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Edited by Foxit PDF Editor / Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. _ APARTACAO fer O apartheid social no Brasil & , = Cristovam Buarque olegg o eb. ° 2h gi" @ @ iy «De B.S eirog P23? LEITURAS AFINS O Capitalismo Desorganizado Claus Offe A Comunidade Européia A construcdo de uma poténcia econémica Vera Thorstensen A Sociedade Informatica As consequéncias sociais da segunda revolucao industrial Adam Schaff A Divida e a Pobreza Miguel Darcy e outros Para Pensar 0 Desenvolvimento Sustentavel /- Marcel Burzstyn (org.) A Guerra dos Meninos Assassinatos de menores no Brasil Gilberto Dimenstein Criancas e Adolescentes no Mercado de Trabalho Cheywa Spindel Colecéo Primeiros Passos O que sao Direitos Humanos Joao Ricardo W. Dornelles O que sdo Empregos e Salarios Paulo Renato Souza O que é Cidadania Maria de Lourdes M. Covre O que é Participagéo Juan E. D. Bordenave Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. Cristovam Buarque O QUEE APARTACAO © apartheid social ne Br: 22 edicio editora brasiliense Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 * For Evaluation Only. Copyright© by Cristovam Buarque, 1993 Nenhuma*parte desta publicagéo pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada, ida por meios mecinicos ou outros quaisquer reproduzit c o t Oe sem autorizacao prévia do editor. ISBN: 85-11-01278-8 Primeira ediga@o, 1993 2% edigho, 1993 Preparagio de originais: Henrique Silveira Neves Revisiio: Carmem T. S. Costa e Denise Gutierrez Capa: Emilio Damiani brasiliense Av, Marqués de Sao Vicente, 1771 01139-903 - Sao Paulo - SP Fone (011) 861-3366 - Fax 861-3024 IMPRESSO NO BRASIL Para Jdlia e Paula, parte da face jovem Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. pep SUMARIO Uma cena de apartheid social .. 9 Apartheid: a origem do conceito.......... Vi Apartagao: a outra face do conceito fi MMMOERT cere --4- +e - nee 18 A logica da apartagao................. 27 A apartagao social no Brasil ............. 32 A fabricagao da apartagao no Brasil...... 52 As outras formas de apartagao........... 75 Os limites da apartagao 80 A modernidade ética............. : 83 Conclus&o: o vocabuldrio da apartagéo .... Ss Indicagdes para leitura ..............- 90 Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. UMA CENA DE APARTHEID SOCIAT Um dia destes, no estacionamento de un McDo- nald’s, em Brasilia, dois jovens dentro de um carro se divertiam despejando batatas fritas no chao para que pivetes pobres fossem atras catando. Quem assistia, se nao se divertia também, perguntava-se por que, no Brasil, isto 6 possivel. O,que faz com cu2 um gru po se divirta daquela forma e outro rasteje daquele jeito? Se se sentissem semeltiantes aos piveies, os jo- vens do carro e os que assistiam teriam alguma solidariedade com a pobreza. Os jovens nao fariam aquilo, ou os assistentes nao deixariam que eles ten- tassem. Por outro lado, os pivetes, se minimo de dignidade, teriam assaltado os donos do carro em vez de rastejar pelas batatas frites sem um 10 CRISTOVAM BUARQUE O que permitiu a cena repugnante foi que os donos do carro se sentiam diferentes dos pobres pivetes. E estes, além de terem medo dos atentos vigilantes, viam no lixo que vinha dos ricos a Unica forma de matar a fome. Apesar da lingua comum, da mesma barideira, de poderem votar no mesmo presidente, os dois grupos se sentiam apartados um do outro, como seres diferentes. E isso que caracteriza 0 apartheid. O que disfar- ¢a sua ocorréncia no Brasil 6 que os pivetes ainda podem chegar perto dos McDonald’s e muitas pes- soas ainda se chocam com uma cena como essa de Brasilia. Mas isso esta mudando. Pouco a pouco os brasi- leiros ricos e quase ricos comegam a assumir a dife- renga em relagdo aos pobres e se acostumar com a miséria ao lado, construindo mecanismos de sepa- ragao. Por isso, é preciso despertar para o problema. Entender o que esta ocorrendo e apresentar alterna- tivas. fo Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. = et | APARTHEID: A ORIGEM DO CONCEITO N&o se pode dizer que o apartheid comecou com os brancos da Africa do Sul. Os gregos aniijos acha vam que a espécie humana estava dividida em partes diferenciadas. Apesar de serem os criadores do humanismo, dividiam os homens entre eles e os ou- tros: os barbaros. Os primeiros nasciam aa liber- dade e a riqueza da cultura, os outros, pa: Ihar como escravos. | Aristoteles nao hesitou em afirmar que os homens Ss ndo ele: 9 livres eram superiores aos escravos. 5 “Alguns homens sao por natureza livres, e outros, escravos”. Nao se tratava apenas de desigualdade, mas de diferenca entre os homens. Com excecdo de grupos primitivos, cc indios, as sociedades costumam se dividir em partes diferenciadas: senhores e escravos; arisiocratas e ig CRISTOVAM BUARQUE Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. © QUE E APARTACGAO 19 servos; crist€os e pagaos; as castas que se obser- vam em sociedades orientais; o tratamento machista contra as mulheres. S6 a partir do ‘século XVIII 6 que alguns pensado- res, como Jean-Jacques Rousseau, passaram a de- fender direitos iguais para todos os homens. A Re- voltigéo Francesa implantou um regime com o lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A Europa, que ao longo de séculos usou a escravido, repudiava a dis- criminagao e a segregagao, mas sem abolir as desi- gualdades. Apesar da democracia que defendiam, os pais da patria norte-americana foram incapazes de sonhar com uma sociedade sem escravos. Ao contrario, de- fenderam como natural que o destino dos negros fosse a escravidao e o dos brancos, viver na demo- cracia. A Revolucgao Americana implantou a democra- cia tolerando a diferenca que justificava a escravidao. S6 muito recentemente, ha cerca de um século, foi que passamos a viver em um planeta onde os direi- tos iguais foram se afirmando de maneira genera- lizada.. A escravidao nao acabou, mas passou a ser vista como um fenémeno raro, indesejado, barbaro e repugnante. Mesmo assim, a desigualdade nao diminuiu. Apesar do fim da propriedade de seres humanos por outros, a desigualdade continuou, dependendo da nacao, classe social, raga, Sexo, OU simplesmente da sorte. E essa desigualdade cresceu. Ainda que os direitos sejam estendidos igualmente a todes, a civil zacao avangou aumentando a desigualcade. Quando comparamos al desigualdace »ntre um aristocrata e um camponés na Franga dos ternpos lu- xuosos do Rei Sol, percebemos uma disiancia menor do que aquela de hoje entre um pobre e uma pessoa de classe média, nao importa o pais em que estejam. Ha trezentos anos, os aristocratas usavam cilase o mesmo tipo de bens e servigos que eslava a disposic&o dos camponeses: os médicos de ricos e de pobres sabiam o mesmo e dispunham dos mes- mos equipamentos; em tempos de paz e aoundancia, a quantidade de alimentos nao variava muito confor- me as classes; 0 nivel educacional era parecido, quase todos eram analfabetos; apesar de alguns te- rem carruagens, os meios de transporte e7am iqual- mente lentos e desconfortaveis; 0 lazer pouia sei ieito na corte ou no campo, mas sem muita diferenga além da ostentagdo dos nobres. No século atual, o processo econémico passou a oferecer variadas possibilidades de consumo, restri- tas apenas a uma parcela da populagao. Em vez de criar a abundancia e satisfazer a necessidade dos mesmos e€ poucos produtos de antes, como muitos sonhavam, a industrializagdo ampliou a variedaue de produtos e assim aumentou as necessidades, em vez de diminui-las. 14 CRISTOVAM BUARQUE Gragas ao avango técnico, as reformas sociais e a disponibilidade de recursos naturais, os paises ricos conseguiram quase eliminar a pobreza, aumentar substancialmente o nivel de consumo da maioria de suas populagées e diminuir a desigualdade in- terna. Dentro dos outros paises, a maioria continuou pobre, mesmo que uma minoria tenha conseguido atingir os padrdes de consumo dos paises ricos. Mas no conjunto o mundo ficou mais desigual. Durante décadas, essa desigualdade n&o criou qualquer dificuldade ao funcionamento da sociedade de cada pais, porque os pobres ainda conservavam resquicios do conformismo imposto aos escravos e servos, ou ja tinham adquirido esperanga de serem inclufdos nos privilégios. A partir de meados deste século, as coisas come- garam a mudar. A urbanizacgao mostrou o mundo mo- derno para todos, criou desejos adicionais e reduziu 0 conformismo; cresceram as tenses sociais, os po- bres ameagaram com revolucées, os ricos se defen- deram com ditaduras. Essa situagao ocorreu de maneira mais dramatica na Africa do Sul. Até o final dos anos 40, a desigual- dade econémica entre brancos e negros existia sem necessidade de leis especiais que separassem fisica- mente uns dos outros; a populacao negra se subme- tia a discriminac&o exercida pela minoria branca. