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ENSAIO PSICOFILOSÓFICO

A LIBIDO: VISITA AO SUBSOLO DE FREUD, FERENCZI


E JUNG
APROXIMAÇÕES COM SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
‘O SUJEITO NOVO’

JOSE RAVANELLI NETO


PIRACICABA 2018

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Introdução ao tema:
‘A libido’.

Se dispusermos a retirar do texto Freudiano o conceito inicial de libido


teremos:
‘Falta a linguagem vulgar (no caso da pulsão sexual) uma designação
equivalente a palavra fome; a ciência vale-se para isso, de libido’ (Freud,
três ensaios sobre a sexualidade).
Ferenczi (discípulo de Freud) também aponta a importância dessa
definição primitiva:
‘As reflexões de Freud resultam na manutenção da sua concepção atual
quanto a necessidade de uma distinção entre os interesses do ego e a libido
sexual e quanto a importância patogenética da libido (tomada no sentido
do sexual), em todas as psiconeuroses, incluindo na paranoia e na
parafrenia. Em suma, cumpre considerar assimilação do conceito de libido
á vontade de Schopenhauer e ao conceito de Robert Mayer como fruto de
uma especulação pessoal de Jung’ (Ferenczi, obras completas vol 2, 95).
Voltaremos a esses comentários de Ferenczi mais adiante, pois esses
comentários são o fio condutor desse ensaio. Mas por ora, voltemos ainda
ao texto de Freud, no mesmo artigo, quando descreve ainda sua concepção
de libido: ‘como uma força quantitativamente variável que poderia medir
os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual’.
Ao conferir também um caráter qualitativo a libido, Freud a distingue
definitivamente dos processos anímicos em geral (nutrição, etc). Esse
quantum de libido, entrelaçado por todos os órgãos do corpo, Freud
denominou de representante psíquico ou libido do ego. Nestes casos, a
psicanálise analisou as chamadas neuroses de transferência – histeria e
neurose obsessiva – como um quantum convertido em libido de objeto.
‘Vorstellung’ tornado em ‘Vertretung’, onde o ego se converte em grande
reservatório de onde partem as catexias de objeto e no qual elas voltam a
ser recolhidas. Essa economia libidinal, Freud infere ao ego uma distinção
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e importância maior.
Dentre as formas de energia que operam no ego, a libido é de extrema
importância para Freud no esclarecimento das perturbações psicóticas mais
profundas e aproveita a oportunidade em seu texto para mandar um recado
direto a Jung:
‘Entretanto renuncia-se a tudo o que foi ganho até agora com a observação
psicanalítica quando, a exemplo de Jung, dissolve-se o próprio conceito de
libido ao equacioná-lo com a força psíquica em geral’ (Freud: três ensaios
sobre sexualidade).
Mas o que é a observação psicanalítica? Em breves contornos
poderíamos dizer que a observação é clínica e obedece as regras da
psicodinâmica. Assim sendo, o psiquismo segue suas regras e orientações
(processos inconscientes) e isso gera uma ação de um eu (ego), cuja
identidade está longe de se constituir pleno de razão, consciente do mundo
visível, sem entraves e livre dos processos inconscientes. Ou ainda,
funções humanas de ordem psíquica, atividades psíquicas que se
desdobram em mecanismos em ação, sendo um deles as pulsões.
Estas observações nos conduzem e ligam as conclusões de Platão e Kant
no tocante a explicação do mundo visível como fenômeno, ou seja, o que
existe é a representação das ‘ideias’ (mundo das) para um e da ‘coisa em
si’ para outro.
Schopenhauer, da qual nos remete o comentário de Ferenczi, é quem
tenta, a partir de Kant e Platão, organizar em um termo – Vontade – algo
ainda não objetivado ou ainda não tornado representação. Portanto o ser-
objeto para um sujeito se torna problemático na medida em que para que
isso aconteça é necessário um fenômeno, e por fim uma representação do
mesmo. Para que as formas de objetivação do mundo visível e fenomênico
se apresentem, é necessário um ego, e no caso de Schopenhauer, um ego
corporal, afectivo, intuitivo. Nas palavras de Schopenhauer - sobre o que é
o corpo – ‘ele próprio apenas vontade concreta, objetividade do desejo,
portanto objeto entre objetos,’ (Schopenhauer: vol III, O mundo como
vontade de representação). Com isso o filósofo alemão quer dizer que a
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sensibilidade, os nervos, o cérebro e mesmo o seu entendimento de desejo,
não passam de expressão de uma única vontade, num grau de objetivação
mais elevado, ou seja, egóico, em que se dá e se produz o conhecimento
mais geral do mundo e das coisas. Este tipo de representação está a serviço
da vida, do eu e dos seus objetivos – mais ou menos racionais -, mas que
no conjunto visam a manutenção de um ser provido de necessidades
múltiplas, ou seja, a vontade a serviço da vida e do viver, em um
conhecimento útil a vontade que deseja que os objetos sejam interessantes
ao indivíduo.
Interesse e vontade assim se unem, se conectam, em prol de causas ou
coisas individuais, sendo que a supressão dessa vontade poderosa só se
suprime em condições excepcionais, ou seja, quando se arranca o
conhecimento a serviço da vontade, a serviço do corpo que necessita se
ligar ao objeto.
O gozo de Schopenhauer é contemplativo, ou seja, está centrado na
ordem de um sujeito poder somente contemplar o objeto, nele se perdendo.
Inteiramente. A estética schopenhaueriana supõe a intuição de um sujeito
puro do conhecimento, ou seja, intuição e objetos juntos, um ‘novo sujeito’
destituído de vontade, de dor, de temporalidade.
Se o princípio individual, um eu, surge como um fenômeno determinado
da vontade, ‘de quem é servidor’ (Schopenhauer), poderíamos dizer o
mesmo do desejo, ou seja, o eu é determinado pela libido? Então temos
que o eu é determinado pelo princípio de prazer, ou ainda ‘por uma atração
positiva para o objeto desejado, por sua imagem mnêmica’ (representação).
Esta concepção freudiana está atrelada a ideia de um aparelho psíquico que
quer se manter o máximo possível livre de tensões, mas o corpo tendo suas
necessidades o obriga a uma experiência de satisfação, e essa marca
mnemônica de satisfação primeira (eliminação da tensão, mesmo que
provisoriamente), foi chamada de desejo (que se cumpre a cada nova
excitação produzida pela percepção corporal). Por isso a chave do desejo,
em Freud, é o da falta, do que nunca se locupleta ou satisfaz
permanentemente.

