). Mania de Andrade, ainda em 24, publicos uma anica da viagem na revista América Brasileira, Dela exteat- mos este outeo roteiro, QUELLE MERVEILLE! © trem engasga Da um arranco Todos sobem © em vai Que negros mais diversos! Cabindas, monjolos, minas... Espero o “Quelle merveille!” Onde estar’ © Cendrars? ZEBU Colinas mansas Terra fraca de mau capim S6 zebu mesmo © dentro do dentro do dentro Bt INGAIA CIENCIA E imaginar que se um naturalista por aqui viajasse estragaria estes verdes naturais com os seus nomes gregos e latinos... INTERIOR Na cidade morta © deserto modorra a grande igreja eleva as torres curtas. Nada que ver por fora. SECULO 18 Naquele tempo os paulistas nao pensavant no dia seguinte. SEU SENNA - I “Posso escrever-the o nome com um ene $6, seu Senna?”, Que maravilha! Seu Senna tem 56 crés dentes espacados na frente. Que nem sio dele. So de ouro. Quando seu Senne ri fica mineiro. SEU SENNA - IE Tem um nso que € a matriz de Sao Jodo d'el Rei. Parece nave escura NAS MALHAS DA LETRA | { com 0 altar-mor e dois altares lacerais em talha dourada. SEU SENNA - II Mas © Osvardo (depois do manifesto pau-brasil assim chamado) jura que jamais tivera a intencio de abandonar Paris para vir encontrar 0 Senna em Sio Joio d'el Rei. JANTA © trem para em Gonsalves Ferreira Demorario um pouco mais a partida para que jantemos sossegados. PRIMEIRO TURISTA “Que é do Gofedo?” “De certo ja subiu a ladeira.” (Ele nfo sabe quem tem a chave da igreja. Fui-lhe atras.) “Passou por aqui um mogo de Sao Paulo? Um moco bem vestide, othando muito sério?” CENDRARS Cendrars vem ter comigo espantado. “Imagine, Mario! paramos sO para entregar uma carta! Quelle merveille!” O dentro do dentro do dente a3 a PARA QUE OU POR QUE Mas para que continuar? Tudo esti na aventura do come¢o Jh me cacereia esta viagem No entanto ao partir Cendrars, Noné e eu cantévamos Ardéncias do principiar! NAS MALHAS DA LETRA Fechado para balango (SESSENTA ANOS DE MODERNISMO) Parece-me que, com o excelente trabalho de Joao Alexan- dre Barbosa, “A modemidade no romance”,! dio-se finalmente por encerrados os sucessivos ciclos das apreciagées criticas do modernismo brasileiro. Sua andlise da ficcio modernista, como Jentamente procurare! demonstrar, estabelece as regras para a organizacao de um terceiro e ultimo ciclo de interpretagdes do movimento que neste ano de 1982 comemora o seu sexagé- simo aniversario. Pergunta ele, hoje, quais sdo os textos moder- nistas (em particular: quais os romances) que teriam sido ver- dadeiramente modernos. Busca ele, pois, operar dentro dessa “especificagao essencial” uma apreciagio contundente do ro- mance brasileiro posterior ao ano de 1922. Essa especificagio — a modemidade — é uma categoria de interpretagio com cariter universal, e € ela que permite a claboragao de uma derradeira e radical triagem no imenso acervo da produgio ficcional modernista. Depois da passagem deste novo furacio critico, agora soprado dos citocentos e da Europa, restam poucos figurantes no palco verde ¢ amarelo para contar a “hist6ria’. Sio quatro os romancistas que con- seguem ficar em pé (Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Graciliano Ramos e Guimaries Rosa) ¢, com muito boa von- tade, percebe-se no fundo do palco um outro bastante ferido, | Estas consideragGes criticas foram inspiradas pelo ensaio acima mencionado, lido em 1982 ma 14 Bienal Nestlé de Literatura Brasileira ¢ que se encontra publicado em © livre do semindrio (Sao Paulo, L R Editores Ltda, 1983). Peshedo para baleazo 85 Clarice Lispector. Todos eles tam apenas um precursor comum, Machado de Assis, que para Joio Alexandre ilumina solitaria- mente os Gltimos cem anos do romance brasileiro. Discinguis é a base da reflexdo critica. Discingue-se para se poder pesar elementos diferentes, para melhor avalii-los, ou seja para separat 0 joio do trigo. A medida que o modernis- mo foi encontrandg os seus inventores ¢ fabrcantes, os seus intérpretes ¢ 05 seus caminhos histéricos, sucessivas distingdes eram feitas, criando desastrosos equivocos ¢ gerando satisfatorias certezas. Envolto por aqueles equivocos ¢ por estas certezas, hoje 0 todo da produgio modernista nos chega como um ob- jeto cujo acabamento final esti sendo dado por Joio Alexandre. Se esse objeto ainda nfo tem a forma fixa e a nitidez de uma concha cujo marulho aprisionado seduz os esctudiosos atuais, é pelo menos um prosaico ¢ convincente novelo, cujos fios per deram embaragos e nés, fios que, cuidadosamente emendados pot mios adesteadas, se aquietam provisoriamente sob a forma circular ¢ palpavel que Ihe foram emprestando. Retracemos os és ciclos das interpretagdes do modernismo, nao s6 procurando comentd-las da nossa perspectiva de hoje, como ainda deixando irromper nas nossas digressdes a forca do romance modernista ¢ as aventuras dos intelectuais brasi- leiros contemporaneos. No percurso deste périplo 3s avessas, tentaremos ir elaborando uma questio delicada porque impic- dosa. Chegado é 0 momento de colocd-la. Nao se pode con- tnuar soprando as velas de um bolo — ontem com cingiienta ¢ hoje com sessenta — ¢ acreditar que se esté comemorando © batismo de um bebé. A questio é a seguinte: de que maneira a estética do romance modemista gera hoje, para o jover es- critor brasileiro, armadilhas artisticas ¢ ideoliigicas de que ele deve se liberar, para que corte de uma vez por todas 0 cordio ambilical que ainda o prenderia a esses “mestres do pasado”, pata usar a gloriosa expressio de Mario de Andrade em con- texto passado ¢ semelhante. Pensamos assim porque o projeto basico do modernismo — que era o da atualizagio da nossa arte através de uma escrita de vanguarda e o da modernizagio da nossa sociedade através de um governo revolucionirio ¢ 86 NAS MALHAS DA LETRA autoritario — ja foi executado, ainda que discordemos da ma- neica como a industrializacao foi implantada entre nés. Acabou se concretizando através da opgio pelo capitalismo periférico ¢ selvagem, abafando outras opgdes sécio-econdmicas dentro de semelhante projeto de progresso, Comecemos pelo primeiro ciclo, ‘A pocira da agitagio modemista nem tinha se assentado, ¢ jé se manifestavam os seus contestadores mais ferozes, tendo por base o Rio de Janeiro e as suas recém-criadas editoras. A contestacao pela primeira vez nao eta gratuita. Anteriormente, ctiticava-se 0 modernismo a partir dos valores do passado que tinham sido repudiados por ele, on dos clichés académicos de que ele fazia galhofa; agora, a contestagio vem de um grupo coeso que opunha ao niilismo de 22 uma perspectiva fututa ¢ esperancosa para o pais e as letras. Qualquer coisa como a es- trada Iimpida ¢ clara que se descortinava no fim dos filmes de Carlitos. No caminho iluminado pela espetanga, entroncavam- se a fé inabalavel na modernizagio da sociedade brasileira com a emergéncia de um periodo revolucionirio violento, de que 36 poderia dar conta — no campo das artes — 0 romance, Ele- vado a género nobre e atual, 0 romance atrai a todos € parti- cipa da inquietagio politica e social. Confessa Octivio de Faria em 1936: “... minha impressio & que 0 nosso século, se vier a set chamado de alguma coisa, no sera nem o século do cine ima, [...] nem o do ridio, [...] mas 0 século do romance, por que na verdade nada mais do que ele exprime o que temos de maior e de melhor”. Os diversos colaboradores do mamero 4 da revista Lantema Verde (luz e esperanga, brinquemos), publicado em 1936, “che- yam a conclusio — como nos diz Roselis Oliveira de Napoli -— de que 0 modernismo & uma fase ultrapassada ¢ que eles se encontram em novo periods literirio, com caracteristicas pré- prias”. Tristio de Ataide, com o seu colega Octavio de Faria, decreta: “O modernismo morreu”, e 0 romancista José Lins do Rego traduz o pensamento de todo um expressive grupo de intelectuais: “Para nés do Recife, essa “Semana de Arte Moderna’ nao existiu.” Fechade para balanjo 87 E sem davida contra eles ¢ outros mais que Mario de An- dade despejava o sev sarcasmo na célebre conferéncia sobre 0 miodemismo, proferida em 1942 na Casa do Estudante do Bra- sil Para Mario, 9 movimento modemista eta uma “forga fatal”, € se entregava em seguida a ironia: “JA um critico de senso- comum afirmou que tudo quanto fez o movimento modernis- ta, far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Nio conheco lapatissada mais graciosa, Porque tudo isso que se Garia, mes- mo sem o movimento modernista, seria pura ¢ simplesmen- te.., © movimento modemista.” Alertando para a “forga fatal” que eta o movimento, Mario na pritica falava de outro dado importante para nés até hoje: o de o movimento ser semelhante a um bicho-papio. Tudo que era feito no seu nome e até mesmo contra os seus nomes ¢ ideais entrava no seu elastico papo. Ao contrario da maioria das revistas de direita que conhe- cemos, a citada Laniema Verde abriga generosamente em suas paginas autores de esquerda, ainda que poucos. A generosidade advém de um egoismo maior de ambas as partes, pois traduz uma atitude comum que une os intelectuais de direita ¢ de es- querda naquele momento decisivo da historia brasileira: o repa- dio 4 postura liberal cléssica, caracterizada entio como oportu- nista e altamente conservadora, contraria portanto aos principios tevoluciondrios de ambos os grupos.? O recém-convertido 4 fé cristi, Murilo Mendes, condenando © “ceticismo” ¢ 2 “mole- za” como valores que no devem mais servir de inspiragio para ? Antonio Candido, com acuidade autobiogrifica, centou mostrar como a linha demarcatoria entre revolucionarios ¢ conservadores na década de 30 era relativamente apagada. E dessa forma que, arqueologicariente, explica 0 balancez (a expressio & dele) do destino das geragdes no Brasil. Muitos da linha de frente esquerdista depois de 1964 eram ex-integnilistas. Diz Candido no prefacio a Raizes de Brasit: “Caberia aqui, alias, uma reflexto deszpaixo- nada sobre esses adversicios da mesma gerazio, em geral integralistas. Apesar da estima pessoal que tinhamos eventualmente por alguns deles, nds os re- putivamos representantes de uma filosofia politica ¢ social pemiciosa, sendo, come era, manifesta¢io local do fascismo. No entanto, 2 distincia mostra que 0 integratismo foi, para virios jovens, mais do que um fanatismo ¢ uma 88 NAS MALHAS DA LETRA a nossa juventude, conclui de maneira dogmatica: “E uma mocidade que se orienta para 0 comunismo ou para 0 cataii~ cismo, mas que nao quer saber do liberalismo.” Jorge Amado, no campo oposto, pontifica: “Hoje a situagio ¢ de tal forma tragica que aquele que nio csta de um lado esté necessariamente do outro. [...] O que nfo se admite sio os que querem agradar a todo mundo, a Deus ¢ a0 Diabo, colocando-se na cémica posigio de romancistas puros ¢ sem cor politica.” Com o pano de fundo das grandes revoltas ideoldgicas que dividem o pais e que antecedem 4 Segunda Grande Guerra Mundial, 0 modernismo de 22 é enterrado em 1936 ao repicar de sinos maniqueus (nitidez na oposicio de fuz e sombra, de Deus € 0 Diabo, de catolicismo ¢ comunismo). As vozes dos sinos guerreiros tracam © perfil de um intelectual intolerante, de feigio totalitiria e bem pouco democritico nas suas intengdes revolucionirias, pois deseja modernizar o Brasil e atmalizar a sua arte pela destruigao do seu oposto. Qualquer coisa como Abel e Caim de metralhadora na mio, frente a0 Deus sanguind- tio da histéria. Liberalismo ¢ Repiblica Velha eram dados como sindnimos ¢ se rendiam ante as forgas mais atuais do catolicismo de feigio imegralisa e do comunismo com roupagem stalinista. Nesse funeral — que é também batismo do novo mavi- mento, o “pés-modernismo”, como o denominam Tristio de Ataide © Octavio de Faria —, nessa festa ambivalente, tradicio- nais inimigos se congratulam e ocupam as paginas de uma mesma revista ao nomear um inimigo comum (0 liberalism clissico), antes que se digladiem na arena dos anos 30. Como num duelo romintico, neste néimero 4 da Lantema Verde, sinto- maticamente organizado ¢ publicado em 1936, os intelectuais de esquerda e de direita apertam as mios ¢ se distanciam con- tando os passos. Aguarda-Ihes uma surpresa maior. forma de resisténcia reacionéria. Foi um tipo de interesse fecundo pelas coisas brasileiras, uma tentativa de substituir a phtibanda liberaléide por algo mais vivo. Isso explica o niimero de integnlistas que foram transitando Pate posicdes de esquerda |...” Feckado pare balance 89 Mal podiam os dois imaginar que Anténio das Mortes,? jovem tenentista, duplamente vitorioso cm 1930 ¢ 1932 ¢ com ‘outeas vitorias menos festejadas pela freme — espreita os dois contendores na moita do finguajar pseudodemocratico ¢ elei- toreiro, preparanda o grande golpe de 1937, que o manterd s6 na arena politica brasileira, Vé 0 aperto de mio dibio e revo- lucionario do nove Deus, que tinha matado os beatos igno- rantes, e do novo Diabo, que tinha incorporado a rebeldia dos cangaceiros 3 causa da revolug3o comunista, ¢ com a ajuda dos cautelosos mineitos faz “a revolugio antes que 0 pove a faca”, para utilizar a frase do ex-presidente de Minas, Antonio Carlos. Os tenentes tinham o sentido do poder, ¢ os minciros tinham 0 da planificacio pelo Estado. O casamento de Gettilio com Francisco Campos é 0 enlace da forga com a burocracia para o controle da populagao em um regime ditatorial. Os te- nentes tinham © sentido do govemo pela hierarquia, e os minei- ros tinham o do escalonamento civil burgués. Tradicéo militar ¢ sociedade tradicional apertavam as mJos e agradeciam a An- ténio das Mortes o seu duplo crime. E tocam a trabalhar na tarefa de construgio do Estado Novo. Nessa historia toda ha duas atitudes de conivéncia que tém sido minimizadas pela nossa melhor critica. Primeira: a conivéncia entre © pensamento autoritirio € sotalitério de es- querda ¢ de direita, expressa pelos romancistas ¢ poetas dos anos 36, e entéo os nossos principais criticos do movimento de 22, Segunda: a conivéncia destes dois grupos com seme- Ihante postura antiliberal ¢, no caso, nitidamente antidemo- critica e antipopular, defendida pelos ideGlogos do tenentismo. Essa triplice conivéncia ¢ pouco a pouco desfeita, primeiro em 35, com o desbaratamento total das forgas revolucionarias reu- nidas em tomo da Alianca Libertadora Nacional, e depois em 37, com © aniquilamento da ala radical da Associagio Integra- lista Brasileira, Daquela antiga entente cordiale, em que os wés 3 Alusio 20 personagem que tem fungio capital dentro dos filmes de Gliuber Rocha, Para 9 nosso raciocinio, lembremo-nos, em particular, de Deus ¢ 0 Diabo na terra do sol Anténio & marador de cangaceiros ¢ beatos so NAS MALHAS DA LETRA parceiros cram fingidamente cordiais, sai-se imico vitorioso € ditador o “tenentista” Gerilio Vargas. De tudo isso, resulta uma tese que gostariamos de, ainda que rapidamente, expor aqui. A capacidade que teve o tenen- tismo de articular os principais problemas que a sociedade bra~ sileira propunha e os nossos melhores intelectuais de esquerda e de direita denunciavam, buscando para eles uma solugio po- litica que alicercava no solo politico que entao era comum a todos os grupos na arena — 0 autoritarismo. Os principais ro- mancistas ¢ poetas do modernismo conseguiram conviver com 0 Estado Novo — assim como Jorge Amado conseguiu conviver com os membros da Lantema Verde ~-, porque, no fundo, nio havia distingio esencial entre eles quanto a forma de mando. Talvez © unico dispositivo que os tenentistas souberam utili- var com maior propricdade (exatamente porque estavam des- vinculados de uma postura politica universalizante) foi o que Mario de Andrade chamou de “nacionalismo pragmatico” Repare-se que o Mario que cunha a categoria € © mesmo que ja entio se encontrava engajado tanto no projeto governa- mental paulista, quanto no nacional, como atestam as Cartas de sabalho que dirige na década de 30 a Rodrigo de Mello Franco de Andrade. Discorrendo sobre 0 documento de Mi- rio, que foi o principal responsivel pela estruturagio, em 1937, do Scrvigo de Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional, ¢ lembrando a “pratica administrativa” de Mario no Departa- mento de Cultura da Municipalidade de Sao Paulo, Lélia Coe- Tho Frota lucidamente afirma: “FE importante assinalat que a concepgao abrangente que norteou a criacio dos dois novos érgios evidencia um nitido consenso em tomo de um concei- to de cultura e de sociedade, que emanava em linha direta da reavaliagio modetnista.” Conivéncia no autoritarismo, consenso no projeto cultural. Mios dadas: politica ¢ arte, modernismo e Estado Novo. De todas os livros publicados entio, o de Virginio de San- ta Rosa, O sentido do tenentismo, aparecido em $933, é considera- do por unanimidade como a biblia do movimento mibtar. Sua Ieicura pode ser esclarecedora da conivéncia politica que estamos Fechedo para balanio ou tentando caracterizar como comum a todos as grupos politicos. Percebemos que a postura autoritiria tenentista se enconua na sua critica dos latifundiarios, de maneira semelhante 4 denincia dramatizada pelos romances de 30, Os tenentistas temiam os latifundiarios porque formavam o tnico grupo econdmico ¢ s6cio-politico que podia sair vencedor em eleigdes fururas. Come Santa Rosa denuncia a atticulagdo entre latifindio ¢ eleigdes, entre conservadorismo econémico e poder politico? Que solugdo prope para o impasse? Primeiro, contrapoe coro- nel ¢ eleitor, chamando a aten¢ao para o fato de ser 0 dominio tural “‘viveiro de eleitores”, onde o “coronel coordena as massas cispersas”. Segundo, ao tornar claro que o latifindio, como cnidade dominante ao cenirio da industrializagio do pais, “ja comega a entravar o ritmo de expansio da vida nacional”. Terceiro, reclamando a urgéncia de uma Lei Agraria para so- lucionar o problema, visto que “as grandes extensdes de terra em mios de um dnico proprietério impedem o crescimento de densidade demogrifica em cada quilémetro quadrado”. Nomeado 0 equivoco econdmico ¢ sécio-politico do lati- fiindio, que nada mais é do que o equivoco da Repiblica Ve- tha na década de 30, fica estabelecido que, dentro do projeto de moderizacio do pais, a solugio para a miséria dos cam- poneses deve advir de uma Lei Agraria. Fica no ar a grande questo: por que processo politico as mudangas necessirias ocorreriam? Santa Rosa nio titubeia um segundo e, 4 seme- Ihanga dos seus colegas de direita e de esquerda, langa mio do autoritarismo, s6 que colocando o Estado, que ja esté nas mios dos tenentes, como ponta-de-langa do projeto revolucionitio. Escreve ele: “O progresso do pais esta a cxigir a intervencio direta e imediata do Estado, para regularizar a situagdo quase anémala desses infindaveis dominios rurais.” Tal conclusio nio poderia parecer estranha na década de 30, como estamos assinalando, ¢ muito menos no pensamento de Santa Rosa ¢ dos nossos tenentistas. Desde © inicio do seu livre, Santa Rosa descarta a partici- pagio do individuo no processo politico, acreditando que a evolugio da sociedade brasileira se d? de maneira semelhante 92 NAS MALHAS DA LETRA ao fancionamen:o ininterrupto de uma maquina termodinimica, pasando em seguida a caracterizar o individualisme — visto ja entao pejorativamente — como burgnés, para equaciond-lo finalmente ao deménio da democracia. Estas duas passagens de scu fivro, que vamos ler ¢ comentar em seguida, so bas- tarite sintométicas do roteiro de leitura que estamos tracando. Primeira passagem: “Dia a dia, 0 manémetro politico denun~ ciava o acréscimo de tensio dos espiritos. A todo momento parecia mais nitda ¢ clara a necessidade de velintas de escapa- mento. A velha méquina oligdtquica ameacava explodir [...]. A pressio dos espiritos ganhou os jornais” (grifos nossos}. Esta méaquina* que funciona indeperdentemente dos cidadios e dos trabalhadores, que trabalha por si e que, para evitar a autodes- truigio, a explosio, tem um manémetro ¢ vilvulas de escapa- mento, nada mais é do que o Estado autoritério, desvincuiado da vontade popular, Uma maquina, um Estado, gue, em caso de mau fancionamento, s6 pode ser interpretado ¢ s6 pode ser consertade por mios especializadas.” Serd por casualidade que Santa Rosa é engenheiro? Segunda passagem: “E a democracia, a forma por excelén- cia do individualismo burgués, ira desaparecendo ante a inves- tida das massas organizadas e cada dia mais conscientes da sua forga e dos seus direitos... Assim © nosso liberalismo-demo- critico tende a perecer por inanigéo.” © trecho é claro. demais has suas intengdes ¢ dispensa os nossos comentarios. Se 0 raciocinic de Santa Rosa nem sempre bem encadea- do, estamos vendo que é sempre armado de maneira légica, até mesmo no seu jogo de metiforas, que, como sabemos, é mais inconsciente do que consciente. Seguindo de perto o seu reciocinio e dos nossos intelectuais de direia e de esquerda, podemos dizer que até agora pouca diferenca havia entre eles quanto a forma de mando para que se instaure um projeto + Segundo a liggo de Nietzsche na filosofia e dos modemos exegetas de Freud, sabemos que a metéfora — devidamente carcunscrita sua area de atuagdo c levantado seu valor estratégico num discurso tedrico — passa a ter valor de conceito. Feckado para batanso 93 politico revolucionério no Brasil, visto que a identidade entre todos ¢ estabelecida pela necessidade de um governo autontario. Deus, 0 Diabo e Anténio das Mortes esto na terta do sol. No entanto, uma diferenca importante surge. Chegando is paginas finais do livro de Santa Rosa percebemos que a cri- ica das eleicdes, a descrenca no poder politico do individuo, a necessidade de, por exemplo, uma Lei Agraria para dar fim ao latifiindio ndo se encontram na cren¢a populista em uma massa que, esclatecida pela voz das necessidades ¢ dos lideres carismaticos, tomaria a dianteira no projeto histérico e econd- mico da na¢io, numa investida revolucionéria que conduziria 4 ditadura do proletariado. Nao se encontram, muito menos, na cence em uma sociedade que, pelo aperfeigoamento conti- nuo dos reais processos democriticos, pudesse tornar gradati- vamente maci¢a a participagio popular nos destinos da na¢ao. Muito antes pelo contrario. Se no Sentido do tenentismo hd um elogio das massas orga- nizadas em detrimento do suftigio democratico, ¢ com o fim exclusivo de salientar que a verdade estaria numa “minoria revelucionaria” (sic) que, dona do Estado, imporia a sua von- tade contra os designios da populagio, visto que ha, natural- mente, uma oposi¢éo popular “as tentativas de renovagio do quadro social”, A vontade popular é, a priori, anti-revolucionaria ¢ por isso tem de ser descartada do proceso de modernizacio do pais. A verdade mio esta em cada um ¢ em todos, mas tem um lado e um grupo. A democracia nao vai perecer por inanicio, mas sob o poder do Estado autoritario. As massas, reduzidas 3 santa ignorancia e desclassiticadas de antemio como conserva- doras, abiscoitam a condicio de siléncio total e de obediéncia cega. AS massas requerem, para o seu proprio bem-estar econd- mico e social, a sabedoria de alguns poucos iluminados. Onde estio “as massas mais conscientes da sua forga e dos seus dirci- tos”, de que falava Santa Rosa ao combater a democracia? Sigam-nos, ¢ seremos os vencedores da histéria. A versio do processo politico ¢ historico, aém de ser totalitétia, é excludente ¢ antipstica 4 populagio 94 NAS MALHAS DA LETRA Para corroborar 0 seu raciocinio final, Santa Rose vale-se de uma citagio de Pierre Dominique que, pela graca indecorosa, denuncia as forcas totalitarias do mundo contemporineo. A citago € longa, mas vale a pena lé-la: Rien de plus conservateur que le peuple, par paresse, par naturelle patience, par respect, par crainte... Il faut donc imposer J'idée, le systéme, invention. L’opinion publi- que est scuvent toujours hostile. Pierre le Grand réforme contre l’opinion de son peuple. Les Soviets contre Popinion des msses. Mussolini contre l’opinion du grand nombre des Italiens. Le roi d’Afghanistan 4 l'heure actuelle contre opinion des Afghans. Le Kuomintang contre celle des Chinois. Les réformateurs japonais de 1869 contre celle du Japon. Les hommes de Ja Révolution frangaise, enfin, cont contre eux Fopinion publique qui est monarchiste 4 Tépoque, et comme tout, le grand nombre des Francais.* Encerrado este primeiro ciclo de interpretagdes do moder- nismo, logo surge outro encabecado pelo que vamos chamar de criticos literirios, sabendo que a expressio engloba tanto os ctiticos propriamente ditos quanto 0s historiadores da lite- ratura ¢ mesmo os escritores-criticos. Este novo ciclo se apre- senta em duas fases sucessivas como iremos demonstrar. A questao que eles colocavam entio precede a que Joio Alexan- dre coloca radicalmente. Tratava-se de saber quais os autores modemistas que eram verdadeiramente modernistas. E uma triagem ainda de Ambito estreito, mas que j4 demonstra certo desejo de circunscrever o movimento modemista 4 sua verda- * “Nada mais conservador do que © povo, por preguiga, paciéncia nawral, respeito © temor... B, pois, necessirio impor a idéia, o sistema, a invensZo. A opinido piiblica hes € muitas vezes hostil. Pedro 0 Grande reforma contra a opinize do seu povo. Os sovietes contra a opiniie dos russos. Mussolini con- tra a opiniio da maioria dos italinos. O rei do Afeganistdo, no presente, contra a opiniio dos afegios. © Kitomintang contra a dos chineses. Os tefor- tistas japoneses de 1869 conta a do Japio. Os homens da Revolugio fian- cesa, finalmente, tiveram contrz eles a opinido piiblica que era monarquista na época, como aliis ¢ a maioria dos franceses.” Fechado pare belango 95 deira histéria, a0 mesmo tempo em que visa a ressaltar os valores individuais que. com o correr do tempo e © conheci- mento da matéria, significavam a sua expressio mais auténtica, Como os nossos primeiros “criticos” do modernismo — tanto os de formagao autodidata quanto os de formacio univer- sitéria — floresceram sob a inspiragio do chamado espirito de 45, quando 0 bindmio tradigio e seriedade era de praxe, sua limpeza de campo foi orientada com vistas 4 exclusio tanto dos “neo” (neo-rominticos, neopamasianos ¢ neo-simbolistas) quanto dos excessivamente iconoclastas. A picada que conduzia a critica a0 passado era feita a partir do seu ponto de chegada. A picada eza a linha da fradigie modemista que se manifestava pela primeira vez. Naquela época — fim de guerra, fim de Estado Novo, época de balango — sio colocades como personagens secun- dirios do movimento poetas e romancistas como Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Erico Verissimo, José Américo de Almeida, Joio Alphonsus, Plinio Salgado, ¢ também, em campo oposto, a figura irénica © galhofeira de Oswald de An- drade. Apenas como lembrete, recorde-se que o autor de Pau- Brasit no faz parte da antologia que Manuel Bandeiza organi- zou como complemento ao seu ensaio sobre a poesia brasileira. Entre outros, agigantavam-se entdo como auténticas as figuras ¢ as obras de Mario de Andrade, Carlos Drummond, Murilo Mendes e dos quatro romancistas do Nordeste. Um dos problemas do exercicio critico, quando aliado 4 pesquisa histérica ¢ 4 prépria criagéo literdria, € 0 de poder cometer equivoces ao separar o joic do trigo, A separacio en- tre x € y, entre os grupos A ¢ B, visa a um esforco de avaliacao em que vio ser configurados © auténtico eo falso, o melhor e © pior, 0 revolucionrio e © conservador, o passivel de inspirar novos textos ¢ 0 necrosado etc. Se a avaliagdo & justa — e di- ficilmente ela o € na sua totalidade —, nio hi obviamente equivocos. Se os houver, ¢ os h4 sempre, eles passam a ter a forma de um recalgve no tecido histérico que é manufaturado pelo “critico”. [sso quer dizer que toda avaliagao é feita em favor de alguma coisa, 96 NAS MALHAS DA LETRA Vejamos estes dois pontos de maneira mais detida Nesse periodo que estamos focalizando nas suas linhas ge- rais, a Jeitura do movimento modernista ¢ a sua conseqiiente avaliago visam sobretudo a alimentar um proceso criativo por parte de uma nova geragao. A obra jovem deve surgit in- formada por um passado préxime e nacional que the dard peso e relevo. Podemos concluir que, neste ciclo, a0 contrario do anterior, 0 modetnismo (agora j4 tendo incorpotado até mesmo os seus contestadores mais ferrenhos dos anos 30) sur- ge como uma forca capaz de moldar novos projetas criativos que se aproximam e se distanciam dos modelos “auténticos” de 22, como num fluxo ¢ refluxo da maré. A avaliaglo critica conduzia, pois, a um esforgo por cons- tituir o alicerce onde vai sendo construido o trabalho jovem. Uma dedicatéria a Lins do Rego ou uma epigrafe tomada de empréstimo a um poema de Drummond nio significam sinal de companheirismo, mas antes 2 marca de determinada ascen- déncia daqueles aueores sobre a produgio dos mais mogos. O sentido do passado ¢ o presente ¢ a avaliagio se encontra com- prometida por uma linha que estamos nomeando como a de uma dada tradigio. Se 0 movimento modemista enquanto “for- ca fatal”, para retomar a expressio de Mario, era um fogo que ardia, agora o modernismo € um fogo que esquenta panela. © gosto dessas imagens é discutivel; acredito, no entanto, que deixam que se visualize uma diferenga de situacio entre 0s inventores da movimento ¢ os participantes deste segundo ciclo, diferenga que é indispensivel para a melhor compreensio da tese global desta apresentasio. A ctiacio literéria no Brasil — grosso modo, a partir de 1945 — se deixa circunscrever por um movimento ambigue em que o alimento €, 20 mesmo tempo, razio de originalidade ¢ limitacdo repressiva. O fogo da invengio, pera dar prosseguimento is imagens anteriores, a0 mesmo tempo em que eleva a temperatura da obra jovem, conforma-a a um maneirismo, pouco convincente nos piores casos ¢ extremamente zeloso nos melhores produtos. Tudo isso também 4 exposto com o fim de mostrar que o retorno de Oswald de Andrade — 0 retomo do recalcado —, Fechado pare balenso 7 operacionado pelos concretos de Sio Paulo no inicia da década de 66, se situa neste mesmo plano de ieitura critica e de atuacio. © retorno de Oswald apenas marca um momento maior de lucidez na discussio dos problemas que estamos apresentando como particulares a este segundo ciclo. A teoria oswaldiana da antropofagia ajuda a compreender, como salienta muito bem Jodo Alexandre, “a selago entre localismo e cosmopolitismo”, que é 0 cere das questées tanto no setor econémico, quan- do vames atingindo © paroxismo de uma industrializagio em so- ciedade neocapitalista e periférica, quanto no campo estético, quando vamos chegando a0 desejo de uma obra que se consti- tui originalmente pela programagao de uma tradi¢ao repressi- va, (De maneira concreta, estamos nos referindo A transferéncia de tecnologia que se da a partir da implantag3o da indéstria automobilistica no Brasil ¢ a0 chamado “paideuma” do grupo Noigandres,) Joao Alexandre percebe que, naquela relagio entre loca- lismo € cosmopolitismo, a antropofagia “inverte os dados de influéncia, débitos ¢ créditos” Oswald de Andrade, dentro do movimento de 22, era o nico que falava da influéncia como autonomia do influencia~ do, dos débitos sem divida na conta corrente do autor ¢ dos eréditos que embaralham as colunas ao livro de contas. A vi- sao oswaldiana do passado visa a coloci-lo em condigio de forca para a criagdo dependemte, e € por isso que a sua teoria nio pode ser compreendida por certos historiadores da litera- tura brasileira que ainda primam pela busca da “objetividade” a todo prego, semi se preocupar em saber para quem ela traba- tha. Oswald embaralha 05 dades cronoldgicos, propondo ante- cedéncias liberadoras e procedéncias castradoras. Liberagio e castrag4o se dio num idéntico compasso, significando a reali- dade de uma situagio de “dependéncia”, a propria ratio da sua existéncia precaria, que, descrita de outra forma, apenas falsea- ria os dados que estio em jogo Oswald de Andrade, que prenuncia 0 movimento moder- nista, com a sua viagem 4 Europa, e 0 progresso, com o scu poema sobre um passeio de bonde pela cidade de Sio Paulo, 98, NAS MALHAS DA LETRA aambém encerra o movimento, apontando para a circularidade do novelo de que falavamos. Eis 0 arremedo de novelo que caiu em mos de Jodo Ale- andre Barbosa pata que dese a forma final, Se levarmos em consideragio as discusses que foram levantadas aqui sempre que foi questio da atiude critica que separa 0 joio do «igo, nio é dificil constatar que o trabalho de Joio Alexandre nio foge as conclusées estabelecidas. Mais severo que os “criti- cos” do modernismo que o precederam, Joio Alexandre esta- belece uma “moldura reflexiva” (a expressio é dele) em que os passiveis de serem retratados marcariam os pontos mais al- tos da nossa ficgdo a partir do marco zero que é Machado de Assis. Dizer que a sua atitude critica é elitista é pouco e é muito, € talvez mesmo dispensivel, pois esta nio ¢ a questio principal que deve ser colocada. Comecemos por assinalar que, em virtude dos romances que Jogo Alexandre enicadeia numa linha extremamente reti- Kinea ¢ radical, em virtude do vigor da tradi¢So que ele traca, pode-se ver neutralizado © potencial criativo dos nossos jovens romancistas. (Alids, os nossos mais promissores romancistas jé esto rejeitande © peso da tradigio modernista, sem, é claro, negar a sua importincia decisive para qualquer discussio sobre arte no Brasil.) Com isso, estamos querendo dizer que a leitura que Jodo Alexandre opera no romance moderista/moderno brasileiro, se mio for vista sob um efeito de fechamento, pode induzir o “critico” menos atento a advogar os mesmos princi- pios, a mesma moldura, como critério bésico tanto para a ta- refa da apreciagio critica dos mais recentes romances brasileiros quanto para a atuacio da criagio jovem. Seria um equivoco faral para a cultura no Brasil. Insisto neste ponte, porque quer-me parecer que 0 trabalho que estamos comentando nio deve ser compreendido como dan- do prosseguimemto 3 atitude que desenhamos como compativel a0 segundo ciclo, quando a foya do movimento modemnista se encaminhava para descrever 0 périplo da forma modernista. N3o creio que a nossa geracao (estudiosos ¢ criadores que oscilam entre os quarenta € os cingiienta anos © que cresceram intelec- Frehede pert balanso ” talmente sob o signo dos anos vanguardistas da década de 50) possa se ver livre das cordas com que os nossos pais intelectuais — os modernistas — nos amarraram. Penso mais nos jovens ficcionistas que estio tendo e devem continuar a tet 0 direito a uma pesquisa e a uma esctita mais liberada da estética modernista. Nio digo isso para contradizer a escalha dos romancistas © dos romances, feita por Joio Alexandre. A sua lista, no pré- prio gesto de precisio critica que exibe, é impecivel — ¢ sorte de uma literatura que ja pode contar com os nomes que ele artola; Machado, Oswald, Mario, Graciliano, Guimaries e Clarice. Nao se trata, portanto, de questionar os fundamentos da “moldura reflexiva”, de questionar este ou aquele nome, esta ou aquela obra, ou de propor nomes que teriam escapado ao olhar incisivo do critico € historiador. Pelo conttario, a con- cordincia nossa é total. Trata-se antes de Jembrar que, se pensamos em outros no- mes — possivelmence uma outra tradig¢ao-sem-tradicda, indi- cando outras opgdes de esctita ficcional entre nés —, dariamos conta de que um diferente percurso de Ieitura poderia ser es- tabelecido. Este percurso, porque escapa ao fechamento do mo- demismo que estamos propondo, pode fancionar como instigan- te facdo para uma futura teleitura da movimento. Levemos em consideragdo dois autores que tém sido bastante negligenciados pela tradigéo modernista e que, a meu ver, estdo constituinda um bom repositério para a contestago atual da estética origina da em 22 ¢, ao mesmo tempo, tepresentam uma saudivel mu- danga de ares para o jovem romuncista, Acredito mesmo que 0 espirito deles jA perpasse as obras de ficgao mais impertinentes da década de 70. As mais impertinentes € as mais equivocadas, como sempre acontece quando esti para surgir ou j4 surgiu algo de novo no horizonte intelectual. Seria 0 caso de perguntar — reportando-nos ao néimero de equivocos acertados que de- tectamos nos dltimos anos da prosa de ficgio brasileira — 0 que seria do modernismo inicial sem a contribuicdo de Gui- therme de Almeida ou de Menowi det Pichia, cu o que seria do romance dos anos 30, de feigdo regionalista, sem a presen- ga de A bagaceira, 100 NAS MALHAS DA LETRA Penso, em particular, em Euclides da Cunha c em Lima Barreto. Ambas 2s figuras aparecem, dentro das historias da literatura, no movimento que se convencionou chamar de “pré-modemismo”. Talvez o verdadeito “pds” possa se nutrir convenientemente do “pré”, e nio do modernismo propria- mente dito, A evolugio literaria, como nos alertaram os for- malistas cussos,> se elabora mais por deslocamento de forgas do que pela nogdo iinear de evolucio, © que se pode aprender nos textos de Lima Barreto e Eu- clides da Cunha, que nos deixam para fora dos padrdes esté- tices ¢ ideoldgicos estabelecidos pela estética modermista? © trago estilistico predominante na escrita modernista € a dlipse, que da origem a um texto denso, instigante ¢ sobretudo altamente enigmitico. Texto propicio, portanto, 4 participacio industriosa do leitor culto. Ja Lima Barreto consegue organizar um texto com idéntica dose de densidade ¢ instigacao, possivel- mente menos preso ao enigma, texto que, no entanto, é orien- tado tanto para a apreciagio do leitor culto quanto pata a do leitor comum. Esse aiargamento no circulo potencial das lei- tores de ficgic se dé porque Lima Barreto utiliza com precisio absoluta a redunddncia® O que ele conseguiu ¢ o salto que os Tussos jovens romancistas estio querendo dar € o seguincs: assim como, na sua época, Lima Barreto liberou processos es- tilisticos do folhetim publicado em jornal, transformando-os em recurso para uma estética popular do romance, as nossos romancistas mais novos querem libers-los dos meios de comu- 5 CE Tynianow, apaf B. Eikhenbaum: “Quand on parle de hh tradition ou de a sucession Hittéraire, on imagine généralement une ligne droite qui telie les cadets a leurs ainés. Pourtant les choses sont beaucoup plus complexes. Ce nest pas Ia ligne droite qui se prolonge, mais on assiste plutét 4 un départ qui S organise a partir d’un certain point que i’on refute... Toute succession littétaire est avant tout wn combat, c'est la destruction d'un tout déjé existant et la nouvelle construction qui s‘effectue 4 partir des éléments anciens.” © As idtias expostas sobre Lima Barreto estio mais amplamente desenvalvi- das em “Uma ferroada no peito do pé (dupha leitura de Triste fine de Polizarpo Quaresmay”, no tivro Vale quanta pesa. Fechade pera belango tot nicagio de massa, cornando-os elementos titeis na planificagio de um texto, ainda forte e instigante, mas mais democratico na sua abrangéncia Nao estamos querendo jogar 0 romancista mogo as feras do mercado, pedindo-lhe que utilize indiscriminadamente os recursos dos meios de comunicaco de massa para escrever um best seller segundo as leis do consumo, como se fiz nos Es- tados Unidos ¢ é exemplo o romance Tubario. © livro pode ser uma merecadoria semelhante a um sabonete, mas ele sé vale quanto pesa, ou quando pesa. Trata-se antes de concordar com 0 romaneista que ndo tem mais medo da redundancia em si, isto €, enquanto trago estilistico. Pode valer-se dela e de ou- tros recursos populares e pop para agilizar a prosa de ficcio da nossa época, assim como os romancistas americanos da chamada lost generation se aptoximaram do cinema na década de 30 com 6 fim de extrair da sua linguagem moderna recursos que torna~ ram a prosa americana insuperivel no seu tempo e ainda hoje. Esta aproximagao entre a linguagem da literatura ¢ a do cine- ma, com vistas a um melhor conhecimento dos romances de Jobn dos Passos, Emest Hemingway, John Steinbeck ¢ de outros mais, foi feita com extremo rigor e habilidade por Claude- Edmonde Magny, no seu esquecido L'dge du roman amiéricain, Em outras palavtas, nio estamos querendo dizer que a verdade da ficgio de hoje esta no mercado, mas na melhor maneira de intervir criticamente nas leis de consumo impostas pelo texto ficcional (a telenovela) que nos é impingido pela tevé. Se, por um lado, um romance best seller como Tubario glorifica o mercado como legislador inconteste, a0 equacionar © dado quantitative da vendagem ao valor de qualidade, ge- rando o abominavel lugar-comum: “Vendeu, no vendeu? Gos- to no se discute”, jf a intervengio critica de que estamos fa- lando faz muir © cariter mitico com que a sociedade de consumo envolve 05 meios eletrénicos de comunicagio de massa ¢ o mercado, operando necessariamente uma reflexio sobre os cri- térios de qualidade implicitos no processo de vendagem numa sociedade em que sé tem voz o capitalismo selvagem. Uma outra distingao @ preciso ser feita para evitar antigos 102 NAS MALEAS DA LETRA e futuros equivocos. Lima Barreto, ao contrario de alguns ro- mancistas de sucesso, nio se apéia, para a conguista de um pablico maior, nas virtudes do chamado “gancho” jomalistico. © “gancho” é © processo que faz a ponte entre o chamariz popular ¢ um texto ainda inspirado pela estética da clipse. “Pode comegar a ler, leitor, que vocé vai compreender 0 r0- mance” —, mas, no fundo, o leitor simplesmente nio pode entendé-lo porque Ihe falta o background necessétio. No inicio do livro ou do capitulo, busca-se uma frase de efeito que pos- sa prender o leitor comum e instigé-lo a tomar a sério a leitura — como levi-l a sério, se a propria frase inicial € um logro? Assim como a prdpria elipse, o “gancho” aposta num texto que faz da surpresa a sua qualidade maior. Esquecem-se esses pseudo-escritores populares que o leitor de folhetim ontem, € o espectador de telenovelas hoje, se dei- xa mais prender pela isca da repeti¢ao do que pelo anzol da surpresa. © leitor comum tem o seu interesse agucado pela re- dundincia que explicita, na repetigio de uma cena ou de um didlogo, o que muitas vezes nie ficou claro na dramatizagio. Obviamente, dentro da estética da elipse, a redundancia foi sempre negligenciada, ou até mesmo tejeitada como “defei- to”, Mas a redundancia nao deixa de ser uma primeira leitura (microleitura) da intriga ¢, por extensio, do texto. O artista da forma popular ¢ seriada (folhetim, novela, telenovela etc.), trabalhando com uma linguagem polissémica como é a da dra- matizagio, necessita diminuir o hermetismo do cnigma narra~ tivo para o leitor comum, valendo-se de sucessivas e parciais interpretagdes do drama, que sio pequenos nuicleos repetitives, cujo interesse é 0 de apresentar um personagem explicitando para 0 outro o que foi mostrado de forma dramitica no dia anterior ou alguns dias antes. Ou seja: o personagem, ao ex- plicicar a cena anterior, esté lendo-a, decifrando-a, decodifi- cando-a para outros pertonagens — em diltima instincia, ele faz as vezes do leitor comum. © leitor comum — tentemos uma definiggo — é aquele que, diante de um texto dramitico, qualquer que seja ele, se sente mais 4 vontade no explicado do que no enigma, Pechado para balango 103 Sc a estética da clipse requer a existéncia de um leiter cul- t0, pois a obra é escrita dencro de padrées de linguagem que exigem o melhor que uma elite pode oferecer a si propria no seu tempo, ja a estética da redundancia, direcionada com fins a uma intervengio critica no mercado, propicia uma aproxima~ gio do texto por um circulo maior de leitores. O objeto livro — que veicula a ficgio escrita na sociedade ocidental — pode- ria assim desprender-se da classe que normalmente o consome — as elites letradas — ¢ percorrer um caminho menos arrogante dentro do panorama cultural brasileiro. © romancista novo, sem se deixar seduzir pelas sereias do mercado de consumo, poderia ac mesmo tempo jé pensar no seu inevitavel processo de profissionalizagio. Se a questio da democracia, entre nés, tem de passar pelas classes desfavorecidas e pelo mercado, nio ha divida de que nao teri de passar pela inddstria cultural tal qual foi e continua sendo implantada e controlada no Brasil. O recurso 4 redundancia — usado com o rigor critico de um Lima Barreto nao com fins autoritarios e demagégicos, como nas épocas do populismo — é a melhor arma que o jovem romancista pode utilizar para combater democraticamente as imposigdes coercitivas do monopdlio televisivo no Brasil. No caso de Euclides da Cunha, avulta a sua postura criti- co-reflexiva num momento crucial da histéria do Brasil, que se deu com a complexidade que apresenta o momento presente brasileiro pata o jovem intelectual que comega a desconfiar dos percalcos a que pode levar o progresso. Como militar ¢ en- genheiro, como pesitivista © antiidealista, Euclides acata 0 pro- gresso como for¢a indispensdvel para conduzir os destinos da jovem nagio que cortava os lagos com o regime monarquico ¢ com o sistema escravocrata. Sabemos como Euclides, 4 primeira vista, motivado pelos proprios recursos intelectuais de que dis- punha para pensar a sociedade brasileira, equaciona a rebelido de Canudos com o episédio clissico € reaciondrio da historia francesa, apelidando-a de “Nova Vendéia”. Na Cademeta de campe, que conhecemos grasas ao esforgo de Olimpio de Souza Andrade, Euclides constantemente apela para a Repiiblica, que se apresenta como uma espécie de fada benfazeja que protege 104 NAS MALHAS DA LETRA de todos os modos os soldados que se aventuram pelo indspito solo baiano. Diz Euclides, por exemplo: “Em breve pisaremos © solo aonde a Repiiblica vai dar com seguranga o ultimo em- bate aos que a perturbam.” Querendo descrever, em outro trecho, a morte do capitio Aguiar, no esconde a sua crenga: “Ao presenciar a investida violenta impivida dos soldados 0 moco capitéo tirou o chapéu alevantando um viva entusiasta € ardente 4 Repiblica! Essa saudac3o custou-lhe a vida ¢ a vida escapou-lhe do peito atravessada por uma bala precisamente no momento em que a sua alma sincera e nobilissima ansiava pela existéncia eterna da Repdblica. Os imortais morrem sem- pre assim,” No entanto, pouce a pouco, presenciando a realidade con- creta da tebelido e do massacre dos homens do Conselheiro pelas tropas republicanas, sofrende o “impacto da carnificina despropositada”, Euclides — como j4 assinalon Walnice No- gueira Galvio — muda de opiniao. Hi um momento de “revi- ravolta” nos escritos de Euclides, momento em que comeca a escrever diferente das idéias preconcebidas de jovem e entusias- mado positivista e republicano. Mas prestemos atengio a esse momento. Euclides ndo cai numa armadilha que, na realidade, € tio perigosa quanto o clogio indiscriminado das agdes da Republica: ele nio cai na armadilha mondrquica. Teria sido facil para