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A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Primeira versio* “Le vrai est ce qu'il peut; le faux est ce qu'il veut.” Madame de Duras Introduce ‘uando Marx empreendeu a andlise do modo de pro- duco capitalista, esse modo de producio ainda estava em seus primérdios. Marx orientou suas investigagdes de forma a dar-thes valor de prognésticos. Remontou as relagdes funda- mentais da produco capitalista e, ao descrevé-las, previu 0 futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema n3o somente uma exploracdo crescente do proleta- riado, mas também, em iltima anilise, a criacio de condigées para a sua propria supressio. Tendo em vista que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econémica, as mudangas ocorridas nas condigdes de produco precisaram mais de meio século para refletir-se em todos os setores da cultura. S6 hoje podemos indicar de que forma isso se deu. Tais indicagdes devem por sua vez comportar alguns prognésticos. Mas esses prognésti- cos no se referem a teses sobre a arte de proletariado depois (*) 0 texto aqui publicado é inédito no Brasil. O ensaio traduzido em por- tugués por José Lino Griinnewald e publicado em A idéia do cinema (Rio de Janeiro, Civilizagiio Brasileira, 1969) e na colegio Os Pensadores, da Abril Cultural, 68 segunda versio alemi, que Benjamin comesou a escrever em 1936 ¢ s6 foi publicada em 1955, 166 WALTER BENJAMIN da tomada do poder, e muito menos na fase da sociedade sem classes, e sim a teses sobre as tendéncias evolutivas da arte, nas atuais condicdes produtivas. A dialética dessas tendéncias nao é menos visivel na superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate politico. Elas pdem de lado numerosos conceitos tradicionais — como criatividade e génio, validade eterna e estilo, forma e contetido — cuja aplicacio incontrolada, e no momento difi- cilmente controlavel, conduz a elaboracdo dos dados num sen- tido fascista. Os conceitos seguintes, novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstancia de nao serem de modo algum apropridveis pelo fascismo. Em compensagéo, podem ser utilizados para a formulagdo de exigéncias revolu- cionérias na politica artistica. Reprodutibilidade técnica Em sua esséncia, a obra de arte sempre foi reprodutivel. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros ho- mens. Essa imitago era praticada por discipulos, em seusexer- cicios, pelos mestres, para a difusdo das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a re- producio técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na histéria intermitentemente, atra- vés de saltos separados por longos intervalos, mas com inten- sidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutivel, muito antes que a im- prensa prestasse 0 mesmo setvico para a palavra escrita. Co- nhecemos as gigantescas transformagdes provocadas pela im- prensa -— a reproduc&o técnica da escrita. Mas a imprensa re- presenta apenas um caso especial, embora de importancia de- cisiva, de um processo histérico mais amplo. A xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a 4gua-forte, assim como a litografia, no inicio do século XIX. Com a litografia, a técnica de reproducao atinge uma etapa essencialmente nova. Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrigdo do desenho numa pedra . de sua incisio sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre, permitiu as artes graficas pela primeira vez colocar no mercado suas produgdes nfo somente em massa, como jA acontecia antes, mas também sob a forma de criacdes sempre MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 167 novas. Dessa forma, as artes graficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana. Gragas a litografia, elas comecaram a situar-se no mesmo nivel que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primérdios, quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reprodugio da imagem, a mao foi liberada das responsabilidades artisti- cas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como 0 olho apreende mais depressa do que a mo desenha, o processo de reproducao das imagens experimentou tal acele- rago que comecou a situar-se no mesmo niyel que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na lito- grafia, o cinema falado estava contido virtualmente na foto- grafia. A reprodugdo técnica do som iniciou-se no fim do sé- culo passado. Com ela, a reproducdo técnica atingiu tal pa- drao de qualidade que ela ndo somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, sub- metendo-as a transformagées profundas, como conquistar para si um lugar préprio entre os procedimentos artisticos. Para estudar esse padrao, nada é mais instrutivo que exami- nar como suas duas fungdes — a reproducio da obra de arte e a arte cinematografica — repercutem uma sobre a outra. Autenticidade Mesmo na reproducio mais perfeita, um