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Do mesmo autor: Livre-Troca (com Hans Haacke) Meditagdes Pascatianas O Poder Simbélico DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE UMNO 21300133609 Pierre Bourdieu A DOMINACAO MASCULINA 28 EDICAO Tradugio Maria Helena Kihner ‘SBD-FFLCH-USP cm 28: BERTRAND BRASIL Copyright © tditions du Seuil, 1998 ‘Titulo original: La domination masculine ‘Capa: Simone Villas Boas Revistio da tradugio: Gustavo Sora Editoragao: DFL 2002 Inpresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RY Bourdieu, Pierre, 1930-2002 B778d___ A dominagaomasculina/ Pierre Bourdieu; tradugdo Maria Helena Ped. Kohner.~2* ed. ~ Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 6p. ‘Tradugio de: La domination masculine Incl anexo ISBN 85-286-0705-4 1. Papel sexual. 2. Dominaeo (Psicologia). 3. Poder (Ciéncias sociais) 4. Homem Psicologia I. Titulo, cpp 3067 99.0353 . CDU~ 3163462 ‘Todos os direitos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 ~ 1° andar — Sto Cristovao 20921-380 — Rio de Janciro— RJ “Fel: (OXX21) 2585-2070 — Fax: (OXX21) 2585-2087 Nao € permitida a reprodugao total ou parcial desta obra, por quaisquer ‘meios, sem a prévia autorizagdo por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. A.ETERNIZACAO DO ARBITRARIO te ee pcg iss a cp unt ni print sean “eee ee mr ers ‘Sire os sexos se transformaram menos do que uma observacto superficial podera fazer crer iceman edge coe es a sci naemen bcm i oh ee Sent ie i es cn ee ie anon onc ea ra tt eee en pea ec te nah a eta ie einer dha escola pas et a note i a er pe ee moored hn i es ee Touhy rn rt meyers la ea ea ce 2 ep sh a et a Fit ere scy ase compeometerem com ura 530 poiica que rompe com ee costae . PIERRE BOURDIEU neneagunoe PREAMBULO® Certamente nao me teria confrontade com as- sunto t2o dificil se nao tivesse sido levado a isso por toda a logi- ca de minha pesquisa. De fato, jamais deixei de me espantar diante do que poderiamos chamar de 9 paradoxo da déxa: 0 fato de que a ordem do mundo, tal como esta, com seus sentidos tini- cos e seus sentidos proibidos, em sentido proprio ou figurado, suas obrigagbes ¢ suas san¢des, seja grosso modo respeitada, que nao haja um maior ntimero de transgressGes ou subversbes, deli- tos e “loucuras” (basta pensar na extraordinaria coordenagao de mi-lhares de disposigdes — ou de vontades — que cinco minu- tos de circulagao automobilistica na Praca da Bastilha ou da Concorde requerem); ou, © que é ainda mais surpreendente, que a ordem estabelecida, com stas relagoes de dominagao, seus di- reitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injusticas, salvo ‘uns poucos acidentes hist6ricos, perpetue-se apesar de tudo tio facilmente, e que condigdes de existencia das mais intoleraveis, possam permanentemente ser vistas como aceitaveis ou até mes- mo como naturais. Também sempre vi na dominagao masculina, €no modo como ¢ imposta e vivenciada, o exemplo por excelén- cia desta submissao paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violé” -ia simbélica, violencia suave, insensivel, invisivel a suas p:uprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas Vias pu- ramente simbélicas da comunicasao e do conhecimento, ou, * For ndo ser cloromente opadecimento nominal sarin benkficos ov nafat tos bs petiaos © quem foie did, comartarmes am expimir mina proknda roiddo a todos onueles @ sobrado a todas aquslas que me oUNerOM fee mmnhos, docuenie,releincoscerticas, iis, © minho eipronga de que eile trobeho vee o 1" digne,sobeido am aus efor, da confonea das expect ‘es que olen ou eos mele depot, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em tiltima instincia, do sentimento, Essa relagdo social ex- traordinariamente ordinaria oferece também uma ocasiao tinica de aprender a légica da dominagio, exercida em nome de um principio simbélico conhecido e reconhecido tanto pelo domi-_ nante quanto pelo dominado, de uma lingua (ou uma maneira “de falar), de um estilo de vida (ou uma maneira de pensar, de fa- Tar ou de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distin va, emblema ou estigma, dos quais 0 mais eficiente simbolica- mente é essa propriedade corporal inteiramente arbitréria e nao predicativa que é a cor da pele. “Torna-se evidente que, nessas matérias, nossa questéo princi- pal tem que ser a de restituir & déxa seu cardter paradoxal e, a0 ‘mesmo tempo, demonstrat os processos que slo responséveis pela transformagao da historia em natureza, do at natural, E, ao fazé-lo, nos pormos a altura de assumir, sobre nos- 0 proprio universo e nossa prépria visio de mundo, 0 ponto de vista do antropélogo capaz de, ao mesmo tempo, devolver a dife- renga entre'o masculino e 0 feminino, tal como a (des)conhece- ‘mos, seu cardter arbitrério, contingente, e também, simultanea- mente, sua necessidade s6cio-logica. Nao é por acaso que, quando quis por em suspenso o que ela chama, magnificamente, de “o poder hipnético da dominagao’, Virginia Woolf se armou de uma analogia etnogréfica, religando geneticamente a segregagio das mulheres aos rituais de uma sociedade arcaica: “Inevitavelmente, nds consideramos a sociedade um lugar de conspiracdo, que engole o irmao que muitas de nés temos razes de respeitar na vida privada, ¢ impde em seu lugar um macho monstruoso, de vor tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril, inscreve no chao signos em giz, misticas linhas de demarcagio, entre as quais 0s seres humanos ficam fixados, rigidos, separados, artifici LLugares em que, ornado de ouro ou de piirpura, enfeitado de plu- ‘mas como um selvagem, ele realiza seus ritos misticos.¢ usufrui. dos prazeres suspeitos do poder e da dominagio, enquanto nés, ‘Saas’ mulheres, nos vemos fechadas na casa da familia, sem que nos seja dado participar de nenhuma das numerosas ‘sociedades de que se compoe a sociedade”! “Linhas de demarcacao misticas”, tos misticos”: esta linguagem — a da transfiguragao magica e da converséo simbélica que produz a consagracao ritual, princt- pio de um novo conhecimento — estimula a orientar a pesquisa para um enfoque capaz de apreender a dimensio propriamente simbélica da dominagao masculina._ Sera, portanto, necessério buscar em uma andlise materialista da economia os meios de escapar da ruinosa alternativa entre “material” e o “espiritual” ou “ideal” (mantida atualmente por meio da oposigdo entre os estudos ditos “materialistas’, que expli- ‘cam a assimetria entre os sexos pelas condigdes de producao, e os estudos ditos “simbdlicos’, muitas vezes notveis, mas parciais). Mas, primeiramente, s6 uma utilizagio muito especial da etnolo- ‘gia pode permitir realizar 0 projeto, sugerido por Virginia Woolf, de objetivar cientificamente a operacao, corretamente dita misti- ca, na qual a divisio entre 0s sexos, tal como a conhecemos, se produz; ou, em outros termos, de tratar a andlise objetiva de uma sociedade organizada de cima a baixé segundo o principio andro- céntrico (a tradigao cabila), como uma arqueologia objetiva de nosso inconsciente, isto 6, como instrumento de uma verdadeira socioandlise? Esse desvio, indo a uma tradigao exética, é indispensével para _quebrar a relagdo de enganosa familiaridade que nos liga & nossa ‘propria tradigdo. As aparéncias biolégicas e os efeitos, bem reais, Jue um longo trabalho coletivo de socializagao do bioldgico e de jologizagdo do social produziu nos corpos e nas mentes conju- sm-se para inverter a relagdo entre as causas eos efeitos e fazer ver a construcdo social naturalizada (os “generos” como habitus sexuados), como o fundamento in natura da arbitréria divisio que 1. V. Weal Tris guindos, tod. V. Forester, Poi, Eons des Femmes, 1977, p. 200. 2. Nei que sia pare comprovar que mau propSsto oval no rea de ume eax ‘erido recent, ramet dr pginos dew io [6 anigo em que as isso no flo da ‘98, qvondo opicado ¢ dviso sexal do mundo, 9 eraogia pade “lomnerse una fSrme portclormanie poderosa de soccandise™ . Bourd, Lo Sens protioo, Peri, Eons de Mini, 1980, pp. 246247) esté no principio nao s6 da realidade como também da represen- tagao da realidade e que se impoe por vezes a propria pesquisa. ‘Mas ser que esse uso quase analitico da etnografia, que des- naturaliza, historicizando, o que é visto como que ha de mais natural na ordem social, a divisio entre os sexos, nao se arrisca a por em destaque constantes ¢ invariéveis — que estao no princi- pio mesmo da sua eficécia socioanalitica — e, com isso, a eterni- zar, ratificando-a, uma representagdo conservadora da relagao entre os sexos, a mesma que se condensa no mito do “eterno femi- nino”? £ aqui que nos deparamos com um novo paradoxo, capaz de obrigar a uma completa revolucao na mai que jd se tentou estudar sob forma de “a histéria das mulheres”: serd que as invariéveis que se mantém, acima de todas as mudan- gas visiveis da condicao feminina, e sto ainda observadas nas rela- ges de dominagao entre os sexos, nao obrigam a tomar como objeto privilegiado os mecanismos e as instituigdes hist6ricas que, no decurso da hist6ria, nao cessaram de arrancar dessa mesma historia tais invaridveis? Essa Essareoloios noc conbecimento no deixa de ter consequén- i tale: i i tasomat ol tu dre ‘dessa relagao de domi petuagio’ dessa relagdo de dominacto nao 3. Asin, ado @ are que os psaslogs rtomem por cont prio © Ws8o comm dos sexo, come conjurosroicalmenesepctades, sam inersrso,e ignoram 0 grou de recbrimeno ene ot ditibicées de performances naxinos @ faninnas, @ 08 ? Embora neste ponto, como em todos os outros, as variagdes sejam evidentemente considerdveis, segundo a posi¢ao social,33a idade —e as experiéncias anteriores —, pode-se inferir, por uma série de entrevistas, que préticas aparentemente simétri- cas (como a felagdo e o cunnilingus) tendem a revestir-se de signi ficagdes muito diversas para os homens (que tendem a ver nelas atos de dominio, pela submissio ou o gozo obtidos) e para as mulheres. O gozo masculino , por um lado, gozo do gozo femini- no, do poder de fazer gozar: assim Catharine MacKinnon sem duvida tem razao de ver na “simulacao do orgasmo” (faking orgasm) uma comprovagao exemplar do poder masculino de fazer ‘com que a interago entre os sexos se dé de acordo com a visao dos homens, que esperam do orgasmo feminino uma prova de sua virilidade e do gozo garantido por essa forma suprema da submis- sio.M Do mesmo modo, o assédio sexual nem sempre tem por fim 31. M. Bacon, S. Eten, Dively ia American Families, New York, Horper ond Row, 1990, pp. 249-254; Rubin, Inte Songer, New York, Boi, 1983. 