ele aliar as suas criticas as criticas ja existentes ao massacre, feitas pelos monarquistas, entre os quais sobressai a figura de Afonso Arinos. Este sempre mais lacido do que o entusiasmado Euclides antes da reviravolta. Euclides evita esse caminho facil ¢ enganoso. ‘Os sertées passou a ser texto em que Euclides procura con- ciliar criticamente as diretrizes modernizadoras da Repablica com os segmentos mais desprivilegiades da nao, Numa cul- tura pobre em reprimendas ao autoritarismo, autoritarismo. que 0 prato-feito dos que refletem sobre o poder entre nés, Euclides toma de empréstimo as vestimentas do “narrador sin~ cero” de Taine: “i] veut sentir en barbare, parmi les barbares". Assume plenamente a defesa dos jaguncos, fazendo a critica do mundo intelectual ¢ da classe dirigente de entio, como Fechado para balanjo 108 também a sua autocritica, a partir do lugar dos vencidos. A campanha de Canudos — afirma ele — “foi, na significagio integral da palavra, um crime”. E a frase seguinte, perfazendo um paragrafo, € o grito que lan¢a contra a sua tio decantada Repdblica: “Denunciemo-lo.” ‘A coragem de Euclides ¢ dupla. Primeiro, politica, a0 de- nunciar com coragem e destemor a carnificina de Canudos, onde os companheiros do Conselheiro, j4 esgotados, buscavam © consolo na morte, isto é, no suicidio. Segundo, intelectual, porque coloca em questio 2 seguranga e a certeza dos esque- mas de pensamento da sua época, que, enciclopedista nato que era, possuia de maneita inequivoca. Nao colocd-los em ques- tio teria sido a sua forma de buscar 0 poder pelo saber, como tantos dos seus e dos nossos contemporaneos. Munido e des- munido de esquemas explicativos de fatos concretos, Euclides volta os olhos para 0 cotidiano da rebeliio e da conseqiiente campanha, como atesta maravilhosamente a sua Cademeta de campo. Aqui, perde gradativamente a seguranca € a certeza da cigncia ocidental ¢ ganha a seguranca c a certeza da reflexio ao lado dos vencidos. Fomos ousados ao afiemar que estamos viyendo momento semelhante e que estes também sio os dilemas que os jovens valores do romance brasileiro, semilibertos das amarras mo- dernistas, vivenciaram na década de 70? Acredito que nio. © testemunho ficcional que o recente romance brasileiro est4 dando ¢ pode continuar a dar é 0 de oferecer um olhar desconfiado aos grandes sistemas hermenéuticos do saber, per- cebendo neles o ran¢o de um intelectual autoritano, tao auto- ritério quanto as forgas que permanecem inquestiondveis no poder. Vislumbram eles, como pano de fundo para as forgas correntes de mando no mundo modemo, um pacto entre cién- cia € ideologia. Nao vamos acreditar que o romancista € um ingémno que deve enxergar os fatos concretos com a inocéncia de um Adio. Deve ele — munido do seu saber — poder ques- tiond-lo e a si, quando se fizer necessario, deixando irromper na teia do pensamento contempordneo a forca do cotidiano. Se a grande licio de Lima Barreto é a de uma escrita po- 196, NAS MALHAS DA LETRA pular e, a0 mesmo tempo, critica, a de Euclides ¢ a de um saber que, 20 se desvincular do auvoritarismo inerente 20 gru- po que o detém ¢ a si mesmo, volta os olhos para os vencidos, enxergando neles uma verdade que escapa as diretrizes exclu- dentes da modemizagio. [1982] Pecado para batange 107 A permanéncia do discurso da tradicio no modernismo Gostaria de comecar afirmando que este nio é um dos meus tépicos favoritos, como nio © € para a majoria das pessoas que foram formadas ¢ continuam sendo formadas pelo que é considerada — hoje — a tradi¢ao modernista. Estamos mais acostumados a encarar o modernismo dentro da tradi¢ao da ruptura, para usar a expressio de Octavio Paz, ou dentro da estética do make-it-new, de Pound, ou ainda da tradi¢go do no- vo, de Rosenberg, ¢ assim no infinite. A nossa formagio esteve sempre configurada pot uma estécica da ruptura, da quebra, por uma destruigio consciente dos valores do passado. “La Destruction fut ma Béatrice”, escreveu Mallarmé, declarando o nome da musa moderna. Dessa forma é que um dos discursos mais privilegiados do mademismo, sobretudo nos ultimos vinte anos, tem sido © da parédia, Nao é & toa que, entre os primei~ ros modernistas famosos, Oswald de Andrade € quem tem conseguido maior adeséo por parte das geragdes mais novas. Oswald € 0 que, no modernismo, levou até as tiltimas conse- giiéncias a estética da parédia. Tenho absoluta certeza de que vocés todos conhecem o célebre verso dele, retcomando 9 Gon- galves Dias de “Minha terra tem palmeiras”: “Minha terra tem palmares.” Esse tipo de estética ~ da ruptura, do desvio, da ironia e do sorriso, da transgressio dos valores do passado —~ € que tem o direito de cidadania, por assim dizer, na reva- lorizagio dadaista por que passou o modernismo desde 1972. Ora, de repente, sou chamado para falar do discurso da 108 NAS MALHAS DA LETRA tradi¢io rout court dentro do modernisino.! Nao vou negar, gosto dessas encomendas. Posso até nem mesmo endossar completamente as palavras que direi aqui hoje com o intuito de convencé-los do interesse ¢ da importincia do topico para a compreensio mais ampla do modernismo. Mas sempre me agrada pensar aquilo que até entdo ainda nio tinha pensado. £ nesse sentido que diria que hoje estou enveredando por um caminbo em que me sinto estreante, tanto quanto, talvez, a maioria dos professores de literatura, escritores € intelectuais brasileicos que foram condicionados pela estética da ruptura modemista ¢, em particular, pela presenca forte ¢ avassaladora do chamado concretismo. E o concretismo (nas suas miltiplas manifestagdes} que marca de forma profunda, dentro do mo- vimento modemo no Brasil, a estética do novo pelo novo. Por favor, nio se assustem se, de repente, em ugar de citar Pound, como é de regra, esteja citando T. S. Eliot, ¢ se, em lugar de falar modemo (isto é, da tradig3o moderna que ten inicio no romantismo, ou em finais do século XVIID, esteja, ainda que de maneira meio inconsciente, adiantando a questio para o que ainda deve vir, ou esta chegando, isto &, 0 pés- modemo, A impressio que tenho é a de que o tema que me foi proposto pela Funarte nio o foi inocentemente. A questo da tradic¢ga — na década de 80 — estaria vinculada a uma tevisio critica do moderno, ¢ em patticular do modernismo, abrindo caminho para o pés-moderno ¢ 0 pés-modernismo, respecti- vamente. Antes de prosseguir 6 bom aclarar que estarei usan- do a expressio tmodemo referindo-me ao movimento estético que gerado dentro do iluminismo, e modemismo ao me referir 4 nossa propria critica do passadismo, concretizada na Semana de Arie Madema de 22. Porranto, moderno fica sendo um ter- mo universal, muito mais abrangente, enquanto modernismo € um conceito bem menos abrangente ¢ mais localizado. Costume as vezes me perder no meio do caminho da ex- posigio, embora nem sempre, ¢, com receio de que isso acon- tega de neve, vou valer-me do habito do quadro-negro. Dou ' Trabalho fito para o curso “Tradi¢io/Contradigio”, pattocinado pela Funarte. A pamantacia do disenrs... 109 a vocés uma espécie de plano que gostaria de seguir, que devo seguir. Pelo menos vocés saberio mais ou menos por onde andarei caminhando. Esse plano comporta ama pergunta inicial e esté dividido em quatro partes, que tratarel separadamente. Eis a pergunta inicial: qual ¢ a razio para o retorno da questio da tradicio hoje, e mais incisivamente: por que estaria- mos interessados na questio da tradi¢io agora que o moder- nismo chega a0 final? Ou seja, para que relegar para segundo plano, na avaliasio do moderno ¢ do modernismo, a estética da ruptura, do make-it-new, do novo pelo novo? Em 1972, a0 comemorar 0s cingiienta anos da Semana, fizemos a Tevisio do modernismo pelo viés dad; agora 0 viés @ outro e menos inocente no seu questionamento dos pilares da modernidade Na resposta a pergunca, tentarei provar para vocés — se tiver éxito — que a pergunta estatia ligada a duas seflexdes, Primeira, passames hoje por aquilo que Octavio Paz chama, nao sem maldade, de “v veaso das vanguardas”, ¢ € neste momen- to que parece surgir como inevitavel a cmergéncia da condisio pés-moderna. Na segunda reflexio jé me encaminho para 0 propésito basico do trabalho: indagar, nesta revisdo. presente do moderno ¢ do modernismo, se a questio da tradigio (do chamado “passadismo”, como a tadigio era vista pelos olhos da década de 20) esteve realmente ausente da praducio tedrica de alguns autores modemos, ou da produgio artistica dos mo- dernistas brasileiros. A resposta é nio. Ha uma permanéncia sintomitica da tradicio dentro do moderno ¢ do modernismo. Aviso de passagem que cstaria caindo numa série de lugares- comuns, lugares-comuns para nés hoje, se tivesse adotado a postura oposta, isto é, se quisesse descobrir, dentro do moder- no ¢ do modemismo, os tracos indiciadores da estética da rup- tara ou da parddia. O nosso propésito — fique bem claro — € 0 inverso do que foi © percurso gloticse do movimento mo- demista. Saber se, numa época em que foi predominante a va- lorizagio da novidade, da onginalidade enquanto dado concreto da manifestagio artistica, havia tragos nessa mesma manifesta do que indicariam, segundo o titulo da conferéncia, a perma- néncia de um discutso da tradicio. 16 NAS MALHAS DA LETRA Yr © nao dado antenormente abre caminho para que fale, no nivel da produgio tedrica moderna que da forca 4 wadicio, da presenga muito positiva de um poeta como T. S. Eliot. Num célebre artigo de 1919, inticulado “Tradicao e talento indivi- dual”, Eliot opée a emergéncia de um poeta através de tragos distintivos e pessoais 4 maturidade do préprio poeta, momento que ¢ determinado pelo fato de ele inscrever a sua produgio poética numa ordem discursiva que o antecede. Portanto, o poeta moderno para Eliot, na sua idade madura, nada mais faz do que ativar 0 discurso poético que ji esta feito: ele 0 recebe e The di novo talento. Dé forga ao discurso da tradi¢io. Se a gente se interessa pelo modernismo, vé que esse artigo aio pessou despercebido dos brasileiros. Teve muito sucesso entre os poetas da geracio de 45. Nao ha divida de que uma indi- cacio primeira sobre a presenga da tradigio dentro do moder nismo passaria por uma leitura dos poetas da geragio de 45. Terei de falar, em seguida a Eliot, de Octavio Paz. Reto- mar algumas reflexdes que estio no livro Os filhos do barro. Desprezarei um pouco o que ele chama de “tradigdo da ruptura” (a modemo), para me adentrar pelo que cle chama de “tradi- go da analogia”. Paz define duas formas de tradi¢éo: a tradigio da ruptura, esta a que me referi anteriormente, como sendo a do make-it-new glorioso, ¢ a tradi¢o da analogia. A aproximacio critica das duas formas de tradico nunca chega a emergir no taciocinio ou no texto de Paz. Eis um livro a ser feito que in- vestigaria 9 papel da tradigio da analogia a0 lado, ou mesmo dentro, da tradicio da ruptura, enquanto articuladores do pen- samenco moderne. Encaminbarei, pois, a leitura do modernismo pelas refle- xdes de Eliot e de Paz, com © intuito de ver se, entre nds, 0 discurso da tradigao (ou da analogia) foi ativado. Ai existe um problema menos interessante e outro mais interessante. O menos interessante gira em torno do discurso da tradi¢io em 1945. De maneira geral, os poetas de 45, com Ledo Ivo a frente e Jodo Cabral em certa medida, terio uma postura curiosa com telacio 4 tradicéo. E a celagio deles com a tradigio foi Go forte que contaminou um poeta ja feito como . A permanéncia do discurso... int Carlos Drummond. Este — 0 poeta do tempo presente, da vi- da presente, dos homens presentes — estara fazendo, em 1949, um remake do tema classico da maquina de mundo. O canto nono de Os tustadas trata da maquina do mundo e Vasco da Ga- ma, ¢ Drummond dele faz o que talvez seja 0 primeiro grande remake do modernismo. Esse tdpico & menos interessante do que o seguinte. Ji aqui talvez cause um primeiro pequeno escdndalo. O discurso da tradigg0 foi ativado pelos primeiros modernistas, ¢ logo no inicio do movimento. Desde 1924, com a viagem a Minas fei- ta pelos modernistas de Sao Paulo, ciceroneando Blaise Cen- drars. Acho que a viagem é um capitulo ainda relativamente pouco estudado, , quando ela é explorada, o € por vias que ndo se aproximam muito do raciocinio que tentarei manter com voeés, A viagem marca uma data, momento importante para discutir a emergancia, nio s6 do pasado pitrio (mineiro, barro- co ete.), mas do passado enquanto propiciador de uma mani- festagio estética primitiva (ow naive). Foi Brito Broce, em artigo de 1952, quem chamou a atengo para a contradigio entre o futuro € 0 passado em 1924, Finalmente — e eis a quarta parte da conferéneia — devo deter-me na apresentagio de dois poetas: Oswald de Andrade ¢ Murilo Mendes, Deter-me em dois temas que eles trabalha- ram ¢ que sio fascinantes: a nogio de cempo ¢ a questio da utopia. A quescio da utopia, em ambos os poetas, esti desvin- culada de uma nogio de tempo determinista ¢ linear ¢ de um progresso dado também como avango linear, evolutivo. Ambos tematizam — eis uma originalidade deste trabalho — a questio do eterno retorno. Numa Area cultural que era eminentemente dominada pelo pensamento marxista, temos dois poetas que nio mais ativam o discurso da parddia, mas preferem ativar a questio da cradi¢io. Veremos que os dois rém posturas filosé- ficas bem curiosas. No caso de Oswald, estaria a utopia vinculada ao. matriar- cado de Pindorama, contradi¢io que ele exprimiu muito bem ma fOrmula: seremos um dia o barbaro tecnicizado. No caso de Murilo Mendes, poeta catdlico, ela estaria vinculada ao m2 NAS MALHAS DA LETRA Apocalipse, a0 discurso biblico. Murile — 0 poeta de Apoca~ lipse, esperando ¢ anunciando a segunda revelagio do Cristo. Esse seria, de mancira geral, 0 plano que gostaria de seguir. Vamos ver se conseguimos. Retomemos entio a pergunta dita inicial: qual é a razio para esse retorno da tradigio hoje? E principalmente: por que estaremos interessados em investigar os tragos da tradigio no interior do modernismo? A resposta que propus é a de que essa questio estaria ligada tanto a0 ocaso das vanguardas quanto ao surgimento de problemas ainda maldefinidos ¢ malcaracte- tizados, que giram em tomo do que seri o pés-modemno. Quan- to 4 questio propriamente do ocaso das vanguardas, seria bom perceber que em capftulo de mesmo titulo no livro de Octavio Paz, Os fihas do baro, seremos conduzidos a idéia de que, para s¢ questionar a tradicao gloriosa da ruptura, é necess4rio tam- bém questionar quatro nogbes indissocidveis: a de tempo, a de histéma, a de ética e a de poética. O raciocinio de Paz é bri- Ihante e convincente, vai de tal forma homogeneizando esses quatro clementos que saimos da leitura realmente comprome- tidos com o fim da aco e do pensamenco modemos e predis- postos a uma nova estética que, por sua vez, conduzinia a pen- samentos e agdes também novos. Tudo isso que ha de novo hoje esta sendo articulado, afirma Paz, em torneo da nogio de agora Quanto 4 nogio de tempo, Paz vai dizer-nos que, apesar do moderno (quando estiver me referindo a Paz trato muito mais do modemo do que propriamente do modernismo), apesar de © poeta modemo fincar pé no presente, existe, no fundo, um desprestigio do presente com a intengio nem sempre mas carada de uma valorizagio do futuro. Paz vai dizer-nos que a proposta de tempo vitoriosa em termos da modernidade é a da “colonizagio do futuro”. A colonizagHo se daria a partir de uma proposta concreta de utopia que estaria presente nos gran- des autores modernos. Se vocés pegarem, por exemplo, um poeta como Carlos Drammond, vio ver que, paralelamente a0 elogio que faz do tempo presente, da vida presente etc., ele desloca o questionamento do politico, do discurso sobre o- A premantncia do diseurss.. 1B politico, para o momento da aurora do dia que vird (ver “A noite dissolve os homens”). Hoje faz escuro, retomande um pouco a coisa gagi de Thiago de Melo, hoje faz escuro, mas eu canto. Hoje faz escuro, estamos atravessando trevas histé- ricas, mas canto porque acredito na utopia do dia que vird. Acredito na colonizagio do futuro. A eficacia politica da visio utépica tem sido discutida desde a década de 70, isso porque experimentamos hoje uma necessidade de desvalorizar 0 futu- To. © futuro é visto como uma espécie de filme de horror, al- go que nos amedronta, ¢ nos amedronta exatamente porque esta nos conduzindo a uma catistrofe nuclear que esta ai, pre~ sente, E para essa catéstrofe nuclear € outras advindas da acdo moderna que nos chamam a atengio os movimentos ecolégi- cos. Vocés estéo petcebendo que a taciacinio de Par, como disse, & bastante sedutor. Vai ele construindo esses argumen- tos para concluir que a poética de hoje é a “postica do agora”, que nao marcaria ruptura com o passado nem tampouco veria © presente como razdo ¢ argumento para que sé pensemos no futuro e na utopia. Esse, basicamente, serta o raciocinio de Paz no tocante 20 tempo. Vejamos o que dai decore. Passando para o conceito de histéria, propde ele rever a compreensio de evolucdo como progresso linear; obviamente, a revisio € uma decorréncia Logica do que havia dito anterior- mente: Paz convida-nos a conceber uma historia onde os cami- nhes do progresso sejam plurais. Por ai vai obrigar-nos também 4 revisio de uma outra idéia basica que perpassa toda a mo- dernidade: a idéia de revolug3o como ruptura, tal como é concebida a partir do modelo classico da Revoluc3o Francesa, modelo este retomado pela Revolugio Russa ¢, mais recente- mente, pela Cubana. Esse modelo de revolugio, Paz nos cha- ma a atengao, passa a ser revisto a partir das tltimas décadas pelo que ele chama do espirito de rebelido. A rebeliio, para Paz, nao traduz mais os anseios de uma luta de classes, nio é um movimento de tipo universal, mas esta marcada pela luta dos grupos minoritarios em busca de identidade. Teriamos, a partir da década de 60, uma espécie de politica que se traduz pela fragmentagio do movimento social, pela fragmentagio 4 NAS MALHAS DA LETRA do campo politico. Vocds estio vendo que as nogées de tempo, historia ¢ tradigao da revolucéo séo ao mesmo tempo postas em xeque por Paz. Em xeque também vai sendo posto 0 mo- derno. Passemos 4 terceira nogio, que é a meu ver a mais evidente: a de ética. Teriamos, a partir ainda da década de 60, wma des- valorizacio da ética protestante enquanto repressio do desejo e a proposicéo de uma ética do corpo, uma ética que levaria em conta tode um procesto politico de desrepressio do po- tencial humano de cada individuo. Pele fato de fincar 0 corpo no presente, de colocar 0 corpo como o lugar das sensagdes auténticas, da experiéncia vital, essa nova postura ética desvin- cula também o homem da possibilidade de supervalorizar 0 fa- taro em detrimento do passado. Finalmente, chegaria 4 poética do agora. Diz Paz: “A viséo do agora, como centro de convergéncia dos tempos, original~ mente visio de poetas, transformou-se numa crenga subjacente nas atitudes e idéias da maioria de nossos contemporaneos. O- presente tornou-se o valor central da triade temporal. A relagio enue os és tempos mudou, porém essa mudanga nio implica © desaparecimento do passado ou do futuro: a0 contririo, ad- quirem maior realidade, ambos passado e futuro tomam-se di- mensées do presente, ambos sio presengas ¢ estio presentes no agora.” Vocés estio vendo que dentro da pottica do agora de Paz comega a haver lugar para uma concepgao de passado que nie estaria marcada pela rmptora no presente, ¢ para uma con- cepcio de fururo sem supervalorizacio pela utopia. Nio indo nem para passado nem escapande pelo futuro, fincando pé no agora, por ai vemos de que maneira sub-repticia o passado © a qadicio comecam a entrar na construco do presente. Ao mesmo tempo, vamos desligando-nos da estética do make-it- new, da ironia com relagio aos valores do passado. Portanto, ha uma confluéncia das erés dimensées do tempo em Paz que seria a abertura para que se pudesse discutir, dentro da poesia, © novo papel da tradicio. Ainda nesta primeira parte do trabalho, acrescento que vejo, paralelamente 4 configuracio do ocaso das vanguardas, 0 A permantncia do discerso. 18s aparecimento da nogio de pés-moderno. Chamatia apenas a atencio de vocés para um fato que é bastante evidence. em particular nas discussées recentes sobre arquitetura: os arquitetos pos-modernos estiio buscando uma convivéncia nio-destruti- va com © passado. Um exemplo bastante revelador do que é a posicio oposta, a oposiggo moderna, enconira-se na construcio do edificio que a expressio maxima do moderno entre nds, © edificio do ministério que, na década de 30, era 0 da Educacio Saiide. Esse ministério estava antes abrigado em um belissimo prédio fin de siéle, na Cinelandia, infelizmente hoje demoli- do. Os arquiteros, agora, estio se dando conta da destruigdo que houve do passado, sem cair obviamente na recuperagio do passado pelo kitsch como encontramos em Botafogo. Kitsch, para mim, é pintar os belos sobrados de Botafogo de cor-de- Tosa, morango etc. Nao é a isso que estamos nos referindo. Nem o kitsch, nem a destruicdo do passado, mas a convivéncia de estilos de ¢pocas diferentes; nem tampouco a ironia ¢ a pa~ rédia, Nem tampouco, ainda, a condigio de Quro Preto, onde © passado @, por assim dizer, salvaguardado no seu proprio passado, sem nenhum contato com o presente. O tratamento do pés-modemo esti no livro de Paolo Portoghesi sobre a ar quitetura pos-modema, ou num artigo recente de Fredric Jame- son; estaria também no pouco caso que as novissimas geragées dispensam 4 parddia, ja que passam a trabalhar mais e mais com o estilo do pastiche. Assim, saindo da parédia e da ironia com reélag3e ao pasado, ¢ passando para o pastiche, o artista pés-modemo incorpora a tradicio € 0 passado de uma maneira onde a confiabilidade seria a tonica, respaldada pelo pluratismo. Vamos agora i segunda parte, onde pretendo expor o conceito de tradi¢io em Eliot ¢ 0 de tradicio da analogia em Paz, para ver como ambos trabalham com cssas nogées reacio- ndrias dentro do modemo, Eliot, no seu artigo ji citado, “Tradigao e talento individual”, procura desmascarar um processo tipico que encontramos na critica do modemo, espécie de preconceito que temos: 0 et tico modemno apenas elogia um pocta naquilo que, na poesia dele, menos se assemelha 2 dos outros. O critico modemo vai 116 NAS MALHAS DA LETRA sempre dar énfase ao traco individual, vai sempre valorizar o talento original do escrito. Eliot diz que ai esta um precon- ceito bastante simples de ser demascarado: “No entanto, sc abor~ darmos um poeta sem esse preconceito, muitas vezes vamos des- cobrir que nio s6 as melhores mas as partes mais pessoais do seu trabalho podem ser aquelas em que os poetas martos, seus ancepassados, aficmam a sua imortalidade de maneira mais vigo~ rosa.” E pelo compromisso do poeta moderne com os poetas mortos, pela afirmagio da imortalidade do discurso da poesia, que estaria se definindo o discurso da tradigao em Eliot. Eliot, é claro, descarta o sentido de tradi¢do que seja apego cego ou timido 3s conquistas dos que precedem imediatamente a nova geragio. Acho importante dar essa definigao de “falsa uadicio” porque € por ai que descartamos, nesta revisio do modesnismo, um grupo como “Festa”, que teve certa notorie- dade na década de 30 no Rio de Janeiro. © grupo “Festa” t- nha sma proposta de discurso de tradigio no modernismno, mas no fundo era uma proposta de falsa tradigio porque se tratava de um neo-simbolismo. Isso nio é a verdadeira tradi¢go para Eliot, isso & simplesmente a retomada de uma geracio ime- diatamente anterior, retomada das conquistas de uma geragao anterior dentro de uma estética que jé no comportava mais 05 vethos padrées. Isso, sim, nada mais era do que — ainda hoje & — passadismo, academicismo. Eliot vai dizer-nos que o sentido da verdadeira wadi¢ao esti ligado a nog3o do que ele chama de “sentido histérico”, em inglés, Aisiorical sense: “O sentido histérico envolve uma percepcio nfo sé da condicao passada do passado, mas tam- bém da sua contemporaneidade.” E continua: “O sentido his tético leva um homem a escrever no so com a sua propria geTAGIO nos ossos, mas com o sentimenta de que todo d2 - teratura da Europa, desde Homero, e dentro dela o todo da literatura do seu pais, tem uma existéncia simultinea ¢ com- bde uma ordem simultanea.” Eliot incorre para nés em evi- dente curocentrismo, ¢ por ai que realmemte deve ser recha- gado. Uma das caracteristicas do modemismo vai ser o apego construtive 4 nossa civilizagio indigena de um lado € as civie A permantricia do discurso... 7 fc q q b y hk lizagGes africanas do outro. Nao ha déivida nenhuma de que a nogio de tradicio estaria vinculada, em Eliot, a uma tnica e exchusiva tradic¢io ocidental. Esse pode ser o caso de Murilo Mendes, certamente 0 nosso maior poeta madernista eurocén- trico, mas no vai ser o caso de Oswald de Andrade. Em vir- tude da visio do passado enquanto contemporineo nosso, em razio ainda do eurocentrismo, é que Eliot foi sempre malvisto no Brasil. A estética dele, por exemplo, no condizia com os principios de revisio histérica pregados pelos nossos poetas do primeiro momento modernista. A partit, portanto, do solo a- dicional que estou tentando circunscrever aqui, estaria emergin- do 0 valor da tradigio, estaria emergindo ainda a possibilidade de se compreender 0 modemismo hoje de uma maneira que nio € mais a convencional. Por convencional entendo a ma- neira como © movimento foi interpretado até pelos livros di- daticos. A nossa tentativa deve ser, pelo contrério, a de, sem desmerecer a perspectiva vitoriosa ¢ dominante, compreender © modernismo dentro de especulages que levam em conta a tradigao (sem resvalar para a falsa tradi¢io). Para que discorra um pouco sobre a tradi¢io da analogia no discurso da poesia moderna, é importante que explique o raciocinio de Paz nesse tocante. O raciocinio é 0 seguinte: Paz percebe no poeta moderno uma relagio sempre contraditéria com a histéria, diz que 0 poeta moderno comeca sempre por uma adesio entusiasta i historia, 4 revolugie, para em seguida romper bruscamente com os movimentos revoluciondrios de que participou, sejam eles a Revolugio Francesa, a Russa ou a Cubana. Sei tudo o que hd de discutivel na “descoberta” de Paz; no entanto, o interesse hoje é muito mais o de reproduzit © pensamento alhcio para mustrar, cettamente, até que ponte o discutso da tradi¢ao no interior do moderno estaria ligado a tum pensamento de tipo neoconservador. Talvez tenha adian~ tado um pouco as coisas, mas um dos pontos que a gente po- deria discutir mais tarde & que Eliot ¢ Paz mantém, com relagio 4 politica, uma atitude neoconservadora. Talvez seja por isso que esteja perdendo (ou ganhando?) um pouco do meu tempo falando dos dois poetas para que depois possa articular com ihe NAS MALHAS DA LETRA maior seguranga ¢ melhor conhecimento de causa o fato de que, quando se fala de tradi¢éo, encaminha-se necessariamen- te para uma critica aguda do iluminismo enquante razio critica, € pata uma critica contundente da idéia de revolugdo segundo o modelo estabelecido pela Revolugao Francesa. Estaremos tam- bém expondo para poctas cngajados na luta revolucioniria este possivel disparate: a impossibilidade de um poeta, ma idade ma- dura, endossar os valores politicos ditos positives pela historia moderna. Retomando Paz: na época do dominio da razio critica da secularizagio do saber, 0 poeta moderno io encontra asilo no proprio solo histérico, ele € um religioso. Nio encontrando ‘© solo histérico do presente para poder apoiar a sua poesia, o poeta moderno, segundo Paz, vai buscar o que ele chama de tradigio da analogia, on seja, o conhecimento que era definidor da episteme no século XVI, quando a visio do universo era dada como um sistema de correspondéncias (vide Michel Fou- cault, Les mots et les choses, capitalo “La prose du monde”). Quando comegamos a conhecer a semelhanga, por exemplo, que uma determinada semente mantém com os olhos, estamos descobrindo que ela deve fazer bem aos olhos. Descobrir a correspondéncia é chegar a um saber. Tradicio da analogia: uma visio do universo como sistema de correspondéncia e uma linguagem que é uma espécie de duplo do universo. O poeta moderno, para Paz, se desliga politicamente de um compro- misso com a sua histria e finca pé na texta do século XVI, onde a linguagem poética, pela correspondéncia entre coisa ¢ palavra, funda o universo ¢ o saber. Pela linguagem da analogia, © poeta é o fundador do universo ¢ do saber, ele di nome as coisas. Nao se deve confundir esta com a postura nietzschiana, onde © dar nome is coisas significa também um ato de poder sobre as coisas. Nio & exatamente disso que Paz fala. Fala do poeta modemo como fizndador, do poeta como o homem reli- Bioso que pela primeira vez nomeia as coisas e, nomeando-as, esta crianda poesia. A tradigdo, no raciocinio de Paz, tem o sentido de um solo histético do saber que 0 poeta toma de empréstimo ao A permanéncia do discuse... 119 passado para que possa articular a sua reaséo contra os princi« pios revoluciondrios motores da modernidade. Portanto, a tra- digio da analogia, como falei anteriormente, esti escamoteada no livto Os fithos do barro na fungio que tem de reacio aos principios da modernidade. Ela € reacionaria, no sentido eti- molégico que Ihe empresta E. M. Cloran. Dito isso, passarei a uma discussio mais concreta: como julgamos a tradicio quando falamos do modernismo brasilei- ro? Como jé disse, vou dividir a resposta. Passarei com rpidez pela menos interessante ¢ me deterei mais na que julgo mais interessante. Nao hi dévida nenhuma de que, por volta de 1945, na poesia brasileira hi um retormo positive das chamadas formas classicas do poetar, o virus do Sonetococcus brasitiensis. Hi, por exemplo, um retorno do soneto tanto num Ledo Ivo quanto num Vinicius de Moraes, e vamos encontrar ainda 0 envolvimento com a tradigo até mesmo em Jodo Cabral, quan- do escreve os poemas utilizando o verso retirado do romance popular. ou quando, no nivel da composicio, vai utilizar o auto dentro da tradicio de Gil Vicente. E nessa época também que surgem os nossos primeiros historiadores modernistas da Literatura brasileira, como Antonio Candido ¢ Afrinio Coutinho; sio eles que estabelecem os padrées modernistas da tradicio. Esse envolvimento dos neves modernistas com a tradicio vai influenciar os chamados primeiros poetas modemistas: ¢ 0 caso a que me referi, de Carlos Drummond com o poema “A maquina do mundo”. Drummond tinha assumido nitidamente até 1949, até Claro enigma, uma postura politica de tipo revolu- ciondrio, aproximando-se mais e mais do Partido Comunista, e de repente retoma a tradi¢ao lusa em Camées. Reparem como Paz tem razio: 0 apelo a tradicio no modernismo vai entrar sempre préximo do rompimento do pocta com uma linha de patticipagio politica do tipo marxista ¢, a0 mesmo tempo, vai imaugurar uma preocupagao maior pela poesia, com o ser da poesia, com o fato de 2 poesia, ralvez, estar irremediavelmente desligada de um compromisso maduro com a historia presente do poeta. No momento em que Drummond se desliga do PCB. em que Drummond relega a segundo plano a “rosa do povo”, 126 NAS MALHAS DA LETRA em que abre um livro dizendo que “escurece, nio me seduz sequer tatear uma limpada”, no momento em que rejeita a pocsia solar ¢ participante, comega também a se interessar, sem ironias, pelos grandes temas da tradigdo luso-brasileira. © caso mais interessante, 2 meu ver, para se falar de tradi~ gio no modernismo, ¢ ai desvinculo-a da node de neoconser- vadorismo, seria a viagem feita pelos modernistas, em 1924, a Minas Gerais, viagem na qual fazem parte, entre outros, Mério e Oswald, ¢ um poeta suigo, radicado na Franga, Blaise Cen- drars. Esses poctas estavam todos imbuidos pelos principios futu~ ristas, tinham confianga na civilizagio da maquina ¢ do progres- s0 ¢, de repente, viajam em busca do Brasil colonial. Deparam com © passado histérico nacional e com — o que é mais im- portante para nés —, com o primitive enquanto manifestagio do barroco setecentista mineiro. Sobre a viagem, cito uma ob- servagio aguda de Brito Broca: Antes de tudo, 0 que merece ceparo, nessa viagem [a Mi- nas} € a atitude paradoxal dos viajantes, Sio todos moder- nistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espiritos conformistas, o que vio eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocagio do pasado e, em iltima anilise, tudo sugere ruinas. Parecia um contra~ senso apenas aparente. Havia uma logica interior no caso. O divércio em que a maior parte dos nosses escritores sempte viveu da realidade brasileira fazia com que a paisa- gem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade ¢ originalidade que eles procura- vam. E nao falaram, desde a primeira hora, numa volta as origens da nacionalidade, na procura do filo que condu- zisse a uma arte genuinamente brasileira? Pois [4 nas ruinas mineiras haviam de encontrar, certamente, as sugestdes dessa arte. [...] Mas essa excursio foi fecunda para o grupo modernista. Tarsila teria encontrado na pintura das igrejas ¢ dos velhos casarées minciros a inspiragio de muitos de A permantecia do discurso... 11 seus painéis; Oswald de Andrade colheu o tema de varias poesias pau-brasil, ¢ Matio de Andrade veio a escrever en- to seu admiravel “Noturno de Belo Horizonte”. Brito Broca, 2 meu ver, é muito feliz mostrando 0 dilace- ramento do modernismo, logo no seu inicio. Por um lado, uma estética futurista que pregava a desvinculagio com 0 pas- sado, ¢ nesse sentido ¢ bom lembrar 0 “Manifesto fucurista”, onde Marinetti pregava o incéndio de bibliotecas ¢ museus; ¢, por outro lado, © choque no contato inesperado ¢ frutifero com a tadi¢io mineira, E 0 que surge desse contato? Ha uma crdnica de Mario de Andrade, escrita logo apés a viagem, em. 1924, em que ele relata a experiéncia do grupo diante do qua~ dro da tradic3o barroca. Vou selecionar da crénica apenas trés topicos para que se veja como mergulham na tradigdo poetas € pensadores que nio estavam de maneira nenhuma predis- postos a enxergar o passado sem a ironia dadé. © primeiro tépico que seleciono se refere a atitude de Tar- sila com relagio a Paris. Tarsila, diante de Ouro Preto, diz que quer voltar a Paris, mas nio quer mais volar a Paris para saber da Gltima moda. Quer voltar para aprender a restaurar quadros. Tarsila j4 enxerga Paris como o lugar no mais para o demier ori, mas © lugar onde poderia adquirir um saber que propor- cionasse a restauracio do passado colonial brasileiro, infeliz- mente em estado lastimavel. Eis a passagem: “Mas, voltando a0 assunto, que maravilha caida do céu a nossa Tarsila! To- mou-a agora um fogo sagrado... Os olhos brilham. A voz fir- mou-se enérgica, verdadeira. Que é de Paris? Que € do Cubis- mo? — Nig, Malazarte. [Malazarte é 9 nome que Mario usa para assinar a crénica.] Volto a Paris, mas para me aperfeicoar ainda mais nos processos de restaurac3o de pinturas. Depois venho para Minas. E preciso conservar [o grifo ¢ nosso] tantos tesouros. Eu estou pronta. E sem nenhuma paga. Que remu- neragio melhor para mim que restituir 3 pequena e maravi- Thosa Rosario de Sio José d’el Rei o esplendor passado do sett teto? Toda a minha vida que se resumisse nisso... eu seria feliz! Gosto das grandes empresas.” Bastante significativa € essa pe- 122 NAS MALHAS DA LETRA quena passagem porque esti em germe ai um dos grandes projetos “conservacionistas” dos modernistas: aproximam-se do Ministério da Educagao ¢ Saide na década de 30 para a cria— gio do SPHAH, Mirio de Andrade a frente. A meu ver, 0 dis- curso mantido por Tarsila, resquicio do discurso da tradicio ao lado da estética nitidamente futurista ou dada dos modernis- tas, serve para erguer a institucionaliza¢do bastante ripida do credo modemista no Estado Novo. Parece que Tarsila fala aqui como se fosse Rodrigo Mello Franco, s6 que esta falando em 1924, 0 que bastante significativo. Por outro Jado, ha um trocadilho muito divertido de Os- wald de Andrade na mesma cronica: eles encontram um indi- viduo chamado Senna, que Ihes serviu de guia em Sao Jodo d’el Rei. Num determinado momento, Oswald faz um destes trocadilhos maravilhosos: “Oswald jura que jamais tivera a intengio de abandonar Paris para vir encontrar o Senna em Sao Joao d’el Rei.” Vemos, de certa forma, como ambos, Tar- sila © Oswald, nesse momento preciso do modetnismo, estio imbuidos da necessidade do apego 4 tradicio, 4 madigio colo- nial setecentists mineira. Dai para o matriarcado de Pindora- ma sera um passo. O terceiro exemplo @ de responsabilidade do autor da cré- nica, Mario. Faz ele uma critica severa da arquitetura moder- na que encontra nas grandes cidades do Brasil, Diz o seguinte: “Pois é: ndo vé que esto a encher as avenidas de Sio Paulo de casinholas complicadas, verdadeiros monstros de estagdes balneirias, de exposigdes internacionais. Por que no aprovei- tam as velhas mansGes setecentistas tio nobres, tio harmonio- sas, € sobretudo, tio modemas pela simplicidade do traco? Em vez, nio sujam a Avenida Paulista com leicencos [sic} mais patecidos com pombais feitos por celibatério que goza aposen- tadoria.” E continua fazendo uma critica violenta ao que seria uma arquitetura moderna em So Paulo naquele momento e, alvo maior da critica, a Catedral de Sio Paulo, que estava sen- do construfda na época. Estou quetendo chamar a atengio de vocés para o fato de que nao precisamos ir 2 geracio de 45 para ver a presenga ni- 4 permanEncia da discerso. 123 tida de um discurso de restaurag3o do passado dentcu do mo- demismo. A contradigio entre futurismo, no sentido europeu da palavra, ¢ modernismo, no sentido brasileiro, j4 existe em 24, no momento mesmo em que os novos esto tentando im- por uma estética da originalidade entre nés. A emergéncia do discurso histérico no modernismo visa a uma valorizagio do nacional em politica e do primitivismo em ane. E nio hi di- vida de que a melhor mostra dessa valorizagio do nacional do primitivo se encontra na obra de Tarsila, em terms plisticos, na poesia de Oswald, em termos propriamente Siterarios. Mas aqui gostaria de fazer uma abordagem de Oswald distinta da anilise de sua obra que di énfase 4 parddia. Se se valotiza, numa leitura da poesia e do pensamento de Oswald, a parédia, é claro que nio serd possivel ver 0 trago que estou procurando trazer i tona. A parddia, ao fazer ironia dos valo- res do pasado, faz com que o presente rompa as amasras com © passado, cortando a linha da tradip30. Dessa forma, temos, se estamos interessados em ver como sc manifesta na pocsia de Oswald de Andrade 0 traco tradicional, que abandonar a lei- tura feita em particular pelos poctas concretos na década de 50 e, de certa forma, fixada pelos novissimos nas décadas de 60 € 70. Temos que buscar um outro Oswald, o dos textos filosd- ficos. Diria que a maioria das pessoas que conhecem bem a obra de Oswald nie chegaram a ler com cuidado os textos filos6G- cos do autor, 0 que, também, nao deixa de comprovar a idéia de que a leitura do modemismo foi feita muito em cima da es- tética da ruptura, portanto, no deixando catrever o que os textos filoséficos mostram. £ bastante raro dentro do modernismo um poeta que te- nha uma visio filoséfica de nmundo explicita em textos concei- tuais. E essa visio de mundo esti em Oswald marcada por uma nogio original do conccito de utopia, que nao seria nem a utopia nitidamente marxista, nem a utopia tal qual definida pelo modelo da Revolugo Francesa — para Oswald, a utopia & caraiba. © saber selvagem, diz Oswald, vem questionando © saber curopeu desde o primeiro contato da Europa com a Amé- rica. De Montaigne a Rosieau, ou seja, passando da critica as a NAS MALHAS DA LETRA guertas religiosas a Inquisigio ¢ chegindo ao bom selvagem de Rousseau, sem esquecer a Declaragio dos Direitos do Ho- mem, © selvagem tem sido o motor da utopia evropéia. Oswald, com © pensamento ¢ a acho antropéfagos, visa a trazer a utopia caraiba eutoptia para o seu lugar priprio — o Brasil. A utopia oswaldiana questiona ainda o fato de a sociedade ocidental ser patriarcal — © ai esté um outro deslize de sentido proporcio- nado pelo pensamento de Oswald que é bastante rico. Teremos de reentrar em solo matriarcal brasileiro, devidamente industria~ lizados, para que a utopia se dé plena. Dar-se-4 no concreto do matriarcado de Pindorama, revisto pela tecnologia. Vou ler uma frase de Oswald que é bastante reveladora da relacio entre falsa utopia e patriarcado, gerada aquela pelos movimentos messidnicos: “Sem a idéia de uma vida futura, seria dificil a0 homem suportar a sua condigdo de escravo; dai, a importincia do messianismo na historia do patriarcado.” Dentro da ordem patriarcal, 0 homem é esctavo no presente. © futuro utépico proposto pelo messianismo ratifica a infelic dade do presente. A verdadeira utopia j4 comeca a ser 0 pro- prio presente. E cito Oswald de novo: “E hoje, quando pela técnica € pelo progresso social ¢ politico atingimos a era em que, no dizer de Aristételes, os fusos trabalham sozinhos, o homem deixa a sua condigio de escravo € penctra de nove no limiar da idade do dcio, é 0 outro matriarcado que anuncia.” A técnica chegaré a um determinado estigio em que nio mais deixara o homem trabalhar. Poderd dedicar-se ao écio {e nao ao negocio, como na sociedade patriatcal). Dedicando-se ao écio no eterno retorno do matriarcado de Pindorama, apro- veitando-se ainda da tecnologia, © homem chega a condicio de “birbaro tecnicizado”. Insisto em dizer que a utopia em Os- wald j4 comeca a se dar no presente, como ele proprio diz, ¢ repito: “E hoje [grifo nosso], quando pela técnica € pelo pro- gresso social e politico atingimos a era...”. Nio me deterei muito em Oswald; quero, no entanto, deixar claro que a nogio de tempo que tematiza nio é marcada pelo progresso linear da civilizagio humana, mas por um mo- vimento contraditério. Parece que a técnica caminha em linha A prrmartucia do discurso... 125 reta para, depois, se fechar num circulo, retomando o matriar- cado de Pindorama, ou seja, para Oswald © Brasil é por exce- Isncia © pais da utopia, desde que — como pensavam os mo- dernistas — se atualizasse pela industrializagio, Voltando ao matriarcado de Pindozama, 4 origem do Brasil ¢ da utopia mo- derna na Furopa, chegamos ao futuro. Dessa maneira, Oswald tenta conciliar a visio linear progressiva em direcio ao futuro com © rétomo ao matriarcado, Seria o que se pode chamar de eterno retorne em diferenga. Nao seria o eterno retorno do mesmo, j4 que Oswald nio quer, come Policarpo Quaresma, que o Brasil volte a ser um pais indigena. Esca teoria de Oswald, por incrivel que parega, tem sido reativada por alguns antropo- logos franceses, em particular Pierre Clastres. Clastres tem mos- trado como os indigenas brasileiros construfam o social sem a nogio de poder coercitivo, Esta seria a nossa diferenca basica com relago aos incas e astecas. Essa auséncia de poder coerci- tivo (de repressio, diria Oswald} se encontra tematizada nas melhores paginas sobre o matriarcado. Uma utopia onde nio haveria chefes, onde haveria uma comunidade de iguais. Sem negocio, pleno dcio. Passemos agora a Murilo Mendes. Um detalhe importante na sua poesia € a conversio ao catolicismo, em 1934, sob 2 inspiracio do pintor e pocta [smae] Nery. O discurso cristio seria a outra marca importante do discurso da tradigo na poe- sia modema brasileira. Nesse sentido, é curioso observar como Murilo vai retcomando a mesma atitude de Eliot, desejando nio mais afirmar o seu talento individual, mas procurando dar continuidade a um discurso que j4 preexistia a ele, o discurso do cristianismo, Nesse sentido, para os que se interessam de perto pela poesia de Murilo, lembro um fato curieso: nio quis que reeditassem um de seus livros, Histéria do Brasil, certa- mente porque nele estava manifesta a sua preocupacio estresta com o nacional, através do estilo parodistico. Nao fazia mais sentido num discurso de convertido, no discurso universalizante do cristianismo, a preocupacio limitada com o nacional. No momento em que abandona a vertente nacionalizante do mo- dernismo, Murilo deixa de ser apenas um poeta para ser pro- 126 NAS MALHAS DA LETRA feta. E nfo € por acaso que se transfere para Roma, onde vem mais tarde a falecer. Questio de coeréncia. Tinha de morrer na Europa. Eis a histéria de Pedro, da pedra e da eternidade. O discurso da tradigao que retoma os valores do cristianismo tornava praticamente impossivel a relagio cotidiana do poeta com o Brasil. Alids, fato semelhante se di com Henry James ¢ T.S. Eliot. Eliot abandona a cidadania americana, assume a in- glesa, converte-se a0 anglicanismo ¢ acaba por receber o titule de sir das mios da rainha. Parece que todas as vezes em que falamos do discurso da tradic3o curopeizante, em que tentamos ver a rentabilidade desse discurso dentro do moderno, caimos sempre num pensamento de tipo neoconservador. No caso de Manilo, a propria definigio de tempo € muito interessante. Um de seus poemas, “A flecha”, é sintomatico na contradi¢io que apresenta ao proprio movimento da metifora — a flecha — do fluir do tempo. Diz 0 seguinte 0 poema: © motor do mundo avanga; Tenso espirito do mundo, Vai destruir e construir ‘Até retornar a0 principio. Concluimos, ainda, que, quando surge a questio da tradicio em poetas que tém uma visio de mundo mais amph, o discur- so poético se alimenta da problematica do eterno retorno. No. caso de Oswald, j4 vimos, o eterno em diferenga, o birbaro tecnicizado. No caso de Murilo, 0 principio bisico do cristia- nismo que diz que o fim esté no come¢o. O motor do mundo avanga, mas 0 faz da maneira mais estranha, pois vai construindo e destruindo até chegar ao principio de tudo que, ‘por sua vez, € 0 fim: Ejs-me sentado 4 beira do tempo Olhando 9 meu esqueleto Que me olha recém-nascido “Beira do tempo” uma imagem clissica em Murilo para A permanincia do discurse... 