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Michael J. Sandel Justica O que é fazer a coisa certa Treducao de Helo‘sa Matias ¢ Maria Alice Maximo 6 edigio Un n1Z (00 BESTE, Rio de Jancire 2012 Copyright © 2009 dy Michael Sandel, 2009 + PROJETO GRAFICO DE MIOLO Evelyn Gramach @ Joao de Souza Leite “Titolo onginal em inglés Justice Para Kiku, com amor CP-DRASIL. CATSLOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS FDITORES DE LIVROS, RJ Saadel, Mick S198) “Jostiga~O gue & fazer e cols cents / Michael J Sande sadugdo 6! 66. dv Heloisa Matias e Mari Alice Maxis), ~ 6° edigio Rede uaeieas CCiheagso Brusca, 2012, Teadogto se: Jone Inulerbshogcata ISBN 978-85-200-1030-3 4. Josia Flosolia. 2, Valores. 3. ria. P. Tilo pp. 1722 35 po. 1722 PIES, Totos os direitos eservados. Proibids a reprodusdo, armazenamiento "you ensmissto de partes deste livro, atraves de quaisqucr meios, em FFs, previa auiorizaglo por eseriva, 7 erin Texto cevicado segundo 0 novo Acordo Ortogrificn da Lingua Portuguesa Dirsitos desta edigho adguirigns pete EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA Uni selo da EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA, ua Argentina 171 ~ 20921-380 ~ Rio de Janeiro, RJ - Tel: 2585-2000 Seja um leitar preferencial Record. Cadastre-se e receba informagbes sabre nossos fangamentas © nossas promugies. Atendimento ¢ venda diets 30 keitor: ndireso@record.eom.bs ou (21) 2585-2002 Impresso no Basil 2012 ‘Sumario capiruco 4 Fazendo acoisacerta 9 capirulo2 principio da maxima felicidade /O utilitarismo 43 capiruco3 ‘Somos donos de nds mesmos? / A ideologia libertaria 75 capinuLo4 Prestadores de servigo / O mercado € conceitos morais 97 capiruLos 0 que importa é 0 motivo Immanuel Kant 133 capitulo 6 A questio da equidade /John Rawls 175 capitulo? Aaagio afirmativa em questio 207 capris 8 Quem merece 0 qué? / Aristoieles 229 capiruLog © que devemos uns aos outros? /Dilemas de lealdade 257 cariruto 10 Ajustiga eo bem comum 303 AGRADECIMENTOS 333 Inoice 335 wsirior Fazendo a coisa certa No vero de 2004, 0 furacio Charley pés-se a rugir no Golfo do México ¢ varreu a Flérida até o Oceano Atlantico. A tempestade, que levou 22 vidas e causou prejuizos de 11 bilhdes de délares,’ deixou também em seu rasteo uma discussiio sobre pregos extorsivos. Em um posto de gasolina em Orlando, sacos de gelo de dois délares passaram a ser vendidos por dez délares. Sem energia para refrigeradores ow ar-condicionado em pleno més de agosto, vero no hemislério nor- te, muitas pessoas ndo tinham alternativa sen3o pagar mais pelo gelo. Arvores derrubadas aumentaram a procura por serrotes € consertos de telhados. Prestadores de servigos cobraram 23 mil délares para tirar duas Arvores de um telhado. Lojas que antes vendiam normalmente pequenos geradores domésticos por 250 dolares pediam agora 2 mil délares. Por ‘ama noite em um quarto de motel que normalmente custaria 40 dolares* cobraram 160 a uma mulher de 77 anos que fugia do furacdo com 0 marido idoso e a filha deficiente. ‘Maitos babitantes da Flérida mostraramse revoltados com os pregos abusivos, “Depois da tempestade vém os abutres” foi uma das manchetes do USA Today. Um morador, 20 saber que deveria pagar 10.500 dolazes para remover uma drvore que caira em seu telhado, disse que era errado ‘queas pessoas “tentassem capitalizar A custa das dificuldades e da miséria dos outros”, Chatlie Crist, procurador-geral do estado, concordou: *Estou impressionado com o nfvel de ganancia que alguns certamente tém na alma 0 se aproveitar de outros que sofrem em consequéncia de um furacko.”! ‘A Florida tem uma lei contea pregos abusivos e, apés 0 furacio, 0 gat nete do procurador-geral recebeu mais de duzentas reclamagées. Alguns dos reclamantes ganharam agdes judiciais. Uma filial do Days Inn, em " ‘West Palm Beach, teve de pagar 70 mil délares em multas e restituigdes por cobrangas excessivas aos clientes.* Entretanto, quando Crist exigin o cumprimento da lei sobre pregos extorsivos, alguns economistas argumentaram que a lei — ¢ 0 ultraje plblico—baseava-se em um equivaco. Nos tempos medievais, filésofos tedlogos acreditavam que a troca de mercadorias deveria ser repida por uum “prego justo”, determinado pela tradigao ou pelo valor intrinseco das coisas. Mas nas suciedades de weready, obser varaini os economistas, 08 precos sao fixados de acordo com a oferta e a procura, Nao existe 0 que se denomina “prego justo”. “Thomas Sowell, economist partidario do livre mercado, considerou © termo “extorsio” aqui aplicado uma “expressio emocionalmente poderosa porém economicamente sem sentido, & qual a maioria dos economistas nao dé atencio, porque Ihes parece vaga demais". Em artigo no Tampa Tribuxe, Sowell procurou explicar “como ‘os pregos abusivos’ ajudaram os cidadaos da Flérida”. As despesas aumentam “quando os pregos sao significativamente mais altos do que aqueles aos quais as pessoas esto acostumadas”, escreveu Sowell. Mas “os niveis de precos aos quais voce porventura est acostumado” no so moralmen- te sacrossantos. Eles nio so mais “especiais ou ‘justos’ do que outros precos” que as condigdes do mercado — incluinde as provocadas por um furacdo — possam acarretar.* Pregos mais altos de gelo, agua engarrafada, consertos em telhados, geradores e quartos de motel tém a vantagem, argumentou Sowell, de limirar © uso pelos consumidores, aumentando 0 incentivo para que empresas de locais mais afastados fornecam as mercadoriase os secvigos de maior necessidade depois do furacdo. Se um saco de gelo aleanga dez, délares quando a Florida enfrenta falta de energia no calor de agosto, os fabricantes de gelo considerarao vantajoso produzir e transportar mais. Nao ha nada injusto nesses precos, explicou Sowell; eles simplesmente refletem o valor que compradores ¢ vendedores resolvem atribuir as coisas quando as compram e vendem.* Jeff Jacoby, comentazists econdmico que escreve para 0 Boston Glo- be, ctiticou as leis para preyos abusivos de forma semelhante: “Nao é 2 extorsio cobrar 0 que © mercado pode suportar. Nao é ganancia nem falta de pudor. E assim que mercadorias e servigos so fornecidos em ‘uma sociedade livre.” Jacoby ceconheceu que “os picos de pregos sio jrritantes, especialmente para alguém cuja vida acaba de ser langada em um turbilhdo por uma tempestade mortal”. Mas a ira publica nao € justificativa para que se interfia no livre mercado. Por meio de incenti- ‘vos aos fornecedores para que produzam mais mercadorias necessarias, 108 pregos apacentemente exorbitantes “trazem mais beneficios do que smnaleficios”. Jacoby concluis “Infernizar os comerciantes ndo vai acelerar a recuperaco da Flérida. Deixé-los trabalhar vai.’ 0 procurador-geral Crist (um republicano que mais tacde seria elei- to governadot da Flérida) publicou um texto em um jornal de Tampa defendendo a lei contra o abuso de pregos: “Em tempos de emergéncia, 0 governo nao pode ficar & sombra enquanto so cobrados as pessoas ppregos inescrupulosos no momento em que elas tentam salvar suas vidas ‘ou procuram as mercadorias basicas para suas familias depois de um furacio.” “Crist repudiou a ideia de que esses pregos “inescrupulosos” sejam reflexo de um comértcio verdadeiramente livre: Nao se trata de uma situacio normal de livre mereadlo, na qual pessoas que desejam comprar algo decidem liviemente entrar no mercado € ‘encontram pessoas dispostas a vender-thes o que desejam, na gual um prego obedece lei da oferta e da procura, Numa situaydo de emergéacia, compradores cuagidos nao tém liberdade. A compra de artigos basicos «ca busca de abrigo seguro s20 algo que lhes é imposto* [A discussao sobre abuso de pregos provocada pelo furacdo Charley levanta geaves questdes sobre moral ¢ lei: E errado que vendedores de mercadorias ¢ servicos se aproveitem de um desastce natural, cobrando tanto quanto o mercado possa suportar? Em caso positive, © que, se & que existe algo, a lei deve fazer a respeito? © Estado deve proibir abuso de pregos mesmo que, ao agit assim, interfira na liberdade de compra- Gores e vendedores de negociar da maneira que escolherem? 2 BEM-ESTAR, LIBERDADE € VIRTUDE Essas questées ndo dizem respeito apenas 4 mancira como.os individuos devem tratar uns aos outros. Elas também dizem respeito a como a lei deve ser e como a sociedade deve se organizar. Sio questées sobre justica, Para responder a elas, precisamos explorar o significado de justiga. Na verdade, jd comegamos a fazer isso. Se voce prestar atengao ao debate, notard que 08 argumentos a favor dac leis relativas ao abuso de pregos € contra elas giram em torno de teés ideias: aumentar bern-estar, res- peitar a liberdade e promover a virtude. Cada uma dessas ideias aponta para uma forma diferente de pensar sobre justica, A defesa usual dos mercados sem restrigdes baseia-se em duas pos- tulagdes — uma sobre bem-estar, outra sobre liberdade. Primeiro, os mercados promovem o bem-estar da sociedade como um todo por meio de incentivos para que as pessoas se esforcem a fim de fornecer as mercadorias que as outras desejam. (No dizer comum, frequentemente equiparamos 0 bem-estar & prosperidade econémica, emboza bem-estar seja um conceito mais amplo, que pode incluir aspectos nao econdmicos do bem-estar social.) Em segundo lugar, os mercados respeitam a liber- dade individual; em vez de impor um determinado valor as mercadorias € servigos, deixam que as pessoas escolham por si mesmas que valor atribuir a0 que compzam e vendem, Nao é de surpreender que os opositores das leis contra abuso de pregos invoquem esses dois argumentos usuais na defesa do livre mercado, Como 0s partidarios das leis contra abuso de precos respondem? Em primeico lugar, argumentam que o bem-estar da sociedade como um todo nao & realmente favorecido pelos pregos exocbitantes cobrados em momentos dificeis. Mesmo que os pregos altos originem um maior fornecimento de mercadorias, esse beneficio deve ser confrontado com a sobrecarga que tais pregos impdem iqueles com menor potencial para adquirir os bens. Para 03 abastados, os precos inflacionados de um galio de gasolina ou um quarto de motel durante uma tempestade podem ser um aborzecimento a maiss mas, para aqueles com posses mais modestas, tais precos cons- tituern uma dificuldade real, que pode levé-los a permanecer em locais 4 perigosos em vez de buscar seguranga. Os defensores das leis contra ‘© abuso de precos argumentam que qualquer estimativa do bem-estar geral deve considerar a dor e 0 sofrimento daqueles que sto obrigados ‘2 pagar mais por suas necessidades basicas durante uma emergéncia. Em segundo Iugar, 0s defensores das leis contra o abuso de pregos sustentam que, em determinadas condigées, o mercado livre nao é ver- dadeicamente livre. Como diz Crist, “compradores sob coagio ndo rém liberdacle, Sus compras de artigos para supric necessidades basicas, assim como a busca por abrigo sezuso, so algo que Ihes é imposto pela necessidade”. Se vocé estiver fugindo de um furacio com a familia, o -preco exorbitante que paga pela gasolina ou por um abrigo nio € real- mente uma transagio voluntiria. E algo mais proximo da extorsao. Assim, para decidir se as leis de precos abusivos se justificam, precisamos avaliar essas celacbes entre bem-estar e liberdade, Entretanto, precisamos também considerar outro argumento. Gran- de parte do apoio pablico as leis contra o abuso de pregos vem de algo mais visceral do que bem-estar ou liberdade. As pessoas se revoltam com “abutres” que se aproveitam do desespero alheio, ¢ querem pani- los — € nao recompensé-los com lucros inesperados. Tais sentimentos so muitas vezes descartados como emoges rancorosas que no devem interferir na politica paiblica ou na lei, Como escreve Jacoby, “demonizar 05 vendedores nao vai acclerar a recuperagao da Florida”."” O uttraje ante o abuso de pregos, no entanto, é mais do que uma raiva insensata. Ele poe em questio un argumento moral que deve ser levadoa sétio, O ultraje é0 tipo especifico de raiva que voc€ sente quando acredica que as pessoas esto conseguindo algo que no merecem. Esse tipo de ultraje é a raiva causada pela injustiga. Crist abordow a origem moral do ulrraje ao descrever a “gandncia que toma pessoa certamente tem na alma quando quer obter vantagem de al- guém que sofre no rastro de um furacdo”. Ele nio fez a ligagio explicita dessa observagio com as leis contra o abuso de pregos. Mas existe algo implicito em seu comentario, como o seguinte argumento, que pode ser chamado de argumento da virtude: a gandncia € um defeito moral, um modo mau de ser, especialmente quando tora as pessoas indiferentes 6 a0 sofrimento alheio. Mais do que um deleito pessoal, ela se contrapée a virtude ctviea, Em tempos de dificuldades, uma boa sociedade se mantém unida. Em vez de fazer pressio para obcer mais vantagens, as pessoas tentam se ajudar mutuamente. Uma sociedade na qual 0s vizinhos sio explo- rados para 2 obtengio de lucros financeiros em tempos de crise ndo € uma sociedade boa. A ganincia excessiva é, portanto, um vicio que a boa sociedade deve procurar desencorajar, na medida do possivel. As leis do abuso de precos podem ndo pér fim 4 ganiacia, mas podem ao menos resteingir sua expressdo descarada e demonstrar 0 descontenta- mento da sociedade. Punindo © campoztamento ganancioso ao invés de recompensilo, a sociedade afirma a virtude civica do sactifi compartilhado em prol do bem comum, Reconhecer a forga moral do argumento da virtude ndo é insistir no fato de que ele deva sempre prevalever sobre as demais consideragdes, Vocé poderia concluir, em alguns casos, que uma comunidade atingi da por um furacio deveria fazer um pacto com 0 diabo — permitir 0 abuso de pregos na esperanca de atrair de rogiGes distances um exército de prestadores de servigos para consertar telhados, mesmo ao custo moral de sancionar a ganancia. A prioridade é consertar telhados; as consideragdes de natureza social fieam para depois. O quese deve nover, entretanto, é que 0 debate sobre as leis contra o abuso de precos nao é simplesmente um debate sobre bem-estare liberdade. Ele também aborda a victude —o incentivo a atitudes e disposicées, a qualidades de cariter das quais depende uma boa sociedade, Allgumas pessoas, entre elas muitas que apotam as leis contra 0 abuso de pregos, consideram frustrante o argumento da vievude, A razio: ele parece depender mais de julgamento de valores do que 08 argumentos gue apelam para o bem-estar e a liberdade, Perguntar se uma diretriz vai acelerar a recuperagio econdmica ou travar 0 crescimento econd- mico nao envolve o julgamento das preferéncias populares. Parte-se do pressuposto de que todos preferem mais rendimentos a menos, ¢ nao se julga como cada um gasta seu dinheiro, Da mesma forma, perguncar se em condigées adversas as pessoas sio realmente livres para escolher nao io 6 requer que se avalie suas escolhas. A questo é se, ou até que ponto, as, pessoas estio livres em vez de coagidas, ‘A discussio sobre a virtude, em contrapartida, apoia-se na premissa de que a gandncia é uma falha moral que o Estado deveria desencorajar. ‘Mas quem deve julgar © que é virtude e 0 que é vicio? Os cidadios das diversas sociedades nao discordam quanto a essas coisas? E nao é peri oso impor julgamentos sobre a virtude por meio da lel? Em face desses Teiores, muitas pessoas sustentam que 0 governo deveria ser neutro no que diz respeito a virtude € vicios no The cabe tentar cultivar as boas atitudes ou desencorajar as més. ‘Assim, quando examinamos nossas reag6es a0 abuso de precos, ‘vemo-nos forgados em duas diregdes: sentimo-nos ultrajados quando as pessoas conseguem coisas que no mezecem; a gandncia predadora da miséria humana, no nosso entender, deveria ser punida, endo premiada. Apesar disso, ficamos preocupados quando os julgamenros sobre virtude sio Jevados para o caminho da lei. Esse dilema aponta para uma das grandes questdes da Silosofia pol tica: Uma sociedade justa procura promover a virtude de seus cidadiios? Ou a lei deveria ser neutra quanto as concepgdes concernentes a virtude, deixando os cidadaos livres para escolher, por conta prdpria, a melhor forma de viver? Scgundo uma ideia comumente aceita, essa questio divide o pensa- meato politico em antigo e moderno. Em um sentido importante, essa ideia esté correta. Aistételes ensina que a justica significa dar as pessoas © que elas merecem. E para determinar quem merece o qué, devemos estabelecer quais virtudes si0 dignas de honra e recompensa. Aristételes sastenta que nao podemos imaginar o que é uma Constituigio juste sem antes refletir sobre a forma de vida mais desejavel. Para ele, a lei nao pode ser neutra no que tange 4 qualidade de vida. Em contrapartida, filésofos politicos modernos — de Immanuel Kant, no século XVIII, a John Rawls, no século XX — afirmam que os, Principio de justiga que definem nossos direitos no devem basear-se em nenhuma concepeio particular de virtude ou da melhor forma de Vida. Ao contririo, uma sociedade justa respeita a liberdade de cada individuo para escolher a prépria concepgao do que seja uma vida boa. ” Pode-se entio dizer que as teorias de justiga antigas partem da virtude, ‘enquanto as modernas comegam pela liberdade. Nos préximos capitulos, exploraremos os pontos fortes e fracos dessas teorias. Entretanto, vale notar desde 0 inicio que essa contraposigdo pode levar a conclusdes equivocadas. Se voltarmos nosso olhar para os argumentos sobre justiga que animam as diretrizes contemporaneas —nio entre filésofos, mas entre ‘homens e mulheres comuns — encontraremos um quadro mais compli cado. E verdade que a maior parte das nossas discusses ¢ sobre como promover a prosperidade e respeitar a liberdade individual, pelo menos superficialmente, Entretanto, na base mesma desses argumentos, ¢ por vezes se opondo a eles, podemos snuitas vezes vislumbrar outro grupo de convicgdes — sobre quais virtudes so merecedoras de honras ¢ recompensas ¢ que modo de viver deve ser promovido por uma boa so- ciedade, Apesar de sermos devotados & prosperidade e & liberdade, no podemos absoluramente desconsiderar a natureza judiciosa da justiga. E profunda a convicgao de que justiga envolve virtude e escolha: medi- tar sobre a justiga parece levar-nos inevitavelmente a meditar sobre a melhor maneira de viver. (QUE FERIMENTOS MERECEM © CORAGAO PURPURA? Em alguns casos, questées sobre virtude e honra so bvias demais para ser negadas, Consideremos o recente debate sobee quem seria merecedor do Coragao Parpura. Desde 1932 0 Exército dos Estados Unidos ourorga essa medalha a soldados feridos ou mortos pelo inimigo durante umn combate, Além da homenagem, a medalha permite privilégios especiais nos hospitais para veteranos. Desde 0 inicio das atuais guerras do Iraque e do Afeganist@o, um niimero cada vez maior de veveranos vem sendo diagnosticado com estresse pos-traumatico e recebendo tratamento. Os sintomas incluem pesadelos recorrentes, depressio profunda e suicidio. Pelo menos 306 mill veteranos foram diagnosticados com estresse pés-traumatico ou depressio profunda. Os defensores desses veteranos peopuseram que também a eles fosse concedido 0 Coragao Piirpura, Dado que as lesdes psicalégicas podem ser no minimo tdo debilitantes quanto as fisicas, ‘argumentam, 0s soldados que sofrem tais traumas deveriam reccber a condecoracio, Depois que um grupo de consultores estudou a questao, o Pentégono anunciou, em 2009, que o Coragdo Parpura seria reservado aos soldados com ferimemtos fisicos. Veteranos com problemas mentais ¢ traumas psicol6gicos no receberiam a medalha, ainda que tivessem dircito a tratamentos médicos pagos pelo governo € a subsidios dados a deficien- tes. O Pentigono fornecen duas razGes para essa decisio: problemas de esttesse pés-traumitico nao séo causados intencionalmente pela agéo inimiga e sio dificeis de diagaosticar de forma objetiva. © Pentagono tomou a decisdo certa? Por si s6s, essas razdes no sio convincentes. Na Guerra do Iraque, uma das lesdes que mais habilita- va os combatentes a receber o Coragdo Piirpura era o rompimento de timpano causado por explosdes em um pequeno raio de proximidade.”™ Diferentemente de balas e bombas, no entanto, essas explosdes ndo sio ‘uma titica inimiga deliberada com objetivo de feri ou matar; clas sao (como 0 estresse pos-traumtico} um efeito colateral da ago em campo de batalha. E, apesar de os problemas traumaticos serem mais dificcis de diagnosticar do que um membro fraturado, © dano que ocasionam pode ser mais grave ¢ duradouro. Como foi revelado em ima discuss4o mais aprofundada sobre 0 Co- ragdo Purpura, o que esti verdadeiramente em questo € o significado da condecoracio e das virtudes que cla homenageia. Quais sio, entao, as virtudes relevantes? Diferentemente de outras medalhas militares, 0 Coragao Piirpura condecora o sacrificio, néo a bravura. Ele nao pres- supe nenhum ato heroico, apenas um dano infligido pelo inimigo. A questo é saber que tipo de ferimento deve ser considerado. Um grupo de vereranos chamado Ordem Militar do Coragdo Piirpura é contra a condecoragao por danos psicologicos, alegando que isso “re- baixaria” a homenagem. Um porta-vor do grupo alegou que “derramar sangue” deveria ser uma qualificagio essencial."