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A primeira grande diferença então, entre a filosofia da vontade única e da
psicanálise é que para o primeiro a vontade pode ser suprimida, e pelo
segundo não, só sendo possível encerrar a chave desejante com a morte ou
desaparecimento do próprio sujeito. A vontade ainda assim permaneceria.
O desejo é então o desdobramento da busca do prazer, do qual o sujeito
quer sempre se lembrar e retornar a ele, no sentido de satisfação. A
dualidade entre o afeto e a representação é uma matriz formada através e
pelo nascimento e não como uma ideia platônica ou traço da coisa em si.
Ferenczi fala da paranoia e da parafrenia, sendo que o psiquismo é
marcado, na teoria freudiana, pela forma alucinatória do desejado e do
pensado (fantasia). Essa concepção abre caminho para os aspectos
narcisistas que dão a pulsão um outro encaminhamento, ou seja, o
narcisismo abre a oposição entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais.
Isso aparece no texto “três ensaios sobre a sexualidade” de onde extraímos
a noção de libido, do qual Ferenczi faz alusão a Jung.
Se o desejo se volta ao próprio eu, num movimento novo (conquistado) e
reflexivo, voltado em torno de um si próprio, no qual o sujeito permanece
aprisionado e apaixonado por si mesmo, isso só se quebra a medida em
que há uma necessária dose de identificação com os outros eus. A assim
chamada realidade externa, ou princípio de realidade. No caso da vontade
schopenhaueriana, nada disso acontece, pois ela continuará sendo única e
unilateral, ou seja, independente de identificação com os demais pares da
espécie ou de conciliação subjetiva (alteridade).
Se a libido freudiana caminha em direção a um eu ideal, a vontade única
caminha não em uma dialética representacional e simbólica do sujeito
entre as pulsões e o outro, mas sim de um elevar-se a si próprio como
sujeito do conhecimento (e não de outros sujeitos ou objetos), em que o
mundo aparece como vontade de representação, numa objetividade
adequada a razão cognoscente.
Em não existindo mais as coisas individuais ou a distinção sujeito objeto,
a vontade em sua objetividade adequada se volta a si mesma, ou seja, nada
mais sendo que ímpeto cego. Vontade como um algo a espera de
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subjetivação, desdobramento, configuração, que dizem respeito de uma
ideia (platônica) de um plus, de um querer viver, ‘que possui sua mais
perfeita objetividade’ (Schopenhauer), e como reflexo de Dionísio, que
mostra as suas diversas faces no âmbito das paixões, enganos e astucia,
genialidade, por entre as múltiplas configurações de sujeitos que existiram
e ainda existirão enquanto a vontade não for suprimida totalmente.
A vida dentro da vontade é inesgotável e infinita, em sua variedade,
percorrendo a linha espaço tempo como único acontecimento em si. Assim
sendo temos que uma orientação objetiva do espírito – contemplativa -
que anuncia uma estética do sujeito puro do conhecimento, se contrapõe a
uma orientação subjetiva, narcisista do sujeito, que no máximo chegará ao
modo cientifico de comportar, ou seja, percorrendo, sem nunca alcançar, as
causas e efeitos das coisas últimas.
Um sujeito isento de vontade (individual, narcísica), é um espelho
luminoso da essência do mundo. A fantasia aqui não é usada para alucinar
um objeto desejante, mas para formar o gênio, a procura de objetos novos
e dignos de consideração, fora do dia a dia, e portanto fora do horizonte e
da experiência pessoal, ou seja, no campo das obras de arte. A orientação
do sujeito é intuitiva, ou seja, um conhecimento subtraído em parte da
vontade, que o aproxima de uma loucura adorável – dionisíaca – que alia
loucura e sofrimento. Nietzsche se reportara a esse mesmo ponto em sua
discussão sobre a sabedoria trágica (da ordem dos sábios meio loucos), que
se distingue dos ideias ascéticos e da própria ciência.
De um lado vimos um eu freudiano nostálgico de seu objeto perdido,
atravessado por uma alteridade dele próprio, e de outro o instinto de viver
pleno, gratuito, sem valores ou interessada em fim algum. A vontade
engendra e comporta o desejo, o sofrimento, a fragmentação, combate a si
mesma, devora a si mesma, mas o contrário não é verdadeiro. O desejo não
cessa, é como a roda de Íxon, mas a vontade é possível abandonar, é um
estado de alma epicuriano, sem dor, sem querer, pura essência e liberdade
de contemplar a verdade.
O desenvolvimento do ‘eu’ se prende ao princípio de individuação, mas