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO 15 A urbanizagao, o crescimento econdmico concen- trado para os brancos e a rebeldia da maioria negra forgaram a implantag&o, em 1950, da Le! do Registro de Populagdo. Criou-se um sistema lega e man- tinha os grupos sul- africanos separados. Um con- junto de leis explicitou, determinou e regulou a se- paracao entre as partes da sociedade. A nova lei classificou os habitantes da Africa do Sul ern trés ca- tegorias: os africanos ou negros, os de cor ou gos e os brancos. A esse sistema deu-se 0 nome de ar no idioma africaner, falado pelos brancos sul-airica- nos, quer dizer separagdo, apartacao. Novas leis surgiram complementando 0 desenvolvi- mento separado na Africa do Sul. Foram regulamen- tadas as areas onde as pessoas poders 4 trabalhar e circular conforme sua cor; consolidou-se a necessidade de passaportes para os ni0-b circularem entre as areas; proibiram-se cont sociais, inclusive casamentos, entre pessoas de ragas diferentes; foram estabelecidos sistemas segregados de educagao com diferentes padrées qualidades; definiram-se tipos de emprego para cada n restringidos os movimentos sindicais de trabalnado- res ndo-brancos; e negou-se a participacao politica aos n&o-brancos nos processos parla’ ras @ go vernamentais. 16 CRISTOVAM BUARQUE Uma lei de 1951 estabeleceu uma organizacao politica para os habitantes negros separada da dos brancos. Foram criadas dez “nagdes” que dariam ci- dadania aos habitantes negros da Africa do Sul, in- dependentemente de onde eles morassem. Com isso, Os Negros perderam a cidadania sul-africana, tornan- do-se instrangeiros, estrangeiros no préprio pais, o que legalizou a sua exclusdo do processo politico sul- africano. O sistema foi implantado visando garantir e ampli- ara concentracao dos privilégios dos brancos. Nao foi o apartheid que causou a desigualdade entre bran- cos e negros na Africa do Sul. Foi a desigualdade crescente que levou os brancos a implantar o apar- theid, como forma de conservar e ampliar seus privi- légios, invidveis se fosse feita uma distribuigao eqiii- tativa dos resultados do progresso. Depois, 0 apartheid aumentou a desigualdade, mantendo uma crescente diferenciagao no bem-estar, no acesso a propriedade, nos beneficios sociais, con- forme o sul-africano fosse de raga branca, negra ou mestiga. A educagao ficou obrigatéria para todas as criancas brancas, em escolas com qualidade equiva- lente as dos paises-com-maioria-rica; para as outras criangas, a escola era opcional, em condigées preca- rias e com um numero de vagas que crescia mais lentamente do que o numero de criangas; o sistema de servigo social beneficiava diferentemente cada © QUE E APARTACAO, 17 pessoa conforme sua raga; o setor uroano branco dispunha das mais modernas facilidades médicas, en- quanto as areas negras continuavam cor ta in- cidéncia de mortalidade infantil e doengas eridémicas, como conseqliéncia da precariedade dos servigos médicos. Foi gragas a esse sistema que a economia sul-afri- cana desenvolveu-se e enriqueceu, do pon'o ce vista dos brancos. Impedindo a ameaga politica que ocor- reria em um sistema nao apartado, 0 aperheid foi o sistema social que permitiu o surto de desenvolvimnen- to econémico da Africa do Sul. Evitando a distribuigao da renda, garantiu a formagao de uma base de con- sumidores de alta renda e os recursos necessdarios aos investimentos. O que mudou com o apartheid nao foi o aumenio da desigualdade, mas a afirmagao da diferenga ®, com esta, a aceitagao sem constrangimento da J gualdade crescente. Ao se sentirem diferentes em relacdo aos negros, os brancos incorporaram uma nova ética que lhes permitiu nao sentir responsabilidade nem culpa dian- te da desigualdade. Da mesma forma coro os curo- peus nao sentiam antes com os escravos ou com os indios das Américas. E como os ricos brasileiros co- mecam a nao sentir diante da pobreza urbana, da fome ao redor, da mortalidade infantil, do assassina- to de meninos de z a a Pe BD Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. © QUE E APARTAGAO 19 APARTACAO: A OUTRA FACE “DO CONCEITO DE APARTHEID O sistema de segregacao racial na Africa do Sul re- cebeu o reptidio do mundo todo. Em 1950, a humanidade acabava de sair de uma guerra mundial contra o nazismo, que tinha entre ou- tros defeitos o racismo, o culto A supremacia da raca ariana. O mundo inteiro estava horrorizado com os he- diondos crimes contra judeus e outros grupos étnicos ou politicos. Os Estados Unidos estavam lutando con- tra a segregacao racial dentro de seu territério. Os pa- ises da Africa e da Asia passavam por um processo de descolonizagao. A América Latina fazia sua deco- lagem para o desenvolvimento econdmico. No outro polo ideolégico, o socialismo se consolidava como alternativa para a implantagdo de sociedades sem desigualdade. Em todas as partes, 0 mundo vivia a eso ga de construir uma humanidade integrada, sem diferencgas nem desigualdades. Ao consolidar 0 ape anos 50 e 60, a Africa do Sul caminhava contrario ao de todo o mundo. Para todos, 0 apartheid era um anacronismo e uma aberracao. Mas a humanidade que se chocava com 0 que era cometido na Africa do Sul nao percebia sue os po- vos caminhavam para uma crescente desiguaidade econémica e social, que terminaria por impor um ou- tro tipo de separagao: social e econémica, em vez de racial. Em cada um dos pa/ses-com-maioria-pobre, uma elite nacional assumiu 0 mesmo papel dos coloniza- dores estrangeiros e passou a explorar e e usufruir a potencialidade do pais, sem distribuir os rosu't usando métodos t&o ou mais brutais do antigos colonizadores. Nos paises da Améric da Asia e da Africa formaram-se elites « »S mos padrées de consumo dos paises ricos, mas a custa de imoral concentracao da renda nacional. Nos paises socialistas, a construgao da nova socie- dade foi utilizada para justificar a abolicdo das liber- dades individuais, construindo-se privil S politicos tao absurdos quanto os privilégios dos gru- pos econdémicos e das aristocracias medievais Apesar disso, 0 otimismo dos anos 50 dia a realidade da construgao de desigualdades cres- centes. ‘OSs oc os dos 2a Latina, 20 CRISTOVAM BUARQUE Mesmo quando estudavam, constatavam e denun- ciavam a desigualdade decorrente da concentragao da renda, os economistas e socidlogos caracteriza- vam a desigualdade distintamente do apartheid, por- que pensavam que a ascensdo social permitiria aos pobres saltar o muro que os separava dos ricos. Até os anos 60, havia a crenga de que todos os paises doé-mundo e as suas populagées atingiriam os mes- mos padrées de consumo dos Estados Unidos. © que mudou nos Ultimos anos foi a consciéncia da impossibilidade de que uma parte consideravel dos pobres possa saltar esse muro. Constatou-se que o crescimento econdémico apresentava limites e que pelo menos quatro razdes impedem que o padrao de consumo dos ricos se espalhe para todos os habitan- tes do mundo: A -raz&o ecoldgica: diversos estudos realizados no final dos anos 60 permitiram a descoberta de que os recursos naturais disponiveis no mundo nao seriam suficientes para continuar 0 crescimento econdmico no mesmo ritmo das décadas anteriores. E menos ainda para que todos os habitantes pobres do mundo pudessem consumir a mesma quantidade que os habitantes ricos. Faltariam imediatamente petrdleo, Agua, arvores, ar. Sem uma radical e imediata revo- lugao tecnoldgica, ainda que fosse possivel atender a necessidade desses recursos, a vida no planeta fi- caria insuportavel pela poluigao do ar e da agua. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. O QUE E APARTACAO. 