* Ele ndo explicou por ue os ferimentos sem sangue nio deveriam ser incluidos, Mas Tylee EB. Boudreau, capitio fuzilciro reformado que apoia a incluso dos danos psicolégicos, faz uma convincente andlise da discussdo. Ele atribui a oposicio mencionada a uma postura atraigada entre os militares, que veem 0 estresse pés-traumético como um tipo de feaqueza, “A mesma cultura que exige um comportamento rigotoso também encoraja 0 ce- ticismo quanto a possibilidade de a violéncia da guerra atingir a mais, saudavel das mentes (...) Infelizmente, enquanto nossa cultura militar mantiver 0 desdém pelos danos psicoldgicos de guerra, é pouco provavel que tais veteranos algum dia recebam um Coragao Purpura.” Assim, 0 debate sobre 0 Coragdo Purpura é mais do que uma dis- cussio médica ou elfnica sobre como determinar a veracidade do dano. No dmago da divergéncia esto concepgées conflitantes sobre cardter moral e valor militar. Aqueles que insistem em que apenas ferimentos com sangue devem ser levados em consideragio acreditam que o estresse pés-traumético reflete uma fraqueza de cardter que nao é merecedora de honrarias. Os que acreditam que danos psicol6gicos devam ser respei- tados argumentam que os veteranos que sofrem traumas duradouros € tém depressio profunda se sacrificaram tanto por seu pais quanto os que perdecam um membro cm combate, ¢ de maneira igua!mente honrosa. A polémica sobre o Coragao Pairpura ilustra a logica moral da teoria de Aristoteles sobre justiga. Nao podemos determinar quem mezece uma medalha militar sem que sejam questionadas as victudes que tal conde- coracio realmente exalta. E, para responder a essa questo, devemos avaliar concepges de carater e sacrificio. Pode-se argumentar que medalhas militares so um caso especial, uma volta a uma antige ética de honra e virtude. Nos nossos dias, a maioria das discussées sobre justiga é a respeito de como distribuir os frutos da prosperidade ou os fardos dos tempos dificeis e como definir os direitos, basicos dos cidadaos. Nesses campos, predominam as consideragdes sobre bem-estar ¢ liberdade, Mas discusses sobre 0 que é certo eo que € etrado nas decisdes econdmicas nos remetem frequentemente & questo de Aristoteles sobre © que as pessoas moralmente merecem, e por qué. 2 REVOLTA CONTRA © SOCORRO A BANCOS E INSTITUIGOES FINANCEIRAS. furor piblico gerado pela crise financeira de 2008-2009 é um casoase considerar. Durante anos, 0s pregos das ages ¢ 0 valor clos bens iméveis tinham subido. O acerto de contas yeio quando a bolha habitacional ‘estouron. Os bancos e as instituiges financeiras de Wall Street haviam ganhado bilhdes de délares em complexos investimentos apoiados em hipotecas enjos valores agora despencavam. As empresas de Wall Street, antes vitoriosas, cambaleavam 4 beira do colapso. © mercado de ages despencou, arruinando ndo apenas grandes investidores mas também americanos comuns, cujos fundos de aposentadoria perderam grande parte do valor, © patrimdnio toral da familia americana caiw 11 trilhdes de délates em 2008, valor equiparavel ao rendimento anual de Alemanha, Japao e Reino Unido juntos." Em outubro de 2008, o presidente George W. Bush pediu 700 bilhdes de délares ao Congresso para socorrer os maiores bancos ¢ institnigdes. financeiras do pais. A muitos nao pareceu justo que Wall Street tivesse usufruido de enormes lucros nos bons tempos e agora, quando a situa- Gao estava ruim, pedisse aos contribuintes que assumissem a conta. ‘Mas parecia nao haver altetnativa. Os bancos ¢ as financeiras tinham crescido tanto e estavam de tal forma envolvidos com cada aspecto da economia que seu colapso poderia provocar a quebra de todo o sistema financeiro. Eles eram “grandes demais para falir”, Ninguém achou que os bancos e as financeiras merecessem o dinkeiro. Suas ages precipitadas (que a regulamentacio inadequada do govern Permitiu) haviam originado a crise. Mas esse era um caso em que o bem- estar da economia como um todo parecia sobrepujar as consideragdes, de justiga. Relutante, o Congreso autorizou 0 socorro a Wall Street. Vieram entdo as benesses. Pouco depois que o dinkeiro do socosro financeito (bailout) comegou a circular, novas informagdes revelaram ue algumas das companhias, agora com 0 auxilio de recursos piibticos, stavam agraciando seus executivos com milhées de délares em bénus. O caso mais ultrajante envolveu o American International Group (AIG), lum gigante dentre as companhias de seguros levaco a rufna pelos inves- a timentos de risco feitos por sua unidade de produtos financeiros. Apesar de ter sido resgatada com vultosas injegdes de fundos governamentais, (otalizando 173 bilhdes de délares), a companhia pagou 165 milhées de délares em bénus a executivos da propria divisio que havia precipitado a crises 73 funcionarios receberam bénus de 1 milhao de délares ou mais."” A noticia dos bénus deflagrou uma torrente de protestos piblices. Dessa vez 0 ultraje nao era causado por sacolas de gelo de dez délares: ‘ou qnartos de motel com pregos exorbitantes. Tratava-se de prédigas recompensas subsidiadas com fundos do contribuinte para membros da divisdo que havia ajudado a praticamente derrubar o sistema financeiro global. Alguma coisa estava errada naquele quadzo. Embora o governo dos Estados Unidos possuisse agora 80% da companhia, o Departamento do Tesouro apetou em vio ao presidente da AIG, indicado pelo governo, para que ele cancelasse os bénus. “Nao podemos conquistar ¢ manter 03 maiores e mais brilhantes talentos”, retrucou o presidente, “se os empre- ‘gados acreditarem que sua compensagao esta sujeita a ajustes continuos e arbitrérios por parte do Tesouro dos Estados Unidos.” Ele alegou que era necessério manter os estimulos 20s empregados talentosos para que @ companhia se recuperasse, pelo hem dos proprios contribuintes, que, afinal, passaram a ser 0s proprietdrios da maior pacte da compamhia.™ © povo reagit furiosamente, Uma manchete de pagina inteira no New York Post expressou o sentimento de muita gente: “Mais devagar, seus aproveitadores gananciosos” (Not So Fast You Greedy Bastards). A Camaza dos Depurados dos Estados Unidos tentou recuperar o dinhei- 10 aprovando um projeto de lei que taxava em 90% os bonus pagos a empregados de companhias que haviam recebido fundos substanciais de resgate financeio.”” Sob pressio do procurador-geral de Nova York, Andrew Cuomo, 15 dos maiores executivos da AIG que haviam recebido bonus concordaram em devolvé-los ¢ cerca de $0 milhées de délares foram recuperados no total”! Essa atitude abrandou a ira piblica até certo ponto, e o Senado aos poucos deixou de apoiar a medida punitiva de taxagio.”” Entretanto, o episodio deixou o piblico relutante em gastar mais diaheiro para limpar a sujeira que a indasteia financeira havia criado. 2 ‘Na origem da revolta diante do episédio do bailout as grandes insti- tuigGes financeiras, havia um sentimento de injustiga. Mesmo antes de ‘0 caso dos bénus vir & tona, o apoio piiblico a tal socorro financeiro era hesitante e conflituoso. Os americanos estavam divididos entre a necessidade de evitar um caos econdmico que poderia atingir a todos ¢ a diivida quanto & injegiio de gigantescas somas nos bancos ¢ nas financeiras falidos, Para evitar o desastre econdmico, o Congresso € 0 piiblice decidiram ceder, Entretanto, moralmente falando, isso parece a grande maioria um tipo de extorsio. Subjacente a revolta contra o bailout, havia a questo moral do me recimento: os executivos que receberam os bonus ¢ as companhias que receberam vultosos reforgos financeiros no os mereciam. Mas por qué? A razio pode ser menos dbvia do que parece. Analisemos duas respostas possiveis — uma referente & ganancia ¢ outra a incompeténcia. ‘Uma das origens do sentimento de ultraje era o fato de os bonus pa- recerem recompensar a gandncia, como a manchete do tabloide deixou clazo, © piiblico considerou isso moralmente inaceitavel. Nao apenas 5 bénus, mas também o proceso de bailout como um todo parecia, de maneira perversa, premiar o comportamento ganancioso ao invés de puni-lo, Os negociantes de derivarivos levaram suas companhias o pais .um terrivel perigo financeiro, fazendo investimentos inescrupulosos em busca de lucros cada vez. maiores. Depois de embolsar os lucros nos tempos de bonanga, nada viam de errado em ceceber os bonus de milhies de dlares, mesmo tendo levado seus investimentos 3 rufna.* As criticas & gandncia eram expressas nao apenas pelos joraais, mas também (em verses mais decorosas) pelas antoridades piblicas. O se~ nador Shecrod Brown (Democrata, Ohio) qualificou o comportamento da AIG de “uma bofetada de ganancia, arrogancia ¢ coisas piores”.* O presidente Barack Obama declarou que a AIG “encontra-se em crise financeira devido & falta de escrapulos e 3 ganancia®.* © problema em relagao 8 critica A ganancia, nesse caso, € que ela niio faz distingio entee as recompensas dadas pelo bailout depois do rombo ¢ as recompensas dadas pelos mercados em tempos de bonanga. A ganancia é um defeito moral, uma atitude ma, um desejo excessivo € 23 egoista de obter ganhos. Assim, é compreensivel que o povo néo fique satisfeito em premié-la. Entretanto, existe alguma razo para se presu- mir que aqueles que receberam bénus com recursos do bailout estejam sendo mais gananciosos agora do que o eram alguns anos antes, quando estavam voando alto e colhendo frutos ainda maiores? Negociamtes, banqueiros e corretores de fundos de hedge de Wall Street constituem uma categoria dificil de ser classificada, A busca de ganhos financeitos é 0 que fazer na vida. Se a carreira mancha o carter deles ou nao, suas virtudes no parecem oxcilar com o mercado de ages. Assim, se € etrado recompensar a ganancia com altos bonus do bailout, nao é também errado premia-la com a excessiva generosidade do mer- cado? O povo sentiu-se ultrajado quando, em 2008, empresas de Wall Street (algumas com subsidio permanente financiado pelo contribuinte) distribuiram 16 bilhdes de délares em bénus. Mas essa cifra significava menos da metade do total pago em 2006 (34 bilhdes de détares) e 2007 (33 bilhdes de délares}."* Se a gandncia é @ motivo pelo qual eles no merecem o dinheiro agora, baseados em qué podemos dizer que eles mereciam 0 dinheiro naquela época? ‘Uma diferenga dbvia é que os bénus com recursos do bailout vém dos contribuintes, enquanto os bénus pagos nos tempos de bonanca vém dos lucros das companhias. Entretanto, se 0 ultraje se baseia na convicedo de que os hénus sic imerecidos, a fonte do pagamento nao & moralmente decisiva. Mas dd uma pista: a cazo pela qual os bonus vérm do contribuinte é porque as companhias estado falidas. Isso nos leva a0 Amago da questio. A verdadeira objecdo do povo americano quanto aos bénus —e ao bailout — nao € porque eles recompensam a ganancia, ¢ sim porque recompensam a incompeténcia. Os americanos sao mais rigorosos quam ao fracasso do que quanto gandncia. Em sociedades impulsionadas pelo mercado, pessoas ambi- ciosas perseguem ardentemente seus interesses, ¢ a linha que separa o interesse prdprio ea gandncia é muitas vezes obscura. A linha que separa © sucesso e 0 fracasso, porém, costuma ser mais definida. E a ideia de que as pessoas merecem as recompensas do sucesso é parte essencial do sonho americano, 2 ‘Nao obstante a referéncia superficial 8 gandncia, o presidente Oba- ma entendeu que premiar o fracasso seria a mais profunda fonte de disc6rdia e ultraje. Ao anunciar limites para o pagamento a executivos das companhias que receberam fundos, Obama identificou a verdadeira fonte do ultraje diante do bailout as instituigé Estamosna América. Aqui nfo menosprezamos a riqueza. Nao invejamos ninguuém por ter sucesso, E certamente acreditamos que o sucesso deva ser recompensado. Mas 0 que deixa o povo frustrado — e com razio — Ever executivos recompensados pela incompeténcia, principalmente quando essas recompensas sao subsidiadas pelos contribuintes dos Estados Unidos.” Uma das declaracdes mais bizarras sobre a ética do bailout veio do senador Charles Grassley (Republicano, Towa}, um tipico conservador ‘em questdes fiscais. No auge do furor dos bnus, ele declarou em uma entrevista a uma radio de lowa que o que mais 0 incomodava era a re- cusa dos executivos das corporagdes a assumir qualquer culpa por seu fracasso. Grassley “se sentiria um pouco melhor em relago a eles se seguissem o exemplo dos japoneses, chegando diante do povo americano, curvando-se, dizendo ‘desculpem-nos’ e,em seguida, tomando uma das seguintes atitudes: renunciar ao cargo ou cometer suicidio” Mais tarde Grassley explicou que ndo estava incentivando os exe- cutivos a cometer suicidio, mas realmente queria que eles assumissem @ responsabilidade por seus erros, que se mostrassem arrependidos fzesse um pedido piblico de desculpas. “Eu nio ouvi isso dos direrores- residemtes e é muito dificil para o contribuince da minha base eleitoral continuar simplesimente a jogar dinheiro pelo ralo.” Os comentarios de Grassley confirmam meu palpite de que a ira contra © bailout nio se referia apenas & gandncia; o que mais ofendeu o senso de justiga do americano foi constatar que os délazes de seus impostos eram usados para recompensar 0 fracasso, Se assim for, resta saber se essa visio do bailout era justificavel. Os Sicetores-presidentes e altos executivos dos grandes bancos e companhias Fs investidoras eram realmente culpados pela crise financeira? Muitos exe- cutivos no pensavam assim, Em depoimentos perante as comissdes do Congeesso que investigavam a crise financeica, cles insistiam no fato de que haviam feito todo o possivel com as informages de que dispunham, Oexditetor executivo da Bear Stezens, uma companhia de investimentos de Wall Street que faliu em 2008, disse que havia reflerido muito, por muito tempo, sobre se teria sido possivel fazer algo diferente. Ele concluia que havia feito cudo que podia. “Eu simplesmente néo consegui pensar em nada (...) que pudesse modificar a situagao que enfcentavamos.” Outros executives de companhias falidas concordacam, insistindo que foram vitimas “de um tsunami financeizo” fora do seu contcole. Jovens financistas que tiveram dificuldade de entender a fiiria do povo contra seus bOnus tiveram atitade similar, “Ningném se solidariza conosco”, disse um financista de Wail Street a um cepécter da Vanity Fair, “mas isso nao significa que aio estivéssemos trabalhando com afinco.”® A metéfora do tsunami tornow-se parte do vernaculo do bailout, especialmente nos circulos financeiros. Se os executivos tiverem razi0 quanto ao fato de a faléncia de suas companhias ter tido origemem forgas econdmicas maiores, € nao nas decisdes que tomaram, isso explicaria por que ndo demonstraram 0 remorso que 0 senador Grassley gostaria de ter ouvido, Entrecanto, levanca-se também ai uma questo mais ampla sobre fracassos, sucesso ¢ justiga. Se forgas econdmicas grandes e siscémicas respondem pelas desastro- sas perdas de 2008 e 2009, ndo seria possivel argumentar que respondem também pelos astrondmicos ganhos dos anos anteriores? Se podemos culpar as condigdes climaticas pelos tempos ruins, como podem otalento, a sabedoria ¢ o trabalho arduo de banqueiros, comerciantes e executives de Wall Street ser responsiveis pelos estupendos lucros que obtiveram. quando 0 sol brilhava? Diante do ultraje piblico em celagdo & recompensa ao fracasso, os diretores das companhias argumentaram qué os retornos financeiros n30 so inteiramente fruto de seus atos, e sim produto de forgas que esto além do seu controle. Eles podem ter razdo, Mas, se sso for verdade, ha um bom motivo para questionar a reivindicagio deles quanto a compen- as sages exageradas durante os bons tempos. Certamente o fim da Guerra Fria, a globalizacio dos mercados de comércio e capital, surgimento dos computadores pessoais e da internet e uma série de outros fatores ajudam a explicar 0 sucesso da indistria fnanceira no final do século XX e nos primeiros anos do século XXI. Em 2007, executivos das principais corporagdes dos Estados Unidos ganhavam 344 vezes mais do que o trabalhador médio.**Com base em gue argumento, s¢ é que existe algum, os executives merecem remune- racio tio maior do que a de seus empregados? A maioria deles trabalha ito ¢ empresta seu talento as fungdes que executa. Mas consideremos. ‘oseguinte: em 1980, diretores presidentes recebiam apenas 42 vezes mais do que seus empregados.® Eles tinham menos talento ¢ trabalhavam, menos em 1980 do que hoje? Ou essas disparidades salariais cefletem contingéncias nao relacionadas com talento ¢ capacidade? Ou, entdo, comparemos 0 nivel da remaneragdo dos executives nos Estados Unidos com 0 de outros paises. Diretores das principais com- panhias americanas recebem em média 13,3 milhdes de délares por ano (segundo dados de 2004-2006), enquanto os executivos europeus. recehem 6,6 milhSes de délares e os japoneses 1,5 milhao." Os execu tivos americanos merece 0 dobro do que reecbem os enropeus ¢ nove veves o que recebem os japoneses? Ou essas difecengas também refletem fatores nao relacionados com 0 esforgo € 0 talento que os executivos dedicam a seus empregos? O altraje ante a questéo do bailout que tomou os Estados Unidos no infcio de 2009 expressou o ponto de vista da maior parte da populagao de que as pessoas que derrubam as empresas que dirigem por meio de investimentos arriscados nao merecem ser recompensadas com milhoes de délazes em bénus. Mas a discussdo sobre os bonus levanta questoes a respeito de quem merece o qué durante os tempos de bonanga. Os bem-sucedidos merecem a magnanimidade dos mercados ou a mag- nanimidade depende de fatores além do seu controle? E quais sio as implicagées disso para as obrigagdes madtuas dos cidaddos —nos tempos bons e nos dificeis? Resta saber se a crise fnanceira levantaré o debate Piblico sobse esas questOes mais amplas. 2 TRES ABORDAGENS DA JUSTICA, Para saber se uma sociedade €justa, basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza — renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e opor- tunidades, cargos ¢ honrarias. Uma sociedade justa distribui esses bens da mancira correta; ela dé a cada individuo o que the é devido. As perguntas dificeis comegam quando indagamos o que é devido as pessoas e por qué. ‘Ficomecamos a ter dificuldades com essas questées. Ao refletir sobre ‘© certo e 0 errado no abuso de pregos, sobre as contendas concernentes a0 Coragao Pirpura ea socorros financeiros, identificamos teés maneiras de abordar a distribuigdo de bens: a que leva em consideragao 0 bem- estar, a que aborda a questao pela perspectiva da liberdade ¢ a que se baseia no conceito de virende. Cada um desses ideais sugere uma forma diferente de pensar sobre a justica. Algumas das nossas discussies refletem o desacordo sobre o que sig- nifica maximizar 0 bem-estar, respeitar a liberdade ou cukivara virrude. Outras envolvem o desacordo sobre 0 que fazer quando hi um conflito entre esses ideais. A filosofia politica nao pode solucionar discordancias desse tipo definitivamence, mas pode dar forma aos nossos argumentos trazer clareza moral para as altesnativas com as quais nos conirontamos como cidadios democraticos. Este livro explora os pontos fortes ¢ fracos dessas trés maneiras de pensar sobre a justiga. Comegamos com a ideia de maximizar o bem- estar. Para sociedades de mercado como a nossa, é um ponto de partida natural. Grande pacte dos debates politicos contemporéneos € sobre como promover a prosperidade, melhorar nosso padrio de vida, ou im- pulsionar o crescimento econémico. Por que nos importamos com essas coisas? A resposta mais Obvia é porque achamos que a prosperidade nos torna mais felizes do que seriamos sem ela — como individuos ou como sociedade, A prosperidade € importante, em outras palavras, porque contribui para o nosso bem-estar. Para explorar essa ideia, voltamo-nos para o utilitarismo, a mais influente explicagso do “porque” e do “como” maximizar 0 bem-estar ou (como definem o utilitaristas) procurar a maxima felicidade para o maior mimero de pessoas. 2 Em seguida, abordamos uma série de teorias que ligam a justiga & liberdade. A maioria enfatiza o respeito aos direitos individuais, em- bora discordem entre si sobre quais direitos so considerados os mais, importantes. A ideia de que justica significa respeitar a liberdade e os direitos individuais é, no minimo, tdo familiar na politica contemporénea quanto a ideia utilitarista de maximizar 0 bem-estar. Por exemplo, a Bill of Rights (Declaragao de Direitos) dos Estados Unidos estabelece deter- minadas liberdades — incluindo a liberdade de expressao ¢ a hberdade religiosa — que nem mesmo as maiorias tém o direito de violar. E, por todo 0 mundo, a ideia de que justiga significa respeitar certos direitos humanos universais vem sendo cada vez mais abracada (na teoria, ainda que nem sempre na pratica), ‘A abordagem de justiga que comeca pela liberdade € uma ampla escola. Na verdade, algumas das mais calorosas disputas politicas de nossa época ocorrem entre dois campos rivais dentro dela — 0 do laissez-faire eo da equanimidade. Liderando o campo laissee-faire esto 0s libertarios do livre mercado que acreditam que a justiga consiste em respeitar ¢ preservar as escolhas feitas por adultos conscientes. No cam- po da equanimidade estdo tedricos de tendéncia mais igualitéria. Fles argumentam que mercados sem restrigGes nao so justos nem livres. De acordo com seu ponto de vista, a justiga requer diretrizes que corzijam as desvantagens sociais e econémicas ¢ que deem a todos oportunidades justas de sucesso, Por fim, voltamo-nos para as teorias que veem a justiga intimamente associada 4 virtude ea uma vida boa. Na politica contemporanes, teorias bascadas na vireude sdo frequenternente identificadas com os conserva- dores culturais ea direita religiosa. A ideia de legislar sobre a moralidade € um andtema para muitos cidadios de sociedades liberais, visto que oferece o risco de derivar para a intolerdincia ¢ a coersfo. Mas a nogio de que uma sociedade justa afirma certas virtudes e concepgdes do que seja uma vida boa vem inspirando movimentos politicos e discussdes que atravessam o espectro ideolégico. Nao apenas o Talib’, mas também 08 abolicionistas e Martin Luther King basearam suas visdes de justiga em ideais morais e religiosos. 2 Antes de abordarmos essas teorias sobre justiga, vale a pena perguntar como as discussdes filoséficas podem continuar — especialmente em dominios to contestados como o da moral eo da filosofia politica. Elas frequentemente partem de situagdes concretas. Como ja vimos em nossa discussio sobre 0 abuso de precos, © Coragao Pirpura ¢ 0 bailout, a re- flex moral e politica nasce da divergéncia. Muitas vezes as divergéncias ‘ocorrem entre partidarios ou rivais no campo politico. Algumas vezes as divergéncias ocorrem dentro de nds, como individuos, como quando nos vemos dilacerados ou em conflito diante de uma dificil questo moral, Mas como, exatamente, podemos, a pactir dos julgamentos que fazemos de situagdes concretas, chegar a principios de justiga que acre- itamos ser aplicaveis em todas as sicuagoes? Em suma, em que consiste © raciocinio moral? Para vermos como se dé o proceso de raciocinio moral, voltemo-nos para duas situagdes — uma delas é uma historia ficticia muito discutida por filésofos e a outra é uma histéria atual sobre um doloroso dilema moral. ‘Consideremos inicialmente a historia hipotética.**Assim como todas as historias do género, ela envolve um cendrio desprovido de muitas das complexidades da vida real, para gue possamos nos concentrar em um. niimero limitado de questaes filosdficas. © BONDE DESGOVERNADO Suponha que voce seja 0 motorneiro de um bonde desgovernado avan- gando sobre os trilhos a quase 100 quildmetros por hora. Adiante, voce ¥é cinco operdrios em pé nos trilhos, com as ferramentas nas mios. Voce tenta parar, mas nao consegue. Os freios nao funcionam. Vocé se desespera porque sabe que, se atropelar esses cinco operatios, todos eles morrerio. (Suponhamos que vocé renha certeza disso.) De sepente, vocé nota um desvio para a direita. Hé um operario na- gueles trilhos também, mas apenas um. Vocé percebe que pode desviae © bonde, matando esse dinico trabalhador e poupando os outeos cinco. 