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Jose MURILO DE CARVALHO mais ainda, sacrificando os iltimos aos primeiros, nao im- pediu a popularidade de Vargas, para dizer o minimo. A énfase nos direitos sociais encontrava terreno fértil na cul- tura politica da populacio, sobretudo da populagéo pobre dos centros urbanos. Essa populagio crescia rapidamente gracas & migragio dos campos para as cidades e do nordeste para o sul do pais. O populismo era um fenémeno urbano e refletia esse novo Brasil que surgia, ainda inseguro mas dis- tinto do Brasil rural da Primeira Repiblica, que dominara a vida social e politica até 1930. © populismo, no Brasil, na Argentina, ou no Peru, implicava uma relagdo ambigua en- tre os cidadaos e o governo. Era avango na cidadania, na medida em que trazia as massas para a politica. Mas, em contrapartida, colocava os cidadaos em posigao de depen- déncia perante os lideres, aos quais votavam lealdade pesso- al pelos beneficios que eles de fato ou supostamente lhes ti: nham distribuido. A antecipagao dos direitos sociais fazia com que os direitos nao fossem vistos como tais, como in- dependentes da agio do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidao e lealdade. A cidadania que daf resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora, [AVEZ 00s DIREITOS POLITICOS (1945-1964) ‘Apés a derrubada de Vargas, foram convocadas eleigdes pre- sidenciais ¢ legislativas para dezembro de 1945. As eleig6es legislativas destinavam-se a escolher uma assembléia consti- tuinte, a terceira desde a fundagao da Reptblica. O presiden- te eleito, general Eurico Gaspar Dutra, tomou posse em ja- 126 neiro de 1946, ano em que a assembléia constituinte concluiu seu trabalho e promulgou a nova constituigio. O pais entron em fase que pode ser descrita como a primeira experiencia democratica de sua histéria, A primeira experiéncia democrética A Constituigo de 1946 manteve as conquistas sociais do pe- riodo anterior e garantiu os tradicionais direitos civis e politi- cos. Até 1964, houve liberdade de imprensa e de organizacio politica. Apesar de tentativas de golpes militares, houve ele ses regulares para presidente da Reptblica, senadores, de- putados federais, governadores, deputados estaduais, prefei- tos e vereadores. Varios partidos politicos nacionais foram organizados e funcionaram livremente dentro e fora do Con- gresso, & excecéo do Partido Comunista, que-teve seu regis- tro cassado em 1947, Uma das poucas restrig6es sérias a0 exercicio da liberdade referia-se ao direito de greve. Greves 86 eram legais se autorizadas pela justiga do trabalho. Essa exigéncia, embora conflitante com a Constitnigao, sobreviven até 1964, quando foi aprovada a primeira lei de greve, ja no governo militar. © que nao impediu que varias greves tenham sido feitas ao arrepio da lei. A influéncia de Vargas marcou todo 0 perfodo, Apés a deposigao, ele foi eleito senador e manteve postura discreta enquanto preparava a volta ao poder pelo voto. Sua eleigio a presidente pelo voto popular, em 1950, representou um gran- de desapontamento para seus inimigos, que tentaram utilizar meios legais e manobras politicas para impedir sua posse. Seu segundo governo foi marcado por radicalizagio populista e nacionalista. O ministro do Trabalho, Joio Goulart, agia em 127 Jose muaito DE CARVALHO acordo com os dirigentes sindicais, pelegos ou nao. Pelo lado nacionalista, destacou-se a luta pelo monopélio estatal da exploragio ¢ refino do petréleo, corporificada na criagao da Petrobras, em 1953. - ‘A politica populista ¢ nacionalista contava com 0 apoio dos trabalhadores e de sua maquina sindical, dos setores na- “Gonalistas das forgas armadas, sobretudo do Exército, dos setores nacionalistas do empresariado e da intelectualidade, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Vargas ain- da antes da deposigao em 1945. A ‘oposigao vinha principal- ‘mente dos liberais, que se tinham oposto ao Estado Novo, agrupados no principal partido de oposigo, a Unido Demo- critica Nacional (UDN). Vinha também de militares anticomunistas, alguns deles sob a influéncia norte-americana recebida durante a guerra. Esses militares viam o mundo pelo vviés da guerra fria, a marca registrada da politica norte-ame- ricana do pés-guerra. Alguns deles organizaram em 1949 a Escola Superior de Guerra (ESG), que se tornou centro de doutrinacio anticomunista e antivarguista. Vinha, finalmen- te, de parte do empresariado brasileiro ligado ao capital in- ternacional, ¢ do proprio capital internacional, representado nna €poca sobretudo pelas grandes multinacionais do petr6- leo, pejorativamente chamadas de “trustes”- ‘Guerra fria, petréleo ¢ politica sindical ¢ trabalhista fo- ram exatamente as causas dos principais enfrentamentos po- liticos. Em torno desses trés cavalos de batalha alinharam- se amigos e inimigos do presidente. A medida que a luta se aprofundava, polarizavam-se as posigdes. De um lado fica- vam os nacionalistas, defensores do monopélio estatal do pe- tréleo ¢ de outros recursos basicos, como a energia elétrica, partidarios do protecionismo industrial, da politica traba- 128 thista, da independéncia na politica externa, Para esses, os inimigos eram entreguistas, pré-americanos, reacionarios, golpistas. Do outro lado estavam os defensores da abertura do mercado ao capital externo, inclusive na area dos recur- sos naturais, os que condenavam a aproximacio entre 0 governo ¢ 0s sindicatos, os que queriam uma politica exter- na de estreita cooperagao com os Estados Unidos. Os opo- nentes eram por eles estigmatizados como comunistas, sin- dicalistas, demagogos e golpistas. Os militares contrarios e favoraveis a Vargas dividiram-se irremediavelmente, em 1951 ¢ 1952, em torno da questao do envio de tropas & Coréia, solicitado pelos Estados Unidos. O Clube Militar, que reunia oficiais das trés armas, entio nas mios dos nacionalistas, apoiados pelo ministro da Guerra, também ele um nacionalista, tomou posigao radicalmente contréria e atacou os Estados Unidos. A faccig oposta reagiu prontamente, conseguiu a demissio do ministro da Guerra e © derroton nas eleigdes de 1952 para a presidéncia do