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na vontade não existe diferença entre eu e o tu, entre bem e mal. Ver o
‘todo’, eis ai uma aspiração vinda do oriente e que contrasta com a
constatação de um lado psicológico e de outro filosófico, de onde a
corporeidade se faz imperativa, como algo de que a pulsão não pode se
esquivar, e do qual a força pulsional obriga sempre o sujeito a ir em busca
não só de representações, mas de destinação.
A destinação, via pulsão, é ainda um algo, um campo inexplorado, pois
remete ao dionisíaco, ao trágico, a tudo o que desordena as formas e forças
estabelecidas de subjetivação e sublimação, pois promove um
descentramento permanente desse mesmo sujeito que se quer racional,
pretendente a um estado ilusório de centramento dos processos volitivos
em torno dum eu todo poderoso.
Neste limite plástico, o estranho, o estrangeiro dionisíaco atinge o seu
grau máximo, e une freudismo e Schopenhauer num ponto muito caro a
Nietzsche, ou seja, um desejo do novo, um sujeito novo, liberto de tudo o
que já é da ordem da representação, arquétipo, objetos internos, num para
além das catexias, em direção ao horizonte em que, como diz a tragédia, e
mesmo Dostoievski, aproxima e faz tocar os paradoxos, reunidos num
mesmo instante mágico e supremo: dia e noite, claro e escuro, beleza e
verdade, inocência e crueldade.
Aquilo que de trágico toca a obra de arte, em Schopenhauer, o estético
pulsional em Nietzsche (Apolo e Dionísio), abre também o espaço
experimental para a criação, para o que ainda não somos nem
experimentamos. Schopenhauer lembra ainda que o trágico é luta e
padecimento, até que o herói renuncie seu ressentimento (Filoctetes), sua
paixão, os fins perseguidos, para abdicar ou renunciar a vingança, aos
prazeres e assim ela (a tragédia) revela se u sentido mais obscuro: ‘de que
o expiado pelo herói não são seus pecados particulares, mas sim o pecado
original, isto é a culpa da existência ela própria: pois o delito maior do
homem é haver nascido’ (Shopenhauer, idem).
Tragédia como mais alto grau de objetivação da vontade em luta consigo
mesma, tragédia como dimensão do terrível, do paradoxo, e mais além,