2 O que voct deveria fazer? Muitas pessoas diciam: “Vire! Se é uma tragédia matar um inocente, é ainda pior matar cinco.” Sacrificar uma 6 vida a fim de salvar cinco certamente parece ser a coisa certa a fazer. ‘Agora considere outra versio da historia do bonde. Desta vez, voce io é 0 motorneiro, ¢ sim um espectador, de pé numa ponte acima dos trilhos. (Desta vez, nao ha desvio.) O bonde avanca pelos trilhos, onde estio cinco operdrios. Mais uma vez, 0s freios nao funcionam. O boa- de est prestes a atropelar os operdrios. Vocé se sente impotente para evitar o desastre — até que nota, perto de vocé, na ponte, um homem corpulento. Vocé poderia empurré-lo sobre os trilhos, no caminho do bonde que se aproxima. Ele morteria, mas os cinco operdrios seriam poupados. (Vocé pensa na hipétese de pular sobre os trilhos, mas se dé conta de que é muito leve para parar o bonde.) Empurrar o omem pesado sobre os trilhos seria a coisa certa a fazer? ‘Muitas pessoas diriam: “E. claro que nao, Seria terrivelmente errado empurrar o homem sobre os trilhos.” Empurrar alguém de uma ponte para uma morte certa realmente parece ser uma coisa terrivel, mesmo que isso salvasse a vida de cinco inocentes. Entretanto, cria-se agora um quebra-cabeca moral: Por que 0 principio que parece certo no primeiro caso — sacrificar uma vida paca salvar cinco — parece errado no segundo? Na hipbtese de, como sugere nossa reacio a0 primciro caso, os ‘timers serem levados em conta — se é melhor salvar cinco vidas do que uma —, por que, entio, nao devemos aplicar esse mesmo principio 420 segundo caso € empurrar o homem gordo? Realmenre, parece cruel empurrar um homem para a morte, mesmo por uma bos causa. Mas & menos eruel matar um homem atropelando-o com um bonde? Talveza razio pela qual seja errado empurrar 6 que fazendo isso esta~ ‘famos usando © homem na ponte contra sua vontade. Ele no escolheu estar enyolvido, afinal. Estava apenas ali, de pé. Omesmo, no entanto, poderia ser dito sobre o homem que estd traba- thando no desvio do trilho. Ele também nao escolheu se envolver. Estava apenas fazendo seu trabalho, e nao se oferecendo para sacrificar a vida Tum acidente com um bonde desgovernado. O fato de que operdtios de a ferrovias se expdem voluntariamente ao risco de morte, a0 contrario dos espectadores, poderia ser usado como argumento. Mas vamos su- por que estar disposto a morrer em uma emergéncia para salvar a vida de outras pessoas nao faga parte das atribuigdes dessa fungSo, ¢ que 0 trabalhador néo esteja mais propenso a oferecer a propria vide do que o espectador na ponte, Talvez a diferenga moral nao resida no efeito sobre as vitimas — ambas terminariam mortas —, ¢ sim na intengao da pessoa que toma a decisio. Como motorneiro do bonde, vocé pode defender sua escolha de desviar o veiculo alegando que nao tinha a intengao de matar 0 ope- rério no desvio, apesar de isso ser previsivel. Seu objetivo ainda teria sido atingido se, por um enorme golpe de sorte, os cinco trabalhadoces fossem poupados e o sexto também conseguisse sobreviver. Entretanto, o mesmo é verdadeio no caso do empurrio. A morte do hhomem que vocé empurron da ponte nao é essencial para seu propdsi- to. Tudo que ele precisa fazer € parar o bonde; se ele de alguma forma conseguir fazer isso e sobreviver, voce ficara maravilhado. Ou talvez, pensando bem, os dois casos devessem ser governados pelo mesmo principio. Ambos envolvem a escolha deliberada de tirar a vida de uma pessoa inocente a fim de evitar uma perda ainda maior de vidas, Talvez sua celutdncia em empurrar o homem da ponte seja meramente um: escripulo, uma hesitago que voce precise superar. Empurrar um homer para a morte com as préprias mos realmente parece mais cruel do que girar o volante de um bonde. Mas fazer a coisa certa nem sempre é facil, Podemos restar essa ideia ao mudazimos um pouco a histéria, Supo- nha que voce, como espectador, pudesse provocar a queda do homer gordo nos trilhos sem empurri-lo; imagine que ele esteja de pé sobre ‘um alsapio que vocé pode abrir ao girar uma manivela. Sem empurear, vvoc® teria 0 mesmo resultado. Isso transformari sua a¢a0 na coisa certa a fazer? Ou ainda seria moralmente pior do que se vocé, no lugar do motorneito, tivesse desviado para 0 outro trilho? Nao € facil explicar a diferenga moral entre esses casos — por que desviar o honde parece certo mas empursar o homem da ponte parece errado. Entretanto, note a pressdo que sentimos para chegar a uma dis- 3 tingo convincente entre eles — e se ndo pudermos, para reconsiderar ‘20550 julgamento sobre a coisa a fazer em cada caso. As vezes pensamos no raciocinio moral como uma forma de persuadir os outros. Mas é também uma forma de resolver nossas convicgdes morais, de descobrir aquilo em que acreditamos e por qué. ‘Algans dilemas morais tém origem em principios morais conflitantes. Por exemplo, um principio que vert 4 tona na hist6ria do bonde diz que devemos salvar o maximo de vides possivel, mas outro diz que ¢ ¢rrado ‘matar um inocente, mesmo que seja por uma boa causa, Expostos a uma situagdo na qual salvar um mimero maior de vidas implica matar uma pessoa inocente, enfrentamos um dilema moral. Devemos tentar desco- brie qual principio tem maior peso ou é mais adequado as circunstancias. Outros dilemas morais surgem porque ndo temos certeza sobre como os eventos se desdobracio. Exemplos fcticios como a historia do bonde eliminam a incerteza que paira sobre as escolhas que enfrentamos na vida real. Eles presumem que sabemos exatamente quantas pessoas mor rerdo se nio desviarmos — ou ndo empurrarmos alguém. Isso faz com que tais histérias sejam guias imperleitos para 2 aga, Mas faz também com que sejam recursos ttels para a andlise moral, Se abstrairmos as contingéncias — “E se os opericios percebessem © bonde ¢ pulassem para o lado a tempo?” —, exeiplos hipotéticos nos ajudam a colocar 6s principios morais em questao para examinar sua forca, ‘OS PASTORES DE CABRAS AFEGAOS Consideremos agora um dilema moral verdadeiro, semelhante em alguns Pontos & ficticia histéria do bonde desgovernado mas com o agravante de nao haver certeza sobre o desfecho. Em junho de 2005, uma equipe formada pelo suboficial Marcus Luttrell ¢ mais tr@s seals (como so conhecidos os integrantes da Sea, Air, Land [Seal], forga especial da Marinha dos Estados Unidos para ‘peracdes em mar, ar e terra) parti em uma missio secreta de reconhe- Cimento no Afeganistdo, perto da fronteira com 0 Paquisto, em busca de 3B um lider do Taliba estreitamente ligado a Osama bin Laden..”De acordo com relat6rios do servigo de inteligencia, o alvo da missio comandava de 140 a 150 combatentes fortemente armados e estava em um vilarejo em uma regio montanhosa de dificil acesso, Pouco depois de a equipe ter se posicionado numa colina com vista para o vilarcjo, apareceram & sua frente dois camponeses afegios com cerca de cem ruidosas cabras. Eles chegaram acompanhados de um menino de aproximadamente 14 anos. Os afepfios estavam desarmados. Os soldados americanos apo taram os cifles para eles, sinalizaram para que se sentassem no chao e, s6 nto, comecaram a discutir sobre o que fazer com eles. Por um lado, ‘03 pastores pareciam ser civis desarmados. Em contrapartida, deixé-los seguir adiante implicaria o risco de eles informazem os talibas sobre a presenga dos soldados americanos, Os quatro soldados analisazam as opgies, mas se deram conta de ue ndo tinham uma corda, entdo nao seria possivel amazrar os afegios para ganhar tempo até que encontrassem outro esconderijo. As iinicas opgdes eram maté-los ou deixa-los partir, Um dos companheiros de Luttrell sugeriu que matassem os pastores: “Estamos em servigo atrés das linhas inimigas, enviados para c por rnossos superiores, Temos 0 direito de fazer qualquer coisa para salva nossa vida, A deciséo militar é bvia. Deixé-los livres seria um erco.™ Lutczell estava dividido. “No fundo da minha alma, eu sabia que ele estava certo”, escreveu mais tarde, “Nao poderfamos deixé-los partie. ‘Mas 0 problema é que tenho outra alma. Minh alma cristé. E ela estava prevalecendo. Alguma coisa no parava de sussurrar do fundo da mi= nha consciéncia que seria errado executar a sangue-frio aqueles homens desurmados.”” Luttrell nao explicou o que quis dizer com alma crista, mas, no final, sua conscigncia nfo permitiu que matasse 0s pastores. Ele deu 0 voto decisivo para soltd-los. (Um dos tts companheiros se absteve.) Foi um voto do qual veio a se arcepender. Cerca de uma hora e meia depois de ter soltado os pastores, 05 qua~ tro soldados se viram cercados por cerca de cem combatentes ralibas armados com fuzis AK-47 e granadas de mao. No cruel combate gue se seguitz, 08 tr8s companheiros de Luttrell foram mortos, Os talibis tam- 4 ‘bém abateram um helic6ptero dos Estados Unidos que tentava resgatar a patrulha, matando 0s 16 soldados que estavam a bordo. Luttrell, gravemente ferido, conseguiu sobzeviver rolando montanha abaixo e $e arrastando por 11 quilémetzos até um vilarejo cujos mora- dores 0 mantiveram protegido dos talibas até que ele fosse resgatado. Mais tarde, Luttrell reflctiu € condenou 0 préprio voto em favor de néio matar os pastores. “Foi a decisdo mais estipida, mais idiota, mais arresponsdvel yue jé tomei ent toda a uit vide”, extreveu ent uns fiveo sobre a experincia, “Eu devia estar fora do meu juizo. Na verdade, dei meu voto sabendo que ele poderia ser nossa sentenga de morte (...) Pelo menos & como vejo aqueles momentos agora (...) O voto decisivo foi meu, ¢ ele vai me perseguir até que me enterrem em um timulo no leste do Texas. Parte do que tornou rio dificil o dilema dos soldados foi a incerteza sobre 0 que poderia acontecer caso soltassem os afegdos. Os pastores simplesmente seguiriam seu caminho ou alertariam os talibis? Mas su- ponhamos que Luttrell soubesse que o fato de libertar os pastores fosse originar uma batalha devastadora, resultando na perda de seus compa- nheiros, 19 ameticanos mortos, ferimentos nele proprio e o fracasso da missio? Ele teria tomado uma decisao diferente? Para Luttrell, em retrospectiva, a resposta é clara: ele deveria ter matado os pastores. Considerando o desastre que se seguiu, € dificil discordar, Se considerarmos a quantidade de pessoas que morreram, a escolha de Luttrell é semelhante, de certa forma, a0 caso do bonde, Mavar os trés afegios teria poupado a vida de seus trés companheiros € dos 16 soldados que tentaram resgaté-los. Mas com qual das versdes da histéria do bonde isso se parece? Matar os pastores teria sido como madar a diregdo do bonde ou como empurrar o homem da ponte? O fato de Luttrell ter consciéneia do perigo e ainda assim nao ter conse- Buido matar civis desarmados a sangue-frio sugere que sua decisio se assemelharia a empurrar homem da ponte, Anda assim, matar os pastores parece um pouco mais defensivel do que empurrar o homem da ponte. Talvez porque suspeitamos que — €m face do desfecho — eles nao fossem espectadores inocentes, e sim simpatizantes dos talibis. Consideremos uma analogia: se tivéssemos 3s ‘motivos para acreditar que o homem na ponte fosse responsével pelomau funcionamento dos freios do bonde, com intengo de matar os operarios nos trilhos (digamos que eles fossem seus inimigos}, 0 argumento moral para empurré-lo sobre os trilhos comegaria a parecer mais defensavel. ‘Ainda precisariamos saber quem eram seus inimigos e por que ele queria maté-los. Se soubéssemos que os operarios nos trilhos eram membros da resisténcia francesa e 0 homem corpulento na ponte era um nazista que tentava maté-los danificando @ bende, o fato de empurci-lo para salvar 0s outros passaria a ser moralmente accitavel. E possivel, evidentemente, que os pastores afegias nao fossem simpa- tizantes dos talibas, ¢ sim neutcos no conflito ou até mesmo oponentes dos talibas, ¢ tivessem sido forgados por eles a revelar a presenca dos soldados americanos. Suponhamos que Luttrell e seus companheiros tivessem certeza de que os pastores ndo tinham a intengdo de fazer-lhes mal, mas que seriam torturados pelos talibas para revelar onde eles es- tavam, Os americanos poderiam ter matado os pastores para proteger a missio € a eles proprios. Mas a decisio de fazer isso teria sido mais dificil (e moralmente mais questiondvel} do que se eles soubessem que 0 pastores eram espides pr6-Taliba. DILEMAS MORAIS Poucos dentre nds enfrentam escolhas tio draméticas quanto as que se apresentaram aos soldados na montanha ou a testemunha do bonde despovernado, Mas refletir sobre esses dilemas nos permite ver de ma- neira mais clara como uma questo moral pode se apresentar em nossas Vidas, como individuos e como membros de uma sociedade. A vida em sociedades democraticas € cheia de divergencias entre © certo ¢ 0 exrado, entre justiga ¢ injustiga. Algumas pessoas defendem o direito a0 aborto, outras o consideram um crime. Aigumas acreditam que a justiga requer que o rico seja taxado para ajudar 0 pobre, enquanto outras acham que ndo é justo cobrar taxas sobre o dinheiro recebido por alguém como resultado do proprio esforgo. Algumas defendem o sisterna 36 decotas na admissZo ao ensino superior como uma forma de remediar erros do passado, enquanto outras consideram esse sistema uma forma injusta de discriminagao invertida contra as pessoas que merecem ser admitidas pelos proprios méritos. Algumas rejeitam a tortura de suspei- 10s de terrorismo por a considerarem um ato moralmente abominavel ¢ indigno de uma sociedade livre, enquanto outras a defendem como um recurso extremo para evitar fururos ataques. Eleigoes sao vencidas e perdidas com hase nessas divergencias. As chamadas guerras culturais so combatidas por esses principios. Dadas a paixio ea intensidade com as quais debatemos as questes morais na vida piblica, podemos ficar tentados a pensar que nossas convicgdes morais esto fixadas para sempre, pela maneira como fomos criados ou devido a nossas crengas, além do alcance da razao, Entretanto, s¢ isso Fosse verdadeiro, a perswasdo moral seria inconce- bivel e 0 que consideramos ser um debate piiblico sobre justiga e direitos nao passaria de uma saraivada de afirmagbes dogmaticas em uma initil disputa ideol6gica. Quando exibe sua pior face, nossa politica se aproxima dessa con- digo, Mas nao precisa ser assim. As vezes uma discusséo pode mudar nossa opiniao. Como, entio, podemos raciocinar claramente no disputado terreno da justiga e da injustica, da igualdade e da desigualdade, dos direitos individuais e do bem comum? Este liveo tenta responder a essa pergunta. Uma das maneiras de comegar € observando como a reflexio moral flora naturalmente quando nos vemos diante de uma dificil questao de atureza moral. Comegamos com uma opinido, ou conviegdo, sobre a coi- sacerta a fazer: “Desviar 0 bonde para 0 outro trilho.” Entao, refletimos sobre a razio da nossa convicsZo ¢ procuramos o principio no qual ela se baseia: “E melhor sacrificar uma vida para evitar a perda de muitas.” Entio, diante de uma situagao que poe em questi esse principio, ficamos Confusos: “Eu achava que era sempre certo salvar o maximo possivel de Vidas, mas ainda assim parece errado empusear 0 homem da ponte (ou Matar os pastores de cabras desarmados).” Sentir a forga dessa confuséo © pressio para resolvé-la é 0 que nos impulsiona a filosofar, ar Expostos a tal tensdo, podemos sever nossa opinido sobre a coisa certa a fazer ou repensar 0 principio que inicielmente abragévamos. Ao ros depararmos com novas situagdes, recuamos € avancamos em nossas, ‘opinides e nossos principios, revisando cada um deles & luz dos demais.. Essa mudanca no nosso modo de pensar, indo e vindo do mundo da agao para 0 mundo da razao, é no que consiste a reflexdo moral. Essa forma de conceber a discussio moral, como uma dialética entre nossas opiniées sobre determinadas situagdes € 0s principios que afir- mamos ao refletir, rem uma longa tradicéo. Ela remonta aos dislogos de Séerates e 8 filosofia moral de Aristoreles. Encretanto, no obstante sua origem tdo antiga, ela esté aberta ao seguinte desafio: Se a reflexio moral consiste em harmonizar os julgamentos que fazemos com os prineipios que afirmamos, como pode tal zeflexto nos levar A justiga ow A verdade moral? Mesmo se conseguissemos, dusante toda a vida, alinhar nossas incaigGes morais e os principios que fundamentam nossa conduta, como poderiamos confiar no faro de que o resultado seria algo mais do que um amontoado de preconceitos com coeréncia interna? A tesposta é que a reflexio moral nao é uma busca individual, e sim co- letiva, Ela requer um interlocutor — um amigo, um vizinho, um camazada, um compatriota, As vezes o interlocutor pode ser imaginario, como quando discutimos com nossa consciéncia, Mas no podemos descobrit o significado de justiga ou a melhor manera de viver apenas por meio da introspeccio. Na Republica, de Plato, Sécrates compara os cidadios comuns a um grupo de prisioneizos confinados numa caverna. Tudo que vem € 0 movimento das sombras na parede, um reflexo de objeros que no podem apreender. Apenas o fildsofo, nesse relato, pode sair da caverna para a luz do dia, sob a qual vé as coisas como realmente so. Sécrates sugere que, tendo vishumbrado o sol, apenas o fildsofo é capaz. de governar os hhabitantes da caverna, se ee, de alguma forma, puder ser induzido a voltar para a escuridao onde vives, Na opinio de Plato, para captar o sentido de justiga e da natureza de uma vida boa, precisammes nos posicionar acima dos preconceitos ¢ das rotinas do dia a dia, Ele esté certo, ereio, mas apenas em parte. Os clamo- res dos que ficaram na caverna devem ser levados em consideracio. Se 38 azeflexdo moral é dialética — se avanga e recua entre os julgamentos aque fazemos em situagdes concretas ¢ os principios que guiain esses julgamentos —necessita de opinides ¢ convicgbes, ainda que parciais ¢ indo instruidas, como pontos de partida. A filosofia que no tem contato ‘com as sombras tia parede s6 poder produzir uma utopia estéril, Quando a reflexio moral se torna politica, quando pergunta que leis deve governar nossa vida coletiva, precisa ter alguma figacdo com 0 tumulto da cidade, com as questOes € os incidentes que perturba a mente piblica, Debates sobre bailout e pregos extorsivos, desigualdade de renda e sistemas de cotas, secvigo militar e casamento entre pessoas do mesmo sexo so 0 que sustenta a ftosofia politica. Exes nos estimulam a articular ¢ justificar nossas conviegGes morais e poiiticas, no apenas no meio familiar ou entre amigos, mas também na exigente companbia de nossos compatriots. Mais exigente ainda ¢ a companhia de fildsofos politicos, antigos e modernos, que discorreram, as vezes de forma radical ¢ surpreendente, sobre as ideias que animam a vida civica — justia e direitos, obrigagao e consenso, honra ¢ virtude, moral ¢ fel, Aristételes, Immanuel Kant, John Stuart Mille John Rawls figuram, todos eles, nestas paginas, No entanto, a ordem de seu aparecimento nio & cronolégica. Este livro nao é uma historia das ideias, e sim uma jornada de reflexdo moral e politica. Seu objetivo niio € mostrar quem influenciou quem na historia do pensamento politico, mas convidar os leitores a submeter suas proprias visbes sobre justica 20 exame ctitico — para que compreendam melhor o que pensar e por qué. Notas 1, Michael McCarthy, "After Storm Come the Vultures”, USA Today, 20 de agosto de 2004, p. 6B. 2, Josegh B. Treaster, “With Storm Gone, Hosidians Ate Hie with Price Gouging”, New York Tues, 18 de suoste de 2004, p. Als MeCarchy, the Vultures’ 9 3. MeCarchy, “After Scorm Come the Veltuses™ Treaster, “With Storm Gone, Flo- ricians Ace Hit with Price Goaging"s Crist cto Jeff Jacoby, “Bring on the “Price Gougers™, Boston Globe, 22 de agosto de 2004, p. PLL 4. MeCarthy, “After Storm Come the Vultures”; Allison North Jones, “West Palm Days inn Settles Storm Gouging Suit”, Tampa Tribune, 6 de eutabeo dé 2004, p. 3. 5. Thomas Sowell, “How ‘Price Gouging” Helps Floridians”, Tampa Tribune, 15 de setembro de 2004; publicado também come “Price Gouging’ in Florida’, Capitalism Magazine, V4 de setembeo de 2004, em www.capmag.comfarticle asprID=3918 6. lier, 7. Jacoby, “Bring on the ‘Price Gougers™”. 18, Charlie Crist, “Storm Victims Need Proteesion”, Tampa Tribune, 17 de seterbeo be 2004, p. IR 9. Ibidem, 10, Jacoby, "Bring on the ‘Prive Gougers™, 1, Lieevte Alvarez Erik Eckkholm, “Purple Hearts Ruled Out for Traumatic Stress" New York Times, 8 de janeieo de 2008. 12. bidem. 13. Tyler E. Boudzenn, “Troubled Minds and Purple Hearts", New York Times, 26 de janeisa de 200% p. A2I, 14, Alvarez e Eckholr, “Purple Hearc Is Ruled Ou1”, 15, Boudreas, “Troubled Minds and Pusple Hearts", 16, 5. Mitra Kalita, “Americans See 18% of Wealth Vanish”, Wall Soeet Journa 13 de marco de 2009, p. Al. 47, Jackie Calms € Louise Story, “418 Gor AIG Bonuses: Outery Grows in Capital’, New York Times, 18 de macgo de 2009, p. Al; Bll Saporito, *How AIG Became “Too Big 10 Foil”, Time, 30 de margo de 2009, p16 18. O ditetor execurivo da AIG Edward M, Liddy citou Edmund L, Andrews ¢ Peter Baker, "Bonus Money at Troubled AIG Draws Heavy Criticism”, New York Times 16 de marge de 2008; vee também Liam Phen, Setena Nie Sudeep Reddy, “AIG Faces Growing Wrath Over Payments”, Wall Sireet Journu, 16 de margo de 2000. 19, New York Post, 18 de margo de 2009, p. 1. 20, Shallagh Musray e Poul Kane, "Senate Will Delay Action on Punitive Tax on Bonuses", Wasbington Post, 24 de mary de 200%, p. A7. 21, Mary Williams Walkie Cart Hulse, “AIG Bonuses of 450 3 Neve York Times, 24 de marco de 2008, p. 1 22. Greg Hitt, "Drive so Tas AIG Bonuses Slows”, Watf Sreet Journal, 25 de marge de 2009, illion 20 Be Repaid’ 4 23, Nem rodos que receberam us disputados bonus da AIG foram responsivels pelos jnvestimensos de risco que provocatam 0 esteago. Alguns juncaram-se 3 divisio de produtos financeiros depois da quebra, para ajudar a resolver @ confusao. Um esses executivos publicou um editoria} queixando-se de que aindigacdo pablics ao conseguia fazer distingdo entce os que foram responsiveis pelos investimentos desestrosos € 0s que no parriciparam deles. Ver Jake DeSantis, “Dear AIG, 1 Quitt”, New York Times, 24 de margo de 2009. Diferentemente de DeSaneis, Joseph Cassano, diretor de producos financeirus da AIG durante te2e anos, reeebeu 280 rmilhibes de délares ances de deixar a compachia, em mas mente de seu valor, ao determinar como a lei deveria ser. Entretanto, se mais, pessoas preferissem assistir a brigas de ces do que apreciar as pinturas de Rembrandt, a sociedade deveria subsidiar arenas de luta em vez de muscus de arte? Se alguns prazeces sio indignos ¢ degradantes, por que deveriam ter algum peso na decisao sobre quais leis deveriam ser adotadas? Mill tenta poupar 0 utilitarismo dessa objegdo. Ao contrério de Bentham, ele acredita que seja possivel distinguis entre os prazeres mais elevados e os mais despreziveis — avaliar @ qualidade, e ndo apenas a guantidade ow a intensidade, dos nossos desejos. E acha que pode fuzer essa distingo sem se basear em qualquer ontza ideia moral que no a prépria utilidade. Mill comega por afirmar sua fidelidade aa credo uti As ages estio certas na proporydo em que tendam a promover a felicidades arista: ‘pure medio] no-qual os urs tna os dentes as warras arraneados e,accrrentados exam devorads por cles teres. {Ned E) 68 erradas quando tendem a produzir 0 oposto da felicidade. Por felicidade compreende-se 0 prazer ¢ a auséncia do softimento; por infelicidade, a dor ea privagio do prazer.” Ele também confirma a “teoria da vida na qualse baseia essa teoria da morafidade — ou seja, que prazer e auséncia da dor so as tinicas coisas desejaveis como finalidade; e que todas as coisas deseiiveis (..) 