Clube Militar. A partir dai, a oposigao militar, em alianga com os politicos da UDN, manteve vigilancia continua sobre 0 go- verno. A batalha pelo monopélio estatal do petréleo durou de 1951, quando o projeto foi enviado ao Congresso, até 1953 quando a lei foi assinada, Esta luta distinguiu-se da batalha do Clube Militar por ter chegado as ruas. A Petrobras tor- nou-se 0 simbolo do nacionalismo, do antiimperialismo. A campanha por sua criacao reuniu militares nacionalistas, es- tudantes universitarios, lideres sindicais. Houve debates violentos, manifestag6es piblicas e comicios, em que o prin- cipal vilio eam as companhias estrangeiras de petréleo. Nenhum outro tema tinha até entéo apaixonado tanto a 129 opinio piblica. No calor da luta, o proprio Vargas foi leva- do a tomar posigao mais radical do que aquela que inicial- ‘mente propusera. A lei finalmente aprovada dava & Petrobras ‘9 monopdlio de toda a prospeccio, extragio e refino do petréleo, ficando aberta ao capital privado, inclusive estran- geiro, apenas a distribuigéo. © embate do populismo, mais precisamente do sindica- Jismo, centrou-se na figura do ministro do Trabalho ¢ em sua politica salaral. Joio Goulart foi nomeado ministro em 1953. ‘A oposigio logo 0 escolhe como alvo principal de criticas por suas ligagées com o mundo sindical. Recorde-se a grande influéncia que o ministro podia ter dentro da estrutura sindi- cal montada pelo Estado Novo e nao modificada apés a de- mocratizagio. Lideres sindicais radicais, alguns do Partido Comunista, tinham conseguido atingir postos na cipula do sistema sindical e da previdéncia social ¢ agiam em acordo com Goulart. Nao por acaso, 0 ano de 1954 foi marcado por gre- ves importantes. Nesse ano, Goulart propés um aumento de 100% no sa- Litio minimo. Em vigor desde 1940, o salirio minimo, so- bretudo a definigao de seu valor, tinha-se tornado um pon- to-chave nas relagGes do governo com os trabalhadores. A proposta do ministro surgiu um més depois que um grupo de oficiais do Exército tinha langado um manifesto contra os baixos saldrios da classe e em momento de politica de contengio de despesas. Houve reacéo contraria de empre- sérios e de militares. Goulart pediu demissio do cargo, mas Vargas adotou a sugestio e proclamou o novo valor do salé- rio minimo no Primeiro de Maio, num discurso emocional em que dizia aos trabalhadores que eles no momento esta- vam com © governo, mas no futuro seriam o governo. A 130 partir dai, a conspiragio para derrubar o presidente, envol- vis e militares, ganhow forga. Infeliz tentativa dos responsaveis por sua guarda pessoal de assassnar o lider da oposigéo, o udenista Carlos Lacerda, resultou na morte de um oficial da Aeronéutica, major Rubem Vaz. O fato irtitou ainda mais os militares e precipitou os acontecimentos. Os chefes das trés forcas exigiram a remtincia do presidente. Velho e sem a energia e a asticia que tinham caracterizado sua primeira fase de governo, Vargas preferiu matar-se a ceder ow a lutar. Deu um tiro no coragao no dia 24 de agos- to de 1954, em seu quarto de dormir no Palacio do Catete, deixando uma carta-testamento de forte contetido naciona. lista e populista. ‘A reagdo popular foi imediata e mostrou que mesmo na morte o prestigio do ex-presidente mantinharse intato, Mul- tidées foram para as ruas, jornais da ogosigio foram destruidos, ¢ Carlos Lacerda, vitorioso na véspera, teve que se esconder e sair do pais. O antigo ditador, que nunca se sa- lientara pelo amor as instituig6es democraticas, tornara-se um heroi popular por sua politica social e trabalhista. © povo identificara nele 0 primeiro presidente da Repiiblica que 0 interpelara diretamente, que se preocupara com seus proble- mas. O fato de ser preocupacao paternalista era irrelevante Pata os que se sentiram valorizados e beneficiados pelo lider Morto. A influéncia de Vargas projetou-se ainda por varios anos na politica nacional. O choque de forgas que levou a seu Stciio resolvew-se apenas com 0 gotpe militar de 1964. Fo- 9 rain deez anos de intensa hata politica que poderiam ter gristoem consolidacio democrtica, mas que terminaram G foro1 don herdeizos de Vargas ¢ também do primeiro Aperimento democratico da hist6ria do pais. 134 ‘Apés a morte do presidente, seguiram-se golpes contragolpes para impedir ou garantir a posse do novo presi- dente, Juscelino Kubitschek. As forgas anti-Vargas, comanda- das pela UDN, foram novamente derrotadas nas eleigées de 1955. O candidato vitorioso, Kubitschek, fora apoiado por alianga do Partido Social Democratico (PSD), também criado por Vargas antes do fim do Estado Novo, com o PTB, que forneceu o vice-presidente, Jodo Goulart. Kubitschek néo era ‘um nacionalista e um trabalhista como Vargas e Goulart. Mas sua eleigao, que se deu com apenas 35,7% dos votos, foi con- siderada pelos inimigos como a continuagao do varguismo foi contestada até o tiltimo momento. Os militares dividiram- se ainda mais, vencendo desta vez os partidarios do naciona- lismo e da obediéncia & Constituigao. Alguns oficiais da Ae- rondutica, ainda inconformados com a morte do companhei- ro de farda, rebelaram-se depois da posse, mas sem maiores conseqiiéncias. Apesar da oposicao civil e de revoltas militares, a habil dade do novo presidente permitiu-lhe dirigir 0 governo mais dinamico e democratico da histéria republicana. Sem recor- rer a medidas de excegao, & censura da imprensa, a qualquer meio legal ou ilegal de restrigdo da participagéo, Kubitschek desenvolven vasto programa de industrializagao, além de pla- nejar e executar a transferéncia da capital do Rio de Janeiro para Brasilia, a milhares de quilémetros de distancia. Foi a época durea do desenvolvimentismo, que nao exclufa a coo- peracio do capital estrangeiro. © Estado investiu pesadamente em obras de infra-estrutura, sobretudo estradas ¢ energia elé- trica. Ao mesmo tempo, tenton atrair o capital privado, nacio- nal e estrangeiro, para promover a industrializacao do pajs. O éxito mais espetacular foi o da indistria automobilistica, aaa CIDADANIA Wo BRASIL qne as grandes multinacionais implantaram beneficiando-se dos incentivos governamentais. A fundamentagio ideolégica do