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como movimento da vontade, repleta de sentimentos, de paixões, e nas
palavras de Schopenhauer:
‘como a essência do homem consiste em que sua vontade deseja, é
satisfeito e deseja novamente, e assim indefinidamente, e como sua
felicidade e bem estar consistem apenas em que a transição do desejo a
satisfação, e desta ao novo desejo, prossiga com rapidez, uma vez que a
ausência da satisfação é sofrimento, e a do novo desejo, ansiedade vazia,
langor, tédio; ...’ (Schopenhauer, idem).
A transição do desejo em satisfação, a dor e o sofrimento presentes
eternamente neste circuito sem fim, aproximam numa certa perspectiva,
desejo (como expressão de uma vontade) e psicanálise, na chave da falta, e
de um algo (vontade e psiquismo), como processos inconscientes em si
mesmos.
O desejo alegre e veloz em oposição ao desejo retardado dificultado e
triste do filósofo, ingressados no corpo, na individualidade do sujeito traz a
quintessência da vida e de seus processos, nunca a expressão da vontade
ela mesma, que como visto, no homem, oscila e pende de uma lado a outro
(fastio e satisfação, renovação continuada entre uma ação e sua reação
frente a uma falta).
O desejo revisitado por Lacan indica a libido como energia psíquica do
desejo, como centro da teoria analítica de Freud. Passeando pela filosofia
antiga, Lacan parece tentar (como fez Jung), uma sistematização filosófica
a respeito do tema, só com efeitos diferentes da de Jung, ou seja, retoma a
libido freudiana (força quanti variável, investe em representações de
objeto), em forma pulsional, ou seja, um inconsciente dado pelos
significantes (articulação entre significante e corpo), que indicam e
demarcam as demandas do sujeito direcionadas ao Outro (imagem
totalizante, o olhar que me olha de volta). Temos aqui o caráter circular da
pulsão.
O circuito lacaniano das pulsões se apresenta então como uma força
constante (não natural como um impulso cinético em movimento em seus
altos e baixos a procura de satisfação). A pulsão quer a satisfação de
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alguma coisa, mesmo a custa de muito sofrimento (como no caso de todo
neurótico). O percurso psíquico da satisfação, segundo Lacan, é um objeto
que elevado a dignidade de ‘objeto a’, se torna causa do desejo, e por isso
o contorna (fazem borda, se tornam erógenas).
O que vai nos interessar aqui é a ideia de que o ‘eu’ ao endereçar sua
pulsão a um Outro, vai buscar uma alienação desse desejo não somente no
Grande Outro, mas também, como indica Lacan, num outro. E desse
encontro com o outro é o que faz surgir um ‘novo sujeito’ (eu me espelho
no outro). Temos no campo do amor (narcísico e pulsional), onde o que
vem do coração se rivaliza e luta com o que vem do ventre.