0 sao tanto pelo prazer inerente a elas quanto por promover o prazer e evitar a dor”? "Apesat de insiscir no faro de que apenas prazer e dor so realmente importantes, Mill zeconhece que “alguns tipos de prazer sio mais desejé- veis e mais valiosos do que outzos”. Como podemos saber quais prazeres so qualitativamente mais elevados? Mill propOe um teste simples: “Entre dois prazeres, se houver um que obtenha a preferéneia de todos ou de quase todos que tenham experimentado ambos, independentemente de qualquer sentimento de obrigagio moral para tal preferéncia, esse sera © prazer mais desejével.”:* Esse teste tem uma clara vantagem: nao parte da ideia utilitarista de que a moralidade baseia-se Gnica e simplesmente em nossos desejos, “A nica prova de que algo seja desejavel é alguém o desejar”, escreve Mill” Entretanto, como meio de chegar a distingSes qualitativas entre 08 prazeres, o teste parece estar aberto a uma objecio ébvia: Nao & verdade que frequentemente preferimos os prazeres “menores” aos mais elevados? Nao é verdade que as vezes preferimos ficar deitados no sofa assistindo a uma comédia a ler Platdo ou ir & Opera? E nao € possivel preferir essas experiéneias sem as considerar particularmente valiosas? Shakespeare versus Os Simpsons Quando discuto com meus alunos sobre as idcias de Mill relativas a pra- 42eres mais elevados, fago uma experiéncia com uma versio do seu teste Mostro a eles trés exemplos de diversio que costumam ser apreciados: uma lura da World Wrestling Entertainment (um esperéculo barulhen- t9 no gual os assim chamados lutadozes agridem-se mutuamente com ©2deizas dobraveis); um mondlogo de Hamlet interpretado por um ator Shakespeariano; e um episddio de Os Simpsons. Eu thes fago, entio, 9 duas perguntas: De qual dessas apresentagdes vac’ mais gostou— qual Ihe dew mais prazer — e qual delas vocé considera a mais elevada ou mais valiosa? Invariavelmente, Os Simpsons recebem o maior nimero de voros como a que deu mais prazer, seguida do texto de Shakespeare. (Alguns poucos corajosos confessam sua preferéncia pela luta de WWE.) Entre- tanto, quando thes pergunto qual experiéneia consideram a mais clevada qualitativenente, os aluaus ent peso votaiy eu Shakespeare, 3s resultados dessa experiéncia representem um desafio para o teste de Mill. Muitos alunos preferem ver Homer Simpson, mas ainda assim consideram que um monélogo de Hamlet possa proporcionar um prazer mais elevado, Reconhecidamente, alguns dizem que Shakespeare é me- Thor porque esto em uma sala de aula e no querer parecer incultas, E alguns alunos argumentam que Os Simpsons, uma sutil mistura de ironia, humor e critica social, s40 comparaveis 3 arte de Shakespeare, Entretanto, visto quea maioria das pessoas que experimentaram os dois diz preferic assistis a Os Simpsons, Mill teria dificuldade de concluir que Shakespeare € qualitativamente mais elevado. E ainda assim ele nfo desiste da ideia de que algumas manciras de viver sejam mais nobres do que outzas, mesmo que seja mais diffeil satisfazer as pessoas que as adorem, “Um ser com faculdades mais elovadas é mais exigente para ser feliz ¢ é provavelmente mais capaz de softer de mangira intensa (..) do gue um ser de faculdades inferiores; mas, apesar de tudo, cle jamais desejaria situar-se em um patamar de existéncia que considera inferior.” Por que no queremos trocar uma vida comprometida com as nossas mais altas faculdades por uma vida de contentamento banal? Mill acha que a azo para isso tem a ver com o amor pela liberdade e pela independéncia pessoal” e conclui aue “set argumento mais adequado é 0 senso de dignidade que todos os seres, jtumanos possuem de uma forma ou de outra®.#* Mill reconheve que “ocasionalmente, sob a influéncia da tentagao”, até mesino o melhor entre nds adia os prazeres mais elevados em favor dos mais simples, Todos nés, por vezes, cedemos ao impulso da preguiga, En- ‘wetanto, iso nao significa que ndo saibamos dlistinguir entre Rembrandt e 70 sama eepsoducio, Mill aborda esse ponto em uma passagem memoravel: «tg melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeitos melhor ser Sécrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E, se o tolo fou 0 potco tiverem uma opinido diferente, é porque eles 86 conhecem o proprio lado da questo.” ; Essa expressdo de fé nas faculdades humanas mais elevadas é convin- cente. Mas, a0 basear-se nela, Mill foge da premissa do atilitarismo. Os esejos de facto nao so mais a tnica base para julgat o que é nobre € ‘que é vulgar. O padro atual parte de um ideal da dignidade humana independente daquilo que queremos € desejamos. Os prazeres mais ele- vvados no sio maiores porque os preferimos; nds 0s preferimos porque reconhecemos que sdo mais elevados. Nao consideramos Hamlet uma grande obra de arte porque a preferimos as diversdes mais simples, e sim porque ela exige mais de nossas faculdades ¢ nos torna mais plenamente bumanos. (© que acontece com os direitos individuais acontece também com ‘0s prazeres mais elevados: Mill salva o utilitarismo da acusagao de que ‘le reduz tudo a um céleulo primitivo de prazer e dor, mas 0 consegue apenas invocando um ideal moral da dignidade ¢ da personalidade hu- mana independente da propria urtilidade. Entre os dois maiores defensores do urilitarismo, Mill foi o filésofo mais humano; Bentham, o mais consistente. Bentham morreu em 1832, as 84 anos, Entretanto, se vor’ for a Londres hoje, pode visité-lo. Ele exigia em testamento que seu corpo fosse conservado, embalsamado & exposto. E assim ele se encontra no University College de Londres, onde Permanece sentado e meditarivo dentro de uma urna de video, com as Toupas gue vestia em vida. Pouco ames de morrer, Bentham fez a si mesmo uma pergunta coe- fente com sua filosofia: Qual seria a utilidade de um homem morto paca 05 vivos? Uma das utilidades seria, coneluiu, ceder © proprio corpo para estudo da anatomia. No caso de grandes fildsofos, no entanto, melhor seria preservar sua presenga fisica, a fim de inspirar as futuras geragdes de pensadores.** Bentham enquadrou-se na segunda categoria. n Busty De fato, a modéstia ndo era uma das caracteristicas mais evidentes de Bentham, Ele no apenas deu instrugGes rigorosas para a conservacio. © exposi¢do de seu corpo, mas também sngeriu que seus amigos ¢ dis- cipulos se reunissem todos os anos, “no intuito de celebrar o fundador do maior sistema de felicidade moral e legal” ¢, quando 0 fizessem, que Bentham estivesse presente na ocasitio.®® Seusadmiradores fizeram-lhe a vontade. O “autofcone” de Bentham, conforme ele mesmo o chamou, estava presente na fundago da Socieda- de Internacional Bentham na década de 1980. E consta que o Bentham embalsamado é levado para reunides do conselho diretor da faculdade, cujas minutas © registram como “presente, porém nao votante”® ‘Apesar do planejamento criterioso de Bentham, © processo de em- balsamamento da sua cabega ndo deu certo, ¢ agora ele mantém sua Vigilia com uma cabega de cera no lugar da verdadeira. Sua cabega verdadeira, atualmente mantida em um por, foi exposta por algum tempo sobre uma bandeja entre seus pés. Mas os estudantes roubaram- nna e cobraram como resgate que a universidade doasse dinheiro a uma obra de caridade,® ‘Mesmo depois de morto, Jeremy Bentham promove o bem maior para o maior nimero de pessoas. Notas 1. Queen v. Dudley avd Stepbens, 14 Queens Bench Division 273, 9 de dexembro de 1884, Ciragdes de nozicia de fornal en. “The Story of the Mignonetse”, Tho iis- trated Lowdon News, 20 de setembro de 1884, Vertambém A. W. Brian Simpson, Camibatism and the Conumion Laww (Chicago, University of Chicago Peess, 1984}, 2, Jeremy Bentham, Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789), J.-H. BurnseH. L.A. Hart, eds. (Oxford, Oxford University Press, 1996), cap. 1 3. Tbidem, 4, Jeremy Bentham, “Tracts on Poor Laws and Pauper Management”, 1797,<1 John Bowring, ed., The Works of Jeremy Bentham, vol. 8 (Nova York, Russel & Russell, 1962), pp. 369-439, R 5. Ibidem, p. 401. 6 Jbidem, pp. 401-402, q Ibidem, p. 373. 8, Ursula K. Le Guin, “The Ones Who Walked Away from Omelas”, em Richard ‘Bausch, ed., Norton Anthology of Short Fiction (Nova York, W. W, Norton, 2000}. 9. Gordon Faizclough, “Philip Morris Noes Cigarettes’ Benefits for Nation’s Fi- ances”, Wall Street Journal, 16 dejulho de 2001, p. A2. 0 rexzo da reportagem, Public Finance Balance of Smoking in the Czech Republic”, 28 de novernbro de 2000, conform foi preparado paca Philip Morris por Atcku D. Lice International, Ine, esté disponivel online em www.mnindully.org/Induscry/Philip- Morris Czech -Suady-hrm e em wwwstobaccofreekids.ong/eeportsiphilipmorrisfpmezechstudy. pdf, 410. Ellen Goodman, “Thanks, but No Thanks”, Boston Globe, 22 de julho de 2008, p.D?. 11. Gordon Fairclough, “Philip Morris Says l's Sosry for Death Report", Wall Stree ‘Journal, 26 de jalho de 2001, p. Bt. 12, 0 caso da corte era Grinishaw v. Ford Motor Co., 174 Cal. Reporter 348 (Cal. Ct, App. 198}. A analise custo c bereficio foi divulgada em Mark Dowie, “Pico Madness", Mother Jovos, setembrofoucubro de 1977, Paza um caso similar da General Motors, ver Elsa Walsh ¢ Benjamin Weiser, “Court Secrecy Masks Safety Issues", Washington Post, 23 de autubro de 1988, pp. Al, A22. 13. W. Kip Kiscusi, “Corporate Risk Analysis: A Reckless Act?", Stanford Law Review 52 Ulevereivo de 2000): 569, 14, Katharine Q. Seelyee John Tierney, “ERA Drops Age-Based Cost Studies”, New York Tints, 8 de maio de 2003, . A26, Ciely Skraycki, “Under Fire, EPA Drops the ‘Senico Death Discount”, Washington Post, 13 de mao de 2003, p. Els Robett Habn ¢ Scott Wallsten, "Whose Life Is Worth More? (And Why Is Ir Hortible to Ask2", Washington Pose, 1° de junho de 2003. 15. Ore Ashenielter ¢ Michael Grecestone, “Using Mandated Speed Limits to Mea- ste the Valuc ofa Statistical Life, Journal of Political Econowy 112, suplemmenta Afevercizo de 2004}: 8227-62, 16, Edward L, Thorndike, Human Nature and the Social Order (Nova York, Macinil- lan, 1940}, Versio resumida editada por Geraldine Joncich Clifford (Boston: MIT Press, 1968), pp. 78-83. V7. Ibidem, p, 43. 18. Ibidem. 19. John Stuart Mill, On Liberty (1859}, Stefan Collin, ed. (Cambridge, Cambridge University Press, 19893, 2p. 1 20. Ihidem. 2. Kbidem, cap. 3. 72 22. Thidem. 23. thidem. 24, Acirasioé de um texto pouco conkecida de Bentham, “The Retionale of Reward?, publicado na década de 1820. A opinifo de Bentham tornoxrse conhecia por ia. rermédio de John Stuart Mill, Ver Ross Harrison, Bentham (Londres, Routledge, 1983), pS. 25, John Stuart Mill, Utilitarianism (1861), George Sher, ed. (Indianapolis, Hackett Publishing, 1979), cap. 2. 26. tbsdem. 27, Wbidem, cap. 4 28. Ibider, cap. 2 29, Ibider 30. Eu me basceiequie nos pardgrafos sepuintes no excelente rela de Joseph Lelyveld “English Thinker {1748-1832 Preserves His Poise”, New York Times, 18 de janbo de 1986, 231, “Extrack from Jeremy Bentham’s Last Will And Testamenc”, 30 de maio de 1832, 10 website do Bentham Project, University College London, ema wwwelac.aky Bentham-Projecs/info/will.Arm. 432. Esses e outros casos so relatados no website de Bentham Project, University College London, em wwwaclak/Benthan-Projectintorib.ber. 33. Ibidem. capiTuLo3 Somos donos de nés mesmos? / A ideologia libertaria ‘Todo outono, a revista Forbes publica uma fista com os quatrocentos americanos mais ricos. Durante mais de dez anos, fundador da Miero- soft, Bill Gates, manteve-ve no topo da lista, como aconteceu em 2008, quando a Forbes calculou sua fortuna fiquida em 57 bilhdes de d6lares. Entre os outros membros do clube encontram-se o investidor Warren Buffert (em segundo lugar, com 50 bilhdes de délares}, os proprietarios da Wal-Mart, 0s fundadores do Google e da Amazon, varios industriais do petr6leo, adminiscradores de fundos hedge, magnatas da midia e do mercado imobiliario, a apresentadora de televisio Oprah Winfrey (no 155° lugar, com 2,7 bilhdes de délares) e 0 dono do New York Yankees, George Steinbrenner (na iltima colocago, com 1,3 bilhdo de délares)+ A riqueza da economia americana € tao vasta, até mesmo em situacao de crise, que ndo basta ser um mero biliondrio para ser admitido entre os 400 da Forbes. Na verdade, mais de um terco da riqueza do pais esta nas ‘mos de 1% dos americanos mais ricos, mais do que a riqueza dos 90% ‘menos favorecidos junta. Os 10% de laces no topo da lista representam 42% de toda a renda e mantém 71% de toda a rigueza? A desigualdade econdmica € mais exorbitante nos Estados Unidos do que nas outras democracias. Algumas pessoas consideram essa desi- Sualdade injusta e sio favordveis & taxagdo do rico paca ajudar o pobre, Outras discordam, Elas dizem que nada ha de injusto na desigualdade econbmica desde que ela ndo resulte do uso da forga ou de fraude, mas as escolhas feitas em uma economia de mercado. Quem tem razdo? Se voce acha que a justiga é a maximizacao da licidade, provavelmente apoiard a redistribuigdo da riqueza, pelos Seguintes motivos: suponhamos que tiremos 1 milhao de délates de n Bill Gates para dividi-lo entre cem pessoas necessitadas, dando 10 délares a cada uma. Isso resultaria em um aumento da felicidade geral, Gates mal sentiria falta do dinheiro, enquanto cada um dos destinaté- ios sentiria uma grande felicidade com os 10 mil d6lares inesperados, A.utilidade coletiva para essas pessoas seria maior do que a reducao da utilidade para Gates, Essa l6gica utilitarista poderia ir além para justificar uma rediseri- buigdo cadical da riguezas ela nos oricntazia a transferie dinhciro do rico para 0 pobre até que o dltimo délar extraido de Gates o ferisse na mesma proporgio da ajuda dada ao destinatario, Esse cendrio de Robin Hood permite pelo menos duas objegées — uma € inerente 20 raciocinio utilitarista e a outra vem de fora dele. A primeira objecdo preocupa-se com o fato de altos impostos, principalmente sobre a renda, reduzirem o incentivo ao trabalho € aos investimentos, 0 que levaria a um declinio da produtividade. Se o bolo econdmico encolher, deixando menos paza sedistribuir, o nivel geral da utilidade pode cai, Portanto, antes de cobrar impostos excessivos de Bill Gates ¢ Oprah Winfrey, o utilitarista deveria questionar-se se, ao fazer isso, no os estaria motivando a trabalhar menos e ganhar menos, consequente- mente reduzindo a quantia de dinheizo disponivel para redistribuigao aos necessitados. A segunda objecao desconsidera esses céleulos. Ela argumenta que cobrar impostas do rico para ajudar o pobre é injusto porque isso viola uum direito fundamental. De acordo com essa objecdo, subtraie dinhei- ro de Gates e Winfrey sem 0 seu consentimento, mesmo que por uma boa causa, é coercivo. E uma violagao da liberdade deles de utilizar seu dinheiro como quiserem. Aqueles que se opdem & redistribuigao com base nesses argumentos so muitas vezes chamados de “libertarios”. Os libertirios defendem os mercados livres se opdem regula~ mentagdo do governo, ndo em nome da eficiéncia econdmica, e sim em nome da liberdade humana, Sua alegaso principal € que cada um de 1nds tem o direito fundamental 8 liberdade — temos o dizeito de fazer 0 que quisermos com aquilo que nos pertence, desde que respeitemos os direitos dos outros de fazer 0 mesmo. 8 ESTADO MINIMO $e a tcoria libertdria dos direitos estiver correta, muitas atividades do Estado moderno so ilegitimas e violam a liberdade. Apenas um Estado iminimo — aquele que faga cumprir contratos, proteja a propriedade privada contra roubos ¢ mantenha a paz — é compativel com a teoria libertéria dos dizeitos. Qualquer Estado que va além disso é moralmente injustificével. O libertario rejeita trés tipos de diretrizes leis que o Estado modern normalmente promulga: 1. Nenhum paternalismo. Os libertérios si contra as leis que prote- gem as pessoas contra si mesmas. As leis que tornam obrigatério 0 uso do cinto de seguranga so um bom exemplo, bem como as leis relativas a0 uso de capacetes para motociclistas. Embora 9 fato de dicigir uma moto sem capacete seja uma imprudéncia, e mesmo considerando que as leis sobre o uso de capacetes salvem vidas e evitem ferimentos gra- ves, os libertérios argumentam que elas violam o direiro do individu de decidir 0s riscos que quer assumir. Desde que nao haja riscos para tercciros ¢ que os pilotos de motos sejam responséveis pelas proprias despesas médicas, o Estado nao tem o diseito de ditar a que riscos eles podem submeter seu corpo e sua vida. 2. Nenhuma legislac3o sobre a moral. Os libertarios so contra 0 uso da forga coerciva da lei para promover nogdes de virtude ou para expressar as convicgdes morais da maioria. A prostituigao pode ser moralmente contestavel para muitas pessoas, mas nao justfica leis que Profbam adultos conscientes de praticé-la. Em determinadas comui dades, a maioria pode desaprovar a homossexualidade, mas isso no justifica leis que privem gays e lésbicas do direito de escolher livremente 05 parceiros sexuais. 3. Nenhuma redistribuigdo de renda ou riqueza. A teoria libertéria dos direitos exclui qualquer lei que force algumas pessoas a sjudar Sutras, incluindo impostos para redistribuigao de riqueza. Embora seja descjavel que o mais abastado ajude o menos afortunado —subsidiando suas despesas de satide, moradia e educacao ~, esse auxilio deve ser fa- ” cultativo para cada individuo, e ndo uma obrigagao ditada pelo governo, De acordo com o ponto de vista libertirio, taxas para redistribuigao sig uma forma de coergdo e até mesmo de roubo, O Estado nio tem mais direito de forgar o contribuinte abastado a apoiar os programas sociais ara o pobre do que um ladrio benevolente de roubar o dinheiro do rico para distribui-lo entre os desfavorecidos. A filosofia libertaria nao se define com clareza no espectro politico, Conservaclares favoraveis & politica econémiga do laissez-faire frequene temente discordam dos libertarios a respeito de questdes culturais como oracdo nas escolas, aborto e restrigdes 4 pornografia. E muitos partid ios do Estado de bem-estar social tém uma visio libertatia de assuntos como os direitos dos homossexuais, direitos de reprodugao, liberdade de expressio e separacao entre Igreja e Estado. Na década de 1980, as ideias libertarias encontraram proeminente expressio na retérica antigovernamental ¢ pré-mercado de Ronald Rea~ gan ¢ Margaret Thatcher. Como dontrina intelectual, a teoria libertéria jd havia surgido antes, em oposigo ao Estado de bem-esrar social, Em ‘The Constitution of Liberty (1960), 0 economista ¢ filésofo austrfaco Friedrich A. Hayek (1899-1992) argumentou que qualquer tentativa de forcar maior igualdade econdmica tenderia a coagir ¢ a destruir uma sociedade livre. "Em Capitalism and Freedom (1962), 0 economista ame- ricano Milton Friedman (1912-2006) argumentou que muitas atividades estatais amplamente aceitas sdo infragdes ilegitimas da liberdade indivi dual. A previdéncia social, ou quaiquer outro programa governamental obrigatério, é um de seus principais exemplos: “Se um homem cons- cientemente decidir viver o dia de hoje, usar seus recursos para usuftuir © presente, escolhendo livremente uma velhice mais penosa, com que Cireito nés o impedimos de fazer isso2”, Friedman pergunta. Podemos incentivar uma pessoa a poupar para a aposentadoria, “mas terfamos 0 direito de usar a coagio para evitar que ela faga 0 que decidir fazer?™ Friedman é contra a regulamentacdo do salicio minimo pelo mesimno motivo. Para ele, o governo nao tem o direito de intecferir no salario pago pelos empregaclores, mesmo que seja baixo, seos trabalhadores resolverem aceité-lo. O governo também viola a liberdade individual quando cria 20 Jeis contra a discriminagao no mercado de trabalho. Se os empregadores quiserem discriminar com base em raga, eligifo ou qualquer outro ator, 9 Estado nao tem o dircito de impedir que eles ajam assim, Na opiniao de Friedman, “tal legislagao envolve claramente a interferéncia na liberdade dos individuos de assinar contratos voluntérios entre si.°5 "Asexigéncias para 0 exercicio de profissdes também interferem errone- amente na liberdade de escolha. Se um barbeiro sem treinamento quiser oferecer seus scrvigos 20 péblico, ce alguns clicntes accitarem arrisear um corte de cabelos mais barato, o Estado nfo tem comperéncia para proibir a transagio. Friedman estende sua ldgica até mesmo para os médicos. Se ‘eu quiser que me fagam uma apendicectomia de baixo custo, devo ser livre para contratar quem eu bem quiser, diplomado ou nao, para sealizar 0 trabatho, £ verdade que a maioria das pessoas quer garantias da qualifi- cago de seu médico, ¢ o mercado pode fornecer tal informagio. Em vez de confiar apenas nos médicos licenciados pelo Estado, Friedman sugere ‘que os pacientes possam utilizar servigas particulaces de avaligsio, como ‘os selos de aprovacao do Consumer Reports oudo Good Housekeeping.® AFILOSOFIA DO LIVRE MERCADO. Em Anarchy, State, and Utopia (1974), Robert Nozick faz. uma defesa filoséfica dos principios fibertarios e um desafio ao conceito difundide do ‘Que seja justiga distributiva. Ele parte da afirmagio de que os individuos tém direitos “tao inaliendveis e abrangentes” que “levantam a questéo do que, se é que ha alguma coisa, cabe ao Estado fazer”. Ele conclui que “apenas um Estado minimo, limitado a fazer cumprie contratos e proreger 5 pessoas contra a forga, o roubo e a fraude, é justificavel. Qualquer Estado com poderes mais abrangentes viola os direitos dos individuos de ‘do serem forgados a fazer o que no querem, portanto, ndo se justifica”’ Entre as coisas que ninguém deve ser forgado a fazer, destaca-se a obrigacao de ajudar o préximo. Cobrar impostos do rico para ajudar © pobre é coagir o rico. Isso viola seu direito de fazer 0 que quiser com Aquilo que possui. 8 De acordo com Nozick, ndo ha nada de errado na desigualdade econémica. O simples fato de saber que os 400 da Forbes tém bilhes enquanto outros nada tém nio lhe permite tirar conclusses sobre a justiga ou injustiga da situagdo. Nozick repudia a ideia de que uma distribuigao justa consista em um determinado padrao — como rendimentos igualitarios, ou utilidade igualitaria, ou, ainda, atendi- mento igualitério das necessidades basicas, O que importa € como a diseribuigdo € feita Nozick tejeita as teorias preestabelecidas de justia em favor daquelas ue respeitam as escolhas individuais nos livres mercaclos. Ele argumenta que a justiga distributiva deve atender a duas condigdes — justiga na aquisicao das posses e justiga em sua transferéneia.