532. D. Russel, the Foies of Rope, Now York, Stein and Day, 1975, p. 272; D. Ruse, Sonal Explotion, Bovey Hil, Sage, 1984, 9. 182 435, bore, porrazSee de expoxgso, oath sido levedo a folarde mulheres ou de homens sem fazer relencioo wo povigSo social, erko consciécla de qu seria rneceisirio lr em cont, en cada =o, mo fore epeidamenle no seqincia des te lio, oF expaccaeBes que o principio de dfereciogSa sci impse ao principio do difererciordo sentl fo vcore 34.C. A MacKinnon, Feminum Unmedfied, Discourses on life and Low, Cambridge (Mast lndeas, Horcrd Unverty Press, 1987, p. 58. exclusivamente a posse sexual que ele parece perseguir: 0 que acontece é que ele visa, com a posse, a nada mais que a simples afirmagao da dominagio em estado puro.35 Se a relagao sexual se mostra como uma relagao social de dominacao, € porque ela esta construida através do principio de divisio fundamental entre o masculino, ativo, €0 feminino, passi- vo, ¢ porque este principio cria, organiza, expressa e dirige 0 dese- jo —0 desejo masculino como desejo de posse, como dominacao erotizada, € 0 desejo feminino como desejo da dominagao mascu- lina, como subordinacao erotizada, ou mesmo, em wiltima instan- cia, como reconhecimento erotizado da dominagao. No caso em que, como se da nas relagdes homossextiais, a reciprocidade é pos- sivel, 0S lagos entre a sexualidade e o poder se desvelam de manei- ra particularmente clara, e as posigdes e os papéis assumidos nas relagdes sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociaveis das relagdes entre as condigdes sociais que determi- am, a0 mesmo tempo, sua possibilidade e sua significacdo. A penetragao, sobretudo quando se exerce sobre um homem, é uma das afirmagoes da libido dominandi, que jamais esta de todo ausente na libido masculina, Sabe-se que, em intimeras socieda- des, a posse homossexual é vista como uma manifestagao de “poténcia’, um ato de dominagao (exercido como tal, em certos «casos, para afirmar a superioridade “feminizando” o outro) e que € a este titulo que, entre os gregos, ela leva aquele que a sofre & desonra e a perda do estatuto de homem integro e de cidadao;3¢ 40 passo que, para um cidadao romano, a homossexualidade “passiva” com um escravo ¢ considerada algo “monstruoso”s? Do mesmo modo, segundo John Boswell, “penetracao e poder esta- ‘am entre as intimeras prerrogativas da elite dirigente masculina; ceder & penetragao era uma ab-rogagao simbdlica do poder e da 35. CER Chis, “La possesion, am P Bourdiu ea, Lo Mists du monde, Pars, Ecitons dy Sel, 1999, pp. 289991 536. Ct, por exemple, K. J Dover, Homosenuals grecque, Pars, Lo Pande savage, 1982, Bp. 130 6g, 37. F Vey, “Uhomorewolié& Rona”, Communications, 35, 1982, pp. 2692. autoridade”.® Compreende-se que, sob esse ponto de vista, que liga sexualidade a poder, a pior humilhagao, para um homem, consiste em ser transformado em mulher. E poderiamos lembrar aqui os testemunhos de homens a quem torturas foram delibera- ‘damente infringidas no sentido de feminiliza-los, sobretudo pela humilhagao sexual, com deboches a respeito de sua virilidade, acusagoes de homossexualidade ou, simplesmente, a necessidade de se conduzir com eles como se fossem mulheres, fazendo desco- brir “o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de estar sempre exposto & humilhagio ou ao ridiculo e de encontrar um reconforto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos”*? ‘A INCORPORACAO DA DOMINACKO Embora a idéia de que a definicdo social do corpo, ¢ especial- mente dos 6rgios sexuais, é produto de um trabalho social de construgao se tenha banalizado de todo por ter sido defendida por toda a tradicao antropol6gica, o mecanismo de inversdo da rela- «80 entre causas e efeitos, que eu tento aqui demonstrar, e pelo qual se efetua a naturalizagao desta construgdo social, nao foi, a meu ver, totalmente descrito, © paradoxo esté no fato de que sio as diferencas visiveis entre o corpo ferninino e o corpo masculino que, sendo percebidas e construfdas segundo os esquemas prati- cos da visto androcéntrica, tornam-se o penhor mais perfeita- mente indiscutivel de significagoes e valores que esto de acordo ‘com os principios desta visio: nao é 0 falo (ow falta de) que € 0 fundamento dessa visto de mundo, e sim é essa visto de mundo que, estando organizada segundo a divisdo em géneros relacionais, "3. J, Boawall, “Sexacl and Ecol Categories in Premoder Eurane", em P. Me hina, § Sanders, Renich, Homosexsolty/Heteasexwally: Concops of Saxo! Orientation, Now York, Oxford Urivery Press, 1990. 39. C.J. Fronco, "Gander, Death and Resislanee, Facing the Ethical Veco", om J E. Conrodi, P. Weiss Fagen, M.A. Garton, Faar a the Edge, Stow Terror ond Resistance in Lain Americ, Beteley, Unvweaty of Colfamio Pre, 1992. ‘masculino e feminino, pode instituir o falo, constituido em sim- polo da virilidade, de ponto de honra (nif) caracteristicamente masculinos ¢ instituir a diferenca entre os corpos biolégicos em fandamentos objetivos da diferenga entre os sexos, no sentido de generos construfdos como duas esséncias sociais hierarquizadas, ‘Longe de as necessidades da reprodugao biolégica determinarem a organizagao simbélica da divisao social do trabalho e, progressi- vamente, de toda a ordem natural e social, é uma construgao arbi- traria do biolégico, e particularmente do corpo, masculino e feminino, de seus usos e de suas fungdes, sobretudo na reprodu- ao bioldgica, que dé um fundamento aparentemente natural & visio androcéntrica da divisdo de trabalho sexual e da divisio sexual do trabalho e, a partir dai, de todo o cosmos. A forga parti- cular da sociodicéia masculina Ihe vem do fato de ela acamular =, condensar duas operagoes: ela legitima uma relacao de domit ‘wiscrevendo-a em uma natureza biolégica que é, por sua vez, ela Prépria uma construcao social naturalizada, ~~"0 trabalho de construsao simbélica nao se reduz a uma ope- racdo estritamente performativa de nominagao que oriente e estruture as representagdes, a comegar pelas representagdes do cor- po (0 que ainda nao é nada); ele se completa e se realiza em uma transformago profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de construgao pratica, que impoe uma definigao diferencial dos usos legitimos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensavel e do factivel tudo que caracteriza pertencer ao outro género—eem. Particular todas as virtualidades biologicamente inscritas no “per- ‘verso polimorfo” que, se dermos crédito a Freud, toda crianga é — para produzir este artefato social que é um homem viril ow uma mulher feminina. O ndmos arbitrério que institui as duas classes na objetividade nao reveste as aparéncias de uma lei da natureza (fala-se comumente de sexualidade ou, hoje em dia mes- mo, de casamento “contra a natureza”) senao ao término de uma somatizacdo das relagdes sociais de dominagao: 63 custa, eo final, de um extraordinirio trabalho coletivo de socializasao difusa e continua que as identidades distintivas que a arbitrariedade cultu- ral institui se encarnam em habitus claramente diferenciados segundo o principio de divisto dominante e capazes de perceber © mundo segundo este principio. ‘Tendo apenas uma existéncia relacional, cada um dos dois generos € produto do trabalho de construcao diacritica, ao mesmo tempo te6ricae pr ;o socialmente diferenciado do géneto oposto (sob todos os pontos de vista Gulfuralmente pertinentes), isto é como habitus viril, e por- tanto nao feminino, ou feminino, e portanto nao masculino, A agao de formacio, de Bildung, no sentido amplo do termo, que opera esta construgdo social do corpo nao assume sendo muito parcial- mente a forma de uma agao pedagégica explicita e expressa. Ela é ‘em sua maior parte, o efeito automatico, e sem agente, de uma ordem fisica e social inteiramente organizada segundo 0 principio de divisio androcéntrico (o que explica a enorme forga de presso aque ela exerce). Inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através de injungdes tacitas, implicitas nas roti- nas da divisao do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados (bas- ta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginalizagao impostas as mulheres com sua exclusio dos lugares masculinos) Ax regularidades da ordem fisica eda ordem social impoem ¢ inculcam