nacionalismo desenvol- vimentista vinha do pensamento da Comissio Econdmica para a América Latina (CEPAL) e foi claborada no pafs pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), 6rgao cria- do em 1955, ligado ao Ministério da Educacao. O ISEB era © equivalente funcional da ESG, mas seu antipoda na ideo- logia. Contando com intelectuais de prestigio, como Guer- reiro Ramos, Alvaro Vieira Pinto e Hélio Jaguaribe, buscou elaborar uma ideologia nacionalista e difundi-la por meio de cursos e conferéncias. Aos poucos, tornou-se um dos alvos prediletos dos ataques da direita e mesmo dos liberais con- servadores, Qs conflitos do tiltimo governo Vargas nao tinham desaparecido, mas eram amortecidos pelas altas taxas de de- senvolvimento econémico, em torno de 79% ao ano, que distribuiam beneficios a todos, operarios e patrées, indus- triais nacionais e estrangeiros. Os sindicatos tinham a pre- senga de Goulart na vice-presidéncia como garantia de bom relacionamento com o govern: o salario minimo real atin- giu seus indices mais altos até hoje. Os industriais nunca ti- nham tido incentivos tiv yenerosos, Restava o setor rural. Neste, seguindo a estratégia de Vargas, Kubitschek nao to- cou. Os proprietérios naturalmente ganhavam com 0 cres- cimento do mercado interno. Mas os trabalhadores perma- neceram fora da legislagdo social e sindical. Politicamente, Kubitschek apoiou-se na alianga dos dois grandes partidos, PSD e PTB, que lhe deram sustentagao até o final. Era alian- ga que bem revelava sua politica dg conciliagao de interes- ses. O PSD tinha sua base entre os proprietarios rurais, nas 133 Jose MURILO DE CARVALHO velhas oligarquias do interior; o PTB era um partido urba- no, com forte apoio na classe operdria e no sistema sindical. Enquanto a questo agraria nao fosse tocada, o acordo era possivel e funcionou satisfatoriamente. ‘Ao final do periodo, no entanto, ja surgiam sinais de difi- culdades. Os nacionalistas mais radicais mostravam insatisfa- so com a abertura ao capital estrangeiro e se opunham a acordos com o Fundo Monetério Internacional (FMI). A es- querda alegava que o pacto desenvolvimentista beneficiava mais a burguesia que o operariado. Comecaram a surgir exi géncias de que as reformas fossem estendidas ao setor agré- rio, Mas Kubitschek teve 0 mérito de encerrar em paz seu mandato e passar a faixa presidencial ao sucessor. Foi faga- nha que até hoje nenhum outro presidente civil, eleito popu- larmente depois de 1930, foi capaz de repetir. Seu sucessor, Janio Quadros, foi eleito em 1960 com 48,3% dos votos, derrotando o candidato da coligacio PSD/ PTB, general Henrique Lott. Quadros foi apoiado pela UDN, mas nao pertencia ao partido e nunca se submeteu a seus di- tames, Era pessoa imprevisivel, que fizera carreira politica metedrica e tinha grande capacidade de mobilizar apoio po- pular, sobretudo das classes médias, Sua vitéria foi um feito pessoal c nao partidario, Isto ficou evidente pelo fato de seu vice-presidente, um dos principais politicos da UDN, ter sido derrotado por Joao Goulart, candidato a vice na chapa do PSD/PTB. Nao fosse o carisma pessoal de Quadros, as forcas varguistas teriam mantido sua tradicional hegemonia. De qualquer modo, por culpa de uma legislagao defeituosa, 0 pais ficou na situagio de ter um presidente ¢ um vice-presidente cleitos por forgas politicas antagénicas. O governo de Janio Quadros foi curto. Ele tomou posse 134 em janeiro de 1961 e renunciou em agosto desse mesmo ano, alegando impossibilidade de governar. Nunca esclareceu satisfatoriamente as razGes da rentincia. A explicagao mais provavel é que ela teria sido um estratagema para conseguir poderes especiais do Congresso para governar discricionaria- mente, Para o éxito do plano, Quadros contaria com a in- compatibilidade entre os militares e o vice-presidente Joo Goulart, que, no momento, convenientemente para Janio, se achava na China comunista em visita de cortesia. O apoio popular a Quadros e o veto militar a Goulart, segundo esta hipétese, fariam com que a remtincia nao fosse aceita ¢ 0 presidente ganhasse do Congresso os poderes extraordi rios que desejava, Se foi este o célculo, o fracasso foi total. A rentincia foi aceita imediatamente pelo Congresso. Mas a previsio sobre a reagio dos militares fora correta. Os ministros militares de- clararam nao aceitar a posse do vice-presittente, instalando- se uma crise politica, Renovou-se a disputa que dividia politi- cose militares desde o governo de Vargas. © comandante do Il] Exército, sediado no Rio Grande do Sul, estado natal do vice-presidente, recusou-se a aceitar a decisio dos ministros militares e defendeu a posse como previa a Constituigéo. Sua posigio foi apoiada por setores legalistas das forgas armadas ¢, naturalmente, por todas as forgas populistas e de esquerda geradas no bojo do varguismo. Por dez dias, o pais se viu a beira da guerra civil. A solu- ¢4o encontrada pelo Congresso foi adotar um sistema parla- mentarista de governo em substituigdo ao presidéncialismo. Com isto, mantinha-se a sucesso dentro da lei e, ao mesmo tempo, retirava-se do presidente grande parte de seus pode- res. Mas foi solugio de emergéncia. Desde o primeiro mo- 13s mento, Goulart e as forgas que o apoiavam buscaram rever- ter a situagdo e restaurar 0 presidencialismo. Depois de uma série de primeiros-ministros que nao conseguiram governar, © Congresso marcou um plebiscito para janeiro de 1963 para decidir sobre o sistema de governo. Como era de esperar, 0 presidencialismo venceu por grande maioria e Goulart assu- miu os plenos poderes de um presidente. ‘A partir do plebiscito, a luta politica caminhou rapidamen- te para radicalizagao sem precedentes. Os conflitos reduairam- se cada vez mais & oposicao esquerda/direita, sem deixar es- aco para negociago. As direitas civil e militar comegaram a organizar-se e preparar-se para o confronto. Surgitam orga- nizagées como o Instituto de Pesquisas ¢ Estudos Sociais (PES), financiado por empresarios nacionais e estrangeiros; 6 Instituto Brasileiro de Ago Democritica (IBAD), que apoia- va financeiramente politicos da oposigio e organizagées sin- dicais e estudantis contrérias