21 A razao econémica: a realizagao do processo pro- dutivo nos moldes dos paises ricos exige ura cispo- nibilidade de capital que nao existe no ee nem existira por muitas décadas no futuro. Mesmo que nao houvesse limites fisicos ao consumismo para todos os habitantes do mundo, a realidade econémica impe- diria que todos os pobres atingissem o nivel d= rique- za dos ricos. A raz&o tecnoldgica: 0 que faz a situagaio de hoje diferente da dos tempos dos gregos 6 que /4 ndo ha mais necessidade de escravos, nem mesmo de mui- tos trabalhadores. O avanco técnico permite que os ricos n&o necessitem de pobres para o trabalho: as maquinas fazem o papel que antes era reservade aos escravos e depois aos pobres. Em vez de nscessitar de trabalhadores, o sistema permite a sua exclusdo. Os “barbaros” podem morrer fora — na Airice na Asia, na América Latina — ou como sern-ieto nas ruas e bairros pobres das grandes cidades dos pai- ses ricos. A raz&o social: com 0 avango técnico, as conauis- tas sindicais e a necessidade de deme dare ab- sorver os produtos do sistema econémico, criou-se uma aristocracia operaria com niveis de renca e con- sumo distanciados da maioria da populacdo ial. O resultado 6 que estas parcelas passam a necessi- tar de apartagao como forma de defender seus privi- légios. Como os operarios brancos na Africa do Sul, 22 CRISTOVAM BUARQUE os trabalhadores integrados ao setor moderno po- dem ser os primeiros defensores do apartheid. Sua renda esta apenas imediatamente acima da linha que separa os incluidos dos exclufdos, e os bens e servigos a que tém acesso serao os primeiros a ser demandados pelos novos inclufdos. Por essa razdo, esta entre os trabalhadores europeus o maior apoio as propostas neonazistas contra os imigrantes. Essa sifuagao péde ser observada no plebiscito entre os brancos para abolir 0 apartheid racial na Africa do Sul. Segundo pesquisas de opiniao publica, foi entre os operarios brancos que houve menos apoio as medidas para abolir a segregacao. Sao eles que vao enfrentar a disputa salarial, 0 espaco urbano, os servicos sociais com a populagao negra, quatro vezes maior do que a populagao branca, enquanto os ricos continuarao com sua renda e seus saldarios assegurados pelo nivel de qualificagao exclusiva que receberam e pelo resultado dos investimentos que fizeram. Com o fim das leis do apartheid, a apartagao sera feita pelo mercado: independentemente da cor de sua pele, cada rico comprara os privilégios que até aqui eram garantidos pelas leis conforme a raca de cada um. Da mesma forma como os sul-africanos brancos conviveram com os habitantes de cor negra enquan- to estes nado ameagavam seus privilégios, os paises Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. O QUE EAPARTAGAO 23 europeus conseguiram conviver com imigrantes en- quanto estes eram poucos e se comportav2n dentro da cultura européia; os Estados Unidos puderam dar- se ao luxo de abolir as leis de segregagao racial e tolerar a imigragao porque a absorgao de negros ¢ es- . trangeiros nfo ameagava o padrao de vida cos bran- cos. | Nos ultimos anos, quando o numero de imigrantes comecou a ameagar a estabilidade democrafica e cultural, os europeus passaram a assumiy medi protecionistas, restritivas, que aos poucos se transfor- maram em um novo tipo de apartheid. Os europeus, que imigraram para todo o mundo, quando na Europa havia fome, desemp: © re- cessao, e que receberam mao-de-obra de iouo o mundo, quando dela a Europa necessitou para sua reconstrugao, passam agora a assumir «xolicita- mente a necessidade de a Europa proteger-se con- tra os pobres do mundo. Os Estados Unidos, que foram construidos por imi- grantes, comegam a murar suas fronteiras com o México, e a guarda marinha passa a funcicrar como protetora contra os boat-people que chegam em fra- geis embarcagdes pelo Caribe. Hong Kong faz o mesmo contra os vietnamitas; a Italia, contra os albaneses. Na Alemanha, os neonazistas passam a perseguir os imigrantes com a conivéncia de policiais e possivelmente com o apoio de grande parte da AS 24 CRISTOVAM BUARQUE populagao, que fica contra os métodos nazistas mas nao contra os que visam proteger seus privilégios con- tra os estrangeiros. As populagées européia e norte-americana passam a viver uma ambiglidade que certamente foi vivida na Africa do Sul por muitos brancos antes dos anos 50. Ja sentem a necessidade de isolar-se do resto do mundo para proteger seus privilégios exclusivos, mas ainda querem manter a aparéncia dos valores éticos da igualdade e do internacionalismo, que eles pro- prios inventaram ha trezentos anos. Essa ambigili- dade esta sendo pouco a pouco desfeita. A solu- gao sera criar leis que legalizem e legitimem a separacao. Na Franga, os lideres de direita propdem medidas restritivas e os de esquerda s&o obrigados a copiar. Portugal, pais que sobreviveu gragas aos délares re- cebidos por seus emigrantes no exterior, inclusive no Brasil, passa a maltratar os brasileiros que tentam entrar na Europa por Lisboa. Até prova em contrario, os brasileiros passam a ser sinénimo de prostitutas, de travestis, de bandidos, de miseraveis em busca de emprego. Em sintonia com 0 processo de desenvolvimento d6s anos 50 e 60, a Europa e os Estados Unidos re- pudiam o racismo sul-africano mas praticam um clas- sismo com as mesmas conseqtiéncias, a mesma se- gregag&o, apenas substituindo a diferenga racial por Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 - For Evaluation Only. O QUE E APARTACGAO, 25 uma diferenga social e econémica entre os que con- somem o luxo e€ os que vao em busca de sobreviver do lixo. A Europa se sul-africaniza. Ja nao 6 0 apartheid racial, mas um apartheid social. Nao se trata do racismo tradicional. As proposias de novas leis para imigragcaéo nao visam impedir entrada de estrangeiros conforme a race, fies con- forme a renda. Os Estados Unidos dao direiio de re- sidéncia permanente_a qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade ou raga, desde que ingresse com certo montante de ddlares. Na Inglaterra, os guardas das fronteiras fiscalizam mais 0 cartao de cré fo que © passaporte dos turistas que desejam enirar no pais. Enquanto isso, surge nesses paises um crupo de estrangeiros nao apenas tolerados mas !espeliacos, porque sao empresarios e intelectuais bem-sucedi- dos. A literatura inglesa 6 hoje feita especialmente por estrangeiros, que nao sofrem maior preconceito. A Africa do Sul pode seguir o mesmo caminho. Abolir 0 apartheid racial e no seu lugar impor o apar- theid social. Os negros ricos|poderao morar em bair- ros de ricos, e os pobres brancos deverao !7 bairros de pobres. A Africa do Sul se brasil O avango técnico integrou os paises e as pessoas do planeta, mas dividiu-os socialmente, fazendo da Terra um Mundo Terceiro-Mundo. O apartheid renas- ceu com outra forma, e em dimensdo plane do delo, criando demanda para uma minoria enriquecida gragas a concentragao da renda. Esse foi um passo fundamental para a apartacao, dividindo a voouingéo nacional entre ricos, com niveis europeus, @ pobres com os niveis de consumo dos mais pobres paises no- 58 CRISTOVAM BUARQUE do mundo. Diferente da Africa do Sul, que implantou a ditadura dos brancos para garantir a desigualdade e explicitar a diferenca, no Brasil a ditadura dos ricos serviu para ampliar a desigualdade e construir e con- solidar a diferenca. Quinto erro: o endividamento. Para transplantar a economia rica para uma economia pobre, nao basta- va concentrar renda que viabilizasse a demanda; era preciso dispor de recursos para investimentos. Isso nao seria possivel sem um forte endividamento publi- co e privado, interno e externo. Embora seja um com- romisso e um custo para todos os brasileiros, 0 endividamento recai fundamentalmente sobre os mais pobres, porque eles estao desprotegidos contra a in- flagao e sofrem mais com a crise decorrente da divi- da contraida sem beneficia-los. Sexto erro: abandono dos setores sociais. Mesmo endividando-se, 0 governo nao dispunha de recursos suficientes para implantar a infra-estrutura econdmi- ca e ainda investir nos aspectos sociais. Cometeu-se 0 grave erro de abandonar investimentos em educa- ¢ao, saude e saneamento para garantir investimen- tos em dispendiosa infra-estrutura econémica. A so- ciedade ficou dividida entre os que podiam comprar esses servicos privadamente e aqueles que estavam excluidos dos servigos basicos, sem os quais cami- nharam rapidamente para a exclusdo. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO. 59 Sétimo erro: énfase nas exportacdes em vez do aproveitamento do potencial de um mercac) interno possivel. Quando a concentragao da renda nao bas- tava para garantir a demanda pelos produtos de ricos e 0 pagamento da divida externa ficava dificil, em vez de distribuir a renda e.mudar o tipo de produto da industria, voltando-o para as necessidades !a popu- lagdo, o regime ditatorial preferiu buscar mercado nas exportagdes. Um pais com o tamanho clo Brasil foi tratado como se fosse um pequeno pais, onde um reduzido aumento das exportagdes geraria um impac- to sobre a renda nacional. Para que o impacto ocor- resse, era necessdario concentrar os resultados posi- tivos apenas na pequena parte do p oderno. A crise poderia ter sido utilizada para reorien.ar a eco- nomia em diregdo a uma sociedade integrada. Em vez disso, optou-se por subsidios, abandoniou-se ain- da mais os setor social, usou-se dinheiro publico para construir hidrelétricas cuja finalidade basica era dar apoio a empresas exportadoras, separaram-se ainda mais as partes da sociedade brasileira. Oitavo erro: criagao de cartérios que cada setor de uma economia impossivel de funcionar livremente. A imitagao das economias ricas, em uma realidade t&o diferente quanto a brasileira, 640 pode- ria funcionar livremente. Em vez de ajusiar a econo- mia a reaiidade interna, social, cultural, natural e eco- ndmica, o sistema preferiu proteger cada setor que 60 CRISTOVAM BUARQUE entrava em crise. A industria automobilistica nacional funcionava a base de protegao contra a estrangeira; quando isso n&o bastou, foram dados subsidios para que exportassem; quando isso nao bastou, criaram- se subsidios para as vendas internas. Aos poucos uma inextrincavel rede de protecdes foi feita para pro- teger um tecido social invidvel. Nesse tecido, os in- centivos e protegdes se concentram sempre nos que estado dentro do sistema, raramente nos que estao exclufdos. « Nono erro: comunicagao social com compro- missos exclusivamente privados. O nono erro foi a implantagdéo de um sistema de comunicagdo sem compromisso cultural com uma sociedade integrada. A televisao foi o instrumento-chave de uma maneira de ver o mundo dividido, necessariamente partido en- tre duas classes apartadas: divulgando os objetivos da minoria como sendo os objetivos ébvios e Unicos do pais; oferecendo a ilusao da possibilidade de to- dos serem promovidos aos privilégios; justificando a ditadura e seu modelo; fazendo tolerdvel a desigual- dade; ignorando seu papel pedagdgico; criando ne- cessidades e induzindo a uma demanda vidvel ape- nas com forte concentragao da renda; disseminando a idéia de uma modernidade com base na técnica usada, e nao nos objetivos sociais cumpridos; crian- do uma visao individualista, do “salve-se quem puder’, da apologia de uma riqueza exclusiva para poucos. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTACAO 61 Décimo erro: a partir de 1989, a democracia politi- ca sem reformas nas prioridades. No Brasil, mente dos paises europeus, dos quais importamos o modelo econémico, a democracia politica nao serviu para distribuir a renda e mudar o projeto social. Ao contrario, a democracia nao fez ainda quel« sto social em diregao a uma sociedade sem «ave ; serviu para que os grupos corporativos, inclusive sin- dicatos de trabalhadores, mantivessem os > 7 ios e até os ampliassem. Em vez de se modificarem a economia e o destino da sociedade, a apartagao se consolidou como alternativa para continuar no erro. Na realidade, 6 na democracia politica que a apartagao explicitada. Enquanto durava a ditadura e 4 aparta- ¢4o era fabricada, quatro situagdes impediar recer: primeiro, nado era necessario expiicita-'c, 9 a repress&o policial cuidava de impedir violéncias, ar- rast6es, mobilizagdes e a presen¢a dos pobres entre os ricos; segundo, porque quando necessédrio a dita- dura dispunha de meios para endividar-s 'e me- canismos mais faceis para dar compensagoes emergenciais e reduzir as catastrofes maiores entre os excluidos; terceiro, porque a ditadura reorrm reivindicagdes dos grupos sindicais inciufdos, quarto, porque os grupos corporativos sindicais tinham em. comum com as massas a luta contra a ditacura. as C t ( ( 62 CRISTOVAM BUARQUE Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTAGAO 63 O fim da ditadura deu forga aos grupos sindicais organizados, que garantiram e até ampliaram seus beneficios, mesmo que a custa de uma maior aparta- ¢ao; Os governos foram obrigados a atender aos interesses dos grupos corporativos e ficaram sem re- cursos para atividades emergenciais; desapareceu o Unico ponto de unidade entre 0 povo e os progressis- tas integrados no sistema, que era a luta contra a di- tadura; finalmente, com a democracia, o povo, mes- mo excluido, tem certos direitos assegurados pela Constituig&o e dispde de organizagdes nao governa- mentais de apoio a esses direitos. O resultado é que a democracia leva a desmascarar a farsa, e a apar- lagao passa a ser visivel. Os instrumentos de implantagio da apartacgao Na Africa do Sul, o apartheid ja existia explicitamen- te, faltando a legalizagao. No Brasil, ele existe implici- tamente, comegando agora a ser explicitado por meio de instrumentos que funcionam como diques de apar- tacao, ainda que nao explicitados nem legalizados. a) A privatizagaéo do Estado, do espaco e dos servigos publicos Para conseguir a diferenciacao, um instrumento central € a privatizagao do Estado, do espaco e dos servigos publicos. Em vez de construir servicos publl- cos que atendam as necessidades de toda a popula- Gao, a sociedade brasileira vem implantanido servigos que solucionam os problemas de minories privilegia- das, abandonando as grandes massas exc! fdas (*) A terra rural nao é usada para alimeniar a po pulag&o, mas para gerar divisas orientadas para o projeto de industrializagao voltado para cs ; (*) O espago urbano 6 privatizado, expuisando-se as unidades familiares, consideradas invasoras den- tro de seu préprio pais, e isolando-as em areas segre- gadas; o proprio espago publico de ruas, pracas, cidades é apropriado privadamente para os ‘amilias do setor moderno. cea (*) Através de seguros, a sauide é privatizada e re- solvida para aqueles que podem pagar o « isto, pes- soalmente ou por meio do empregador, seja este o Estado ou o setor privado. (*) O mesmo ocorre com a aposentadoria, por meio de grupos privados ou da participagao em fundos par- ticulares de solidariedade mutua. Ainda me rave 6 a utilizagdo privada de beneficios financiados com re- cursos da maioria da populagéo. Gragas ao att tema, trabalhadores de certos setores mode seguem aposentadorias aos trinta anos de servi¢o, as vezes com menos de 50 anos de idade, enquanto no setor informal, impossibilitados de comprovar tem- po de servigo, muitos velhos pobres coninuam © tra prpiiesemsss 64 ORISTOVAM BUARQUE balhar. Nao para af a perversidade: diversas catego- tias de profissionais de nivel superior, como oficiais das Forgas Armadas e professores das universidades federais, conseguem nao apenas uma aposentacoria precoce, como 0 privilégio de aumento de saldarios no momento da aposentadoria. O privilégio 6 tao claro para as minorias que os mais humildes, os funciona- trios administrativos das universidades e os soldados e cabos, esto excluidos do privilégio dos oficiais e professores. “ (*) A universidade 6 em si uma forma de privati- zacao dos servigos estatais. Nao apenas porque sé ventram nela os filhos das camadas privilegiadas mas sobretudo porque a maior parte dos profissionais uni- versitarios 6 formada com tao pouco compromisso e interesse nos problemas dos pobres exclufdos quan- to os universitdrios brancos da Africa do Sul so com- prometidos com a maioria negra de seu pais. (*) A educacgao basica publica, que atende princi- palmente as camadas exclu/das da populagdo, ha décadas nao recebe 0 mesmo apoio que as universi- dades receberam nos anos 70. A minoria privilegiada brasileira deixou o setor da educagao basica publica degradar-se. E, quando o custo da educagao privada fica elevado, em vez de defender uma mudanca nas prioridades, visando a implantagao de escola e satide publicas para