* A primeira condigao é que a riqueza tenha origem legitima. (Se voce fez fortuna com a venda de produtos roubados, por exemplo, nzo teria direito a possui-la.) A segunda pergunta se o dinheiro foi obtido por meio de negociagdes legais no mercado ou de doagdes voluntitias re- cebidas de outras pessoas. Se a resposta As duas questdes for sim, voce estd autorizado a possuir tais bens, ¢ 0 Estado nfo pode tird-ios de voce sem seu consentimento. Contanto que ninguém inicie sua fortuna com ganhos ilicitos, qualquer distribuicdo resultante do livre mercado é justa, a despeito de, no final, ela parecer igual ou desigual. Nozick admite que nao é facil determinar se o capital que deu inicio 4 fortuna de uma pessoa teve origem licita ou ilicita. Como poderemos saber até que ponto a distribuigao atual de rends e fortuna reflete oct pacdes ilegitimas de terras on aquisicao de bens por meio da forga, do roubo ou de fraudes que aconteceram ha varias goragbes? Se pudéssemos provar que aqueles que esto agora no topo da piramide sio beneficidrios de injustigas passadas — como a escravidao de negros ou a expropriagio de indios —, seria entdo 0 caso, segundo Nozick, de corrigir a injustiga por meio de taxagdes, reparagdes ow outros meios. Mas é importante notar que tais medidas tém como objetivo cozrieir eros do passado, ndo resolver a questo da equidade em si. Nozick ilustra a falta de sentido fem sua opinio} da redistribuigdo de riquezas citando um exemplo hipotético envolyendo o grande solo do 2 basquere Wilt Chamberlain, cujo salario atingia, no inicio da década de 41970, entao incrivel quantia de 200 mil délares por temporada. Jé que ‘Michael Jordan é 0 icone do basquete atualmente, podemnos atualizar 0 exemplo de Nozick com Jordan, que, no iiltimo ano em que jogou pelo Chicago Bulls, recebeu 31 milhdes de délares — quantia maior, por jogo, do que Chamberlain recebia em uma temporada. ‘ODINKEIRO DE MICHAEL JORDAN Para deixar de lado qualquer questéo sobre capital inieial, imagine- ‘mos, sugere Nozick, que estamos partindo de uma distribuigao inicial equinime de renda (qualquer que seja nosso conceito de equanimidade). Partimos ento de uma distribuigdo perfeitamente equanime, digamos. ‘Tem inicio, entio, a temporada de basquete. Agueles que querem as- sistir aos jogos com Michael Jordan depositam cinco délares em uma caixa cada ver. que compram um ingresso. © dinheiro da caixa é dado a Jordan. (Na vida real, evidentemente, o saldrio de Jordan é pago pelos proprietérios do time com o rendimento auferido. O pressuposto simplificado de Nozick — de que os torcedores pagam diretamente a Jordan — & uma maneira de enfatizar a questo filoséfica selativa a aguisigio voluntatia,) Ja que muitas pessoas tém um grande desejo de ver Jordan jogar, © Comparecimento é consideravel e a caixa fica cheia, No final da tempo- sada, Jordan tem 31 milhdes de d6lares, muito mais do que qualquer outzo. O resultado disso € que a distribuicdo inicial — aquela que voce considera justa — no existe mais. Jordan tem mais; e os outros, menos, Contudo, a nova distribuigo parriu de escolhas inteiramente voluntarias, ‘Quem tem motivos para reclamar? Certamente no aqueles que pagaram ara ver Jordan jogar; cles compraram ingressos por vontade propria, Certamente nao os que nao gostam de basquete ¢ ficaram em casa, pois no gasraram seu dinheiro com Jordan e nao tém menos dinheiro agora do que tinham antes. Com roda certeza, nao Jordan, pois ele fea a escolha de jogar basquete em troca de uma renda consideravel.” a Norick afirma que esse cendrio ilustra dois problemas inerentes a teorias geralmente accitas de justiga distributiva, Primeiramente, a liberdade & mais importante do que padres preconcebidos de justica discributiva, Qualquer um que acredite que a desigualdade econémica seja injusta terd de interferir no livce mescado, repetida e continuamente, para eliminar os efeitos das escolfia feitas pelos individuos. Em segundo lugar, interferir dessa forma —taxando Jordan pata apoiar programas de ajuda aos necessitados — nao apenas anula or resultados das transagées voluntarias, mas também viola os direitos de Jordan ao tomardhe os ganhos. Ele estaria sendo forgado, na verdade, a fazer uma contribuigo de catidade contra sua vontade. Afinal, 0 que haveria de errado em taxar os ganhos de Jordan? Segun- do Nozick, os fundamentos morais vio além do dinheiro. O que esta em questio, acredita ele, é nada menos do que a liberdade humana. Ele explica sua tese da seguinte forma: “A taxagio dos rendimentos do trabalho é 0 ‘mesmo que trabalho forgado,”" Quando o Estado se julga no direito de exigir uma parte dos meus rendimentos, ele também se atribui o direito de exigir ume parte do meu tempo. Em ver de tirar, digamos, 30% da minha renda, 0 Estado pode, da mesma forma, me obrigar a passar 30% do meu tempo trabalhando para ele. Ese o Estado pode me forcara trabalhar para ele, estd essencialmente declarando seu diseito de propriedade sobre mim. Apaderar-se do produto do trabatho de alguém equivale a apoderar-se de horas do seu tempo, obrigando-o a exercer varias atividades. Se 0 governo o forga a executar um determinado trabalho, ou um trabalho nao remunerado, durante certo periodo de tempo, ele estd devidindo o ‘que voce deve fazer e quais sao as propésitos do seu trabalho, sem levat em conta suas decisbes. Isso (..) dda ele 0 direito parcial de propriedade sobre vocé.! Essa linha de racioesnio nos conduz ao cerne moral da reivindicagio libertdia —a ideia de que uma pessoa é a dinica proprietari de si mes- ma, Se sou senhor de mim mesmo, devo ser senhor do meu trabalho. (Se outro individuo pudesse me obrigar a trabaihar, esse individuo seria 64 meu senor ¢ en seria seu escravo,) Mas, se son dono do meu trabalho, devo ter 0 direito aos seus frutos. (Se ontra pessoa tiver direito aos meus sendimentos, essa pessoa seré dona do meu trabalho e sera, consequen- temente, minka dona.) Esse é © motivo pelo qual, segundo Nozick, a taxacio de parte dos 31 milhdes de délares de Michael Jordan para ajudar os pobres viola seus direitos. Na realidade, isso significa que o Estado € parcialmente proprietario dele. Os libertdrios veem uma sequéncia légica entre taxacéio (quando alguém se apossa do que ecebo}, trabalho forgado (quando alguém se apossa da minha forga de trabalho) ¢ escravidao (quando me nega a posse de mim mesino}: Posse de simesmo —_Apropriacdo indébita pessoa livre escravo trabalho livre trabalho forgado produto do trabalho impostos Evidentemente, até mesmo a mais alta aliquota de imposto sobre renda no exige 100% dos rendimentos de uma pessoa. Portanto, 0 governo no tem a posse integral dos seus contribuintes. Mas Nozick afirma que ‘ogoverno exige a posse de uma parte de nés—correspondente a porgio do rendimento que somos obrigados a pagar para sustentar quaisquer causas que extrapolem 0 Fstado minimo, ‘SOMOS PROPRIETARIOS DE NOS MESMOS? Quando Michael Jordan anunciou seu afastamento das quadras de basquete, em 1993, os torcedores do Chicago Bulls ficaram desolados, Mais tarde ele voltaria e levaria 0s Bulls a vencer mais trés campeonatos. Suponhamos, no entanto, que em 1993 0 Conselho do Chicago Bulls, ou mesmo o Congresso, resolvesse agradar aos torcedores e obrigasse Jordan a jogar basquete durante um terco da temporada seguinte. A ‘Maioria das pessoas consideraria essa lei injusta, pois ela estaria violando 85 a liberdade de Jordan. Mas se o Congresso no tem o direito de forgar Jordan a voltar as quadras de basquete (mesmo que por um tergo da temporada), que dircitos teria de forgé-lo a abrir mao de um terco do dinheiro que ele recebe jogando basquete? Aqueles que se mostram favoraveis 4 cedistribuigdo da renda por meio de impostos levantam vérias objegdes 4 Logica libectaria, Ha respostas para a maioria dessas objecdes, Objegio 1: A taxagao ndo é tdo ruim quanto 0 trabalho forcado, Quando Ihe cobram impostos sobre 0 que voce aufere por meio do sew trabalho, resta-lhe a opeio de trabalhar menos e pagar menos impostos, mas, se for forgado a trabalhar, néo existiré tal escolha. Resposta libertiria: Sim, é verdade, Mas por que o Estado deveria forgéclo a fazer essa escotha? Algumas pessoas gostam de apreciar por do sol enquanto outras preferem atividades que impliquem algum custo — ir a0 cinema, comer fora, velejar e assim por diante, Por que as pessoas que preferem o lazer devem pagar menos impostos do que aquelas que dao mais valor as atividades pelas quais precisam pagar? Consideremos uma analogia: um ladrio invade sua casa e s6 tem tempo de roubar ou o aparelho de TV de tela plana, que custa mil dolares, ou aqueles mil délares em espécie que voce havia escondido sob o colchao. Provavelmente vocé preteriria que ele levasse a televisio, porque isso lhe daria a opgao de escolher entre gastar ou no a quan- tia na compra de uma nova. Se o ladrao tivesse roubado o dinheito, voce nao teria escolha {na hipécese de ser tarde demais para que voce devolvesse o aparelho de TV e fosse inregralmente ceembolsado). Entre- tanto, essa preferéncia por perder a televisio (ou por trabalhar menos} nfo vem ao caso; 0 lado eo Estado agem errado em ambos 05 casos, independearemente do que as vitimas possam vir a fazer para reduzic as perdas que tiveram. 86 Objegio 2: O pobre precisa mais do dinkeiro, Respostalibertdria: Pode ser, Mas seria 0 caso de persuadir 0 abonado a colaborar com o necessitado por livre e esponténea vontade, Isso no justifica que Jordan e Gates sejam obrigados a fazer doagbes de cari- dade. Roubar do rico para dar ao pobre nio deixa de ser um roubo, ¢ ‘aio importa que quem esteja roubando seja Robin Hood on o Estado, ‘Consideremos a seguinte analogia: um paciente que se submete a dislise necessita de um dos meus rins mais do que eu (presumindo que ‘05 meus sejam sadios). Isso, porém, nao Ihe dé direito algum sobre um tim meu. © Estado nao poderia requisitar um dos meus tins para aju- dar o paciente em dislise, por mais urgente € premente que fosse sua necessidade. Por que no? Porqne ele é meu, A necessidade alheia no esté acima do meu diteito fundamental de fazer o que bem entender com aquilo que possuo, Objegao 3: Michael Jordan nao joga soxinbo. Portanto, ele tem wma divida para cont aqueles que contribuem para seu sucesso. Resposta libertdria: E verdade que o sucesso de Jordan depende de ou- tras pessoas. © basquete é um esporte de equipe. Ninguém pagaria 31 milhdes de délares para vé-lo fazer lances livres sozinho em uma quadta vazia, Ele jamais teria conseguido aquela fortuna sem companheiros de equipe, treinadores, tecnicos, juizes, narradores esportivos, trabalhadores de manutengio nos estadios e varios outros. Entretanto, aquels pessoas jé foram remuneradas por seus servigos dc acordo com o valor de mercado, Embora recebam menos do que Jordan, elas aceitaram voluntariamente 0s valores atribuidos as fungdes ue desempenham. Assim, ndo hd motivos para que Jordan Ihes deva uma parte de seus ganhos. E, ainda que Jordan devesse alguma coisa 408 companheiros de equipe ou treinadores, seria dificil imaginar que essa divida pudesse justificar a taxacdo de seus cendimentos em prol do hecimento de cestas bsicas para quem tem fomee moradias piiblicas Para os desabrigados. a Objegao 4: Jordan nao esté, na verdade, sendo taxado sem 0 seu consentimento. Como cidadao de uma democracia, ele tem vox ativa para interferir na elaborasao de leis referentes aos impostos aos quais esta sujeito. Resposta libertdria: O consentimento democratico no € suficiente, Suponhamos que Jordan tenha lutado contra a lei relativa aos impostos ‘mas que cla tenha sido aprovada mesmo contra sui vuutade. O Internal Revenwe Service (Secretaria da Receita) ndo o obrigaria, ainda assim, a pagar? Certamente que sim. Vocé poderia dizer que, ao viver nessa sociedade, Jordan estaria consentindo (implicitamente, pelo menos) em acatar a vontade da maioria e obedecer as leis. Mas isso significa que, 0 viver nessa sociedade simplesmente como cidadios, estamos dando 4 ‘maioria um cheque em branco assinado e aceitando de antemio qualquer lei, por mais injusta que seja? Se esse for 0 caso, a maioria pode cobrar impostos da minoria ow até mesmo confiscar arbitrariamente sua fortuna ¢ propriedade. E 0 que acontece com os direitos individuais? Se ao aceitar a democracia estivermos justificando 0 confisco da propriedade, estaremos também justificando 0 confisco da liberdade? Poderia a maioria privar-me da liberdade de expressao e de religido alegando que, como cidadio de- mocratico, cu jd teria dado meu consentimento para qualquer coisa que la venha a decidir? Os libertérios tém uma resposta pronta para cada uma das quatro primeiras objegdes. No entanto, ha outra mais dificil de refutar. Objegao $: Jordan é um homem de sorte. Ele tem a sorte de destacar-se no basquete pelo talento ¢ também de viver em uma sociedade que da valor a sua habilidade de rodopiar no are enfiar uma bola na cesta, Nao importa que ele tenha trabalhado arduamente para desenvolver tais habilidades: o fato que Jordan nio pode reivindicar os créditos por seus dotes naturais ou por viver em uma época em que o basquete é popular ¢ regiamente recompensado. Essas a8 coisas 140 resultam dos seus esforos. Assim, nao se pode dizer que ele tenha 0 direito moral de ficar com todo o dinheiro que seus talentos vecem, A comunidade, portanto, nio esté sendo injusta ao taxar seus ganhos em prol do bem piblico. Resposta libertdria: Essa objec3o coloca em questio se os talentos de Jordan slo realmente dele, Mas tal linha de raciocinio é potencialmente petigosa. Se Jordan nao tem direito aoe beneticios resultantes do exer- cicio do proprio talento, entao nao os possui realmente. E, se nao tiver a posse dos prOprios talentos e habilidades, nao é, na verdade, dono de si mesmo. E, se Jordan nao 6 0 dono de si mesmo, quem 0 €? Vocé tem cecteza de que quer atribuir 4 comunidade politica um direito de propriedade sobre seus cidadios? A ideia de um individuo ser dono de si mesmo é interessante, em espe- ial para aqueles que procuram um fundamento forte para os direitos individuais. A ideia de que pertengo a mim mesmo, € nao a0 Estado ou A comunidade politica, € uma forma de explicar por que éerrado que eu sacrifique meus diceitos em favor do bem-estar alheio, Lembremo-nos da nossa relutncia em empurrar da ponte o homem corpulento para que ele bloqueasse a passagem do bonde. Nao estariamos hesitando ¢m empurra-lo porque reconhecemos que sua vida Ihe pertence? Caso ele tivesse pulado espontaneamente para a morte a fim de salvar os trabalhadores dos trilhos, poucas pessoas fariam objegdes. Tratava-se, afinal, da vida que he pertencia. Mas nao podemos nos apoderar da vida alheia e usé-la, mesmo que isso seja feito por uma boa causa. O mesmo pode ser dito sobre o desafortunado taifeiro. Se Parker tivesse resolvido sacrificar a propria vida para salvar os companheiros famin- tos, a maioria diria que ele estava fazendo uso de um direito seu. Mas seus companheiros nao tinham 0 dizcito de se servir de uma vida que No Ihes pertencia. Muitas pessoas que repudiam a economia do laissez-faire invocam, 6m outras circunstancias, a ideia de que um individuo é dono de si mes- ™o. Isso pode explicar a persistente atragdo das ideias libertarias, até mesmo para aquelas pessoas que tendem a apoiar o Estado de bem-estat social. Consideremos a maneira pela qual o fato de o individuo ser dono de si mesmo surge em discussdes sobre a liberdade de reprodugio, a moral sexual e o direito a privacidade. © governo nao pode proibir os contraceptivos 01 0 aborto, afirmam alguns, porque as mulheres devem ser livres para decidir 0 que fazer com 0 proprio corpo. A lei no deve punir o adultério, prostituigdo ou a homossexualidade, muitas pes- soas dizem, porque adultos conscientex devem ser livres para escolher seus parceiros sexuais, Alguns so favordveis a0 comércio de rins para transplante baseando-se no fato de que, se oindividuo é dono do proprio. corpo, deveria, portanto, ser livee para vender seus érgios. Hé quem arta desse principio para defender o diceito ao suicidio assistido: jé que sou dono da minha vida, devo ser livee para pOr-Ihe fim, se quiser, ou para designar um médico fou qualquer pessoa} que aceite assistir-me nesse sentido. © Estado no tem o direito de me impedir de usar 0 men corpo ou dispor da minha vida como eu quiser. © conceito de que somos donos de n6s mesmos aparece em muitas discussdes sobre a liberdade de escolha, Se sou done do meu corpo, da minha vida ¢ da minha pessoa, devo ser livre para fazer 0 que quiser com eles (desde que nao prejudique os outros). Apesar de atraente, esse conceito tem algumas implicagdes que ndo sio faceis de accitar. Se voce esta tentado a adotac os principios libertarios e quer ver até onde poderia sustenté-los, analise os casos seguiintes. Vendendo rins ‘A maioria dos pafses protbe a compra ¢ a venda de érgios para trans- plantes. Nos Estados Unidos, pode-se doar um dos tins, mas nao é permitido pé-lo a venda, Entretanto, algumas pessoas acham que ¢3sas leis deveriam ser modificadas. Elas argumentam que, a cada ano, mi= Ihares de pessoas morrem & espera de um transplante de rim —e que a oferta aumentaria se existisse um livre meccado para esses rgdos. Elas acham, também, que as pessoas que precisam de dinheiro deveriam tet liberdade para vender os proprios rins se quisessem, 99 bm dos argumentos para que a compra ea venda de rins sejam per- iidas baseia-se na nocSo libertéria de que o individuo & dono de si mesmo: se ov dono do meu corpo, deveria ser livee para vender meus Grpd0s cuando quisesse, Como escreve Nozick, “o ponto centeal da osiio do direito de propriedade de X (..) & 0 direico de determinar 0 devers ser feito com X”."No entanto, poucos defensores da venda Je érgios adotam inteixamente a logica libertiia. Eis por qué: a maioria dos que prop3em 0 comiércio de rins enfatiza a importancia moral de se salvarem vidas ¢ 0 fato de que quase todos aqueles que doam um dos rins conseguem viver apenas com 0 outco. Mas, se voce acreditar que seu corpo e sua vida sio sua propriedade, nada disso seré realmente importante, Se voc@ é dono do seu corpo, set direito de usé-lo como bem desejarjé € motivo suficiente para que voce possa vender partes dele. As vidas que serdo salvas ou o bem que sera feiro no vém a0 caso. Para ver como isso acontece, imaginemos dois cas0s atipicos: Primneitamence, imaginemos que 0 suposto comprador de um dos seus rns sejaperfcitamente saudavel. Ele lhe oferece (ou provavelmente a.um camponés de um pais em desenvolvimento) 8 mil délares por um rim, nao porque precise desesperadamente de um transplante, e sim por ser um excéntrico negociante de obras de arre que vende Grgios hhumanos pata clientes abastados por motivos fateis. A compra ¢ a venda de rins por motivos fiteis deveriam ser permitidas? Se vocé acredita que somos donos do nosso corpo, teré dificuldade de dizer Go. O que importa no é 0 propésito, e sim o direito de dispor do ‘ue Ihe pertence como voc’ quiser. Evidentemente, voc? abominacia 0 bso inconsequente de partes do corpo e seria favorvel apenas venda delas para salvar vidas. Mas, se sustentar essa opiniao, sua defesa do ‘omércio de 6rgios no estaria baseada nas premissas libectérias. Voce ‘staria admitindo que nao temos um diceito de propriedade ilimizado sobre nossos corpos. Consideremos agora um segundo caso. Suponhamos que um agri- cultor de um vilatejo indiano ceseje, mais do que qualquer outea coisa 0 mundo, enviar seu filho para a faculdade. Para ober o dinheio, ele ” vende um dos rins a um americano rico que precisa de um transplante, Alguns anos mais tarde, quando se aproxima a época de o segundo filho do agricultor ir para a faculdade, outro comprador chega ao vilascjo + oferece um prego convidativo pelo outro rim, Deveria ele ser livre para vender 0 outro também, mesmo que isso 0 levasse a morte? Se a questa moral da venda de orgios se basear no conceito da propriedade de sj ‘mesmo, a resposta deve ser sim. Seria estranho supor que 0 agricultor Possuisse um dos rinse nfo possuisse 0 outro. Algumas pessoas poderiam alegar que ninguém deveria ser induzido a abrir mao da propria vide Por dinheiro. Mas, se possuimos nosso corpo e nossa rida, 0 agricultor, nesse caso, teria todo o direito de vender o segundo rith, mesmo que iss¢ implicasse vender sua vida. (Tal situagao nio é inteiramente hipotética, Na década de 1990, um presidiario na California tentou doar o segundo rim para a filha, A comissio de ética do hospital ndo concordou,) E possivel, evidentemente, permitir apenas as vendas de ‘Org3os que salvem vidas e nao oferecam risco a vida do vendedot. Mas essa politica nao teria como base o principio da propriedade de si mesmo. Se realmente Possuimos nosso corpo e nossa vida, devemos ter o poder de decidir se venderemos nossos 6rgios, com quais propésitos ¢ quaisquer que sejam 08 riscos para nés mesmos. Suicédio assistido. Em 2007, 0 Dr. Jack Kevorkian, de 79 anos, deixou uma prisio em Michigan apés cumprir uma pena de oito anos por ter administrado rogas letais a pacientes terminais que queria morter. Sua liberdade foi condicionada a promessa de nao mais assistir pacientes que quisessem cometer suicidio, Nos anos 1990, o Dr, Kevorkian (que ficou conhecido como “Dr. Morte") defendeu leis que permitissem @ suicidio assistido © p6s em pratica suas ideias, ajudando 130 pessoas a pér um fim a sua vida. Ele s6 foi acusado, julgado e condenado por assassinato de segundo Brau depois de ter permitido a divulgacao, no programa 60 Minutes da rede de televisio CBS, de um video que 0 mostrava em ago, aplicendo tuma injegao letal em ura homem que sofria da sindrome de Lou Gehrig.’ © snicidio assistido ¢ilegal em Michigan, estado de origem do Dr Kevorkian, eem todos os demais estados, exceto em Oregon ¢ Washing- ton. Muitos paises protbem o suicidio assistido e apenas alguns poucos (0 mais famoso é a Holanda) permitem-no abertamente, {A primeira vista, 0 argumento a favor do suicidio assistido parece ser a aplicagio da cartilha da filosofialibertavin, Para os libertarios, as leis que proibem 0 suicidio assistido so injustas pela seguinte razao: se a minba vida pertence a mim, devo ser livre para desistir dela. E, se eu fizet um acordo voluntério com alguém que s¢ disponha a me ajudar, 0 Estado ndo tem o direito de interferir. Entretanto, a permissio do suicidio assistide ndio depende neces- sariamente da ideia de que sejamos donos de nds mesmos ou de que nossas vidas pertencam a nés. Muitas pessoas que defendem o suicidio assistido nao invocam direitos de propriedade, mas falam em termos de dignidade e compaixéo. Argumentam que pacientes terminais que passam por um grande sofrimento devem ter permissio para apressar sua morte, em vez de prolongar uma dor excruciante sem esperancas. ‘Mesmo aqueles que acreditam que temos 0 dever de preservar a vida humana podem concluir que, em determinados momentos, 0s apelos & compaixio devem prevalecer sobre o dever de manter uma pessoa viva, Quando se trata de pacientes terminais, € muito ditcil dissociar a argumentagio libertéria a favor do snicidio assistido dos argumentos da compaixio. Para avaliar a forea moral a nogio de que o individuo €dono de si mesmo, consideremos um caso de suicidio assistido que ndo envolva um paciente terminal, Sem davida, é um caso estranho. Mas é exatamente isso que nos petmite avaliar a logica libervaria em si, livre das consideragies de dignidade e compaixio. Cantbalismo consensual Em 2001, am estranho encontro teve lugar na cidade alema de Roten- burg. Bernd-Jurgen Brandes, um engenheito de software de 43 anos, Fesponden a um antincio na internet que procurava alguém disposto a Ser morto ¢ comido. O antincio havia sido colocado por Armin Meiwes, 93 técnico de informética de 42 anos. Meiwes no oferecia compensacio financeira, apenas a experiéncia em si, Cerca de duzentas pessoas res- ponderam ao anincio. Quatro foram até a fazenda de Meiwes para uma entrevista, mas decidiram que nao estavam interessadas, Brandes, entretanto, depois de uma conversa informal com Meiwes, resolvew accitar a proposta. Meiwes matou seu visitante, cortou o corpo dele em pedagos e os guardou em sacos plisticos no freezer. Quando foi preso, © “Canibel de Rovenburg” jé havia comido quase vinte quilos de sua vitima voluntéria, cozinhando partes dela em azeite de oliva ¢ alho.* Meiwes foi levado a julgamento e seu caso chocante fascinow o pii- blico, chegando a confundir o jiri, A Alemanha no tem leis contrarias ao canibalismo, O acusado no poderia ser condenado por assassinato, segundo a defesa, porque a vitima participara voluntariamente da prd- pria morte. © advogado de Meiwes alegou que seu cliente s6 poderia ser acusado pelo crime de “matar por solicitagao”, uma forma de suicidio assistido cuja pena nao ultrapassa cinco anos. A corte resolveu a questo indiciando Meiwes por homicidio involuntério e condenando-o a oito anos ¢ meio de reclusio.!*Dois anos mais tarde, no entanto, uma corte de apelacio considerou a sentenga muito branda eo condenou a prisio perpétua.'