127 designar a eternidade. Na beira do tempo 0 poeta cristio olha © proprio esqueleto que, por sua vez, se otha recém-nascido. interessante é chamar a aten¢io para o fato de que em Mu- nilo estamos diante do eterno retomo do mesmo. O fim ja esta no principio e © ptincipio no fim. Prosseguindo, acrescento que nio deixa de ser curiosa a postura poética de Murilo durante a guerta de 39 a 45, capitulo ainda muito mal-estudado da nossa literatura. Conhecemos bem a atitude de Drummond através dos varios estudos que dela foram feitos. A postura vitoriosa é sempre mais atraente nestes Brasis que detestam os perdedorcs. Para Drummond, o poeta finca pé na histéria, entra com os mussos em Berlim, dé- nos a visio do maztirio de Stalingrado, ¢ assim por diante. O poeta faz poemas com a presenga forte do discurso da historia politica € social, por assim dizer reduplicando-o em versos. Murilo, 20 estabelecer uma dicotomia entre tempo e eternida- de, complica o esquema temporal da histéria moderna. O tempo histérico caminha em linha reta, mas o tempo cristo, redengio do tempo histérico, converte a linha reta num circulo, que reduz © paradoxo do fim no principio © do principio no fim. Uma frase de Murilo concretiza para nés a implicagio politica do dualismo tempo e etemidade. Ele afirma que 0 capitalismo, com relagio a0 comunismo, é reacionério, mas 0 comunismo, com relagao ao cristianismo, também é reacionério. Para Murilo, ha a inevitabilidade de uma evolugio historica que passa pelo capitalismo, comunismo etc., mas tudo isso sera reacionario na dimensio eterna do cristianismo. Retomemos, Munilo traba- Tha o discurso histérico ¢ social da guerra de 39 a 45, ¢ mesmo 0 discurso critico da ditadura Vargas, nio com uma linguagem que reduplica esses discursos (caso, por exemplo, de Drum- mond, repito), mas com uma linguagem fabular. Procura mos- tear que sempre houve o jogo entre a inocéncia € a crueldade e, para nos falar do conflito bélico ¢ do autoritarismo decorrente, utiliza a forma de apdlogos ou parabolas, Cito trés poeminhas curtos de Poesia fiberdade, muito instrutivos para ver como 0 discurso da cradi¢io cristé impede que se enxergue 2 especifi- cidade do histérico. O primeire poeminha diz o seguinte: 128 NAS MALHAS DA LETRA A inocéncia perguntou 4 crueldade: Por que me persegues? A crueldade respondeu-the: -— Et, por que te opdes a mim? Uma se sente perseguida, ea outra também. A crueldade nio pode existir sem a oposigio da inocéncia. E vice-versa, Es- tio vendo que o suporte nitido do poema é a fibula do lobo do cordeiro, e & ese 0 comentario que Munlo faz a esséncia do conilito bélico nas contradigées combativas. © poema seguinte fala da evidéncia, da inevitabilidade da hierarquia no mundo dos homens: A aveia do camponés Queixou-se do cavalo do ditador, Entio o cavalo forte Queixou-se das esporas do ditador. Vemos que hi uma hierarquizagio, da aveia até as esporas do ditador. E dessa forma — pelo inevitivel conflito de hierar quia ¢ a consegiiente violéncia — que Murilo faz suas criticas aos ditadores da epoca. Mas o ditador nao ¢ apenas Getiilio, Hitler ou Mussolini, aquele ditador que encontramos, com disfarces ou no, nos poemas engajados de Drummond ¢ tan- tos outros. E um ditador conformade pela relagao conflituosa entre as coisas ¢ os seres. E um ditador universalizado, abstea- tizado, simbélico, manifesto pela forma parabélica E o titimo dos trés poeminhas faz um jogo entre as duas dimensdes temporais; © tempo propriamente dito © a eterni- dade. Leiamos © poema: O pensamento encontrou-se com a eternidade E perguntou-lhe: de onde vens? — Se cu soubesse mio seria eterna. — Para onde vais? — Volto para de onde venho. A permandncia de diseurso. 128 A medida que Murilo vai assumindo © discurso religioso, a sua poesia vai-se desvinculando mais e mais do contato com 9 tempo histonico, com o presente imediato do poeta. A poe- sia passa a dar-nos um comentario fabular, parabélico — no sentido de paribola como se encontra no Novo Testamento —~ a respeito das questées mais candemtes da vivéncia social € politica do poeta. ‘Terminaria a nossa conversa de hoje sobre a permanéncia do discurso da tradiggo no modernismo quase sem palavras, ou com pequenas palavras, dizendo que talvez seja ircemedia- vel o fato de que, dentro da estética da ruptura caracteristica da modernidade e do modernismo, nas vezes em que fomos buscar o trago forte da tradicao, ou até mesmo o trago pouco vincado, nos aproximamos mais e mais de uma poesia, de uma produgio pogtica que se desliga do social enquanto dimensio do histético vivenciado pelo poeta, Isso as vezes pode beirar ~— € muitas vezes beira — o neoconservadorismo. DEBATE Qual o significado, se & que hd algum, do pensamento socioligico de Max Weber para uma base de crltica do pensamento modemo na Europa? Vocé poderia discorrer sobre as possiveis causas do retraimen- to do pensamento utépieo ou revoluciondrio? Acho que a primeira parte da pergunta escapa completa~ mente ao teor da conferéncia ¢, por outro lado, sou fiel 2 mi- nha modéstia, sou um professor de literatura e de maneira ne- nhama vim aqui para discorter sobre Max Weber. Vou me ater i segunda parte: Tentei apresentar esse retraimento a par- tir da visio de Octavio Paz no livro Os filhos do bao. Tenho a impressio de que as categorias que ele menciona, em parti- cular a de ética, pode ser de alguma ajuda. Fala de uma poli- 130 NAS MALHAS DA LETRA tica, do corpo, do ressurgimento de um corpo que nio estaria mais comprometido com a ética protestante do trabalho, um corpo que recusa, inclusive, a colonizacio, usando a termino- logia dele, 2 colonizagio do facuro, Esse corpo, entio, estaria fimcando mais ¢ mais © pé no agora; nese sentido, um corpo que é fruigo. Poderiamos discutir aqui, de novo, 0 que pode- na haver de conservador nesta idéia, mas 2 meu ver essa idéia estaria ligada & emergéncia, em particular na décade de 70 as chamadas minorias sexuais. De certa forma, na nossa socieda~ de ocidental, em particular, o prazer esteve muito vinculado a uma certa normalizag3o da conduta sexual, ¢ quando essa con- duta nao era normalizada as pessoas se sentiam enormemente infelizes. Acho que a emergéncia de um pensamento de mino- ria, © 20 mesmo tempo a necessidade de um. corpo destepnmido, de um corpo que pode ser pura alegria (tépico que Paz nio trabalhou), seria também a critica do pensamento como sendo um pensamento que apresenta o presente como sempre emt es- tado de softimento, de martirio, de penuria. De certa forma, esse sofrimento, esse martirio no presente, € sempre cedimido pela possibilidade de uma utopia. Invertendo os termos, dizendo. que o presente pode ser vivido, pode ser vivido alegremente, sem as amarras de repressio, estariamos descondicionando a possibilidade ¢ a rentabilidade de um pensamento de tipo wedpi- co. Quando eu falo da alegria, fica dbvio que a critica do pen- samento utopico passaria necessariamente por Nietzsche, passa- ria necessariamente pela critica do sofrimento, do martirie, pela critica de uma certa teologia que se encontra ém toda utopia € em todo pensamente revolucionério. G que Octavie Paz chama de tradigao da ruptura parece no ter nada a ver com a tradig&o de Eliot, vinculada a nogio de permantncia. Se algo “permanece” to modemo de Paz é a obrigagao de inovar, de provocar rupturas, A afirmagao é paradoxal, quem inova & quem estd de acosdo. Numa situagio como esta, que sentido ainda existe em cha- mar alguém de conservador? Nao estaramos sendo modernos demais? A permanéacta do discarso... (3 Tentet chamar a ateng3o para o fato de que eu estava fa- zendo uma leitura meio traigocira de Octavio Paz. Ele escreve © seu livto para falar da tradigao da ruptura, para falar da im- portincia do original dentro do projeto moderno, mas Paz esti também interessado em justificar o fato de que o poeta entra em contradigfo com o seu presente, entra em contradicio com a historia, Segundo Paz, quando o poeta surge, adere sempre 4 revolugdo, mas, na medida em que vai se tomando maduro, rechaga a revolug3o. Como sabemos, Octavio Paz defende a interven¢io dos EUA na Nicarégua. Estou tentando mostrar que Octavio Paz cria o que chamei de um solo histérico para a sua criagéo, que é o da analogia. Como em Baudelaire, onde tudo se corresponde, ou se preferirmos, 0 livro de Antonin Ar- taud, Les Tarohumaras, O poeta & aquele que anuncia estas cor respondéncias secretas entre as coisas do mundo; portanto, no momento mesmo da secularizag¢io do conhecimento, o poeta assume 0 discurso religioso da génese. E essa contradigao que eu tentei explicar chamando a aten¢io para o fato de que, sub- repticiamente, aparece no livro sobre a tradigio da ruptura a tradiggo da analogia. Existem dois significados para a tradigdo no livre de Octavio Paz: um que é 0 que aparece 0 tempo todo, 2 tradigio make-it-new, outro o da tradi¢io da analogia. Para ele, a wadicfo da ruptura esti chegando ao fim porque os pro- cessos que marcariam essa tradigio estio ficando mais ¢ mais esclerosados. Foi nesse sentido que eu tentei encaixar essa es- clerose do moderne a uma reflexio que caminha para o pos- moderno. Paz diz o seguinte: “Hoje somos testemunhas de outra mutagio, a arte moderna comega a perder seus poderes de negagio, hi anos suas negacdes sio repeticdes rituais, a re- beldia convertida em técnica, a critica em retérica, a transgressio em ceriménia, a negagdo deixou de ser criadora; no quero di- zer que vivemos no fim da arte, vivemos o fim da idéia de arte modema.” Tados recebemas hoje em dia, em casa, uma deze- na de livros cujo estilo ¢ a parddia; para dizer a verdade, eu nio dou mais a minima importincia a esses livros porque a paré- dia, em termos de discurse poético, virou uma espécie de ce- rimonial de iniciagao. E nesse sentido, entéo, que Paz, que faz 132 NAS MALHAS DA LETRA a apologia da estética da ruptura, durante © periodo moderno, vai enxetgando também um fim da estética da ruptura, porque essa estética da ruptura, hoje, nada mais ¢ do que técnica, nada mais é do que um ritual, nada mais € do que uma ceri- médnia. Foi dessa forma que, sub-repticiamente, tentei ligar o pensamento de Octavio Paz 4 emergéncia do pés-moderno ou ao ocaso das vanguardas, tentei mostrar que h4 dois conceitos de tradicio em Octavio Paz e como um conceite & operacio- nalizado 0 tempo todo € 0 outro conceito nic o é, fica como pano de fundo. Finalmente, centei mostrar como esta idéia da tradi¢30 da ruptura, que foi a idéia dominante do romantismo ate hoje, esta chegando a um momento de esclerose. Poderia desenvolver a questie da parbdia-pastiche? Por que as neo-simbolistas brasileiros estariam sendo académicos? Os matores pistores alemies chamados de neo-expressionistas estariam fazendo paridias ou pastiches do primeizo expressiontsmo? Sao académicos? O que & hoje a academia? O que & naptura? Por que nds falamos de tradigio hoje? Acho que nés nio falamos de tradigio, hoje, gratuitamente; falamos de tradi¢io tentando exatamente compreender, por exemplo, a diferenca entre parddia © pastiche. Por que uma arte deixa de ser pard- dia? Ela deixa de ser parddia porque a parédia se tornou um ritual, se tomou uma ceriménia, se tornou alguma coisa de es- clerosada. Portanto, a parddia deixa de ser parédia no momento em que ela 6 um mero recurso técnico usado pelo jovem poe- ta para ter acesso a poesia, Nesse sentido, encio, é que Jameson vai dizer que uma das caracteristicas do pés-moderno seria o abandono da estética da parédia ¢ a aproximagio da estética do pastiche. A meu ver, pastiche se encontra exatamente nese exemplo que vocé me dé dos noves pintores alemies, chamados de neo-expressionistas. Eu nao gosto da expressio neo-expres- sionista, mas tudo bem. Os chamados neo-expressionistas es- tariam fazendo pastiche do primeiro expressionismo. Eles j4 nao estio fazendo parédia, porque a parédia significa uma ruptura, um escirnio com relagio aquela estética que ¢ dada A permentecia do discurs 133 Biblioteca Universitaria uFSC como negativa. Q pastiche nio rechaga o passado, num gesto de escémnio, de desprezo, de ironia, © pastiche aceita 0 passado como tal, ¢ a obra de arte nada mais é do que um suplemento. £u nao diria por isso “neo-expressionismo”. Reparem que a logica da palavra “suplemento” € muito curiosa, porque o complemento dé a impressio de ter em mios alguma coisa in- completa que vocé estaria completando, Suplemento ¢ alguma coisa que vocé acrescenta a algo que ja é um todo. Dessa for- ma, eu nao diria que o pastiche reverencia o passado, mas ditia que o pastiche endossa o passado, ao contrario da parédia, que sempre ridicularizs o pasado. Quando Oswald de Andrade diz “Minha terra tem palmares”, obviamente, é uma grande gar- galhada em cima de Goncalves Dias, que dizia que na “Minha terra tem palmeiras”. © que Oswald de Andrade esti dizendo para ele é 0 seguinte: “Sr. Gongalves Dias, minha terra tem sio revolugées libertarias, tipo Palmares, é isso que faz com que o Brasil seja o Brasil.” E uma atitude completamente dife- rente. Jé 0 caso da Festa é muito diferente dos “neo-expressio~ nistas”, Festa surge na década de 30; portanto, no momento da emergéncia da estética moderna no Brasil, ¢ pretensamente cxitica os excessos do modernismo. Os adeptos de Festa, entre cles Tasso da Silveira, fazem uma poesia que nada mais é do que repeticio — reparem a diferenca que eu faco entre repe- tigdo e suplemento —, meta tepeticio do simbolismo; quer dizer, eles ndo acrescentam nada no sentido que eu espero que esses bons pintores alemdes estejam acrescentando a0 expressionismo. Dai, o fato de eu nio gostar da nogio de neo- expressionismo e aceité-la perfeitamente quando, ao falar, por exemplo, da nova figuracio brasileira, dizer que ¢ um movi- mento neodadé, porque ai, sim, ¢ uma retomada do dada en- quanto uma estética da ruptura e, portanto, é um retorno da estética da ruptura nas décadas de 60 ¢ 70. © senhor contrapds parddia ¢ pastiche relacionando-os a modemo © pés-modemo, Poderia se estender mais sobre 0 conveito de pastiche, se possivel exemplificando onde ocorren? wa NAS MAEHAS DA LETRA Olha, se vocé quiser uma exemplificagio, eu terei que ser muito pouco modesto ¢ falar de um romance meu chamado Em liberdade. Vocés sabem que Graciliano Ramos escreveu Memérias do circere, onde narra longamente a experiéncia que ele teve dentro dos carceres da repressao, durante o periodo do Estado Novo. De maneira nenhuma eu estou criticando o estilo de Graciliano Ramos, que, a meu ver, é 0 melhor estilo modernista. Portanto, todas as reveréncias possiveis a Graciliano Ramos! Mas eu resolvi ser ousado fazendo um diario intimo falso de Graciliano Ramos no momento em que ele sai da prisio, fiz um pastiche de Graciliano Ramos. De certa forma, eu estou repetindo © estilo de Graciliano Ramos, adoro o ¢s- tilo de Graciliano Ramos, acho uma maravilha; portanto, acho que aquele estilo deve ser reativado, ¢, sobretudo, devia ser reativado em um momento em que alguns autores brasileiros, considerando os melhores, estavam escrevendo muito mau romance. Quis ativar o estilo de Graciliano Ramos, incorren- do em outras formas de transgressio, poderia cer feito uma pa- rédia de Graciliano Ramos, mas nao, eu fiz uma coisa que, obvjamente, a familia aceitou com muita dificuldade, que foi eu assumir o estilo de Graciliano Ramos ¢ assumir, pior ainda, o Eu de Graciliano Ramos. Esctevi um difrio falso no mo- mento em que ele sai da prisio, o que ele nunca teve coragem de escrever. E, a meu ver, é 0 que a esquerda dos anos 30 nun- ca teve a coragem de escrever: sO escteveu a experiéncia da prisio, a experiéncia do martirio, a experiéncia do sofrimento, da dor. Nao ha nenhuma critica a isso, Mas eu gostaria exata- mente de fazer um suplemento a isso, de suplementar isso que A é um todo, Tentei, entdo, inventar o que teria passado na cabeca de Graciliano Ramos, com o estilo de Graciliano, e fa- zendo de conta que se trata de um diitio intimo que ele teria escrito quando saiu da prisio. Essa é a melhor definigio que eu posso dar de pastiche que, ao mesmo tempo, é transgres- so. Reparem que eu estou asumindo a voz ¢ 0 estilo, e mes- mo a vida, de um outro, vejam a diferenca que existe entre esse men livro ¢ o do Gabeira. © Gabeira, quando faz uma espécie de diirio da sua experiéncia revolucioniria, 0 &2 por ele mes- A permandncia do discurso. 135 mo; € ele, Gabeua, falando dele mesmo. Eu de repente estou falando da experiéncia de uma outra pessoa, néo na terceira pessoa € nilo com o meu estilo, mas com o estilo da propria pessoa. Esse seria, a meu ver, um dos tracos no pés-modemo, esta capacidade que vocé tem nio de enfrentar Graciliano Ra~ mos através da parédia, mas de definiz qual é 0 autor, qual é © estilo que vocé deseja suplementar. E a estética da parédia, a que Octavio Paz se refere durante todo o seu livro, € a esté~ tica da ruptura. Nesta voc® enxerga o passado de uma maneira ir6nica, sarcastica, como sé nio quisesse endossd-lo, coma se tudo aquilo fosse razio para o seu desprezo. A meu ver é por ai que eu estaria construindo a diferenca entre parddia € pastiche. A patédia é mais ¢ mais ruptuta, o pastiche mais ¢ mais imita~ gio, mas gerando formas de transgressio que no sio as cand- nicas da parédia. E uma das formas de transgressio, que eu utilizei e que mais incomoda, é vocé assumir o estilo do outro Esse abandono das posiées vanguardistas nao coresponde 40 processo de passagem do histérico ao meiafisico de que fala Derrida, quando diz que somos metaffsicos na medida do gasto de nossas par favras? Eu acho que possivelmente essa passagem do solo histérico ao metafisico teria grande rentabilidade analitica quando em contraponto com a poesia de Murilo Mendes. Nio hi dtivida nenhuma de que o abandono progressive do solo hisérico ¢ a entrada no metafisico seria a forma pela qual nés poderiamos analisar Murilo Mendes e mesmo Eliot, mas tenho a impressio de que se nés nos adentramos mais ¢ mais na questio de uma tradi¢ao que nao seja conservadora ou neoconservadora, para a aceitag3o do pasado enquanto tal, o que haveria nio seria tanto o deslize ou o salto do histérico para o metafisico, mas uma coisa um pouco mais simples, embora ae mesmo tempo mais enervante, que seria a coexisténcia ne mesmo solo de fix guras que se contradizem. As figuras se contradizem, mas ambas apenas se afirmam, nio ha uma que seja melhor do que a outra, nic hé uma que seja marcada positivamente (“minha ter- 136 NAS MALHAS DA LETRA ra ieni palmares”) @ outra que seja marcada negativamente {‘nti- ia terra tem palmeiras"}. Serta a coexisténcia, mum mesmo poe- ma, de “minha terra tem palmeisas” ¢ “minha terra tem pal~ mazes”, ou seja, a coexisténcia, por exemplo, do romintico e go modemo no mesmo espaco, sem que modemo ¢ rominti- co estejam em briga, sem que moderno e romintico estejam em discOrdia. Se vocés estio me entendendo, é este o encami- nhamento do pastiche, € 0 encaminhamento para uma estética que nio vinca a nogio de ruptura. Ambas as formas sio afir- mativas, ambas coexistem. Seria como se, de certa forma, de repente tomando a idéia langada anteriormente da arquitemra, nés féssemos para Botafogo ¢ no tomassemos a atitude da ar- qniterara moderna, que seria a de arrasar tudo para construir um edificio segundo os padrdes do intemational style. Tampouco jamos conservar Botafogo como se fosse uma nova Ouro Preto. Também nio seria partir para o kitsch de pintar os sobrados em cores estranhas pata que aquele objeto falasse do mau gosto do pasado. Hoje, hi a possibilidade de criarmos algo extrerna- mente modemo ao lado de algo fin de siécle, século XIX, dei- xando que ambos falem sem que nenhum desprestigie 0 outro, uma espécie de didlogo entre o passado € 0 presente, Seria por ai, talvez, nesse deslizamento que, a meu ver, se daria melhor a nogdo do pés-moderno. Como void vé 0 resgate que James Joyce fex da Odisstia de Ho- mero? }é que Usisses foi tangado em 1922, louve contato dos moder- nistas brasileiros com este livro? Acho que o exemplo dado @ 0 tipico da estética da ruptura, da estética da parédia. Nés todos sabemos gue ha um redi- mensionamento menor de Ulisses dentro de Dublin, todos sa- bemos das inovacdes técnicas que James Joyce fez em nivel de composigao, em nivet estilistico, a chamada porte-mantean word. Dai, coda essa irrisio ndo 6 em relagdo a Homero, mas tam- bém a Shakespeare ¢ diversos autores. Joyce possivelmente € © parodista por exceléncia do romance. Tanto é que os con- eretos, em particular Haroldo de Campos, tém insistido muito A permaninsia do discurse 137 numa aproximacio entre Joyce e Oswald de Andrade. Eu nio sei se € vere, mas, como na velha historia, ¢ bene trovata, Nao ha diivida nenhuma de que hé semelhanca de proposta, em- bora a de Oswald de Andrade nao seja tio grandiosa quanto a de Joyce. Ambos trabalham dentro do espirito que nega a tra- digo enquanto tal. Utilizam a tradiggo, valem-se da tradicio. Nesse sentido, ambos se aproximariam. Basta ler os rrabalhos de Harolde de Campos, em particular o preficio que ele faz para Memérias sentimentais de Jodo Miramar e Serafim Ponte Grande, para que esse paralelo seja estabelecido. Acho, inclusive, que fA uma releitura de Joyce que é feita com muita propriedade, ainda dentro de um estilo parodistico, por um escritor da quali dade, por exemplo, do cubano Cabrera Infance, com Trés tistes tigres, que & um dos romances classics hispano-americanos da atualidade, onde, de repente, cle para o romance para fazer parddias de nio-sei-quancos autores. Pastiche: no raptura [Pergunta nio audivel na gravacio.} Eu poderia usar a expressio neojoyciana porque ha uma espécie de endosso das idléias de Joyce. Ja ma estética do pastiche nao hé ruptura, hé muito mais uma reveréncia. Foi muito bem lembrado esse fito de que Cabrera Infante faz a propria parodia de Joyce. E isso € exatamente o que Octavio Paz chama de tra- digio da ruptura. A ruprura, apesar de dar a impressio de que esté sempre rompendo com © passado, vai criando uma forma paradoxal de hist6ria. O que Paz deixa cscondido & a tradigio da analogia, aquela que os poetas véo utilizar como rechago do solo, como rechaco da linguagem histérica da razio critica e como apego a uma linguagem que teria um teor religioso. Vineulando a uma exigéncia da recontncia da sradigio, como po- deria se falar no concretismo? Como situd-lo? © concretismo é exatamente a negagio disso tudo. O con- cretismo, como eu disse, impediu ¢ impede a leitura de um Eliot. O concretismo nunca fala de Murilo Mendes a nio ser 138 NAS MALHAS DA LETRA de poemus seus muito peculiares, escritos ji no fim da vida. O concretismo, quando fala de Carlos Drummond de Andrade, fala de um poema chamado “Isso e aquilo”; quando fala de Manuel Bandeira, fala dos poemas escritos no estilo coneretista ‘Acho que 0 concretismo seria a radicalizagio da estética da rup- tura entre nés, seria a crenga, inclusive, na linearidade evolutiva da histéria. Se vocé Ié, por exemplo, o “Manifesto concreto” de 1958, vai ver a crenga de que o verso vai acabar, de que o verso chegou ao fim do seu percurso histérico ¢ que hoje é ridicule escrever verso, que toda a poesia tem que ser escrita a partir da palavra, e essa palavra, por sua vez, tem que ser atomizada, © concretismo seria a crenca inabalivel numa certa evolucio linear da historia da poesia, que chegaria aquilo que eles fazem e, portanto, nés estariamos caminhando sempre para a frente, nunca olhando o pasado. © passado so existiria para que déssemos exemplos que autenticassem a nossa postura no presente. Se leio Jo3o Cabral de Melo Neto é para mostrar onde Cabral destréi o verso. Se eu leio Drummond é para mostrar onde Drummond também destréi a composigio clas- sica de verso, ¢ assim sucessivamente. Para os poeias da década de 70, ditos marginais, des mimedgrafos, @ Keitura de Oswald de Andrade passa pela leitura feita pelos poetas concretos? Acho que néo. De maneira alguma eu quero desmerecer 95 coneretos, minha opiniio a de que os concretos tiveram uma importincia enorme na atualizacio da poesia brasileira, quando a poesia brasileira estava entrando em um certo popu- lismo esbravejador que no conduzia a nada. E, na qualidade de excelentes tradutores, eles atualizaram o nosso conheci- mento da poesia universal. Refiro-me 4 tradugio de Pound, as tradugdes de cummings, as mil tradugées que eles continuam a fazer. Enquanto os concretos punham todo 0 peso numa certa maquina do poema em Oswald de Andrade, num poema que deixava de ser mais ¢ mais um produto fabricado pelo homem para ser quasc que um produto cibernético, os poetas A permantucia so discusso. 139 da geracio mimedgrafo, creio, em lugar de ver Oswald de Andrade como aquele autor que faz versos quase que com a perfeigao de uma maquina, 0 acabamento de cantosserie, como © ptéprio Oswald de Andrade fala, estariam interessados na maneira extremamente original como ele consegue tratar a lin- guagem coloquial. Os marginais retomam de Oswald de An- drade o coloquialismo, a grande liberdade na construgio do verso, do poem, ¢ retomam dele, também, a idéia de que vo- cé nio precisa necessariamente, para fazer um grande poema, fazer um poema longo. Isto significa que voc® pode fier uma coisa rapida, incisiva, bem-humorada, cotidiana, que nao tenha aquele rango de “poesia”, Acho que foi isso que os marginais tamaram de Oswald de Andrade. Clasires ¢ poder coeritivo [Pergunta nio audivel na gravacio.] Eu leio um pouco diferente 0 livro do Pierre Clastres. Ele chama a atencio para o fato de que estas saciedades que viviam sem uma nogio de poder coercitivo passaram a ter essa nogio no momento exato em que os portugueses chegaram, ou no momento em que as tribos entravam em combate. E ai, é sé ai, que surge, entio, uma hierarquizagio de poder. A propria no¢ao de guerteiro, para Clastres, nie pode ser vinculada a uma sociedade onde 0 poder no seja coercitivo. A emergén- cia do poder coercitive numa sociedade ou na sociedade tupi- guarani se di exatamente no momento em que ela é agredida, quando uma pessoa tem de tornar-se chefe. E essa pessoa se torna chefe falando, a0 mesmo tempo em que cla se institui chefe incitando os seus companheiros 4 Juta, Estamos falando de duas situagdes diferentes, uma que seria a situacio ideal das sociedades tupi-guaranis, antes da chegada dos portugueses, e outra que seria a condigio das sociedades tupi-guaranis, ou das que quisermos, no momento em que elas sto agredidas. Sobre esta questio, eu recomendaria ler a carta de Pero Vaz de Ca- minha, Pedro Alvares Cabral nio conseguia encontrar o seu homélogo entre os indigenas, Ele primeiro procura um velho, € aj comeca a the dar presentes pensando que ele o chefe, 140 NAS MALHAS DA LETRA itas 0 velho desaparece, Entio ele vé um individuo chefiando um grupo de seis, sete pessoas (¢ claro que isso € uma leitura maldosa minha, a coisa nao esté expressa dessa forma), € 0 agarra e traz para o navio, oferece presentes, mas, de repente, esse individuo some. Repare a diferenca com relacio a coloni- zagio espanhola. Quando os colonizadores chegaram estavam diante de Montezuma; foi, entio, um didlogo de chefe com chefe, Em se watando de colonizacio brasileira, sio importan- tes os estudos de Pierre Clastres: o fato de as nossas sociedades primitivas cerem sido relegadas a um segundo plino esté rela- cionado com a questio de que elas nio seguiam um modelo europeu e, nessa medida, foram julgadas como nio-civiliza- das. Ouro ado curioso € 0 fato de nés ndo termos tido templos, ‘© que nao acontecia no México. Chegaram aqui e nio viram cemplos; entio, concluiram: “Nio tém religiZo, sio ignorantes.” Acho que o caminho de Clastres € por ai. Clastres ¢ 0 gueneiro [Pergunta nao audivel na gravacio.] ‘Acho que 0 guerreiro é um elemento extremamente negati- vo no raciocinio de Clastres. A solidio também é um elemento extremamente negativo. O guerreiro surge no momento em que ha necessidade daquela comunidade se tomar um exércie to. Entéo eu fago uma distingio muito grande entre guerreiro © cagador. © cagador é aquele que traz a harmonia alimentar pata © grupo, a0 passo que o guerreiro 36 aparece no momen- to em que aquela tribo é atacada por oucra tribo ou quando é agredida. Podemos observar que os casos classicos de antropo- fagia levantados por Oswald de Andrade sao os relatados por Hans Staden, no momento em que zqueles grupos foram agre- didos por europeus. Naquele momento, hi briga, ha luta e hi, inclusive, a relagio com © outro, fato muito importante no pensamento de Oswald de Andrade. © sentido da parédia em Oswald de Andrade € vocé comer 9 outro para ser mais fore. © pensamento dele esté muito vinculado, a meu ver, a uma discussio sobre dependéncia cultural. E uma maneira do Brasil se afirmar pela via oposta 4 da colonizagio. Quando ele diz A pemantacia do discosso... 41 que nés nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval, vai desconstruindo tudo aquilo que foi a colonizacio para dizer que, em virtude de se ter engolido o europeu, vocé é até mes- mo mais forte do que o curopeu. Quanto 4 tiltima questio, se a parédia da parddia € 0 pas- tiche, eu tenho minhas dévidas. Tenho a impressio de que parddia antes de mais nada é um procedimento retético, e, portanto, no momento em que vocé repete o procedimento esta incorporando a ideologia daguele procedimento retérico, ideologia que d4 o passado como negativo, ¢ valoriza uma visio de mundo atual, original ¢ moderna, dada como positiva. Entio, reatualizando a parédia, vocé esté sempre reincorrendo neste movimento. Ai, eu usaria muito bem a expressio de Paz: “vocé cria uma tradicao da ruptura”, essa cradic¢do da ruptura, no momento em que vocé cem uma parddia da par dia, chega aquela situagao em que ele vai dizer que 2 trans- gressio hoje virou ceriménia, e que eu, ironicamente, disse que a parddia hoje € um rito de iniciagio para o jovem poeta. © que é uma pena. Acho que se devia seir desse solo da pa~ rodia, no que eu seja contra a parédia, mas contra a esclerose. Seguindo Octavio Paz, a arte deixou de ser uma negecio, porque, & medida que ele vai atualizando sempre a parédia, vai retirando © seu poder. O exemple classico de parddia sio os bigodinhos que Duchamp desenha na Mona Lisa, um gesto iconoclasta. E, 4 medida que a parédia deixa de ser iconoclasta, obviamente deixa também de ter o seu interesse enquanto tab, ela vira, repetindo a paiavra de Paz, uma ceriménia. Eu achei bom o que voct disse, inclusive para eu repensar uma roisa que me preoeupa que é 0 tropicalisme, e hoje em dia a gente estd vendo aqui no Brasil é uma retomada, ou uma tenttativa de suplementar, ott uma ientativa de complementar os ancs 60, O que ex sinto eo que en vejo & uma tentativa de complementar ow suplementar on tetonsar os anos 60 sem tocar no tsopicalismo. Una das coisas ingratas da histéria ou uma das coisas gratas da historia € que as pessoas demoram a morrer. Portanco nao 142 NAS MALHAS DA LETRA adianta a gente querer discutir ou assassinar 0 tropicatismo se Caetano e Gil ainda estio vives. Portanto, eu acho que nio adianta a gente querer assassinar 0 modernismo se Drummond ainda esté vivo. Entio existe uma produgao das pessoas que fizeram aquele movimento, e essa produgio, a meu ver, tem que ser tespeitada. Acho que Caetano ainda nio deixou de ser tropicalista, ¢ eu nio digo isso como se fosse um defeito. Ago- ra, eu diria que seria um defeito se um jovem comecasse hoje a escrever ou fazer musica como se fosse um tropicalista. Num. certo sentido © tropicalismo vai perdurar enquanto perdurarem Caetano ¢ Gil, ¢ enquanto perduram todos esses que fizeram © tropicalismo. Enquanto legado, a histéria é bastante cruel, porque ela é narrada sempre do ponto de vista dos grupos que aparecem ¢ mio dos grupos que permanecem. A gente conta 2 historia do modernismo a partir do surgimento dos grupos, 2 geragao de 22, depois a geragio de 30, depois a geracio de 45, mas em 45 Drummond ainda est4 escrevendo. Se vocé lé numa histéria da literatura sobre 45, 0 que ela esta nos falando? Esta falando de Jodo Cabral de Melo Neto, de Ledo Ivo etc. Se vocé passa para 58, 59, 60, sio os concretos. Isso nio quer di- zer que durante o periodo concreto Murilo Mendes nio esti- vesse escrevendo. O que existe num momento em que a gente faz uma reflexao mais ampla sobre a histéria da literatura é que, se vocé faz um recorte hist6rico preciso, 0 que existe é uma coexisténcia de muitas coisas: a produgio de um moder- nista como Drummond, a de uma geragdo 45 como Ledo Ivo; existe ainda a coexisténcia dos concretos — o Augusto acabou de publicar “Pés-tudo”, que nada mais é do que dar continui- dade 4 experiéncia do concreto. Nao quero dizer, por exemplo, que © conctetismo morreu, mas eu ficaria muito taste se um. jovem de dezoito anos comecasse a fazer, hoje, poesia imi- tando os concretos, Eu acho que existe essa coexisténcia, ela esté ai. Nesse sentido, o legado do tropicalismo, para retomar, G0 muitas coisas. Acho que, inclusive, é essa nota de alegria a que eu tenho me referido, é essa necessidade da afirmacio ¢ de nao cair no desejo de auto-aniquilagio, no desejo do sofi- mento, da dor. Lembrando a primeira misica de Cactano, no A permantacia do discurso... 143 momento mesmo da repressio, em lugar de voc? interiorizar a violéncia, em lugar de interiorizar a dor, vocé soltz um grito dizendo: Alegria! Alegria! Isso, a meu ver, é extremamente positive dentro do tropicalismo. }4 ache menos positive todo © seu lado parodistico, por exemplo, quando Gliuber Rocha tentava fazer parddias seja de filmes americanos ou seja ainda de chanchadas brasileiras, ou ainda quando Caetano Veloso cantava O ébrio com guitarras elétricas. [1985] m INAS MALHAS DA LETRA Histéria de um livro Para Anténio e Sénia Torres Dois problemas prévios se colocam para a boz compreen- sio da fortuna critica da obra de Mario de Andrade e, em par- ticular, de Macnnaima, Seria preciso que (a) conhecéssemos me- Ihor o modo de circulagdo do livro de autor modernista, tanto entre nés quanto fora do Brasil (em tradugio, ou adotado em curso universitirio); e que (b) pudéssemos averiguar quais se- riam as instancias da sua legitimacao critica. Temos algumas indicagdes sobre as duas questdes, mas ainda no hé estudo exaustivo delas. A falta de estudos pode, de certa maneira, invalidar nao sé. uma mera aprecia¢ao critico-descritiva do material jornalistico ou ensaistico escrito sobre um (ou qualquer) livro modernista como também a leitura de estatisticas sobre a circulagio alta~ mente deficitaria do produto hterario no mercado cultural. Pode ainda impedir que se compreenda o processo de legitimacio da obra como auténtico e representative: di-se ele mais pela palavra que corre de boca em boca, ¢ muitas vezes menos pelo artigo critico publicado em jornal ou revista da época. O did- logo vivo entre os pares, caso nao tenha sido apanhado pelas paginas de diario ou carta, caso nao tenha sido resgatado pela reminiscéncia ou por entrevista especifica feita por estudioso,! é de impossivel apreensio. Por outro lado, mio se podem des- cartar os motives pelos quais um livro passa a vender mais quan- ' Exemplo de enteevisa € a que foi concedida por Antonio Bento a Frederico Morais. © Globo, 27.2,1977. Histbria de wm tiers 145 do se transforma em pega de teatro, em roteiro de cinema ou de televisio, ou quando — fato tipicamente brasileiro — vira enredo de escola de samba. Pela reduzida tiragem da primeira edigio e pela auséncia de edigées sucessivas na mesma década, pela alta taxa de anal~ fabetismo no pais e o restrito percurso escolar da minoria al- fabetizada, pelo levantamento do sakirio médio da populagio € pelo rastreamento do preco proporcional do livro, pela pouca eficiéncia de um sistema de bibliotecas piblicas ¢ pela wopical falta de habito de le:tura — pode-se adivinhar facilmente que a circulagdo da obra modernista foi claudicante, nio chegando a constituir o que, em termos de indéstria culeural, se chamaria de um publico. Essa constatagio é moeda corrente nas intro- dugdes a ensaios sobre a cultura brasileira contemporinea ¢ po- de ser pingada em Roberto Schwarz ¢ Carlos Guilherme Mota. Também Antdnio Carlos de Brito lembrou uma sugestiva pas- sagem do Uinerdrio de Pasérgada, de Manuel Bandeira. O poeta 4 plenamente consagrado pelos seus pares, 0 Joo Batista do modernismo, constata: Em 1936, 20s cingiient‘anos de idade pois, nio tinha eu ainda pablico que me proporcionasse editor para os meus versos. A Estrela da manha saiu a lume em papel doado por meu amigo Luis Camillo de Oliveira Neto, e a sua im- pressio foi custeada por subscritores, Declarou-se uma ti- ragem de 57 exemplares, mas a verdade 6 que o papel sé dew para cingiienta.? Exemplos similares seriam iniimeros, Consultada a edigio das Obras completas de Carlos Drummond de Andrade, na “Cro- nologia da Vida e da Obra", descobriremos uma lei parado- xal: mais aclamado 0 poeta, menor a tiragem dos seus livros, inexistente a sua comercializago. Alguma poesia sai em qui- nhentos exemplares, o livo seguimte em duzentos, e 0 consa- grador Sentimento do mundo tem os 150 exemplares da tiragem 2 Rio de Janeiro, Livraris So José, 1987, p. 94. 146 NAS MALHAS DA LETRA distribuidos “entre amigos e escritores”.? Na geracio seguin- te, Joao Cabral de Melo Neto é bom exemplo. Editou os seus primeiros livros por conta prépria e em imprensa manual por ele mesmo operada, As conseqiéncias dessa parca circulag3o do produto literério. e a quase inexisténcia de um verdadeiro comércio do livro mo- dernista no inicio da carteira dele sto miltiplas. Abrangem pro- blemas dispares: a nio-profissionalizagio do escritor modemists como regta de jogo (salvo rarissimas excegées); a definigio do livro moderista como objeto de classe: a preferéncia por uma esctita elitista, descompromissada dos recursos estilisticos que paderiam tomé-l popular; a configuragao de um pablico tedor minimo, fato que poderia descaracterizar o livro como tendo uma fangio social entre nés — ¢ outros problemas mais. Foi 2 pena impertinente de um sociélogo que levantou a segunda questio — a do processo de legitimacio da obra mo- demista, Trata-se de Sérgio Micelli, com o seu liveo futelectuais e dasse dirigente no Brasil. Tomando 0 ponto de vista oposto ao da critica litersria de formagio metodoldgica contemporinea, que dissocia radicalmente vida ¢ obra, Micelli descartou a and- lise ¢ interpretacao da produgio artistica em si (revolucionaria no seu teor), para melhor compreender as relagdes entre 0 in- telectual modernista ¢ 0 mercado por um lado, € por outro la- do as relagdes dele com o Estado nacional, as duas coisas vistas através do mercado de postos piiblicos que se abriu depois da Revolugio de 30. Dentro do sew raciocinio, diletantismo ar- tistico e burocracia estatal sio pares complementares, caso se queita conhecer 0 que poderiamos chamar de custos politicos da obra modernista. Adianta ele que os intelectuais acabam negociando a perspectiva de levar a cabo uma obra pessoal em troca da colaboragio que oferecem ao trabalho de “construcdo institucional” em curso, silenciando quanto a0 prego dessa obra que o Estado indiretamente subsidia.! 3 Rio de Janciso, Companhia José Aguilar Editors, 1967, pp. 44-5. 4 So Paulo/Rio de Janeiro, DIFEL, 1979, p. 158. Histéria de nm fivro Ww r © modernista, na sua auto-reflexio, esconden dos seus leitores o prego da obra — e os criticos literarios nao conseguiram enxergi-lo. A constatagio de Micelli nio deixa de ser o indi- cador mais seguro para a avaliagio nio s6 dos custos politicos do projeto modernista (por no ter o artista entrade em corpo a corpo com o mercado consumider) come ainda do restrito namero de artigos criticos que acolhem na primeira hora as obras-primas do movimento. E dessa forma que Micelli péde concluir que os intelectuais modernistas foram os artifices de um mercado paralelo de bens culturais cuja forga deriva do jogo que exercem sobre as instincias de consagracio que vieram se substituir aos vereditos do mercado privado> Esbogadas as duas questdes preliminares, distanciemo-nos do raciocinio que as envolvia, esperando no entanto que o leitor as perceba como pano de fimdo para o que vai let. Telé Porto Ancona Lopez, na “Introdugio” a sua edicgio ctitica de Macunaima, nos presta importantes esclarecimentos: a primeira edigZo da rapsédia, terminada a 26 de julho de 1928, foi feita por uma pequena editora da provincia ¢ era de “800 exemplares custeados por seu autor”.® Nove anos de- pois, em 1937, € que sai a segunda edicio do livro, agora de responsabilidade da Livraria José Olympio Editora, nacional- mente reconhecida. A tiragem ainda é minima: mil exemplates, € no cemos informagées sobre a vendagem. A terceira edigio 36 vem a pitblica em 1944, pela Livraria Martins Editora, em 3 mil exemplares. Tudo computado. em 1978, tinhamos vinte edicdes do livre. Nos quinze anos que sucedem 4 publicagio de Macunaima, apenas 1.800 exemplares do livro circularam. Em 1937, Brito Broca podia afirmar com seguranga: “Publicado ha cerca de dez 3 Op. cit. p. 160. © Rio de Janeito, Livros Técnicos ¢ Cie! Culeura, Cigncis e Tecnologia, 1978, p. xv. icos: So Paulo, Secretaria da 148 NAS MALHAS DA LETRA anos, quando ainda estavam em foco as polémicas modemistas, esse livto quase nao teve repercussio.”? Essa constatacio, em primeiro Iugar, descarta qualquer possibilidade de exame do impacto que o livre pode ter causado junto ao pablico ledor brasileiro. Por razdes que nio cabe aqui especificar, esse tipo de impacto so pode ser devidamente acompanhado no tocante as artes plisticas (vide 0 affaire Monteiro Lobato e Anita Malfatti) € a poemas isolados (vide © caso paradigmitico do poema “No meio do caminho”, de Drummond). Em segundo lugar, expli- ca a razio pela qual a sua acolhida pela imprensa da época é me- diocre ¢ muito aquém do valor do livro. E, finalmente, deixa como leitor privilegiado para a compreensio da influéncia exercida por Macunaima os pares do autor ¢ como lugar privi- legiado de estudo a correspondancia trocada entre eles. No que se refere ao terceiro item, fica apenas a sugestio, ja que ainda nio temos acesso a correspondéncia passiva de Mario de Andrade (cartas escritas por, entre tantos outros, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Augusto Meyer, Sousa da Silveira). Por enquanto, temos étimo ¢ farto material — as cartas escritas pelo proprio Mitio aos grandes do modernismo. Mas elas no servem para um estudo da recepcio da obra, embora sejam de inestimavel valia para a génese de Macunaima, Como nio é este 0 caso hoje, reiteramos a sugestio € somos ‘obrigados a nos restringir ao segundo item: os artigos veicula- dos pela imprensa. Pelo acerto das informacdes e do julgamemto critico, dois textos se destacam entre os que acolhem Macunaimta no ano do seu aparecimento. Uma curta e extremamente instrutiva nota, publicada no Didrio Nacional, sem nome de autor, doze dias apés o langamento do livro. Um longo e circunstanciado artigo de Tristio de Athayde [Alceu de Amoroso Lima], apa- recido em O Jomal, no dia 9 de setembro de 1928. Um trago comum une por assim dizer os dois textos. A precisio ¢ a con- cisio das informagdes contidas na nota indicam que o autor 7 “& epopéia de um herdi sem nenhum cariter — a reedigio de Macunafna, de Mitio de Andrade.” A Gazeta, 25.2.1937. Histéria de uo fiveo 149 bh t—s—s— dela deve ter sido 9 proprio Mario de Andrade. [4 0 artigo de Tristio é todo ele alicergado nos dois preficios escritos por Mario (e entio inéditos) e de que Tristio se vale exaustiva indiscretamente (a palavra € dele). Acatada a hipétese de autoria da nota jormalistica, pode-se concluir que ¢ 0 prdprio autor de Macunaima quem primeiro define a bitola critica por onde deve passar a justa avaliagio da obra, Essa atitude — sinal de autoconsciéncia no caso do autor € de precaucio ¢ prudéncia no caso do critico — pode ainda justificar-se pelo fato de a rapsddia ser um livro desconcertante por Mario na época ja exercer uma real ascendéncia intelec cual sobre os pares, Alids, todos os poucos colegas de oficio que se manifestaram pelos jomais ou revistas sobre Macunaima sido unnimes em afirmar o cardter polémico do livro. Seja por ferir uma sensibilidade ainda conformada por padrdes estéticos citocentistas, seja por chacar-se contra ura ra7a0 que recusa a abandonar o posto de vigilante das obras do espirito, o certo é gue Muacunaims “é um livre que ndo cabe em nenhuma classi- ficacio”,® como diz Augusto Meyer, ou como sincetiza bem Tristio de Athayde: “Nao € um romance, nem um poema, nem uma epopéia. Eu ditia antes um coquetel...”.? No caso da sensibilidade ferida, € sugestiva a confissio de Cindido Motta Filho: “E, coisa curiosa! sendo um liveo de literato, € um livro integralmente antiliterato, caso nio possa dizer que € um livro antiestético. Posso até afirmar, para completar o meu pensa~ mento, que este livro nao agradou a minha sensibilidade, muito educada talvez, nos velhos preconceitos culturais...”.19 No segundo caso, Joio Ribeiro quase escortega na postura exem- plar de Monteiro Lobato diante dos quadros de Anita Malfatti: “Se 0 Macmaima fosse um livro de estréia, © autor nos causa- ria pena, como a de um préximo héspede do manicémio.”!! 5 Macunaima por Mario de Andrade”. Revista do Globo, a 1. n& 1, Porto Alegre, janeiro de 1929. ° “Macunaima”. Q Jomal, setembro de 1928. 1 “As leituras da semana — Literatura: Macunaima’’. Cerreio Paulistano, 20.9.1928,, 1 “Cranica Literiria”, Jornal da Brasi!, 31.10.1928. 150 NAS MALHAS DA LETRA A ja citada nota anénima, publicada no Didrio Nacional, pasia afirmagées valiosas para os contemporineos, Nela nio s6 se diz que Mario “se aproveita” da obra monumental de Koch-Griinberg (completamente desconhecida na época da elite intelectual patria}, como ainda “de outras lendas brasileiras, fazendo-as passar com o mesmo heréi”. E acrescenta, circuns- crevendo 0s empréstimos textuais que constituem o estofo da rapsédia: “[...] © autor reuniu também copiosamente manifes- tagées de costumes, superstigées, provérbios, modismos voca- bulares, frases feitas © cacoetes brasileiros”.!? De imediato, tomava-se contato com o enorme e variado acervo de que se valeu Mario de Andrade para construir personagens, macro ¢ micronarrativas. Nas simples ¢ objetivas informagées de leitura prestadas por essa nota reside a maior originalidade do livro ¢ se revela o melhor pasto para os faturos exegetas da obra, Nao adiante- mos as coisas. Como jé vimos, dai decorren a principal dificul- dade da aproximagio critica da obra — a definigdo do seu gé- nero. Augusto Meyer e Tristio de Athayde se esquivaram e outros continuario se esquivando, ou no. O proprio Mirio serviu de exemplo para a critica, pois titubeou por muitos anos, conforme nos informa Telé Porto Ancona Lopez: “Ape- sar de nio se contradizerem ¢ mesmo valerem, pata Mério de Andrade, uma como sinénimo da outra, as duas primeiras de- signagdes para o género da obra so: ‘histéria’ e ‘romance fol- clorico’ [...J; a classificagio definitiva do texto tardaré, talvez porque seu inteiro alcance sé Ihe tenha chegado com o repen- sar € corm as andlises da critica.” Informa-nos ainda a estudiosa que é na lista das obras do autor, no verso do ante-rosto da edigio de 1937 de Macunaima, que o livro recebe sua classifi- cagio definitiva: “rapsédia”.!3 O curioso & que a questio do plagio — passivel de ser le- vantada pela referéncia Sbvia e publica das fontes da rapsédia — niio é de inicio encaminhada nessa diregio. Tratou-se antes 12 “Macenaima — © livra de Mirio de Andrade”. Didria Nacional, 7,8.1928. °9 Op. ait. pp. xix © xxii, respectivamente. Histéria de am tiveo 451 de chamar a atencio para as relages originais da obra de Mé- rio como o “Manifesto antropéfago”, dado a luz no primeiro numero da Revisia de Antropofagia, publicado trés meses antes de Macunainia. Tristio de Athayde se vale do livro para afirmar a originalidade da produgio andradina ¢ para colocar em con- fronto as personalidades dispares ¢ as concribuicdes semelhantes dos dois paulistas. Diz ele ao set: leitor que se valeu indisere~ tamente dos dois preficios inéditos de Macinaima nio sO “para entender a intengio do autor, como pra livri-lo de qualquer pligio”. O critico carioca néo consegue dissimular a sua admi- ragio por Mirio € 0 seu desprezo pelo boémio ¢ irreverente Oswald: Quando se anunciou Macunaima acabava o xara Oswald de publicar 0 seu “Manifesto Antropéfago” em que pregava a regeneragio da literatura brasileira por um evangelho neo-indianista, O que logo nos ocorreu é que o livro do st. Mario de Andrade seria 2 primeira realizagio da nova escola indianista. Pois bem, 2 primeira retificagio que nos permitem os prefacios inéditos, que tenho em mios, é mostrar que Macmaima € muito anterior ao tltimo mani- festo do st. Oswald de Andrade. que passeia atualmente 0 seu indianismo pela beira do Sena, entre os supra-realistas, soprando sarabacanas no Montagnet, bebendo Kachiri no Fouquet’s e dando entrevistas is Nouvelles Littéraires.’