todos e a reorientacao dos objetivos do avango técnico, a minoria privilegiada defende apoio re ee Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO. 65 publico para escolas privadas — isengao de impostos sobre a renda e financiamento direto 4 educagao par- ticular dos filhos dos inclufdos no sisterna, ou mes- mo a criagdo de escolas especiais, com recursos pUiblicos, para seus filhos. (*) Uma das formas dessa privatizagdo dos bene- vole-cine- ficios sao os sistemas de vale-refeigao ma, vale-transporte e outros subsidios c que servem apenas aos que estao dentro do siste- ma. : (*) A infra-estrutura urbana nas grandes cidades serviu muito mais para viabilizar o uso de ai'tomdveis do que para sanear os bairros periféricos. UO sis.ema nacional de habitag&o foi usado para grandes obras vidrias e para financiar a construgao de e das classes média e alta nos anos 70. (*) Todo o sistema estatal brasileiro tem sido um instrumento de concentragao e de ampliagao dos pri- vilégios de poucos. A diferenga 6 obvia na qualidade do atendimento de um érgao de servico s« ara a maioria do publico, como hospitais e escolas, e de 6rg&os para o atendimento da minoria rica, como um departamento de transito ou um aeropor'e ce our quer cidade. (*) As estatais, muitas delas fundamentais para qualquer estratégia de soberania nacional, t6m servi- do basicamente a construgdo do modelo de exclusao e a solugao dos problemas relativos acs 1° ; da populac¢ao rica. ( { { ( { > ( ( { 4 4 { ( i 66 CRISTOVAM BUARQUE (*) Ao longo de toda a ditadura, os politicos de- mocratas e os sindicatos lutaram pela distribuigao da renda entre os incluidos, mas esqueceram de lutar por uma revisdo das prioridades nacionais, que ori- entasse o progresso em beneficio dos excluidos. (*) A televisao, 0 Unico servigo igual para todos, comega a se diferenciar. A sociedade comeca a se dividir entre os parabdlicos, que pagarao pela opcdo de dezenas de canais especiais, e os metabdlicos que continuarao manipulados, vendo o que escolhem os donos das emissoras. Le b) A captura dos criticos |. A democracia apartada Uma diferenga entre a apartacaéo e o apartheid é que a primeira é hipdcrita e se proclama democratica. A Europa consegue ser democratica e praticar o apartheid porque seu processo politico é nacional e a segregacao se da contra estrangeiros. Pafses que, ha trezentos anos, comegaram a desmontar a diferen- ga e inventar a ética da igualdade estao voltando ao passado em que a democracia convivia com a exclu- sao dos escravos e dos barbaros. Com o agravante de que, agora, j4 nao mais necessitarao de escravos. Aos poucos 08 europeus vao ter de enfrentar uma crise ética decorrente de um mundo integrado inter- nacionalmente mas no qual a sociedade humana fica ae Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTACAO 6 classificada entre ricos e barbaros. Mas nao havera dificuldades politicas e policiais, porque as fronteiras podera&o ser guarnecidas. O caso do Brasil 6 diferente. Nao ha como manter a democracia, no seu sentido de voto universal, e ao mesmo tempo manter a apartacao, no se do de exclusao. Se a diferenga entre ragas nao ocorrer antes, o Brasil apartado tera de escolher entre uma ditadura ou uma democracia corporativa, com di ciados conforme o tipo social do habitanic. A democracia brasileira ja é deste tipo: uma ditadu- ra de corporagdes, cada qual com seus mecanismos de press&o em defesa da visao e dos interesses prdé- prios da categoria. Os parlamentares brasileiros sao eleitos por seus Estados, mas est&o mais vinculados a grupos corporativos. Representam bencérios, mili- tares, setores empresariais, proprietarios ju cis, gran des ou pequenos. Para manter a apartacao, a ditadura ¢ ) goes nao sera suficiente; para manier a exciusao, sera necessaria a implantacao de um sistema de governo que permita evitar que os pobres participem do governo: pela formalizagao de um sistema como o sul-africano, em que os exclu/dos | Tp formagao de castas, em que os exciuidos f nao recla- mam; pela manipulag¢ao eleitoral de votos com valo- Rani E DN, i 68 CRISTOVAM BUARQUE res diferentes; ou pela completa diferenciagao racial, nao apenas pela cor mas também por qualidades intrinsecas fabricadas artificialmente. ll. O alheamento e o alinhamento sindical - No sistema de aparta¢gao, os grupos sindicais sao comprometidos com os trabalhadores que represen- tam, mas s&o alheios aos problemas das grandes massas excluidas. A médio prazo, isso pode se transformar em uma forma nova de peleguismo. Ja nao sera o peleguismo tradicional dos lideres sindicais alinhados corrupta- ‘mente aos interesses dos patr6es, mas o de um tipo de sindicalista que, embora fiel aos seus companhei- ros e intransigente com os patrées, faz parte do sis- tema social e econémico e fica submisso ao modelo e as prioridades nacionais. E o sindicalismo que luta por vale-refeigao mas nao se preocupa com a reforma da estrutura agraria; que defende reducao de imposto sobre os automdveis em vez de exigir um programa de produgao de ambulan- cias, ou de transporte urbano; que reivindica finan- ciamento para educagao dos associados mas nao luta por uma educacao publica para todos; que se preocupa com sistemas privados de satide e aposen- tadoria mas ignora a crise do sistema publico de sau- de; que reivindica subsidios para a construgao de fe Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTACAO, 69 casas mas nao leva em conta o saneamentio basico; que briga por crescimento e salarios como se todos fossem empregados, esquecendo a neces > uma revolugao nas prioridades. Esse neopeleguismo tem sua mais clara face nos trabalhadores europeus e norte-americanos, mas Co- mega a surgir também no Brasil e se reproduz igual- mente aqui entre os trabalhadores do setor moderno. c) A tecnologia sem compromisso éiico Qualquer utopia passa necessariamenie | pelo avan- Go técnico. Mas, dependendo do compromisso Stico, o instrumento que liberta o homem de < ¢ dades termina aumentando a necessidade de muitos. O mal uso do avango técnico, que aumeniou a desi- gualdade e construiu a apartacao, pode ser o instru- mento de sua implantacao definitiva. Para isso sd sera preciso manter por mais algumas déce Jas © ten- déncia das Ultimas duas: a fome e a insalubridade, de um lado, e as técnicas médicas e nutricionais, de outro, terminarao por naturalmente difer os ho- mens. Mesmo os setores de grande impacto positivo, como a robética e a biotecnologia, em vez de libertar o homem do trabalho, podem terminar condenando muitos deles ao desemprego; em vez de melncrar a qualidade de vida, podem servir & criagao de “espé- cies” diferenciadas de homens. ( 70 CRISTOVAM BUARQUE Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO. No Brasil, ao lado de seus aspectos positivos, essas técnicas estdo servindo também como instru- mentos de formac&o da diferenciagdo racial da po- pulagéo, gracas a medicina concentrada no esforgo ‘de melhorar a satide e prolongar a vidae a ju- ventude de uns poucos ricos, abandonando as neces- sidades da saude e da nutrigao das grandes massas. d) A militarizagao privada O encastelamento nao é suficiente para manter os pobres afastados. Os ricos tém de estar protegidos por um forte sistema de vigilancia para atravessar ter- ritorios de pobres e entrar em seus castelos. Esse sistema de vigilancia ja esta em implantagao. A publicidade de festas, carnavais, clubes, lojas, cen- tros de compras e residéncias indica como principal qualidade desses itens os sistemas de vigilancia particular que oferecem. A vigilancia privada a servi- Go dos privilegiados torna-se t&o natural que as ativi- dades turisticas ja incluem em seus custos 0 guarda- Costas de cada turista. Os empresarios e os filhos da classe média vivem cercados por guardas particu- lares. Segundo os dados disponiveis, provavelmente su- bestimados, porque nao levam em conta os vigilan- tes no setor informal, ha no Brasil mais de 100 mil vigilantes privados, em firmas ou avulsos. A continuar seeoRaRn ne Nnenmmanmatenuaemeenuminnretet ital o ritmo de crescimento dos ultimos anes, Jenivo no maximo uma década o Brasil dispora de mais vigi- lantes privados do que militares das trés Forgas Ar- madas oficiais em conjunto. O- custo adicional dessa vigilancia cc a a per- turbar o funcionamento