‘A histéria sérdida teve um desfecho inusitado, € 0 assassino canibal tornou-se declaradamente vegetariano na priso, alegando que a ctiagio de animais de corte seria desurmana."” O canibalismo consensual entre adultos representa o teste definitivo para o principio libertirio da posse de si mesmo pelo individuo e da ideia de justige dele decortente. E uma forma extrema do suicidio assistido. Visto que no tem nenhuma relagao com 0 alivio da dor de um doeate terminal, a tinica justificativa cabivel é que somos os donos de nosso corpo e nossa vida e podemos fazer com eles o que bem entendetmos. Se © argumento libertirio estiver certo, seria injusto proibir o canibalismo, pois isso violatia o direito & liberdade. O Estado nao teria mais direito de punir Armin Meiwes do que de cobrar altos impostos de Bill Gates € Michael Jordan para ajudar os pobres, 96 Notas 4. Matchew Miller ¢ Duncan Greenbert, “The Forbes 400°, Forbes, 17 de setembro de 2008, em ww-forbes.conv2008/09/16tforbes-400-billionaires-lists-4001is08_ ex mn _0917richamericans_land.html. 2. Lawrence Michel, Jared Bernstein ¢ Sylvia Allegretto, The State of Working ‘America 2006/2007: An Economic Policy Institute Book, Whaca, ILR Press, um selo da Cornell University Press, 2007, com dados de Edward N. Wolff (2006),em ww. ctarcofworkingemerica.ore/tebiig/0S/SWAD6_0S_Wealth.pd ver tembim Arthur B. Kennickell, “Currents and Undercursenes: Changes in the Distribution of ‘Wealth, 1989-2004", Federal Reserve Board, Washington, 30 dejanciro de 2006, em worw.federalreserve.gov/pubsfossss2/papers/concenttation.2004.5.pdf. Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1960) 4. Milton Fiedman, Capitalism and Freedoms (Chicago, University of Chicago Press, 1961, p. 188. idem, p. 111. 6. Ibidem, pp. 137-60. 7, Robert Nozick, Anarchs, State, and Utopia (Nova York, Basic Books, 1974), p.ix 8. Ihidem, pp. 149-60. 9. Ibidem, pp. 160-64, 10. Ibidem, p. 169, M1 Ibidem, p. 172, 12. Ibidens, p. 171, 13, Monica Davey, “Kevorkian Speaks After His Release From Prison”, New York Times, 4 de junko de 2007. 14, Mack Lander, “Eating People Is Wrongt But Is lt Homicide? Court to Rul, New York Times, 26 de dezembro de 2003, p. At. 15. Mark Landier, “German Court Convicts Internet Cannibal of Manslaughter, Now York Times, 31 dejantizo de 2004, p. A3; Toay Patecsoa, “Cannibal of Ro- ‘tenburg Gets 8 Years for Eating a Willing Victim", The Independent (Londres), 31 de janeiro de 2004, p. 30. 16. LukeFarding, “German Couet Finds Cannibal Guilty of Mutde:", The Guardian Londres), 10 de mai de 2096, 9. 16. 1. Karen Bale, °Killer Cannibsl Becomes Veggie”, Scottish Daily Record, 21 de ‘novembro de 2007, p. 20. os wetrucs Prestadores de servico / O mercado e conceitos morais “Muitas das nossas mais acaloradas discusses sobre justiya envolvem 0 papel dos mescados: O livre mercado ¢ justo? Existem bens que o dineiro fio pode comprar — ou no deveria poder comprar? Caso existam, que bens so esses e o que ha de errado em vendé-los? ‘A questo do livre mercado fundamenta-se basicamente em duas afiemagdes — uma sobre liberdade e a outra sobre bem-estar social. A primeira refere-se a visio libertaria dos mercados, Segundo essa ideo- logia, ao permitir que as pessoas realizem trocas voluntérias, estamos respeitando sua liberdade; as leis que interferem no livre mercado vio~ Tam a liberdade individual, A segunda é o argumento utilitarista para ‘05 mercados, Esse argumento refere-se ao bem-estar geral que os livres metcados promovem, pois, quando duas pessoas fazem livremente um acordo, ambas ganham, Se o acordo as favorece sem que ninguém sefa prejudicado, cle aumenta a felicidade geral. Céticos do mercado questionam esses argumentos. Eles afirmam que as escolas de mercado nem sempre so to livres quanto parecem. E aficmam também que certos bens e praticas sociais sao corcompidos on degradados se implicarem algwma transagéo com dinheiro, ‘Neste capitulo analisaremos a moralidade da pritica de pagar para ‘que as pessoas executem dois tipos bem diferentes de trabalho — com- bater em guerras ¢ gerar filhos. Refletir sobre os acertos e erros do mer cado em relagdo a essas questées controversas nos ajudard a esclarecer 8 diferengas entce importantes teorias sobre justiga. 9 (© QUE E JUSTO: CONVOCAR SOLDADOS OU CONTRATA-LOS? ‘Nos primeiros meses dz Guerra Civil Americana, passeatas festivas ¢ 0 sentimento de patriotismo levaram dezenas de milhares de cidaddos dos estados do norte dos Estados Unidos a se alistar como voluntérios no exército da Unio. Coma derrota da Unio em Bull Run, porém, segnida pelo fracasso da tentativa do general Geozge B, McClellan de ocupar Richmond, os cidaddos do norte passaram temer que v cull n8o terminasse logo. Foi preciso convocar mais soldados e, em julho de 1862, Abraham Lincoln assinou a primeira lei de alistamento compuls6rio da Unido. A Confederacao, do sul, jd o adotara. A obrigatoriedade do servigo militar atingia a tradigio individualista americana em sua base, e a Unido abriu uma ampla concessa quem fosse convocado ¢ nao quisesse servie poderia contratar outra pessoa para assumir sew lugar.! Os convocados publicaram aniincios nos jornais em busca de subs- ritucos, oferecendo até 1.500 dolaces, valor consideravel na época. A lei da Confederacdo também permitia o pagamento a substitutes, © que deu origem a expressio “guerra dos ricos, luta dos pobres”, uma queixa que repercutiu no norte, Em margo de 1863, o Congreso aprovou uma ova lei relativa ao alistamento, na tentativa de solucionar o problema. Embora nao abolisse o direito de contratar um substituto, a lei permitia gue qualquer convocado pagasse ao governo uma taxa de 300 délares, em ver de servit, Apesar de essa taxa de compensagdo representar 0 salirio de quase um ano de um trabalhador ndo qualificado, houve a Preocupagio de estabelecé-ta dentro do limite das posses dos teabalha- dores comuns. Aigamas cidades e condados* subsidiavam a taxa para os convocados, ¢ companhias de seguros permitiam que os participantes pagassem um prémio mensal por uma apélice que cobriria a taxa em caso de convocagao.? Correspumlciies ds regis de um esse basin, mas com serra astonuia aiinise ‘traci © aed uma especie de “capital”, v municipiw:poly que hes da nom. Faisesd, por nip 88 peas mumsipas, 2 du cendinde ea esta. (Nd E) 190 Embora a intengdo fosse oferecer a isengao do servigo por um prego paixo, a taxa tornou-se mais impopular politicamente do que a substi ‘cdo — talvez porque cla parecesse estabelecer um prego para a vida caartyna (ot para 0 risco de morte}, dando a tal quantia a sangio do seaeno. Manchetes de jomais proclamavam: “Teenentos dolares pela Sua vida.” A revolta contra a lei provocou episédios de violencia nos postos de recrutamento, Na cidade de Nova York, em jullo de 1863, fima revolta durou vanios dias ¢ resultou na perda de mais de cem vidas. ‘No ano seguinte, o Congresso aprovou uma nova lei abolindo a taxa de compensacio. O direito de contratar um substitute, no entanto, foi mantido no norte (embora no tenha sido mantido no sul} durante toda guerra? 'No final, foram poucos os convocacos que lutaram efetivamente no exército da Unido. (Mesmo depois da criagio do servigo militar obriga~ t6rio, a grande forca do exército era constituida de voluntarios que se alistavam levados pelos soldos pagos e pela ameaga de ser convocados.} ‘Muitos foram convocados por meio de sorteios, mas fugiram ou foram dispensados por incapacidade. Entce os quase 207 mil efetivamente alistados, 87 mil pagaram a taxa de compensasao, 74 mil contrataram substitutos e apenas 46 mil de fato serviram.!Constam entre agueles que Pagaram substitutos para que combatessem em seu lugar os nomes de Andrew Carnegie e J. P. Morgan, os pais de Theodore ¢ Franklin Roo- sevele e os futuros presidentes Chester A. Arthur e Grover Cleveland.* Teria sido o sistema adorado na Guerra Civil uma maneira justa de Convocar soldados para o servigo militar? Quando fago essa pergunta a ‘meus alunos, quase todos dizem que nao. Eles afirmam que nio justo Permitir que os ricos contratein substitutes pobres para lutar em sew lugar. Como os muitos americanos que prorestaram nos anos 1860, eles Consideram tal sistema uma forma de discriminagio de classe. Pergunto entdo aos alunos se eles sio a favor do servigo militar com- Pulsério ou do exéreito woralmente voluntario que temos hoje. Quase todos preferem o exército voluntario (como a maioria dos americanos). levanta, porém, uma questéo dificil: se o sistema da Guerra Civil £8 injusto purque deixava que o rico contratasse outra pessoa para 101 ‘combater em seu Ingar, nfo parece que a mesma objegao se aplica ao exército voluntitio? Evidentemente, 0 método de contratacdo é diferente. Andrew Car. negie precisou encontrar o proprio substituto e pagar diretamente a ele, nos dias atuais, Exército recruta os soldados para lutar no fraque ou no Afeganistao e nds, os contribuintes, pagamos a cles coletivamente, ‘Mas permanece o fato de que aqueles de nds que preferem nao se alis- tar estéo contratando outras pessoas para cumbuler nussas guerras e | arriscar sua vida. Entao, moralmente falando, qual é a diferenca? Se o sistema de contratagaio da Guerra Civil era injusto, o exército voluntstio também nio 0 & Para analisar essa questo, deixemos 0 sistema da Guerra Civil de Jado € consideremos as duas maneiras basicas de recrutamento de sol- dados — a convocagio ¢ o mercado. Em sua forma mais simples, a convocagdo preenche as fileicas mi- Jitares rectutando todos os cidadaos qualificados para servir ou, caso no haja necessidade de todos eles, fazendo um sorteio para escolhee aqueles que servitdo. Esse foi o sistema usado pelos Estados Unidos durante a Primeira ¢ a Segunda Guerra Mundial, O servigo obrigatorio também foi adotado durante a Guerra do Vietn’, embora o sistema fosse complexo ¢ aberto a adiamentos para estudantes e pessoas com deter minadas ocupagies, o que permitiu que muitos nao fossem obrigados air para a guerra, O servico militar compulsério aumentou a oposigao a Guerra do Viernd, especialmente nos canpi universitarios. Até certo ponto em resposta a isso, 0 presidente Richard Nixon propés abolir o recruta- mento e, em 1973, quando os Estados Unidos retiraram suas tropas do Vietna, 2 forga militar voluntiria substituin 0 recrutamento. Como 0 servigo militar deixou de ser compuls6rio, o Exéecito aumentou o soldo © outros beneficios para atrair o miimero de soldados de que necessitava. Um exército voluntério, termo que usamos atualmente, preenche suas fileiras por meio do mercado de trabalho — tal como fazem restauran- tes, bancos, lojas e outros ramos de negécios. © termo “voluntério” nao € muito apropriado. O exéreito voluntério no € como um corpo 102 He bombeiros voluntirio, no qual as pessoas servem sem pagamento, jou a distribuigdo da sopa aos pobres, & qual trabalhadores dedicam sea tempo voluntariamente. E um exército profissional, cujos soldados 30 pagos para trobalhar. Os soldados so to “voluntatios” quanto fos empregados pagos em qualquer profiss4o. Ninguém é recrutado, € ‘trabalho é desempenhado por aqueles que concordam em fazé-lo em troca de dinheiro e ontros beneticios. ‘A disewssio sobre como uma sociedade democratica deve preencher suas leiras militares torna-se mais evidente em tempos de guerra, como atestam 0s tumultos contra as convocagées durante a Guerra Civil ou aera de protestos contra a Guerra do Vietna. Depois que os Estados Unidos adotaram a forca totalmente “voluntaria”, a questo da justiga relativa ao servigo militar ficou menos evidente para a opinio pablica. ‘Mas as guerras que os Estados Unidos travam no Iraque e no Afeganisti0 reavivaram o debate pablico: é correto que uma sociedade democratica recrute seus soldados por meio do mercado? A maioria dos americanos é a favor do exército voluntirio ¢ poucos gostariam de voltar ao servigo militar obrigatério, (Em setembro de 2007, no meio da Guerra do Iraque, uma pesquisa do Gallup constatou que 80% dos americanos eram contra o restabelecimento da convocagio, contra 18% a favor.*) Entretanto, a discussio que voltou a baila sobre 0 exército volunticio e o servigo militar obrigat6rio colocou-nos frente a frente com algumas questoes relevantes da filosofia politica — questes, sobre a liberdade individual e a obrigagio civil. Para explorar essas questdes, comparemos as trés formas de compor um exército que consideramos: 1, alistamento compulsério 2, convocagio com a possibilidade de contsatar um substituto (sistema da Guerra Civil) 3. sistema de mercado (exército “voluntério”) Qual seria a mais justa? 103 (© CASO DO EXERCITO VOLUNTARIO Se wot for adepto da filosofia libertéria, a resposta serd dbvia. O servico militar obrigatério (alternativa 1) € injusto porque é coercitivo, é um tipo de escravidao, Ble deixa implicito que 0 Estado tem a posse dos seus cidadios e que pode fazer com eles 0 que quiser, incluindo forgé-los a ‘combatere arriscar a vida na guerra. Ron Paul, membro republicano do ‘Cungresso ¢ preeminente libertério, defendeu recentemente esse pont de vista ao se opor A volta do recrutamento para o combate na Guerra do Iraque: “O servigo obrigatério é escraviddo pura e simples, consi- derada ilegal pela 13* Emenda Consticucional, que probe a servidao involuntéria. Lim militar obrigado a servir pode morter em combate, 0 {que tora ta! obrigatoriedade uma forma perigosissima de escravidiio.”” Encretanto, mesmo que voce ndo considere o secvico obrigatério um tipo de escravidio, podera se opor a ele com base no faro de que ele limita as escolhas do individuo e, assim, reduz a felicidade geral, Esse é um argumento utilitarista contra o servigo militar obrigat6rio. Ele sus- tenta que, em comparagdo com um sistema que permita a contratagio de substituros, a obrigatoriedade do servigo militar diminui o bem-estar das pessoas, pois as impede de sealizar seus objetivos particulares. Se Andrew Carnegie eseu substituto quisessemt fazer um acordo, que motivo teriamos: para impedi-los? A liberdade de participar da transagao certamente au- menta a felicidade de ambas as partes, sem reduzir a dos demais, Assim, por razées utilitariseas, o sistema da Guerra Civil (alternativa 2) é mais, vantajoso do que 0 servigo militar obrigatério (alternativa 1), E facil entender como os pressupostos utilitaristas sustentam 0 #2 cinio de mercado. Se voc? partir da nagio de que uma troca voluntaria torna a vida de ambas as partes melhor e no prejudica ninguém, terd tum bom argumento utilitarista para permitir que o mercado comande a situagao. Podemos ver isso ao compacarmos o sistema da Guerra Civil (alter nativa 2) com o sistema do exército voluntario falternativa 3). A mesma togica que defende a contratagio de substivutos paza os convocados € também um forte argumento favordvel a0 mercado: Se seré permitido 104 se as pessoas contratem substitutos, por que convocé-las afinal? Por nue nfo simplesmente recrutar os soldados por meio do mercado de fabalho? Seriam estabelecidos os salarios ¢ beneticios suficientes para stzsir soldados em nfimero e qualidade necessarios eas pessoas poderiam gscolber livremente aceitar o trabalho ou nao. Ninguém seria forgado i:servir contra a vontade e aqueles que o desejassem poderiam avaliar todos 0s agpectos do servico militar e compari-los com as outras op¢Ses, ‘Assim, do pono de vista utilitarista, o exércity voluncariv parece ser ‘amethor entre as trés opcdes. Ao permitis que as pessoas se alistem com base na remuneragdo ofececida, estaremos permitindo que elas sirvam 20 Exército somente se isso maximizar sua propria felicidade. Aqueles que no quiserem servir nfo terdo sus felicidade reduzida por serem forgados a prestar o servigo militar contra a vontade. Um utilitarista ralvez argumentasse que o exército voluntirio é mais dispendioso do que o alistamento compulsério. Atraie soldados em nti- ‘mero e com a qualidade suficientes e pagar os beneficios deve acarretar mais despesas do que obrigar soldadosa servis. Nesse caso, 0 utilitarista pode temer que © aumento da felicidade dos soldados bem pagos resulte ‘eminfelicidade maior para os contribuintes, que agora pagam mais pela manutengio do exército. Essa objegdo, no enranto, nao é muito convincente, especialmente se a alternativa for o alistamento compulsdrio (com ou sem substituicao). Seria estranho aplicar 0 mesmo racioeinio para outros servigos do gover 0, como a policia ou os bombeiros, isto é, buscar a redugao dos custos Para o contribuinte por meio da coergio de pessoas escolhidas aleatoria- ‘mente para desempenhar essas fungdes em troca de semuneragao abaixo do valor do mercado. Também seria estranho propor que 0s custos de ‘Manutengio de estradas fossem reduzidos por meio da convocasao de tum subsistema de contribuintes escolhidos por sorteio para realizar tal tabalho ou contratar outras pessoas para fazé-lo. A infelicidade resul- tante de tais medidas coercitivas provavelmente suplantacia o beneticio ‘Que 0s contribuintes poderiam obter com servicos piblicos mais baratos. Podemos coneluir, partindo tanto de légicas libertérias quanto de "aciocinios utilitaristas, que o exército voluntério parece ser o melhor, 105 seguido pelo sistema hibrido da Guerra Civil. A obrigatoriedade do servigo militar seria © processo de recrutamento menos desejével, Entretanto, no mifnimo duas objegdes podem ser feitas a essa linha de argumentagao. Uma refere-se & equicade e a iberdade ¢ outra a virtude cfvica ¢ a0 bem comum, Objecdo 1: Equidade e liberdade A primeira objegdo sustenta que o livre mercado, para aqueles que tém poucas alternativas, ndo € tio livre assim. Consideremos um caso extremo: um individuo sem teto, que dorme sob uma ponte, pode ter, de alguma forma, optado por isso; enteetanto nao podemos conside- rar, a principio, gue essa tenha sido uma livre escolha. Nao podemos concluir que ele prefica dormir embaixo de uma ponte a dormir em um. apartamento, Para que possamos saber se essa situacdo resulta de uma preferéncia por dormir na rua ou da impossibilidade de ter um lar, ptecisamos conhecer suas citcunstancias. Estaria ele agindo livremente ‘ou por necessidade? Podemos fazer a mesma pergunta em relagZo as escolhas do mercado em geral —incluindo as escolhas que as pessoas fazem quando assumem varios empregos. Como isso se aplica ao servigo militar? Nao podemos determinar a justiga ou injustiga do exéxcito voluntirio sem que teabamos uma nogdo mais profunda sobre as condigées bisicas que prevalecem na sociedade: Existem oportunidades relativamente iguais para todos ou algumas pessoas tém muito poucas opgdes na vida? Todos tém a oportunidade de frequentar uma universidade ou, para alguns, a inica opcio seria o alistamento militar? ‘Tomando por base o raciocinio de mercado, 0 exército voluatario é atraente porque evita a coer¢ao do alistamento obrigatdrio, fazendo com gue 0 servigo militar resulte do consentimento, No entanro, algamas pessoas que acabam por servir a0 exército voluntario podem ser td0 avessas ao servigo militar quanto outras que no se alistam, Em lugares em que ha muita pobreza e dificuldades econdmicas, a opgio por se alistar pode simplesmente reflete a falta de alternativas, 108 De acordo com essa objec, o exército voluntirio pode no ser t30 oluntério quanto possa parecer. Na verdade, pode haver af uma coer- «gio implicita, Se algumas pessoas em uma sociedade néo tiverem outea psi, aquelas que se alistam podem ser, na verdade, forcadas a fa22-lo por necessidadefinanceira. Nesse caso, dilecenga entre a convocagio & o exército voluntério nao significa que urna seja compulsoria ¢ © outro livee, mas que cada um envolve uma forma diferente de coetcio — a forga da lei, no primeira caso, ¢ as presses econdmicas, no segundo. $6 € possivel dizer que a opsio pelo alistamento remunerado reflete preferéncias, em vez de alternativas limitadas, se 0 individuo tiver & disposigio uma gama de opcdes cazodveis de trabalho. AA situagdo econdmica e escolar dos atuais voluntarios do exército comprova a [dgica dessa obje¢3o, pelo menos até certo ponto. Jovens de regides de baixa ¢ média renda (renda familiar média de 30.850 até ‘57.836 délares} representam a maioria nas fileiras ativas do exército.*Os 10% mais pobres da populago (muitos dos quais podem aio preencher 08 requisitos de educacdo € capacidade) ¢ os 20% mais abastados (de regides cuja renda média é de 66.329 délares ou mais) so os que tém ‘menor representagao,"Nos iiltimos anos, mais de 25% dos recrutas nfo tém diploma de ensino médio."E, enquanto 46% da populagao civil pos- sui algum tipo de educagio universicaria, apenas 6,5% dos componentes das fleicas militares entre 18 e 24 anos frequentaram uma universidade." Em anos recentes, os jovens mais privilegiados da sociedade americana do tém optado pelo servigo militar, fato bem ilustrado pelo titulo de um livco recente sobre a composigao das Forgas Armadas: AWOL: The Unexcused Absence of America’s Upper Classes from Military Service.” Dos 750 membros da turma de 1956 da Universidade de Princeton, a ¢naioria — 450 alunos — entrou para o exército apés a formatura. En- tte 0s 1.108 formandos de 2006 da mesma universidade, apenas nove Se alistaram.!? Outras universidades de elite apresentaram os mesmos adrdes — e também a capital do pais, Apenas 2% dos membros do Congreso tém um filho ou filha no servigo militar. O depurado Charles Rangel, democrata do Harlem e veteran con- Aecorado da Guerra da Coreia, considera isso injusto e tentou o resta- 107 belecimento da obrigatoriedade do servigo militar, “Jé que americanos estdo sendo enviados para a guerra”, escreveu ele, “todos deveriam, estar sujeitos a isso, € nfo apenas aqueles que, devido a circunstancias econdmicas, sejam atraidos pelas vantagens financeiras e pelos incentis vos educacionais do alistamento.” Ele destaca que, na cidade de Nova York, “a diferenca desproporcional do servigo & deamética, Em 2004, 70% dos voluntarios da cidade eram negros ou hispanicos, recrutadas nas comunidades de baixa renda”.'* Rangel foi contra a Guerra do Iraque e acredita que ela jamais teria sido deflagrada se os filhos dos congressistas tivessem o Saus de combaté- Ja. Ele também argumenta que, em face das aportunidades desiguais da sociedade americana, a convocagio para o servigo militar por meio do mercado nao é justa com aqueles que t8m poucas alternativas. A maioria dos que pegam em armas por este pais no Iragque ven das comunidades mais pobres das cidades do interior e das regises rurais, ‘onde 0 pagamento de até 40 mil déiares ¢ mais mithares em beneficios educacionais tornam-se muito atraentes, Para as pessoas que podem ‘oprar pelo ensino superior, tais incentives — comparados go risco de morse — nada represenram.!