+ Tristio & preciso no seu ataque: nio se trata da primeira realizag3o da nova escoia, mas antes de trabalho pioneiro. De volta a questio da galinha e do ovo, j§ que nao se pode des- cartar da discussio o “Manifesto Pau-Brasil” que data de 1924. Pelo que tado indica, Oswald deixou de comprar a primeira polémica suscitada pelo livro: fizera antes as costumeiras brin- cadeiras com o lider cat6lico Tristio de Athayde e agora o atingido Ihe dava, e bem dado, © troco, No niimero 5 da Revise ta de Antropofagia (setembro de 1928) Oswald compareceta com 4 Op. cit 152 NAS MALHAS DA LETRA um “Esquema ao Tristio de Athayde". © texto ¢ hermético, ayressivo ¢ de dificil compreensio — alusdcs, sintaxe, racioci~ aio vanguardisea tornam impossivel um resumo de texto, No emanto, ali, em defesa da escola que inaugurara meses antes, recomenda a Tristio: “O macunaima é a melhor obra nacional. Vocé precisa ler."15 Tristio lew, gostou ¢ nao quis concordar com © lugar que Oswald delegava ao livro no interior da an- tropofagia ¢, para isso, se valeu dos preficios inéditos que lhe foram comunicados por Mario. Em que pesem os argumentos cronolégicos de Tristio, deve-se dizer que Oswald cireunscre- veu naquele texto o essencial da estética macunaimica, demons- trando que era ele quem mais de perto compreendia a ousadia maior da rapsédia, ¢ a defendia, talvez porque estivese sendo o seu primeiro teérico. Langa ele no “Esquema” a pedra de toque do movimento e de Mecunaima: “A POSSE CONTRA A PRO- PRIEDADE”.!® E com a sua linguagem costumeiramente colo- rida ¢ irGnica propée para um “pais grilo” uma estética grileira (de grilo: propriedade territorial legalizada com titulo falso) A incompreensio — e dai a maledicéncia no comentirio — das artes do usucapido ingiiistico em Macunaima transpare~ ce nas palavras recatadamente maliciosas do antropélogo Rai- mundo de Moraes, agora invocando a “inexisténcia” de cépia ¢ plagio, pois nao gostaria de dar f€ a alguns maledicentes. E © proprio Mario quem uma vez mais socorte o seu livro em instrutiva e brilhante crénica publicada no Didrio Nacional em 20 de setembro de 1931. Invocando a figura do rapsodo classico sob a sua forma atual — a dos cantadores nordestinos, referin- do-se ao conhecimento que tem do alemio e acrescentando a0 nome de Koch-Griinberg os de outras figuras ilustres, con- clui: “dum e de outro firi tirando tude o que me interessava”” Em seguida contra-ironiza: “O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha copia a Koch-Griinberg, quando copiei todos.” A conclusio gloriosa do grileiro das letras vem 1S Revista de Antropofapia. 12 dent. a. 4, 5.9,1928, p. 3. 16 Op. cit, p. 3. Historia de nm livre 133 no final: “Meu nome esti na capa de Macunaima e ninguém o # podera tirar.”!7 A repercussio do livro na década de 20 @ pequena embora sintomitica. Diz mais da pobreza intelectual do meio jornalistico da época, incapaz de assimilar a revolugio modernista de den- tro, embora aqui e ali tenha feito tentativas, tentativas no en- tanto que apreendiam mais as polémicas, como é 0 caso do formal A Noite, do que propriamente 0 essencial da contribui- Gio iconoclasta e jovem. E curioso perceber como os resenha- dores sio pouco tentados a inserir a obra dentro do contexto dos movimentos de vanguarda europeus ou do contexto moder- nista, Tristdo, como vimos, joga-a equivocadamente contra a antropofagia — ¢ é mudo. O preconceito cultural impede que Candido Motta teca consideragdes mais precisas sobre 9 que entende por “antiliteratura” na literatura contemporinea. Nestor Vitor @ 0 tnico que tenta compreender as relagdes entre a rap- sodia, dada ¢ Freud, chegando a sugerir 0 modo como esta se dando o transplante cultural: Seja como for, 0 que se toma patente na leitura de Macu- naima é isso: & que o dadaismo europeu, passando para 0 Brasil e produzindo aqui um movimento literitio dionisiaco de arremedo, vai, contudo, estimulanda os nossos mo¢as para tentarem uma literatura nacionalista que entre em simbiose com as particulares disposig¢ées nesse rumo que a guerra em toda parte suscitou. Mas 0 grupo, aliés muito explicavelmente, sabendo-se 0 que 0 dadaismo é, simpatizou com a ciéncia de Fread, de alcance moral com possibilidades dissolventes. Mais sensiveis so as palavras que tece sobre o indianismo vis- to com “furioso freudismo”, tocando ai no Jado satirico, anti- ufanista da obra de Mario. Diz que o autor pratica um “ro- mantismo as avessas, um neo-indianismo derrotista. O indio, visto com to furioso freudismo, torna-se um simbolo anteci- ‘7 “& Raimundo Motaes". Didrio Nacional, 20.9.1931. 154 NAS MALHAS DA LETRA pado da nossa segura banearrota como povo no correr dos séculos” 18 A segunda edi¢io de Macunaima cai em terreno ainda menos propicto do que o que acolheu a anterior. A década de 30, com a necessiria politizagio do projeto artistico modemnista, com o retorno de uma cstética neonaturalista, com o interesse exclu- sivo pelo “tempo presente”, com a critica dos valores nacio- nais que nio se deixavam colorir pelos vatores regionais, acolhe de maneira ainda mais sovina o texto de Mario. Representan- te perfeito dos novos tempos é Rubem Braga, que nio poupa aaiticas ao livro, embora resguarde-as no tocante ao autor. A espinha dorsal do artigo é a impossibilidade de o “deitor co- mum” aproximar-se do livro, j4 que Mario foi “para a extrema esquerda da lingua”. Rubem “estimaria que alguém fizesse um livro com todo esse material precioso de Macunaima, todo esse mundo de lendas ¢ de falas brasileiras, de um jeito que fosse acessivel ao leitor comum”, Enumeremos as criticas, pois elas sio sugestivas do tempo. Rubem fala do estado de “inacabado” do livro, na condigio que esti de anotagdes num “bloco”, mos- tando-se de uma insensibilidade dinica A fragmentagio da prosa andradina, Exige que “o herdi fosse um pouco mais consis- tente”, j que “nao esté em casa" no drama que vive. Propée uma solusdo para acabar com os defeitos apontados; “quanto mais absurdos forem os personagens ¢ mais louca for a a¢io, mais prudente e légico deve se manter 0 autor” {o nartador, diriamos hoje).!9 Préxime demais do romance de fatura neo- realista, Rubem talvez nio pudesse compreender o melhor da contribuigio dos anos 20. ‘A mesma insensibitidade diante da produgio dos anos 20 €, em particular, da do proprio Mario naquela década retorna no artigo de Brito Broca, Mas nele se abre um paréntese para resguardar Macunaima, segundo 0 critico, “um momento feliz, momento notavel, em que as vozes espontineas ¢ iluminadas ‘Macunaima”. O Glebe, 8.10.1928, “Os defeitos de Marunaiina”. S/d, Recortes Mirio de Andrade, Arquivos TEB. Histéria de am tivew 135 do seu espirito triunfaram de todo o esnobismo reformador”, acrescentando que “é uma obra que se ressalva de tudo quan- to o autor tem feito de perndstico”.2* O mesmo tom elogioso transparece no artigo de Nunes Pereita, “A lingua de Macunat- ma”, todo ele dedicado 4 apreensio do “panorama espetacular da lingua brasileira” cal qual se descortina da Jeitura do livre, Para isso, compara o trabalho do brasileiro ao de Henrique [b- sen, Macunaima ao Peer Gynt. © interesse da rapsodia andradina no € s6 @ de ter apresentado uma reuniio exaustiva de mate- rial lingiiistico extremamente variado geograficamente, mas “sim © poder de utilizar todo esse material para traduzir as expres- sées da psicologia complexissima de urn Heréi sem nenhum cariter...".24 Comentando o aparecimento da terceira edi¢io do livro pela Livraria Martins, 0 poeta Joaquim Cardoso traduz bem a nossa perplexidade: “N3o conhego todas as criticas que sobre esse livro se escreveram desde a época do seu primeiro apareci- mento, mas sei que nig foram. bastantes para despertar no pa- blico ledor de nossa terra o interesse permanente que por ele se deve ter.” E prevé com lucidez: “Quando a leitura desse livro se tormar mais facil, isto é, quando se conseguir vencer inteiramente a inércia dos preconceitos falsamente académicos € se dar ao estudante maior liberdade de orientacio, nesse dia, Macunaima sera um livro para a gente moga ¢ na consciéncia dessa gente maga ficard sempre presente e querido."?? © salto qualitativo na bibliografia critica sobre Macunalma se di 27 anos apés a sua publicagio, em 1955, quando se aliam de maneira ideal crudigio, esforco de sistematizacio, rigor exegético € sélida formagio estilistica, M, Cavalcanti Proenca publica Roieiro de Macunatma.?> Livro até hoje indispensivel para estudantes, professores ¢ especialistas, é também o guia de leitura mais seguro para neéfito e o leitor comum. Na pri- 20 Op. cit. 21 A ingua d= Macunaima”. Rio Magazine, 0? 8, 1937. 22“ Macunainta”. Folha Carioca, 181.1945. 5 Rio de Jancito, Civilizagio Brasileira; Brasilia, INL, 1974. 3* ed,, revista 136 NAS MALHAS DA LETRA meira parte traga a génese da rapsédia, estuda o trabalho es tilistico do autor € a composigao artesanal e popular do livro ainda as celagdes dele com os demais textos afins da literatura brasileira, como Iracema, de José de Alencar. Uma paciente ¢ meticulosa apreciagao dos fatos lingiiisticos ma prosa andradina com vistas 4 conquista de um meio de expressio nacional esta na segunda parte. A terceira apresenta um estudo analitico de cada capitulo, comportande um resumo do mesmo ¢ identifica~ 30 ¢ explicagio dos inameros empréstimos tomades por Mario. Um precioso glossirio encerta 0 roteiro. O feliz acaso de alguns enconcros a partir da década de 60 consagrou definitivamente Macunaima como a melhor prosa de ficgio modemista, encontrando paraleto s6 no Grande senao veredas, de Guimaries Rosa. Enumeremos as sete forgas dife- renciadas que se encontram ¢ se orquestram no palco cultural brasileiro € internacional, enumeremos apenas porque é impos- sivel precisar os momentos ¢ as razées das virias confluéncias, ja que se trata de um tecido cultural manufaturado, na sua superficialidade descritiva, pelo aleatério, A voga do experimentilismno estético, articulada pelo mo- vimento concreto e pelos demais que seguiram a trilha aberta pelos paulistat € cariocas, trouxe de volta um grande interesse critico pela prosa de vanguarda dos anos 20. Oswald e Mirio de Andrade si (te)descobertos pelos vanguardistas, merecen- do interpretagdes ricas e sistemiticas por parte de, entre ou- tros, Affonso Avila,24 Haroldo de Campos e Mario Chamie.¢ A consolidacao de varios programas de pés-graduagio em letras no pais, a partir da década de 70, foi responsivel por uma as vezes superficial, 3¢ vezes anarquica, mas sempre fruti- fera vontade de atualizag3o em termos dos métodos de aborda- gem do texto literério em curso no éstrangeiro ¢ na contem- 29 “Macunaima, wradigio e atmalidade”. Suplemento Literirio, 345. O Estado eS. Peuto, 7.9.1963. 25 Moyfolegia do Macunaima. Sio Paulo, Pesspectiva, 1973. 25 4 transgressdo do texto (Macunaima: fingwagem dsaligice). Sao Paulo, Praxis, 1972. Histéria de am livre 157 porancidade. Até entio, as faculdades de letras adotavarn trés posturas complementares que pouco tmham a ver com as ou- sadias modernistas: a postura estilistica de inspiragio germnica © espanhola, a sociolégica de inspiragio marxista ¢ a estetica de inspiracio anglo-saxdnica. A atualizacao metodologica em curso nos anos 70 trouxe ndo s6 0 interesse pelo discurso mi- tico (antropologia estrutural e estudos interdisciplinares, so- bressaindo a figura de Lévi-Strauss) ¢ pelo discurso dos contos maravilhosos (formalismo tusso, sobressainde V. Prop), como também a valorizagio dos jogos intertextuais que organizam todo e qualquer texto literirio (o russo M. Bakhtin e os pés- estruturalistas franceses, entre eles Jacques Derrida e Julia Kristeva). Contribuicées inestimiveis, sob a forma de ensaios © sobretudo de teses de mestrado ¢ de doutorado, atestam ¢ le- gitimam a tiqueza semintica do texto de Mério de Andrade. Enfrentande uma contradicio politica-financeira quase in- suportivel a partir do golpe militar de 1964, o cinema brasilei- to recorreu 4 adaptagdo de obras literatias para obter fundos do Estado e do sistema financeiro e, ao mesmo tempo, enften- tar a censura entio rigorosa dos roteiros originais fincados na atualidade brasileira. O encontro em 1969 de Joaquim Pedro de Andrade, Mactnaima e a antropofagia oswaldiana foi dos mais felizes, alcangando o filme no plano internacional a reper- cussie até entio sé atingida pelos filmes de Nelson Pereira dos Santos ¢ Gliuber Rocha.?? © premiadissimo Macunaima rearti- cula 0 cinema novo ao que de mais instigante faziam Jean-Luc Godard (Weekend) e Pier Paolo Pasolini (Porcile}. Dois estudos praticamente esgotaram as méltipias implicagdes da adaptacio cinematogrifica do livro, dando conta também da riqueza e da originalidade do projeto de Joaquim Pedro: John Randall Johnson: Macinaima — from Modemism to Cinema Novo, tese de- fendida em $977 na Universidade do Texas, em Austin;2® e He- ” Direcao e roteito: Joaquim Pedro de Andrade, Producio: Filmes do Ser/ Grupo Filmes/Condor Filmes, 1969. * Department of Spanish and Portuguese. University of Texas, Austin, 1977 imemeo} 158 NAS MALHAS DA LETRA Joisa Buarque de Holanda: Macunaima — da literatura ao cine- ma, publicado em 1978, no Rio de Janeiro.2° Se é relativamente comodo defimir o direcionamenta do cinema novo para a literatura, j nio 0 é configurar a aproxi- magio do teatro ¢ da literatuca. Poder-se-ia falar na pobreza do texto brasileiro teatral depois da ditadura, ou do cansago com relagio ao texto estrangeiro — de qualquer forma parece que se trata mais de uma preferéncia pessoal do que de uma investida feita em grupo como no cinema. £ Jacques Thiénot, francés que viveu alguns anos no Brasil, o responsivel pela aGaptagao teatral Jevada 2 cena por Antunes Filho em 1978. A peca alcangou tanto sucesso de critica quanto de pablico em palcos nacionais @ estrangeiros. Em 1975, a Escola de Samba Portela, do Rio de Janeiro, desfila pela passarela da Marqués de Sapucai as alegorias de Macunaima, acompanhadas pelo samba-enredo de igual titu- Jo. Comenta Carlos Drummond em crénica da época: “Olhe que esse tipo de consagragio € © maximo. Vale mais do que a discutivel coroa das academias. [...] E o reconhecimento and- nimo, © diploma de perenidade de suas criagdes. Quando a incorporago pablica de tais valores se produz, é Keito afirmar que alguma coisa se acrescentou 4 cultura popular, pelo en- contro afortunado de duas linhas de criagio."51 As duas tradugées feitas enquanto Mirio ainda era vivo (para o inglés ¢ 0 espanhol), somam-se trés de valor extraor- dinirio. Para 9 italiano, feita por Giuliana Segre Giorgi;?? para © francés, de responsabilidade de Jacques Thiériot;*? ¢ de novo para o espanhol, agora por Héctor Olea.24 As trés tornaram acessivel a um piblico estrangeiro ¢ cosmopolita, reduzido sem t I i ? Rio de Janeiro, josé Clympio/Empresa Brasileira de Filmes, 1978. 3 Samba-enredo do G.R.E.S. Portela, autoria de David Coméa ¢ Norival Reis. 3! “Macunaima, Pluft ete.” Cademo B. Jomal do Brasil, 20.2,1975. 3 Mecuncima: Vbroe senza nessun carenere. Miléo, Adelphi, 1970. 3 Atacounaima ou le herds sans aucun caractbve. Paris, Gallimard, 1979, 4 Macunaima (et héroe sin ningsin caréter). Barcelona, Seix Barral, 1977. Histéria de wm livro 159 davida, as complexidades e riquezas da prosa andradina sem comprometer as originalidades lingiiisticas da proposta porta- guesa. Finalmente, @ na década de 70 que surgem estudos que procuram articular as relagdes concretas entre as literaturas brasileira ¢ hispano-americana, sendo que Mario de Andrade tem sido © mais prestigiado entre nés, ndo s6 pela sua curiosi- dade erudita, como ainda por ter tido o gosto pelo registro dos encontros ou desencontros em artigos ou cartas. Emir Ro- driguez Monegal iniciou a série estudando as relagdes entre Mario e Jorge Luis Borges,*8 mas é Raul Antello, argentino radicado no Brasil, quem tem levado 3s ultimas conseqiiéncias as aproximagdes entre Mario ¢ os pares da América Hispinica, © artigo “A costela de Macunaima” estuda as relages entre a rapsédia e Addn Buenosayres, de Leopoldo Marechal,>° e Ne itha de Marapata (Mério de Andrade 1 0s hispano-americanos), tese de mestrado recentemente publicada em livro,37 reabre o le- que e praticamente esgota as possibilidades. Eis a enumeracio proposta dos sete elementos aleatérios. Retomemos agora problemas importantes. Foram fandamentais para a legitimagio de Macaima como obra-prima do modernismo ¢ da literatura brasileira os diversos trabalhos exegéticos de cunho universitirio a que jé nos referi- mos, Nio @ nosso propésito — pelas proprias dimensdes desta resenha — comentar agora trabalho por trabalho; optamos por agtupi-los por postuta critica ¢/ou metodolégica, relacionan- do alguns mais representativos ¢ circunscrevendo o comentério is saliéncias originais que apresentam. As poucas palavras toma- das de empréstimo foram, na medida do possivel, a0 trabalho pioneiro. As possiveis injustigas corem por conta da proximi- dade histérica do resenhador com o material resenhado. 33 Mario de Andrade /Borges. Sio Paulo, Editora Perspectiva, 1978. 3 “A costela de Macuraima", Suplemento Cultural, 98. Q Bsiade de S. Pole, 17.9:1978. Sao Paulo, Hucitec; Brasilia, [NL, Fonda¢3o Nacional Pro-Meméria, 1986. leo NAS MALHAS DA LETRA E curioso constatar que codas as interpretacées de Macu- ndima, de um modo ou de outro, dio como obstaculo analitico inicial a caracterizagio do principio de composicéo do texto & do modo de estraturagio da narrativa. Dai saem duas linhas divergentes ¢ complementares de leitura. A primeira linha propde ume anilise estrutural da rapso- dia, tomando de empréstimo as formalizagées feites pelos varios estudiosos da narrativa oral. A segunda agudiza a questio dos empréstimos lingiiisticos, procurando ler a forma como eles so resolvidos pelo esforge ctiador andradino, Mais concreta- mente. A primeira linha busca os seus pressupostos metodolé- gicos de leitura em Vladimir Propp ¢ Lévi-Strauss e apresenta uma interpretagio morfoligica do livro, através da apreensio de uma “fibula omnibus”, segundo a expressio usada desde 1967 por Haroldo de Campos. A segunda busca o solo hermenéutico dado pelos estudos de andlise intertextual, de inspiragio russa Bakhtin) ou francesa (Derrida e Kristeva), chegando 3 carac- terizagio da obra como dialégica (ou polifénica) ¢ camavalizada, para retomar os dois conceitos-chaves de Bakhtin e colocados em circulgio por Mario Chamie a partir de 1975, A leicura mais radical das melhores leituras de Macunaina € feita por Gilda de Mello ¢ Souza em © tpi ¢ o alaitde, de 1979. Salientando o valor das diversas contribui¢des, procura relativizi-las ou question’-les e propde um lacido © erudite caminho exegética que, a nosso ver, define bem o estado atual das varias questées levantadas pela melhor critica, Retomando toda a problemitica do principio de composi- do da narrativa macunaimica, Gilda de Mello e Souza rechaga as teses em favor da composicio em mosaico ov sob a forma de bricolage, para afirmar que “& no proceso criador da misica popular que se deverd fa sew ver procurar 0 modelo compo- sitive de Macunafma”. Substancia a sua tese com dados forne~ cidos pela pesquisa de Mario sobre criacio popular, pesquisa feita com o intuito de solucionar o problema da mtisica brasilei- ra. Dessa forma é que Gilda pode chegar a conclusio de que ele “transpés duas formas bisicas de misica ocidental, comum tan— to A mésica erudita quanto 4 criagdo popular: a que se baseia Histétia de um livre 161 no principio rapsédico da suite — cujo exemplo popular mais perfeito poderia ser encontrado no bailado nordestino do huntha- meu-boi —~ @ a que se baseia no principio da variacao, presente no improviso do cantador nordestino, onde assume forma muito peculiar” 3° Remetendo o leitor is andlises apuradas ¢ minucio- sas de Gilda, passemos ao segundo ponte. A leitura proppiana (impregnada pelas derivas construidas . por Lévi-Strauss, Greimas e Brémond) feita por Haroldo de Campos, 20 apresentar uma evolucao univoca para as aventu~ ras de Macunaima, nio surpreendia o jogo entre as duas estru- turas bisicas de Macunaima: a que gira em tomo da muiraquita © a outra que se localiza nas desavengas do her6i com Vei, a Sol. Dessa forma, perdia-se de vista o carater polifSnico da rapsédia, salientado pela critica inspirada em Bakhtin. Afirma Gilda: “O que constitui a meu ver a fragilidade maior do seu [de Haroldo de Campos] enfoque foi ter projetado num livro, cujas componentes eram todas ambiguas e ambivalentes, uma leitura univoca {grifo nosso], que rejeitava os desvius da norma, para fazer a obra de arte caber 4 forga no modelo de que, fa- talmente, teria de extravasar."°? Restringindo-nos novamente & tese € nio 4 explicagio e desenvolvimento dela, passemos ao terceiro ponto que serve agora para ampliar o universo histérico ¢ cultural onde se inscreveria a escrita carnavalizada de Mac naima feita anteriormente por Mario Chamie e Maria Suzana Camargo: A hipétese que levanto é que Macunaima pode filiar-se, sob certos aspectos, a uma remota tradigio natrativa do Ocidente, 0 romance arturiano, que por sua vez desenvol- ve um dos arquétipos mais difundidos da literatura popu- lar universal: a busca do objeto miraculoso, no seu caso, 0 Graal. A narrativa se reportaria, por conseguinte, a dois sistemas referenciais diversos, que as vezes se sobrepdem: 38 Sio Paulo, Duas Cidades, 1979, pp. 11-2, respectivamente. ® Op. p. 51 © Macsndime, ruptura e tradigae. So Paulo, Massao Ohno/Joio Farkas, 1977. 162 INAS MALHAS DA LETRA © primeira, ostensivo e contestador, aponta para a realidade nacional, baseando no repertério variado das lendas ¢ da cultura popular; o segundo, subterrineo, evoca a heranga européia € uma linhagem centendria. © interesse do livro resulta assim, em larga medida, dessa “adesio simultinea a fermos inteiramente heterogéneos”, ou melhor, a um cu- Hoso jogo satirico que oscila de maneira ininterrupta entre a adocio do modelo europeu € a valorizago da diferenga nacional. [...] E neste momento de carnavalizagio cres- cente da literatura e ambigitidade progressiva do romance cavaleiresco, em que o nicleo central ¢ dramético da De- manda do Santo Graal se transforma aos poucos na palha- cada de Rabelais e na inversio barédica de Dom Quixote, que devemos inscrever Macunaima.4' Hoje, Macunaima (o heréi e/ou o livre) faz parte do reper- tério cultural minimo de qualquer ginasiano ow universititio inquieto nas suas reflexdes de cunho nacionalista. Freqiienta artigos de jornal e revista, intromete-se nas conversas culturais do cotidiano bo&mio ¢ é citado até mesmo pelos estereotipades personagens das novelas de televisio. Juntamente com 9 compa- nheiro José, de Carlos Drummond, o anti-heréi de Mario pas- sou a ser figura de citagio obrigatéria, adquirindo um prestigio popular que antes s6 personagens de José de Alencar ou Ma- chado de Assis tinham conseguido. 4 Op. cit. p. 79, Historia de wnt livre 163 A estrutura musical no romance © CASO ERICO VERISSIMO Para Réa e Dionisio, amigos, sul e norte, didtogo. Words after speect, seach Into the silence. Only by te form, the pattem, Can words or music reach The stillness, as a Chinese jar still Moves perpesualty in iis stillness. TS. Eliot Na cena que abre Clarissa, primeire romance de Erico Ve- rissimo, certamente escrito enquanto traduzia Contraponto de Aldous Huxley, deparamos com um dos personagens princi- pais do livre, Amaro, dublé de bancirio durante 0 dia ¢ mési- co 4 noite. Deixemos por ora o lado bancétio do personagem, que sugere o tema da desclassificagio social do artista na socie- dade contemporinea, tema caro a Erico. Detenhamo-nos no que se refere 4 concepsio que Amaro tem da obra de arte e vejamos principalmente que género de composicio musical ele acredita que deve eleger pata apreender o que deseja apre- ender. Termina por optar pela rapsédia. Nesse sentido, gostaria de provar que 0 Amaro misico é uma metifora que explicita antes de tudo o propésito do nar- rador de Clarissa, empenhado também em buscar uma forma original de composi¢o para a narrativa que est’ escrevendo, composigio que pudesse aprender o que deseja apreender € no modo como deseja. Amaro mantém com o natrados de Clarissa a mesma relacio que o professor Clarimundo (também personagem) mantém com 0 narrador de Caminhos cmzados. A 164 NAS MALHAS DA LETRA reflexio de um personagem do romance serve para sedimentar 4 pritica da escrita ficcional do romancista. Esse dado, numa perspectiva mais ampla de leitura da obra de Verissimo, j& tnha sido salientado por Flivio Loureito Chaves, quando afir- ma que, desde os Fantoches, encontra-se nos romances de Erico “a tentativa de refletir sobre a literatura no proprio ato em que é escrita, o texto incluindo a discussio sobre o texto”.! Vélida essa Jeitura metaforica do personagem Amaro, pode- remos provar que 0 primeiro narrador de Erico, implicitamente, rechaga pelo menos duas concepgSes de estrutura romanesca que cireulgvam na sua época, para cleger uma terceira e original, que € a qué mais convém 4 visio-de-mundo do romancista. O natrador de Erico — repetimos: implicitamente no caso de Clarissa e explicitamente no caso de Caminhos eruzados — re- chaga tanto o desenvolvimento linear e evolutivo do enredo romanesco (caracteristica da narrativa de tipo realista-naturalis- ta), como também rechaca a fragmentagio do enredo em blocos anarquicamente dispostos (caracteristica do romance de tipo cubista) Pretendemos ainda provar, tarefa mais arduz ¢ delicada, que por detras dessa reflexio estética ¢ dessa escolha formal existe uma visio social e uma concepgio do histético que ptivilegia o credo liberal. Nisso, Erico recusa 0 que pode haver de determinista no desenvolvimento linear do romance, € 0 que pode haver de anirquico na concepgio esquartejada de romance. A atitude liberal do romancista no é urna questdo que surge apenas em nivel de discussio das idéias do e no ro- mance, mas ela ja esté patente na prépria forma que o roman- cista elege para a sua narrativa, Entremearemos essa dupla leitura da obra inicial de Erico Verissimo com digressdes sobre a composi¢io musical no ro- mance na contemporaneidade. A meu ver ai reside a grande contribuigio de Erico na década de 30 para a estética do roman- ce modernista ¢, sem divida, € esse 0 taco que o distingue dos romancistas do Nordeste, entao preocupados por uma reto- 1 Brico Vertisimo: realismo e saciedade. Porto Alegre, Globo, 1976, p. 11. A sstruuta musical no romance 165 mada inventiva da estética realista-naturalista, para dat conta do bindmio “regiio e tradigio”, levantado por Gilberto Freyre, A estrutura musical no romance, é clare, nio é uma des- coberta original de Brico, e mais: nio é um privilégio anglo- sax3o, como fazem crer alguns leitores de Erico. Ela ja estd anunciada em André Gide, no romance Os moedeiros falsos e no diirio deste romance, ¢ ainda esti, como é praxe citar en- tre nés, no Contraponte de Aldous Huxley, traduzido pelo nosso autor. Esté também enunciada de maneira discreta em Mario de Andrade, no Macunaima, Recotreremos sistematicamente a esses dois autores para que melhor se evidencie a postura e a originalidade do projeto de Erico na década de 30. Amaro mora na pensio de d. Bufrasina, A casa de pensio, a0 contririo da casa que abriga uma Gnica familia nuclear, en- globa tipos humanos diversos ¢ desencontrados tanto no passa- do quanto no presente. Nao existe entre os pensionistas uma memiéria social comum, sio todos diferentes uns dos outros, nao guardando por isso também a possibilidade de um verda- deiro congracgamento futuro, visto que estio e estario soltos no espaco social da cidade ¢ sentimental da casa, desprovidos dos lagos de familia. No entanto, os pensionistas se restringem, por uma fei desconhecida dos homens, 4 coabitacio passageira, a um solo geogrifico comum e cotidiano: a casa de pensio. A intimidade, quando ela existe, repousa ma contingéncia. Nio é de se estranhar que 0 primeiro romance de Erico te- nha como espago geogrifico privilegiado uma casa de pensio, € 0 seguinte, Caminhos cruzades, 0 sucedineo de uma pensio, a travessa das Acacias. A intengio de Erico, enquanto romancista, foi sempre a de apreender em microcosmo uma complexa gama da sociedade, e a pensdo — assim como, no universo ficcional de Huxley, a festa — proporciona a possibilidade de dramatizar em miniatura o encontro dramitico de personagens que esto desencontrados no tecido social de uma comunidade ou um pais. A escola da casa de pensio ou da festa jA traz conseqiiéncias para uma leitura social diferenciada dos dois romancistas: em Erico, 2 preferéncia pelo segmento mais baixo da pequenta bur- guesia urbana; em Huxley, o privilégio concedido pelo roman- bee NAS MALHAS DA LETRA cista 4 aristocracia inglesa de aquém ¢ além-mar. Em ambos, 0 desejo de enxergar, num microcosmo elegido, a dinimica comple- xidade da sociedade atual. Esta ainda para ser feito um estudo do romance brasileiro que parta da anilise do espago geogri- fico clegido pelo romancista para ver como se constitui a repre= sentagio social intrinseca 4 obra. Estamos querendo dizer, como nos alertou Anténio Dimas em recente estudo, Espaso ¢ romance, trabalho precursor entre nés, que a escotha de uma ilha ou de uma nave de loucos mio € gratuita, ¢ € Gio merecedora de cré- dito quanto a caracterizacio dos personagens, por exemplo. Mas nio é ainda pela leitura da eransposicgo simbélica es- pacial que queremos entrar em Clarissa, Retomemos. A casa de pensio, por sua vez, se encontra na confluéncia de casas ricas € outras miseriveis, onde hi crian- gas que tudo tém e uma outra, paralitica, que nada tem € mor- re 4 mingua, Mesmo um observador abjetivo teria dificuldade em dar forma ¢ sentide a esse universo tio multifacetado ¢ aparencemente sem possibilidade de ser apresentado como tendo uma organizac3o hatménica, artistica por assim dizer. Deixar os diferentes personagens soltos na prépria individualidade se- ria uma sobugio, solugio que conduziria, € daro, a uma forma fragmentada e dispersa de romance. Englobar todos os dife- rentes personagens debaixo de uma etiqueta sécio-econdmica que os explicaria enquanto formadores de urn ou mais segmen- tos da sociedade brasileira seria também uma solu¢io, solucio que conduzina a uma forma realista-naturalista de romance. A primeira solugio — a da fragmentacdo — soaria falsa para Erico, porque nela se agigantaria a psicologia do perso- nagem (do individuo) ¢ se perderia a descrigéo ¢ anilise dos lagos sociais, aanto os familiares como € sobretudo os nio-fa- miliares, estes mais importantes no universo de Erico. A se~ gunda solugio — a da etiqueta sécio-econémica abrangente — também soaria falsa, porque nela se agigantaria a visio do social ¢ do econdmico ¢ © personagem passaria a ter uma exis- t@ncia nio-diferenciada. 2 Bspago e romance. Sic Paulo, Atica, 1985. A estiutusa musical no romance 167 Erico Verissimo, esse “prisioneiro da propria idéia de tiber- dade", como diré em obra da madureza,> busca a forma de harmonizar preocupagio com a arguitetura do social ¢ a carace terizasio de personagens. Ou seja, procura casar a necessaria solidariedade no plano do social e a indispensdvel solidio no plano individual. N3o quer a confluéncia de personagens a par tir dos conceitos abrangentes de classe das ciéncias sociais — se elege personagens da mesma classe social mas diferentes para um romance, é porque quet ver também © que os distancia, ain- da que © narrador (¢ depois dele o leitor) tenha de pasar por cima dos espagos de nio-comunicagao humana que sio parte importante do tecido social. Em outras palavras, em Brico os personagens confluem todos para um “centro” dramitico, mas desencontradamente. Nao se da por perdida ou impossivel a harmonizagio dos desencontros. Pelo contrario. Por essas razées o romance de Erico exige um narrador forte e onisciente. A arquitetura de confluéncia desencontrada nio pode ser dada por um narrador de primeira pessoa. Nao pode ser dada tam- bém a partir de um ponto de vista humano numa narrativa de terceira pessoa. O romanicista esta encusralado na sua originali- dade, e a escrita ficcional € a dnica forma de sair do beco-sem- saida — esta é a conclusio légica a que Erico chega no seu segundo romance, quando delega ao nartador uma perspecti- va no-humana, extraterrestre, a da estrela de Sitio. De fora da Terra, sé de Kk € que o narrador pode apreender os mean- dros da confluéncia desencontrada das sociedades urbanas, Gra- gas ao distanciamento césmico ¢ 4 aproximagio telescépica que apreende tanto o sujeito em si (o personagem na sua soli- dio e individualidade) quanto o entrecruzar desse personagem — encontros ¢ desencontras —, o seu entrectuzar misterioso. com ovtras subjetividades (outros personagens) que conhece ou desconhece. Nio é outro, alias, 0 projeto de narrador para um faturo romance que tem o professor Clarimundo no final de Caminkos cruzados: * © retrato, Porto Alegre, Globo, t. 2, p. 604. los. NAS MALHAS DA LETRA Foi depois de muito observar © meditar que eu cheguei 4 conclusio de que um observador colocado num Angulo especial poderd ter uma visdo diferente e nova do Mundo. [...] Imagine-se um ser dotado da faculdade de raciocinio postado em Sirio e de 4 olhando a Tena com um telescd- pio pederaso. (...} Esté claro que nao poderia ver as criaturas & as coisas da vida como nés, pobres tertenos as vemos.t (p. 299 — 0 grifo € nosso) Esse mesmo tema — o da miqueza da vis3o extraterrena como superior 4 terrena para a plea realizagio de um projeto ficcional — tinha sido exposto de maneira no tanto siscemé- tica pelo proprio professor desde 0 capitulo 8 do romance. In- vertendo paginas, daremos, por assim dizer, prosseguimento 4 citagdo anterior: ‘A sua obra... Agora ele [professor Clarimundo] ja nio en- xerga mais a paisagem. O mundo objetivo se esvaeceu mis- xeriosamente, Os olhos do professor estio fitos na fachada amarela da casa fronteira, mas o que ele vé [grifo do autor] agora so as suas préprias teorias e idétas. [...] Como seria a visio do mundo ¢ da vida surpreendida do Angulo desse observador privilegiado? Iguat 4 dos habitantes da Terra? Igual 4 da viéva Mendonga ow mesmo 4 de Paul Valéry? Clarimundo antegoza as coisas novas que ha de dizer na sua obra, (p. 39) © problema do ponto de vista do nartador, que Erico co- loca nessas citagdes que fizemos do seu segundo romance, ¢ dos mais importantes para a compreensao da narrativa contempo- rinea, desde que Henry James levantou a lebre, Erico formula a questio da sociabilidade entre personagens num romance de maneira diferente dos seus pares. Na maioria dos romanciseas + Caminhes muzados, Porto Alegre, Globo, 1978. Dames ¢ daremos entre parénteses o namero do pégina. A estratuce musical ao romance 168 modemos, a pergunta que fazem a si é a seguinte: qual 6 a fora social ou econdmica que leva personagens do diferentes a se encontrarem? E claro, como veremos adiante, que o roman- cista modemno j4 nJo acredita nem na forga do destino nem na forca divina. Erico postula aquela pergunta de maneira dife~ rente: qual é a visdo que pode fazer com que personagens tio diferentes entre cles, vivendo em espacos tio diferentes cam- bem, se encontrem? . Antes de dar prosseguimento a uma ouitra digressio, escu- temos a voz clarividente de Machado de Assis, ou melhor, a do narrador das Memérias péstumas de Brés Cubas, no capitulo intitulado “Que escapou a Aristoteles”: Outra cousa que também me parece metafisica é isto: — Di-se movimento a uma bola, por exemplo: rola esta, encontra outra bola, cransmite-lhe o impulso, e eis a segun- da bola a rolar como a primeira rolou, Suponhames que a primeira bola se chama... Marcela, — € uma simples su- posigo; a segunda, Bris Cubas; a terceira, Virgilia. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado, rolou avé tocar em Brés Cubas, — 0 qual, cedendo 4 forga im- pulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgilia, que nao tinha nada com a primeira bola; e eis ai como, pela simples transmisséo de uma fora, se tocam os extremos sociais, ¢ se estabelece uma cousa que podemos chamar — solidariedade do aberrecimento humano.> © que se evidencia no universo amoroso e social macha- diano nio & a forca do destino, mas a do acaso. Essa forga mis- teriosa (se divina, ou nfo, nao fica explicito no texto de Ma- chado; em todo caso fica Sbvio que se trata de uma questio “tmetafisica”) impulsiona bolas ¢ amantes, identicamente, fazen~ do com que se batam uns contra os outros num ritmo que in- depende das suas vontades. A solidariedade que solda as dife- rencas sociais ndo é pois visio de um otimista, que veria de 3 Ova completa, Rio de Janeizo, Aguilar, 1971, v. 1, p. 569 (grifo nosso). 170 NAS MALHAS DA LETRA maneira utdpica o aperieigoamento humane. Nem é visio de um pessitnista, que alegorizaria sé catdstrofes ¢ acidentes nos encontros ¢ desencontros humanos. E antes a visio de um cé- tico, aquele que constitui o aborrecimento come solda universal. Roberto Schwarz destrinchou com bisturi o ceticismo macha- diano, confrontande-o com 0 uso contemporineo dele, € con= cluiu que para todos “o progresso é uma desgraga e o atraso uma vergonha”.® E também pela forga do acaso que André Gide constréi a solidariedade humana dentro do seu universo romanesco. Con- tudo, em lugar da solidariedade do aborrecimento, seria a soli- dariedade do desejo. Basta que acentemos para a sua teoria da “disponibilidade”, basta que visualizemos 0 individuo desejoso sempre disponivel, colocado num carrefour, numa encruzilhada simbélica, em total entrega para o que possi, ou nio, acontecer inesperadamente. Organizada como uma solidariedade do dese- je. a harmonizagZo do social em Gide passa antes de wdo pelo individuo, isto é, pela harmonizacio centrada em suas opgdes de vida. A perspectiva é a narrativa em primeira pessoa, aban- donada de maneira sistemitica mais tarde em Os moedeiros falsos, como veremos a seguir. Essa liberdade do desejo flutuante, um. dos temas mais fascinantes na obra de Gide, esbarra nas forgas repressivas do social institucionalizado, mas deixa de nelas es- barrar quando o personagem se perde pelo nome da Aftica. Dai que, num romance como O imeralista, haja um conflito de pers- pectivas entre Michel e Ménalque, Michel acredita que esteja organizando a sua vida de maneira kasardeuse (como produto do acaso), enquanto o outro, sem papas na lingua, corrige-o, opondo 3 palavra vida o adjetivo dangereuse, Entre 0 “acaso” © © “perigo” se constitui a dialética da atuagio e sobrevivéncia homossexual no interior do tecido social burgués e religioso em Gide Nessa questo, Aldous Huxley, ou pelo menos o seu per- sonagem Wlidge, se diferencia bastante dos demnis. Midge é uma espécie de monetarisea do social; assim como a moeda & Ao renders ay dancsas. Se Paulo, Duss Cidades, 1977, pp, 22-3, A estuturs smiieal no romance: wa cireula e ma quantidade que cla circula entre os grupos sociais, assim também vio se organizando solidariedades e solidées. Abre-se, dessa forma, 0 espaco ficcional para uma compreen- sio marxista da solidariedade humana, de que nio esta exclui- do 0 conflito entre os que nao tém ¢ os que tém demais. Nao existe, pois, a figura do acaso pard~o-pérsonagem Lllidge. Existe apenas a brutal ¢ imperiosa necessidade, ¢ é ela que € a mie da solidariedade. Deixemos o personagem falar, propondo-nos uma légica dos encontros e da solidio apoiada nas semelhan- gas e diferencas entre os segmentos econémicos: Quando a gente vive com menos de quatro libras por se- mana h4 uma necessidade atroz de se portar como cristio, ¢ de amar o vizinho. Para principiar: vocé nfo pode fagir dele: por assim dizer o vizinho mora 3s suas costas. Ignorar a sua presenga duma maneira refinadamente filoséfica? Nao é possivel. E necessirio odiar ou amar 0 vizinho, porque pode precisar do auxilio dele em caso de necessidade, assim como ele pode precisar do seu — ¢ isto, duma maneira tio urgente e tio repetida que nio ha lugar para as recusas. E desde que vocé seja obrigado a dar, desde que, como ser humano, nio possa deixar de dar, € melhor fazer um esforgo para amar a pessoa 4 qual de qualquer modo vocé sera obri- gado a dar. [...] Mas vocés, os ricos {...J, nao tém virinhos verdadeiros. Nunca praticam um ato de boa vizinhanga e nunca pedem aos vizinhos que Jhes fagam uma gentileza como retribuigio. E desnecessirio. Voeés pagam as pessoas para que elas cuidem de vocés. Podem alugar criados que hio de simular gentilezas a trés libras por més ¢ mais a co- mida. [...) Pode haver tragédias atrés dos postigos; mas os vizinhos do lado no ficam sabendo de nada.7 (1, pp. 87-8). Etico dé como impossivel de ser apreendida pela razio Au- mana essa forca mistetiosa que organiza encontros ¢ desen- 7 Contraponto. Trad. de Frico Verissimo. Porto Alegre, Globo, 1945. Damas ¢ daremos entre patémeses © mimero da pigina, 172 NAS MALHAS DA LETRA contros, ¢ & por isso que retira do romance uma explicacio que fosse s6 de cunho nitidamente econémico, ou s6 de valor inteiramente psicolégico. O distanciamento (@ perspectiva da estrela de Siro) apaga também os delicados matizes que te~ cem 2 solidariedade do humano quando vista da perspectiva... humana. Talvez seja por isso que Caminhos cruzados, no pro- ptio dizer do romancista, seja uma obra de “satirista” — é por ai sem davida que poderemos ver como Erico abusou da simpli- ficagao, apelando para a caracterizagio de muitos personagens pelo traco caricatural; € por af ainda que podemos entender as palavras da sua leitora americana, miss Monteith, que dizia: “Mr. Verissimo tem uma alma, mas nfo sabe"(p. x). Todavia, antes de a confluéncia desencontrada ter-se con- cretizado numa perspectiva extraterrena para o natrador, Eri- co procurou, como estivamos dizendo, a harmonizacio musi- cal. Ou seja: antes de ter sido um satirista, foi um artista. Um miisico. Retomemos Clarissa onde 0 tinhamos deixado. Amaro é miisico, mas nfo se deixa abalar pela heterogeneidade do ma- terial humano, e até mesmo animal, que tem 3 sua frente na casa de pensio. Sua intengo é a de apreendé-la artisticamente. A escolha do género musical deverd estar intimamente ligada 3 apreensio tanto do desconexo na vida didria da pensio quanto da diversidade no real. Tio estranhos entre eles si0 os miilti- plos elementos constitutives do cotidiane que 0 mero fate de colocé-los, descritivamente, um ao lado do outro j4 geraria uma bagunga infernal. Uma bagunga dramética, Isso no satis- faz 0 desejo de Amaro, embora o caos nio © perturbe. Ele sonha escrever um dia uma rapsédia, isto é sonha encontrar uma forma musical que harmonize esses elementos tHe dispares com que convive no dia-a-dia em mistura de intimidade ¢ solidio. Eis ¢ que diz o somance: Um dia [Amaro] hi de escrever a rapsodia da pensio de d. Enfrasina: uma mésica colorida ¢ viva em que aparecerio 05 gritos do papagaio, as cantigas de Nestor ¢ de d. Ondina, as risadas do major, as anedotas do Barata, 2 vor dolorosa A esisutute musical mo romance 173 do menino doente — a adolescéncia luminosa de Clarissa. ® (. 4) Accasemos 0 relégio do tempo numa nova digressio ¢ vol- temos 4 década de 20 € a Sdo Paulo. Mario de Andrade deseja escrever Macunaima e também se debate diante de um material heterdclito e de dificil harmonizagio. Gilda de Mello e Souza, em O tpi ¢ 0 alaide,? nos diz que Mario queria combinar “uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tadigio oral ou escrita, popular ow erudita, européia ou brasileira” (p. 10). Esté. ébvio que Erico ¢ Mirio se encontram diante de ma- téria-prima diferente para alimentar a criagdo ¢, por isso, tém pontos de vista distintos no que se refére 4 relagio da arte com a realidade. Para Amato, no romance de rico, hi uma rela gio entre o mundo objetivo que o artista vivencia ¢ a obra de arte, ¢ neste sentido o personagem de Erico esté em perfeita sintonia com a década de 30, que recoloca, em particular no romance de denincia social, a teoria da mimese enquante es- pelha do social, tearia, como se sabe, defendida pelas diversas estéticas marxistas do tempo. Porém, distancia-se daqueles ro- mancistas por ter privilegiado a pensio, o urbano, aproximan- do-se apenas do Graciliano Ramos de Angistia. Pot outro lado, nio hi no Erico dessa primeira fase uma intromisséo violenta da subjetividade do romancista ma escrita ficcional, levando 0 texto romanesco a ter forte inspiragio au- tobiogrifica, ¢ a narrativa a ser ma primeira pessoa. Nao se re- chaga gratuitamente — descubramos — a propria familia nu- clear do tecido ficcional. Entre a casa-grande dos nordestinas ea pensio sulista ndo vai apenas a diferenca entre a preocupa- gio rural a urbana, mas vai também a diferenga entre ema literatura que se pretende calcada na “crdnica da casa assassi- nada”, ou seja, na decadéncia da aristocracia rural, meio. aris~ ® Clarissa. Porto Alegre, Globo, 1984, Damos ¢ daremos entre parénteses 0 nimero da pagina ° © mpi ¢ 9 aiaiide. Sao Paulo, Duas Cidades. 1979. Damos ¢ daremos ene parénteses © namero da pagina. 