as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres (con- ‘duzir a charrua, por éxemplo), assinalando-Ihes lugares inferiores (a parte baixa da estrada ou do talude), ensinando-Ihes a postura correta do corpo (por exemplo, curvadas, com os brags fechados sobre o peito, diante de homens respeitiveis) atribuindo-Ihes tare- fas penosas, baixas e mesquinhas (so elas que carregam o estrume, «ena colheita das azeitonas, so elas que as juntam no cho, com as criangas, enquanto os homens manejam a vara para fazé-las cair das drvores), enfim, em geral tirando partido, no sentido dos pres supostos fundamentais, das diferengas biolégicas que parecem assim estar A base das diferengassociais. = Na longa seqiéncia de mudas chamadas a ordem, 0s ritos de instituigéo ocupam um lugar & parte, em virtude de seu cardter solene ¢ extra-ordinério: eles visam a instaurar, em nome ¢ em presenga de toda a coletividade para tal mobilizada, uma separa- Gao sacralizante, nao s6 como faz crer a nogao de rito de passa- ca, que € necessério A sua produsdo como.car- _ gem, entre 0s que jd receberam a marca distintiva e os que ainda indo a receberam, por serem ainda muito jovens, como também, € sobretudo, entre os que s2o socialmente dignos de recebé-la e as gue dela estio definitivamente excluidas isto é, as mulheres? Ou, como no caso da circuncisio, rito por exceléncia de instituigio da masculinidade, entre aqueles cuja virilidade ele consagra ao pre- pari-los simbolicamente para exerct-la, ¢ aquelas que nio estio em condigdes de ter tal iniciagao, e que ndo podem deixar de se sentir privadas daquilo que a ocasiao e 0 suporte do ritual de con- firmagio da virilidade representam, ‘Assim, 0 que o discurso mitico professa de maneira, apesar de tudo, bastante ingenua, os ritos de instituigo realizam da forma ‘ais insidiosa, sem duivida, porém mais eficaz simbolicamente. les se inscrevem na série de operagdes de diferenciagao visando a destacar em cada agente, homem ou mulher, os signos exteriores ‘mais imediatamente conformes & definigao social de sua distingao sexual, ou a estimular as préticas que convém a seu sexo, proibin- do ou desencorajando as condutas impréprias, sobretudo na rela- 40 com 0 outro sexo. E, por exemplo, 0 caso dos ritos ditos “de separagao”, que tém por fungdo emancipar um menino com rela- io & sua mie e garantir sua progressiva masculinizagao, incitan- do-o e preparando-o para enfrentar o mundo exterior. A pesqui sa antropolégica descobre, realmente, que o trabalho psicolégico que, segundo certa tradigio psicanalitica,*! os meninos tém que “20K cabo qos or ros de inaigdo do & Insti do vilidode nos cor pos mosclno,eranos que eeceir ado ot foot nots, sored agus {0 tim contagdo sna mois ou menos evident feomo o que conse or mor © tras knge postel ov o jogos homesnenais dos paquenos poses] e qu, em 89 ‘potent insigniicsnea, exo sabrecaregados de contoces dios, mllbs veces imserios no Inguogem [por exerpo,piceprin, © que tem mad flaca, sgn, ‘em booms, ova, pose genset), Quono ds rozSes que me evra @ substi por rio de insti fnpreito quo dave vr eompreendida 20 mesmo trp no ‘entido dori que el ratieionclizado — @intivigto do cazomento — e do cto insttor —o instvigso de um herds) 0 nog0 de rio de passage, que sem dv de doveu sev matte seit a0 fo de que ela no & me's que uma pré-ozdo do Senso comm conversa em concaito de figdo enudta, ver P. Bourdou, “es hes Sinsiavan” for Ce que pare veut cr, Por, Fayard, 1982, pp. 121-134), 141. Ckpincipalante N.. Chodorow, The Reproduction of Mothering: Poychoanoy ‘nd the Sociology of Gender, Baieay, University of Clforia Pros, 1978, realizar para cortar a quase-simbiose original com a mae e afirmar ‘uma identidade sexual pr6pria € expresso e explicitamente acom- panhado, ou mesmo organizado, pelo grupo que, em toda uma série de ritos de instituigdo sexuais orientados no sentido da viri- lizagao e, mais amplamente, em todas as priticas diferenciadas e diferenciadoras da existéncia didria (esportes e jogos viris, caga etc.) encorajam a ruptura com o mundo materno; ruptura da qual, as filhas (bem como, para sua infelicidade, os “filhos de vitiva”) estio isentos — o que lhes permite viver em uma espécie de con- timuidade com a mae? ‘A “intengao” objetiva de negara parte feminina do masculino (esta mesma que Melanie Klein pedia & psicanélise para resgatar, por uma operagao inversa & que realiza 0 ritual), de abolir os lagos 0s vinculos com a mae, com a terra, com a umidade, com a noi- te, com a natureza, manifesta-se, por exemplo, nos ritos que se realizam no momento denominado “a separagao en ennayer” (el dazla gennayer), como 0 primeito corte de cabelos do menino, € em todas as ceriménias que marcam a ultrapassagem do linmiar do mundo masculino e que terdo seu coroamento na circuncisio. Seria infindavel a enumeragao dos atos que visam a separar 0 menino de sua mae — pondo em agao objetos fabricados pelo fogo e adequados a simbolizar o corte (e a sexualidade viril): faca, punhal, relho etc. Assim, depois do nascimento, a crianga é colo- cada a direita (lado masculino) de sua mie, que esta por sua vez deitada do lado direito, e colocam-se entre eles objetos tipicamen- ‘te masculinos, tais como um pente de cardar Ia, uma grande faca, um relho, uma das pedras do lar. Dai a importancia do primeiro corte de cabelos, que esté, igualmente, ligado ao fato de que a cabeleira, feminina, é um dos elos simbélicos que unem o menino a0 mundo materno, E ao pai que incumbe dar este corte inaugu- “2. Em opotio oor que wo chamades por vazes no Cobo de “Hos dos tomers, evjo edvcasdo comzete vatos homens, 0 “hos de viva" so visor ‘om sipegdo de erm excopade ao rabolho de todos os insares que &nacssrio pore evor que os merinos se ornem mulheres e delete sido abandonados 6 o¢80 feminlizanie do préprie moe. sal, com a navalha, instrumento masculino, no dia da “separago enennayer” e pouco antes da primeira entrada no mercado, isto é, em uma idade situada entre os seis e os dez anos. E 0 trabalho de yirilizacao (ou de desfeminizagao) prossegue por ocasiao desta introducdo no mundo dos homens, do ponto de honra (nif) e das Jutas simbélicas, que é a primeira entrada no mercado: a crianca, em trajes novos e com a cabeca enfeitada com um turbante de seda, recebe uma espada, um cadeado e um espelho, enquanto sua mie depde um ovo fresco no capuz de seu capote. Na porta do mercado, ele quebra 0 ovo e abre o cadeado, atos viris de deflora- ‘a0, ese olha no espelho, que, tal como o limiar, é um operador de inversao, Seu pai o guia no mercado, mundo exclusivamente mas- culino, apresentando-o aos outros homens. Na volta, eles com- pram uma cabega de boi, simbolo filico — por seus cornos — associado ao nif. ‘© mesmo trabalho psicossomético que, aplicado aos meni- nos, visa a virilizé-los, despojando-os de tudo aquilo que poderia neles restar de feminino — como no caso do “filho de vitiva”— assume, no caso das meninas, uma forma mais radical: a mulher estando constituida como uma entidade negativa, definida apenas por falta, suas virtudes mesmas s6 podem se afirmar em uma dupla negagao, como vicio negado ou superado, ou como mal ‘menor. Todo o trabalho de socializagao tende, por conseguinte, a impor-lhe limites, todos eles referentes a0 corpo, definido para tal como sagrado, h'aram, e todos devendo ser inscritos nas disposi- §6es corporais. E assim que a jovem cabila interiorizava os prinef- pios fundamentais da arte de viver feminina, da boa conduta, inseparavelmente corporal e moral, aprendendo a vestir e usar as diferentes vestimentas que correspondem a seus diferentes esta- dos sucessivos, menina, virgem nubil, esposa, mae de familia, e, adquitindo insensivelmente, tanto por mimetismo inconsciente quanto por obediéncia expressa, a maneira correta de amarrar sua cintura ou seus cabelos, de mover ou manter imével tal ou qual parte de seu corpo ao caminhar, de mostrar o rosto e de di giro olhar. Essa aprendizagem ¢ ainda mais eficaz por se manter, no essencial,ticita: a moral feminina se impoe, sobretudo, através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, € que se faz lembrar € se exerce continuamente através da coagd0. quanto aos trajes ou aos penteados. Os principios antagonicos da identidade masculina eda jdentidade feminina se inscrevem, ianentes de se servir do corpo, assim, sob forma de maneiras perm: ‘ou de manter a postura, que sio como que a realizacio, ou me- Thor, a naturalizagao de uma ética. Assim como a moral da honra masculina pode ser resumida em uma palavra, cem vezes repetida pelos informantes, qabel, enfrentar, olhar de frente € com a postu- ra ereta (que corresponde a de um militar perfilado entre nés), prova da retidao que ela faz vers# do mesmo modo a submissio feminina parece encontrar sua tradugao natural no fato de se in- clinar, abaixar-se, curvar-se, de se submeter (0 contrério de “por- se acima de”), nas posturas curvas, flexiveis, e na docilidade cor- relativa que se julga convir & mulher. A educagdo elementar tende, a inculcar maneiras de postar todo 0 corpo, ou tal ou qual de suas ___partes (a mao direita, masculina, ou a mao esquerda, feminina), a ‘maneira de andar, de exguer a cabeca ou os olhos, de olhar de frente, nos olhos, ou, pelo contrario, abaixé-los para os pés etc.» maneiras que estdo prenhes de uma ética, de uma politica e de uma cosmologia (toda a nossa ética, sem falar em nossa estética, assenta-se no sistema dos adjetivos