elemento est& ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existéncia unica, no lugar em que ela se encontra. FE nessa existéncia tinica, e somente nela, que se desdobra a histéria da obra. Essa histé- tia compreende no apenas as transformacdes que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura fisica, como as relagdes de propriedade em que ela ingressou. Os vestigios das primeiras s6 podem ser investigados por andlises quimicas ou fisicas, irrealizdveis na reproducio; os vestigios das segundas sdo 0 objeto de uma tradigdo, cuja reconstituigSo precisa par- tir do lugar em que se achava o original. O aqui e agora do original constitui o contetido da sua autenticidade, e nela se enraiza uma tradigdo que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual ¢ idéntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa a reprodutibilidade técnica, e natural- mente ndo apenas @ técnica. Mas, enquanto o auténtico pre- 168 WALTER BENJAMIN serva toda a sua autoridade com relacao a reproducdo ma- nual, em geral considerada uma falsificagio, o mesmo nao ocorre no que diz respeito 4 reprodugiio técnica, e isso por duas razdes. Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodu¢do técnica tem mais autonomia que a reproducao manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar cer- tos aspectos do original, acessiveis 4 objetiva — ajustével e ca- paz de selecionar arbitrariamente 0 seu Angulo de observacaio —, mas nao acessiveis ao olhar humano. Ela pode, também, gracas a procedimentos como a ampliacao ou a camara lenta, fixar imagens que fogem inteiramente a dtica natural. Em se- gundo lugar, a reproducio técnica pode colocar a cépia do ori- ginal em situacdes impossiveis para o préprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do individuo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estidio de um amador; 0 coro, execu- tado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto. Mesmo que essas novas circunstancias deixem intato 0 eontetido da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fendmeno nao seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem, que aparece num filme aos olhos do espec- tador, ele afeta a obra de arte em um nicleo especialmente sensivel que nao existe num objeto da natureza: sua autenti- cidade. A autenticidade de uma coisa é a quintesséncia de tudo o que foi transmitido pela tradicg&o, a partir de sua ori- gem, desde sua durag&o material até o seu testemunho histé- rico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodugdo; também o testemunho se perde. Sem divida, sé esse testemunho desapa- Tece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional. Oconceito de aura permite resumir essas caracteristicas: © que se atrofia na era. da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomatico, e sua significacio vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodugao destaca do dominio da tra- digGo o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reproducio, substitui a existéncia inica da obra por uma existéncia serial. E, na medida em que essa técnica permite 4 reproducio vir ao encontro do espectador, em todas as situa- MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 169 goes, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradic4o, que constitui o re- verso da crise atual e a renovacdo da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é 0 cinema. Sua funcio social nao é concebivel, mesmo em seus tracos mais positivos, e precisamente neles, sem seu lado destrutivo e catartico: a li- quidacao do valor tradicional do patriménio da cultura. Esse fendmeno é especialmente tangivel nos grandes filmes histé- ticos, de Cle6patra e Ben Hur até Frederico, o Grande e Na- poleio. E quando Abel Gance, em 1927, proclamou com en- tusiasmo: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, fardo ci- nema... Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de novas religides, sim, todas as reli- gides... aguardam sua ressurreicdo luminosa, e os herdis se acotovelam as nossas portas”,’ ele nos convida, sem o saber talvez, para essa grande liquidacao. Destruicio da aura No interior de grandes periodos histéricos, a forma de percep¢ao das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existéncia. O modo pelo qual se orga- niza a percep¢o humana, o meio em que ela se dé, no é ape- nas condicionado naturalmente, mas também historicamente. A época das invasdes dos barbaros, durante a qual surgiram a industria artistica do Baixo Império Romano e a Génese de Viena, nao tinha apenas uma arte diferente da que caracteri- zava 0 periodo cldssico, mas também uma outra forma de per- cepefio. Os grandes estudiosos da escola vienense, Riegl e Wickhoff, que se revoltaram contra o peso da tradi¢4o classi- cista, sob o qual aquela arte tinha sido soterrada, foram os primeiros a tentar extrair dessa arte algumas conclusdes sobre a organizacao da percepc4o nas épocas em que ela estava em vigor. Por mais penetrantes que fossem, essas conclusdes es- tavam limitadas pelo fato de que esses pesquisadores se con- tentaram em descrever as caracteristicas formais do estilo de percepc4o caracteristico do Baixo Império. Nao tentaram, (1) Gance, Abel. Le temps de l'image est venu. In: L'Art Cinématographique IL. Paris, 1927. p.94-6. 