174 NAS MALHAS DA LETRA tocratico a que pertence © préprio romancista, o proprio natrador-personagem, ¢ uma literatura que adianta uma visio complexa e diferenciada da arquiterura social brasileira. Nesse particular, Mario de Andrade é diferente tanto do sulista quanto dos nordestinos « préximo do seu companheiro Oswald de Andrade. Como acentua Gilda de Mello ¢ Souza, Mario busca a sua otiginalidade dentro do projeto da literatura modernista ao fazer com que a sua prdpria escrita se ligue a “outros mundos imagindrios, € sistemas fechados de sinais, jé regidos por significagio autonoma” (p. 10). Seu romance, no caso Macunaima, se constréi a partir de outras textos, vive da combinagio de textos alheios e heterogéneos, tendo sido 0 r0- mancista, como o seu companheiro Villa-Lobos, acusado de plagifrio... A atitude andradina, sabemos, era de praxe na estética dada dos anos 20 — que se consule © grosso da producéo do seu companheiro de geracio, Oswald de An- drade. Ambos, dentro da linha tragada por Marcel Duchamp para as artes plasticas, estavam trabalhando na criacio literaria com © que Haroldo de Campos chamou com rara felicidade de “ready-made lingiiisticos”. Ambos, portanto, muito proxi- mos da poesia de Robert Desnes. Erico ¢ Mario sio muito diferentes mo que tange 3 concep- io mimética que tém da obra de arte, trabalhando come tra- balham com matéria-prima distinta. No entanto, Amaro, per- sonagem ¢ nossa metafora, e Mano, o autor, se encontram no desejo de buscar uma forma que possa harmonizar ¢ dar sen- tido ao heteréclito, « € uma forma musical, a rapsOdia, que vai dar conta do “compésito” (0 termo é de Flaubert), sem que cada elemento perca a condigio essencial de alteridade. A com- posi¢go musical entra no universo romanesco dos dois brasi leiros assim como um elemento catalisador precipita a combi nagio de clementos heterogéneos numa experiéncia quimica. Nio outra a rado pela qual Mirio de Andrade di como subticulo para Macmatma — uma “rapsodia”. Insistinde em que a originalidade de Macunaima ests no fato de o ficcionista ter encontrado uma estructura musical para combinar 0 oral ¢ 0 escrito, o popular ¢ o erudito, o europeu A estrutura musical ne romance 175, , e © indigena, Gilda de Mello € Souza, no estudo ja referido, rechaga duas outras leituras da estrutura romanesca. Primeiro, a que repousaria na “composi¢do em mosaico”, proposta por Florestan Fernandes e Haroldo Campos, ¢ em seguida, uma outra leitura que se derivaria da técnica do bricolage. Em ambas as interpretacdes da estrutura narrativa, é bom insistir, estaria se evidenciando o cardter fragmentirio, desconexo, oswaldiano, pau-brasil, por assim dizer, da composicdo andradina ¢ nio — © que sempre nos interessa neste trabalho — 0 aspecto da possibilidade de combinar em harmonia elementos heteréclitos, de tal forma que exista uma composigio do todo que nao seja mero produto de aciimulo, de rol ou de listagem. Diz Gilda: E minha convicgio que, ao elaborar o seu livro, Mario de Andrade nio utilizou processos literarios correntes, mas transpés duas formas basicas da misica ocidental, comuns tanto 4 mtisica erudita quanto 4 criacdo popular; a que se baseia no principio rapsédico da sufte — cujo exemplo popular mais perteito podia ser encontrado no bailado nor destino do Bumba-meu-boi — e a que se baseia no principio da variagio, presente no improviso do cantador nordestino, onde assume forma peculiar. (p. 12) Entre Macunaima e Clarissa existe finalmente a diferenca entre o documento € 0 som. Qu seja: entre 0 ja-escrito e 0 que estd por ser escrito, entre o tempo-espaco da histéria ¢ 0 tem- po-espaco do cotidiano. Nesse sentido, Mério @ o romancista que vasculha com os othos a Biblioteca para que, a partir de traigBes ao espirito de erudicio, forneca um texto que retira os elementos escritos da sua origem, da sua fundagio, do seu solo histérico, para articulé-los em um outro solo que é 0 da ficfao. Ao mesmo tempo trai os elementos documentais e os Jegitima numa nova ordem. Mario apaga as “assinaturas” dos documentos, invadindo a privacidade autoral, com o fim de mostrar — agora sob a responsabilidade da sua assinatura!? — "9 CE: “Meu nome esi na capa do Mecunafina © ninguém 0 poderd tirar.” € erdricas no Didrio Nacional. Sia Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 435. 176 NAS MALHAS DA LETRA uma variedade heterdclita que é propria de todo ¢ qualquer tecido cultural, desde que se neguem os valores de origem e a objetividade da crudigio. Esses documentos sem origem e sem assinatura, desvirtua- dos, desnorteados, nio vivem em compartimentos estanques — © que seria finalmente articula-los em forma de listagem, ow rol, ou mosaico, para apresentar ao leitor a bagunga, a ba- gunga brasileira. Pelo contririo, a nogio do fodo como um pro- duto harmonioso ¢ consegiiente ¢ 0 desejo de Mario, que bus- ca dar uma forma global ao heterdclito. Esse é o maravilhoso paradoxo de Macunaima que se encontra miniaturizado na pré- ptia figura compésita do “heréi sem cardter”: um s6 corpo que é indio, branco e negro, simultaneamente. Busca de identi- dade que se da em diferenga, em respeito 20 Outro. Todavia, seria justo ainda utilizar o conceito de identidade para essa situa- 40? Creio que sim, desde que se guarde a adjetivacio, “em di- ferenga”, que tora problematico o conccito, toma-o paradoxal. Com rata felicidade analitica, Gilda de Mello e Souza de- sentranha nos escritos musicais de Mirio a metifora justa para surpreender a originalidade do narrador da rapsédia romanesca andradina. O narrador de Macunaima € semelhante ao canta- dor popular nordestino. A forma de composicio ¢ a originali- dade das suas produgdes se explicam por um mesmo proceso de criagio, de composicao. Primeiro, Gilda di a voz a Matio em artigo publicado em 1944: © processo comum de decorar uma melodia tradicional, como de inventar uma nova, tanto em Chico Anténio como em Odilon consistia em... desnivelar a melodia tomando-a bem simples pra que ela se fixasse na meméria. Mas de- pois de fixada em seu esquema inicial, o cantador se esme~ rava de novo em elevi-la de nivel, individualizi-la em va- rages, dum legitimo canto “hot”. (p. 23) Em seguids, Gilda desentranha os elementos constitutivos da citacio, explicando-os no seu movimento de integracio consecutivo: A estratara musical te romance 7 © processo de “tirar 0 canto novo” do cantador de coco nordestino é um curioso mecanismo inventivo que joga concomitantemente com os dois recursos j4 analisados, 0 nivelamento ¢ 0 desnivelamento. 1. Inicialmente, o cantador canta uma melodia que ndo é sua ¢ que decorou com falkas de meméria. 2. Sobre essa melodia tece uma série de variagées inconscientes. 3. Enquanto a reproduz vai aos poucos empo- brecendo-a até tomé-la facil, esquemética, vulgar (etapa do desnivelamenta). 4. $6 entio recomesa a fantasiar sobre ela, agora conscientemente, com a intencdo de variar ¢ enfeitar (etapa da elevacdo de nivel). (p. 24) E conch Deste modo, o processo surpreendente de “tirar 0 canto novo” nao representa nenhum milagre; é um fenédmeno de “traigio da mem6ria” — como o chama Mario de An- drade — provocado pelo simples desejo de vencer. (p. 25) Se para Mario o importante € a leitura, a erudi¢ao, o prima- do dos olhos tentando aprender pela meméria dos documen- tos, para depois trair a meméria com a imaginacio eriadora, com isso surpreendendo a constragao do devir histérico brasi- leiro, para Amaro 0 que conta é 0 ouvido ¢ o instante. Diz 0 narrador de Clarissa: Vores diferentes que se cruzam ¢ chocam no ar macio — vozes mansas, estridentes, sumidas, engasgadas, guturais, de mistura com o ruido de cadeixas que se arrastam, eris- tais ¢ metais que retinem, tosses, pigarros. {p. 51) Um enorme ouvido se alga ao primeito plano do romance. Bis a multiplicidade de vozes que ele escuta simultaneamente quando se erige como receptor de uma realidade que pode encontrar a sua redengao nfo numa voz anica e subjetiva (por exemplo, na de um narrador em primeira pessoa), mas na har- monizacio da variedade infinita de vozes que trazem ¢ traem 178 NAS MALHAS DA LETRA a personalidade dos emitentes. Para que a variedade infinita de vores-ruidos componha as coisas de maneira significativa den- tro do espaco cotidiano, retirando-o da condi¢io de absurdo e “mudo” e elevando-o 4 condicéo de ficcional, @ essencial a busca de um principio de composi¢go que organize esas vozes- ruidos. . Pessoas e coisas filam simultaneamente no universo de Eri- co, & € esse conglomerado de vozes ¢ midos que fascina tam- bém Clarissa: “Clarissa esti encantada no meio de todo este movimento, de coda essa balbtirdia.” Num primeira movimento do texta de Erico, o marrador harmoniza vozes distintas, deixando-as subir ao primeiro pla- no da narrativa e deslocando para a penumbra as caras dos per- sonagens. As vozes tomam © aspecto de miscaras faciais que recobrem as caras fisicas dos personagens. Para narrador de Erico, neste primeiro movimento do texto, 0 essencial nio é apreender a aparfncia concreta ¢ corporal dos personagens, sem- Pre pouco interessante, mas as miscaras que se Ihe acrescen- tam. E estas se dio enquanto voz, ou seja: quando 0 ouvido mu- sical do narrador surpreende as nuangas da voz de um ou mais personagens. No universo ficcional de Erico, universo de um romancista que s¢ fez notado sobretude pelo uso excelente do didlogo, a voz é privilegiada (como numa pega de teatro). Atra- vés da voz do personagem é que o narrador desaparece e nar- ta, E a vox que “desenha” o personagem na sua complexidade. Um personagem sem voz é sempre um flat character, para usar a terminclogia de E.M. Forster. Quando a voz do personagem se alteia no texto, compondo mil ¢ uma miscaras sucessivas para 2 cara propriamente fisica do personagem, este passa a ser round, fascinante ¢ profimdo. Eis a ligko que Erico aprende dos seus colegas contempordneos anglo-saxées por vez primeira no Brasil. . © mais original da ficc’o de Erico se di num segundo mo- vimento do texto, quando chega 0 momento do pleno e total desaparecimento da voz do narrador na natrativa, ja que ele opta por se reduzir « um imenso e sensivel ouvido. O texto ficcional passa a ser apenas uma melodia-de-vozes que o ouvide A estrutora musical no romance i do narrador apteende. Nesse momento, “confusiv colorida de feira”, diz 0 romance, o narrador retita de cena os persona- gens enquanto individualidades ¢ deixa na pagina apenas as vozes heterogéneas, sem origem e sem assinatuta, vozes estas que perdem, portanto, a sua condi¢So de articuladoras de fra- ses com um sentido légico, expressas por uma personalidade auténoma, e passam a ser apenas material para uma anotagio “musical”. Esse € 9 momento em que som fonético transfor— ma-se em puro som musical. Busquemos um exemplo. Depois de ter tragado 0 quadro geral da pensio segundo o jogo das individualidades: Zina, Couto, Levinsky, Gamaliel, Ondina, Pombo etc., mostrando um entrecruzar de opinides que sc digladiam no espago das sucessivas paginas, opinides que carregam posturas ideologicas distintas, através de frases com- postas com légica ¢ sentido — depois disso, os personagens, ou seja, 0s individuos, passam a segundo plano e no primeiro plano fica apenas 0 colorido musical variado das vores. E des- sa forma que interpreto este pardgrafo, que evidentemente nio far8 sentido caso seja lido apenas com os olhos de leisor-de- frases: Regenerar a rept... avida... expulsos da Palestina... politi- cos profissionais... no admito! vestido de seda azul... cine~ ma... corrompidos... insulto 4 crenga crista... que fiz? re- volucio.., ordem... crise... rins... Greta Garbo... S. Pedro negou trés vezes... tomar chi de pata-de-vaca... guerra com o estrangeiro... a d. Taté melhorou? ... bemt-aventu- rados os pobres de espirito,.. j’ouviu? (p.51) Um leivor mais cuidadoso no teria dificuldades em dar 2 cada um desses elementos a sua crigem ¢ assinatura, reestabe~ lecendo assim a légica tradicional da frase e da narvativa, Nio creio, porém, que o natrador de Clarissa nos incite 2 nds, lei- tores, a fazer tal trabalho. Acredito que a dramaticidade alcan- sada pelo texto no parigrafo acima seja a das vozes energica- mente combinadas pela batuta musical do narrador, interessado que esti ndo tanto num conflito de personagens, mas num de 189 NAS MALHAS DA LETRA puras vozes, conflito este que passa a ser esséncia da busca de Erico e de um narrador que é misico e s6 auvido.!* Nisso teside a grande diferenca entre Clarissa ¢ Caminhos cruzados, restringindo a comparag3o entre os dois romances 4 questio da estrutura musical na narrativa; af reside também a grande diferenga entre o Erico de Clarissa e André Gide ¢ mais Aldous Huxley. Para estes dois — como pata Erico de Cami- nkos — © proceso da composigio musical nie passa pela or~ ganizacio do pardgrafo, nem mesmo pela harmonizagio das vores em alteridade, ¢ munca pela simultaneidade melédica do disparate, como no filtimo exemplo dado de Clarissa. Gide, Huxley © Caminkos cruzades avancam com funda- mento proprio formas de composigio que privilegiam o que em estética do romance seria o tema e em estética musical, 0 motivo. Anota Philip Quarles no seu cademo, no capitulo XXII da segunda parte de Contraponto: Um tema é exposto, depois desenvolvido, mudado, imper- ceptivelmente deformado, até que, se bem que reconheci- damente o mesmo, ele se tenha tornado absolutamente diferente. [...] © que precisamos de um ntimero suficiente de personagens, ¢ intrigas paralelas, contcapdnticas. Enquan- to Jones assassina sua mulher, Smith empurra o carrinho de fitho no parque. Alternamese os temas. (i, pp. 13-2) 1 & partir de leitura feita por Antonio Candido da aliangs da linguagem poftica xomintica e da misica, poderiamos tracar uma linhagem roméntica e simbolista para a busca de Brico. Depois de ter assinalado que a palavra & “algo insuficiente para exptimir a nova escala em que o ew se coloca"(Fornagio da literatura brasileira, M1, 24), depois de provar que ha “uma desconfianga da palavra em face do objeto que fhe toca exprimit” (fl, 32), Candido arremata “Entende-se bem que um movimento literdrio, marcado pelo sentimento de inferiotidade da palavra ante o seu objeto, tendesse & alianga com a mtisica como verdadeiro refiigio: a misica, que exprime o inexprimivel, poderia arenuar as lacunas do verbo; ele se atita pois desbragadamence 3 busca do som musical” (II, 37). Mais abaixo, na mesma pigina, apontz Alphonsus de Guimaraens como “o apice do processo de desverbalizacio da palavra, im plicito mas tendéncias melédicas do verso romintico”. 4 estutura musical to romance Ja antes de Contrapenio, André Gide entrava na questio da estrutura musical no romance pelo mesmo vies a que se refére Huxley: o da quantidade de personagens dispersos no espaco romanesco ¢ o das intrigas paralelas compondo uma complexa intriga. Assim € que enquanto idealizava Os moedeitos falsos, em 1919, anotava no didrio do romance a dificuldade que ti- nha em combinar dois conjuntos dramiticos de personagens que cram, a seu ver, incompativeis. Tratava-se de um primeiro conjunto em que a ténica cra uma juventude anarquica, tipica do pos-guerra, alimentada pela irrisio dadé. A cle opunha-se um outro conjunto: formado de velhos profissionais liberais, cujos problemas centravam-se em torno de uma discussio radi- cal do casamento ¢ da familia burguesa e até mesmo da velhice. A primeira solugdo que aparece para Gide ¢ a de considerar os dois conjuntas como tetas € tentar justapd-los ¢ imbricd-los 4 maneira de César Franck, que conseguiu trabalhar em simulta neidade com motivos de allegro ¢ andante. Diz Gide: Je suis comme un musicien qui cherche 3 justaposer et 3 imbriquer & la maniére de César Franck, un motif d’andante et dallegro.!? (p. 12) Naquele momento, quando o projeto de romance mal se esbogava, Gide ainda acreditava num centro para a narrativa bipartida, que seria o antigo personagem Lafcadio (dos Subter- réneos do Vaticano), wansformado entio em narrador (um nar- rador do género de Erico). Lafcadio seria um narrador que dominaria musicalmente os motivos incompativeis, como César Franck havia feito. Mas, 2 medida que © romance s¢ concretiza, Gide vai questionando ao mesmo tempo a narrativa em primeira pessoa (Lafcadio narrador} e o modelo César Franck para a es- trutura. Paralclamente, descobre que atrmenta o ntimero de per- sonagens e até mesmo de motives. Ae proceso de descentra- mento do foco narrative, vai suceder um’ proposta original de 1? Journal des Fanx-Adeusayeurs, Paris, Gallimard, 1937. Damos ¢ davemos entre jar eto de pagina 82 NAS MALHAS DA LETRA atonttzagdo do narrador, sendo este como que esquartejado em nimero de paites equivalente a9 néimero de personagens im- portantes que houver no romance. Anota Gide: Eu queria que os acontecimentos io fossem nunca conta~ dos diretamente pelo autor [narrador, corrigimos nds}, mas antes expostos (¢ mutitas vezes, sob varios angulos), por aqueles atores (personagens que passam também a ser nar- radores, corrigimos nés] sobre os quais aqueles aconteci- mentos tiveram alguma influéncia. (p. 30) £ dessa forma que entram em cena uma transformagio do modelo César Franck e uma nova e fascinante questio cujo desenrolar tedrico se encontrara tematizado na obra aberta estu- dada por Umberto Eco: o papel delegado do leitor do roman- ce, pasando esce 2 ser o organizador do texto multifacetado que esté lendo, © antigo modelo musical é substituido pelo da arte da fuga. Jé no romance propriamente dito, diz Eduardo a0 seu jovem amigo Bernard, sob os olhos curiotos de Lanta ¢ da sta. Sophroniska: © que eu queria fazer, compreendam-me, @ qualquer coisa que seria como a Arte da fuga, E nio vejo por que 0 que foi possivel em miisica seria impossivel em literatura...!5 Fis ai, ainda que simplificado, um mapeamento do solo teo- rico onde Erico Verissimo inscreve © projeto de Clarissa e Ca- minhos cnuxados. Poucas dividas testam sobre 2 originalidade de Clarissa, como também poucas diividas restam sobre os possiveis emprés- timos de que se vale Erico para arquitetar como arquitetou Ca- minkos enuzados, ambos romances aparecendo ainda hoje como propostas originais dentro do quadro da ficgo brasileira na dé- cada de 30. No entanto, existe uma questio em Caminhes uzades que 33 Les Faux Monnayeurs. Paris, Gallimard, 1958, p. 243. A estratuta musical nto romance 133 marca registrada de Erico, ¢ é por ela que, creio, podemos fazer avancar este trabalho, A questio: Erico é certamente o romancista brasileiro que mais fez 0s seus personagens lerem livros. Praticamente todos os seus personagens so leitores € mantém com os livros um relacionamento singular ¢ interes- sante. Uma tipologia dos leitores poderia ser levantada sem dificuldades, mas seria fora de propésito agora, Atravessemos pois de maneita rapida alguns aspectos do tema proposto, res- tringindo-nos no final aos dois leitores que interessam 20 nosso taciocinio, Noel ¢ Femanda. Simplificadamente, alguns dados para a tipologia dos leito- res: para Joio Benévolo literatura é fuga, 2 leitura é 0 vinho dos miserdveis, Para Leitio Leitia € a ocasio para mentiras edifi- cantes, capazes de legitisnar o seu projeto de vida burgués. Para © professor Clarimundo & a razio da teoria e nao a ocasifo para a reflexio sobre 0 concreto ¢ o utilitirio. E assim por diante. As discussécs entre Fernanda e Noel a respeito da condigio deles de leitores ¢ de Noel como futuro romancista englobam as situagdes descritas © as transcendem. Parece que o aller ego do romancista é Fernanda: é ela quem tetira o inexperiente & livresco companheiro da condi¢ao de um Joio Benévolo, para quem a literatura — como vimos — é a fuga do mando mate- nial, ¢ impede também que ele se dedique a narrativas autobio- gtificas. Poderia dedicarese as estas, mas para nelas descobrir © que hi de “mentiras”. Quais os recursos de que se vale Fernanda para convencer Noel? E preciso provar antes de mais nada que nao hé beleza s6 nos livros. Dessa forma ela retira os olhos viciados do leitor das linhas negras e pacalelas e joga-os virgens para o espeticulo do real ¢ do cotidiano. Diz Fernanda a Noel: “O teu mal [...} é julgar que sd ha beleza nos livios € nos teus contos de fadas. Se tu soubesses como a vida tem coisas interessantes... E um poema, € um romance, se quiseres.” (p. 133). A hierarquizagio que Fernanda apenas suyere nessa citagio toma corpo adiante quando afirma que “ama os livros, mas no se deixa escravizar por eles”. E acrescenta: “Primeiro a vida.” (p. 135). © golpe final nos projetos livrescos de Noel € dado na Is NAS MALHAS DA LETRA pigina seguinte do romance, quando a moga oferece de graca um projeto bastante realista para Nocl: narrar a vida de Jodo Benévolo, ou seja, ela dj a Noel a possibilidade de um proje- to bem objetivo que deve, em dltima instincia, levar o futuro autor a procurar pessoas/personagens diferentes dele e que estio no entanto perto dele “no tempo e no espago” (p. 136). Essa hierarquizacio estabelecida por Fernanda (vida primeiro ¢ depois a literatura) pode ser lida, a meu ver, sob dupla pers- pectiva. A primeira nos conduziria 2 uma reflexio j4 anunciada entre os romancistas da década de 20 ¢ Erico. Este teria sido incapaz de dar prosseguimento 20 projeto macunaimico de Mario de Andrade. Embora fosse leitor avido de livros, Erico seria incapaz de dar 2 condi¢io de ficgio a textos alheios, a “sistemas fechados de sinais", como disse Gilda de Mello ¢ Souza. A situag3o de um personagem 4 janela lendo a realidade a0 seu redor — situagao Iugar-comum na prosa primeira de Erico — nio o gratuitamente. Como Fernanda, Noel deve rit dos “problemas” (as aspas sio do romance ¢, portanto, também a forte carga irénica) que personagens de livros expdem. Para Fernanda, 0 personagem do livro que ela esti lendo é uma “menina boba” (p. 270).1+ Segunda perspectiva. Como Noel aconselhado por Peman- da, 0 proprio Erico teria deslocado os seus olhos dos livros bra- sileiros € estrangeiros que lia, ou dos estrangeiros que traduzia, para o exame cotidiano porto-alegrense. Mas os olhos de rico (no percebe Fernanda) so olhes blindados, porque o olhar que olha Porto Alegre ji 0 faz com o conhecimento de quem se atualizou inteligentemente com os jogos ficcionais mais sofisti- cados que lhe eram oferecidos ento da Europa e, em particular, da cultura anglo-saxénica. Essa divisio clara entre témica narrariva e matéria de romance parece ter sido a redengie do leitor/autor Erico, que por isso \ Pelo gosto gratuito da digressio, assimalamos que Maria de Andrade su- gere 0 Oneyda Alvarenga, em cera de 1952, A menitta dba como titulo para sea livto de poemos (em lugar de Elopic da vida). Ver Mario de Andrade- Oneyda Alvarenga: canas. S¥0 Paulo, Duas Cidades, 1983, p. 33, A estrunura musical ao romance 183, mesmo passa a ter da obra romanesca uma concepgio de arte 40 mesitio tempo atual (universal) ¢ engajada (nacional). Aban- dona sucessivamente os “problemas” livrescos ¢ as “mentiras” das narrativas autobiogrificas ¢ entrega-se com afinco 4 creaga no papel civilizador do tipo de literatura que faz. Entreguemos de novo a palavra ao seu alter ego, Femmanda, Ela “esti vendo com os olhos interiores um dia indiscutivel em que o esforgo dos homens de boa vontade, sem violéncia nem fanatismo, possa igualar as diferengas sociais”. © romance para Brico deve apagar o narrador subjetivo ¢ aptesentar necessaria ¢ objetivamente os “caminhos cruzados” do cotidiano porto-alegrense. Dessa forma, Erico retoma 0 projeto romintico de uma arte que, sem os percalgos da revolu- gio (“violéncia”) e da religido (“fanatismo”), possa alertar os homens para as injustas diferencas sociais e econdmicas. E cabe aos homens de boa vontade, tanto o romancista quanto os seus leitores, a tarefa de construir a futura sociedade justa, ainda que no presente a perspectiva da visio dos reais problemas da vida material seja a da estrela de Sitio. [1986] 186 NAS MALHAS DA LETRA Questio de perspectiva 1922 nao é apenas um ano feliz para as letras brasileiras; também o para a literatura de lingua inglesa. Naquele ano sio publicados o poema The Waste Land, de T.S. Eliot, ¢ 0 ro- mance Ulises, de James Joyce. E o que, 3 primeira vista, parece- ia ficcio (material para uma pega de um dramaturgo do impos- sivel-possivel como Tom Stoppard) concretamente aconteceu: © poeta e critico Eliot faz uma resenha do romance para a re- vista Dial. Como sucede nessas circunstancias excepcionais, o critico consegue em seis laudas nio apenas tocat com fara ar- gicia na originalidade © na ascend@ncia do projeto ficcional de Joyce como ainda chamar a atengio — por tabela ¢ com a dis crigdo, filha da generosidade intelectual — para o auspicioso parentesco entre o romance ¢ A tera imitil. A resenha leva por dtulo “Ulysses, Order, and Myth”. Se trocarmos o titulo do romance na resenha pelo titulo do poema ¢ ainda as alusdes a0 mito grego pelas teorizagdes de um Frazer em The Golden Bough, tudo ficaria ma mesma. Isto é: “The Waste Land, Order, and Myth” — uma resenha de Joyce do poema de Eliot Eliot investe em primeiro lugar contra o critico americano Aldington, que em 1921, de posse de apenas alguns capitulos do romance de Joyce, escreve artigo em que interpreta incor retamente a presenga da obra no seu tempo. Segundo Eliot, Aldington trabalha dois pontos equivocados ao interpretar Lilise ses: 2 estética dad tal como apropriada por Joyce e a indiscipli- na caética (fragmentada, ditiamos hoje) do texto. Por isso é que Aldington qualifica erroneamente Joyce como 0 “proféta do caos”. Questie de pertpectiva 137 reesp ee Eliot, mesmo reconhecendo © grande valor do critico, rechaga a interpretagdo nas partes ¢ no todo. Joyce no é um “grande talente indisciplinado”, ¢ sua obra nio € um “convite ao cas". Eliot afirma que, pelo contririo, Joyce organiza a sua narrati- va, buscando um método, um metodo de importancia semeljian- te a das grandes descobertas cientificas do século. Com “método” e “descoberta cientifica”, Eliot mostra como Joyce responde origimalmente 2 pelo menos duas questées capitais da moder- nidade. Primeiro: ele nos diz que os materiais da vida, apesar de imersos ma imensa futilidade ¢ anarquia que é a histéria contemporanea do homem, a nossa, encontravam no mito um principio estruturador e ordenador do texto ficcional, uma for- tia em suma. Segunda: que os “imitadores” futuros do método de Joyce no o serio, porque tudo se passa como se os roman- cistas pés-Lilisses se valessem do método joyccano como cientis- tas depois da descoberta de Einstein. Romancistas e cientistas devem sem dever (nada de cobrangas!) — ¢ podem avangar a propria pesquisa pessoal em (in)dependéncia. Qualquer coisa como se Eliot, em matéria de originalidade € produgio, nao tivesse sido atingido pela ainda nao discutida “usura” do critico mais-valia e romantico que é Ezra Pound. Para este existem os inventores (os macinhos) ¢ os dilnidores (os bandidos). Os mocinhos Iucram e os bandidos passam che- ques sem fundo. Releiam com mais cuidado no ABC of Reading a anedota a respeito do banqueiro Rockefeller, juntamente com a classificagio hierarquica dos escritores. Nia se deve confundir a ligao de Pound com a de Nietzsche, ambos curiosamente usando metéforas bancdrias, Para Nietzsche, no parigrafo introdutdrio de Eee Homo, © grande inventor é 0 que abre corajosamente para si erédito, actedita na sua assina- tura com vistas a saques futures, Saca sem fundos, Saca acreditan— do que o texto que passa (pata 0s ouvides moucos dos contem- pordneos) tera fundos, Est querendo dizer que s6 a agio nio € uma incégnita para o contemporaneo. $4 a acda tem “reco- nhecimento” dos contemporineos, © texto, primeira, se reconhe- ce a si, se avaliza, se anto-avaliza pela propria assinatura, para depois ser reconhecido em processo gradual de universalidade 188. NAS MALHAS DA LETRA ¢ perenidade. A mais-valia do texto, quando chega, chega tar- de, sempre para... os herdeiros, esses inconsolaveis (as vezes desfrutiveis) agiotas do trabalho alheio. Os grandes escritores sio sempre uns “endividados” (para ficar com a expressio de Mario de Andrade), uns endividados junto ao publico, seu con- tcmporineo. Isso porque o livro — mesme na época de compu- tadores ¢ satélites — passa pelos correios & telégrafos. E uma carta sem destinatirio certo, trazende uma assinatura que des- caradamente viaja sem fundos ¢ na busea deles. O “reconheci~ mento” ou serd algo de muito conereto ¢ palpivel (para 0 her- deiros) ou ¢ publicidade. Que cada um decida o que quer. Retomemos a questio do método e da descoberta cientifi- ca, aclarando-os com as afirmagées de Ehot. Quanto 20 método empregada em Ulises, diz ele: “Usando 0 mito, manipulando um paralelo continuo entre 0 contemporineo eo clissico, Joy- ce esta buscando um método gue outros depois dele também buscario.” E continua: ““Ninguém construiu antes um romance sobre tal alicerce.” Dentro da estética da ficgio, teriamos em lugar de um “método narrative”, método este descoherto pelos romancistas ingleses no século XVIII e plenamente realizado por Flaubert ¢ Henry James no século seguinte — em lugar do método narrativo, retomemos, teriamos 0 tétodo mitice de com- por romances. Ou seja, ¢ dado um passo definitive para “tomar © mundo moderno possivel para a arte”. Assim como Flaubert e James nio eram imuitadores de Defoe, assum também os descen- dentes de Joyce no o seriam. Aclara Eliot de maneira definiti- vai os romancistas posteriores ao Ulises “nio serio imitadores, da mesma forma como nio o € © cientista que usa das descober- tas de um Einstein nas suas proprias, independentes e avancadas pesquisas”. Tudo se passa, portanto, no campo da pesquisa. Essa, a meu ver, é a perspectiva corceta para avaliar a obra ro- manesca de Autran Dourado ¢ a sua coeréncia exemplar dentro da literatura brasileira, como ainda para preencher o significa» do resttito que Ihe vem sendo atribuido pelos exegetas brasilei- ros. Natural, portanto, que as sucessivas tradugdes no estrangeiro ratifiquem 0 valor da obra. Comecem a Ihe render dividendos. ‘Mas antes de tecer consideragées menos abrangentes, retome- Questze de porspectiva 139 mos as questdes gerais, ja que estamos mais interessados hoje pela descrigio da perspectiva (a grande ausente na critica brasi- leira de hoje) do que pela anilise do quadro, do texto solitirio. Em lugar de insistir no paralelo Joyce e Einstein, levantado por Eliot, preferimos comparar a contribuigio do romancista 4 de um outro contemporineo seu, Freud, ambém legitimo ma- nipulador de mitos, manipulador de paralelos entre 0 modemno e 0 clissico. Talvez ainda nio tenha sido formalizada com 0 cuidado que merece a transigio do método nartativo (ou seja: da estética realista da fico) para o método mitico (ou seja: para a estéti- ca pés-joyceana de composi¢ao do romance pelo arcabouga mi- tico). Como, por exemplo, compreender melhor a revolugio que Joyce efetua dentro da técnica de encadeamento dos aconte- cimentos ¢ de caracterizago dos personagens, dentro da com- preensio do que seja a temporalidade do fluxo narrative. Essas questdes sin complexas ¢ se desdobraram com 0 cor- ret dos anos, mas acredito que na taiz delas esteja a contribuicio bisica de Freud para o conhecimento do ser, transferindo 0 foco de atengio do biolégico para o psicolégico, do natural para o cultural, da drea do instinto para o campo do comptexo. No instante em que Freud descobre 0 complexo de Edipo como estruturador das relagdes familiares € sociais (culturais, no sentido amplo, ¢ neste sentido oposto a relagdes naturais), no mesmo instante percebernos que o encadeamento dos aconteci- mentos de “uma vida” nio se materializa necessaiamente com © nascimento biolégico do ser, ou com a conseqiiente apresentagao cronolégica das agdes deste ser segundo um devir continuo e ir- resistivelmente linear ¢ evolutivo. Da mesma forma como nio se caracteriza um individuo s6 pela apresentagSo do quadro so- cial ¢ racial em que ele aparece. Todos esses problemas também se arquitetam noutro lugar, o lugar do inconsciente, cuja estrucura, excapando-se dos percalgos do pensamento histérico e positivista do século XIX, se dia conhecer pela organizagio mitica do ser. E pelo mito, pela estrutura do mito, que o complexo se dew a conhecer, se da como conhecimento, deixando que o individuo se conheya reconhecendo-se no espelho de Bdipo. E assim que 190 NAS MALHAS DA LETRA podemos dizer que, dentro do método mitico de composicio do romance, 0 personagem, antes de ser um “produto” particular da sua sociedade, encontra-se envolto (@ dito ¢ repetido, é re- escrito) pela cultura ocidental. Antes de ser inglés, francés ou brasileiro, 0 personagem é ocidental. Sua “vida” no romance (sua “vida” para o saber do leitor) comeca onde principia o mito. Come nos diz 0 proprio Autran Dourado: “Assim o mito per~ manece ¢ s¢ renova incessantemente.” © novo esti no “de novo”, no retomo, no eterno retorno, na sucesso dos dias ¢ das noites, do dia e da noite, estd na Barca dos homens, desde que tenhamos © desejo de nela embarcar para a aventura do conhecimento. Para se restringit apenas A questio da temporalidade do flu- Xo narrative segundo o método mitico, podemos apresentar es- quematicamente trés microrrevolugées freudianas. Elas serio melhor observadas no momento em que se admitir 0 complexo. {€ nJo s6 0 instinto), a pulsio e 0 desejo como estruturadores da psicke nas relagdes familiares ¢ sociais. Primeira: 0 atraso cemporal do psicolégico com relagio a0 diolégico na constituicio do ser, a indicar que a crianca s6 sabe que & (que existe) quando j4 é hd muitos meses. E a teoria do “estagio do espelho” de Lacan. Segunda: o jogo de transformagSes semianticas que se ope- 1a no processo da constituigio da memeéria, fazendo com que tragos mnésicos, j4 determinados com significado, retornem no momento de outro acontecimento afetivo e adquiram um “nove” significado que re-orienta © significado anterior. E a teoria da posteridade como fundadora da temporalidade ¢ da causalidade psiquicas (cf. a leitura que os modernos exegetas de Freud fazem do termo nachtraglichkleit). ‘Terceira: a necessidade de pensar uma temporalidade que escape, pelos motivos anteriores, a um esquema linear ¢ evo- Jutivo da constituigio histérica do individuo e do social. Nos seus romances mais significativos, Autran Dourado utiliza o método mitico, mas nfo se vale dele apenas para a constituigéo do individua na histéria contemporinea, Ele alar~ ga o campo do drama para uma compreensio da histéria social brasileira, tramando os grandes paingis a que ficamos acostu- Questda de perspectiva 191 mados desde a Opera dos monos. Nesse tipo de projeto, Autran foge do especifico joyceano (© mito come esteuturador de um material que escapa 4 "histéria” contemporinea) ¢ se adentra para © passado pairiaral da sociedade brasileira, com uma de- vida maturagio da obra de William Faulkner. Assim sendo, Autran combina o social (no nivel do devir histérico da sociedade patriarcal brasileira, isto ¢, no nivel da sucesso e geragSes no tempo) com o individual {no nivel das relagdes familiares que se dio no mesmo lugar ¢ tempo). Usando com rara Felicidade e sobretudo com honesta cae- réncia intelectual © método mitico (leia-se, para se comprovar, Poética de romance, Matéria de carpintaria}, Autran também inau- gura novos antepassados entre nés. Dois grandes, pelo menos. Existe 0 caso extraordinitio de Esati ¢ Jacé, de Machado de Assis, este nosso eterno contemporineo. Machado conseguiu, através do mito dos “irmios inimigos” (recentemente estuda- do por René Girard), dar forma ac cadtico material circunscri- to pelas transformagdes sociopoliticas do final do século XIX {aboli¢io da escravatura e proclamagio da Repiiblica). ‘Fambém entre os antepassados do romance de Autran, esti © extraordinirio Mario de Andrade. Mério consegue tocar, com a sua prosa e poesia, a dupla revolugio de Joyce no romance ¢ de Eliot na poesia. Compreende a importincia do mito como elemento estruturador da obra de arte, mas o repensa fora do campo e da ética ocidentais que estavam circunscrevendo aque- las duas grandes obras do nosso século. Mario entra antropo- logicamente Brasil adentro, buscando a “alma” do povo brasi= leiro. Aponta, primeiro, para a possibilidade de uma estrutura mitica nio-ocidental com Macunaima, Em seguida, interpre- tando brasilicamente os ritos da primavera como desctitos por Frazer, encontra no culto do Boi (dangas dramiticas popula- res), no culto do Boi-Paciéncia (poemas seus), o nacleo aghi- tinador e explicador do teligioso popular brasileiro. Questo de perspectiva, questio de avaliacio também. Saem entiquecidos os romances de Autran Dourado, saem gratifica- dos os seus leitores. (1985) 192 NAS MALHAS DA LETRA © intelectual modernista revisitado A Cleonice Berardinell: © namoro com a idgia de participagdo social e politica, heranca certa da traiggo des homens de espirito (“a trahison des cleres"), segundo a expressio ¢ a cese de Julien Benda, levou os artistas brasileiros a uma aproximagao gradativa do Estado na década de 30. Aquela idéia, por sua vez, acabon por gerar a possibilidade de um vinculo empregaticio entre o jovem in- telectual ¢ 0 Estado modernizador. Enquanto funcionério pabli- co, privilegiado competidor no mercado de postos da Repa- blica Nova, 0 intelectual brasileiro participou de um projeto de nagio veiculado pelos vitoriosos da Revolugio de 30 ¢ aca- bou por ser pega indispensivel na modernizacio social ¢ cultural pregada pelo Estado interventor. Na Jabula vasa que inventaram em 20 para alicergar 0 novo na cultura brasileira, os modemnistas deixaram recalcada a atitude corajosa e sempre atual de Euclides da Cunha, alereando para os perigos da homogencizagio nacional, segundo padrées mi- litares. Recalcada ainda na tabula modernista fica a investida inédita de Lima Barreto, contrapondo 0 “ficticio” Policarpo Qua- resma aos desmandos intempestives do “real” Florian Peixoto, nada menos do que um marechal presidente da Repiblica. Nio deixa, pois, de ser discutivel a observagio de Antonio Can- dido, quando tenta resgatar a honorabilidade modernista, di- zendo que os intelectuais sio “todos mais ou menos mandarins guando se relacionam com as instituigdes, sobrewdo politicas; © inoperantes se no 0 fazem”. Ha participagio construtiva e hé participagio critica, hi ainda a mistura das duas, O que esta O intelectual modernista revisitedo 193 em questio € © inabalivel “construtivisme” de alguns intelee- tuais quando se aproximam das insténcias do poder autoritirio, relegando apenas para o texto artistico a possibilidade (bom- bistica, muitas vezes) da reflexio critica. A leitura que se tem feito da participacio das intelectuais modernistas no projeto de nacio da Repitblica Nova foi, por muitos anos, negligenciada por razSes dbvias. De alguns anos para ci, alguns textos literéries atuais procuram dramatizar a complexa situagio dos modernistas e seus companheiros de es- trada, Nisso, aproximam-se de uma moda recentissima que é 2 da literatura dos ex-exilados, om seja, dos que retornaram a0 Brasil depois da anistia e que constituiram o grosso da sua pro- dugio em cima da narrativa dos acontecimentes politicos pos- teriores a 1968, No entanto, é Sérgio Micelli, com Intelectuais ¢ classe dirigente no Brasil (1979}, quem primeiro tocou com gos- to ma chaga modernista, que parecia cicatrizada para todo o sempre em virtude do pendor legitimamente revolucionatio que transparecia nas obras propriamente literarias do tempo. A postura de Micelli foi insuportive! porque, de imediato, ele tomou estrategicamente © partido oposto, isto &, descartou completamente a producio literéria revoluciondtia na anilise, para se deter somente na relagdo entre o intelectual ¢ 0 Estado, estudando os mecanismos do mercado de postos que se abria naquela época. Diz ele: “a dnica maneira de diferenciar 0s mem- bros desta elite intelectual ¢ burocratica consiste em privilegiar © perfil de seus investimentos na atividade intelectual em detri- mento do conteddo de suas obras tal como aparece reificado na histéria das idéias”. O siléncio inocente sobre 0 escrito pela pena artistica para que se ouga apenas a vor que se faz onvir de um corpo material ambulante que € fimcionirio piblico (recebe e di ordens) por- que precisa manter-se ¢ aos seus com dignidade — ssa atitude do socidlogo é no minimo iconoclasca para os contemporineos. Dessa forma, aliés, @ que alguns modernistas ¢ amigos a toma- ram, esquecendo-se de semelhante ¢ legitima iconoclastia de que foram responsaveis no momento de inaugurar, nos anos 20, a tabula rasa modemista. Escreve Miceli, tocando no ponto ys NAS MALHAS DA LETRA nodal da questio: “os intelectuais acabam negociando a perspec- tiva de levar a cabo uma obra pessoal em mroca da colaboragio que oferecem ao trabalho de ‘construgio institucional’ em curso, silenciando quanto ao preco dessa obra que o Estado indireta- mente subsidia”. A voz do corpo-funcionirio-piblico se faz ouvir no siléncio do escrito literirio exatamente porque 0 es- crito se absteve de dramatizar os percalgos do corpo. © modemista nio fomeceu a seu leitor o “preso” da obra. O estudo de Micelli nao deixa, por isso, de ser uma espécie de avaliagdo dos custos politicos que o projeto artistico modernista acartetou por nio ter © artista (¢ 0 texto) investide corajosamen- te em outras fontes de renda, como, por exemplo, o mercado consumidor. & verdadeira uma outra constatagio de Miceli: esses intelectuais “foram os artifices de um mercado paralelo de bens culturais cuja forga deriva do jugo que exercem sobre as instncias de consagtacdo que vieram se substi reditos do mercado privado”. Nio é interesse, agora, problematizar criticamente as anilises de Micelli, ou mesmo reproduzi-las pelo seu aspecto global. do nosso interesse — neste artigo de dimensio curta — assinalar como o seu estudo vem de encontro a algumas inquietagdes dos teéricos da literatura, insatisfeitos com o lugar a que foi telegada a reflexio sabre a “biografia” do autor pelas varias metodologias de leitura, vitoriosas a partir do formalismo russo. Nio é, pois, por coincidéncia que assistimos agora av retorne de textos que foram por muito tempo descartados pela dnica preocupagio com a anilise ¢ interpretagio dos géneros nobres {poema, romance, conto). E 0 caso das textos memoralista ¢ autobiogrifico. Nio se trata, é claro, de substituir o imperialismo da “lite- rariedade” (literatumost) pelo canhestro retorno ao positivismo otiginirio da critica vida-e-obra. Nao se trata de desprestigiar as conquistas da leitura esrética do texto, nem de instaurar um critério de avaliago com o fim de desmoralizar obras cuja re- putagdo é atestada pela legitima qualidade intrinseca. Trata-se de buscar textos onde o corpo do proprio autor foi dramatizado enquanto tal por ele mesmo, enriquecendo com essa leitura ir 20S veo © intelectual modernista revisitado 195 extra as leituras que foram feitas dos seus textos ditos ficcionais ou poéticos, Trata-se, ainda, de configurar as aproximagées e contradigdes ideolégicas que se tornam salientes quando o texto da ficcdo € o texto da meméria sio analisados contrastivamente. Se tivesse havido essa preocupacio contrastiva por parte dos melhores intérpretes do modernismo brasileiro, temos certeza de que 0 estudo de Micelli, primeiro, nio tena sido tio onginal ¢, segunda, rao escandaloso. Onginalidade ¢ escindalo advém. do siléncio que encobria os custos politicos da obra modemis- ta. Intelectuais ¢ classe dirigente no Brasil, numa primeira leitura, tem um ar de déa vu que afugenta leitores mais sutis, tem um. descaso conceitual (expressio de um niio-compromisso assumido com teorias materialistas) que abre sorrisos no rosta fanebre da sociologia moderna. E preciso insistir numa segunda leitura para que o livro revele o que é explicitagio de um sabido silenciado. ‘A bem da cronologia, cumpre salientar a posicio pioneira, dentro dos estudes lieririos, de Antomo Candido, Muitos anos antes da vasta bibliografia sobre memorialismo e autobiografia que nos chega dos quatro cantos do mundo, uma bibliografia Niderada pela formalizagio moderma ¢ abrangente da questio feita por Philippe Lejeune, em Le Pacte autobiographique (1975). Candido € citado ne corpo das meménas de Oswald. de An- drade, Sob as ordens da mamde (1954), da seguinte forma: “Anto- nio Candido diz que uma literatura s6 adquite maioridade com memérias, cartas ¢ documentos pessoais ¢ me fez jutar que tentarei escrever j4 este diario confessional.” Essa “maioridade”, os modermistas s6 a censeguiram nas iltimas décadas, quase todos publicando — de uma forma ou de oucra — as suas memtdrias. Diga-se de passagem que muitas delas deixam a desejar, ja que os seus respectivos autores julga- ram apenas interessante o relato dos acontecimentos infantis em familia patriarcal. A infincia foi 0 pasto privilegiado do boi- meméria modernista; ali ruminou ele o capim verde ¢ tenro, devidamente observado pelas Srvores paternas. Mas mesmo sem galhos viris e frondosos, excegio para Pedro Nava, os textos memorialistas dos modernistas esto ai reclamando a atengio dos nossos melhores estudiosos. 