cardeais, elevado/baixo, direi- toltorto, rigido/flexivel, aberto/fechado, uma boa parte dos quais designa também posigdes ou disposig6es do corpo ou de alguma de suas partes — eg. a “fronte alta” ow a “cabega baixa”). ‘A postura submissa que se impde as mulheres cabilas repre- senta o limite maximo da que até hoje se impoe as mulheres, tan- to nos Estados Unidos quanto na Europa, e que, como intimeros observadores jé demonstraram, revela-se em alguns imperativos: “Ga Sabo ors Gobel qu 0 el propo igodo bs orenorSes bcos do expo- joe ue todo vido de neo, . Borda, Le Sens prague op ct p. 181 sorrir, baixar os olhos, aceitar as interrupgoes etc. Nancy M. Henley mostra como se ensina as mulheres ocupar o espaco, caminhar e adotar posicdes corporais convenientes. Prigga Haug também tentou fazer ressurgir (com um método que chamou de memory work, visando a resgatar hist6rias de infancia, discutidas ¢ interpretadas coletivamente) os sentimentos relacionados com as diferentes partes do corpo, com as costas a serem mantidas retas, com as pernas que ndo devem ser afastadas etc. e tantas coutras posturas que estdo carregadas de uma significagao moral (sentar de pernas abertas é vulgar, ter barriga é prova de falta de vontade etc.).44 Como se a feminilidade se medisse pela arte de “se fazer pequena” (o feminino, em berbere, vem sempre em diminu- tivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invistvel (do qual o véu nao é mais que a manifestagao visivel), limitando 0 territério deixado aos movimentos e aos deslocamen- tos de seu corpo — enquanto os homens tomam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares puiblicos. Essa espécie de confina- mento simbélico é praticamente assegurado por suas roupas (0 «que é algo mais evidente ainda em épocas mais antigas) e tem por efeito nao sé dissimular o corpo, chamé-lo continuamente & ‘ordem (tendo a saia uma funcdo semelhante a sotaina dos padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente (“minha mae nunca me disse para nao ficar de pernas abertas”): ‘ora com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mos, € sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de ativi- dades (a corrida, algumas formas de se sentar ete.) ora s6 as per- mitindo a custa de precaugSes constantes, como no caso das jovens que puxam seguidamente para baixo uma saia demasiado GF fey wal, Fence fonslzton. A Calc Wok of Meno, ln {ovu196 Ents ovr sb con eee dee pe wiped abe do cope ene oso ecole ox whos ery Sungrown noo oon mreio ian 9 ape tectonics éraperl de me reser eds mer Snow plore ori cor drawer, mh Sona na anon mrcape crs pate eros cono meter) ‘curta, ou se esforcam por cobrir com o antebraco uma blusa exces- sivamente decotada, ou tém que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chao um objeto mantendo as pernas fechadas5 Essas_ maneiras de usar 0 corpo, profundamente associadas & atitude “moral e A contengao que convém as mulheres, continuam a Thes ser impostas, como que sua revelia, mesmo quando deixaram de Ihes ser impostas pela roupa (como 0 andar com passinhos répi dos de algumas jovens de calcas compridas e sapatos baixos). E as ‘poses ou as posturas mais relaxadas, como o fato dese balangarem na cadeira, ou de porem os pés sobre a mesa, que so por vezes vistas nos homens — do mais alto escalo — como forma de demonstracio de poder, ou, 0 que dé no mesmo, de afirmagao io, para sermos exatos, impensdveis para uma mulher® ‘Aos que objetariam que intimeras mulheres romperam atual- mente com as normas e formas tradicionais daquela contencao, apontando sua tual exibigdo controlada do corpo como um sinal de “liberagio”, basta mostrar que este uso do préprio corpo conti- nua, de forma bastante evidente, subordinado ao ponto de vista masculino (como bem se vé no uso que a publicidade faz da mulher, ainda hoje, na Franca, ap6s meio século de feminismo) corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado, manifes- taa disponibilidade simbélica que, como demonstraram: intime- ros trabalhos feministas, convém 4 mulher, e que combina um poder de atragao e de seducio conhecido e reconhecido por todos, homens ou mulheres, e adequado a honrar os homens de quem GEGEN M Hiesey, op i pp. 98, 89.91 etombim pp. 14214: o reprodnto ithvenos cron oa olan oor sires ode ‘pon poses de eoerdos, mace sv nro om lS nn tibchres dnd, got spr dbo cago de hrs A VIOLENCIA sIMBOLICA A dominagao masculina encontra, assim, reunidas todas as condigdes de seu pleno exercicio. A primazia universalmente con-' cedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais, e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divi-| ‘sdo sexual do trabalho de produgao e de reprodugao biolégica e! social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos‘ esquemas imanentes a todos os habitus moldados por tais condi | goes, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepsdes, dos pensamentos e das ages de todos os membros da sociedade, como transcendentais historicos que, sen- do universalmente partilhados, impdem-se a cada agente como transcendentes. Por conseguinte, a representagio androcéntrica da reproducao biolégica e da reproducdo social se vé investida da objetividade do senso comum, visto como senso pritico, déxico, sobre 0 sentido das préticas. E as proprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, as relagdes de poder em que se véem envolvidas esquemas de pensamento que sio produto da incorporasao dessas relagdes de poder e que se expressam nas oposig6es fundantes da ordem simbélica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento sao, exatamente por isso, atos de reconheci- mento pratico, de adesdo déxica, crenga que ndo tem que se pen- sar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violéncia simbélica que ela sofre.st Embora eu no tenha a menor ilusio quanto a meu poder de dissipar de antemao todos os mal-entendidos, gostaria apenas de Prevenir contra os contra-sensos mais grosseiros que sio comu- mente cometidos a propésito da nogao de violencia simbélica que tém todos por principio uma interpretagao mais ou menos redutora do adjetivo “simbélico’, aqui usado em um sentido que ST. Or inciios vols ou no vorbois que designam @ possdo simbolicamente ominanie [do homem, do nobre, do chef ee] s8 padam zr comproendie (tl ‘oro 0 righos mites, que z om quo saber] plas pesto que oprenderom doctor toy “eSdigo" eu considero rigoroso e cujos fundamentos teéricos jé expliquel em trabalho anterior. Ao tomar “simbélico” em um de seus sen tidos mais correntes, supOe-se, por vezes, que enfatizar a violéncia simbélica é minimizar o papel da violéncia fisica e (fazer) esque- cer que ha mulheres espancadas, violentadas, exploradas, ou, 0 {que é ainda pior, tentar desculpar os homens por essa forma de violéncia, O que nao é, obviamente, 0 caso. Ao se entender “sim- élico” como 0 oposto de real, de efetivo, a suposigao é de que a violéncia simbélica seria uma violéncia meramente “espiritual” e, indiscutivelmente, sem efeitos reais. £ esta distincao simplista, caracteristica de um materialismo primério, que a teoria materia~ lista da economia de bens simbélicos, em cuja elaboragao eu ‘venho hé muitos anos trabalhando, visa a destruir, fazendo ver, na teoria, a objetividade da experiéncia subjetiva das relagdes de dominagao. ‘Outro mal-entendido: a referéncia & etnologia, cujas fungdes heuristicas tentei mostrar aqui, suspeita de ser um meio de res- taurar, sob uma capa cientifica, 0 mito do “eterno feminino” (ou masculino) ou, 0 que é mais grave, de eternizar a estrutura de dominacdo masculina descrevendo-a como invariavel e eterna. (Ora, longe de afirmar que as estruturas de dominacao sto a-hist6- ricas, eu tentarei, pelo contrario, comprovar que elas so produto de um trabalho incessante (¢, como tal, histérico) de reprodueao, para o qual contribuem agentes especificos (entre os quais os homens, com suas armas como a violencia fisica ea violéncia sim- bolica) ¢ instituigdes, familias, Igreja, Escola, Estado. (Os dominados aplicam categorias construfdas do ponto de vista dos dominantes as relacdes de dominagao, fazendo-as assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de auto- depreciagao ou até de autodesprezo sistemsticos, principalmente visiveis, como vimos acima, na representacao que as mulheres cabilas fazem de seu sexo como algo deficiente, feio ou até repul- SE CLP, Bovrdio, “Sure powal symbiue", Aenlo, 3, atojunho 197, Pp. 405.411 sivo (ou, em nosso universo, na visto que intimeras mulheres tém do proprio corpo, quando nao conforme aos cinones estéticos impostos pela moda), e de maneira mais geral, em sua adesio a ‘uma imagem desvalorizadora da mulher.* A violéncia simbélica se institui por intermédio da adesao que 0 dominado nao pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, 8 dominacao) ‘quando ele nao dispoe, para pensé-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relacdo com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos tém em comum e que, nao sendo mais que a forma incorporada da relagao de dominacao, fazem esta relagdo ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele poe em ago para se ver e se avaliar, ou para ver © avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/femninino, branco/negro etc.) resultam da incorporacao de classificagdes, assim naturalizadas, de que seu ser social € produto. Por nao poder evocar com sutileza suficiente (seria necesséria ‘uma Virginia Woolf para tal) exemplos suficientemente numero- 0s, bastante diversos e bem gritantes de situasdes concretas em que esta violéncia doce e quase sempre invisivel se exerce, limitar- me-ei a observacdes que, em seu objetivismo, impoem-se de maneira mais indiscutivel que a descrigao das interagoes em seus mais minimos detalhes. Constatou-se, por exemplo, que as mulheres francesas, em sua grande maioria, declaram que elas desejariam ter um cOnjuge mais velho e, também, de modo intei- ramente coerente, mais alto que elas, dois tergos delas chegando a recusar explicitamente um homem menor.