O livro ‘O idiota’ como representação plástica e estética dessa dualidade


Os objetos maus, rejeitados pelo eu como objetos ruins para mim,
portanto estrangeiros, que vão merecer nossa atenção aqui, pois o é da
ordem do estrangeiro é, como vimos, do deus Dionísio, e portanto,
estabelece-se aqui um novo tipo de conhecimento, da ordem de uma
sabedoria trágica que na verdade coincidem com as palavras de Lacan:
‘No mundo do Real-Ich, do eu, do conhecimento, tudo pode existir como
agora, inclusive vocês e a consciência, sem que haja para isso, o mais
mínimo sujeito’ (Lacan, O seminário, os 4 conceitos fundamentais da
psicanálise).
Lacan retoma, inconscientemente ou não, a questão do paradoxo do
desejo, como algo da ordem da subjetividade e do afeto e ao mesmo tempo
oposto a ela (Lacan, O seminário, livro 6).
Com isso, retoma e contorna algumas das ideias mais preciosas de
Nietzsche, que já estão também contempladas em Schopenhauer, a saber, a
noção de Uno primordial, do não sujeito, do enraizamento do corpo como
grande Self, que independe de um eu ou de uma consciência. O
denominador comum de todos esses pensadores é, provisoriamente dito, o
lugar do desejo como campo (que campo?), de onde se pode representar o
mais profundo de nossa verdade, ou seja, a materialização do ‘aqui e
agora’, o presente do instante tudo ‘se dá e acontece’ (o fenômeno e para
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além dele). No campo mítico temos Fedra e a escolha de seus prazeres
(Fedra escolhe 3 prazeres e sendo que em dois deles é difícil saber qual é
bom e mau). No campo das artes elegemos Dostoievski, e seu romance O
Idiota.
Como exemplo dessa discussão retomo, como indicado acima, o
romance ‘O Idiota’ como exemplificação máxima destas problematizações
do desejo e seu paradoxo no campo do outro. O idiota como um exemplo
do trágico ante o tema imorredouro do homem e seus sentimentos.
O circuito pulsional do ‘O idiota’, mostra como o eu do príncipe
(Mitchkin) se confunde com o outro estrangeiro (Rogójin), e disso resulta
um convalescimento, ou seja, a ideia de um novo sujeito (como abertura
para ambos os personagens na chave enigmática de um convalescer, ou
seja, na busca de uma outra e nova saúde) vindo desse combate, que tem
como centro uma disputa amorosa (Nastácia). Aqui o que importa pensar é
o estado de almas dos personagens, todos tomados por algo estrangeiro,
por algum tipo de paixão que obnubila o eu e põe em perigo a ação
consciente.
Nesta perspectiva pulsional que encontra o circuito trágico, temos o
homem Naif (termo cunhado por Schiller), que em sua inocência, quer
cuidar de uma mulher louca e ainda tem ao lado um outro homem
apaixonado e também louco (que se abre a Eros) em que quer disputar a
mão da mulher bela e louca, ou seja, um objeto e seu desejo (elevado a
dignidade de objeto a). A mulher louca lembra Fedra, em meio a um querer
se apaixonar pelo objeto bom – príncipe – e se perder no objeto mau –
Rogojin - . O príncipe lembra um terapeuta que quer dispensar a ela o
remédio amargo, mas ela, no momento de ingeri-lo, se afasta, ou seja,
recusa o ‘pharmacon’. Rogojin não consegue se desligar da sua paixão, de
seu destino que é matar a mulher louca, por não conseguir seu amor, e
ainda ser humilhado e se tornar ressentido por ela, para assim adoecer do
pior do males – um eterno ressentir-se – e num espalhamento do
ressentimento como doença dela também, poder resolver essa questão na
chave do assassinato, da busca insana de pode fechar o circuito pulsional
com a representação das figuras da morte e do morrer. Uma morte que,
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sem anunciar o fim, apenas alude a um novo reinicio do trágico, a um
renascimento das figuras dos heróis que se travestem de Dionísio, para
encetar novamente a duplicidade doas afetos:
‘somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos (volúpia e
crueldade) do entusiasta dionisíaco lembram – como um remédio lembra
remédios letais – aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos
despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos’
(Nietzsche, O nascimento da tragédia & 2).
As pulsões na perspectiva apolínea e dionisíaca ganham contornos
nietzschianos e perseguindo a trilha junguiana do herói (como expressão e
representação da libido) que nos diz das atividades dramáticas dos
Mistérios que ‘Através da tragédia o mito chega ao seu mais profundo
conteúdo, a sua forma mais expressiva; uma vez mais ele se ergue, como
um herói ferido, e em seus olhos, com derradeiro e poderoso brilho, arde
todo o excesso de força, junto com a calma cheia de sabedoria do
moribundo’ (Nietzsche, idem).
Ferenczi nos fala da rota do herói perseguida por Jung como uma
contribuição a psicanálise, e aqui nos falamos do herói dionisíaco, da
pulsão dionisíaca que engendra o convalescimento de si e o novo sujeito.
O herói ferido é o caminho até o Hades, lá onde os olhos brilham não
diante da chama infernal, mas de em poder tocar um pouco no brilho dos
grandes mistérios, lá onde nasce o trágico, o instante onde tudo se dá e
tudo se decide. Esse é o caso do encontro do olhar do príncipe e de
Rogojin, em ‘O idiota’, lá onde dois irmãos em convalescimento e em dor,
por não saberem lidar com a beleza da mulher enlouquecida e ressentida,
se perdem no uso do pharmacon e engendram na disposição de uso de
remédios letais. No limite, ou um mata o outro, ou ambos sucumbem ao
peso do olhar louco e ressentido que não engendra a morte por
renascimento de um novo sujeito em uma única vida.
A questão é o que fazer nesta vida, num aqui e agora que tem na crise
convulsiva do príncipe ao ver o brilho da faca vindo em sua direção (a
abertura a um novo olhar), um instante em que doença e saúde se