196 NAS MALHAS DA LETRA Em atitude oposta 4 dos modemistas, encontrames os textos dos ex-exilados de 68, Clé, familia patriarcal, infancia, adoles- céncia estudantil ndo existem nos seus textos aucobiogrificos Todos ja surgem personegens adultos, maduros, maravilhosas e politizados. No entanto, dos seus livros se depreende a visio de uma historia que nio foi narrada na propria época dos acon- tecimentos, em virtude da censura que tomou conta dos veiculos de comunicagio de massa, Se para os modernistas a meméria é um exercicio com vistas a0 conhecimento do social, para os ex-exilados € uma escrita do resgate da historia. Mas nao & ainda nesse capitulo que precendo me deter um pouco mais longamente. Queria retomar os dois topicos le- vantados (participagio politica ¢ autobiografia) com um duplo e diferente intuito. Primeiro: o de langar, como digno de inte- resse para o estudo dessas questées, também o texto da cores- pondéncia entre artistas, Segundo: o de propor uma leitura da questio do acesso do intelectual ao posto piblico, com o fim de mostrar como a interpretagio citada de Miceli poderd ser entriquecida no futuro gracas no so a um methor conhecimento do texto da memoria como também da correspondéncia ¢ até mesmo das entrevistas concedidas pelos intelectuais. Nos wés dltimos anos tem sido publicada a correspondéncia ativa de Mario de Andrade com os seus contemporaneas. Des- necessario dizer o impacto (como sempre silencioso em termos de escrita piiblica) que os sucessivos volumes cstio causando na cena cultural brasileira. Infelizmente, dizem que, por ordem testamnentiria de Mario, s6 temos tido acesso as cartas assinadas por cle. As assinadas pelos correspondentes encontram-se arqui- vadas e secretas, dormem nas gavetas do Instituto de Estudos Brasileitos da USP. Ora, Mario exigiu sigilo das cartas em suas mos porque morreu prematuramente e em sinal de respeito ags amigos entio na flor da idade. Estes, dando 4 luz as cartas assinadas por Marlo, estio a dizer que o sigilo ji & desnecessirio Mas seri que fazem algums coisa para liberar as proprias cartas? Uma vez mais, mam pais pobre como o Brasil, o pablico leitor tera de arcar duas vezes com 0 custo de um livro. Saem agora em varios volumes as cartas de Mario; mais tarde sairio em O intelectual modernista revisitale 197 outros tantos volumes essas mesmas cartas acompanhadas das dos correspondentes. Entenda-se. ‘A tinica excegio a esse esquema de pseudomodéstia e de esbanjamento foi aberta por Oneyda Alvarenga. No seu caso, temos publicada a correspondéncia ativa e passiva de Mario. E & dessa ¢ de onteas correspondéneias que vamos servir-nos para dar um pequeno exemplo do valor que a leitura desses textos pode ter, numa contribuigio inegavel para o melhor conhe- cimento do modernismo e dos modernistas. B sabido que Mario de Andrade se integra a0 movimento contra-revolucionario de 1932 em Sio Paulo. Integra-se de ma- neira softida, mas de corpo inteiro ¢ apaixonado como sempre. Escreve ele: “Pois que a minha gente s¢ langava numa unanimi- dade, eu entregava o meu trabalho a essa unanimidade que me dera dinheiro cotidiano, dormida, comida, amor, sofrimento, alegrias. Tudo o que essa unanimidade me dera eu the dava.” A tal ponto se integra que, nesta mesma carta a0 amigo Carlos Drummond (este evidentemente preso ao credo revolucionirio de 30), pode afirmar: “Vocé, nacionalmente falando, é um ini- migo meu agora.” Nao se trata de recurs retérico. Em carta a Paulo Duarte, Mario vai mais Jonge, demonstrando uma in- tolerancia inédita; “Pois ¢, Paulo, nio tem semana em que tudo nio fique de prontidio, Valdomiro [interventor de Sio Paulo] pede socorro, vocé vai passar numa rua, ‘nio pode’ fala uma carabina tendo por detraz um gaticho, um cabeca chata. Quando nio tem o pior ¢ tudo neste mundo, o vomitério araxento, a imundicia punga, um mincirol!! Arre, que essa palavra ndo devia pousar na minha pena triste!”. Comenta, posteriormente, Paulo Duarte: “... Mario que cinha um encanto especial pelos mineiros, aqui manifesta nausea pelo mineiros; que adorava 0 Nordeste, xinga 0 nordestino: que sempre foi um entusiasta do gaticho, aqui vomita o gaticho.” Essa simpatia pela causa politica paulista acaba por atrair a atencio dos verdadeiros politicos. Paulo Duarte apresenta Mario, em 1935, ao prefeito de Sao Paulo, Fabio Prado, no momento em que este organiza o seu gabinete. No mesmo ano, Mario € nomeado — conforme assinala Drummond — “para os cargos 198 NAS MALHAS DA LETRA de Chefe (efetive) da Divisio de Expansio Cultural ¢ Diretor fem Comissio} do Departamento de Cultura”. A simpatia pela causa paulista termina de maneira deistica ¢ trigica para Mirio, come atesta este techo de carta escrita a Rodtigo Mello Franco em 14 de jumho de 1938, onde fala da sua inten3o de buscar emprego no Rio de Janeiro: “Qualquer coisa serve, quero partir, agora que ja ficou provado que nie roubei nada nem pratiquei desfalques. $6 isso me interessava saber ¢ est prova- do pela devassa que fizeram.” Comeca uma outra historia que fica para outra ocasiio. Deixemos apenas uma pista datada de 17 de dezembro de 1939: “Atualmente estou como Consultor Técnico do Instituto Nacional do Livro. Quem ditige este € 0 meu augusto amigo Augusto Meyer, um admirivel espirito literétio sem a menor energia pritica, sem a menor autoridade, sem a menor visio técnica, [...] Acabei nessa semana que passou © anteprojeto da Enciclopédia, que agora vai naturalmente dormir pelas gavetas ministeriais o sono da bem-aveneuranga. Se nio for o dos séculos.” JA desde 1934, como atesta uma entrevista a0 Didrio Carioca recentemente recolhida por Telé Porto Ancona Lopez, Mério sentia 0 comichao da “traigio dos homens de espitito” explo rada por Julien Benda. Instado a falar sobre os novissimos que vinham do Nordeste (ele entio era um “novo”), elogia-os pela “atitude decisiva © bem delineada diante dos problemas sociais do nosso tempo”. Mario gostaria de tomar atitude idén- tica 4 dos novissimos, mas algo 0 tolhe, como também tolhe alguns dos seus amigos, “porque ainda [temos} muito do cere” Os novos ainda buscam a “verdade”, filhos que sio do “filido espirito burgués, liberal”. Jé os novissimos, filhos das “diversas ditaduras socialistas ou fingidamente socialistas de agora”, j& nio se interessam (clercs traidores que sio) pela busca da verdade, mas buscam uma “dei”, Diz Mario ao repérter: “Adguirem uma lei — comunismo, integralismo, tecnocracia etc. — ¢ des cansam nela enceguecidos. Ou ihmminados.” A ambivaléncia dos sentimentos em Mario nie é novidade, afinal ele trezentos se nio for trezentos ¢ cingiienta. Mas no caso preciso a ambiva~ léncia se explica por uma crenga no retorno dos valores uni- O intelectwai moderatsta revisitado 199 Demme 1 versais ¢ ctemos do homem de espirito. Como na tese de Julien Benda, terminada a cise mundial, o intelectual poder voltar a set artista. Tudo 0 que acontece no presente é “o abandono temporario de elementos do ser e da humanidade que s6 pre- judicam a fixacio das formas novas da saciedade humana. Depois disso, entfo, inteligéncia, cultura, individualismo reto- mario de novo os seus direitos imortais”, dir Mitio 4 guisa de conclusio. Um leitor recente e sutil de Benda, Maurice Blanchot, lem- bra as palavras terriveis de um fragmento do poeta René Char, que talvez traduzam bem a ambivaléncia andradina. Escreve Char em 1943; “Je veux n’oublier jamais que l'on ma contraine a devenir — pour combien de temps? — un monstre de justice et d'intolérance, un simplificateur claquemuré, un personage arctique qui se désintéresse du sort de quiconque ne se ligue pas avec lui pour abattre Jes chiens de l'enfer. Les rafles ois~ raélites, les séances de scalp dans les comissariats, les raids ter- roristes des polices hitlériennes sur les villages ahuris me sou- lévene de terre, plaquent sur les gercures de mon visage une gifle de fonte rouge.”* A postura andradina em 1934, ainda que apresentada de mancira esquematica, realga 0 solo histérico ¢ intelectual onde se di o que Sérgio Micelli chamou, com ffieza de cientista social, de “cooptagio” do intelectual. Caminhando licida precatia- mente pela terra do “pragmatismo”, Métio vai se aproximando do Departamento de Cultura no govemo Fabio Prado, ja que, conforme die a Murilo Miranda, ndo podia mais agiientar ser um escricor sem defini¢lo politica. A linguagem andradina, em carta para Murilo, abandona a ambivaléncia herdada dos + "Nunca me esquecerei de que me obrigaram a tomar — por quanto tem- po? — um monstro de justiga ¢ de intolerincia, um simplidicador ensimesmado, um personagem Srtico que se desinteressa do destino de toda pessoa que no se une a ele para 2bater os cies do inferno. As batidas policiais contra os Judens, as sessdes de escalpelo nas delegacias, os araques tersoristas da policia hitleriana contra pequenas cidades amedrontadas me fevantam do chic ¢ imprimem na pele ressequida do mcu rosto uma bofetada de ferro vermelho.”” 20n NAS MALHAS DA LETRA pensadores franceses liberais, para tornar-se autenticamente tragica. Ele que ja tinha se “suicidado” na década de 20 por fazer uma “arte de ago”, agora se “‘suicida” uma segunda vez ao entrar para o Departamento de Cultura. Escreve Mario ao aceitar a proposta de adesio ao governo Fabio Prado: “seria um suicidio satisfatonio © me suicidei”, Maria tomava o bonde para um projeto inicialmente paulista, mas deveria, “uma vez eleito presidente da Republica Armando de Salles, se estender para todo o Brasil”, conforme acentua Paulo Duarte. O artista, que ja saira parcialmente do palco na década de 20 a0 fizer 0 proselitismo do credo moderista em dettimenta da propria produgio artistica, uma vez mais sai do paleo, agora aceitando o recrutamento oficial para poder alargar ainda mais © citculo de influéncia do pensamento modemista, difundindo as idéias de 22, Ao “intelectual” (ne sentido francés da palavra) de 20 se soma em 30 0 funcionirio publico. © artista, por sua vez, confia no futuro, na ressurreigso da inteligencia e da arte. Aré 1a. A correspondéncia com Oneyda Alvarenga serve para aclarar dois pontos obscuros desea questio toda: qual a atitude ética de M6itio ao ser contactado pelo prefeito de Si0 Paulo? Aceito o cargo, qual a sua atitude em relagio aos intelectuais, amigos seus, que podia recrutar para o servigo publico? O conjunto de cartas comega por um convite a Oneyda, em carta datada do dia 6 de maio de 1935, termina — trés meses depois — por uma troca de telegramas: “Venha imediatamente traga Documentos parabéns Mario” // “Seguirei quinta abracos Oneida”. Este do dia 18 de agosto. Entre a carta de recrutamento ¢ o telegrama de aceite, de- senrolaram-se os sucessivos capftulos da novela do mercado de postos acessiveis 3 intelectualidade paulista, antes mesmo da grande “cooptagio” nacional estudada por Micelli em seu livre. Primeiro ponto. Restringindo-nos ao essencial anunciado. acima, detectamos nas cartas de Mario o desejo de esbocar € tomar realidade uma ética do aceite de emptego piblico cm cargo de confianga. Essa ética se torna mais evidente porque © inietectwal modernista revisiteds 201 ao convite (possivelmente verbal) feito a Mario nio se seguem a criacio por lei do Departamento de Cultura nem a nomea- gio oficial do poeta. A trama ¢ de bastidor, € os papéis oficiais ficam na gaveta, ou correm da mio de um politico para o ou- tro. Entre a promessa de emprego feita a Oneyda ¢ 0 préprio emprego de diretor que periga nio sair mais, Mario prega a imobilidade politica, acteditando repousar nela, paradoxalmen- te, os verdadeicos anseios de um intelectual participante como ele. A carta de 15 de maio de 1935 deixa transparecer, primeiro, dévidas ¢ intrangiiilidade, mas o trecho final dela mostra a al- tivez imperturbivel do caréter diante do convite que aio se coneretiza em nomeagio oficial: “Por enquanto ¢ certo que nao sei absolucamente de nada, pois me conservo em minha casa, sem dar um paso. Pois quero entrar pra Prefeitura intei- ramente solicitado, com a cabega levantadissima, sem dever favor a ninguém. Isso pro meu cargo, onde terei de recusar muito, é absolutamente necessario, ¢ vocé, que j4 conhece a independéncia de minha vida ¢ liberdade de pensar, me com- preenderé muito bem.” Explicitemes os cinco principios de comportamento sobre os quais repousa a ética andradina: (a) foi solicitado a se agregar ao governo, no € um oferecido, € antes de tudo um convidado cujo valor técnico (na 4rea cultural) é reconhecido: (6) dai de- correm a auséncia de qualquer manobra diibia de aproxima- Gio das autoridades superiores ¢ a utilizacio do manjado ¢réfico de influéncias; ( a exemplaridade do seu caso se estabelece por romper como circula vicioso do favoritisma no acesso a0 cargo pliblico; (d) por isso, pode demonstrar. e sempre demons- trari, 0 orgulho da cabeca levantadissima; (¢) finalmente, salien- ta-se a independéncia do intelectual, indispensivel para a liber- dade de agio de que vai necessitar, sobretudo no momento arriscado politicamente do ado a um favorito ou a um apani- guado dos superiores. A nomeagio é finalmente assinada, Come sempre, em Mé- x0, depois de softimentos dilacerantes, impde-se a euforia de entrar inteira € apaixonadamente na tarefa com o desejo de rea~ lizi-la da melhor maneira possivel. Confessa: “Desde uns dois 202 NAS MALHAS DA LETRA dias do 5 de junho em que tomei posse nada, mas absolutamen- te nada mais fiz do que trabalhar, sonhar, cespirar, conversar, viver Departamento.” Segundo ponto. Ao fazer 0 convite a Oneyda, Mario ja deixa claro © limitade poder que tem na escotha dos fiancion’- rios do departamento que vai organizer a partir de zero. Hi os postos para “escriturérios”, todos de respotssabilidade do prefei- to, e ha alguns “cargos técnicos”, de responsabilidade de Mario. No momento das diividas ¢ angiistias, Mario chega a acreditar que até mesmo o recrutamento do pessoal técnico Ihe sera ve- dado, visto que a presidéncia (do estado de Sio Paulo, aclare- se) enviara ao prefeito “toda uma lista enorme de nomes de individuos que seria preciso colocar no Departamento”. Portan- to, nao & apenas Mario que se sente diminnide no exercicio do poder de recrutamento. Até o proprio prefeito da cidade — ¢ este pode invadir seara alheia, Comenta Mario: “em deses- pero de causa o Prefeito é capaz de langar mio dos poucos cargos técnicos que deixara dependendo de nomeagio”. Diante de tal quadro de impoténcia administrativa, Mario vai perceber a razio para a critica da Republica Velha e do pa- ternalismo coronelista pelos tencntistas ¢, conseqiientemente, vai compreender a necessidade absoluta de uma das regras bi- sicas do govemo autoritarie ¢ antidemoeritico: o sigilo. A contrae revolugio de 32, fta pessoa de Mario, aprendia algema coisa com a revolucio de 30. © sigilo esti para a qualidade institu cional ¢ © autoritarismo, assim come a circulag3o publica da informagdo esti para a m4 qualidade institucional ¢ a politiquice. (Dai para a justificagio de um érgio como o Departamento de Imprensa e Propaganda anos mais tarde 36 falta dar um paso.) Entre o autoritarismo indispensivel e a politiquice a ser eliminada, nio hé lugar para a politica. A grande béte noire de todos nos anos 30 é © liberalismo ¢ a democracia, A redencdo dos regimes autoritirios s¢ encontra, por isso, no conhecimen- to especializado dos t&cnicos, escolhidos a dedo pelos poucos eleitos. Informa Mario a Oneyda sobre os descaminhos da infor- macdo tomada publica em clima pés-Repiiblica Velha: “O Pre- feito © 0 deputaco Paulo Duarte, muito amigo do Prefeito, qui~ © intelecinal modemista revisitado 203 seram fazer uma coisa séria, itil de verdade, com pessoal tecni- camente especializado etc. E como conhecem bem o que seja a vida © os homens brasileiros trataram de fazer tudo no mix mo sigilo, e assim foi feito até o momento em que a coisa teve necessariamente de transpirar. Imediatamente entrou a politi- ca no meio, pedidos e mais pedidos de emprego, um avanga em regra, ¢ de tal importincia que nio é mais possivel deter- minar 0 que vai suceder com esse pobre Departamento de Cultura, nem mesmo si saird!... E tudo quanto posso lhe con- tar por carta, © resto nio posse nem devo, porque me enche de vergonha estaduana.” As confissdes dos bastidores politicos, negras vergonhosas, vio pouco a pouco impregnando a cabeca intertorana ¢ inex- periente de Oneyda, cransformando-a num verdadeiro monstro de pessimismo ¢ mandonismo, monstro que faria corar até um empedemido udenista dos anos 50: “Mario, a miséria do mundo € horrorosa © os homens sio ruins demais. Vocé nio sabe a vontade que me di de consertar material e moralmente essas, vidas mancas que andam por ai.” Ao som dessa ponco camoniana marcha do “conserto” do mundo, Mério toma posse. Descobre o inevitavel: 2 maquina burocritica emperrada € as limitagdes de verba. Também recebe © departamento com pessoal completo ¢ j4 nomeado. Sobram- the alguns cargos téenicos, ainda e sempre. Entre os possiveis, fica para Oneyda 0 de “discotecaria”, isso "se 0 Prefeito nao cortar 2 verba pedida pra Discoteca”, e continua no sew novo estilo: “se nio cortar vocé ext4 feita porque ai imponho voce”. Finalmente, 0 projeto da discoteca é aprovado, mas surge uma nova ¢ wltima dificuldade: o prefeito no nometa mais técnicos, contrata~os por um ou dois anos. E é assim, como contratada, que Oneyda Alvarenga entra para 0 servigo publico pelas mos de Mério de Andrade. Nao sem uma derradeira nota de descon- solo: “Mas sempre @ desagradivel a gente saber que dai a dois anos ficaré na rua owtra vez.” Sob pesadas ¢ injustas acusacdes, como vimos antes em trecho de carta a Rodrigo Mello Franco, Mirio é posto na nia em 1938. Chegou a hora de transfetit-se para o Rio de Janeiro 2na NAS MALHAS DA LETRA € reencontrar 0s antigos “inimigos” de 32. Acodem-lhe, entre outros, Carlos Drummond e o jé citado Rodrigo, mas desde logo thes avisa: “Apenas noto um engano em vocés todos, amigos bons demais. B o esforgo de me dar um posto elevado com melhores vencimentos. Pois juro a vocés que isso nio € da minha preferéncia agora. Prefiro mi] vezes um posto que me conserve na obscuridade, subalteme de outros que mandem em mim ea quem eu obedeca sem responsabilidade.” E con- clui: “Quero escuridio, no quero me vingar de ninguém, que~ ro escuridao.” (1987} O intelectual modernista revisitado ooo Amizade e vida profissional © “quadrado” de Millér Femandes, publicado diariamente na pagina oposta 3 do editorial, nio passa despercebido ao lei tor do Jornal do Brasil. Teria sido impossivel ndo perceber — dada a frequéncia do tema — as criticas mordazes que tem feito A Nova Republica e aos seus ditigentes, Numa série mais recente, o humorista veste-se de austero ¢ exigente critico lite- ririo da obra ficcional de José Sarney, imortal e presidente da Republica. Hé poucas semanas atris 0 “quadrado” acolheu um outro suibtema: a lei Sarney. Esta lei transforma o antigo mece~ nato empresarial em contrato de incentivo 4 producio cultural brasileira com beneficios legais ¢ financeiros para a parte doa~ dora. A escolha do Gltimo subtema nio ¢ gratuita, como nada o & na caneta, pincel ou computador desse humorista. Primeiro: consegiiéncia de uma série de antincios bem-bolados que o Ministério da Cultura tem feito aparecer na televisio ¢ nos jornais, transmitindo o otimismo de alguns artistas diante das benesses oferecidas pela lei. Segundo: é consegiiéncia de escin- dalos financeiros (ainda) pequenos que afloram aqui e ali, envol- vendo grupos “artisticos” (as aspas se impSem) e um empresa~ riado totalmente despreparado para compreender uma possi- vel utilidade piblica e cultural da lei Samey. Em suma; de um lado ¢ do outro, trambiqueitos. Ha algo de podre no reino quando esto na arena publica de uma economia capitalista oti- mismo excessive de quem recebe ¢ um “leo” amordagado pela falta de escrapulos dos poderosos. Moral: economia de mercado € uma balela ¢ imposto de renda por aqui € coisa de assalariado. 206 NAS MALHAS DA LETRA Um dos “quadrados” de critica 4 lei Sarney me chamou particularmente a atengio. Trata-se do dedicado ao cinema ¢ que envolve de um lado um amigo ¢ companheiro de profissio de Milldr, Henfil, ¢ do outro grupos financeiros que apoiaram a produgio de Tanga, valendo-se das regalias que a lei Sarney di a quem queira aplicar em empresas culturais financeiramente arriscadas, As possiveis leituras do “quadrado” sio intimeras. E ainda bem. A mais segura (pelo menos para quem se preparou acade- micamente para fazer “leituras”) seria a que analisasse 0 cartum no seu contexto mais ample: a critica arrasadara que o humorista tem feito da Nova Repiblica, ou seja, a critica do que tinha tudo para ser ¢ acabou virando um prato cozido em banho-maria e que. por isso, nunca chega a ser servido ao apetite voraz de mudangas do cidadio brasileiro. Depois de dedicar-se a varios aspectos da derrocada politica (fraquezas dos dirigentes, escin- dalos financeiros, miudezas de um cotidiano que poderia ter sido grandioso etc.}, 0 humorista passou a analisar obsessiva- mente um lado que foi muito valorizado do acual presidente em opasigio aos anteriores. © atual, ao ser empossado, possuia qualidades literrias ¢ intelectuais, enquanto os outros foram desajeitados ¢ até mesmo incompetentes no trato das palavras e das idéias, Para demonstrar a amplidio do problema de uma auséncia de critica ne pais, Millér nio se deteve apenas na produgio artistica do presidente (0 que teria demonstrado in- suportivel parti-pris), Foi além: puxou a orelha de companheiros, de um companheiro de teputasio profissional intocdvel. Eo caso de Henfil. Mesmo dentro dessa leitura contextual ¢ mais segura, mui- tas s¥0 as possiveis interpretagdes do “quadrado”. Repito: ¢ ainda bem. A qualidade de uma obra de atte ngo esta tanto no seu impacto unidirecional junto aos seus leitores. Esti no modo como consegue fazer trabalhar as imaginagSes individuais, ali- cercando nelas nio tanto a opiniao carismitica do artista (caso do impacto unidirecional), mas © gosto pelo raciocinio atento a questées € problemas de dificil solugio ¢ que, por isso, reque- tem a reflexio de todos. De maneira paralela, pode-se dizer Amizade vide profissional 207 que essa € 2 razio bisica que explica por que a produgio de muitos dos nossos humoristas transcende 0 espaco jarnal ¢ en- contra abrigo nas galerias de arte. Results disso uma conseqiiéncia importante para a marcha do nosso raciocinio: a intervengio artistica acaba por ser acolhida de maneira polémica, contraditéria até, pelos leitores do jornal, enquanto a intervenc4o nio-artistica apela pata a solidariedade entre produtor ¢ consumidores. Isso porque a intervengio nico artistica passa uma mensagem unidirecional ¢ explicita, enquanto 9 texto artistico se afirma e se agiganta pelo cariter polissémico. No caso do texto artistico, nada ¢ explicito e tudo o é — basta ser um bom decodificador. Pode-se até mesmo aventurar-se em dizer que o estilo Millér est4 mais préximo da Nova Republica ideal do que da ditadura, apesar de alguns julgarem os seus “quadrados” pichagdes apai- xonadas des grandes vultos nacionais. No periodo duro da re pressio admitia-se como vélida uma obra de arce que desper- tasse unanimidade e solidariedade entre os seus leitores (é 0 caso dos romances de José Louzeiro e dos poemuas de Thiago de Mello), Tratava-se de recompor, na sociedade brasileira, as forgas oposicionistas que tinham sido esfareladas pelo poder militar, ¢ a leitura das obras escritas pelos autores citados desper- tava o desejo de os cidadios darem as mios. As mios foram da- das nos comicios para as direcas, Inuriimente, diria Millér num paréntese. Em oposigio, 0 pleno exercicio da democtacia por parte dos cidadios requer, antes de mais nada, o livre fluir da reflexio pessoal individualizada para que a participagaa (politica, social, comunitiria, profissional etc.) seja ditada pela razio ctitica. A verdadeira obra de arte — em tempos que nio sio obscurantistas — funciona como uma tomada de eletricidade: esté sempre catregada de alta voltagem para todo ¢ qualquer individuo que queria utilizi-la, Tanto mais valida a obra de arte quanto maior for a carga seméntica que trouxer. Se ultrapassar as fron- telras nacionais, bom; se for além da sua época, tanto melhor. Abandonemos, no entanto, um possivel rastreamento das miltiplas leituras do cartum sobre @ Gime de Henfil ¢ nos de- 208 NAS MALHAS DA LETRA diquemos a uma leitura que, obviamente, deve servir como base para a reflexio sobre © que o titulo deste artigo anuncia: amuzade © vida profissional. O caminho pelo qual enveredames (aviso) nao é 0 mais rico. Ele acolhe 2 anitise das respostas mais imediatas do leitor ao cartum. Portanto, antes mesmo de taduzir um comentario rigoroso ao trabalho de Millér, € uma tentativa de leitura da pronta reagio do leitor ao insdlito. Como reage ele. Propomos pois reflexdes sobre 0 comportamento do meio profissional em que se insere o artista ¢ que é perpasia~ do pelo sentimento da amizade. Antes de adentrarmos pelo tépico em pauta, um alerta: a leitura da reacio imediata a uma intervencio artistica é a me- nos importante de todas as Icituras. Trabalha cla com a epiderme e as emogées cotidianas do leitor, e tanto pode despertar o “arrepio” de satisfagio de que fala Antonio Candide quanto dar vazio a sentimentos baixos ¢ mesquinhos. As reagdes que motivam toda e qualquer censura (individual ou institucional) ancoram-se nestes sentimentos. Por isso, a intervencio artisti- ca — quando se desprende da baixeza e da mesquinharia dos contemporineos, em virtude do correr dos anos — torna-se imune 4 censura. Por sua vez, esta passa a despertar as tristes gargalhadas do desprezo. Por ser a menos importante das leituras, sobre ela pesa o maior siléncio tedrico. Mas ela existe — e como existe! — e, por i880, merece a nossa atencio. Por outro lado, as considera Bes que faremos devem extrapolar 0 objeto especifico que deu origem 2 elas (0 cartum de Millér) c se transformar num possivel comentério de toda e qualquer intervengao critica feita pelo artista através de um meio de comunicagio de massa, como, por cxemplo, uma entrevista em que comenta o estado da produgio artistica dos companheiros. E ainda: comentario de toda ¢ qualquer interven¢io da critica especializada, como por exemplo a critica (ndo elogiosa, € claro) de X a pega de Y. Selecionemos duas reagdes tipicas ¢ que traduzem a medio- cridade fofoqueira ¢ a miséria opinativa do meio intelectual bra~ sileiro, Nao ha necessidade de destrinch4-las criticamente. Vamos narré-las com a pena da ironia sob a forma de duas croniquetas. Amizade ¢ vide profissional 209 A primeira. Um “amigo fraterno” pega o telefone (agora nio mais o da TELERJ, mas o intergalitico), disca o nimero de Henfil ¢ lhe diz: “Pois é, viu © quadrado do Millér hoje? Sio sete da matina, eu sei, mas é que acordei cede. Nao podia dei- xar de te ligar para te prestar a minha solidariedade. Que su- jeira a dele, hem? E vocé me dizia que era seu amigo, admirava seu trabalho, Voc? arranjando um cantinho legal ai pra ele com Sio Pedro, ¢ ele, na primeira, pimba!, te apunhala pelas costas. Mabagradecido € 0 que ele @.” Claro, ¢ 0 Gnico e verdadeiro amigo, guardide dos bons sentimentos, quem telefona, Viu no cartum © que devia ser visto (a amizade ultrajada por um dos parceiros), e estamos conversados. A fofoca tramada pelo bom- mocismo s6 enxerga a armadilha onde cai o espitito. mordaz de Millér © a possivel sensibilidade ferida de Henfil. Ese tipo de armadilha pode ser perigoso (e 9 ¢ mesmo) se o capitulo das vaidades feridas for © forte de um dos parceiros. Esperemos que nio seja 0 caso de Henfil. Dessa forma, ficariam no ar, sem sin- tonia, as palavras do “amigo fraterno”. A segunda, Esperava tudo de Millor — a Nova Repiblica, Hélio Garcia, Funaro, Samey, Bresser, até o Brejal —, esperava tudo. Menos o Henfil. A inveja, s6 pode ser a inveja, Vai ver que no fundo ele no € 14 tao realizado quanto aparenta, Trauma familiar, um traunta familiar fez com que cle estivesse sempre competindo. Sera que ele n3o enxerga que hi lugar pra todos? Vindo dele, nio acredito. Logo dele, que tinha demonstrado em pablico admiragio pelo trabalho do companheiro. Quantas veres nio vi os dois tomando chopinho, papo animado, garga~ thadas, despedida no meio da noite cuférica ¢ salutar. Tudo falso. Por detris das efusdes amistosas, escondia-se a erva da- ninha da inveja. (Pode-se substitu:r o altimo lugar-comum por digressées eruditas com o Freud de bolso ou com citagdes de ouvido pingadas em Melaine Klein, Isso no caso em que 0 lo~ catot queira dizer que é versado nas artes da psicandlise, quando Ie um dos sete pecados capitais — a inveja.) Estou percebendo que a ctitica radical a esta segunda croni- queta pode passsr a idéia de que as relagdes humanas podem e devem ser sentimentalmente assépticas. Pelo contririo. A inveja 20 NAS MALHAS DA LETRA existe. Todos os sentimentos (julgados bons ou maus), todas as opinides {julgadas positivas ou negativas) interferem nas re- jagdes humamas, mesmo nas mais fraternas. © primeiro problema que se coleca é © de saber se, a0 maximizar a inveja come prin- cipal solo da atitude critica, nao se esté impedindo o livre debate das idéias entre os pares. Impedindo este, 0 gesto bisico de res- posta ao cartum foi 0 puxio de orelha no artista, ou seja, a cen- sura 4 sua aquagio necessariamente irreverente. O segundo leivor acredita que a censura nas suas palavras tomon-se mais do que justificada porque est “punindo” a conduta desonrosa do artis- ta. No entanto, ela macaqueia a “justiga” pela fofoca. O segun- do problema que se coloca é 0 de saber se a pessoa que acusa Millér de invejoso pode atirar a pedra. Se acreditar que pode, ai sim, percebe-se quem é 0 verdadeiro hipécrita. Ou seja hi- pécrita € 0 que acredita que esta calgando todos os sinuosos caminhos da vida afetiva ¢ profissional sé com os paralelepipedos dos bons sentimentos. ‘A censura apresenta duas modalidades distintas neste pais amante de autoritarismo pela sua histéria, Cala-se a boca do outre (ou de todos) pelo terror implantado pela violéncia ou pelo tabu. Nas épocas de ditadura explicita, as respostas das forgas de oposi¢so a0 regime sao revidadas pela escalada da violéncia. Foi o que se viu recentemente. Mas pelo menos conseguiu-se — ainda que sé em termos tedricos — colocar 0 dedo nos desmandos do poder intolerante, desmistificando as verdadeiras razdes da opressio. Em periodos que se dizem de- mocraticos, continua os desmandos do poder intolerante (indi- vidual ou institucional}, so que se armam frases, planos, estraté- gias etc. que impedem 2 livre discussio. E 0 terror pelo tabu. E deste que aquelas das croniquetas falam A valorizagdo cega da amizade em detrimento da avaliacio da produsio profissional, quando est4 em jogo o governo da coisa pablica, é uma das estratégias de censura-pelo-tabu mais convincentes no Brasil. Transformou-se 0 sistema numa frase tidicula que dever merecer a nossa aten¢io no momento opor- tuno: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.” Trans- formou-se cle também numa frase lapidar dada como dita por Amizade ¢ vida protissionat 21 Carlos Drummond de Andrade: “Nenhuma literatura vale uma amizade.” E bom que se aclare que o problema nio est no contetido em si da frase de Drummond, ou seja, na valorizacio da amizade, sentimento nobre, em detrimento da avaliagio profissional. Q problema surge no modo como a fiase se torna um mecanismo de desmobilizacio da discussio intelectual viva, calando a razio critica que deve também comparecer ao ban- quete do relacionamento profissional intenso ¢ diuturno. Estudemos a frase nas suas mUltiplas facetas, para poder encari-la como estratégia de desmobilizacio e de censuta com~ porcamental. Attibuida a Drummond cometa ou equivocadamente, a au- toria da frase toma-se verossimil quando recobre as relacdes pro- fissionais estabelecidas no momento em que predomina, poli- ticamente, um sistema de clientelismo. Este sistema justifica o recrutamento profissional piblico pela escolha dos parentes ¢ amigos para os melhores cargos. Estudos recentes de sociologia da cultura € de politica educacional tém chamado a nossa aten- ¢io para os tempos de Gustavo Capanema. Politico habilidoso e de facil confraternizago, Capanema conseguiu congregar em tomo de si um grupo seleto de intelectuais de valor extraordi— nario, responsaveis pela politica educacional ¢ cultural no pe- riedo posterior a 1930. Esses intelectuais, por sua vez, ressentem. quando a anilise sociolégica surpreende-os como participantes de uma “panela” politica e s6 querem ser vistos ou interpretados de duas formas: ou pelo trabalho artistico individual ou pelo trabalho burocritico metédico ¢ impessoal. Ficam de fora da anilise os vinculos politicos porque cles “nio” existiram. Qutra frase de Drummond fundamenta a atribuigéo daquela frase 4 sua pena, Diz ele, referindo-se a estudo que o coloca como participante do grupo Capanema ¢, indiretamente, do projeto cultural do Estado Novo: “Quanto a mim, simples au- xiliar de confianca de Gustavo Capanema, de quem sou amigo desde os bancos escolares, exerci fiingio burocritica, destituida de qualquer implicagie politica ou ideolégica, sem vinculagio direta ou indireta com Getilio Vargas.” O problema basico que estava sende colocado pelo estudioso do papel politico dos ca NAS MALHAS DA LETRA intelectuais levantava um complexo sistema de jungio da ami- zade com a competéncia, cada uma legitimando a outra, sendo que a todo, por sua vez, justificava as relagées profissionais estreitas, Essa intrincada rede acabava por colocar os anos 30 como caudatarios da politica de clientela da Velha Republica (1889-1936), ainda que na aparéncia os subtraia das criticas pela criagio de concursos de selegdo sob a responsabilidade do entio recéi-criado DASP. E preciso portanto reler a frase “Nenhuma literatura vale uma amizade” com certo cuidado. Lida como um aforismo, extraido das mAximas de La Rochefoucauld, acentua-se o card- ter (otalitirio do sentimento, diferenciando-o de outros sentimen- tos humanos, indictando ainda que a avaliagio (elogiosa on cxitica) da produgdo artistica de um amigo é ixrisOria diante da perenidade intocdvel ¢ da nobreza de sentimentos que os une A definigSo da amizade como sentimento toralitério torna cego © julgamento critica. Ou inutil. (“Totalitirio” € aqui tomado ndo no sentido comqueiro de ditatorial, mas no de algo que é superior a tudo, que é abrangente de tudo. Por ser abrangente, & que a amizade nio é um sentimenta que exclui ¢, por isso ainda, nio pode ser repressiva.) A amizade enxerga a perfeigio mesmo onde ela nio existe. A amizade sé enxerga a perfeicio. Lembro-me de conversa recente ¢ esclarecedora. A moga com quem conversava tnha ido, com uma companheira, assistir a uma pega interpretada por um grande amigo seu, calvez o melhor dos seus amigos. A saida, a companheisa Ihe diz que nio tinha gostado nada da peca. A amiga do ator tentava me explicar na conversa que mantivemos posteriormente: ela tinha gostado demais da peca, mas nao sabia o que dizer a compa- nheira que nio tinha gostado. Faltavam-lhe palavras, faltava- Ihe até mesmo a necessidade de convencer a outra, Durante todo 0 transcorrer da peca — me dizia — viveu no nirvana, e © abrago caloroso ao amigo no camarim foi o climax de toda a alegria. Essa compreensio da amizade como ui sentimento totali- tatio (no sentido que lhe emprestamos aciraa) € que torna o relacionamento de duas ou mais pessoas completo, redondo. E Autzade ¢ sida peofisstonat ay o encontro delas, jubilatorio. Nesse sentido, a amizade — como 0 amot — sio as manifestagdes mais profisndas da alegria humana (da beatitude, diria Nietzsche}, traduzindo o bem-estar total com o mundo e os homens. A bem-aventuranga. Ao con- trério das relagdes de parentesco, estabelecidas ¢ limitadas pela corrente do sangue, a amizade (assim como o verdadeiro amor) explode no acaso e pelo acaso, na aventura da vida. A amizade nio é ¢ nem pode ser “fraterna’. Ela é filha da disponibilidade do homem para com o seu semelhante. Ela se recobre de total gratuidade no minado campo do social ¢ no precirio campo do profissional. Lida no contexto da década de 30, num momento em que amigos se reencontram para construir ou solidificar um projeto politico nacional, ao mesmo tempo em que, por gosto e por vontade proprios dedicam-se 4 execucio de obras artisticas, a mesma frase acaba por tomar um outro colorido. Passa para segundo plano o cariter totalitario do sentimento, para que se manifeste uma hierarguia da emogio ¢ da razio nas crises de relacionamento. A amizade é e deve ser superior 4 avaliacio (critica ou elogiosa) do amigo ¢ do seu trabalho. Retirase do palco do sentimento 0 congracamento jubilatério de almas- gémeas, produto da aventura da disponibilidade pelas ruas do acaso, ¢ aparecem todo-podcrosas a precaucio ¢ a prudéncia, vestidas das roupagens do bom senso. ‘A amizade passa a ser invocada (e, mesmo que nio haja invocagio explicita, ela fica 14, dependurada na frase lapidar como um deus proteto:) nos momentos em que pode brotar a mégoa, sendo que ela precavém o amigo de ferir 0 outro, ¢ vice-versa, Ela passa a traduzir um gesto de refreamento de emocées espontaneas e da razao critica, uma atitude de censu— ra para com o uso das palavras. Ela pode até mesmo — numa caricatura, aclaro, do contexto dos anos 30 — servir como justificativa para o favorecimento de uma pestoa que no fando nio merece o favor. Como a amizade é tida por cega, nio se enxerga 0 outro como ele é& Por isso, mesmo que os demais julguem aquele individuo incompertente, o amigo nfo o julga. Nese contexto grotesco é que deve ser lida a frase clissica da au NAS MALHAS DA LETRA politica coronelista, ja referida atras: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.” Manuseada no contexto dos anos 30, a amizade perde também o seu carécer de abrangéncia coral, aquela abrangéncia que nada exclui porque tudo engloba, Ela passa a excluir: a excluir tudo 0 que eventualmente pode atrapalhar a manifesta~ gio solidaria de pessoas envolvidas sentimental ¢ profissional- mente. Ela retira do ambito da amizade a liberdade descabelada que sio o sal, a pimenta e o agicar das brigas entre amantes ¢ amigos. Retirada a liberdade descabelada, nao existe amizade verdzdeira, ou amor verdadeiro. E é porque elas nio existem que uma mera rusga se torna ressentimento, Quando existe ressentimento entre duas pessoas é porque nunca existiu ami- zade ou amet. Disso advém o maior perigo para o relacionamento dito amistoso, porque o sentimento — arivado pelo que superior hierarquicamente — pode servir de mecanismo inibitério, Se 9 inferior na hierarquia no tem o direito de invocar a amizade do contexto do trabalho piblico, muito menos o teré o superior. Aquele, invocando-a, pede 0 favor; este, invocando-a, institui a censura come regra de conduta e sugere o puxa-saquismo. A frase “Nenhuma literatura vale uma amizade” é legiti- mada por uma justa hierarquizacio da emocdo e da razio no trato afetivo des homens. No entanto, a mesma frase pode legitimar — no campo das coisas piblicas — a hierarquizagio institucional, organizacional. A emocdo acaba por sobrepor-se A razio no momento em que se propde a nago ou 4 comuni- dade o planejamento ¢ a execugio de um modelo nacional de governo pata todos, liberto das amarras do protecionismo des- carado, Nosso interesse basico @ final & 0 de caracterizar uma tercei- ra forca na anilise da ideologia do favor entre nés. Sio conhe- cidos os estudos que focalizam os lacos de patentesco © © com- padrio como solda da pirimide do poder patrio. Estudos feitos por Maria Izaura Percira de Queirés, Roberto Schwarz, Anto- nio Augusto Arantes Neto ¢ outros mais. A amizade, quando extrapola o campo do privado e € invocada no processo de se- Anizade ¢ vida profissional lego, decisio € execucéo da coisa piblica, ou ainda nos momen- tos de crise institucional, cimenta a perpetuidade do autorita- rismo entre nés. Ela foi moeda comente — no segundo sentido — no Estado Novo e ¢ de novo moeda cortente, impedindo um reclamado processo de democratizagio do Estado, sob a responsabilidade de uma sociedade civil democritica. Se parentesco ¢ compadrio recobriam basicamente as rela- des de favor politico no mundo rural e no deslocamento des- te para os centros urbanos, a amizade produto essencialmente urbano ¢, portanto, é um dado recente na nossa historia social. A amizade requer como valor absoluto 0 acaso e a coincidéncia, satisfazendo uma necessidade humana tio nobre quanto o amor. Por ser a forma urbana por exceléncia, ela é a forga que & ativada nos momentos de controle do Estado pelos grupos in- telectualizados, Ou seja: nos momentos de modernizagio ou de democratizagio da sociedade brasileira (nao confundir um com © outro, j4 que dificilmente podem ser concomitantes). No universo urbano, © proceso modemizador e o demo- cratico sio tarefas parz técnicos especializados, para individuos com formacio disciplinar. E praticamente impossivel alimentar tal exigéncia apenas com elementos que sio afins pelas relagdes de parentesco ou de compadrio. E nesses momentos de transigao que sio requisitados, sem aviso prévio, elementos que nao per- tencem aos quadros politicos tradicionais, ou seja e por exemplo, © pessoal de formagio superior (civil ou militar), Preparados individualmente para a tarefa de anilise ¢ planejamento e des- preparados para a tarefa de governo, os intelectuais valem-se dos lagos de amizade para a consticuiggo de suas equipes de tra- balho. Lagos estes que foram atados nos bancos cscolares pelo acaso € pela coincidéncia, sagrados na festa de entrega de di- plomas ¢ consagrados nos aniversarios de formatura. Se a equipe se forma sob prineipios de ética profissional, o problema @ menor. Sio os famosos cargos de confianca. Maior se toma se a razio da equipe € a emogao sob as formas de hie- tarquizacio pelo mandonismo, a vaidade, o empreguismo e a conupcio. Pena que a amizade, deturpada do seu sentido totalitério e 215 NAS MALHAS DA LETRA original, seja palavra to invocada hoje, tio invocada quanto a democracia. A amizade cransparece ma voz da Presidéncia quan- do cataloga amigos entre os dirigentes regionais que favorecem © tempo do mandato. E invocada por um senador que quer servir de liaison entre a Presidéncia ¢ o Senado para resolver problemas de decisio partidatia. O prefeito de Petropolis, justi- ficando otimisticamente a pronta liberagio de verbas federais para a reconstrugio da cidade apés a enchente, tem como at gumento maior 0 fato de ter sido recebido como amigo em palicio. Se nao o tivesse sido, nao estaria tio otimista. A amizade justifica a pressio de altos dignatirios de Reptiblica junto aos imortais da Academia Brasileira de Letras, quando 0 que esta em jogo na eleig¢éo de umm novo membro é a consagragio ins- tirucional de uma vida dedicada as letras. A probidade de uma vida intelectual. Realmente: neste pais, “Nenhuma literatura vale uma amizade.”” [1988} Amizade ¢ vide profissional 27 rl = = Por que e para que viaja o europeu? Para o Renato Fenho por aula a opiniéo dos que procusant, jé tendo encontrado. Paul Valery (tradagio de Augusto de Campos) © iiltimo livro de Umberto Eco editado entre nés, Viagem pela ineslidade cotidiana, na sua primeira parte, “Viagem pela hiperrealidade”, serve para que de novo coloquemos uma ques- t4o gue acompanha as relagées entre o Velho e o Novo Munda desde 0 aparecimento deste ultimo para a consciéncia ocidental: por que e para que viaja 0 europeu? Anos atrés foi chique a historiografia americana tentar ex- plicar a razio pela qual 0 Novo Mundo nao chegox a descobrir 2 Velho, Entre tantas hipéteses, uma era a mais sedutora talvez porque apontasse para a superioridade cientifica do Ocidente. Dizia que tal nio acontecera porque os nossos pré-colombianos nao conheceram a bussola. Mais ¢ mais, com os estudas recentes de antropologia politica, feitos ¢ inspirados por Pierre Clastres, iremos descobrindo que as razdes podem © devem ser outras, ou pelo menos diferentes das respostas ditadas pelo etnocen- trisme europen vencedor, Mas fiquemos por ora com a pergunta clissica acima formulada PRIMEIRAS RESPOSTAS Camies ji nos dizia que se 0 europeu vigjava era para pro- pagar a Fé ¢ 0 Império, no que tinha muita razio Mas, em Jugar de apresentas og Ineos coms responsiveis pela colonizacio de Per que € ars gue viaja © europen® RI outras gentes, dava a responsabilidade da tarefa aos deuses pa- gios. Engodo que Voltaire descobriu em 1733 no Ensaio sobre a poesia épica: “O principal fim dos portugueses, depois do es- tabelecimence do seu comércie, era a propagagio de €, © Vénus se incumbe do éxito da empresa. Falando seriamente, um maravilhoso to absurdo desfigura toda a obra aos olhos de Jei- tores sensatos.” A essa contradic, Anténio José Saraiva acres- centa outra: na epopéia os homens se comportam como deuses € os deuses como humanos. Os argonautas portugueses sto pro~ bos, perfeitos, olimpicos, como Vasco da Gama, e os deuses sio metros intrigantes mortais, vitimas dos proprios sentimentos (amor, ddio etc.). Por isso é que Saraiva pade coneluir que 4 mitologia em Camides € a transposi¢o da realidade historica. De qualquer forma, a resposta camoniana tem pelo menos uma grande vantagem: no enfatiza o aspecto gratuito da viagem, © da curiosidade pura ¢ simples pelo que lhe é diferente, pelo Outro (pelo indigena, diferente ¢ simétrico ao europeu). A énfase na curiosidade reduziria toda a questio da descoberta da colonizagio, da conquista, a um exercicio intelectual em tomo da insatisfagio do branco com a sua propria civilizagio, “naturalmente” propicio ao universalismo, Redundaria numa divagago pura sobre a maneira como o europeu busca 0 conhe- cimento: ele viaja porque € curioso pelo que desconhece. 6 o desconhecido que instiga o seu saber. Camées insiste. pelo contririo, na finalidade expansionista ¢ colonizadora da viagem. Tanto melhor. Os verdadeiros curioyos pelo Quito € os verdadeixos insa- tisfeitas com a tealidade curopéia nao sio obviamente os nave- gadotes e os colonizadores, mas os que ficaram enfrentando a barra pesada européia, 3s voltas com a intolerincia religiosa e a Inquisigio, como Montaigne. Que eu saiba, Montaigne nunca viajou para fora da Europa, mas teve a brilhiante idéia de retirar do Outro (no caso mais especificamente: do antropéfago que visita ¢ Europa) 0 seu potencial contestario 4 organizacio do Estado moderno europe, dando-the o estatuto — ai, sim — de objeto do comhecimento, da curiosidade intelectual. Leia- se 0 capitulo “Des Cannibales” nes seus ensaios. 222 NAS MALHAS DA LETRA Nio é que os portugueses ndo tenham sentido na pele os desmandos da Inquisigio. Nao foram insensiveis, como Camdes nio o foi, a “ispera, apagada e vil tristeza” por que passa a pitria. Foram incapazes ¢ de compreender ¢ criticar a onda de intolerancia religiosa que assolava o continente com padrées sociais ¢ religiosos que se hes descortinavam gracas as descober- tas maritimas. Diogo Bernardes, por exemplo, em “Resposta ao doutor Anténio Ferreira’, nos fala do clima em que se vivia em Portugal, mas nio estabelece © contraponto iluminado de Montaigne. Dele podemos ler: A medo vivo, a medo escrevo e falo, hei medo do que falo s6 comigo, mas inda a medo cuido, a medo calo. Ja Sa de Miranda, pelo menos no floreio da comparacio, aban- dona 2s fronteiras européias e se adentra pelo Egito, ali desco- brindo no comportamento dos cies sedentos a beira do Nilo 0 recurso para poder sobreviver aos maus tempos: farei como as cies do Nilo, gue correm e vio bebendo Isso numa “Carta a el-rei d. Jodo III”. Malandro, nio? Meso os puritanos que foram para a América de ve2, que podiam em principio ser dados como insatisfeites com a in- tolerincia européia, nada mais fizeram do que levar para a outra terra a intolerincia de que eram vitimas ¢ reafirmi-la de maneira mais vigotosa porque sem os entraves histéricos e sociais existentes na Europa. O contato com o Novo Mundo, portanto, nio muda a visio de mundo dos putitanos; pelo contririo, dia eles a garantia — legitimada pela teoria da pre~ destinacio — de que esto na viagem certa. Nao & por coin- cidéncia que a “biblia” dos puritanos americanos, The Pilgrim’s Progres:, apresenta a salvacao pela fé por uma viagem alegorica As dificuldades para a alma chegar ao porto seguro de Deus 840 as que o caminhante sofre diante de um obstacalo natural Por que € para que wiaja 0 eurepen? 