® Que significa essa "5. Era sie, camo cone odor de ete waa 40 Frowo an 1996, on oes eens Slee en am Sato ne Sed omen ges, Myo Mn Fre nia inl vita do ale dance eno oe de gore tre omnes se at ono go un a cb a-ha Ge ede rt mee see crimes wane ode gu meio donate po made ine lM Non Fre, “Sct, Soaocen od cel Chong Coloma ane fon fer Bon eke. any on My Tests org Roe Teh ‘erNew oh 1} fae Uy Pen, 188 p73 recusa de ver desaparecerem os signos correntes da “hierarquia” sexual? “Aceitar uma inversto das aparéncias, responde Michel Bozon, é fazer crer que éa mulher que domina, algo que (parado- xalmente) a rebaixa socialmente: ela se sente diminuida com um homem diminufdo"®s Portanto, nao basta observar que as mulhe- res concordam em geral com os homens (que, por sua vez, prefe- rem mulheres mais jovens) na aceitagao dos signos exteriores de ‘uma posigaio dominada; elas levam em conta, na representagdo (que se fazem de sua relagio com o homem a que sua identidade esté (ou serd) ligada, a representagio que o conjunto dos homens e mulheres serio inevitavelmente levados a fazer dele, aplicando (os esquemas de percepcio e de avaliagdo universalmente partilha- dos (no grupo em questdo). Pelo fato de esses principios comuns cexigirem, de maneira ticita e indiscutivel, que 0 homem ocupe, pelo menos aparentemente e com relagao ao exterior, a posigao dominante no casal, é por ele, pela dignidade que nele reconhe- cem a priori querem ver universalmente reconhecida, mas tam- bém por elas proprias, para sua propria dignidade, que elas s6 podem querer eamar um homem cuja dignidade estejaclaramen- te afirmada e atestada no fato, e pelo fato, de que “ele as supera visivelmente. Isto, evidentemente, sem 0 menor célculo, através da arbitrariedade aparente de uma tendéncia que ndo se discute nem se argumenta, mas que, como o comprova a observacao des- sas distancias nao 6 desejadas como também reais, apenas pode nascer ¢ realizar-se na experiéncia de uma superioridade, cujos signos mais indiscutiveis e mais reconhecidos por todos so a ida- de eo tamanho (justificados como indices de maturidade e garan- tias de seguranga).° 15. M Bozon, “es lanes et Tact! digo err conoints ure domination conto te", k"Typae durian et arenes on mative decor de", Population, 2, 1990, pp. 527.30, -Mases ete dare treated oni Pepe Toon, 3, 1990, pp. 555602; "Apparence physique et choix du conjit, NED, Congr of colloaves,7, 1991, pp. 91110 156. Deveriomos lenor og os jogot wi plas quot, na Cabo, ceros mulheres Ihonrodat),enbore dominawen sbiom adr uma aide de submisdo que pet fa.00 home poreca e sense como dominate Para levar a cabo paradoxos que somente uma visio de tais tendéncias permite compreender, basta notar que as mulheres que se mostram mais submissas a0 modelo “tradicional” — e que dizem preferir uma maior diferenga de idade — encontram-se sobretudo entre as artesas, as comerciantes, as camponesas e as operas, categorias nas quais 0 casamento continua sendo, para as mulheres, o meio privilegiado de obter uma posicio socials como se, sendo resultantes de um ajustamento inconsciente as probabilidades associadas a uma estrutura objetiva de domina- Gio, as predisposigoes sulbmissas, que se expressam naquelas pre- feréncias, produzissem algo semethante a um ealculo interessado, bem-compreendido, Estas tendéncias, pelo contrario, tendem a minimizar-se — com efeitos de hysteresis que uma andlise das variagdes das priticas nao s6 segundo a posigdo ocupada, mas também segundo a trajet6ria permitiria entrever — a medida que decresce a dependéncia objetiva, que contribui para produzi-las e ‘manté-las (a mesma l6gica de ajustamento das tendéncias as oportunidades objetivas explica por que se pode constatar que 0 acesso das mulheres ao trabalho profissional ¢fator preponderan- te de seu acesso ao divércio).57 O que tende a confirmar que, con- trariamente a representagao romantica, a inclinagao amorosa nao esté isenta de uma forma de racionalidade que é muitas vezes, de certo modo, amor fati, amor ao destino social. Nao se pode, portanto, pensar esta forma particular de domi- nagZo sendo ultrapassando a alternativa da pressao (pelas forcas) do consentimento (as'raz0es), da coercao mecénica e da submis- sto voluntaria, live, deliberada, ou até mesmo calculada. O efeito da dominagio simbélica (seja ela de etnia, de género, de cultura, de lingua etc.) se exerce nao na l6gica pura das consciéncias cog- noscentes, mas através dos esquemas de percepsao, de avaliagao e de agio que sao constitutivos dos habitus e que fundamentam, 57GB Bastard oL CardoVovicke, “Voc profession tource mois pou quit Une flexion sr Faces ov vor 1984, pp. 3083316. es femmes: ue , Socoegie do row 3, aquém das decisées da consciéncia e dos controles da vontade, uma relagao de conhecimento profundamente obscura a ela mes- ma.s* Assim, a logica paradoxal da dominagao masculina e da submissao feminina, que se pode dizer ser, a0 mesmo tempo € sem contradicao, espontinea e extorquida, s6 pode ser compreen- dida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e 05 homens), ou seja, as disposigdes espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impoe. ‘A forca simbdlica é uma forma de poder que se exerce sobre ‘8 corpos, diretamente,e como que por magia, sem qualquer coa- 420 fisica; mas essa magia 86 atua com o apoio de predisposigoes colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos.* Se ela pode agir como um macaco mecinico, isto é, com uum gasto extremamente pequeno de energia, ela s6 0 consegue porque desencadeia disposigbes que o trabalho de inculcagao e de incorporacao realizou naqueles ou naquelas que, em virtude des- se trabalho, se véem por elas capturados. Em outros termos, ela encontra suas condigdes de possibilidade e sua contrapartida eco- némica (no sentido mais amplo da palavra) no imenso trabalho prévio que é necessério para operar uma transformagio duradou- ra dos corpos e produzir as disposigdes permanentes que ela desencadeia e despertas agdo transformadora ainda mais poderosa por se exercer, nos aspectos mais essenciais, de maneira invisivel e insidiosa, através da insensivel familiarizagao com um mundo fisi- paca TG eon opt ari ee co simbolicamente estruturado e da experiéncia precoce e prolon- gada de interagdes permeadas pelas estruturas de dominagao. Os atos de conhecimento e de reconhecimento praticos da fronteira mégica entre os dominantes e os dominados, que a magia do poder simbélico desencadeia, e pelos quais os domina- dos contribuem, muitas vezes & sua revelia, ou até contra sta von- tade, para sua propria dominagao, aceitando tacitamente os tes impostos, assumem muitas vezes a forma de emogdes corporais — vergonha, humilhagdo, timidez, ansiedade, culpa — ou de pai- xBes e de sentimentos — amor, admiracao, respeito —; emogdes que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se trafrem em manifestagdes visfveis, como o enrubescer, o gaguejar, 0 desa- jeitamento, 0 tremor, a c6lera ou a raiva onipotente, e outras tan- tas maneiras de se submeter, mesmo de mé vontade ow até contra 4 vontade, ao juizo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar, nao raro com conflito interno e clivagem do ego, a cum plicidade subterrénea que um corpo que se subtrai as diretivas da ‘consciéncia e da vontade estabelece com as censuras inerentes as estruturas sociais. As paixdes do habitus dominado (do ponto de vista do géne- 1, da etnia, da cultura ou da lingua), relagao social somatizada, lei social convertida em lei incorporada, nao sao das que se podem sustar com um simples esforgo de vontade, alicergado em uma tomada de consciéncia libertadora. Se é totalmente ilusério crer que a violencia simbélica pode ser vencida apenas com as armas da consciéncia e da vontade, é porque os efeitos e as condicdes de sua eficécia esto duradouramente inscritas no mais intimo dos corpos sob a forma de predisposigdes (aptides, inclinagdes). £0 que se vé, sobretuido, no caso das relagdes de parentesco e de todas as relagdes concebidas segundo este modelo, no qual essas tendén- cias permanentes do corpo socializado se expressam e se viven- ciam dentro da logica do sentimento (amor filial, fraterno etc.), ou do dever; sentimento e dever que, confundidos muitas vezes na experiéncia do respeito e do devotamento afetivo, podem sobrevi ver durante muito tempo depois de desaparecidas suas condigdes sociais de producdo. Observa-se assim que, mesmo quando as presses externas sao abolidas e as liberdades formais — direito de voto, direito a educagdo, acesso a todas as profissdes, inclusive politicas — sao adquiridas, a auto-exclusdo e a “vocagdo” (que “age” tanto de modo negative quanto de sifodo positive) vem substituir a exclusio expressa: a rejeigdo aos lugares puiblicos, que, quando ¢ explicitamente afirmada, como