ao governo; a Ago Democrati- ca Parlamentar (ADP), que reunia deputados conservadores de varios partidos. Essas organizagdes vinham unir-se a ou- tras mais antigas, como as associagdes comerciais e industriais, as associagées de proprietérios rurais, parte da hierarquia da Igreja Catélica, e a ESG. © bordao do anticomunismo foi usado intensamente. Planos para derrubar o presidente come garam a ser tragados, contando com a simpatia do governo norte-americano, Do lado da esquerda ndo houve menor atividade, embo- aa unidade fosse mais fragil. O esquema sindical do Esta- do Novo rendeu nesse momento seus melhores frutos polf- ticos. As ciipulas sindicais e dos IAPs tinham passado para 0 comando de Iideres mais auténticos, alguns deles membros do Partido Comunista. Organizagdes nacionais unificadas de 136 trabalhadores, nao permitidas pela CLT, comegaram a sur- gir, tais como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e o Pacto de Unidade e Agao (PUA). Entre os anos de 1962 e 1964, varias greves, ou ameacas de greve, de natureza poli- tica foram feitas, em geral com o apoio do Ministério do ‘Trabalho e de grandes companhias estatais, como a Petrobras. Em 1962, houve greve a favor do plebiscito sobre a volta do presidencialismo. Em 1963, houve ameacas de greve em fa- vor das reformas de base, do movimento dos sargentos € contra 0 estado de sitio, Ferrovisrios, portudrios, metalir- gicos, petroleiros, todos operdrios de empresas estatais, es- tavam sempre entre os principais sustentaculos das greves e movimentagées politicas. A Unido Nacional dos Estudantes (UNE) também adqui- riu grande dinamismo e influéncia. Com algum apoio entre estudantes universitérios, na época pouco maise 100 mil, a ‘UNE envolveu-se, ao lado do CGT e outras organizagées, em todas as grandes negociagées politicas, frequientemente com © apoio do Ministério da Educagéo, Um deputado do PTB, Leonel Brizola, organizou os “Grupos dos Onze”, com carac- terfsticas paramilitares, preparados para agir & margem dos mecanismos legais. No Congresso, formou-se uma Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) que acolhia deputadus de varios partidos comprometidos com a causa nacionalista ¢ popular. Infiltrados em muitos desses movimentos estavam membros do Partido Comunista, sempre habil em utilizar as brechas do sistema para chegar ao poder. Dissidéncias desse Partido também se organizavam, como o Partido Comunista do Brasil (PC do B) ¢ Politica Operdria (Polop), ambos de orientagao maoista. Todas essas organizag6es tinham pouco suporte popular. 137 José muRILO Df CARVALHO ‘A mobilizagao politica, no entanto, atingiu também as bases da sociedade. A Igreja Catélica comegara a abandonar sua tradicional posigao politica reacionéria e investia no movi- mento estudantil, no movimento operdrio e camponés, na educagao de base. Seu brago mais politizado era a Agao Po- pular (AP), um desdobramento da Juventude Universitéria Catdlica (JUC). © Movimento de Educagio de Base (MEB), inantido pela Conferéncia Nacional dos Bispos, fornecia apoio logistico para o trabalho da AP no movimento de sindicalizagio rural. A UNE, por sua ver, desenvolveu intenso trabalho cultural de mobilizacao politica. Criou um Centro Popular de Cultura em que trabalhavam artistas de talento, sobretudo miisicos. Caravanas artisticas percorriam as princi- pais cidades apresentando shows em que a arte se misturava estreitamente & propaganda das idéias reformistas. O ISEB promovia conferéncias e edicdes baratas de livros de cons- cientizagao politica. ‘Agrande novidade, no entanto, veio do campo. Pela pri- meira vez na hist6ria do pais, excetuando-se as revoltas cam- ponesas do século XIX, os trabalhadores rurais, posseitos ¢ pequenos proprietatios entraram na politica nacional com voz prépria, O movimento comecou no Nordeste em 1955, sob ‘0 nome de Ligas Camponesas. Ganhou notoriedade com a adesio de um advogado e deputado com grande talento mobilizador, Francisco Julio. Sociedades civis, as Ligas esca- pavam & legislagao sindical e, portanto, ao controle do Mi- nistério do Trabalho. Mas ficavam também fora da protegao das leis trabalhistas, fato que lhes trouxe dificuldades na com- peti¢ao com os sindicatos. Em 1960 Juliao foi a Cuba, onde esteve novamente em 1961, acompanhado de dezenas de militantes. A partir daf, 138 CIDADANIA NO BRASIL a politica das Ligas radicalizou-se e o movimento passou a contar com o apoio financeiro de Cuba. A aproximagio com Cuba assustou ainda mais os proprietérios de terras, cuja reagio se tornou mais violenta, Os Estados Unidos também se inquietaram e comegaram a dirigir para o Nordeste pes- soal e recursos da Alianga para o Progresso. Uma parcela das Ligas optou decididamente pela luta armada, sob @ orienta- go cubana. Iniciou-se a construgio de campos de treinamen- to em Goiés. Em 1963, o governo promulgou um Estatuto do Trabalhador Rural, que pela primeira vez estendia ao cam- po alegislagio social e sindical. O impacto maior do Estatuto foi sobre o proceso de formagio de sindicatos rurais, tor- nado agora muito mais simples e desburocratizado. Impul- sionado por grupos de esquerda, inclusive a Igteja ea AB o sindicalismo rural espalhou-se com rapidez pelo pais, rele- gando as Ligas Camponesas a segundo plano. Em 1964, a Confederagao dos Trabalhadores na Agricuttura (Contag), formada nesse ano, j4 englobava 26 federagdes e 263 sin catos reconhecidos pelo Ministério. Quase 500 sindicatos aguardavam reconhecimento. Os sindicatos, em regime populista, tinham sobre as Ligas a enorme vantagem de po- der contar com 0 apoio do governo e da grande maquina sindical e previdencidria. A vinculagio ao governo reduz mas nio destréi a impor- tancia da emergéncia do sindicalismo rural. Em 1960, 55% da populagao do pais ainda morava no campo, e o setor pri- mério da economia ocupava 54% da mao-de-obra. Desde a aboligao da escravidao, em 1888, 0 Estado nao se envolvera nas relagGes de trabalho agricola, se excetuarmos a lei de 1903, que teve pouca aplicagéo, Nem mesmo as liderangas de 1930 € 0 governo populista de Vargas tiveram vontade ou forga para 139 José MURILO DE CARVALHO fazé-lo. Os trabalhadores