de“diversos setores. Ac ana- lisar as causas da inflac&o, os economistas esquecem esses custos adicionais de cada atividacle. Além dis- so, 6 insensatez pensar que uma elite se considere permanentemente protegida por vigilantes originarios das classes que as ameacgam. Para proteger seus patrdes, o exército de vigilantes enfrenta i inimigos que estao social e economicamente mais prov! do que os patrées. E como se na Africa do Sul o Sis- tema de garantia do apartheid fosse feito oor vigilan- tes negros. A situagao tendera a se ampliar e podera ameagar os proprios privilegiados. Sera uma quest&o de tempo até que a elite se sinta obrigada e tentada a atrair as Forgas Armadas para o servigo de guarda-costas dos ricos e « da apartacao. falas e) A cultura da apartacao Segundo todas as estimativas, 0 Brasil é o pais com a maior desigualdade de renda entre a parte mais rica e a parte mais pobre de sua populagao. A desigualdade 6 tamanha que ja se pode ‘zer que 72 CRISTOVAM BUARQUE saimos da desigualdade e entramos na diferenga. De outro tipo, mas nao menos brutal do que a diferenga entre os gregos e os barbaros; entre os europeus e os escravos ou indios, nas Américas; entre os bran- £08 e os negros na Africa do Sul. Mas a apartagao — aceitacao da miséria ao lado da riqueza, separagao de classes, consolidagaéo dos privilégios, exclusao — nao é possivel sem a forma- ¢ao de uma ética e uma cultura que tolerem esse estado de coisas. O Brasil esta formando essa cultura. A viséo de que os pobres sao em principio bandidos, de que os nordestinos retirantes sAo uma ameaga, de que a modernidade é a riqueza para poucos, e nao o fim da pobreza para todos, e de que a cultura pobre é “brega” vai, aos poucos, criando uma maneira de pensar propria do apartheid. O separatismo no Sul e a elitizagao dos gostos sao exemplos disso. Os brasileiros da elite ja nao tratam os brasileiros pobres como desiguais, mas como diferentes. Pelo fi- Sico, pela roupa, pelos dentes, pela cultura, pela edu- cacao, pela linguagem, um brasileiro rico ou de clas- se média é mais diferente de um brasileiro pobre do que de um europeu. E gracas a essa diferenciacéo que as classes pri- vilegiadas discutem os problemas do Brasil sem ao menos incluir a pobreza como um deles. Quando considerada, a pobreza é vista como um estorvo Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTACGAO. 73 desagradavel a ser evitado, e nao como um proble- ma a ser resolvido. Deseja-se eliminar o incémodo que os pobres representam para os ricos, e nao a degradac&o social que a pobreza significa para os pobres. f) A politica fiscal e monetaria Uma das formas de consolidar e continu. ar a apar- taco é promover uma politica fiscal que privilegie os privilegiados e exclua os exclu/dos. (*) Oferece subsidios aos automéveis, enquanto alimentos pagam impostos; isenta de imnostos os remédios veterinarios porque interessa @ oconomia, mas mantém impostos sobre remédios para humanos porque os ricos podem pagar por eles nanciamento e outros incentivos ao con e renda, enquanto o de baixa renda enfrenia dificulda- des; taxa os salarios e isenta o capital. (*) A inflagao funciona como um imposto diario, re- tirando parte do valor do pouco dinheiro cue os po- bres conseguem, enquanto os ricos disp canismos para ampliar o valor de seu dinheiro, por meio de contas remuneradas, investimenios sm ouro e moedas estrangeiras, manipulagao ce patrimdnio imobilidrio ou em titulos, uso de cartées de crédito, tudo termina criando duas moedas: uma de pobre, que se desgasta, e uma de rico, que se valoriza. Nesse sentido, a apartagao brasileira 6 *inda mais perversa do que o apartheid sul-africano. ce me i‘ Co 74 CRISTOVAM BUARQUE (*) Os subsidios fiscais sao um exemplo das trans- feréncias que terminam privilegiando os ricos. Sao isentos do Imposto de Renda, que poderia servir para financiar prioridades sociais, os ganhos investidos em atividades sociais, como o desenvolvimento do Nor- deste. Mas em vez de financiar os servigos de que carecem os pobres nordestinos, esses investimentos terminam nas m@os dos ricos do Nordeste, que gas- tam o dinheiro comprando equipamento e bens de consumo originarios no Sudeste. (*) Um dos exemplos mais graves foi o uso do Fun- do de Garantia por Tempo de Servigo (FGTS) e do Banco Nacional de Habitagao (BNH). O primeiro, formado com descontos sobre os salarios dos tra- balhadores, serviu durante décadas para financiar a construgao de casas para as classes média e alta. Os trabalhadores recebiam de volta suas contri- buigdes reajustadas por uma taxa inferior a inflagdo. Os ricos pagavam os financiamentos reajustados a taxas inferiores a inflagao. Aqueles perdiam, estes ganhavam. Quando o sistema entrou em crise, os ficos conseguiram mecanismos para facilitar suas di- vidas e os trabalhadores tiveram os recursos do FGTS congelados sob 0 argumento de que nao se dispunha de recursos. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. AS OUTRAS FORMAS DE APARTACAO Disfargadamente, outras formas de segregacao continuam vivas, constituindo um verdacdei) arcuipé- lago de grupos excluidos. Existem apartagoes raciais, religiosas, de género, de op¢do sexual, de origem regional, linglisticas, de gerac6es. | Apartheid racial A idéia da apartagao social nao pode servir como biombo para esconder a criminosa pratica do racis- mo. Em primeiro lugar, esse racismo se manifesta indiretamente, pelo fato de que é de raca negra a imensa maioria dos excluidos sociais no Srasil. Além disso, a sociedade brasileira é racista. Ainda que pre- firam conviver com um negro rico do que com um pe ‘ ( » * ( ; ( 76 CRISTOVAM BUARQUE Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO 7 a branco pobre, os brasileiros estao impregnados de racismo. 7- Por forca da aculturacao imposta pelos colonizado- res, muitos negros agem em relagao ao conjunto da raga da mesma forma como os brasileiros agem em relacado a si proprios: com complexo de inferioridade em relag&o ao que se chama de sociedades desen- volvidas. O resultado 6 que os negros sdo excluidos nao apenas pela pobreza mas também pela cor, sofrendo duplo apartheid, o racial e o econémico, que se so- mam em um circulo vicioso de dificil superagao. Apartheid religioso ‘i Uma das formas mais explicitas de preconceito no mundo atual é a intolerancia dos europeus diante dos fundamentalistas islamicos. “Enquanto os mugulmanos viviam isolados em seus paises, havia a aparéncia de tolerancia. Quando eles se tornaram donos do préprio petréleo, emigraram em massa para a Europa e passaram a valorizar a pro- pria cultura, a Europa passou a difundir o preconceito, explicitar opinides depreciativas e tentar isolar os mu- gulmanos. Esse comportamento 6 comum a europeus de direita e de esquerda. O apoio generalizado a Guerra do Golfo, a postura diante das eleigdes de 1991 na Argélia sao exemplos desse preconceito. No Brasil, ocorreu nos tltimos anos um nde au- mento do numero de seitas religiosas. Algumas de- las certamente tém lideres charlatées. Mas. indepen- dentemente desses desvios dos lideres, h: parte da elite um claro preconceito contra toda religiao que saia dos padrées tradicionais, que fira a sensibilidade dos cultos estabelecidos e, sobretudo, que promova grandes mobilizagées populares. Gestos parecidos entre uma e ouira re igiéo sao vistos como totalmente diferentes sob o argumento de que as religides novas manipulam corn a crenga, enquanto as tradicionais sao o resultado ca ié. Mes mo quando ha uma aparente tolerancia religiosa, con- tinua a haver uma intolerancia real com aqueles gru- pos que se formam e desenvolvem & margem dos sistemas religiosos tradicionais. O machismo Um forte apartheid continua a existir da parte dos homens contra as mulheres. Apesar de todo o avan- co das ultimas décadas, a idéia da liberacao femini- na e da igualdade entre os géneros nao eangou st) ficientemente. As mulheres tam estado condenadas @ trabalhos que os homens e a sociedade em geral vlass'licar como inferiores, por mais nobres que eles sejam. 