entre 0$ Cabilas, conde- na as mulheres a discriminaglo de espagos e torna a aproximagio de um espago masculino, como o local de assembleias, uma prova terrivel, pode também se dar em outros lugares, de maneira quase igualmente eficaz, por meio de uma espécie de agorafobia social- mente imposta, que pode subsistir por longo tempo depois de terem sido abolidas as proibigdes mais visiveis e que conduz as mulheres ase exclufrem motu proprio da dgora. ip Lembrar os tragos que a dominacio imprime perduravelmen- { te nos corpos e 0s efeitos que ela exerce através deles nao significa | dar armas a essa manera, partcularmente viciosa, de ratificar @ \ dominagao e que consiste em atribuir as mulheres a responsabili- | dade de sua prépria opressio, sugerindo, como ji se fez algumas _J vezes, que elas escolhemt adotar préticas submissas (“as mulheres sao seus piores inimigos”) ou mesmo que elas gostam dessa domi- nagio, que elas “se deleitam” com 0s tratamentos que lhes so inflingidos, devido a'uma espécie de masoquismo constitutivo de ' gua natureza. Pelo contrat, é preciso assinalar nao s6 que as ten- | déncias a “submissdo”, dadas por vezes como pretexto para “cul- * par a vitima’, io resultantes das estruturas objetivas, como tam- bem que essas estruturas s6 devem sua eficécia aos mecanismos aque elas desencadeiam e que contribuem para sua reprodusdo. O poder simbélico nao pode se exercer sem a colaboragdo dos que Ihe sio subordinados e que s6 se subordinam a ele porque 0 cons- troem como poder. Mas, evitando deter-nos nessa constatago (como faz 0 construtivismo idealista, etnometodolégico ou de outro tipo), temos que registrar e levar em conta a construgao social das estruturas cognitivas que organizam os atos de constru- ‘¢io do mundo e de seus poderes. Assim se percebe que essa cons- trugio pritica, longe de ser um ato intelectual consciente, livre, deliberado de um “sujeito” isolado, é, ela propria, resultante de um poder, inscrito duradouramente no corpo dos dominados sob forma de esquemas de percepcao e de disposigdes (a admirar, res- peitar, amar etc.) que o tornam sensivel a certas manifestagoes simbélicas do poder. Se a verdade & que, embora parega apoiar-se na forca bruta)) das armas ou do dinheiro,o reconhecimento da dominacio supoe| sempre um ato de conhecimento, isso nao implica igualmente que estejamos embasados a descrevé-la com a linguagem da conscién-\, cia, por um “viés” intelectualista e escoldtico que, como em Marx/ (esobretudo nos que, depois de Lukécs, falam em “falsa conscién-| cia”), leva a esperar a liberagao das mulheres como efeito automé- tico de sua “tomada de consciéncia’, ignorando, por falta de uma teoria tendencial das priticas, a opacidade ea inércia que resultam da inscrigdo das estruturas sociais no corpo. Jeanne Favret-Saada, embora tenha mostrado a inadequacdo da nogao de “consentimento” obtido pela “persuasio” e a “sedu- ‘40, no consegue sair realmente da alternativa entre coago ou consentimento, como “livre aceitagao” e “acordo explicito”, por- que se mantém encerrada, como Marx, de quem ela toma de empréstimo a terminologia da alienacao, em uma filosofia da “consciéncia” (ela fala em “consciéncia dominada, fragmentada, contradit6ria do oprimido” ou em “invasto da consciéncia das mulheres pelo poder fisico, juridico e mental dos homens”); por nio levar em conta os efeitos duradouros que a ordem masculina exerce sobre os corpos, ela no pode compreender adequadamen- te a submissio encantada que constitui o efeito caracteristico da violencia simbélica.®? A linguagem do “imaginério” que vemos aqui e acola ser utilizada, um pouco a torto ea direito, ésem divi- inadequada que a da “consciéncia’, dado que tende particularmente a esquecer que 0 principio da visio dominante ‘nao é uma simples representacdo mental, uma fantasia (“idéias na cabesa”), uma “ideologia’, e sim um sistema de estruturas dura- 60. F Fewer Sood 1987, pp. 197.180, rrlsonnenert dos formes, Les Terps Moderne, fever douramente inscritas nas coisas e nos corpos. Nicole-Claude ‘Mathieu foi, sem diivida, quem levou mais longe, em um texto intitulado “Da consciéncia dominada”6l, a critica da nogao de consentimento que “anula quase toda respopsabilidade da parte do opressor”®? e “na realidade joga uma vez mais a culpa sobre © oprimido(a)"s* mas, por nao abandonar a linguagem da “cons- cigncia’, ela nao levou a cabo a andlise das limitagaes das possbili- dades de pensamento e de ago que a dominagio impde aos opri- midos# e da “invasio de sua consciéncia pelo poder onipresente dos homens"* Bssas distinges criticas nada tém de gratuito: elas implicam, de fato, que a revolucdo simbélica a que o movimento feminista convoca nao pode se reduzir a uma simples conversio das cons- cigncias e das vontades. Pelo fato de o fundamento da violéncia simbélica residir nao nas consciéncias mistificadas que bastaria esclarecer, ¢ sim nas disposigdes modeladas pelas estruturas de dominagao que as produzem, 6 se pode chegar a uma ruptura da relagdo de cumplicidade que as vitimas da dominacao simbolica tém com os dominantes com uma transformagio radical das con- digdes sociais de produgao das tendéncias que levam os domina- dos a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, 0 proprio ponto de vista dos dominantes. A violéncia simbélica nao se pro- cessa sendo através de um ato de conhecimento e de desconheci- ‘mento pratico, ato este que se efetiva aquém da consciéncia e da vontade e que confere seu “poder hipnotico” a todas as suas mani- festagbes, injungoes, sugestdes, sedugdes, ameagas, censuras, SH Was Cao sd on sae Se sn de nt mde dst SR tee eae remem ae 2 ee cain nono res ere rr cl throm ste ne Cee ee tO Merete Se i ordens ou chamadas a ordem. Mas uma relagao de dominagio que s6 funciona por meio dessa cumplicidade de tendéncias depende, profundamente, para sua perpetuagao ou para sua trans- formagao, da perpetuacao ou da transformagao das estruturas de que tais disposigdes sao resultantes (particularmente da estrutura de um mercado de bens simbélicos cuja lei fundamental é que as mulheres nele sto tratadas como objetos que circulam de baixo para cima). 'AS MULHERES NA ECONOMIA DE BENS SIMBOLICOS Assim, as disposigdes (habitus) sdo inseparaveis das estruturas (habitudines, no sentido de Leibniz) que as produzem e as repro- duzem, tanto nos homens como nas mulheres, e em particular de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento ltimo na estrutura do mercado de bens simbéli- c0s.®° O principio da inferioridade e da exclusao da mulher, que 0 sistema mitico-ritual ratifica e amplia, a ponto de fazer dele 0 Principio de divisdo de todo 0 universo, nao é mais que a dissime- tria fundamental, a do sujeito e do objeto, do agente e do instrumen- to, instaurada entre o homem e a mulher no terreno das trocas simbélicas, das relagdes de produgao e reproducio do capital sim- bolico, cujo dispositivo central é 0 mercado matrimonial, que ‘estdo na base de toda a ordem social: as mulheres 6 podem ai ser vistas como objetos, ou melhor, como simbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja fungao é contribuir para a perpetuacio ou 0 aumento do capital simbélico em poder dos homens. ‘Verdade do estatuto conferido as mulheres que se revela a contra- rio na situagdo limite em que, para evitar 0 aniquilamento da linhagem, uma familia sem descendentes do sexo masculino nao (66. Ariecipando eats itigSee de isafos modkeros, como o de Pele, Libre foto de “hobiudnos", maneias de sr duradours,eavuhren, sugidos com o eval ‘80, ora designor © que se enuncia na expeniSo (6. W. Labi, “Quid a ideo”, ‘om Gerhart fd], Phoophichen Schifon, Vi, pp. 263264) tem outro recurso a nao ser o de tomar para sua filha um homem, © avrith, que, 20 inverso do uso patri-local, vem residir na casa da esposa ¢ passa a circular como uma mulher, isto é como um obje- to (“ele se faz de esposa’; dizem os cabilas): a masculinidade mes- ‘ma vendo-se assim posta em queStao, observa-se, tanto em Bearn como na Cabilia, que todo o'grupo vé com voluntéria indulgencia 608 subterfiigios que a familia humilhada poe em agdo para salvar a aparéncia de sua honra e, na medida do possivel, ado “homem_ objeto” que, anulando-se como homem, poe em questo a honra da familia que o recebe. "'B na logica da economia de trocas simbélicas — e, mais pre- cisamente, na construgdo social das relagdes de parentesco e do casamento, em que se determina as mulheres seu estatuto social de objetos de troca, definidos segundo os interesses masculinos, ¢ destinados assim a contribuir para a reprodugao do capital sim- bilico dos homens —, que reside a explicagao do primado conce- dido a masculinidade nas taxinomias culturais.