* Portanto, a primeira objecao & légica de mercado para 0 exézcito voluntario refere-se a inequidade e coecgio —a inequidade da discrimi- nagao de classe ea coesdo que pode ocorrer se as dificuldades financeiras compelirem os jovens a arriscar sua vida em troca da educacao superior € outcos beneficios, Notemos que a objegdo a coeredo ndo é uma objecio wo exércite voluntiirio em si. Ela se aplica apenas ao exército voluntario nas socie- dades que apresentam desigualdades substanciais. Ao diminunic rais desigualdades, essa objegao é eliminada, Imaginemos, por exemplo, wma sotiedade perfeitamente igualitéria, na qual todos tivessem acesso as mesmas oportunidades de educacdo, Nessa soviedade, ninguém poderia queixar-se de que 2 opgao de se alistar no Exército nao fosse totalmente livre, alegando a pressio injusta das dificuldades financeiras, 108 Evidentemente ndo existe uma sociedade perfeitamente igualitéria. ‘Assim, 0 risco de coercdo paira sempre sobre as escolhas feitas pelo jndividuo no mercado de trabalho. Qual seria o grau de paridade ne- ‘essdrio para garantir que as escolhas do mercado fossem livres, em vez de coercitivas? Até que ponto as desigualdades nas condigdes de uma sociedade prejudicam a equidade das instituigdes sociais (como o exé:cito yoluntério} baseada na escolha individual? Em quais condigées o livre mercado é realmente livre? Para responder a essas questdes, precisamos analisar as filosofias morais e politicas que vem a liberdade — e no a felicidade — no Amago da justiga. Vamos, entdo, adiar essas questdes até que cheguemos a Immanuel Kane John Rawls, alguns capitulos adiante, Objegdo 2: A virtude civica eo bem camum Analisemos, por enquanto, uma segunda objeso 20 uso dos mercados no recrutamento paca o servigo militar — objeto em nome da virtude civica ¢ do bem comumn. Essa objegio alega que o servigo militar no é apenas um emprego a mais, e sim uma obrigacdo civica. De acordo com esse argumento, todos ‘os cidados tém o dever de servir a seu pais. Alguns particrios desse pon- to de vista acreditam que essa obrigas.io sé possa ser cumprida por meio doservico militar, enquanto outros acreditam em formas alternativas de servir & nacdo americana, tais como o Peace Corps, © AmeriCorps ou 0 Teach for America. Entretanto, se 0 servigo militar (ou servigo nacional} €um dever civico, é um erro colocd-lo & venda no mercado, Vejamos agora outra responsabilidade civica — a obrigagio do ci- dado de servir como jurado. Ninguém morre por atuar como jurado, mas 0 fato de ser convocada para isso pode ser oneroso, principalmente houver um conflito com @ trabalho ou com outros compromissos Prementes, Ainda assim, ndo permitimos que as pessoas contratem subs- futos para ocupar seu lugar no juiri. Tampouco usamos 0 mercado de trabalho paca criar um sistema de jiiri “totalmente voluntirio”, pago e Profissional. Por que nao? Partindo do raciocinio de mercado, essa opeao Poderia ser considerada, Os mesiios argumentos uilitaristas levantados 408 contra a convocacdo de soldados aplicam-se contra a convocaco de| jutados: permitir que um individuo ocupado se isente da obrigagao de set jurado por meio da contratagao de um substituto poderia ser vane: tajoso para ambas as partes. Eliminar o jéri compulsério seria ainda melhor. O recrutamento de jurados qualificados por meio do mercado de trabalho teria a vantagem de permitir que aqueles que quisessem atuar como jurados o fizessem, deixando livres os que ndo tivessem vontade de participar de um iris Por que, entdo, renunciar a grande vantagem social do mercado para jurados? Talvez para evitar que jurados pagos assumam grande proporsio entre individuos com haixo grau de insteugio, comprome- tendo a qualidade da justiga. Mas ndo ha motivos para que se parta do principio de que pessoas mais abastadas sejam melhores jurados do que aquelas cuja formagio seja mais modesta. De qualquer maneiza, os saldrios e beneficios poderiam ser sempre ajustados (como fez 0 Exército) para atrair pessoas com o grau dv instrugdo e a capacidade necessarios. © motivo pelo qual convocamos jurados em vex de contraté-tos & porque consideramos a atividade de fazer justiga nos tribunais uma responsabilidade que todos os cidad’os devem compartilhar. Qs jurados no esto ali simplesmente para votar; eles deliberam sobre as provas eas leis. Eas decisées so fundamentadas nas diversas experiéncias de vida que 0s jurados das varias categorias sociais levam consigo, O dever de participar do jari nfo & apenas uma forma de resolver os casos. B também uma forma de educagao efvica e uma expressao da cidadania em um regimé democratico. Embora esse dever nem sempre seja enri- quecedor, 2 ideia de que todos os cidadaos sejam obrigados a cumpri-lo mantém a ligagdo entre os tribunais e 0 povo, Pode-se dizer algo semelhante sobre o servigo milicar. © argumen- to efvico para a convocaggo obrigatéria afirma que o servigo military tal como o dever para com o jiiri, € uma responsabilidade civiea. Ele expressa ¢ aprofunda a cidadania democritica. Desse ponto de vista, transformar o secvigo militar em mescadoria —servico que contratamos outras pessoas para executar —corcompe os ideais civicos que deveriam xnd-lo. De acordo com essa objegio, é errado contratar soldados ara a guerra, ndo porque isso seja uma injustica para com o pobre, mas orgue nos permite abrir mao de um dever civico. © historiador David M. Kennedy forneceu uma variante desse argumento. Ele diz que “as Forgas Acmadas dos Estados Unidos tém, hoje, muitas das caracteristicas de um exército mercenério”, que ele define como um exército profissional ¢ pago, até certo ponto separado da sociedade pela qual Juta.” Sem pretender menospiccar as 1acdes daqueles que se alistam, ele teme que a contratagéo de um nimero relativamente pequeno de cidadaos de um pais para irem A guerra deixe os demais afastados do conflito. Essa contratagao rompe os Jagos entre a maioria dos cidadaos de uma democracia e os soldados que lutam em seu nome. Kennedy observa que “em relagdo ao tamanho da populagdo, 0 contingente militar atualmente em servigo ativo corresponde a cerca de 4% da forga que venceu a Segunda Guerra Mundial”. Isso torna relativamente facil para o Legislativo levar o pais para a guerra sem que seja preciso contar com a aprovacdo ampla e geral da sociedade, “A mais poderosa forga militar da historia pode ser enviada agora aos campos de batalha em nome de uma sociedade que mal se esforga para que isso acontega.”¥ exército voluntério isenta a maioria dos americanos da tesponsabilidade de lutar e morrer por seu pais. Apesac de algumas pessoas considerem isso uma vantagem, eximir-se de compartithar 0 sacrificio tem um prego, pois corréi a responsabilidade politica: © que a maiosia dos americanos que nio corre qualquer risco de se ‘expor ao servigo militar fez, na verdade, fo? contrarar alguns dos seus compatriotas menos afortunados para cumprir uma das suas tarefas ‘mais perigosas, enquanto a maioria continua 2 realizar suas atividades sem derramar uma gota de sangue e sem se abalar.* ‘Uma das mais famosas consideragdes sobre a questo civica do recru- tamento obrigardrio foi feita por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), *®6tico politico do Iluminismo nascido em Genebca. Em O contrato 110 mm social (1762), ele argumenta que transformar um dever civico em t Consideremos, entdo: Qual é, na verdade, a diferenga entre 0 exér- mercadoria negocidvel nao aumenta a liberdade; ao contrario, a redu; joo voluntério contempordneo e um exército de mercenérios? Ambos pagam aos soldados para que lutem. Ambos incentivam o alistamento fom promessas de salArios e beneficios. Se mercado é uma maneira aptoptiada de formar um exército, o que ha realmente de errado com ‘os mercenérios? ; Podemos alegar que os mercendrios sio estrangeiros que combatem dinliciro, enquanto o cxército voluntério dos Estados Unidos sé alis- ta cidadaos americanos. Mas se o mercado de tcabalho € uma maneira adequada de recrutar soldados, nao fica claro por que o Exército dos Estados Unidos deveria discriminar os cidados de outros paises. Por que no recrutar os soldados entre cidadiios estrangeiros que queiram trabalhar e que tenham as qualificagées necessérias? Por que no formar uma legido estrangeira com soldados de paises em desenvolvimento, onde 05 saldrios sao haixos ¢ os bons empregos si0 escassos? Podeciamos argumentar que soldados estrangeiros seriam menos leais do que os americanos. Mas a nacionalidade nao é garantia de lealdade no campo de batalha, € aqueles que recrutam os soldados poderiam se- lecionar os candidatos estrangeiros para determinar sua confiabilidade. Uma vez que aceitemos a ideia do recrutamento para as fileiras militares por meio do mercado de trabalho, ndo hd razo, em principio, para que o servigo militar seja restrito apenas aos cidadaos americanos ~ nao ha tao a no ser que acreditemos que o servigo militar seja, acima de tudo, uma responsabilidade civica, uma expresso de cidadania. Se acreditar- ‘mos nisso, ai sim teremos motivos para questionar a solugdo do mercado, Passadas das geragdes do fim do alistamento obrigatério, os ameri- anos ainda hesitam em aplicar a légica de mercado ao servigo militar. A Legidio Estrangeira francesa tem uma antiga tradigao de recrutar sol- dados estrangeitos para combater pela Franca, Embora as leis do pais Proibam que a Legigo recrute cidados fora da Franga, a internet rornou €Ssa restric&o sem sentido. O recrutamento on-line em 13 idiomas atrai, Atualmente, soldados de todo o mundo. Cerca de um quarto da forga atual ver da América Latina, ¢ aumenta a proporgao proveniente da lina ¢ de outros paises asiaticos.?! A partir do momento em que um secvigo piiblico deixa de sera principal atribuigdo dos eidaddos, que preferem servir com 0 pr6prio dinheito} ‘em vez de se engajar para servir, o Estado esta prestes a ruir. Quanda| é nevessirio marchar para a guerra, eles pagam aos soldados e ficam| em casa (.. Em um pafs verdadeiramente livre, 0s cidadios fazem tudo corn os proprios bragos ¢ nada por meio do dinkeico. Longe de pagar para se isentar dos seus deveres, cles até pagariam para ter o privilégio de realizd-los. Estou longe de concordar com a nogao geral: considero o trabalho forgado menos contracio 3 liberdade do que 0s impostos,32 A forte nogio de cidadania de Rousseau e as desconfiancas que tinha em rclagio a0 mercado podem nao se mostrar muito adequados 08 padres atuais. Somos inclinados a considerar o Estado, com suas. Jeis ¢ regras rigorosas, a cxpressio da forca e a considerar o mercado, com suas trocas voluntarias, a expressio da liberdade, Rousseau diria que é exatamente o contrério — pelo menos no que se refere aos bens civicos. Os defensores do mercado podem defender 0 exército voluntétio tejeitando a rigida nogio de cidadania de Rousseau, ou negando sua relevincia para 9 servigo militar, Entretanto, os ideais etvicos que ele defende continuam a ter certa ressonancia, mesmo em uma sociedade governada pelo mercado como os Estados Unidos. A maioria dos par- tidarios do exército voluntario nega veementemente o fato de que ele possa transformar-se em um exército de mercenérios, Com propriedade, afirmam que muitos daqueles que se aliscam o fazem motivados pelo patriotismo, no apenas pelo dinheiro e pelos beneficios. Por que, entdo, consideramos isso importante? Desde que os soldados desempenhem devidamente suas fungdes, por que deveriamos nos preocupar com sua ‘motivaso? Mesmo que deleguemos ao mercado a responsabilidade pelo recrutamento, nio € facil dissociar o servigo militar de antigas nodes de patriotismo e virtude civica, me 3 Os Estados Unidos nao criaram uma legiao estrangeira, mas jd deram lum passo nessa diregio. Enfrentando dificuldades para conseguir com- batentes para guerras como as do Iraque e do Afeganistao, 0 Exército comegou a aceitar imigrantes estrangeiros que vivem atualmente nos Estados Unidos com visto tempordrio. Os argumentos de persuasio ineluem bons salatios ¢ um caminho mais rapido para a obtencio da cidadania, Cerca de 30 mii ndo cidadios servem no momento as Forcas Anmadlas dos Estados Unidos. © novo programa, aberto antes apenas para residentes permanentes com green card, estende essa oportunidade também a imigeantes temponirios, estudantes estrangeizose refugiados.22 © recrutarento de soldados esteangeiros nio é a iinica forma por meio da qual a logica do mercado se expzesse, Se considerarmos o servigo tac um emprego como qualquer outro, nao hé razao para acreditare mos que a contratagio deva ser feita apenas pelo governo. Na verdade, atualmente os Estados Unidos terceirizam grande parte das funcdes militares para a iniciativa privada. Militares contratados desempenham um papel cada vez, maior em conflicos em todo 0 mundo e representam uma parte substancial da presenca militar dos Estados Unidos no [raque. Em jutho de 2007, o Los Angeles Times informou que o niimero de prestadores de servigo contratados pelos Estados Unidos em aco n0 Traque (180 mil) superava 0 niimero de militares em servigo em solo iraquiano (160 mil}? Muitos deles desempeahavam fungdes de apoio logistico fora das linhas de combate — construindo bases, consertando veiculos, fazendo entregas de suprimentos ou teabalhando nos servigos de alimentaco. Mas cerca de 50 mil trabalhavam na seguranga armada, € suas fungdes na protecio de bases, comboios ¢ diplomatas frequente- mente os forgavam a combater,* Mais de 1.200 prestadores de servigo morreram no Iraque, mas nao voltaram para casa em caixdes cobertos com a handeira e ndo foram incluidos nas estatisticas das baixas mili- tares dos Estados Unidos. Uma das principais companhias militares privadas é a Blackwater Worliwide. Erik Prince, sea ditetor presidente, um ex-Seal da Marinhae fervoroso adepto do livre mercado, Ele nao aceita que seus soldados sejam denominados “mercenérios”, termo que considera “difamatoria’” Prince ng cplica: “Estamos tentando fazer para 0 aparato da seguranga nacional ‘mesmo que a Federal Express fez pelo servigo postal.” A Blackwater seoebeu mais de um bilh3o de délares em contratos com o governo por seus servigos no Traque, mas esteve muitas vezes no centro de controvér- sias."Seu pape veloa pablico pela primeira vez em 2004, quando quatro de seus funcionérios sofeeram uma emboscada e morrezam em Fallujah ¢ dois dos corpos foram pendarados em uma ponte. O incidente levou co presidente George W. Bush a enviar os fuzileiros para Fallujah, onde ocorfeu uma monumental e cara batalha contra os insurgentes. Em 2007, seis guardas da Blackwater abriram fogo contra ama multid’o em uma praca de Bagdé, matando 17 civis. Os guardas, que alegaram que 0s inimigos haviam atirado antes, tinham imunidade contra acdes judiciais pelas leis iraquianas devieo a regras impostas pe~ las autoridades governamentais americanas apés a invasao, Eles foram fiaalmente indiciados por homicidio involuntério pelo Departamento de Justiga dos Estados Unidos, ¢ o incidente levou 0 governo do Iraque asolicitar a zetirada da Blackwater do pais? Muitos membros do Congreso e o piblico em geral se opdem a terceirizagio da guerra para companhias com fins lucrativos como a Blackwater. Grande parte das criticas cefere-se 4 impossibilidade de responsabilizar tais companhias e a0 seu envolvimento em situagdes de abuso. Varios anos antes do incidente da toca de tiros em que a Blackwater esteve envolvida, prestadores de servigos de outras empre- $25 estavam entre os agressores dos detencos na prisio de Abu Ghraib, Embora os soldados do Exército envolvidos tenham sido julgados, os Prestadores de servico nao foram punidos.©! Suponhamos, no entanto, que o Congresso aprovasse leis mais rigoro- S88 para as companhias militares privadas coma finalidade de torné-las ‘ais responséveis e para que sews empregados fossem submetidos aos mesmos padrdes de conduta impastos aos soldados dos Estados Unidos, 4&0 de companhias privadas para combater nossas guerras deixaria Ser questiondvel? Ou ha uma diferenga moral entre pagar & Federal ‘Press para que cla enteegue a correspondéncia e conteatar a Blackwater Patz levar forga letal aos campos de batalha? ns Para responder a essa pergunta, precisamos antes resolver uma ques- tho: © setvigo militar (¢ talvez os servigos nacionais em geral) € uma obrigagdo civica que todos os cidadaos tém o dever de cumprir ou é um trabalho dificil e arriscado como tantos outros (mineracdo, por exems plo, ou pesca comercial} devidamente segulamentados pelo mercado de trabalho? Para responder a essa pergunta, precisamos fazer outra mais abrangente: Quais sio as obrigagdes que os cidadios de uma sociedade democratica tém para com os demais e como surgem essas obrigagdes? “Teorias diversas sobre justiga oferecem diferentes respostas para essa pergunta, Teremos mais condigdes de decidir se devemos convocar ou contratar soldados depois que explorarmos, mais adiante neste livro, os, fundamentos ¢ os objetivos da obrigagao civica. Enquanto isso, analise- ‘mos outra utilizagdo controversa do mercado de teabalho. ABARRIGA DE ALUGUEL William e Elizabeth Stern eram um casal de profissionais liberais que morava em Tenafly, New Jersey — ele era bioquimico ¢ ela, pediatra, Eles queriam ter um filo mas nao podiam conceber, pelo menos nia sem que isso trouxesse riscos para a sade de Elizabeth, que sofria de esclerose miltipla, Ento entearam em contato com um centro para tratamento de infertilidade que intermediava gravider “de aluguel”. O centro divalgava antincios em busca de “maes de aluguel” — mulheres dispostas a carregar um bedé no ventre para outra pessoa em troca de compensacao financeira.” Uma das mulheres que responderam a0 andncio foi Mary Beth Whi tehead, de 29 anos, mie de duas criangas e casada com um trabalhador da area de saneamento. Em fevereico de 1985, William Stern e Mary Beth Whitehead assinaram um contrato. Mary Beth aceitou se submete? ‘a uma inseminagao artificial com o esperma de William, gerar 0 bebé ¢ entregé-lo a William apds 0 nascimento. Ela também coacordow em abrit mao de seus direitos maternos, para que Flizabeth Stern pudesse adotat nga. Por sua vez, William aceitou pagar a Mary Beth a quantia de ne 40 mil détares (por ocasiao do parto), além das despesas médicas. (Ele também pagou 7,500 délares ao centro de tratamento de infertilidade pela intermediacio,) ‘Apés varias tentativas de inseminacio artificial, Mary Beth engeavi- dou e, em marco de 1986, deu & luz uma menina. Os Sterns, ansiosos por adotar logo a filha, deram-Ihe o nome de Melissa. Mas Mary Beth decidin que nao conseguiria abrir mao da crianga e resolveu ficar com cla. Ela fugin para a Florida com o bebé, mas os Sterns conseguiram uma ordem judicial para que ela lhes entregasse a crianga. A policia da Flérida encontrou Mary Beth, o bebé foi entregue aos Sterns ea batalha pela custédia foi parar na Justiga de New Jersey. (O juiz tinha de decidir se deveria fazer valer 0 conteato ou nfo. O que voc’ acha que setia a coisa certa a fazer? Para simplificar, concentremo- nos na questo moral, deixando de lado a questo legal. Acontece que New Jersey nfo tinha leis que permitissem ou proibissem contratos sobre gravidez de aluguel na época. William Stern e Mary Beth Whi- tehead haviam assinado um contrato. Moralmente felando, ele deveria ser cumprido? © argumento mais forte a favor do cumprimento do acordo & que trato € trato. Dois adultos, espontaneamente, estabeleceram um acordo ue traria beneficios para ambas as partes: William Stern teria um filo biolégico e Mary Beth Whitehead receberia 10 mil délares pelos nove meses de trabalho, E verdade que essa nao foi uma transagao comercial comum. Assim, oderiamos hesitar em fazer com que o contzato Fosse cumprido por um dos dois seguintes motivos: Primeiramente, poderiamos questionar se 0 fato de uma mulher aceitar ter um debé e entregs-lo a outra pessoa por dinheiro seria uma deciséo fundamentada. Estaria cla realmente segura Quanto aos sentimentos que teria quando chegasse o momento de abrie ‘Mio da crianga? Se isso no fosse possivel, poderiamos argumentar que Seu consentimento inicial teria sido prejudicado pela necessidade de di- theiro e pela falta do conhecimento adequado sobre o que representaria, 2a verdade, o fato de abrir mio do filho. Em segundo lugar, poderia aver objegdes quanto ao fato de vender bebés ou de alugar a capacidade na reprodativa de uma mulher, ainda que ambas as partes houvessem cone cordado com isso conscientemente. Poderiamos ainda argumentar que ssa prdtica transforma criangas em mercadorias e explora mulheres ag tratar a gravidez e 0 parto como uma transagao comercial, © juiz Harvey R. Sorkow, encarregado do julgamento do caso que se tornout conhecido como “Baby M", no se deixou persuadie por nenhuma das objegdes anteriores." Ele alegou a invulnerabilidade dos Contratos ¢ exigiu o seu cumprimento, Trato é trato, ea mie que gerara 4 etianga ndo tinha o direito de quebrar um acordo simplesmente por haver mudado de ideia.** O juiz fez consideragdes sobre ambas as objecdes. Primeiramente, negou que a aquiescéncia de Mary Beth tivesse sido involuntaria ou que ela tivesse sido de alguma forma influenciada: feveriam poder vender sua capacidade reprodutiva: “Se um homem oferecer meios para a procriacdo, uma mulher pode, igualmente, fast-lo.”™ Qualquer objecSo a isso, declarou, seria privar a mulher da 30 igualitacia da lei. ‘Mary Beth Whitehead apelou a Suprema Corte de New Jersey.* * por unanimidade, a corte anulou a sentenca do juiz Sorkow e declarou invélido 0 contrato da gravider de alaguel.!”A corte deu a custédia de Baby M para William Stern com base no faro de que essa seria a me~ thor op¢ao para a crianga, Contrato a parte, a corte considerou que os Sterns teriam melhores condigdes de criar Melissa. Entretanto, restituin a condicdo de mae para Mary Beth Whitehead e determinou & Justica comum que estipulasse direitos de visitagao. O relator, o presidente da Suprema Corte Robert Wilentz, cejeitou 0 contrato de aluguel, argumentando que ele nao havia sido verdadeica- mente volunticio e que constituia comércio de bebés, Primeiramente, apontou falhas no consentimento de Mary Beth. Concordar em gerar uma crianga e entregé-la apés 0 nascimento nao foi um ato cealmente voluntario, porque Mary Beth nao tinha condicées, de saber, de fato, 0 que isso implicava, ‘Nenhuma das partes estava ern vantagem em relagao a outra. Cada uma tina aquilo que a outra queria, O valor do servigo que cada uma teria de realizar foi estipulado ¢ o trata foi feito. Ninguém foi forcado a coisa alguma. Tampouco langou-se mio de qualquer artificio que colocasse a ourra parte em desvantagem. Ambas as partes tinham © mesino poder de barganha.* De acordo com o contrato, a mée natural se comprometeu de forma irrevogével antes de conhecer a forca dos seus lagos com a ecianga. Ela rio poderia ter romado uma decisdo totalmente voluntaria, consciente, pois é evidente que qualquer decisio ances do nascimenro do bedé €, n0 sentido mais importante, uma decisio desinformada.* Em seguida, 0 juiz eejeitou a ideia de que a gravidez de aluguel é um comézcio de bebés. Ele alegou que William Stern, o pai biolégico, no comprou uma crianga de Mary Beth Whitehead; ele pagou a ela pelo trabalho de engravidac e dar a luz seu filho, “Em um nascimento, o pai nao compza 0 bebé. Ele € seu filho biologico e carrega sua heranga ge- nética, Uma pessoa ndo pode comprar aquilo que ja é seu.” Segundo 0 raciocinio do juiz, uma vez que o bebé foi concebido a partir do esperma de William Stern, ele era seu filho. Portanto, nao houve comércto de bebé, © pagamento de 10 mil délares foi feito por um servigo fa gravidez e 0 arto), € ndo por um produto (a crianga), Quanto 4 alegagao de que tal servigo é uma exploracio da mulher, 0 juiz Sorkow discordou, Ele comparou a gravidez de aluguel 3 doacio de esperma. J4 que homens podem vender seu esperma, as mulheres Depois do nascimento da crianga, a me esté mais preparada para tomar uma decisfo consciente. Entretanto, a essa altura sua decisio nao é livtes ela sofre as presses da “ameaca de um processo e da forca persuasiva de um pagamento de 10 mil délares”, 0 que a torna “nao totalmente vo- luntéria.