78 CRISTOVAM BUARQUE Como conseqtiéncia, quando conseguem integrar-se na produgao formal, tém salarios inferiores, sao mo- lestadas sexualmente e sofrem bloqueios de carrei- ra, sendo preteridas por trabalhadores homens. Além da econémica, as mulheres sofrem todas as formas de violéncia, especialmente sexual e fisica, ocorrendo até mesmo assassinatos considerados jus- tificados. Certas culturas continuam com ritos e nor- mas que simplesmente exilam as mulheres da convi- véncia social mais ampla e eliminam a possibilidade de as mulheres optarem por seus destinos. A intolerancia sexual i A sociedade mundial ainda vive forte preconceito sexual, que segrega os grupos homossexuais. Mes- mo que nos Uultimos anos os grupos de mobilizagdo ‘ pelos direitos dos homossexuais tenham conquista- do vitdrias praticas, o preconceito continua e se ma- nifesta, muitas vezes sob a forma de claro apartheid. O apartheid entre geragdes Apesar de identificada e ter seus impactos previs- tos, a crise ecoldgica ainda nao provocou as neces- sdrias mudangas de habito. A geragdo atual continua Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTACAO 79 produzindo e consumindo any se Os recursos natu- rais fossem eternos e coma ilusao de que o avango técnico resolvera todos os problemas. i Ao depredar os recursos naturais e sujar o plane- ta, as geragées atuais esto dificultando a sobrevivén- cia econémica e impedindo as geracgées futuras de ter um meio ambiente de qualidade. Com isso, podem estar provocando um apartheid conira as geragdes que ainda nem existem. O Brasil 6 um dos paises onde isso se c* em maior escala. Com o agravante de que nem ao menos 6 toda a geragdo atual que usufrui o consumo depre- dador. Com consumo depredador e desperdicio bru- tal, a pequena minoria que provoca 0 apartheid soci- al destrdi o meio ambiente, as florestas e o n6ni da humanidade que é a Amazonia. (oe OS LIMITES DA APARTACAO Na esfera internacional, 0 apartheid sera viavel por muitas décadas contra os pobres do resto do mundo. Mas, salvo pela hipotese, ainda absurda, de serem criadas duas “espécies” de seres humanos, a aparta- ¢ao sera impraticavel por longo tempo dentro das fronteiras de um mesmo pais. Seu custo termina por provocar uma ruptura no tecido social, devido aos gastos extras para manter os exciuidos afastados ou por causa da deterioragao ética que termina por cor- roer os prdprios inclufdos. O caso da Africa do Sul mostra os elevados custos que uma sociedade tem de pagar para manter a ex- clusao. Em algum momento da histdria, 0 processo social entra em crise. Descontentes com a exclusao e alijados do exercicio politico, os excluidos passam a utilizar o Unico caminho que lhes resta: a violéncia. Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTAGAO, 81 Quando a exclusao 6 racial, criam-se mente lagos politicos que organizam o exercicio da violéncia, canalizada para a tomada do poder. Os in- clufidos.se véem obrigados a arcar com elevados custos militares, ocupando o pais como tropas estran- geiras. No caso da exclusao social, torna-se mais dificil unificar os excluidos, Nao ha um fator, como a cor da pele, que oferega unidade. A organizacao politica fica dificultada, mas a violéncia nao 6 menor, apenas pra- ticada de forma diferente. O Brasil € um exemplo. Os partidos politicos repre- sentam os incluidos, e a representagao dos excluidos limita-se a organizagdes nao governameni: 's con f- nalidades basicamente assistenciais e setorizadas. A “militancia” 6 a violéncia urbana nas ruas, Cesorqani- zada e apolitica. O custo para manter a ordem torna-se tao alto quanto na Africa do Sul, ainda que disfarcado. Em vez de um exército em guerra interna, uma policia militar assustadoramente violenta, dezenas de milha- res de vigilantes privados contratados para re ro que as Forgas Armadas ainda nao devem ou nao de- sejam fazer. Mais forte do que o custo financeiro e econdmico para conter a violéncia dos excluidos é a desmorali- zagao ética da violéncia dos incluidos. Na Africa do Sul, atos de repressao como os de Soweto nrovocam Edited by Foxit PDF Editor orton SSS ean ight (c) by Foxit ion, - 2010 : For Evaluation Only. : 82 CRISTOVAM BUARQUE : @ @ 1 Bep a uma indignagdo generalizada no mundo inteiro. No | Brasil, meninos abandonados e assassinados, a acei- /tagao da prostituigao infantil, o genocidio que é a _ esterilizagdo em massa, o massacre do Carandiru vao formando uma tolerancia a violéncia, uma aceitagao 7 da depravac¢o cultural uma ruptura do tecido social, A MODERNIDADE ETIC/ que passa a resistir precariamente, ameagando uma explosdo social de proporgées incalculaveis. Se o Brasil é 0 retrato do planeta, tode digdes est&o dentro de suas fronteiras. A crise ecolégica 6 um. exemplo disso. Além de : despertar na humanidade a consciénsic de que estamos todos em um mesmo barco, mesmo que di- vididos, a devastagao da Amazénia fez do Brasil um dos simbolos do desequilibrio ecoldgico, mesmo quando sabemos que 0 desastre 6 causado sobretu- do pelo sistema industrial dos paises ricos A violéncia nas ruas das grandes cidades é outro tema que apenas reproduz, dentro da realidade bra- sileira, a violéncia no planeta. Da mesma forma que a devastacao da Amazénia alertou 0 mundo e o Brasil para a necessidade de uma consciéncia ecoldgica, a globalidade da crise civilizacional pode despertar uma consciéncia da necessidade de um novo modelo de civilizagao. ra 84 CRISTOVAM BUARQUE Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. O QUE E APARTACAO. 85 A divisao social que se percebe entre os habitan- /ies dos paises-com-maioria-rica e aqueles dos pai- “ges- -com-maioria-pobre se reproduz com a mesma brutalidade dentro das fronteiras do Brasil. Isso obriga o Brasil, antes de outros paises, a im- plantar sem disfarces a apartacdo, ou ent&o construir uma sociedade integrada. A apartagao é a Ultima etapa de uma série de op- ces histéricas que visaram implantar em um pais- com-maioria-pobre uma economia de pais-com-mai- oria-rica. A cada momento de crise, o Brasil fugiu aos limites, fez uma fuga as restrig¢des, e continuou superando as dificuldades para continuar aumentando o consumo. A ultima fuga é a implantagao da aparta- go, para aumentar o consumo da minoria, dentro das reduzidas disponibilidades de recursos, sem ameagar 0 equilibrio ecoldgico. Com a apartacao, nao havera impedimentos técni- ‘cos a essa op¢ao de aumentar o consumo. O Unico empecilho estaria na existéncia de restrigdes éticas a fuga das restri¢des da economia. Para que essa restrigao ética ocorra e sirva como elemento de corregéo no caminho da aparta¢ao, sera preciso vencer a tendéncia de considerar moder- nidade sindnimo de avango técnico. Em vez disso, submeter esse avango a um projeto ético, no qual os homens assumam a diversidade entre eles e possam até ser desiguais mas nao diferentes. Isso inverte a tendéncia Ne modernidade tradicio- nal, vista pelo lado técnico, em que a sociedade ti- nha de caminhar para um Unico padrAo de riqueza, construfdo por um Unico tipo de técnica, sem tolerar a diversidade, ampliando a desigualdade e constru- indo a diferenga. Se quiser continuar com esse mo- delo de crescimento, o Brasil tera de implantar < se- gregagao, explicitando a apartagao entre ricos modernos e pobres atrasados. Se rejeitar essa alternativa obscena e inventar um caminho diferente, o Brasil podera vir a ser um retrato do que a humanidade desejaria para 0 co junio do mundo. Da mesma forma que tem todas as def ormacses, 0 Brasil tem todas as qualidades do pianeie. Os pai- ses muito pobres dificilmente poderdo oferecer uma alternativa. Os paises-com-maioria-rica néo sentem a necessidade de alternativa. Mas neles sera cada vez mais dificil fazer conviver a ética internaciona!.do cras- cimento auto-sustentado com a democracia limitada a representar os direitos e interesses nacionais. A maioria dos ricos continuara, democraticanente, votando para isolar-se cada vez mais dos pobres do mundo. No Brasil, ética e democracia podem estar casa- das. Porque o fim das diferencas coincide com os in- teresses das grandes massas nacionais e i e“nacio nais. La 86 , CRISTOVAM BUARQUE O retrato do mundo atual que o Brasil representa “pode servir para que o pais elabore o retrato que o mundo do futuro pode ser, num projeto em que ética e democracia se casem. Pode servir também para que, por meio de uma sociedade que respeite as li- berdades individuais, 0 pais elimine toda forma de apartacao, concentre o esforgo humano na ampliagao do patriménio cultural, com todo o respeito