|O tabu do incesto, em que Lévi-Strauss vé 0 ato fundador da sociedade, na medida ‘em que implica o imperativo de troca compreendido como igual comunicagao entre os homens, é correlativo da instituigao da vio- Iéncia pela qual as mulheres so negadas como sujeitos da troca € da alianca que se instauram através delas, mas reduzindo-as & condigao de objetos, ou melhor, de instrumentos simbélicos da politica masculina: destinadas a circular como signos fiducidrios e a instituir assim relagdes entre os homens, elas ficam reduzidas & condicdo de instrumentos de produgdo ou de reprodugio do capital simbdlico e social. E talvez, levando as tiltimas conseqiién- cias a ruptura com a visto meramente “semiolégica” de Lé Strauss, seja necessério ver na circulagao de cunho sadico que, como diz Anne-Marie Dardigna, faz do “corpo feminino, literal- mente, um objeto que pode ser avaliado e intercambiado, Jando entre os homens ao mesmo titulo que uma moeda’,*7 0 limite, desencantado ou cinico, da circulagao lévi-straussiana que, a 67. Atk Daria, las Cteovx d'or o es inlarunos dl sue des fmes, Pai, 1980, p. 88, sem diivida tornado possivel pelo desencanto (do qual o erotismo € um dos aspectos) associado & generalizacio das trocas moneté- rias, exibe claramente a violéncia sobre a qual repousa, em dima anélise, essa circulagio legitima de mulheres legitimas. A leitura estritamente semiolégica que, concebendo a troca de mulheres como relagao de comunicacao, oculta a dimensio politica da transagao matrimonial, relagao de forga simbélica que visa a conservar ou aumentar a forca simbélica, ea interpreta- gio meramente “economicista’, marxista ou outra, que, confun- dindo a légica do modo de produgao simbélica com a l6gica do modo de produgao propriamente econdmica, trata a troca de ‘mulheres como uma troca de mercadorias, tém em comum 0 fato de deixarem escapar a ambigitidade essencial da economia de bens simbélicos: orientada para a acumulagao do capital simbéli- co (a honra), essa economia transforma diferentes materiais bru- tos, no primeiro nivel dos quais esta a mulher, mas também todos 0s objetos suscetiveis de serem formalmente trocados, em dons (e nao em produtos), ou seja, em signos de comunicagao que so, indissociavelmente, instrumentos de dominagio. ‘Uma tal teoria leva em conta nao s6 a estrutura especifica des- sa troca, mas também o trabalho social que ela exige dos que a realizam e, sobretudo, o que € necessério para dele produzir e reproduzir nao s6 05 agentes (ativos, os homens, ou passivos, as mulheres) como também a propria l6gica — isso contra a ilusao de que 0 capital simb6lico se reproduz de certo modo por sua pr6- pria forga e fora da agao de agentes situados e datados. (Re)produ- zit os agentes é (re)produzir as categorias (no duplo sentido, de esquemas de percepgao e de avaliagao e de grupos sociais) que 8, Scbre as conseqiinci de pura com @ visio semictgica do hoca no com preensio do ros Ingisic, ver P. Bourdieu, Ce que pier veut die, ep. ct, pp 1321 e pouim £69. sa alse motelta do econo de bens simbelices permite excapor& ino so lenatia ene 0 “male 0 “eea", qe se perpob crvés do opel aire ‘of esudos “eteilitas” ox pedo “simbslios” (mucs vezes raiment ntivls, como 08 de Michele Rsold, Sherry Orie, Gayle Rbin, mos, @ mou ver, pai Rosold e Orne viom © papal das posicSe sinblie=s «a curpicidade dos doing os; Rubin igorto com as wozossinbeas eas at pis eatin organiza o mundo social, categorias nao s6 de parentesco, evi- dentemente, mas também categorias mitico-rituais; (re)produzir ‘0 jogo e seus lances é (re)produzir as condigbes de acesso a repro- ducdo social (e nao apenas sexualidade), garantida por uma tro- ca agonistica que visa a acumular estatutos genealégicos, nomes de linhagem ou de ancestrais, isto 6, capital simbélico, e portanto, poderes e direitos duradouros sobre pessoas: 0s homens produ- zem signos ¢ os trocam ativamente, como patceiros-adversét ‘unidos por uma relagao essencial de igualdade na honra, condigéo mesma de uma troca que pode produvzir a desigualdade na honra, isto 6, a dominagio — o que falta em uma visio meramente semiol6gica como a de Lévi-Strauss. A dissimetria é, pois, radical entre o homem, sujeito, e a mulher, objeto de troca; entre 0 homem, responsavel pela produgio e reproducio e seu senhor, €a mulher, produto transformado desse trabalho.?? Quando — como se dé na Cabilia — a aquisi¢ao do capital simbélico e do capital social constitu, de certo modo, a tinica for- ‘ma possfvel de acumulagao, as mulheres sio valores que € preciso ‘conservar 20 abrigo da ofensa e da suspeita; valores que, investi- dos nas trocas, podem produzir aliangas, isto é capital social e aliados prestigiosos, isto 6, capital simbélico. Na medida em que 0 valor dessas aliancas, e portanto o lucro simbélico que elas podem trazer, depende, por um lado, do valor simbélico das mulheres disponiveis para a troca, isto é de sua reputacao e sobretudo de sua castidade — constitulda em medida fetichista da reputacao ‘masculina e, portanto, do capital simbilico de toda a linhagem —, a honra dos irmaos e dos pais, que leva a uma vigilancia tdo cerra- 70. fs fori pod (ov devi, propésio de cada uma dos propos cca, ‘ossinaar © que et ditngie, por un Todo, dos tse vitrousinos (Come o fz, em tim rio pono, que me porecia palmer impart) e, por our lodo, deta 10 qual anise prima, sobre a de Gayle Rubin (The Troe ie Women, The Potol Economy of Sex, em Toward an Antropolagy of Women, New York, ‘Moniy Review Press, 1975) ue, pra lrrlvor em corto © opessdo das mube- tes, etna, com perspciva dierent de mitho,cguns pics da onde inoygural de Lav Sows, so me tio permit fazer jusigao estes ovores, enborafozando ‘er mithe “iereoae,sobreted, evtando exporae o parecer estar repetindo ov Felomando ondlves ds quoi me oponho da, quase parandica, quanto a dos esposos, é uma forma de lucro bem-compreendida. O peso determinante da economia de bens simbélicos, que, através do principio de divisao fundamental, organiza toda a per- cepsio do mundo social, impde-se a todo o universo social, ou seja, ndo 36 a economia da reproducao biolégica. E assim que se pode explicar por que, no caso da Cabilia como em muitas outras tradig6es, a obra propriamente feminina de gestagao e de ama- mentagao se vé quase que anulada em relacdo ao trabalho pro- priamente masculino de fecundagao. (Observe-se de passagem ‘que se, a partir de uma perspectiva psicanalitica, Mary O’Brien nao esté errada em ver na dominagio masculina o resultado do esforco dos homens para ultrapassar 0 fato de nao possuirem os meios de reprodugio da espécie e para restaurar a primazia da paternidade, dissimulando 0 trabalho real das mulheres na gesta- (Ao, ela se esquece de ligar este trabalho “ideolégico” a seus verda- deiros fundamentos, isto é, as presses da economia de bens sim- bolicos, que impde a subordinagao da reprodusao biol6gica as necessidades da reprodugao do capital simbélico.7! No ciclo da rocriagao, tanto quanto no ciclo agrario, a logica mitico-ritual privilegia a intervengao masculina, sempre enfatizada, por oca- sido do casamento ou do inicio dos trabalhos no campo, com ritos piiblicos, oficiais, coletivos, em detrimento dos periodos de gesta- s@o, tanto a da terra, durante o inverno, quanto a da mulher, que nao dio margem mais que a atos rituais facultativos e quase furti vos: de um lado, uma interven¢ao descontinua e extraordindria no curso da vida, ado arriscada e perigosa de abertura, que é solene- mente realizada — por vezes, como no caso do inicio das lavou- ras, publicamente, diante do grupo; do outro, uma espécie de pro- cesso natural e passivo de “enchimento”, de que as mulheres sio, no 0 agente, mas apenas o local, a ocasiao, o suporte, ou melhor, ue se localiza na mulher, como na terra, mas que nao exige da mulher mais que préticas técnicas ou rituais de acompanhamen- 71, M. O'Brien, The Polis of Reproduction, Londeus, Rouladge ond Kegon Pou, 1981 to,atos destinados a ajudar a natureza em trabalho (como arrancar ‘ervas, ou reuni-las em feixes, para alimento dos animais); com este fato, elas estao duplamente condenadas a permanecer ignoradas, principalmente pelo homens: seus atos, familiares, continuos, rotineiros, repetitivos e mondtonos, “humildes e féceis’, como diz. nosso poeta, s40 em sua maior parte realizados fora de vista, na obscuridade da casa ou nos tempos mortos do ano agraio.72 A divisao sexual esté inscrita, por um lado, na divisio das ati- vidades produtivas a que nés associamos a idéia de trabalho, assim como, mais amplamente, na divisio do trabalho de manu- tengao do capital social e do capital simbolico, que atribui aos homens o monopslio de todas as atividades oficiais, publicas, de representagao, e em particular de todas as trocas de honra, das tro~ cas de palavras (nos encontros quotidianos e sobretudo nas assembléias), trocas de dons, trocas de mulheres, trocas de desa- fios e de mortes (cujo limite éa guerra); ela estd inscrita, por outro lado, nas disposigdes (os habitus) dos protagonistas da economia de bens simbélicos: as das mulheres, que esta economia reduz a0 estado de objetos de troca (mesmo quando, em determinadas con- digoes, elas podem contribuir, pelo menos por procurasao, para orientar e organizar as trocas, sobretudo matrimoniais); as dos homens, a quem toda a ordem social, e em particular as sangoes positivas ou negativas associadas ao funcionamento do mercado de bens simbélicos, impde adquirir a aptidao e a propensio, cons- titutivas do senso de honra, de Jevar a sério todos os jogos assim. constituidos como sérios. ‘Ao descrever, como o fiz em outros trabalhos,” a propésito da divisdo do trabalho entre os sexos, a divisdo unicamente das ati- vidades produtivas, adotei, erroneamente, uma definigao etnocén- 72. fae ope ene © canine @ dasconlinve 4 teerconta, am nosso unves, re opcrigdo ent a otinos do taboo daréscafeinino eas “grondes deca" {ue 1 homens am gerl se orogor ff M. loud, F. de Sing, "Lorgonition omesiqus pouvot et négociion, Economie of Stonstique, 187, Pats, INSEE, 1926) 73.8. Bourdiu, Le Sons potiqu, op. cp. 358, trica de trabalho que eu proprio havia