agricolas tinham ficado & margem da sociedade organizada, submetidos ao arbitrio dos proprie- tatios, sem gozo dos direitos civis, politicos e sociais. Agora cles emergiam da obscuridade e o faziam pela mio do direito de organizagao e num regime de liberdade politica. Daf que seu movimento aparecia como mais ameacador do que a sindicalizagao urbana dos anos 30, A ameaga parecia mais real por vir o sindicalismo rural acoplado a um movimento nacio- nal de esquerda que, entre outras mudangas estruturais, re- ma agréria. Esta expressfo era andtema para os proprictarios, cuija Feagio nio se fez esperar. Muitos fa- zendeiros se organizaram e se prepararam para resisténcia armada ao que consideravam um perigo de expropriagio de suas terras ao estilo soviético ou cubano. Em alguns pontos do pais houve conflitos violentos envolvendo fazendeiros ¢ trabalhadores rurais. ‘A mobilizagao politica se fazia em torno do que se cha- mou “reformas de base”, termo geral para indicar reformas da estrutura agréria, fiscal, bancéria e educacional. Havia ainda demandas de reformas estritamente politicas, como 0 voto para os analfabetos e para as pragas de pré e a legalizacao do Partido Comunista. Suboficiais e sargentos das forgas arma- das podiam vorar mas nfo podiam ser eleitos. A eleigao de sargentos tornou-se tema politico importante, pois revelava a politizagao da base da instituigao militar, uma ameaga & hie- rarquia e A disciplina, © problema da hierarquia militar adquiriu contornos reais em setembro de 1963, quando sargentos da Marinha e da Acrondutica se rebelaram na nova capital, Brasflia, pren- dendo o presidente da Camara dos Deputados ¢ um minis- tro da Suprema Corte. Os sargentos alegavam como motivo 140 para a revolta uma decisio do Supremo Tribunal contréria a seu direito de concorrer a postos eletivos. Alguns deles, con- fiando em decisio favoravel, tinham-se candidatado e sido eleitos. Seu mandato era agora declarado nulo pela justica, ‘A gravidade da revolta cresceu quando a UNE e o CGT de- ram seu apoio aos sargentos. Além do aspecto politico, o epi- s6dio refletia também a insatisfagio dos sargentos com sua situagio funcional. A insatisfagao se devia aos baixos soldos € também as regras de promogio e disciplina. Os sargentos necessitavam, por exemplo, da permissio dos superiores para casar. Muitos deles aproveitavam o tempo livre para freqilen- tar cursos universitarios ¢ sentiam-se intelectualmente iguais a0s oficiais, que, no entanto, gozavam de muitos privilégios aeles negados. O presidente achava-se imprensado entre 0s conspirado- res de direita, que 0 queriam derrubar, ¢ os setores radicai da esquerda, que o empurravam na diregao de'medidas cada vex mais ousadas. Incapaz de determinar um curso proprio de acao, cedeu afinal & esquerda e concordou em realizar gran- des comicios populares como meio de pressionar 0 Congres- so a aprovar as “reformas de base”. Alguns de seus aliados falavam mesmo em substituir o Congresso por uma assem- bléia constituinte, medida abertamente revoluciondria. As li- derangas sindicais sentiam-se confiantes em sua capacidade de mobilizar as bases, o mesmo acontecendo com as liderangas estudantis. Os generais que apoiavam o presidente subestima- vam a forga da oposigio militar. O primeiro grande comicio foi realizado no Rio de Janeiro em margo de 1964. Era sexta-feira, 13. O ntimero e 0 dia da semana eram de mau agouro. A supersti¢do mos- trou sta forga. Calculou-se a multidao reunida em frente & Jost MURILO DE CARVALNO. Central do Brasil em 150 mil pessoas, muitas para 4 trans- portadas com 0 auxilio de sindicatos e empresas estatais, sobretudo a Petrobras. Forte protegio militar guardava 0 comicio. Foram muitos os discursos inflamados, pedindo reformas e constituinte. © presidente nao ficou atras. Além de discurso populista, assinou dois decretos, um deles nacio- nalizando uma refinaria de petréleo, o outro desaproprian- do terras as margens de ferrovias ¢ rodovias federais e de barragens de irrigagao. “O decreto mais explosivo era o da desapropriacao de ter- ras. A maior dificuldade legal & reforma agréria estava na Constituigéo, que exigia pagamento em dinheiro das terras desapropriadas. O pagamento em dinheiro elevava muito os custos da reforma, e 0 Congreso recusava-se a emendar a Constituigio nesse item. © decreto era um desafio presiden- cial aos legisladores. Como tal, serviu aos opositores de argu- mento para afirmar que 0 presidente ameagava a legalidade e o sistema representativo. Para os proprietarios rurais, era mais as do governo. uma prova das intengées revolucion: A partir do comicio do dia 13, os acontecimentos se pre- cipitaram. No dia 19 de margo um comicio foi organizado em Sio Paulo em protesto contra o do Rio de Janciro. Pro- movido por organizagées religiosas, soh inspiracao de um padre norte-americano e financiado por homens de negécio paulistas, 0 comfcio, calculado em 500 mil pessoas, centrou sua retdrica no perigo comunista que se alegava vit do go- verno federal. Outros comicios semelhantes foram planeja- dos para outras capitais sob o lema “Marcha da Familia com Deus pela Liberdade”, um apelo astucioso aos Sentimeritos religiosos da grande maioria da populacao. Em 26 de margo de 1964, mais de mil marinheiros e fuzileiros navais se 142 revoltaram no Rio de Janeiro, entrincheirando-se na sede do Sindicato dos Metaltirgicos. Os marinheitos tinham-se or- ganizado em uma associagao e pediam melhoria de condi ‘g6es de trabalho. Seu lider, cabo Anselmo, foi posteriormente identificado como agente da CIA americana tendo ainda colaborado com os érgios de repressio durante os gover- nos militares. A reagio do presidente foi desastrosa. Substi- tuiu o ministro da Marinha por outro, indicado pelo CGT. O novo ministro anistiou os revoltosos. Como na revolta dos sargentos, o fato de terem os marinheiros utilizado a sede de um sindicato revivia o espectro de uma alianga revoluci- onéria de operirios e soldados. Os oficiais das trés forgas reagiram pela voz do Clube Militar e do Clube Naval. A revolta dos marinheiros teve efei- to decisivo, pois os oficiais ainda dispostos a sustentar a le- galidade se viram