2 intransponivel. Em outras palavras: vocé s6 chega ao seu eu teligioso mais profundo pelos percalcos da viagem: This Hill, though high, 1 covet to ascend; The difficulry will not me offend; For I perceive the way to life lies here: Come, pluck up, Heart, let’s neither faint nor fear: Bewer, though difficult, che right way to go, Than wrong, though casy, where the end is woe.* Por paradoxal que possa parecer, a methor resposta ¢ a mais radical @ 2 dada pela inércia. O verdadeiro insatisiico com a realidade portuguesa da época € 0 inerte Velho do Restelo, figura que ficava no porto — é © que nos diz a criagdo ma- gistral de Camdes — criticando os navegadores © até mesmo 0 primeiro navegador: “Oh! maldito o primeira que no mundo 7 Nas ondas vela pés um seco lenho.” © Velho pergunta aos navegadores a razio da viagem para longes terras quando tan- to havia para ser feito no proprio pais ¢ nas vizinhangas. Nao teria sido melhor gastar tanta energia e tanto capital fazendo do pais um modelo de equilibrie ¢ civilizagia? Apostrofando a “gloria de mandar” que é 0 movel das viagens, pergunta-lhe: A que novos desastres determninas De levar estes Reins ¢ esta gente? Que perigos, que mortes hes destinas, Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos ¢ de minas De ouro, que lhe faris tio facilmente? Que fama lhe prometeris? Que histérias? Que triunfos? Que palmas? Que vitérias? * “Este monte, embora alto, desejo escaliclo; / As dificuldades no me ofen- derto; / Pois petcebo que o caminko da vida esté aqui: / Vamos. coragem, Coragio, ndo desmaie nem tema: / Melhor, embora dificil, ir pelo caminho cere, / Do que cait, / Do que cair, sem penas, onde o fim € 2 miséria.” 26 NAS MALHAS DA LETRA r Deve ter sido no Velho do Restelo que pensava Fernando Pessoa quando imaginou os versos que cclebravam © Quinto Império: Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faga até mais rubra a brasa Da lateita a abandonar! Lembro-me também de que durante as primeiras explora~ ges espaciais da NASA, ainda na década de 60, havia um obscuro missivista das revistas Time ¢ Newsweek que repetia a ligio do Velho do Restelo e, ao utilizé-la, indagava do governo americano se nao seria melhor gastar todas aquelas verbas fe- derais com programas para a melhoria da condicao de vida do americano pobre. Por esse Angulo, a resposta 4 questio inicial seria até interessante: 0s europeus vigjam porque sio insensiveis a0s seus, porque nao tém o alto senso da justica. (No mundo contemporineo, a mesma conclusio seria valida para os norte- americanos e 0s soviéticos.) A colonizagio pela propagacio da Fé ¢ do Império é a ne- gacio dos valores do Outro (Camées infelizmente nio foi bastante ldcido para perceber que a moeda tem duas faces). A tripla nega¢io do Outro para ser mais preciso. Primeiro: do ponto de vista social, j4 que o indigena perde a liberdade, passando a ser sidito de uma coroa européia. Segundo: 0 indigena é obrigado a abandonar o seu sistema religioso (¢ tudo 0 que ele implica de econémice, social e politico), trans- formando-se — pela forga da catequese — em mera copia do europeu. Terceiro: perde ainda a sua identidade lingiiistica, passando gradativamente a se expressar por uma lingua que no é a sua. Como diz a exaltagio de Antdnio Ferreira: Florenga, fale, cante, ouga-se e viva A Portuguesa lingua, ¢ j4 onde for Senhora va de si soberba, altiva. Por que ¢ para que vigja © eusopen? ms Portanto, a colonizagio pela propagacio da Fé e do Império € antes de mais nada 2 falta de respeito (e nio a simples curio- sidade intelectual) para com Outro, a intolerincia pata com os valores do Ouro. E 0 efeito maior do gesto narcisico curopeu que queria ver a sua imagem repetida por todo o universo. Gloriosamente, a histéria dita universal surge com 0 expansio- nismo europeu. Q Novo Mundo é apenas a ocasiio para um. outro espelho, ¢ o indigena, barro para se confeccionar um du- plo ¢ semelhante. E toca violéncia e destruigao. De tal situacdo escapa S. Francisco Xavier mas suas pere- grinagdes pelo Jap3o. Acteditava ele haver um “universal” que transcendia as diferencas lingiiisticas ¢ que, por sua vez, era transcendido pela razio ocidental. Dele fala Pierre Chaunu: Conftando na revelagio universal, ou, antes, na universa- lidade da razao ocidental, (S. Francisco Xavier] acreditou poder encontrar na lingua nipénica termos que traduzis- sem 05 conceitos cristios, pois que ele ponsava cristalizar em torno de palavras japonesas as nogdes esquecidas de cm monoteismo latente, e ressuscicou além do paganismo os dados da revelagao universal. Antes da sua morte, o apdstolo descobria que era um erro pensar que poderia haver harmonias preestabelecidas entre o Pensamento japonés ¢ 0 europeu. PARENTESE Nao nos adentremes pelos aspectos de cariter nitidamente econdmico da colonizagio, porque ai teriamos de abandonar a questio colocada desde situlo e tentar responder a uma outra menos abrangente embora mais premente: por que e para que viaja o negro africano? 6 claro que © porgué na perguata evi- 26 NAS MALHAS DA LETRA denciase como puramente retrico, jé que viajaram sem moti- vacio propria € com uma finalidade estreita ¢ especifica. Os europeus nda s6 gostavam de viajar como também faziam questo, ¢ como faziam!, de que os africanos os acompanhassem, sem mesmo Ihes perguntar se era do gosto deles, Bera vamos vendo que a resposta camoniana elide também um aspecto bas- tame importante da questo: a propagagio da Fé e do Império fot montada em cima de um dos mais injustos sistemas socio~ econémicos que o homem conseguiu inventar — o da escravi- dio negra no Novo Mundo, A ETICA DA AVENTURA Una coisa ia ficando clara no correr dos anos: parece que © europer! viaja porque nao gosta de trabalhar, mas 20 mesmo tempo tem-se de dizer que, no fundo, ele também trabalha, ja que navio algum chega sozinho ao seu destino, Mais correto seria talvez dizer que existe uma hierarquia no trabalho: o nobre € 0 aviltante. Seria nobre o que fosse justificado pela ética da aventura, ¢ esta — por sua vez —, de maneira bem pouco ética, tudo justificava e legitimava para que a agio da aventura se realizasse plena, Até mesmo a escravidio negra. Nio ha davida de que um dos grandes interesses do ro- mance escrito a partit do século XVIH é o de institair como verdadeira ¢ justa uma ética da aventura para o homem mo- derno. Pensamos em Daniel Defoe, em Chateaubriand, ainda ¢ sobretudo em Joseph Conrad, ¢ mais recentemente em Michel Bucor. E claro que os arguments levantados pelos romancistas sio convincentes, t30 convincentes que acabamos seduzidos por eles, esquecidos do que foi ficando escondido por detris. Nio seria a sedugio o engodo pela intensidade passageira, coma ilustra © mito de Don Juan? Para cormar fascinante e sedutora a ética da aventura, todos aqueles romancistas © outros mais colocaram © peso da acio Por que ¢ para que viaja 0 europen? 27 sob responsabilidade de um tinico individu. Desa forma, tor nam-se abstracas as questdes de caritet coletivo ¢ ideolégico {a colonizagio © a exploragic, por exemplo}, ¢ o espirito do leitor se rende ante a evidéncia formidivel desses herdis do nosso tempo e€ Ge outras terras que no as européias. Torna-se fantistico nesse capitulo a maneira como a oratéria religiosa pracurou recobtit a aio (no caso catequética) com as mais variadas justificativas, com © Gnico intuito de despres- tigiar os padres que nfo saiam a semear, como disse 0 padre Antonio Vieira, E dele o célebre trocaditho entre “Pago” € “passos” que se encontra no “Sermio da Sexagésima”: “Ah Dia do juizo! Ah pregadores! Os de 4, achar-vos-ei com mais Pago; os de 1d, com mais passos.” Manuel Bernsrdes, acuado contra a parede dos defeitos pessoais, se justifica: quer “suprir pelos vos da pena os passos que por que achaques nio posso dar nas missdes”. Frei Antonio das Chagas desvaloriza os de- leites gozosos do misticismo: “a santidade no consiste em muito contemplar, sendo em muito obrar, Mais vale um dia em que andais fazendo obras de caridade, ou de humildade, ou de obediéncia, ou de paciéncia, que estar um més em convempla- gio, éxtases ¢ em raptos”, © CORSARIO E O HOLANDES © elemento que poderia desmascarar 0 aventureiro. moder- no protegido pela ética da aventura seria o corsario. Este seria © aventureito desprovido da racionaliza¢io objetiva que trans- formava ambiciosos navegantes em herdis. Estaria portanto o corsirio bem mais préximo — come metifora desconstrutora — do navegador ¢ do colonizader que propagava a Fé e © Império. © que fascina na érica da aventura — vista egora sob este nove 4ngulo — @ que nada, absolutamente nada, tem dono Os navegantes descobrem 0 descoberto. Por isso se dizem 228 NAS MALHAS DA LETRA inventotes. A “invengio da América” é uma postura historio- grifica ctnocéntriea, “Fanto barbaro ensina, pisa, doma” — diz 0 verso de Anténio Ferreira em elogio ao conquistador Juso. Eles pisam, tocam, pegam, possuem. Terra, vegetagio, bichos e mulheres (ia-me esquecendo de dizer: a ética da aven- tura é exclusivamente masculina — ji 0 diziam as cantigas de amigo desde os tempos medievais, disse-o logo depois Pero Vaz de Caminha, € mais recentemente Guimaries falou grosso ao criar Diadorim). Tudo 0 que citcunda o aventureiro, para usat a expresso de outro viajante, André Gide, existe em es- tado de total disponibilidade. Ou nao seria mais justo dizer, com a ajuda do proprio Gide viajando pelo norte da Aftica, por sua vez ajudado por Bougainville encantado com as ilhas Polinésia, ¢ todos ajuda- dos pelo iluminado Diderot refletindo sobre o texto de Bou- gainville — nio seria mais justo dizer que as coisas no munda nio tém dono e que a idéia de propriedade & 0 modo pelo qual © europeu se manifesta essencialmente seja no convivio com 05 seus, seja no convivio com 0 Outro, seja ainda no convivio com as coisas? © conquistador europeu usurpa ¢, 20 camuflar este gesto com a nocio de propriedade, j4 ai insticui como indispensivel para 0 contrato social futuro a noco de rubs © conseqiiente ¢ indispensivel punicao. A cadeia, em suma, A nocio de proprie- dade s6 pode ser considerada como legitima ¢ corrente depois que 0 primeiro e grande roubo for feito. A redencio do aven- tureiro estaria na imposi¢ao radical de um cédigo de conduta {ou de justica) que seria vilido para todos menos para cle. Poder-se-ia bolar uma definicio mais jusca para o papel da civilizagio européia no Novo Mundo? Diz Diderot de maneira emblemética no Suplemento 3 viagem de Bougainville, texto a ser melhor meditado pelos nossos antropélogos: Cet Otaien qui courut 3 ta rencontre, qui Caccueillie, qui te recut, en criant taio, ami, ami, vous lavez tué. Et pour- quoi l'avez-vous tué? Parce qu'il avait éeé séduit par léclat de tes petits oeufs de serpent, I te donnast ses fruits; i Por que € pate que vigja e exropes? 2 Vofirait sa femme et sa fille; il te cédait sa cabane, et cu Tas tué pour une poignée de ces grains, qu'il avait pris sans ve les defnander.* No momento em que esse codigo de conduta se volta con- tra ele (€ casos existe), o aventureito seri obrigado a ser um. eterno viajante — um apétrida bastante proximo do corsério. Preso ao seu barco € 4 constanve mutabilidade da viagem. Nio seria o mito do navio-fantasma uma espécie de vinganga de Montezuma (como se diz no México) para os que se apossam sem que a sua posse possa ser julgada como maléfica? Sem des- tino € sem descanso, solitério e sem cerras, o capitio do navio- fantasma vé-se obrigado a viver em estado puro a ética da aven- tura — como uma maldicio. © mito do navio-fantasma (ou do holandés errante), nesse sentido, ocuparia espaco consideravel dentro da resposta que estamos procurando organizat, porque instivui a diferenga entre © aventureiro ¢ o colonizador. No momento em que o naviv parar no porto, no momento em que o aventureiro puder tor- nar-se sedentirio, encontrando a esposa que lhe jura fidelidade eterna, com ele constituinde a famiha patriarcal, nesse momento surgira o colonizador — e é ele que, respaldado ainda pela ética da aventura, desvirtua-a, utlizando-a como justificagao para o seu desejo de mando e poder. Metamorfoseado em colonizador, o navegador nio pode mais trabalhar. Se trabalho nobre fosse o trabalho da terta, nao teria tido necessidade de deixar o campo patrio, Estaria em perfeito acordo com o Velho do Restelo e nem viajaria. Se viajou & porque julga aviltante o trabalho sedentitio, ¢ este trabalho € destinado aos que sucumbem a sua forga, aos venci- dos. A esctavidio negra — no codigo do aventurciro ¢ exclu- * “Este taitiano que veio a0 seu encontro, acolheu ¢ recebew voc’, gritando Jaia, amigo, amigo, vocés 9 mataram. E por que o mataram? Porque tina sido seduzido pele britho dos seus ovos de serpente, Deu 2 vocd frutas; ofe+ teceu-the mulher ¢ filha, cedeu-the a cabana, ¢ vocé o maton por um punhado, de grios que levou sem pedir.” 230 NAS MALHAS DA LETRA sivamente sob esta perspectiva — se justifica pela supremacia da coragem ¢ da aventura, pela “‘vitria” do europeu sobre o seu Outro. Em terra firme, o aventureira nunca pode ser Javra~ dor; prolonga a sua vida anterior de marinheiro sendo cagador ou bandeirante. Por isso, dé como naturais as regras de dominio e de sujeicio, instalado que se encontra num mundo de cacadas ¢ animal 4 sua excegio. O aviltamento da condi¢io humana pela escravidio € conseqiiéncia da “derrota”, e 0 mero trabalho sedentario na lavoura ja ¢ 0 “pagamento” ao senhor. As teorias da supremacia do branco, levantadas pelo racismo consciente ou inconsciente do século XIX, nao descartam a metaforizagao das relacdes humanas pelas rela¢Ges entre homens e animais. Nao descarta a postura do branco como “cagador” (de feras, de mulheres e de homens nao-brancas). Se a desco- berta evolucionists de Darwin nos coloca noutro patamar para se indagar cientificamente sobre a origem do homem, nao hi divida de que o strugele for life serve como uma luva para justificar a vitéria do europeu a partir das grandes descobertas ‘como supremacia, entre ourras, racial. O homem é 0 lobo do homem — seria a forma proverbial da ética da aventura quando transformada em padrio de condute na terra firme. QO ENSINO DO MODERNO ‘A resposta camoniana & pergunta (que vem sendo inspira~ dora destes comentarios) € sem dawida vilida enguanto o Novo Mundo foi colénia do Velho. A partir dos movimentos de li- bertagio e de independéncia, a partir da independéncia, a fina~ lidade da viagern toma novos rumos. Passa a ser o requisito ina~ didvel para que a jovem nagio dé continuidade a0 processo de ocidentalizagio em que entrou sem ter pedido. A viagem do europeu tem uma funcio predominantemente docemte © mo- dernizadora. O europe viaja, entio, como integrante de uma missio cultural ¢ muitas vezes a pedido do pels imteressado, Traz Por que ¢ poas que viaja a eurapen? BI diploma na bagagem, de preferéncia universitario. Por detras de tudo, um certo conde da Barca... No caso especifico brasileiro, seria fastidioso embora ins- trutivo levantar 0 némero de misses culturais que sucederam 4 francesa de 1816, cuja finalidade era a de fundar e dirigir escolas de ciéncias, arves € oficios. Nunca € demais lembrar — saltando mais de um século -— que a Universidade de Sio Paulo foi fundada a partir de uma missio, de que faziam parte jovens e inexperientes professores que depois se tornaram gran- des nomes nas suas respectivas especialidades. A USP lancou um modelo que até hoje funciona todas as vezes em que se imp&e uma atualizagio apressada da ciéncia e da cultura. O modelo, no entanto, se complicou de uns anos para ca, 2 me- dida que as instituigées de saber entre nés foram requerendo autonomia. Exigiu-se a contrapartida brasileira no comércio das viagens. Desde entio o que era antes apenas “cooperagio” (a famosa coopération technique dos franceses) passou a ser convénio, Ou seja; as coisas se devem dar sob a forma de intercambio porque o Novo Mundo também tem algo a oferecer. Dificilmente se pode comparar a funcio de uma missio cul- tural européia ao recente fendmeno dos brazilianists norte-ame- ricanos, Estes nfo tiveram um papel propriamente docente jun- to as nossas instituigdes de ensino € pesquisa (se me permitissem um trocadilho, diria que tiveram uma funcdo junto a um pais “doente”). Os brasilianistas se afirmaram pelo gosto da pesquisa tendo como objeto fontes primarias. ‘Tinham interesse em le- vantar um material que Gulgavam eles) no estava sendo conhe- cido de maneira propria, rigorosa ¢ cientifica pelos natives. Esse material seria, para ficar com um linguajar préximo da Guerra Fria ¢ da Revolugdo Cubana, as “novas riquezas” que o pais tinha a oferecer aos novos cangnistadores: a sua histéria politi- ca, social, econdmica ¢ cultural, Os Estados Unidos, como nario lider do primeiro mundo, n3o podiam se dar ao luxo de desco- nhecer o que se passava south of the border. Dissemos atras “novas riquezas” porque foram ainda os europeus que vieram conherer de perto as nossas “velhas rique- zas”. Refiro-me, é claro, 4s constantes viagens de naturalistas 232 NAS MALHAS DA LETRA (mineralogistas, boténices, bidlogos etc.) que vinham ao Novo Mundo para que este se tomasse conhecido aos olhos da ciéncia da época. Lembro-me de um conto de J. J. Veiga, “A usina atras do morro”, onde maliciosamente, a instalagio de uma grande fibrica por estrangeiros na zona rural brasileira nio deve estar desligada da prévia passagem pelo lugarejo de um naturalista europeu. No mundo contemporineo ¢ altamente computadorizado, essas prospecedes de tipo natural nio precisam mais ser feitas in loco, Pelo contrario. Os modemos argonautas (também bra- silianistas, nio nos esquecamos ¢ advittames os nossos melhores estudiosos do assunto} prescindiram das Aguas revoltas do mar e, do céu, com eficientes potentes maquinas aéreas ¢ delicados ¢ sensiveis filmes, conseguem um mapeamento superior ao feito pelo antigo explorador em terta firme, e mais sofisticado. Jacques Derrida na certa daria pulos de contentamento ao des- cobrir que se conhece melhor o real pela representacio dele do que pela exploragdo empirica. Estamos vendo que, para responder 4 pergunta no plano cultural e nos tempos contemporineos, a resposta se falseia 3 medida que 0s comentirios so feitos, isso porque nio hi di- vida de que entrou uma outra mosca no mel: por que © para que viaja o norte-americano? Mesmo deixando de lado este tltimo protagonista da hist6- ria e restringindo-nos uma vez mais a0 primeiro, devemos cons- tatar que o conhecimento do Novo Mundo nfo se esgota na ati- vidade de compilagio de dados ou especulativa, ¢ menos ainda na tarefa de interpretagio. Pelo contririo, se existe conhecimen- to que acaba por virar agio foi sempre o conhecimento que se fez, ontem, da “natureza” americana e 0 conhecimento que se faz, hoje, da “histéria” dos paises subdesenvolvidos. Nao se pense, € claro, que estamos raciocinando em termos mani- queistas (herdis ¢ bandidos do Novo Mundo; libertadores ¢ espides}; estamos querendo apenas acentuar que um conheci- mento feito de maneira académica e desinteressada — ¢ isso acontece freqientemente — acaba por cair na armadilha do colonialisme ou do neocolonialismo. O direcionamento pratico Por que € pare que viaja 0 europe dado a um saber raramente & operacionalizado pelo seu préprio descobridor. Se antes havia a instrutiva distingdo entre navegador e co- lonizador (com o esctavo de permeio), agora deve-se estabele- cer a distingao entre 0 pesquisador ¢ o industrial. Existe uma éti- ca do conhecimento que inspira os melhores pesquisadores, ¢ esta ética proibe exatamente que o material levantado seja uti- lizado com vistas 4 dominagio social e econémica, Mas feliz e infelizmente 0 saber — depois de formulado ¢ divulgado — existe indiscriminadamente para todos. Nada impede, portan- to, que cabecas menos escruipulosas dele se apossem com fins de exploragio ou destruicio do homem, Parece ter sido este o dilema que levou o cientista Nobel da invengae 20 mecenato. Um apagando o desgaste da outra, ainda que a incentivando. De todos os prémios s6 salva o da Paz, mas como anda este desgastado. © ANTROPOLOGO Dentro da ampla discussio Ievantada, um dos mais belos ¢ instrutivos livros que responde 4 pergunta inicial @ Tristes aé- pices, de Lévi-Strauss. O antropdlogo seria a consciéncia infeliz do viajante e do colonizador europeus. Duplamente infetiz. Pri- meiro, porque € ele que descobre ¢ presta contas ao Ocidente da destruicio. do Outro operada em nome da conquista etno- céntrica a que ele di continuidade. Segundo, porque é ele que pode dar voz a um saber “j4 morto” (0 dos povos destruidos), © este saber — em nitida oposigao ao seu — é de pouca utilidade para o pais que o gerou ¢ que se quer moderne. Na missio cultural de que filévamos, 0 antropétogo é 0 antipoda do pro- fessor, ponhames, de fisica nuclear. © antropélogo, ainda segundo Lévi-Strauss, encama a pré- pria contiadicio bisica entre © Velho ¢ 0 Novo: muitas vezes na sua terra cle € um homem tomado pelas novas idéias ¢ pela 24 NAS MALHAS DA LETRA ago revolucionaria; ao pisar na terra do Outro, coma-se con- servador, jé que tenta com os seus reduzidos meios preservar uma civilizagio que j& nfo € mais, tenta fazer com que os olhos do pais que se moderniza pelo neocolonialismo se voltem para 0s resquicios da sua identidade que se foi perdendo com a oci- dentalizagao. Contempotineo do antropélogo mas caminhando em di- regio oposta € © espirito que permeta as viagens de um Antonin Artaud, Cansado da esclerose galopante que invadia o palco burgués europeu, Artaud sai 2 cata de expressdes “teatrais” em que os fundamentos da experiéncia cénica nao tivessem ainda sido abafados pelo processo de comercializacio e profis- sionalizacio dos cempos modernos. E nesse sentido que, tal um novo Montaigne, faz volta contra 0 moribundo teatro europeu (¢ a seu favor como forga de rejuvenescimento) aguele sopro de sagrado e de violéncia, de mito ¢ rito, que se foi esvaindo do palco ocidental pelo bom comportamento cénico, finica ¢ imperiosa exigéncia do teatro de tipo naturalista ¢ burgués. O TURISTA Tragado o amplo panorama genealdgico, descobrimos que “Viagem pela hiperrealidade”, de Umberto Eco, € instrutive desconsolador. O europe se fantasia agora de turista pelo Novo Mundo e, irmanado aos seus parceiros de todo 0 mundo, apreen- de com obhos ¢ palavras o Sbvio de que se alimentam os turis- tas internos ¢ externos nos Estados Unidos. Sua tinica diferenga: seu olhar se pretende superior ¢ ctitico. Superior certamente 0 é e sempre, pois o proprio texto explora o lugar original da fala legitima sobre 0 Novo Mundo — a Europa. Critico talvez possa ser. Original é que nic & como veremos. © dbvio a que estamos nos referindo fica sendo aquile que de “cultura” alimenta nos Estados Unidos a indistria do Por que € pera que viaia 9 exropen? 238 turismo: da Disneylindia aos museus de cera, dos castelos-mu- sens a0s zvoldgicos. des réplicas de Super-Homem. aos holo- gramas, A indtstria do turismo ¢ 0 sucedineo burocratizado, a negacio do antigo espirito de aventura, j4 que coloca pelos cotredores de navios ¢ avides tropas de civis marchando em busca do lazer cultural Umberto Eco nio escapa — como qualquer outro turista — As contingéncias da agéncia de viagens e da viagem organiza da. Como que jé tendo lido todas as instrutivas brochuras dos mil-encantos de pais 2 ser visitado, parte com itinerétio exclu- sivista e preestabelecido, recalcando todos os elementos outros do pais que podiam de certa forma desvirtuar a sua conscienciosa missio cultural. Diz ele: “O tema de nossa viagem [...] ¢ 0 Falso Absoluto; ¢ por isso s6 mos interessam as cidades absolu- tamente falsas.” Ou seja: ele vai encontrar nos Estados Unidos © que jf sabe de antemio e que as brochuras do turismo jé di- zem com minitcia. Talvez faga a viagem apenas para descrever com maior “realismo” (vulgarmente nio se acredita que 0 re- lato do que foi presenciado é mais real?) o absolutamente falso, Viagem ¢ viajante sido, portanto, perfeitamente dispensa- veis. Muito cbrigado e cae — se tivéssemos a petulincia euro- péia. Nio cio dispensaveis, se pensarmos na longa genealogia que levantamos. A condicio de viajante (de visjante sabichdo, J que sabe mais do que os nativos) é indispensivel a0 europeu que quer impor um significado ao scu Outro no proprio campo, do Outro. Os intelectuais norte-americanos ndo enxergam o que sé cu enxergo. O que eu estou enxergando, afirma Eco, é “esnobado pelo visitante curopeu e até pelo proprio intelectual norte-americano”. Montaigne, como vimos, nio precisou viajar para aprender com o Outro os falseios da sua propria cultura Ele ¢ Alexis de Tocqueville, no século XIX, sio as grandes ex- cegées que confirmam a regra dos viajantes auto-suficientes. Umberto Eco se quer original com relagdo aos seus contem- porineos © aos seus pares. Para isso toma (acredita ele) uma berspectiva que ¢ diferente da que usualmente tomam cs eu- ropeus © 0s norte-americanos europeizados. Estes 36 pensam os Estados {Jnidos como a “patria dos arranha-céus de vidro ¢ 236 NAS MALHAS DA LETRA aco, © do expressionisino abstraro” (de que @ exemple Jackson Pollock). Eco néo deixa por menos: se quer mais americano do que 0 americano, uma espécie de americano da gema, j que descobriu (seria este © verbo?) 0 gosto pela copia mais teai do que 0 real ¢ que funda o estilo hiperrealista da producio dos norte-umericanos europeizados (e também ¢ obviamente dos curopeus que mais e mais se norte-americanizam — mas isso Eco nfo quer veri. ECO DO FALSO Diz Eco: “Trata-se porém de saber de que fundo de sen- sibilidade popular ¢ de habilidade artes os hiperrealistas atuais tiram a sua inspiracdo € por que eles sentem a necessidade de brincar até a exasperacio com essa tendéncia.” A busca de Eco seria, pois, uma espécie de arqueologia (no sentido que Nietzsche e Foucault the emprestam) da produgio elitista norte-americana, busca de wm “funde” popular gue ela propria desconhece. Se é que desconhece. Ora, tanto conhece que © mais instigante da sua produgio se funda no que Eco pretende “descobrir” antes dos seus contemporineos ¢ pares. A impressio que se tem é que o conhecimento propriamente artistico (aquele que ¢ © funda a obra de arte) nio existe para Feo. Ou seja: a obra de arte ndo conhece, nao sabe. A obra de arte nfo tem um valor autGnomo para Eco. Nesse sentido, ela @ sempre insuficiente aos olhos do espectador. Precisa necessaria- mente de um método que possa enxergar o proprio saber, sa- ber este que, por essas razées, se toma absolutamente secundaria (sem o ser, na verdade), $6 conhece aquele que interpreta ¢, de posse de um méto- do cientifies (no caso a arqueologia de inspiragio foucaultiana ea semiética de inspiragio peirceana), ou ceja, s6 intelectnais de visio blindada como Umberto Eco podem verdadeiramente “conhecer Por nue ¢ part que vivie 0 eatopen? My Ora, a obra de arte norte-americana é 0 que é, tem o va- lor que tem, porque ela interpreta esse “fundo de sensibilidade popular ¢ de habilidade artes”. Caso contrario, nao seria dos Esados Unidos que vitiam os diversos movimentos de pintura pop. A afirmativa precedente ¢ tio dbvia para os que se inte- ressam o minimo pelas relagdes entre arte € sociedade nos Es- tados Unidos que se fica perplexo diante da ligeireza arqueolé- gica semidtica de Eco. Mais interessante seria que Eco per- guntasse por que © artista curopen contemporineo — 20 que se sabe desprovido enquanto arqueologia do “finde” popular a que se refere Eco — faz também arte hiperrealista. Seria a arte européia 0 eco do absolucamente falso? Mas para isso Eco teria de ter a verdadeira curiosidade in- teiectual de Montaigne, Tocqueville, Artaud, ¢, em lugar de fazer viagem turistica sé pelo Sbvio americano, peregrinasse também pela sua propria Europa com outra visio de mundo, talver menos auto-suficiente, certamente menos ingénua e pos- sivelmente menos autoritiria, Necessariamente original e, por isso, perfcitamente indispensdvel. Os intelectuais do Novo Mundo (uoblesse oblige!) sempre tiveram a coragem de enxergar o que existe de europeu neles. Mencken dizia que a cultura norte-americana era um ventozi- nho fri0 que soprava da Europa. Oswald de Andrade nio ceve outra intengio ao manifestar a sua teoria antropéfaga. Henry James ¢ T. S. Eliot (e mesmo o nosso Murilo Mendes) resol veram assumir na totalidade a parte de europeu que lhes toca- va e sé mandaram para a Europa. Nio deve haver espiritos mais universalistas ¢ menos “provincianos” do que estes trés. Nesse sentido, a leitura do brilhante artigo “Manners, Morals, and the Novel”, de Lionel Trilling, seria muito instrutiva. ‘Jé nic estariamos comegando a responder a uma outra per gunta? Por que e para que viaja o habitante do Novo Mundo? 238 NAS MALHAS DA LETRA FORCA E SIGNIFICACAO O grande equivoco de Umberto Eco foi o de ter acreditada que poderia, 20 mesmo tempo, acender uma vela para a herme- néutica (ou a arqueologia) ¢ uma outra para a semiologia, Michel Foucault, desde 1967, num belo trabalho que tirava implicagSes das obras de Freud, Nietzsche ¢ Marx para a constituigio de uma heemenéutica nossa contemporanea, chegava 20 final 4 seguinte conclusio: “Parece-me que € mais do que necessitio compreender esta coisa que a maioria dos contemporineos es- quece, que a hennentutica ea semiologia sio dias inimigas ferozes” {o grifo é de Foucault). O raciocinio bisico de Foucault repousa no fato de que uma e outra tém, respectivamente, compreensées irreconcilidveis so- bre 0 estatuto do signo. A semiclogia acredita que o signo exis- te ptimeiramente, originalmente, que existe como marca coe- rente, pertinente e sistematica. E nesse sentido que a semiologia permite a Eco estabelecer um “finda” (onigindrio, primeito, real) que serve para “explicar” o hiperrealismo como expressio da cultura notte-americana de hoje. Ele esta sendo, quando mui- to, semiologicamente correto. Para a hermenéutica (ou para a arquealogia) este “fundo’ no existe como algo de originirio, como algo de primeiro, nio existe nem como “finde”, se se pensar que “fando” € origem e fim de alguma coisa. Para a hermenéutica foucaultiana nada existe de primeiro, de originario, j4 que o préprio signo (ito otiginirio pela semidtica) ja & interpretagdo. Sera preciso voltar 4 metéfora do descascar a cebola para explicar concreta © dida- ticamente 0 movimento hermenéutico? Continuemos. Isso que Umberto Eco chama de “fundo” nada mais € do que uma fora (no sentido nietzschiano) entre tantas outras forgas cue constituem o complexo tecido cultural norte-ameri- cano. Como tal, esse “fundo” uma interpretacio entre varias outras disso que passou a se chamar “América”. Sem dtivida a inteepretagio mais européia de todas, como tentaremos provar. O significado imposto pelo europen a América deriva da forca Por que © para que viaje o enropen? 29 da violencia da conguista. Em virtude desta, a cOpia (americana) como mais real do que o real (europeu) passa a ser o desejo supremo do habitante do Novo Mundo no seu desejo de au- tonomia. A copia {americana} sé pode ser “real” no momento em que suplantar 0 modelo (europeu). Ou seja: a cépia € mais real do que o real no momento em que puder comecar a “in- fluenciar” o modelo. © hiperrealismo portanto é um desejo. O hiperreatismo é © desejo da América que se desrecalca da condico de cépia eu- ropéia. E, em termos de arte, é 0 redirecionamento da arte que ja nio se manifestaria pela simples repeticio do modelo. A cé- pia vai se impondo pouco a pouco como real: the real thing, se gundo a publicidade da coca-cola analisada por Eco. A América & esse exvesso que marca a sua presenca. Como excesso, & su- plementar, O suplemento jé ¢ mais significative do que 0 todo {a Europa) de que ele ¢ suplemento. Hipétese. A arqueologia da América nos reconduz 4 violéncia da conquista (¢ ndo apenas ao signo que a representa como cépia), 4 violéncia que impés ao Outro a sua condi¢io inexorivel de cépia. Fundo sem fundo de uma “identidade” que se constitui 3 medida que vamos entrando na vertigem do pago do passa do © retitando do signo (da significagio européia que foi dada 3 América) a sua condiczo de originario € retendo apenas a com- preensio de uma forca que é violéncia e que necessariamen- te requer outras forcas como afirmacio do seu proprio devir Neste choque diferencial de forcas (¢ niio apenas no sintoma dessas forgas que se conctetiza sob a forma de signo) ¢ que se pode desvelar a identidade de uma América: cépia infeliz ¢ res- sentida ontem; copia alegre © afirmativa hoje. Sempre € inexo- ravelmente cépia Como me alertou Jacques do Prado Brandio, vie Thomas Mann: “E muito fundo 0 poco do passado. Nao deveriamos antes dizer que é sem fundo esse poco?”. {1984} 240 NAS MALHAS DA LETRA Onde a propaganda ¢ onde a arte A presenga da Alemanha no cenirio cultural brasileiro cem sido uma grata surpresa. Lembremos que os Estados Unidos, depois de uma feliz ¢ bem-sucedida politica cultural a favor dos direitos humanos, caracteristica da administragdo Carter, caiu no poco da propaganda anticomunista, cujas graves conse- qiiéncias internas © externas Reagan na certa lamenta hoje, Os resultados a que chegou a Comissio Tower esto ai (¢ estio a disposigao de todos em livro de bolso} ¢ nao mos deixam mentir. ‘J& a Franca, depois de nos cozinhar em banho-maria por mais de trinta anos, acabou por nevtralizar a imagem cultural forte que mantinha no Brasil e, desde a subida do presidente Mitter- rand, anda em busca do tempo perdido com mirabolantes pro- gramas comuns, cujo suceso/fracasso nio se pode ainda deter- minar. Por onde anda o Japio? Nio deixa de ser uma pergunta Ppertinente, embora impertinente para pais tao discreto. Seria ingénuo pensar que essas relagdes culrurais com os pai- ses do Primeiro Mundo, relagdes responsiveis scm davida por uma arrancada cosmopolita na cultura verde-amarela, io mo- tivadas exclusivamente pelas boas intengdes ¢ pelos bons senti- mentos que deveriam estar por detras do didlogo entre paises. Por outro lado, seria por demais perverso examinar esas relacdes sob a Gnica luz dos investimentos econémicos feitos no Brasil pelos diversos paises citados, embora esses investimentos exis- tam como alicerce da questio, O certo é que mais premente {e mais politizado para nés) se foi tornando o problema da di- vids externa brasileira, mais os paises envolvidos se interessaram Onde 4 propaganda ¢ onde « arte 2 {culturalmente) pelo nosso pais, O fenémeno brazilianis: esta ai — © com certa tradicao, tradigio que data do langamento do Sputnik e da Revolugio Cubana — para atestar a verdade da constatagio. A Alemanha, embora cenha chegado secentemente na peda- g0, nao escapa a essa lei geral, Devemos, no entanto, analisar 0 seu caso sem ingenuidade e sem perversidade. Deixemos a in- genuidade para os discursos politicos regados a champanba nos banquetes palacianos. Deixemos ainda a perversidade para os idedlogos maniqueistas. Mas nio sejamos cegos. Por um lado, a Alemanha é 0 nosso segundo pais credor e, por isso mesmo, tem o maior interesse em nos conhecer bem, como também tem o maior interesse em que a conhecamos bem. Por outto lado, é insofismavel o cardter descomprometido da atuacéo cultural alema entre nds, relativamente liberta das pressdes pragmaticas dos grupos no poder, Um bom exemplo é a maneira como o Instituto Goethe, financiado em gtande parte pelo Estado alemio, tem conduzido uma elogiével politica cultural entre nés, talvez por isso mesmo sofrendo criticas severas dos conservadures na mie-pateia. Tal- vez tenha até mesmo conduzido a sua atuagio de maneira inde- pendente dos designios maiores do partido arualmente no poder. Leiam-se, a propésito, as eriticas que tém sido dirigidas a0 mi- nistro dis Relacdes Exteriores do governo alemio pelo governa- dor Franz Josef Strauss, como sabemos um dos politicos mais influentes no novo Eldorado econémico alemio, a Baviera. As criticas comegaram em artigo publicado no némero de marco da Deutschland-Magazin ¢ hoje ja alcancam até jornais de circulagio restrita, como o da cidade de Colénia. Também uma revista de grande circulagéo como Cinema, no seu numero de marco do corrente [1987]. informa aos seus leitores que trés filmes alem:des foram banidos da programacio do Instituto Goethe no estrangeiro. Sao eles: Ende des Regenbogents, Rheingold ¢ Ulitsses. Consultei alguns amigos que viram esses filmes ¢ fui informado de que sio de boa qualidade, Tratamn, é claro, de questdes de- licadas da atualidade germinica (e mundial — por que ndo?): juventude sem futuro, erotismo e cotidiano alternative. Por- M2 NAS MALHAS DA LETRA tanto, as 1a2des para que a tesoura funcionasse podem ser adi- vinhadas pelos habitantes de um pais que teve como slogan, durante alguns anos de ditadura militar, “Ame-o ou deixe-o”. Deve ser dificil para 0s chamados politicos pragmiticos (de Reagan a Stratiss) acreditar que politica cultural de um pais no estrangeiro nao sé confunde com propaganda. No entanto, esses paises do Primeiro Mundo criaram, sem excegio, orgios cuja tinica fungio é a de transmitir informagédes oficiais a quem julgam necessério. £ 0 caso do USIS (United States Information Service), cujo trabalho — enquanto propaganda — ¢ extraor dinirio, chegando ao ponto de publicar uma revista de bom nivel (propagandistico) come Didlogo, distribuida gratuitamente a diversos intelectuais brasileitos, entre os quais este que escreve. E 0 caso ainda do Bundespresseame (Servigo Federal de Impren- sa}, © equivalente do USIS na federacio alema. Nio @ de se estranhar que esses Orgios ¢ similares sejam inica ¢ exclusivamente orientados pelas foreas politicas no po- der, na medida em que o servigo deles est ligado 4 imagem cemporal (insisto no adjetivo) que © respective Estado deseja passar aos diversos paises com quem esté em ligacgio ou em confronto, Uma forca politica de oposicio pode ganhar ou re- ganhar o governo central, ¢ € normal que haja um temancja~ mento aesse tipo de Srgio ¢ que a mensagem a ser difundida no estrangeiro passe a ter um teor ideolégico distinto do até entio divulgado. Afinal, por sorte nossa o9 donos do poder sio sempre passageiros. Em suma, 0 que estd em questio no trabalho desses orgios de informagio (no nego que em alguns casos a qualidade seja boa) é a difusio de uma imagem positiva e otimista dos cami- nhos impostas a0 pais pelos politicos no poder, apenas circuns- tancialmente se admitem ctiticas. Quando estas aparecem parte sempre de uma postura de centro, critica do demais: o pats esta demais para a esquerda, ou esti demais para a direita. Em ou- tras palavras, 0 bom senso é sempre bem aceito pelos drgios de informagio, e & para isso que existem os bodes expiatérios, como 6 0 caso recente do secretario da Casa Branca, Donald Regan (até a quase coincidéncia dos nomes funciona). Onde a propaganda e ondy 9 ante Espera-se desses servicas que tenhai uma fungio basica- mente informativa jumto aos paises estrangeiros. Em geral estio em bom contato com a imprensa burguesa. Em paises como 0 Brasil, onde a imprensa & praticamente domunada pela postura de centro, essas informacées sio sempre bem-vindas e passam a ter um papel consideravel ao lado das matérias enviadas por correspondentes no estrangeira, das entrevistas feitas com proe- minentes figuras pdblicas, dos artigos traduzidos de grandes jomnais estrangeiros, para no mencionar as informagdes de Gl- tima hora que sio dadas pelas diversas agéncias. Cabe, portanto, ao jornal, revista ou tevé requisitar ou utilizar da maneira que mais lhes convém o servico que lhes ¢ oferecido gratuitamente pelo pais estrangeiro. Pode-se dizer, com tangiiilidade, aos politicos pragmiticos, que de maneira geral o brasileiro que se interessa pela Alemanha J se encontra bem-informado com telacio aos seus problemas politicos, as suas questées sociais etc. © circuito da informacio propagandistica — bem pouco passivel de curtos-circuitos, a nio ser em caso de rompimento de relacdes diplométicas —- nada tem a ver com o que se chama de politica cultural de um pais no estrangeire. Ou tem, Mas ai estaremos falando de nagdes (ou de estadistas) com nitida voca~ Gio cotalicdria, que confundem arte e propaganda. A arte nao esti a servi¢a do Estado, embora as vezes possa por ele ser fi- nanciada. Ou esti a servigo. Mas ai estaremos falando de nagdes (ou estadistas) que nio permitem ao artista o minimo de liberda- de para que possa se expressar dignamente sobre questdes que julga dignas do inceresse dos seus leitores ou espectadores. © certo € que esse nao é 0 caso da Alemanha. Ali nio se confundem atualmente arte ¢ propaganda, e, pelo que se sabe, © artista trabalha dentro de uma liberdade nio-utdpica. Reto- memos 0 n0ss0 papo. Para inicio de conversa, nio existe uma politica cultural indiscriminada. Paraftaseando Roberta Campos ao avesso, 0 que é bom culturalmente para os Estados Unidos mio o € ne- cessariamente para o Brasil, ¢ vice-versa. A politica cultural no estrangeito depends, portanto, do grau de liberdade que os aaa NAS MALHAS DA LETRA chamados animadores culturais tiverem para organizar uma programacio Examinemos de perto as circunstincias que cercam um Ins- tituto Goethe no Brasil ¢ a sua politica cultural. Quem se interessa pela produgio cultural alema que o Ins- tituto coloca 4 nossa disposic¢do ¢ (infelizmente) uma pessoa que pertence a um grupo social muito restrito. Pelas razées que todos conhecemos, que vio do analfabetismo generalizado a0 minimo de tempo disponivel pelas classes populares para 0 lazer, que vio ainda do descaso pequeno-burgués pela cultura acs diversos matizes da xenofobia. Esse grupo restrito ja esta bem-informado de maneira geral sobre a Alemanha, dai a razio da sua curiosidade pela cultura daquele pais. Ora, ele ndo quer receber da Alemanha — nos momentos em que seleciona uma produgSo atraente no programa mensal do Instituto — o mesmo que 05 jornais brasileiros (¢ estrangeiros) que !@ ja the dio. Uma entrevista do sr. Strauss, por exemplo, pode bem sair nas pagi- nas amarelas de uma revista (se ainda no saiu), € suas idéias e dos seus seguidores sio divulgadas com freqiiéncia pela imprensa nacional € internacional, talvez até mesmo gracas ao excelente servigo que lhe presta o Bundespresseamt. Seria penoso (para no dizer indtil) para um brasileiro com boa formacio cultural ir a qualquer atividade do Goethe para saber 0 que ja sabe, ou para receber informagdes que beiram a propaganda. Agindo como nio agitam, mas agindo como tudo indica estdo querendo agin, 0s alemics estario buscando entre os brasileiros “cimpli~ ces”. B preciso nfo ter medo da palavra. Os contatos culturais entre paises se fazem a partir de in- teresses mutuos, ou entio trata-se de colonizagio cultural (nfo cabe agora refletir sobre o “segredo”, que € a forma mais so~ fisticada do renascente neocolonialismo cultural nos paises do Primeiro Mundo). £ preciso investigar antes quais so as forcas culturais vivas ¢ auténticas que eclodem no pais onde se quer fazer uma boa atuagao cultural, quais sio os interesses que estio em jogo no cenirio cultural ¢ que merecem ser encora- jados com a apresentacio e discussio de produgdes de um outre pais, tido merecidamente como mais desenvolvido. Onde « propaganda e onde @ ante Vamos a um exemplo. Um dos maiores sucessos do Institute Goethe no Brasil foi a programagio dedicada ao jovem cinema alemio (menor consideragio foi dada, num primeiro tempo, as outras artes). Mais do que normal. E inegavel a importincia mundial do cinema brasileiro desde a década de 60, € inegivel © interesse do jovem, em particular do jovem universitirto brasileiro, pela sétima arte, ¢ inegivel o valor também extracr- dinatio do jovem cinema alemio (Herzog, Wenders, Schroeder, Trotta etc.) a partir da década de 60. Portante, combinou-se ai a fome com a iguaria. Um verdadeiro didlogo cultural péde set estabelecido, em que ambas as partes sairam enriquecidas, isso porque ambos os paises deram a conhecer o que havia de melhor (¢ nio de mais convincente segundo 0s governas) nas respectivas produgées artisticas. Agora, retiram da programacio do Institute Goethe certos filmes julgados perniciosos —- @ 0 que nos informa a revista Cinema, Quem esta sendo prejudicado? Nao deixa de ser uma boa pergunta. Por que se esconde © que, no entanto, existe? Eis outra boa pergunta. Querer dizer que © jovem cinema alemio (nio mais tio jo- vem...) apresentou uma visio deformada da Alemanha no Brasil €, em primeiro lugar, passar atestado de minoridade intelectual aos brasileiros que gostam ¢ apreciam o cinema independence da bandeira que os produz ¢ os distribui (ou seja: uma forma disereta de censura na fonte — imaginem se Je vous saive, Marie {8 tivesse sido proibide pelo presidente Mitterrand de ser exibido ne Brasil). Em segundo lugar, € esquecer que os valores que a arte passa sio universais, embora a partir de uma temitica na~ cional. Qs jovens sem futuro de Berlim passam a sec universais, ¢ na realidade o sio, num bom filme. Em terceiro lugar, é nio- ter 2 ifnima nogio do que seja o teor ideolégico das melhores manifestacdes artisticas no nosso século. E isso nao se apaga com uma bortacha, nem se destréi com uma tesoura, Em quarto. lugar, é o caso de se perguntar quem € que nio passa uma visio deformada da Alemanha. Os partidos politicos que hoje estéo passageiramente no poder? E ai voltamos 4 questio da propa- ganda — nunca a ser confiindida com a boa politica cultural. 