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aproximam perigosamente, onde morte e vida se unem e onde compaixão e
paixão forma um mesmo paradoxo. A loucura dionisíaca é resolvida na
chave dos muitos eus, da razão que se une ao coração, ou seja, na
possibilidade que todo convalescente tem, que é manter ao máximo e
dentro de todas as riquezas simbólicas manter um coração sempre integro
e intacto, o que pode significar, entre tantas coisas, o que Lacan
mencionou em seus escritos e seminários, ou seja, a libido passa em algum
momento pelo coração, pela cura do ressentimento (Hera deu a loucura a
Dionísio quando de seu ressentimento com Zeus).
O vinho (bebida dionisíaca por excelência), serve para a embriaguez e
também para abrir a loucura. O pharmacon é uma boa medida entre a
loucura e a expressão artística (música, obras de arte) nos casos de usar as
máscaras como símbolo da submersão da sua identidade na de um outro. A
perda da individualidade, ou do chamado ‘princípio de individuação’ é um
ponto comum a todos esses pensadores, que emprestam um lugar para
além do cotidiano, para um cuidado de si ou para encontro possível do
‘novo criador’. Ou ainda mais... para o encontro desse lugar único,
substrato do coletivo, impessoal, chamado ‘Uno primordial’.
A pulsão que passa pelo coração do deus, nunca mais é a mesma, fica
mergulhada num sentimento único (já uma mistura de Apolo e Dionísio),
especial por ter-se tornado outro, e disto resulta um afeto próximo ao
enunciado por Espinoza, ou seja, de que ‘o desejo, cupiditas, é a própria
essência do homem’ (Lacan, O seminário, livro 6).
Assim terminamos nosso ensaio, no cerne mesmo desta questão, ou seja,
de um desejo que se mostra polimorfo, problemático, tortuoso e que fecha
o circuito da pulsão nos limites estreitos da loucura e da criação, da paixão
e da compaixão, que indicam e sinalizam o quão complexo é estabelecer
uma terapêutica de um cuidado de si e de um cuidado para com o outro.
A constelação de irmandade entre Rogojin e o príncipe, pela troca de
cruzes ou de destinos cruzados (do grego tique), mostram mais do que uma
constelação familiar, sinalizam (cadeia de significantes) que a articulação
de um ‘objeto a’ introjetado – a imagem da beleza e do paradoxo de sua

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feira ressentida – levam a um morrer – um deseja matar e eliminar o outro
em prol da satisfação do desejo (de ter, de Nada). Mas esse gozar implica
num desmembramento, numa destruição do antigo sujeito, ou seja, abre a
possibilidade de aparição de um novo sujeito ou ainda de sua derrocada.
Da transgressão pela via dionisíaca, ao desejo do desejo de um Outro,
que no caso do Idiota, é o paradoxo entre o príncipe cuidar ou matar o
irmão de cruzes ou mesmo nada fazer para que o outro a mate, temos que
isso tudo nos leva não só ao fetiche (Lacan), que é a fixação do olhar,
perfilado nos modos de Nastácia, em seu jeito de falar, olhar, que ao
mesmo tempo ofendem e enfeitiçam ainda mais a paixão de Rogojin e a
compaixão de Mitchkin, mas que também comporta o inexorável como tal.
Entre a doença e a saúde, talvez o que exista seja apenas uma questão de
gradiente, entre um coração puro e inocente e outro maculado de sangue, a
diferença talvez seja não o sangue derramado, mas uma questão de
introversão psicológica, ou seja, de um recuo da libido, levando o sujeito
da ação a uma solidão (necessária ao convalescimento e o renascimento de
um novo sujeito).
Para além da unidade moral familiar, da hereditariedade, a má sorte
(ticke), a paixão, ou seja, o que fazer com seus males, indica sempre o
universo trágico, de onde não se pode sair ou prescindir. O bom
funcionamento pulsional obriga Fedra por exemplo a sinalizar que mesmo
os que sabem –supostamente – ‘pensar bem’, ou seja, conhecem e
compreendem o que é correto e mesmo assim não conseguem evitar o erro.
Por isso falamos em desejos e afectos, ou seja, tudo o que somos, o nosso
tornar-se, passa em algum momento, pelo outro. Um outro prazer, que
passa por Aristóteles que diz do sujeito (Homem) virtuoso que encontra na
ação virtuosa o seu maior prazer. E novamente chegamos a Lacan que
encerra seu seminário sobre o desejo do outro como tal é um enigma, é
uma fenda, pela qual passam os fenômenos, a fantasia, e tudo o que acossa
o sujeito ou na falta dele, em tudo o que há lá no umbigo do conflito, do
ponto limite (matar, morrer, enlouquecer ou ainda convalescer), em que o
eu ‘deixe de lado toda reinvindicação a sua própria unidade e,
eventualmente, se cinda e se divida’ (Lacan, idem).
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Desejo é então não a relação do sujeito com seu ser, mas com seu tornar-
se. Este trabalho criador da ordem apolínea (logos ou sublimação para
alguns), do reencontro do olhar que observa e é observado, como o
príncipe e seu outro, e que mais profundamente não se trata apenas de
voltar e reconstituir os passos para trás de sua ação, como fez Mitchkin no
momento em que se aproximou de sua verdade última (matar ou ser
morto), mas de que não se trata mais do casamento dele com ela ou de um
outro com ela, mas de que naquele olhar – o que ele comporta e extravasa
– é a não definição dela para com um ou com outro. Esse jogo de
indefinição permanente, de não fechamento do circuito pulsional leva não
só a loucura, mas ao ponto ou situação limite, lá onde tudo se dá, num aqui
e agora cuja borda são afectivamente falando, o mistério do que somos e
do que nos tornamos. É lá, neste lugar, paradoxal, onde a passagem ao ato
se faz. Esse grão de fantasia, de ideal ou mesmo de loucura que a demanda
do outro se abre ao indeterminado é o pathos que nos faz humanos. É lá
que Jung diz que o herói reencontra a Mãe e com isso Ferenczi concorda
plenamente.
É por aí que o sujeito novo passa, nasce ou renasce conforme a
ferramenta que se queira utilizar... filosofia, mais psicologia, e mais além,
mistério.
José nov 2018