sem argumentos diante da ameaga que a insubordinagio significava para a sobrevivénttia da organi- zagio militar. Agora seus interesses corporativos imediatos estavam ameagados. Muitos deles ou passaram a apoiar a conspiragao ou deixaram de a ela se opor. A essa altura, 0 dia 2 de abril j4 tinha sido escolhido como a data da revolta contra o presidente. Goulart ainda deu um motivo adicio- nal aos conspiradores. Contra o conselho enfitico de seus auxiliares, inclusive do futuro presidente eleito Tancredo Neves, compareceu no dia 30 de margo a uma reuniao de sargentos da Policia Militar do Rio de Janeiro e fez. um dis- curso radical, transmitido pela televisio para todo o pais. Foi a gota d’agua. Os conspiradores anteciparam a revolta para o dia 31 de margo. Tropas do Exército sairam de Mi- nas Gerais €dirigiram-se para o Rio de Janeiro. Seguiram- se momentos de expectativa quanto ao comportamento dos 143 comandos militares. O destino do presidente foi selado quan- do nao aceitou sugestées do comandante de Sao Paulo, ge- neral Amauri Kruel, de repudiar o CGT ¢ 0 comunismo. As tropas de Sao Paulo aderiram as de Minas, ¢ 0 presidente no quis continuar aluta. Vou para Brasilia e depois para o Rio Grande do Sul, onde Leonel Brizola insistiu na resistén- cia. A sugestio nao foi aceita. Goulart exilou-se no Uruguai, enquanto o Congresso colocava em seu lugar 0 sucessor le- gal, o presidente da Camara dos Deputados. ‘No auge da crise, revelou-se com nitidez a natureza de ciipula da organizacio sindical. Os confiantes dirigentes sin- dicais convocaram uma greve geral para o dia 31 de margo em oposigio ao golpe. Seu apelo nao foi ouvido. As grandes massas em nome das quais falavam os lideres nao aparece- ram para defender o governo. As que apareceram foram as da classe média, no dia 2 de abril, para celebrar a queda do presidente. A grande mobilizagio politica por que passara o pais acabava em verdadeiro anticlimax. Apesar do grande barulho feito, via-se agora que o movimento popular era um castelo de cartas, CONFRONTO E FIM DA DEMOCRACIA © perfodo de 1930 a 1937 representou um primeiro ensaio de participagéo popular na politica nacional. Foi tentativa ainda hesitante e mal organizada. Nao houve tempo para 0 aprendizado da participagao, para a organizagio de part dos ou movimentos bem enraizados. Além disso, os princi- pais movimentos populares, a ANL e AIB, nao eram parti- cularmente simpaticos a democracia representativa. O obje- 144 tivo de quase todas as correntes politicas da época, em con- sonancia com o ambiente internacional, era o de conquistar © Estado, com ou sem o apoio popular. Ganharam os que j4 estavam no poder. Apés 1945, o ambiente internacional era novamente fa- voravel a democracia representativa, ¢ isto se refletiu na Constituigio de 1946, que, nesse ponto, expandiu a de 1934. © voto foi estendido a todos os cidadaos, homens e mulhe- res, com mais de 18 anos de idade. Era obrigatério, secreto € direto. Permanecia, no entanto, a proibi¢o do voto do analfabeto. A limitagdo era importante porque, em 1950, 57% da populagio ainda era analfabeta. Como o analfabe- tismo se concentrava na zona rural, os principais prejudica- dos eram os trabalhadores rurais. Outra limitagao atingia os soldados das forcas armadas, também excluidgs do direito do voto. . A Constituigio confirmou também ajustica eleitoral, cons- titufda de um Tribunal Superior Eleitoral na capital federal, ¢ tribunais regionais nas capitais dos estados. Cabia a justiga eleitoral decidir sobre todos os assuntos pertinentes a organi- zagio de partidos politicos, alistamento, votagao e reconhe- cimento dos eleitos. Todo 0 processo ficava, assim, nas mios de juizes profissionais, reduzindo, embora nao eliminando, as possibilidades de fraude. Bssa legislagao nao sofreu modifica- Ses até 1964. Mas ao final do perfodo jé eram questionados 08 artigos que proibiam 0 voto do analfabeto e dos soldados. Duas decisdes tomadas no perfodo representaram retrocesso democratico. A primeira foi em 1947, quando o Partido Co- munista teve cassado seu registro e foi proibido de funcionar legalmente. O PCB tinha 17 deputados federais e conseguira 10% dos votos na eleigo presidencial de 1945. O argumen- 14s Jose MURILO DE CARVALHO / to para a cassagao foi um dispositivo constitucional que proi- bia a organizacao de partidos ou associagdes que contrarias- |_sem o regime democratico. A outra decisao foi de 1963. Em plena efervescéncia politica, o Tribunal Superior Eleitoral declarou que suboficiais e sargentos nao podiam ser eleitos. A decisio da justiga causou protestos ¢ foi o motivo alegado para a revolta dos sargentos em 1963. Apesat das limitagées, a partir de 1945 a participagao do povo na politica cresceu significativamente, tanto pelo lado das eleig6es como da acao politica organizada em partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras associag6es. O aumento da participagio eleitoral pode ser demonstrado pelos mime- ros que se seguem. Em 1930, os votantes nao passavam de 5,6% da populagio. Na eleigao presidencial de garam a 13,4%, ultrapassando, pela primeira vez, os dados de 1872. Em 1950, j4 foram 15,9%, e em 1960, 18%, Em niimeros absolutos, os votantes pularam de 1,8 milhao em 1930 para 12,5 milhdes em 1960. Nas eleigdes legislativas de 1962, as altimas antes do golpe de 1964, votaram 14,7 milhdes. O nimero de eleitores inscritos era em geral 20% acima do dos votantes, devido & abstengao que sempre exis- tia, apesar de ser 0 voto obrigatério. Em 1962, por exem- plo, o eleitorado era de 18,5 milhGes, correspondente a 26% da populagao total. ‘As praticas eleitorais ainda estavam longe da perfeigao, apesar da justiga especializada. A fraude era facilitada por nao haver cédula oficial para votar. Os proprios candidatos, distribufam suas cédulas. Isso permitia muita irregularida- de, O eleitor com menos preparo podia ser facilmente enga- nado com a troca ou anulagéo de cédulas por cabos eleito- sais. Coronéis mantinham varias praticas antigas de compra 146 CIDADANIA Wo aaasit de voto € coergao de eleitores. A seu mando, cabos eleito- rais ainda levavam os eleitores em bandos para a sede do municipio