170 _ WALTER BENJAMIN talvez nfo tivessem a esperanca de consegui-lo, mostrar as convulsdes sociais que se exprimiram nessas metamorfoses da percepgio. Em nossos dias, as perspectivas de empreender com éxito semelhante pesquisa sio mais favoraveis, e, se fosse possivel compreender as transformacées contemporaneas da faculdade perceptiva segundo a ética do declinio da aura, as causas sociais dessas transformagdes se tornariam inteligiveis. Em suma, o que é a aura? E uma figura singular, com- posta de elementos espaciais e temporais: a aparicdo tinica de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verio, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nés, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Gra- Gas a essa definigdo, é facil identificar os fatores sociais espe- cificos que condicionam o declinio atual da aura. Ele deriva de duas circunstincias, estreitamente ligadas 4 crescente di- fusio e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coi- sas ‘“‘ficarem mais préximas” € uma preocupacao tao apaixo- nada das massas modernas como sua tendéncia a superar 0 carater unico de todos os fatos através da sua reprodutibili- dade. Cada dia fica mais irresistivel a necessidade de possuir o objeto, de tao perto quanto possivel, na imagem, ou antes, na sua copia, na sua reproducdo. Cada dia fica mais nitida a diferenga entre a reproduc’o, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematogrAficas, e a * imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam téo intimamente como, na reproducio, a transitoriedade e a repe- tibilidade. Retirar o objeto do seu invdlucro, destruir sua aura, éacaracteristica de uma forma de percepcao cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tdo aguda, que gracas 4 reproducao ela consegue capté-lo até no fenémeno tinico. Assim se manifesta na esfera sensorial a tendéncia que na es- fera teérica explica a importancia crescente da estatistica. Orientar a realidade em fungaio das massas e as massas em fungZo da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuigao. Ritual e politica A unicidade da obra de arte é idéntica 4 sua inserc4o no contexto da tradicio. Sem divida, essa tradicio é algo de MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA A muito vivo, de extraordinariamente vari4vel. Uma antiga est4- tua de Vénus, por exemplo, estava inscrita numa certa tra- dig¢’o entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradicio na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um idolo malfazejo, O que era comum as duas tradicdes, contudo, era a unicidade da obra ou, em ov- tras palavras, sua aura. A forma mais primitiva de insercio da obra de arte no contexto da tradic4o se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a servico de um ritual, inicialmente magico, e depois religioso. O que é de importancia decisiva é que esse modo de ser auratico da obra de arte nunca se destaca completamente de sua fungao ritual. Em outras palavras: o valor inico da obra de arte “auténtica” tem sempre um fundamento teolégico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secula- tizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo. Essas formas profanas do culto do Belo, surgidas na Renas- cenca e vigentes durante trés séculos, deixaram manifesto esse fundamento quando sofreram seu primeiro abalo grave. Com efeito, quando o advento da primeira técnica de reprodug’o verdadeiramente revolucionaria — a fotografia, contempora- nea do inicio do socialismo — levou a arte a pressentir a pro- ximidade de uma crise, que s6 fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu ao perigo iminente com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela re- sultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte Pura, que nao rejeita apenas toda func&o social, mas também qualquer determinagao objetiva. (Na literatura, foi Mallarmé © primeiro a alcangar esse estagio.) E indispensdvel levar em conta essas relagdes em um estudo que se propée estudar a arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porque elas pre- param o caminho para a descoberta decisiva: com a reprodu- tibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primei- ra vez na histéria, de sua existéncia parasitdria, destacan- do-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodugdo de uma obra de arte criada para ser reprodu- zida. A chapa fotografica, por exemplo, permite uma gran- de variedadé

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