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ARTIGO – INSTITUTO ERANOS

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C. G. JUNG

O LIVRO VERMELHO
O MAIS IMPROVÁVEL

JOSE RAVANELLI NETO


2017

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Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

No seu 'O livro vermelho' Jung lança a si mesmo uma propositura, quase uma
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provocação: buscar a alma num lugar improvável, ou seja, no inferno.

O pensamento de Jung vai retomar o universo cristão e lembrar que o Cristo desceu
primeiro ao inferno, para só depois poder subir aos céus.

O lugar mais improvável para se achar a alma é o inferno, no entanto, é lá que


Nietzsche, Cristo, e Jung foram se enriquecer, ou seja, é ali que algo se dá, ali tudo
acontece. É neste lugar simbólico, que se pode pensar não só num resgate da alma,
mas um processo que podemos designar de convalescimento, ou seja, passar de uma
doença para a possibilidade de processar uma outra saúde.

Jung pode convalescer ao buscar sua alma no inferno. Esse processo simbólico só
pode feito na medida em que Jung ao buscar sua alma no inferno, enfrentou isto que
chamamos de mais improvável, de se utilizar de técnicas expressivas e de um texto
poético, onde dentro de um 'pathos' de um recuo e solidão diários, e ao longo de 14
anos, pode pensar naquilo que mais importava: sentir que estava se aproximando de
sua alma.

O mais provável é a crise, todo homem vivencia suas crises de tempos em tempos,
alguns teóricos chegam a afirmar que o homem dito moderno. Vive em permanente
crise. Para as situações de crise, a medicina criou inúmeras medicações que ajudam a
tamponar esses sentimentos ditos ruins de se experimentar. Para as crises inúmeras
terapêuticas foram criadas e desenvolvidas no século XIX e XX, mas nenhuma dizia
respeito a essa ideia de buscar a alma no inferno.

Jung não divulgou essa ideia de buscar a própria alma no inferno, ao contrário,
deixou esse segredo muito bem guardado e longe de suas obras publicadas.

O impossível, o improvável é sabermos abrir o nosso próprio convalescer. No 'O livro


vermelho' temos uma impressão forte e rica de como Jung conseguiu descer e subir
do inferno, em busca de uma nova forma de vida e de viver. O Jung que subiu do
inferno foi bem diferente do que lá desceu. Ao descer temos a descrição pessoal de
uma pessoa que conseguiu atingir todas as conquistas materiais, que incluíam
respeito, posição social, saber científico, e outra completamente nova, de uma pessoa
mais humilde, em posse de sua alma, que estava buscando um tornar-se o que se é,
levando em consideração as questões simbólicas do coração.