e os mantinham em “currais”, sob vigilancia con: tante, até o momento do voto. Os cabos el itorais entrega- vam aos eleitores envelopes fechados com as céduilas de seus candidatos, para evitar trocas. O pagamento podia ser em dinheiro, bens ou favores. Por via das dividas, pagamento em dinheiro era muitas vezes feito da seguinte maneira: me- tade da cédula era entregue antes da votacio e a outra metade depois. O mesmo se fazia com sapatos: um pé antes, outro depois. Mas nio ha divida de que se faziam grandes progressos em diregao a uma elei¢ao mais limpa, A rapida urbanizagao do pafs facilitava a mudanga. O eleitor urbano era muito menos vulneravel ao aliciamento e & coergio, Ele era, sim, vulneravel aos apelos populistas, e foi ele quam deu a vite- ria a Vargas em 1950, a Kubitschek em 1955, a Goulart (como vice-presidente) em 1960. O populismo pode, sob certos aspectos, ser considerado manipulagao politica, uma vez que seus lideres pertenciam as elites tradicionais e nao tinham vinculagao auténtica com causas populares. Pode-se alegar que 0 povo era massa de manobra em disputas de grupos dominantes. Mas o controle que tinham esses lide- es sobre os votantes era muito menor do que na situagao tradicional. Baseava-se em apelos paternalistas ou caris- miticos, nao em coergio. Exigia certo convencimento, cer- ta relagéo de reciprocidade que nao era puramente indivi- dual. Vargas e seus sucessores exibiam como crédito a legis- lagdo trabalhista ¢ social, os aumentos de salério mfnimo. Sobretudo, a relagdo populista era dinamica. A cada eleigio, fortaleciam-se os partidos populares e aumentava o grau de var José MuRILO DE CARVALHO. independénciae discernimento dos eleitores. Era um apren- dizado democratico que exigia algum tempo para se conso- lidar mas que caminhava com firmeza. progressive amadurecimento democratico pode ser verificado na evolugao partidaria, Como vimos, foi esse 0 primeiro periodo da historia brasileira em que houve parti- dos nacionais de massa, diferentes dos partidos nacionais do Império, concentrados em estados-maiores, dos partidos es- taduais da Primeira Repiblica e dos movimentos nacionais néo-partidarios da década de 30. Embora sobrevivessem in- fluéncias regionais, os partidos de 1945 eram organizados nacionalmente e possufam programas definidos, apesar de muitos se guiarem mais pelo pragmatismo. Eram partidos no sentido moderno da palavra, e apenas necessitavam de tem- po para criar raizes na sociedade. Havia 12 partidos nacionais, quase todos fundados ao fi- nal da ditadura do Estado Novo. Os principais eram os dois criados por Vargas, 0 PSD ¢ 0 PTB, e o que reuniu a maioria da oposigo, a UDN. Para criar o PSD, Vargas simplesmente reuniu os interventores dos estados e congregou em torno do partido as forcas dominantes locais. © PT'B foi criado com base na estrutura sindical corporativa. A UDN reunia a opo- sigio liberal ¢, no inicio, também socialista. Ao redor desse niicleo, varios partidos menores se moviam a direita e a es- querda. Alguns ainda presos a antigas praticas estadualistas, como o Partido Republicano (PR), outros na linha populista, ‘como o Partido Social Progressista (PSP), outros da esquerda democritica, como 0 Partido Socialista Brasileiro (PSB), ou- tros ainda de reformismo moderado, como o Partido Demo- crata Cristo (PDC). Conforme vimos, 0 Partido Comunista teve seu registro cassado em 1947. 148 CIOADANIA NO BRASIL Como era de esperar, dada a novidade da experiéncia, houve grande movimentagao de politicos dentro desses par- tidos, e entre eles, durante os quase 20 anos que duraram. A analise das mudangas nao é simples, mas ha concordancia em tomo de alguns pontos. Houve um processo de nacionaliza- go que favoreceu os pequenos partidos. De inicio, s6 0s maiores tinham estrutura nacional. Eles foram perdendo for- ga. medida que os menores se tornavam mais competitivos. Os pequenos partidos (considerados como tais todos, menos PSD, UDN, PTB, PR, PSP) detinham 10,19 das cadeiras na Camara dos Deputados, em 1945; em 1962, tinham saltado para 48,7%. Houve, também, enfraquecimento dos partidos conservadores, se usarmos como medida a representagio na Camara dos Deputados. Considerando como principais par- tidos conservadores o PSD, a UDN e 0 PR, vé-se que deti- nnham 82,1% das cadeiras em 1945 e apenas 34,4% em 1962. Em contraste, partidos populistas como o PTB ¢ o PSP salta- ram de 7,6% para 16,7% no mesmo periodo. Pesquisas de opiniao paiblica feitas pelo Instituto Brasilei- ro de Opinio Péblica e Estatistica (IBOPE) em 1964, antes do golpe, em oito capitais, e sé recentemente trazidas a publi- co por Anténio Lavareda, revelam aspectos muito positivos. O primeiro deles € que 64% da populago dessas capitais ti- nha preferéncia partidaria, indice alto mesmo para padrées internacionais. Isto significa que a maioria acreditava no si tema partidario, aceitava-o como instrumento de representa- gio politica. A aceitagao dos partidos é ponto fundamental para saiide de qualquer sistema representativo, e nao deixa de ser surpreendente que em tio pouco tempo ela ja fosse to alta. Em termos de preferéncias, o PTB safa na frente com 29%, seguido da UDN com 14% e do PSD com 7%. Os da- 149 José MuURILO DE CARVALHO. dos confirmam, assim, 0 crescimento do trabalhismo, maior sem divida nas capitais. Outra revelagao das pesquisas de 1964 refere-se & orien- tagao ideolégica do eleitorado das oito capitais as vésperas do golpe. Enquanto as liderangas se radicalizavam, 0 eleitorado ‘mostrava tendéncia claramente centrista. © candidato prefe- rido para as eleig6es de 1965, que nao se realizaram, era Kubitschek, seguido de longe pelo candidato da UDN, Carlos Lacerda, um radical de direita. O radical de esquerda, Miguel Arrais, tinha pequena porcentagem das intengdes de voto. A nao haver 0 golpe, provavelmente 0 progressista moderado Kubitschek ganharia as eleigées. A tendéncia moderada era confirmada por outra pergunta da pesquisa. Indagados sobre gual a linha politica mais indicada para o governo, 45% dos pesquisados preferiram o centro, contra 23% que prefeririam adireita e 19% a esquerda. Diante da evolugao dos partidos e dessas