246 NAS MALHAS DA LETRA Mas ndo @ sO pela aruagdv do Instituto Goethe que a pre- senga cultural alema no Brasil tem sido uma grata surpresa. No plano proptiamente literdtio, diversos escritores (das mais variadas tendéncias) ém sido coavidados a visitar 0 pais curopen por drgios federais € até mesmo pelas secretarias de cultura de prefeitaras (como € © caso de Hamburgo e de Co- lénia). Alguns nomes ao acaso: Autran Dourado, Anténio Calla~ do, Jorge Amado, Rubem Fonseca, Anténio Torres, Ignacio de Loyola, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Schar... Loyola passou um ano em Berlim como convidado, ¢ da sua experiéncia por li brotou um livro de inegivel sucesso. O Prémio Goethe 38 foi concedido por duas vezes, ¢ no ano pattado foi concedido um Prémio Mercedez—Benz. Um grupo de vinte professores universitarios, incentivados pelo professor Helmut Feldmann, est{ preparando um livro de ensaios sobre a literanra brasileira pés-f4. © livro sairi em alemio ¢, possivelmente, em tradugio para o portugues. Diversas tradugdes de autores alemies sio patrocinadas pela InterNationes ¢ publicadas de bom grado por editoras brasiicizas, retirando a literatura alema do lugar-comum Goethe, Mann e Hesse. Pegas de teatro que aparentemente mio teriam sucesso acabam por ter boa bilheteria, como é o caso de Légn- mas amargas, Grande e pequeno @ Quarieto. Madesto Carone se dedica a uma tradugdo de Kafka para ninguém botar defeito, & um grupo catioca revé as traducdes de Brecht com vistas 3 edic3o das obras completas. Também no plano universitirio divetsos convénios sio ati- vados com a freqiiéncia necesséria. Lembra os convénios que o DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) mancém com a CAPES e o CNPq, com consultas regulares a ambas as partes inceressadas, seguidas de julgamento dos processes por universitarios especializados na disciplina, Lembro ainda os diversos “leitores” de alemio ou de literatura alem4 que sio enviados as diversas universidades brasileiras, E claro que nem tudo sie flores no didlogo cultural entre o Brasil ¢ a Alemanha. E preciso urgente que os paises se de- diquem a um acordo quanto av reconhecimento de titulos uni- Dnde a propagenda ¢ onde a arte cr versitaries. Alguns bolsistas brasileiros se queixam da mio pesada prussiana no trato das questies do cotidiano. Ha uma ¢endén~ Gia a encorajar um lado exético ¢ tropical da arte brasileira, em detrimento das produgdes de carater uzbano ou cosmopolita. As editoras alems ainda contam com um numero reduzido de leitores para julgar as obras brasileiras, Existem bons eraduto- tes em ambos 05 paises, mas sio poucos. E no mais é pét a boca no trombone quando for 0 caso. [1987] NAS MALHAS DA LETRA Para além da histéria social Para 0 Wander, em agradecimento. A histiria mundial ndo surge na histiria come 0 resultado da histérie mundial Karl Marx, Uma coambuigo 2 anitica da economia politica Durante algumas décadas as pesquisas sobre metodologia de leitura da poesia e da prosa trilharam o mesmo caminho e nao se diferenciaram tanto na definigéo das suas direcSes. Trata— varse sempre e nos melhores casos de estudar as celagdes entre © texto artistico ¢ 0 processo social que lhe da origem, com o intuito de tornar inteligivel este pela andlise formal daquele. A estraturac3o formal do texto (depreendtda da sua anilise) pode e chega a evidenciar a organizacio social, ao descobrir que a sucessio dos acontecimentos ficticios obedece a um principio de composi¢éo que aclara 0 processo do desenvolvimento pro- priamente historico da sociedade. Nesse sentido, as obras artis- ticas eram compreendidas por um leitor, no s6 preparado para a anélise segundo as reflexdes contemporineas sobre a mor- fologia do texto (literirio ov nao), como ainda aberto para a compreensio do desenvolvimento social da humanidade. Os estudos literarios passaram a fazer parte das ciéncias ditas sociais na medida em que foreciam subsidios em nada despre- ziveis para melhor entendimento da historia social, visto que o proprio objeto de estudo, a literatura, representava mimetica- mente a estrutura da sociedade, fornecendo uma compreensio Pare além da historia social 251 {ainda que nio fosse produto do conhecimento racional) da sua organizacio social ¢ apontando, com essa compreensio, um sentido para a direcdo do seu desenvolvimento. Tanto é vito- rioso esse género de abordagem do literério que metodologias de leitura que tentavam desarmar, de um lado ou de outro, 2 articulagdo bisica a que estamos nos referindo eram inevitavel- mente obrigadas a admitir uma dissengio interna entre os pes- quisadores, sendo que o grupo dissidente acabava por articular — sobre os destrogos do puro formalismo ou, inversamente, do historicismo mecinico —— a estruturagio formal da obra e 0 proceso histérico da sociedade. Pode-se e deve-se dizer que essa proposta metodolégica corresponde a uma definigdo altamente positiva da obra de arte como sendo realista. Realismo, aqui, tomado primeiro no seu sentido restrito, ou seja, tal qual codificado pelas propostas es- téticas do século XIX em particular, e em seguida no sentido amplo, isto é, a forma pela qual esta conceps4o, vitoriosa pelo século XX adentro, foi-se espraiando, gragas aos trabalhos dos pesquisadores, por toda a historia da literatura ocidental, consti« tuindo portanto um padrdo de leitura emocénerico da compo- sigdo literdria, Padrio este que era operacionalizado segundo 0 momento histérico em que se inscrevia a obra ¢ a posigio que aquele momento tinha no devir da sociedade ocidental. Esta postura tem sido basicamente a de Georg Lukacs, que repeti« das vezes afirmou que o realismo nio era apenas um estilo, mas a base de toda a literatura. J& Erich Auerbach, mais preca- vido pelas trincheiras da estilistica, fez 2 distingo classica en- tre o “realismo” do fim da Antigitidade ¢ da Idade Média (“1 gura”, segundo ele} ¢ 0 tealismo modemo. Os estudiosos interessados em acompanhar o movimento da produgio critica mais recente, que tem como objeto o texto de poesia ¢ da prosa modernas, descobririo ndo sem espanto que nos tltimos anos comega a haver uma divergéncia na in~ terpretacio dos dois géneros. Se os estudos j4 nao apontam para a mesma dire¢io também j4 nJo wilham o mesmo cami- nho. Enquanto as interpretacdes da prosa dio uma expressiva € imaginosa continuidade 4 leitura estética que desvela a orga~ 232 NAS MALHAS DA LETRA nizagio social, as interpretagdes da poesia desconstroem o que se pode chamar de tradigio realista. Acreditamos que — de forma ainda misteriosa —- 0 deslocamento no terreno da pes- quisa poderia acompanhar uma teorganizagio mais ampla nos estudos sociais, devido 4 intromissio, na disciplina da histéria, do novo campo de estudos que é a histéria das mentalidades. De maneira menos misteriosa neste ensaio, tentaremos pro- var come na discérdia entre os estudos sobre prosa ¢ sobre poe- sia abre-se um campo de trabalho que tanto 0 criador, investido na qualidade de tedrico, quanto Karl Marx, de modo encora- jador, dizem ser de fundamental importincia para o conheci- mento da dimensio universal do produto artistico. E necessirio tentar compreender 0 “encanto eterno” que as obras-primas do homem exercem sobre os homens, sem obrigatoriamente cair num raciocinio metafisico. Passaremos a demonstrar, em seguida, com a ajuda de Jan Mukarovsky, como 0 conceito de universal, desbancado pelas histérias das artes em favor de um relativismo axiolégico, reclama o seu reingressa metodolégico nos estudos hterérios. Para além da histéria social. ‘Tomemos alguns exemplos concretos para mostrar a diver- géncia na diregio acima assinalada. Para a prosa, fiquemos com a prata da casa: um estudioso da obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz. Para a poesia, um hispano-americano, Oc- tavio Paz, exegeta da modernidade. ‘Talvez a melhor forma de abordar a obra de Roberto Schwarz seja rastreando-a nos trabalhos mais significativos dos seus mestres na Universidade de Sao Paulo. Como em outros cole~ gas das ciéncias sociais, percebe-se nele a divida para com a leitura da formagao do Brasil contemporaneo, feita por Caio Prado Jr.; como em outros colegas das ciéncias literdrias, perce- be-se nele 0 interesse em inscrever o seu trabalho onde Antonio Candido deixou em aberto a sua formagao da literatura brasi- Jeira, Gracas aos dois mestres, Roberto Schwarz arquitetou um campo de estudos préprio e original, multifacetado, em que vai explorar dicas dadas ¢ brechas deixadas tanto por uma quanto pela outra “formacio”. Em Caio Prado, Roberto nfo hesits em privilegiar o histo- Pare além da historia social 253 riador que primeiro conseguiu identificar na vida social brasi- Jeira um segmento que, por escapar aos polos opostos ¢ con~ flitantes da ordem escravocrata dominante, tinha sido negligen- ciado pelos nossos melhores intérpretes: © homem livre. Diz Caio Prado: Abre-se assim um vacuo imenso entre os extremos da ¢s- cala social: os senhores e 05 escravos: a pequena minoria dos primeisos e a multidio dos ditimos. Aqueles dois grupos sto os dos bem classificados da hierarquia ¢ na estrutura social da colénia; os primeiros sero os dirigentes da coloni- zagio nos seus varios setores; 0s outros, a massa trabalha- dora. Entre estas duas categorias nitidamente definidas ¢ entrosadas na obra da colonizagio comprime-se 0 namero, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inateis ¢ imadaptades, individuos de ocupagdo mais ou me~ nos incerta ¢ aleatéria ou sem ocupa¢ao alguma. Roberto privilegia. Nao a vida senhorial, que tanto entusias- mava ¢ entusiasma nossos historiadores mais conservadores; nio o trabalho escravo, que era a preocupagio maior da segunda geracio de sociélogos da USP. como Fernando Henrique Car- doso e Octivio lanni. Simplesmente privilegia o homem livre na ordem escravocrata, para retomar o ticulo da obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco a que seus textos sempre remetem. Nao sem coincidéncia, é nesse espaco “desclassificado” da nossa vida sociopolitica e¢ econémica no século XIX, é nesse “vacuo imenso” que os nossos melhores romancistas do século passado vio ctiar a infinita variedade dos “agregados”, persona gens que sio a espinha dorsal da sua ficcio, escapando os roman- ces muitas vezes — como € 0 caso paradigmatico das Memérias de um sargento de milicias — da dramatizagio do tedo social. Como J observou Candido, as Memérias 0 “um documentirio res- trito, pois que ignora as camadas dirigentes, de um lado, as ca- madas basicas, de outro”. B por ai que o ctitico anuncia a malan- dragem como o modo de ser desse grupo social ¢ a dialética da ordem e da desordem camo o principio estraturador do texto. 254 NAS MALHAS DA LETRA ‘A nossa melhor prosa do século XIX ~ dentro dessa leitura — nasce consciente ou inconscientemente com o sentido da revolugio burguesa no Brasil, como quer Florestan Fernandes, ou seja, traduzindo as aspiragdes idealistas dos nossos primeiros pensadores liberais, Tanto o trabalho livre quanto as idéias li- berais européias sio ocupagdo de desclassificades, Vale dizer: de intelectuais, no sentido amplo da palavia. Através dos desclassi~ ficados da ficgio, Roberto chega aos inesperados protagonistas da historia oitocentista, aqueles que falariam da desorganizagio do uabalbo livre até hoje entre nds, indicando a razio pela qual ainda ndo completamos a evolucio da economia colonial pata a nacional. Esses desclassificados se juntam aos dois outros grupas de subordinados: subordinados 4 economia estrangeira, 9s senhores, € a estes, os escravos, perfazendo todos o todo da nossa precitia organizagio socioeconémica no século passado. Detectamos em Caio Prado — acreditamos — a génese da tearia das idéias fora do lugar, que introduz ¢ se operacionaliza na leitura da obra de Machado de Assis. Insticucionalizou-se dessa forma a possibilidade de se fazer a “sondagem do mundo contemporineo através de nossa literatura”, desde que se tenha © cnidado — como alesta Schwarz nos “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem”” — de nio se operat, gracas i malandragem, “a cransformagde de uin modo de ser de classe em modo de ser nacional”, pois af iria se cait na “ope- rago de base da ideologis”. No “Preficto da 1? edigio” da Formagdo, Candido dava como uma “fatha” do livre a “exclusio de Machado de Assis comintico no estudo da ficcio”, justificando-a por nio querer “seccionar uma obra cuja unidade é cada vez mais patente aos estudiosos”, Prometia sanar esta ¢ outras lacunas numa segunda edicio. Nao hé divida de que Machado de Assis, lacuna aqui, eo trabalho livre, surpreendido ali, se acasalaram na proposta de desconstrugaa do liberalismo pitrio em Ao vencedor as batatas. Através da obra do romancista, salientava-se win mecanismo cstruturador das telagdes saciais no Brasil escravista que se queria liberal — 0 favor, “nossa mediagdo quase universal”. Observa Schwarz: “o escravismo desmente as idéias liberais; Para além da kistine socket 255 mais insidiosamente o favor, to incompativel com elas quanto © primeiro, as absorve ¢ desloca, originando um padrao parti- cular”. A ideologia de segundo grau, A publicagio em 1970 de “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, acabou por servir a dois valetes: primeiro, ajuda © proprio Candido a explicitar o seu escorregadio método de leitura; segundo, leva Schwarz a marcar, em ensaio-homena- gem, o alcance da licio do mestre e a ressonincia critica dela no discipulo. A dialética da ordem ¢ da desordem — ievantada por Candido a partir da leitura das Memérias de um sargento de nilicias — € “um principio valide de generalizagio” que orga~ niza tanto os fatos particulares da sociedade joznina quanto os fatos particulares da sociedade descrita nas Memérias. Ao orga~ niza-los, @ principio é a “dimensio comum" que da intehgibi- lidade tanto ao real quanto ao ficticio. Esclarecia Candido em outro lugar: “me convengo cada vez mais de que so através do estudo formal é possivel aprender convenientemente os aspectos sociais”. A brijhante leitura que do ensaio de Candido faz Schwarz teve como fim primordial 0 resgate do texto critico para o ided- rio marxista, ainda que nele se evidenciasse uma abordagem culeuralista. Q importante, concluia o discipulo, é que “pela primeira vez a dialética de forma literiria ¢ processo social deixava de ser uma palavra va". E idéntica a ligao que se de- preende do estudo fundamental e de outros estudos de Schwarz. ‘Aqui concluimos 0 que precisava ser demonstrado: que os mais instigantes leitores da prosa — Roberto Schwarz entre outros, € mais recentemente John Gledson -~ absorvem o sentido da representacdo literaria como real, sendo aquela um objeto pri- vilegiado para que se esclarecam as relacdes sociais no Brasil. 2. Desde a abertura do seu fivro Los hrijos det lune, Octavio Paz no esconde o seu ardor polémico, ardor este que procura- 256 NAS MALHAS DA LETRA remos tomar instigante para uma critica ao realismo da proposta metodolégica apresentada até agora. Afirma que o poema & produto de uma histéria ¢ de uma sociedade, “pero su manera de ser historico es contradictoria”. E acrescenta: “la discordia entre sociedade y poesia se ha convertido, desde el romanti- cismo, en el tema central, muchas veces secreto, de nuestra poesia”. Essa discordia — compreendida de maneira inaugural no ensaio através des poctas rominticos — principia por uma adesic entusiasta do poeta aos movimentos revolucionarios da modernidade, da Revolugio Francesa 4 Russa, ¢ é seguida por um rompimento brusco, A poesia moderna, contraditoriamente, é escrita contra a modetnidade: contra o iluminismo, a razio critica, o liberalismo, © positivismo © 0 marxismo. Mas é também uma escrita criti- camente apaixonada (os termos sio do proprio Paz, sendo que paixdo substitui significativamente razdo na expressio clissica: razio critica). Tomado pelo amor passional, o pocta é capaz de se deixar envolver pelo seu objeto ¢ dele distanciar-se num sé movimento. E pela paixdo critica que Paz consegue harmonizar 0 mo- derno que é contra a modemidade, Mais dificil @ 0 processo seguinte — 0 de harmonizar 0 contraditério da postura poéti- ca com as exigéncias da tradi¢io da ruptura. Ou seja, ele deve buscar uma maneira de resolver o impasse entre o descontinuo (raprura) € 0 continuo (cradigio). Essa tarefa 6 resolvide ndo pelo recurso 4 nogdo de um etemo presente, 0 que rechagaria a riqueza temporal tridimensional da reflexdo poética, mas pela conceituacio de um agera, gordo ¢ gravido do passado € do futuro, marméreo ¢ imperturbavel na sua atemporalidade. O agora é 0 cee da mudanga e também do eterno, e como tal recobre tanto a aceleragao da tempo moderno, suas mudan- ¢as e convulsdes, quanto a pouca profundidade do movimento transformador. Fincada no agora, a poesia moderns ¢ ao mesmo tempo presente, tradicional e utépica. Melhor elogio da sua atemporalidade revolucionaria ¢ impossivel. Tomado pelo amor apaixonado (talvez o tiltimo avatar do amour fou sutrealista), 0 poeta num sé ¢ anico movimento se Para aiém de histéria social 257 deixa envolver ¢ se distancia dos objetas que 0 atraem, ¢ & dessa forma que classifica e desclassifica 0 tempo histérico, ao mes- mo tempo em que o harmoniza a descontinuidade continua da tradi¢io da rupeura. Dhferente do presente critico-revolucionario, mas dele tra- zendo inspirages passageitas, diferente da razio critica, mas dela guardando o essencial pelo deslize para a paixio, o agora poético foi subtraido do solo histérico que Ihe era tradicional- mente dado pela metodologia realista de leitura da poesia, como ainda da forca (ta7a0 critica) que reorganizava a leitura do dis- curso poético. Nesse sentido, Paz é levado a redefinir tanto o selo “histérico” onde se firma o poema modemo quanto a outra force que cimenta © discurso poétice. Por essa dupla redefiniydo ele chega ao especifico do poema moderno. A primeira redefinicio é feita via romanticos alemaes. A postura deles no fundo é duplamente ambigua: ambigua com relag3o ao pensamento revolucionério moderno, como vimos, ¢ ambigua com zelacio i religiio, ao cristianismo em particular. Afirma Paz, unindo as duas pontas do novelo: “La poesia ro- mintica es revolucionaria no co, sino jrente a las revoluciones del siglo; y su religiosidad es una transgresién de las religiones.” Assim como existe por detris do agora uma busca da verdade acemporal, por detras da transgressio das religides hi também uma busca da verdade, no caso a transcendental. Conclui Paz: “Para ellos [os poetas] la palabra poética es fundacién, En esta afirmacién temeraria esta la ratz de la heterodoxia de Ja poesia modema tanto frente a las religiones como ante las ideclogias.” Passemos A segunda redefini¢fo. Na sta disputa com 0 ra- cionalismo modemo, os poetas redescobrem uma outra maneira de organizar © discurso poético: a analogia. Define-se Paz: vi- sio do universo como um sistema de correspondéncia ¢ visio da finguagem como um duplo do universe. Define-a com mais propriedade Michel Foucault (por que o seu nome esti ausente do livro de Paz?) Jusqu’a la fin du XVI siécle, la resemblance a joué un dle batiseur dans le savoir de la culture occidentale. C'est 258 WAS MALHAS DA LETRA elle qui a conduic pour une grande part Vexégése et Vinterprétation des textes; c’est elle qui a organisé Ie jeu des symboles, permis la connaissance des choses visibles et Invisibles, guidé Vart de les représenter, Le monde s‘enroulaic sur lui-méme: la terre répétant Je ciel, les visages mirant dans les étoiles, et Pherbe enveloppant dans ses tiges les secrets qui servaient 3 "homme.! © poeta moderno simplesmente di voz a uma prosa que ja existe na fala das coisas, constituindo um campo de saber epi- dérmico, profundo e autoritério, saber este que, abolindo sujeito ¢ objeto, ou melhor, propondo como superiormente hierérguica a escrita humana, nio consegue distinguir com clareza onde se rompe 0 elo entre as palavres ¢ as coisas, jf que eudo é lingua- gem, Completa Foucault: U n'y a partoat qu’an méme jeu, celui du signe et du similaize, et c'est pourquoi la nature et le verbe penvent s‘entrecroiser a V'infini, formant pour qui sait lire comme un grand texte unique.? Abstraindo © que existe de critico em Foucault 3 episceme do século XVI (“le caractire 3 la fois plethorique ot absolum- ment pauvre de ce savoir”), devemos no entanto dizer que essa bem-aventuranga humana no seio da natureza encontra-se devidamente criticada em Paz pelo jogo da ironia, que recom- pie a tensio entre o poeta ¢ 0 mundo, as palavras ¢ as coisas. | “Até Ens do século XVI, a semelhanga desempenhou um papel conscrutive no saber ¢a cultura ocidental. Foi ela que orientou em grande parte a exegese ¢ 2 interpeetagio dos textos; foi ela que organizou o jogo dos simbolos, permitin o conhecimento das coisas visiveis e invisiveis, guiou a arte de as representar. © Mando enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, 05 rastos mirando-se nas estrelas © a erva desenvolvendo as suas hastes 05 segredos que eram tes 26 homem. 2 “Por toda a parte hi apenas um jogo: o do signe e do similar, e ¢ por isso que 3 natureza ¢ 0 verbo se podem entrecruzat até 20 infinito, formando, para quem saiba ler, como que um grande texto imico. Pare aiém da histéria social 259 Parece que, a0 dar continuidade 4 episteme classica, 0 poeta moderno — como ji o fizera com a “tradigio” revolucionaria ea ortodoxia religiosa, mas agora em movimento inverso — dela se distancia para poder aproximar-se mais. “La analogia de los roménticos est roida por la ironia, es decir, por la conciencia de la modernidad y de su critica de cristianismo y las otras religiones.” 3. O confronto entre as duas leituras, emblematicamente apre- sentadas aqui, nos proporciona duas conclusées fundamentais, que passaremos a desenvolver com o intuito, nio de questionar a validade da leitura realista, mas sim 9 de mostrar como cla restringe © raio da eficicia estética que se encontra na escrita (poderiamos até mesmo tomar de empréstimo 0 adjetivo 4 Fou- cault) autoritaria do melhor texto literario moderno, seja ele em prosa ou em verso. E essa escrita que torna o objeto literirio diferente de outras produgées feitas pelo homem com a lingua- gem, é ela que afirma a perenidade do ser histérico (o paradoxo @ inevitavel) do grande romance e do grande poema (¢ da grande arte em geral). Lamentamos apenas que, ao desenvolver os dois desdobramentos, deixemos que questées menores fi- quem fora do foco deste trabalho. Primeiro desdobramento. Ao ler contrastivamente Roberto Schwarz, descobrimos que a metodologia de leitura realista da prosa encontraria um obstdculo intransponivel ao querer atua~ lizar-se para a leitura do poema moderno. A leitura realista, a0 ancorar 0 conhecimento artistico na compreensio da organiza- ¢40 socioecondmica do real tal qual ficctonalmente represen- tada na obra de arte, acaba por dar a conhecer da obra aquilo que nela é seu contemporineo. Ou seja, 0 proprio presente que é dramatizado por ela. (Nio estamos nos referinda nem ao presente do autor nem ao presente do leitor.} Portanto, o fu- turo desse presente tal qual dramatizado na obra artistica nao 209 NAS MALHAS 1A LETRA se encontra ne texto, & antes constnujdo do método de leitura. Ora, como o presente artistico (ficcional ou poético) pode ser contemporineo de leitores que se situam num futuro que é resultado da andlise do desenvolvimento material da sociedade? Concluimos que o funcionamento da obra de arte transcende tanto a construgio histérica nela representada como ainda a compreensio desse mesmo funcionamento como foi feito pela feitura realista, na medida em que ela é ¢ continua efetiva © prazerosa para épocas fucuras. Segundo desdobramento. A discérdia entre 0 texto artistico ¢ os movimentos revoluciondrios no € tio-somente uma ques- to ideolégica, conservadora. (Ela o pode ser no tocante 3 pa- javra do artista na cena politica que Ihe € contemporinea, mas nao o é se se trata de uma obra de arte, distingio elementar mas necessizia no caso do proprio Octavio Paz, quando se lembra de declaragdes suas sobre a situacio politica na América Central.) A discordia pode ser uma das estratégias para se chegar 4 uma compreensio — pela anilise da produgio artistica propria~ mente dita — da especificidade atemporal do produto artistico. De maneira concreta ¢ meramente exemplar, talvez seja por esse caminho que possamos, de um lado, compreender a impor- tancia dos poemas de Ezra Pound ou dos romances de Louis- Ferdinand Céline ¢, de outro, interpretar afirmagdes como estas de Carlos Drummond de Andrade: “O poeta nio se situa em nenhuma repiiblica. O poeta se situa como poeta.” Se a leitura realista citcunscreve questes de relevo para a leitura do texto nas suas relacdes com a histona ¢ a sociedade, deixa no entanto de compreender o que nele o torna transis- ténico e, por isso mesmo, critico € prazeroso. Isto &, 0 que do texto é capaz de substantivamente proporcionar saber ¢ prazer aos leitores de outras partes do mundo e de outras épocas da histdria. Produto de uma histéria e de uma sociedade, 0 texto artistico paradoxalmente escapa aos limites da historia e da so- ciedade que o otiginam, independente mesmo das sucessives leitores que 0 reorganizam racionalmence, para afitmar-se uni- versal, Chega-se a esta conclusio com o conhectmento da pré- pria obta de arte, Como «al, nossa busca ndo passa pelos labirin- Para ali de hisiéra social 261 tos metafisicos de uma discussio ontolégica que nos conduziria 4 especificidade do artistico (do poético e do ficcional) pela sua esséncia. Paradoxalmente, a verdadeira obra de arte & historicamente eterna. Seri isso o que Marx quis dizer com uma frase bastante enigmatica: “A histéria mundial nio surge na historia como o resultado da historia mundial”? De qualquer forma, em Uma contribuigdo para a critica da economia politica, Marx foi sensivel ao cardter paradoxal da obra de arte na sua relagio com a histéria. Foi até mesmo sensivel, como veremos, a0 dualismo metodolégico que esbocamos acima com a ajuda de Roberto Schwarz e de Octavio Paz. Comeca por chamar a aten¢io para a “relacio desigual entre o desen- volvimento da produgio material e a arte”, Um periodo com baixo desenvolvimento na produgio material produz no entanto elevado desenvolvimento artistico. Escreve Marx: “E do conhe- cimento geral que certos periodos de clevado desenvolvimenco da arte nio tém ligacdo direta com o desenvolvimento geral da sociedade, nem com a base material e estrucura da sua organi- zacgio. Lembremo-nos do exemplo dos gregos em comparacio com as nagées modernas ou mesmo com Shakespeare.” E chege a uma conclusio pelo menos insdlita para os nossos tedricos do realismo: “no dominio da arte, determinadas formas impor- tantes dela apenas sio possiveis numa fase inferior do seu desen- volvimento”. Em seguida, Marx enumera exeraplos que indicam a condi- cio anacrénica do universo mitolgico grege no interior de um mundo onde o conhecimento da natureza se di pela ciéncia. Ao dominar as forgas da natureza — acrescenta Marx — desaparece a mecessidade da mitologia. “Que acontece 1 Deusa Fama ao lado da Printing House Square?” — pergunta de forma a acen- tuar © anacronisme do saber grego. Responde Marx: “A arte gtega pressupde a existéncia da mitologia grega, ou seja, que a Natureza e até a forma de sociedade sio elaboradas segundo © capricho popular de um modo inconscientemente artistico.” Atte grega e conhecimento mitoldgico estio de tal forma entra- nhados um no outro que o fundamento ¢ a explicagio da rela 262 NAS MALHAS DA LETRA gio entre os dois tém de ser dados pelo anonimato (“capricho popular") € pelo néo-racional (“inconscientemente"). Apresentada a contradigio historica, ou seja, a permanéncia da arte grega até os nossos dias como padrio estético do mais alto nivel e ainda geradora de conhecimento e prazer, apesar de © nosso desenvolvimento material ser diametraimente oposto aquele, Marx aponta para a dupla tarefa espinhosa que espera 08 estudiosos da obra de arte: Mas a dificuldade nio esti em abarear a idéia de que a arte € a poesia épica gregas se encontram ligadas a determinadas formas do desenvolvimento social. Reside na compreensio do motivo pelo gua continuam a constituir para nés uma fonte de prazer estético e, sob certos aspectos, prevalecem como padrio de modelo superior. Descontado o fetichismo com que Marx envoive a produgio arcistica grega, patecendo idedlogo contemporineo seu que via no progresso material da humanidade o execrivel destruidar dos valores autenticamente artisticos, ressalte-se o fato de que, até mesmo na apresentacio do problema, no esti interessado na causa recéndita do saber ¢ do prazer que esté na obra de arte, € gue a toma até hoje merecedora de crédito. Pula para o efei- to do artistico, ou seja, para 0 prazer que a obra de arte pode ptoporcionar a seu leitor de qualquer regiio e de qualquer épo- ca, independente de uma leitura realista que dela pode ser feira. Como “leieor” é que Marx procura dar uma explicacio para o paradoxo, utilizando uma metaférica tomada de emprés- timo 4 evolucio do homem, nao 4 evolucio natural do homem {progresso em direcio a), mas a uma “evolugio” proustiana do homem. Nao se trata de compreender a perenidade do pra~ zer estético dado pela leitura por um proceso de infantilizacio do homem — o texto é claro: “um homem nio pode se tomar de nove erianga, a menos que se revele infantil”, Tratase an- tes de compreendé-lo por uma espécie de contemplagio, de de- leite diante do “modo despretensioso” da crianga, A arte grega passa a ser a representac¢io, num plano mais elevado, desse mo- Pate elém da histéria soctal 263 do de ser infantil. Pergunta Marx: “Por que razio a infincia social da kumanidade, quando obteve 0 seu mais belo desen- volvimento, no exerceri um encanto eterno como uma idade que jamais voltaré?”. E conclui: © atrativo que a sua arte {dos gregos] apresenta para nés nio conflita com o cariter primitive da ordem social de que brotara © valor universal que se confere 4 obra de arte (grega ou nio — acrescentamos nés) é compreendido em Marx por um raciocinio que deriva da anélise de um efeito proporcionado por uma a¢3o empirica — 0 ato de leitura. Por outro lado, sua res- posta absorve 0 que de mais original existe na produg’o poéti- ca sua convemporinea e¢ romantica. O poema romintico entro- nizava na infincia o conhecimento mais profundo ¢ duradouro do ser e do universo, como se pode ler, de forma paradigma- tica, na “Ode: Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood”, de Woodsworth. De uma forma ou de outra, mio testa divida de que a sua resposta ao paradoxo da univetsalidade do artistico poderia proparcionar novas dife- rentes incursées a pesquisas da estética da recep¢io. O mesmo sabor de imsatisfagio que experimentamos diante da leitura rea- lista do objeto artistico é também despertado diante do brilho e da lucidez de ensaios come os contides em O leitor implicito, de Wolfgang Iser. 4 £ nosso interesse retomar a problemética marxista Jevantada, optando por um ponte de vista complementar a0 que orientou a stta postura. Se hi efeito deve haver causa, € esta tem de estar na propris obra de arte, (A interpretagio da obra no é suficicn- te para explica-la; aquela requer como apéndice uma avalia- 30.) E claro que esta outra postura nio é mocente, como a de Marx nao o eta. Ela @ devedora, neste século, a tudo o que, em 264 NAS MALHAS DA LETRA teoria da literatura, cem representado para o conhecimento do texto literario a “literariedade”, ou scja, 0 conhecimento dos procedimentos gue tomam um texto literdtio, artistico. Para o novo percurso vamos os valer de um ensaio (em sua tradu- ¢ho para o inglés) do formalista tcheco fan Mukarowsky — “Can there be an univetsal aesthetic value in art?” A questio que Mukarovsky coloca é a seguinte: “Can or even must the history of act admit as 2 working hypothesis the existence of an universil aesthetic value?” Enfrentando-a em busca de uma resposta afirmativa, Mekarovsky comeca por pereeber que existe uma relagio de dependéncia, em nada inocente, da estética pari com a historia das artes. O relativismo axiolégico dominante na pesquisa estética nos anos que prece- deram a redagio de seu ensaio nao estava desligado de uma injungio que Ihe foi imposta pela historia das artes. Esta, consi+ derando scu material como resultado e objeto de uma atividade em perpétua transformagio, raz3o para uma periodizagio em fases sucessivas, acaba por colher beneficios de uma concep- io relacivista de valor estético, Observa: “Only chrough chis relativism was it [a historia das artes| able to understand the successive structural changes in works of art as a continuous sequence whose course is determined by an immanent internal regularity." Naquele momento c estudo filosético do valor buscava sua independéncia ¢ pascava por um “state of total reconstruction”. Tentava-se introduzir a idéia de um valor fixo capaz de resistir a diversidade das atitudes individuais, bem como a mudangas na mentalidade coletiva em diferentes tempos e fases. De ime- diato resguarda-se o tcheco de uma tendéncia na tarefa de rees- truturagao que se Ihe apresentava como “solugao ontolégica” — de que seria defensor um colega seu de escola ¢ de geracio, 3A histéria da arte pode ou mesmo deve admitir como hipétese de traba- tho a existéncia de um valor estética universal?” +58 atraves desse relativismo & que a histéria das ames foi copaz de com- preender ag mudangas estrutuniis sucessivas em trabalhos de arte como uma seqiiéncia continua cuyo percurso é determinade por uma regularidade in terna imanente.” Para aléve da Mistéria social 265 René Weltek. Sua proposta cra outra, chegar 4 hipétese de um valor universal para a historia das artes por um método in- dutivo, cujo ponte de partida setia a informagio dada pela his- toria das artes e literatura. A fimalidade da pesquisa seria uma contribuigio para a metodologia das duas citadas disciplinas, ¢ a solugio seria epistemoldgica Sem que fosse abandonada uma compreensio do desenvol- vimento da arte pela sua evolucio temporal, 0 teérico depara- va-se com um problema que Ihe aparecia a cada passo: “he encounters works that exert an active influence long after they have left the artist's workshop. In these works universal aesthetic values thus appears as a powerful factor collaborating in the vicissitudes of art”.S Dois desdobramentos. Por um lado, a maioria dos trabalhos criados nio atinge essa prolongada ou renovada ressonancia. Por outro, mesmo nestes trabalhas, por assim dizer fracassados, ha a “inten¢io do artista” em chegar a um resultado cuja aceitacdo fosse incondicional Duas perguntas se imp3em como reveladoras do impasse teérico. Primeira; por que s6 uma minoria dos teabalhos que deixou o atelié do artista sobrevive a seu tempo? Segunda: de que maneira € por que razio os trabalhos que sobrevivem a seu tempo afetam o desenvolvimento da arte? Fica claro que pela primeira pergunta o tedrico & chamado a um exercicio de ava liagto que exige critérios rigorosos. Pela segunda, a intencéo é a de caprar um problema que escapa 4 historia das artes quando ‘os trabalhos ficam conformados a um recorte nacional ¢ contem- porineo, conformado pelo estilo de época correspondente, tomando inexistente o jogo intertextual que transcende o limite imposto, Como se pode adivinhar a resposta 4 segunda pergunta @ a sazio de ser para uma pesquisa em literatura comparada. As objecdes ac pressuposto de um valor universal sio muitas © diversas, @ elas sio Jongamente debatidas por Mukarovsky. 5 “Encontra trabalhos que exercem uma influéncia ativa mesmo depois de terem deisado por muito tempo o atelié do artista, Nesses trabalhos os valores estéticoy umiversais aparecem como um fator poderoso colaborando para ay vicissitudes da arte. ot NAS MALHAS DA LETRA Fica, depois delas, a divida sobre a utilidade on nao de aban- donar o selativismo axiolégico. © animo é@ dado ao teérico nao tanto pelos que apreciam a obra de arte, mas pelos que a fabticam: “though artistic value always vacillates, the artistic creation does not deviate from its unanswering search for perfection”. A necessidade de um valor universal em arte é necessidade do artista na busca de perfeigao, embora a universa- lidade do trabalho seja vacilante. Portanto, € necessétio com- inar o universal ao descontinuo, a produgio com a lenura. E dessa forma que Mukarovsky pode chegar a uma definigao bisica: Universal value thus exists and operates in a very palpable manner, but it neither merges with maximal resonance in space and time not irrevocably attaches itself to specific works. It has on the contrary the character of live energy which to remain active must of necessity renew itself.” Energia viva, o valor universal possibilita a sintese que go- verna os jogos intertextuais produzidos na criagdo: ao mesmo tempo emt que ilumina o passado, levando o artista a (re)des- cobrir 0 solo desconhecido da tradicio, incita-o 4 propria criagio no momento presente, fazendo-o embrenhar-se pelo texto que se otganiza em tetmos de seu futuro, perene. Reside aqui a petulincia do artista Go bem expressa por Stendhal quando se refere aos “happy few” ¢ 4 sua consagragio no futuro. Aqui ainda o cabotinismo de Oswald de Andrade, afirmando que “a massa ainda comera do biscoito fino que fabrico”. Talvez nfo seja por acaso, depreendemos nés, que artistas ® “Bmbora o valor artistico seja sempre incerto, a eriagio artistica nunca se desvia da inencoatrivel busca da perfei¢io.” ? “© valor universal existe, portanto, ¢ opera de maneira muito palpivel, mas nem emerge com méxima cessonincia no espago © tempo nem se ene contra imevogaveimente preso a trabalhios especificos. Tem, pelo contritio, © cariter de uma energia viva que, para permanecer ativa, precisa absoluta- mente se renovar.” Pora atém Sa histérie social 267 sejam mais sensiveis — nas suas palavras ¢ mesmo nas suas in vestidas pottico-tedricas — a configuracio de um valor univer- sal nas artes do que criticos e ceéricos. Estes se sentem mais 3 vontade — na anilise da obra — trabalhando com metodolo- gia que privilegia o relativismo axiolégico. Mukarovsky, ao in- verter inicialmente os termos da proposta de leitura feita por Marx, abre espago para que se compreenda também a necessi- dade dessa avaliagio em outras épocas que nio a Antiguidade grega. Definida a importincia metodolégica do valor universal para a histéria das artes, impde-se 0 estabelecimento de eritérios para circunscrevé-lo. Trés critérios sio lancados: espago, tempo ¢ evidéncia. © valor é universal quando atinge maxima extensio no espago, inchiindo maxima extensio entre diferentes meios sociais. E universal porque resiste ao tempo. E, finalmente, é universal porque é evidente. Idealmente, os trés critérios sto justos, mas como o valor universal estético ¢ instével, havera necessatiamente uma divergéncia entre os trés critéties. Enviae mos 0 leitor mais curioso 4s refinadas andlises que Mukarovsky faz para resgatar os dois primeiros critérios. Eles acabam por nao se justificar. Fica na arena o terceiro, unico a dar conta da energia viva descontinua. Mukarovsky argumenta, a favor deste, que 0 individuo, ao julgar uma obra de arte como universal, nio esté apenas fazendo uma afirmagio que recobre o campo individual, esta tentando impor esta certeza a outros como um postulado. Por esse argumento, © tcheco reencontra Kant, mas para dele se desviar. Nao h4 davida de que foi pelo sentimento de uma evidéncia estética que Kant foi levado a definir como tendo um cardter aprioristico o julgemento da obra de arte. No en- tanto, Mukarovsky evita o reencontro com Kant, sublinhando que a critica da razio pura pressupde a anséncia da experiéncia, enquanto o cardter evidente do julgamento em Mukarovaky € conseqiiéncia da experiéncia estética. Conclui ele: Thus the criterion of evidence is also a historical factor which is under the influence of continuous artiste activity 268 NAS MALHAS DA LETRA and has, in turn, a constant influence upon it like the other two criteria Produto da experiéncia da criacio © da experiéncia da Jei- tura, da busca da perfeicio de um lado ¢ do prazer na desco- berta da perfeicdo do outro, 0 critério da evidéncia representa © papel de mediador entre a intengado subjetiva do artista e a tendéncia progtessista da arte. Aquele se manifesta pelo traba— Tho material, e este € influenciado pelo mesmo trabalho no seu percorrer pelas sucessivas fases do desenvolvimento attistico. E importante para Mukarovsky definir que este valor que per- matiece 0 mesttio nao se sobrepde A identidade como se pode depreendé-la da argumentagio ontolégica. Aqui o valor uni- versa] “has quite a dynamic character which consists in a mere aspiration, constantly renewed, for universality”.? Espremido entre a criacio ¢ a leitura, fica para ser configu- rado © objeto material que resulta de uma e é originador da outra, Mukarovsky aqui & bastante cuidadoso, pois sabe que a atribuigdo de um valor estético ao trabalho material de arte tem sido rejeitada varias vezes: “It [essa atribuicdo] seemed dead once and for all when people realized that aesthetic eva- Tuation does not concern the material work but rather the ‘aesthetic object’ which originates through the interpenetration of impulses arising from the matetial work and the living aesthetic tradition of the given art. This interpenetration takes place in the consciousness of the evaluating individual.” Se o valor estético nfo € um atributo do objeto material, 8 “Assim © critérie de evidéncia ¢ também um fator historico que esti sob a intludncia da atividade artistica contimia € tem, por sua vez, constante influén- cia sobre ela, como 0s outros dois critérios.” ? “Tem bem um cariter dinimico que consiste numa mera aspiragio, constan- tememte renovada, de universalidade.” 3° “qq atribuiggo parecia morta para codo o sempre quando as pessoas com- preenderam que a avaliacio estética ndo conceme 20 trabalho material mas antes 20 ‘objeto estético’ que se origina da interpenetrag3o de impulsos ad vindos do proprio trabalho material pela tradi¢ao estética viva de uma dada arte. Essa interpenetragio se di na consciéncia do individuo que avalia.” Para além da histérda social 269 por que. no entanto, “certain material works can acquire a constantly renewed aesthetic efficacy, despite all the changes in the aesthetic objects corresponding to the same work, in the course of the development of the given art”?! [mperiosamente impée-se uma tinica conclusio: existe uma relagio que nao é a de atributo, mas qual seria ela entio? Mukarovsky se enca- minha para uma reflexdo antropoldgica sobre a obra de arte, definindo portanto essa relagio como humana: “Only man can establish a relation between the material work and the value directed at the immaterial aesthetic object.”"? Primeiramente, manifestaco de uma individualidade, a obra de arte no momento em que se abre para o piiblico deixa que cada um possa compreendé-la ¢ interpreti-la 4 sua propria maneire. Ela é pois mais do que a expressio da personalidade do seu autor, “it is above all a sign destinate to mediate between individuals, including both the creating individual and the individuals comprising the audience”. E arremata: “the mutual understanding of the two patties is made possible by the fact that all che individuals concerned are equal members of the same real or ideal, fixed or occasional community”.'> Lembrando-nos da definigio que nos foi dada de literatura por Ezra Pound (“language charged with meaning”), a obra enquanto signo tem varios significados, ¢ muitos outros signifi- cados Ihe podem ser atribuidos simultinea ou sucessivamente. Portanto @ por essa dimensio senmintica que se expressa a 11 “Certos trabalhos materiais podem adquirir uma ¢ficdcia estética constan- temente renovada, apesar de rodas as mudaneas nos objetos estéticos comes- pondentes 29 mesmo trabalho, no transcorrer do desenvolvimento de ama dada arte?” 12 *'S5 o homem pode estabelecer uma relasdo entre 0 eabalho material © 0 valor atribuide ao objeto estético imaterial.” "3 “£ acima de tudo um signo destinado 4 servir de mediacdo entre individuos, Por isto devendo-se estender tanto ao individue cnador quanto aos indivi- duos perfazendo um puiblico. (..) a miitua compreensio de ambas as partes € possivel pelo fato de que todos os individuos conceridos sic membros igualitérios de uma mesma comunidade real ow ideal, fixa ow ocasional.” 20 NAS MALHAS DA LETRA gpa viva” a que se referia antes: “The greater semantic capaciey the work demonstrates, the more capable it is of resisting changes in place, social milicu, and time, and the more universal its value is."*'* Quando autor ¢ pablico pertencem 4 mesma sociedade tudo indica que a obra nao chegaré a mostrar toda o sett po- tencial semintico. No entanto, se a sociedade que se aproxima do objeto é outra diferente no tempo — caso de um trabalho lido muitos séculos depois num pafs diferente do originirio —, € se v objeto nio perde o seu peso semiantico ¢ a eficacia es tética, temas entio a garantia de que o trabalho atingin o que € “universalmente humano no homem". Resta uma titima pergunta: seria possivel explicitar as con~ digdes que o wabalho deve preencher para que consigs atingie © que @ universal no homem? Ou seja, seria possivel buscar uma férmula a ser fornecida ao artista para que a sua “intencio” seja sempre coroada de éxito? A resposta de Mukarovsky talha a distingdo classica feita pelos formalistas russos entre discurso ¢ discurso literirio, entre o uso normal da linguagem por todo e qualquer ¢ a pratica da literarura pelo especialista. Se para o uso da linguagem por todos hi leis, para a pritica da literatura hd principios (¢ nao receitas). Nesta ha maior biberdade nia cons- trucio ¢ menor uniformidade do que naquela. A impossibilidade de uma “sintaxe” literiria reside ma liberdade que € concedida a0 artista ¢ de que cle se alimenta como um cio raivoso. [1987] 13 “Major a capacidade semdntica que © trabalho demonseret. mais capaz eri de resistir a amcangas de lugar, meio social ¢ rempo, ¢ ois universal sew valor sera.” Para aléne dt htstesia soviet Bibliogratia Candido, Antonio. Formasio da literatura brasileira. Sia Paulo, Martins, 1971. {42 edigéo) . “Dialética da malandragem™, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n° 8, 1970. . Literatura e soctedade, S30 Paulo, Editora Nacional, 1976. (52 edigio). Foucault, Michel. Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966. Gledson, John. Machado de Assis: figdo ¢ histéria. Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1986. Marx, Karl. Consritiigio para a critica da economia politica, Lisboa, Estampa, 1977. Mukarovsky, Jan, “Can there be an universal value in art?”, in Siructure, sign, and function. New Haven e Londres, Yale Universiey Press, 1978. Paz, Octavio. Los hijos del fimo. Barcelona, Seix Bartal, 1981. (3% edigdo, revista ¢ ampliada) Prado jr., Caio. Fermagio de Brasil contemporinec. 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Paulo. “O Evangelho segundo Joio” foi resenha nas paginas de Leia Livros. “Histd- ria de um livro” faz pare de uma edicio critica de Macunaima coordenada por Telé Porto Ancona Lopez, a quem agradego a gentileza do empréstimo de parte do material bibliogrifico uci- lizado, “Questio de perspectiva” aparcceu em niimero de home- nagem a Autran Dourado do Suplemento Literdrio do Minas Gerais. “O intelectual modernista revisitado” figura em livro de ho- menagem aos 70 anos de Cleonice Berardinelli Nota final 273

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