O livro vermelho se aproxima da sabedoria dionisíaca, descrita pela filosofia de


Nietzsche, especialmente em seu livro 'O nascimento da tragédia, pois é lá que o
filósofo alemão pensa o que acontece ao pensamento quando adoece.

Se levarmos estas considerações preliminares a sério teremos a seguintes proposituras


a respeito da descida de Jung ao inferno em busca de sua alma:

1) o pensamento quando adoece, pede um recuo e uma solidão.

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2) a partir do recuo e solidão voluntária, desenvolve-se diferentes perspectivas sobre
a alma doente, ou seja, de como se perdeu a sua alma.

3) a alma se perde em detrimento da vida vivida de acordo com o espírito de cada


tempo, ou seja, os valores dominantes de cada época e sociedade.

4) quando sentimos falta da nossa alma, é preciso estar desperto, é um momento


decisivo, limite, onde ou convalescemos ou sucumbimos novamente ao espírito da
época.

5) neste instante limite, decisivo, que é caótico, ou se mata, ou morre, enlouquece, ou


ainda, as vezes, convalesce.

6) no limite, necessitamos do recuo e da solidão para irmos para além de um eu, de


uma consciência que aparente dirige o pensamento, para acessarmos as coisas do
coração, ou seja, os processos inconscientes.

7) o recuo e a solidão levam a um sacrifício do eu, de seu modo de pensar e uma


entrega ao inconsciente.

8) este processo simboliza a descida ao inferno, a um encontro com Dionísio, que


pede que abandonemos as formas seguras de ser e nos convida a um tornar-se o que
se é.

9) o encontro com Dionísio é marcante, pois desta interação, nasce a criança divina
em nós, ou seja, dentro do mito de Dionísio, lança a perspectiva mítica, de uma
sabedoria trágica, de que o humano se forma numa combinação impossível, ou seja, a
reunião das cinzas do Titã com o coração puro do deus ainda criança. (vide mito de
Dionísio).

10) a nova raça humana, combinada de instintos titânicos e de uma inocência do


coração, resulta em tipos capazes de elevar suas capacidades simbólicas ao máximo,
ou seja, fazer coisas impossíveis, tais como unir dor e alegria, instintos e desejos,
bem e mal, luz e sombra, e todas as coisas que um dia foram separadas.

11) o simbólico elevado ao máximo em potência significa poder e vontade (desejo),


de criar, de tornar-se o que se é, convalescer ante a chegada do trágico.

12)o simbólico é da ordem de Prometeu, o titã que faz uma transgressão divina,
desobedece as ordens de Zeus e dá o fogo ao homem, ou seja, que em algum
momento, principalmente no instante limite, podemos ser deuses, igual aos deuses, e
assim poder criar algo novo, o que inclui a nós mesmos (reinventarmo-nos).

13) ao brincarmos de 'fazer como os deuses', podemos também dizer que isso foi
importante a Jung e a todos que já desceram ou pretendem descer ao inferno, que
para que tal coisa aconteça, é preciso construirmos – criarmos – até atingirmos uma
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outra saúde.

14) descer ao inferno significa estarmos dispostos a sacrificar as coisas do eu (o que


não significa descrer de sua importância dentro do psiquismo), pois é sacrificando o
herói que vamos fazer renascer a criança divina em nossos corações.

15) finalmente é na solidão rica e não patológica, que podemos experimentar sair do
lugar onde o desejo dos outros nos emprestavam e também para além dos hábitos, e
considerar uma liberdade com relação aos deveres imperativos que possibilitem um
recuo e uma solidão.

Quando o sofredor encontrar uma dignidade para a sua doença, abre-se um


convalescer diante de si, sem plumagem e sem cor, ou seja, abre-se os arquivos
escondidos e remotos daquelas imagens que mais importam ao pensamento, aqueles
de um novo olhar mais aguçado e sutil.
Para Nietzsche, somos empurrados pelo corpo á uma outra saúde, para o sol, o
remédio e a paciência consigo mesmo.

Sair dos encantamentos da ilusão do Eu, implica em abandonar os valores que não
servem mais, em tresvalorar o que o espírito da época deu como verdade e luz, e isso
implica em renovação, em não tornar uma maldição a perca da alma, ao contrário,
encarar os enfrentamentos de frente, implica em ir além do olhar medusante e vencer
processualmente o medo do vazio e voltar a sonhar.

José maio 2017

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