informag6es so- bre o eleitorado, fica a pergunta: por que, afinal, a democra- cia foi a pique em 1964, se havia condigSes tio favordveis a sua consolidacio? A resposta pode estar na falta de convic- gio democratica das elites, tanto de esquerda como de direi- ta, Os dois lados se envolveram em uma corrida pelo contro- Je do governo que deixava de lado a pratica da democracia representativa, Direita e esquerda preparavam um golpe nas instituigGes. A direita, para impedir as reformas defendidas pela esquerda e para evitar 0 que achavam ser um golpe co- munista-sindicalista em preparagao. A esquerda, com Leonel Brizola & frente, para climinar os obstaculos as reformas ¢ neutralizar o golpe de direita que acreditavam estar em pre paragio. No calor da luta, foram sendo aos poucos abando- nadas as possibilidades de negociago no Congresso e nos 150 partidos. As liderangas caminharam na dire: tamento fatal para a democracia. Pelo lado da direita, 0 golpismo nio era novidade. Desde 1945, liberais e conservadores vinham tentando eliminar da politica nacional Vargas e sua heranca. © liberalismo br: ro nao conseguiu assimilar a entrada do povo na politica. O maximo que podia aceitar era a competitividade entre seto- res oligarquicos. O povo, representado na época pela pratica populista e sindicalista, era considerado pura massa de ma- nobra de politicos corruptos e demagogos e de comunistas liberticidas. © povo perturbava o funcionamento da demo- cracia dos liberais. Para eles, o governo do pais nio podia sair do controle de suas clites esclarecidas. “A esquerda também nao tinha tradigéo democratica, Ou * melhor, sua parte democratica era muito reduzida. A parcela __ maior, constituida pelo Partido Comunista, Wesprezava a de- | mocracia liberal, vista como instrumento dé dominagao bur- guesa. Se a aceitava era apenas como meio de chegar ao po- ler. O lado nacionalista da esquerda, herdeiro de Vargas, cujos principais representantes eram Goulart e Brizola, também nao morria de amores pela democracia. Aceitava-a na medida em que servisse a seus propésitos reformistas. Para ambos os la- dos, direita ¢ esquerda, a democracia era, assim, apenas um meio que podia e devia ser descartado desde o momento que no tivesse mais utilidade. Estabeleceu-se uma corrida dentro da prépria esquerda em diregao a um confronto final. Pressionado por Brizolae pelos ddicalistas, ¢ com receio de perder a lideranga das reformas, © presidente deixou-se levar a uma radicalizagio que se tor- nou suicida quando atingiu a disciplina das forcas armadas, Alienado 0 apoio militar, nao the restava outra alternativa de um enfren- 184 Jose MURILO DE CARVALHO sendo a derrota. A expectativa de alguns setores de esquerda, de que o pais estaria preparado para uma insurreigio popular do tipo bolchevique de 1917, nao passava de delitio, que se- ria comico se nao pudesse ter conseqtiéncias trégicas. Bastaria a falta de convicgao democrética para explicar 0 comportamento das liderancas? Creio que nao. O proceso democrético era incipiente. Se a opiniao piblica e 0 eleitora- do estavam prontos para uma solugao democratica negocia- da, eles nao tinham condiges de passar essa informagao para as liderangas fora do momento eleitoral. Em outras palavras, nao havia organizagées civis fortes e representativas que pu- dessem refrear o curso da radicalizagao. A estrutura sindical era de cépula, assim como o era. estudantil. Controlando seus postos de diregio, lideres de esquerda eram vitimas de ilusio de 6tica, julgavam estar liderando multidées quando apenas dirigiam uma burocracia. A descoberta de que tudo nao pas- saya de um castelo na areia foi feita tarde demais. A precipi- taco do confronto pés a perder o que se tinha ganho em ter- mos de mobilizacio e aprendizado politico, & excegao da par- ticipagao eleitoral, que nunca deixou de crescer nos anos se- guintes. O pais iria entrar em nova fase de supressao das li- berdades, em novo regime ditatorial, desta vez sob o controle direto dos militares. Sintomaticamente, os direitos sociais quase nao evoluiram durante o periodo democratico. Desde o final do Estado Novo, os técnicos da previdéncia buscavam, com o apoio de Vargas, unificar o sistema e expandi-lo para abranger toda a popula- io trabalhadora. Mas eram grandes as resisténcias. Como cada Instituto tinha leis préprias e burocracia propria, os que esta- vam em melhor condigo, como o dos bancérios ¢ o dos ferro- vidrios, se opunham & unificagéo. A burocracia dos institutos 152 CIDADAMIA NO oRASIL também receava perder poder e influéncia. Seguradoras priva- das que cobriam a drea de acidentes de trabalho igualmente resistiam a mudanga. Um projeto de lei enviado ao Congresso em 1947 para unificar o sistema foi seguidamente adiado, Em seu segundo governo, Vargas voltou a carga e fez or- ganizar um congresso sobre a previdéncia, em 1953, sob a presidéncia de Joao Goulart. Mas as divisées continuavam grandes, e s6 em 1960, sob o governo de Goulart, foi aprova- daa Lei Organica da Previdéncia Social. A lei era um com- promisso. Uniformizava as normas da previdéncia, mas néo unificava o sistema, pois permaneciam os varios institutos. ‘Também mantinha em maos privadas os seguros de aciden- tes. O ponto positivo foi a ampliagao da cobertura previ- denciéria, que passou a incluir os profissionais liberais. A outra tentativa de ampliar o sistema verificou-se com 0 Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, quescomo vimos, estendeu ao campo a legislacao trabalhista. O Estatuto previa ainda a extensio da previdéncia ao campo. Mas essa parte da lei permaneceu letra morta. Nao foram previstos recursos para aimplantagio € 0 financiamento dos beneficios. Os trabalha- dores rurais continuaram excluidos, apesar do grande niime- ro de sindicatos que se organizavam e da énfase do governo na reforma agréria. Permaneciam também fora da previdén-| cia 0s trabalhadores autdnomos e as empregadas domésticas. | Sem nenhuma organizagio, as empregadas constituiam um | grande mercado informal de trabalho em que predominavam | relag6es pessoais que lembravam priticas escravistas. > 13

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