® Além disso, a necessidade financeira faz com que seja provavel Nor Brads Unides, os exiados tem Suorema Corte, alsa da Federal. No Bras, mos apenas o Supeerau Tribunal Federal. iN. da E.) ne que mulheres pobres “optem” por ser barrigas de aluguel para 08 ricos, em vez do contratio. O juiz Wilentz sugeriu que isso também colocava: em questo o caréter voluntério de tais acordos: “Duvidamos que casaig inférteis das camadas sociais mais baixas encontrem pessoas de camadas, ais altas dispostasa fazer com eles um contrato de geavider de aluguel.™# Assim sendo, uma das razdes para o cancelamento do contrato foj © consentimento comprometido. Mas Wilentz deu outra razio, ainda ‘mais fundamental: Deixanido de lado a grande necessidade financeira ea sua falta de infor. magoes quanto as consequéncias que poderiam advir, sugerimos que sew consentimento tenka sido irrelevante. Existem algumas coisas em uma sociedade civilizada que o dinheiro nao pode comprar? A gravider. de aluguel configura coméreio de eriangas, afirmon Wir Jentz, ¢ 0 comércio de criangas éilegal, por mais que seja voluntério, Ble rejeitou 0 argumento de que o pagamento tivesse sido pela gravides de aluguel, e no pela crianga, De acordo com 0 contrato, 10 mil délares seriam pagos apenas depois que a mie abrisse mao da custédia do bebé € de todos os seus direitos maternos. Trata-se da venda de uma crianca ou, na methor das hipéteses, da venda dos direitos de uma mae sobre seu filho. A dnica atenuante € que ‘© comprador € 0 pai (...) [Um] intermediario, incentivado pelo luero, promove a venda. Qualquer que tenha sido 0 iealismo que morivou 0s participantes, 0 objetivo do hucro impde-se, persia e, finalmente, comanda a transacio.? CONTRATOS DE GRAVIDEZ DE ALUGUEL E JUSTIGA Quem estaria certo, ento, no caso Baby M — a corte que exigiu 0 cumprimento do contrato ou a que 0 invalidou? Para responder a essa pergunta, precisamos avaliar a forga moral dos contratos e as duas ob- jegdes que foram levantadas contra o contrato de gravider de aluguel. 10 O argumento a favor da manutengao do contrato baseia-se nas duas seorias de justica que consideramos até aqui —libertarismo e utiliral mo, A tese do libertarismo para os contratos baseia-se no fato de que les refletem a liberdade de escolha; respeitar um contrato assinado espontaneamente por dois adultos significa respeitar sua liberdade. ‘Aargumentagio do utilitarismo nesses casos 6 que os contratos pro movem bem-estar geral; se ambas as partes entrarem em um acordo, ambas devem obter algum beneficio ou felicidade por meio dele — caso contririo, no o teriam assinado. Assim, a menos que fique claro que o acordo reduz a felicidade de alguém (mais do que beneficia as partes), as negociagdes mutuamente vantajosas — incluinde contratos de gravidez de aluguel — devem ser respeitadas, Que dizer sobre as objegGes? Elas so convincentes o bastante? Objegio 1: Consentimento comprometido A primeira objecdio, que questiona se Mary Beth Whitehead realmente fez um acordo voluntario, levanta uma questo sobre as condigoes nas quais as pessoas fazem escolhas. Ela argumenta que nossas escolhas s6 serio livres se ndo estivermos sob excessiva pressao {por necessidade fi- nanceita, digamos) e se estivermos razoavelmente informados sobre todas as alternativas. O que exatamente conta como pressio excessiva ou falta de consentimento fundamentado esta aberto a discussio. Entretanto, © objetivo desse debate é dererminar quando um acordo supostamente Voluntario é realmente voluntario — ou nao, Essa questo ficou bem evidente no caso Baby M, tal como aconteceu nas discussdes sobre 0 ‘exército de voluntérios. Deixando os casos de Jado, vale notar que esse debate sobre as condigées necessdrias para que haja um consentimento significative €na verdade, uma disputa bem conhecida no Ambito de uma das trés abordagens da justica analisadas neste livro — aquela que diz que a Wstica significa o respeito a liberdade. Como j& vimos, o libertarismo faz parte dessa linha de raciocinio. Ele sustenta que a justiga requer 0 wm respeito as escolhas do individuo, quaisquer que sejam elas, desde que Zo estejam violando os direitos de ninguém. Outras teorias que veem, a justiga como 0 respeito A liberdade impSem algumas restrigGes 3s con- igdes da escolha, Elas dizem — como disse o juiz Wilentz em relagio a0 caso Baby M— que as escolhas feitas sob pressio, ou quando nao houver um consentimento consciente, nao sio realmente voluntérias, Estaremos mais aptos para analisar esse debate quando abordarmos a filosofia politica de John Rawls — partidicio da teoria da libeedade que no aceita a abordagem libertarista da justiga. Objegdo 2: Degradacdo e bens maiores © que dizer sobre a segunda objego aos contratos de gravidez de alu- guel — aquela que afirma que existem certas coisas que 0 dinheiro no deveria comprar, incluindo bebés e a capacidade reproditiva da mulher? (© que hé exatamente de errado com a compra e a venda dessas “coisas”? A resposta mais convincente é que, quando tratamos bebés e gravidee como se fossem mercadorias, nés os depreciamos ou nao Ihes damos 0 devido valor. Por tras dessa resposta existe um conceito abrangente: a maneira corteta de avaliar bens e praticas sociais nao depende simplesmente de 16s, Algumas formas de avaliagdo so apropriadas para certos bens ¢ praticas. No caso de mercadorias, como um carro ou uma torradeira, a ‘maneita adequada de avalidlas ¢ fazer uso delas ov fabricé-las e vendé-las com fins lucrativos. Enteetanto, seria errado tratar todas as coisas como se fossem mercadorias, Seria errado, por exemplo, tratar seres humanos como metcadorias, meros prodazos para serem comprados e vendidos. Isso acontece porque seres humanos sao pessoas que mezecem respeito, € nao objetos para ser usados, Respeito ¢ uso so duas modalidades diferentes de avaliagio, Elizabeth Anderson, fil6sofa moral contempordnea, aplicou uma versio desse argumento a discussio sobre a gravidez de aluguel, Ela 2 alega que os contratos de altuguel degradam a crianga e@ procriagao ao trata-las como mercadorias.*’ Ela entende como degradacao tratar alguma coisa de acorde com uma modalidade de avaliagao inferior Aquela que seria adequada. Nos no avaliamos as coisas apenas como “mais” ou “me= ‘n0s”, mas atribuimos a elas valores qualitativamente mais altos ou mais baixos. Amar e respeitar uma pessoa ¢ atribuir-lhe um valor mais alto cdo que aquele que ela seria se fosse meramente usada (..J © comércio da sgravider degrada a crianga pois a trata como mercadoria** Ele a usa como instrumento de lucro em vez de valorizd-ta como uma pessoa merecedora de amor e cuidados. ‘A gravider de aluguel também degrada a mulher, argumenta Ander- son, porque trata seu corpo como se fosse uma fabrica e porque paga a la para que no crie Lacos afetivos com a crianca que gerou. Ela substitui “as normas de maternidade que normalmente governam a pratica de ge- rar bebés pelas normas econdmicas que governam a produg3o comum”, Aoexigir que a mie de aluguel “reprima todo tipo de amor materno que ppossa sentir pela crianga”, escreve Anderson, os contratos de gravidez de aluguel “transformam a procriacdo em um tipo de trabalho alienado”.** No contrato de gravidez de aluguel, (a mae) aceita nao criar ov tentar ctiar um zelacionamento mie-fitho com scu bebé. Seu trabalho é alienado porque ela deve desvid-lo da finalidade que as préticas sociais de uma gravider corretamente incentivam— uma lago emocional com seu filho:* © ponto principal do argumento de Anderson é a nogdo de que as mercadorias pertencem a categorias diferentes; portanto, é um erro avalié-las da mesma forma, como se fossem instrumentos de fucro ou Objetos de uso. Se essa ideia estiver certa, ela explica por que existem Certas coisas que o dinheiro ndo deveria comprar. Ela também lanca um desafio ao utilitarismo. Se a justia for apenas uma questiio de maximizar 0 peso do prazer sobre 0 do sofrimento, 123 precisamos de uma forma tinica e uniforme para pesar ¢ avaliar todas as mercadotias e 0 prazer ou a dor que elas possam nos proporcionar, Bentham criou 0 conceito de utilidade exatamente com esse objetivo, Mas Anderson alega que avaliar tudo de acordo com a utilidade (ou 0 dinheiro} degrada os bens ¢ as priticas sociais — incluindo criangas, gravider e criagdo dos filhos — que sio devidamente avaliados de acordo com padsdes mais elevados. Quais so, no entanto, esses padrdes mais clevades ¢ como pudere- mos saber quais modalidades de avaliagdo sfo adequadas a quais bens e prdticas sociais? Uma abordagem dessa questo comega com a ideia da liberdade. Considerando que os seres humanos sio livees, nio deverfamos ser usados como se fssemos meros objetos; ao contriio, deverfamos ser tratados com dignidade e respeito. Essa abordagem enfatiza a distingio entre pessoas (merecedoras de sespeito} e meros objetos ou coisas (para uso} como a distinedo fundamental da moralidade. © maior defensor dessa nogao é Immanuel Kant, de quem trataremos no prdximo capitulo, Outra abordagem das normas mais elevadas parte da ideia de quea forma certa de avaliar bens e praticas sociais depende dos propésitos ¢ das finalidades aos quais tais praticas servem. Lembremo-nos de que, a0 se opor A gravidez de aluguel, Anderson argumenta que “as priticas sociais da gravidez promovem” uma certa finalidade: um lago emocional da mae com o filho. Um contrato que implique que a mie ndo crie tab lao € degradante porque a afasta dessa fnalidade. Ele substitui uma “norma de parentesco” por uma “norma de produco comercial”. A nogio de que identificamos as normas apropriadas &s priticas sociais a0 tentar captac a finalidade ou 0 propdsito caracteristicos de tais préticas o ponto central da teoria de justiga de Aristoreles. Examinaremos sua abordagem em um capitulo posterior. Nao podezemos determinar realmente quais bens e praticas sociais devem ser governados pelo mercado até que examinemos essas teorias de moralidade ¢ justiga. Mas a discussio sobre gravidee de aluguel, assien como a discussdo sobre o exército de voluntirios, nos di uma ideia do que est em questo. 128 TERCEIRIZANDO A GRAVIDEZ ‘Melissa Stern, que ja foi conhecida como Baby M, formou-se recen- remente pela Universidade George Washington no curso de religiao.” Mais de duas décadas jd se passacam desde a famosa batalha por sua ‘castédia, em New Jersey, mas as discussbes sobre a gravidez de aluguel permanecem. Muitos paises europeus proibem 0 comércio da gravide2. Nos Estados Unidos, maie de uma dezena de estados legalizou a pratica, cerca de uma dezena a proibe ¢ nos demais seu seatus legal ado est bem definido.* Novas técnicas de reprodugio mudaram o perfil da gravidez de alu- sguel e aumentaram o dilema érico que ela suscita, Quando Mary Beth ‘Whitehead concordou em ter uma gravider por encomenda, ela colocou A disposigio tanto seu dvulo quanto seu ventre. Portanto, foi a mie biolé- gica da crianca que gerou. A fertilizagao in vitro, porém, possibilita que uma mulher forneca 0 évulo ¢ outra o gere. Deborah Spar, professora de administragio na Harvard Business School, analisou as vantagens comerciais da nova modalidade de gravider. de aluguel Anteriormente, quem desejasse contratar uma gravidez de aluguel “necessitaria comprar basicamente um iinico pacote de dvulo-mais-iero”. Agora, podem-se adguitir “o dvulo de uma fonte fiacluindo, em muitos casos, a mulher que pretende ser mae) ¢ 0 titero de outra”.*? Esse “desdobramento” da cadeia de fornecimento, explica Spar, levon 20 aumento do mexcado da gravider de aluguel."! “Ag remover a rela- G40 tradicional entre dvulo, ticeco e mae, a gravider de aluguel reduzin 05 riscos iegais ¢ emocionais que cercavam a gravidez por encomenda tradicional e permitiu que um nova mercado florescesse.” “Livres das testrigées do pacote évulo-mais-titero”, os intermedidrios do comércio de gravider tornaram-se “mais exigentes” em suas transag6es, “procus tando dvulos com caracteristicas genéticas especificas ¢ titeros ligados a uma determinada personalidade”.* Os pais em potencial nao precisam ™ais se preocupar com as caracteristicas genéticas da mulher contracada Para gerar sen bebs, “porque estio adquitindo essas caracteristicas em Outro dugar’.? 125 Eles no se importam com sua aparéncia ¢ jé nfo tém tanto medo de que ela reivindique a crianga depois do nascimento, ou de que os tribye nais figuem inclinados a decidir a seu favor. Tudo de que eles realmente necessitam é uma mulher saudével, disposta a levar a cabo a gravider @ que se comprometa com certos padres de comportamento — que no beba, ndo fume nem use drogas — durante a gravidez. Embora a gravidez por encomenda tenha aumentado a oferta de mies de aluguel, a demanda também aumemtou. Maes de aluguel recebem 4 atualmente de 20 mil a 25 mil délaces por gestacdo. O custo total da negociagao (incluinde despesas médicas e taxas legais) oscila entre 75 mil e 80 mil délares. Com pregos tao elevaclos, nao é dificil entender por que os pais em potencial comecaram a procurar alternativas menos dispendiosas. Como acontece com outros produtos ¢ servigos em wma economia global, a gravider por encomenda tem sido terceirizada por intermedisrios a um custo mais baixo, Em 2002, a India legalizou 0 comércio da gestacao na espetanca de atrair clientes estrangeiros.® A cidade de Ananda, no oeste da India, pode em breve tornar-se para a gravidez de aluguel 0 mesmo que Bangalore representa para as centrais de atendimento, Em 2008, mais de cinquenta mulheres da cidade tiveram filhos para casais dos Estados Unidos, de Taiwan, da Inglaterra e de outros paises.% Uma clinica local fornece alojamentos coletivos completos, com empregadlas, cozinheiras e médicos, para 15 mulheres gravidas que geram filhos para clientes de todo o mundo.”O dinheiro que elas recebem, entre 4.500 e 7.500 délares, muitas vezes representa mais do que conseguiriam ganhar em guinze anos e permi- te que comprem uma casa ou que financiem a educagao dos préprios filhos.%* Para os pais em potencial que viajam até Ananda, esse valor € uma barganha. O custo total de cerca de 25 mil délares {incluindo despesas médicas, o pagamento da mie de aluguel, a viagem acrea de ida e volta € as despesas de hotel para duas pessoas) representa mais ou menos um tergo do que seria cobrado por uma barriga de aluguel nos Estados Unidos. AAlgumas pessoas acham que a gravidez comercial como é praticada acualmente levanta menos problemas morais do que a negociagao que originou o caso Baby M. Jé que a mic de aluguel ndo fornece o dvulo, apenas 0 ventre € 0 trabalho da gestasao, argumenta-se que a erianga no pertence a cla geneticamente. De acordo com esse ponto de vista, nio existe venda de bebé, e é menos provavel que o direito de reivindicar a crianga seja contestado, ‘Entretanto, a gravidez de aluguel nao soluciona o dilema moral. Pode ser verdade que essas maes de aluguel estejam menos ligadas s criancas ‘que geram do que aquelas que também fornecem 0 6vulo. Mas a divisao do papel de mie em trés partes (mae adotiva, doadora do évulo e barriga de aluguel) em vez de em duas nao resolve a questo de quem tem mais diteito de ceivindicar a crianga, Na verdade, a terceirizagio da geavidez por meio da fertilizagio in vitro deixa mais em evidéncia o dilema moral da questo. A substancial economia para os pais em potencial e os enormes beneficios financeiros, em relago aos salérios locas, que as maes de aluguel indianas obtém ‘com essa pritica tornam inegavel o fato de que o comércio da gravidez aumenta o bem-estar das pessoas envolvidas. Assim, do ponto de vista do utilitarismo, é dificil questionar a transformagao da barriga de aluguel em uma indastria global. Entretanto, a terceirizagao mundial da gravidez também dramatiza 08 questionamentos morais. Suman Dodia, uma indiana de 26 anos que Berou um bebé para um casal inglés, recebia 25 délares por més traba~ Jhando como empregada doméstica. Para ela, a oportunidade de ganhar 4.500 dolares por nove meses de trabalho foi praticamente irresistivel.® O fato de que ela tivera seus trés filtos em casa e nunca consultaca um, médico torna seu caso ainda mais comovente. Em relagio a sua gravidez or encomenda, disse ela: “Estou sendo mais cuidadosa agora do que fui quando estava gravida dos mens filhos."* Embora os beneficios fi- Aanceiros de sua opsao por ser mae de aluguel fossem evidentes, nao se Pode afirmar que essa escolha tena sido livre. Além disso, 0 surgimento de uma indiisteia de gravides terceirizada em Ambito global — como wa f. thidem. Um estudo da Heritage Foundation contesta esses dados, em parte mos- srando que a proporsdo de origem dos ofias nfo ¢ eqilibrada em relacio aos c8digos postais de dererminadas reas. Ver Shanes J, Watkins James Sherk, “Who Serves in the US Military? Demographic Characteristics of Enlisted Troops and Officers®, Heritage Genter for Daca Analysis, 21 de agusto de 2008, em ww peritage-org/Rescarch/NationalSecuritydedaou-05.cl. ; 40. "Miliary Recruitment 2008: Siaificane Gap in Army's Quality and Quantity Goals”, National Priorities Project; dados da Tabela 1: Educational Attinment, FY 2008, em www.nationalpriorites.orgimilitaryreceuiting20U8/semy2008edar- tainment. 41. David M. Kennedy, “The Wages of a Mercenary Army: Issues of Civil-Mititary Relations", Bulletin of the American Academy (primavera de 2006}: 12-16. Ken- nedy cita Andrew Bacevich, The New American Mitarism: How Americans Are Seduced by War (Nova York, Oxford University Press, 2005}, p. 28 12. Kathy Roth: Douquete Frank Schaeffer, AWOL: Tho Unexcused Absence of Ameri ss Upper Classes from Military Service (Nova York, HarperCollins, 2006). 413, Arielle Gorin, “Princeton, in the Navion’s Serviee?", The Daily Princetonian, 22 de janeiro de 2007, Os dados de Princeton so de Charles Moskos, socidlogo ‘que estuda os militares. Moskos é citado em Julian E. Barnes e Peter Spiegel, “Expanding the Military, Without a Draft”, Los Angetes Tinses, 24 de dezemioro de 2006. 14, 0 USA Today informa que, sexuadioa biblioteca do Senado, pelo menos 9 dos $35 membros do Congresso tém filhos ox filhas que servicam no Irsqute, Kathy Kiely, “Lawmakers Have Loved Ones in Combet Zone”, USA Today, 23 de janeico de 2007. 15. Charles Rangel, “Why 1 Want the Draft”, New York Daily News, 22de novembro de 2006, p. 15. 16. bide, 17. Kennedy, “The Wages of a Mercenary Army"; ver também David M. Kennedy, “The Best Army We Can Buy”, New York Times, 25 de julo de 2005, p. ALS, 18. Ibiders, p. 13. 18. Ihidem, p. 16 20, Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract (O contrato social) (1762), liveo Il, ‘2pitulo 25, tradurido para o inglés por G. D. H. Cole (Londres, J. M. Dent and Sens, 1973}. 21. Doreen Carvajal, “Foreign Legion Turns to Internet in Drive for Recruits”, Boston Sunday Globe, 12 de novernbro de 2006; Molly Moore, “Lezendary Force Updates ‘ts Image: Online Recruiting, Anti-Terrorist Activities Routine in Today's Erench Foreign Legion”, Washington Post, 13 de maia de 2007, p. Als. uma politica assumida em paises pobres — aumenta a sensaco de que a sravides degrada a mulher ao tcansformar seu corpo e sua capacidade reprodutiva em meros instrumentos. F dificil imaginar duas atividades humanas mais dispares do que gerar filhos e combater em guerras. Mas as mies de aluguel na india e © soldado que Andrew Carnegie contratou para lutar em seu lugar ng Guerra Civil rem algo em comum., Ao relietir sobre 0 que & certo ou er- rado nessas situagdes, vemo-nos diante de duas das questbes que dividem, concepgSes antagénicas de justiga: Até que ponto nossas escolhas no livre mercado sao realmente livres? Hi certas virtudes e bens de natureza to elevada que transcendam as leis do mercado e 0 poder do dinheiro? Notas 4. James W. Geary, We Need Men: The Union Draft in the Civit War (DeKalb, Northern tlinois University Press, 1991}, pp. 3-485 James M. MePhesson, Battle Gry of Freedom: The Civit Era (Nova York, Oxford University Press, 1988), pp. 490-94}, 2. McPherson, Battle Cry, pp. 600-11, 3. tbidem:; Geary, We Need Men, pp. 103-50. 4. McPherson, Battle Cry, p. 6015 Geary, We Need Men, p. 83. 5. Geary, We Need Men, p. 150, ¢ The Civil War: A Film by Ken Burns, episodio 5, “The Universe of Battle”, capieulo 8. 6, Jeffrey M. Jones, “Vast Majority of Americans Opposed to Reinstaring Military Deafe", Gallup News Service, 7 de setembro de 2007, em www.gallup.com/ poll28642/Vast- Majority-Americans-Opposed-Reinstcuting-Military-Draftaspe. 7. Hoa. Kon Paul (R-Texas, “3000 Amecican Deaths in Iraq’, US House of Represea- tatives, 5 de aneito de 20075 em wwv:conpaulibrary.oep/document. php?id-=532. 8, “Army Recruitment in FY 2008: A Look ar Age, Race, Income, and Education ‘of New Soldiers”, National Priorities Project; dadus da tabela 6: Active-dury Army: Recruits by Neighborhood Income, 2005, 2007, 2008; em wwrw.nation- alpriorities.ory/militaryrecraicing20O8/active_duty_armyfrecruits_by_neighbor- hood income. 128 19 Fo. Ibidem,p. 1249. A. idem. a, Tbidem, pp. 1248-49, 4. Elizabeth S. Anderson, “Is Women's Labor a Commodiy?”, Philosophy and Public “Affairs 19 (inverno de 1980}: 71-92. «44, Ibidem, p. 77. ‘45. Ibidem, pp. 80-81. 46, Ibidem, p. 82. {47 Susannah Cahalan, “Tug O* Love Baby M All Grown Up", New York Post, 13 de abril de 2008, 48, Lorcaine Ali Raina Kelley, “The Cusious Lives of Surrogates”, Newsweet, 7 de abril de 2008; Deborala L. Sper, The Baby Business (Cambridge, Harvard Business ‘School Press, 2006), pp. 83-84. 49, Spat, The Baby Business, Spar tornou-se ento dietora do Barnard College. 50, Ibidern, P79. St. Ibider. 52, Ibidem, p. 80 533, bider, p. 81. 4. Tbider. $5. Sam Dolaick, "World Outsources Pregnancies to India”, Associated Press Online, 30-de dezembeo de 2007, $6. Ibider, ver também Amelia Gensieman, “India Nurures Business of Surrogate Motherhood”, New York Tires, 10 de margo de 2008, p. 9. 57. Dolnick, “World Oursources Pregnancies to [ndia”, $8. Ibidem. $8, Gentleman, “India Nurtures Business of Susrogate Motherhood”, 60. A mulher e sua situagio econémica estio em Dolnick, “World Outsources Preg- 22, Jilia Preston, “US Military Will Offer Path to Citizenship”, New York Times, 15 de Fevereiro de 2009, p. 1; Bryan Bender, “Military Considers Recruiting Foreign. 18", Boston Globe, 26 de dezembro de 2006, p. 1. : 23. T. Christian Miller, “Contractors Outoumber Troops in Iraq”, Los Angeles Times 4 de julko de 2007. 24, Peter W, Singer, "Can’t Win with “Em, Can't Go to War Without ‘En: Privat Military Contractors and Counterinsurgency”, Brookiogs Institution, Foreign Policy Paper Series, setembro de 2007, p. 3. 25, Sesuundo declaracio do Departamento da Teabalha dos Bstados Unidos, 1.299! prestadores de servigo foramn mortos desde abril de 2008. Dados citados em Peter 'W. Singer, “Ontsourcing the fight”, Forbes, $ de junho de 2008. Sobre morte de prestadores de servigos nao inclofdos na lista de militares dos Estados Unidos, ver Steve Fainaru, “Soldier of Misfortune: Fighting a Parallel Wae in Ieaq, Private Contractors Are Officially Invisible — Even in Death”, Washington Post, 1° de dezembeo de 2008, p. Cl. 26. Evan Thomas ¢ March Hosenball, “The Man Behind Blackwater”, Newsteek, 22 de outubro de 2007, p. 36. 22, Prince citado em Mark Hemingway, * Warriors for Hire: Blackwater USA snd’ the Rise of Private Military Contractors”, The Weokly Standard, 18 de dezembro de 2008, 28. Ascifras de bilhdes de délares de Blackwater no Traque so de Steve Fainaru, Big Boy Rules: America’s Mercenaries Fighting i Trag (Nova York, Da Capo, 2008),

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