a diversi- dade e ao equilibrio ecolégico, sem abandonar mas considerando supérfluo o sonho do consumo como parte da meta civilizacional. O maior empecilho a essa mudanga esta na causa principal da propria apartacao: a cultura da aceita- cao de um modelo social em que o objetivo da modernidade-é o sistema econémico no qual a pro- dug&o nao pode ser distribuida para todos. Exige ex- clusividade, e portanto apartacao. . Essa modernidade considera que 0 objetivo central ‘do desenvolvimento 6 0 uso de técnicas e produtos novos. A economia é organizada para viabilizar a pro- dug&o desses bens modernos, usando as mais mo- dernas maquinas. Para isso, os objetivos sociais sao desprezados, sob o argumento de que, a longo prazo, a economia e as técnicas resolverdo todos os proble- mas da sociedade. Mesmo quando a sociedade ca- minha para a deseducagao, para a fome e para a apartacao, tudo continua dando a impressao de que 0 pais avanca, porque se moderniza. Isso so é pos- sivel pelo total abandono dos valores éticos. Jenssen reenetnttheenepae nesahsatennnnshrore ns cdesnnannncneecnertinmeaiainasneiisd O QUE E APARTAGAO 87 Para usar técnicas novas como o automdvel, prati- ca-se uma economia irracional, que justifica um sis- tema de transporte poluente e concenira 3 renda. Para tanto, desprezam-se os objetivos scciais, torna- se mais justificavel fazer viadutos do que escolas. Isso s6 6 possivel quando nao ha valores éticos —— deixar milhGes de criangas nas ruas nao toca na consciéncia de uma sociedade feliz com 0 milagre econémico. O primeiro passo de uma revisdo da apartagao 6 fazer uma subversao cultural na hierarquie ‘le obieti- vos: os valores éticos passam a ser deteriiinanies; em funga&o deles identificam-se objetivos sociais que vao definir a racionalidade da economia; sé em fun- ¢&o dessa nova racionalidade é que ser&o escolhidas as técnicas a serem usadas. Para isso, a modernidade deixa de ser considera- da com base nos meios, e passa a ser considerada com base em seus objetivos. A modernidac= ica cede lugar 4 modernidade ética. E, entre os objetivos definidos eticamente,; um de- les deve ser o de que os homens sdo semelha Ainda que tenham acesso desigual aos produios su- pérfluos, eles devem participar igualmente dos bens e servigos essenciais. Para tanto, a sociedade que desejar superar sua apartacao tera de fazer uma re- voluga&o em suas prioridades. Garantir a todos o ecas- so equivalente a todos os bens e servigos essenciais. Deixar que a desigualdade se manifeste como di- Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTACGAO, 89 CONCLUSAO: O VOCABULARIO DA APARTACAO Em 1985, a colegao Tudo 6 Historia publicou o li- vro Apartheid: o Horror Branco na Africa do Sul, do escritor e socidlogo Francisco José Pereira. Em uma resenha, na época, comparei o horror branco na Afri- ca do Sul com o horror rico no Brasil: e 0 apartheid racial com um apartheid social. A idéia do apartheid social foi recusada por muitos economistas e militantes dos movimentos negros. Porque na Africa do Sul 0 apartheid era a opc&o por um desenvolvimento econémico separado entre bran- cos e negros, enquanto no Brasil a separagao era proviséria; e a cor 6 uma barreira intransponivel, en- quanto a desigualdade econémica é transponivel pela ascensao social. A ultima década esta mostrando que 0 tipo de cres- cimento econémico brasileiro é também separado: um para a popula¢gao moderna, que participa ¢ so, e outro para a populagao exclu/da. O uso da expressao apartheid social generalizou- se, mesmo que ela nao esteja ainda d clareza. Este texto tenta ajudar na defin conceitos. Partindo da colegao Tudo 6 Hisidria, que provocou seu uso pela primeira vez ha quase dez anos, esperamos dar inicio a um debate sobre a for- ma brasileira de desenvolvimento separecc: © se- gregacao social, apartacao, em vez da segregagao racial, apartheid. Para esse inicio, conte) com apoio nas pesquisas de Gladys Buarque, € sugestdes de Nair Bicalho, André E.S. Fernandes, Andréa Bolzén e Fabio Barros, aos quais agradeco. Para sua continuagao, o debate deve ir alem deste Primeiros Passos, aprofundando os sigt dos de um novo vocabulario que surge com palavias como aquelas citadas até aqui: apartagao, alheamento, encastelamento, gulag social internaciane!, cuplo apartheid, dupla moeda, diques de aparta- ¢ao, instrangeiros, neopeleguismo, polos de diferen- ¢a, mundo Terceiro-Mundo, pafs-com-maioria-pobre, pais-com-maioria-rica, parabdlicos e metabdlicos, Primeiro Mundo internacional. Palavras a 5 rao novos conceitos, como diversidade, diferenga, de- sigualdade, igualdade, semelhanca e essencialidade. Esperamos que 0 leitor realize essa conii>u lute para que a apartacao seja interrompida. progres- 7 epecp INDICAGOES PARA LEITURA No Brasil ainda nao ha uma leitura especifica so- bre a apartacao. Os intelectuais brasileiros ainda re- jeitam a idéia de que saimos da desigualdade para a diferenga, de que saltamos da qualidade para a apar- _tacao. ’Uma primeira tese de mestrado sobre o tema foi defendida no Departamento de Economia da Uni- versidade de Brasilia em marco de 1993. Trata-se do trabalho de André Eduardo da Silva Fernandes Da Dualidade ao Apartheid: critica a politica econé- mica no Brasil. O autor analisa como a politica eco- némica no Brasil visou sempre uma fuga as restri- ¢6es, levando a economia do pais para o apartheid. Dois livros do autor deste Primeiros Passos tratam do assunto: O Colapso da Modernidade Brasileira e Uma Proposta Alternativa, de 1991; e A Revolucaéo Edited by Foxit PDF Editor Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 For Evaluation Only. © QUE E APARTAGAO. 91 | na Esquerda e a Invengao do Brasil, de «992, ambos publicados pela Editora Paz e Terra. O livro de Francisco José Pereira Aparthe.d: © hor ror branco na Africa do Sul, publicado pela colegao Tudo 6 Histdria, desta editora, em 1985, é um dos poucos livros sobre o assunto no Brasil. Além de explicar o processo sul-africano, especialmente a luta contra o apartheid, o livro oferece boas »dicacdes para leitura complementar. Sem tratar diretamente do assunto nem exoplicita lo, alguns livros brasileiros mostram o quacio drama- tico da desigualdade e a ldgica da sociedade bra- sileira que permite identificar a idéia de apartheid social. Edmar Bacha descreveu a existéncia de duas economias com sua imagem de Belindic ada, entre outros lugares, no livro Politica Eco: ica e Distribuigao da Renda, de 1978, publicado pela Editora Paz e Terra. Hélio Jaguaribe apresenia o quadro da desigualdade em Brasil: Reforma ou Caos, também da Editora Paz e Terra, de 1989. Mas o melhor livro para mostrar a realidade da apartacao 6 o Anudrio Estatistico do Brasil de 1993, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia « =sta'{sti- ca), em que, pela frieza dos numeros, pode-se perceber claramente as duas sociedades que vivem sobre o territorio brasileiro, em suas ci euS campos. Edited by Foxit PDF Editor — - sci oman Copyright (c) by Foxit Corporation, 2003 - 2010 : For Evaluation Only. Ae SOBRE O AUTOR Nascido no Recife (PE), em 1944, Cristovam Buarque formou-se em Engenharia MecAnica pela Universidade Federal de Pernambuco. em 1966. Em 1973 concluiu seu doutorado em Economia pola t ¢ versidade de Paris I — Sorbonne. Entre 1973 e 1979 trabs..hou no BID (Banco Interamericano de Desenyolvimento), inicialmente em Quito e Tegucigalpa e posteriormente, por quatro anos, coni) econo- mista sénior, em Washington. Em 1979, ingressou na Universidade de Brasilia, onde foi reitor no perfodo de 1985-89 e é professor titular do Departamento de Economia. Fez parte da Comissio Afonso Arinos para elaboragao de uma proposta 4 nova Constitui¢ao; foi vice-presi- dente e presidente da Universidade das Nagdes Unidas para a Paz; fez parte da Assessoria Técnica do candidato Tancredo Neves; foi che de gabinete do Ministério da Justiga no primeiro governo da Nova Reptiblica; é coordenador da area de educagao do governo paralelo do PT (Partido dos Trabalhadores). Entre seus livros, trés levantar problema do apartheid social no Brasil, todos publicados pe! ra Paz e Terra: A Desordem do Progresso, O Colapso da Moderni- dade Brasileira ¢ A Revolugdo na Esquerda e a Invengao do Brasil. Edito-

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