demonstrado,” por outro lado, que, sendo invengao histérica, é profundamente diferente da definigao pré-capitalista do “trabalho” como exercicio de uma funcio social que se pode dizer “total”, ou indiferenciada, ¢ que engloba atividades que nossas sociedades considerariam como nao produtivas, porque desprovidas de sango monetéria: é 0 caso, na sociedade cabila e na maior parte das sociedades pré- capitalistas, mas também da nobreza do Ancien Régime e nas clas- ses privilegiadas das sociedades capitalistas, de todas as praticas direta ou indiretamente orientadas para a reprodugao do capital social e do capital simbélico, como o fato de negociar um casa- mento, ou de tomar a palavra na assembléia dos homens entre os cabilas, ou, algures, o fato de praticar um esporte refinado, de ter um sald, de dar um baile ow inaugurar uma instituigao de carida- de. Ora, aceitar aquela definigdo mutilada representa impedir-se de apreender completamente a estrutura objetiva da divisao sexual das “tarefas” ou dos encargos, que se estende a todos os dominios da pratica e, principalmente, as trocas (com a diferenca entre as trocas masculinas, publicas, descontinuas, extraordind- rias e as trocas femininas, privadas, ow até secretas, continuas e rotineiras) e as atividades religiosas ou rituais, em que se obser- vam oposigdes do mesmo principio. Este investimento primordial nos jogos sociais (illusio), que torna o homem verdadeiramente homem — senso de honra, viri- lidade, manliness, ou, como dizem os cabilas, “cabilidade” (thak- baylith) —, & 0 principio indiscutido de todos os deveres para consigo mesmo, o motor ou mével de tudo que ele se deve, isto é, que deve cumprir para estar agindo corretamente consigo mes- ‘mo, para permanecer digno, a seus proprios olhos, de uma certa idéia de homem. f, de fato, na relacao entre um habitus construi do segundo a divisao fundamental do reto e do curvo, do apruma- do € do deitado, do forte e do fraco, em suma, do masculino e do 7a. CEP. Bowrde, Hoval ot rovalours en Arie, Pisa Hoye, Moston, 1969, @ ‘Algivie 60, Por, Esitons de Mit 1977. feminino, e um espaco social organizado segundo essa divisao, que se engendram, como igualmente urgentes, coisas a serem fei- tas, os investimentos em que se empenham os homens e as virtu- des, todas de abstengao e abstinéncia, das mulheres. Assim, o ponto de honra, essa forma peculiar de sentido do jogo que se adquire pela submissao prolongada as regularidades as regras da economia de bens simbdlicos, é o principio do siste- ma de estratégias de reprodueao pelas quais os homens, detento- res do monopélio dos instrumentos de producao e de reproducao do capital simbélico, visam a assegurar a conservagio ou 0 au- ‘mento deste capital: estratégias de fecundidade, estratégias matri- moniais, estratégias educativas, estratégias econdmicas, estraté- gias de sucessio, todas elas orientadas no sentido de transmissio, dos poderes e dos privilégios herdados.75 Necessidade da ordem simbélica tornada virtude, ele é produto da incorporagao da ten- dncia da honra (isto é, do capital simbélico possuido em comum, por uma linhagem, ou por uma “casa’, como € 0 caso em Bearn e nas familias nobres da [dade Média, ou além dela) de se perpetuar através da agao dos agentes, ‘As mulheres s40 excluidas de todos os lugares ptiblicos (assembléia, mercado), em que se realizam os jogos comumente considerados os mais sérios da existéncia humana, que sio os jogos da honra. E excluidas, se assim podemos dizer, a priori, em nome do principio (técito) da igualdade na honra, que exige que 6 desafio, que honra quem o faz, s6 seja vilido se dirigido a um homem (em oposisao a uma mulher) e a um homem honrado, capaz de dar uma resposta que, por representar uma forma de reconhecimento, ¢ igualmente hontosa. A circularidade perfeita do processo indica que se trata de uma partilha arbitedria 75, Sabre igosdo ene @hona # or eotégias moimoniis © de sucesso, pode: se ler: P.Bourdiu, “Célbo tcondiion paysonre”, Eudes rie, 5, obrisetom- bro 1962, pp. 32136; “les sotésiae matimenilos dos le astime dot sctgios e copodcton, Annales, 45, jhootbro 1972, pp. 1.1051.127; ¥. Cada, Hanna a rations sociales on languedce (1715-1780), Pa, Plon, 1974, pp. 17-18; 8. A. Nye, Masculinity and Male Codes of Honor in Modern France, New Yotk, Oxford Univesity Pes, 1993, ViritiDADe € VIOLENCIA Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socializagao que tende a diminu(-las, a negé-las, fazem a aprendizagem das virtu- des negativas da abnegacao, da resignagao e do siléncio, os ho- mens também estao prisioneiros e, sem se aperceberem, vitimas, da representagio dominante. Tal como as disposigbes & submis- so, as que levam a reivindicar e a exercer a dominagao nao esto inscritas em uma natureza e tém que ser construidas ao longo de todo um trabalho de socializagao, isto &, como vimos, de diferen- ciagao ativa em relacao ao sexo oposto. Ser homem, no sentido de vir, implica um dever-ser, uma virtus, que se impde sob a forma do “Gevidente por si mesma’, sem discussao: Serielhante a nob: 22, a honra — que se inscreveu no corpo sob forma de um con- junto de disposig6es aparentemente naturais, muitas vezes visiveis nna maneira peculiar de se manter de pé, de aprumar o corpo, de erguer a cabega, de uma atitude, uma postura, as quais correspon- de uma maneira de pensar e de agir, um éthos, uma crenga ete. — governa o homem de honra, independentemente de qualquer pressdo externa, Ela dirige (no duplo sentido do termo) seus pen- samentos e suas préticas, tal como uma forga (“é mais forte que ele”) mas sem o obrigar automaticamente (ele pode furtar-se € nao estar a altura da exigéncia); ela guia sua ago tal qual uma necessidade I6gica (“ele nao pode agir de outro modo”, sob pena de renegar-se), mas sem se impor a ele como uma regra ou como © implacavel veredicto légico de uma espécie de célculo racional. Essa forga superior, que pode fazé-lo aceitar como inevitaveis, ou “bvios, isto é, sem deliberagao nem exame, atos que seriam vistos Pelos outros como impossiveis ou impensaveis, é a transcendén- cia social que nele tomou corpo e que funciona como amor faty amor do destino, inclinagao corporal a realizar uma identidade constitufda em esséncia social e assim transformada em destino. A nobreza, ou a questo de honra (nif), no sentido do conjunto de aptidoes consideradas nobres (coragem fisica e moral, generosi- dade, magnanimidade etc.), 6 produto de um trabalho social de nominagio e de inculcagao, ao término do qual uma identidade social instituida por uma dessas “linhas de demarcagao mistica’, conhecidas e reconhecidas por todos, que 0 mundo social dese- nha, inscreve-se em uma natureza biol6gica ese torna um habitus, lei social incorporada. O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensio e contensio permanentes, levadas por vvezes a0 absurdo, que impde a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstincia, sua Virilidade.76 Na medida em que ele tem como sujeito, de fato, um coletivo —a linhagem ou a casa —, que esta, por sua vez, submetido &s exigéncias imanentes 2 ordem simbélica, 0 ponto de honra se mostra, na realidade, como um ideal, ou melhor, como um sistema de exigéncias que esta votado a se tornar, em mais de um caso, inacessivel. A virili- dade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidao ao combate e ao exercicio da violencia (sobretudo em caso de vinganga), 6, acima de tudo, uma carga. Em oposi¢ao & mulher, cuja honra, essencialmente negativa, s6 pode ser defendida ou perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” éaquele que se sente obrigado a estar altura da possibilidade que Ihe é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a gléria ea dis tingdo na esfera publica. A exaltagao dos valores masculinos tem sua contrapartida tenebrosa nos medos e nas angtistias que a fe- minilidade suscita: fracas e principios de fraqueza enquanto en- carnagdes da vulnerabilidade da honra, da h’urma (0 sagrado es- querdo feminino, oposto ao sagrado direito, masculino), sempre expostas a ofensa, as mulheres sdo também fortes em tudo que re- presenta as armas da fraqueza, como a asticia diabélica, thahray- 76: Em primaire ugar, plo nance 0 caso des sociedadas nate cficonos, ro plano ‘ewal coma o comprova, com leseminho de um formacduco reclhido nos enos 60, © recurso reqlenle e mu comm dos homens 2 ordsiocos. A iiidade &, de fot, eubmetda & prove do ume forma mais ou manos dlargada da jlgomano cle fhe, por ectido do ros de defsrordo de recimeasada, « tanbim ofewts dos conver femininan, que de mule marge ds coins sels ¥ aoe acon do Vilidade. & corda que wciu, toa ra Europa com nes Estodos Unidos, 0 apo ‘ecimert, em prncipos de 1998, da gilla Viogro ae, jntamente com inmerot ‘ction de pictropastas de médicos, que 0 omsedade a propésto das monies roves feos de willdade nada tom de potesarmante exc, mith, ea magia.”” Tudo concorre, assim, para fazer do ideal impossivel de virilidade 0 principio de uma enorme vulnerabili- dade. £ esta que leva, paradoxalmente, ao investimento, obrigat6- rio por vezes, em todos os jogos de violéncia masculinos, tais como em nossas sociedades os esportes, e mais especi que sto mais adequados a produzir os signos visiveis da masculi- nidade” e para manifestar, bem como testar, as qualidades ditas viris, como os esportes de luta.?? ‘Como a honra— ou vergonha, seu reverso, que, como sabe- mos, & diferenca da culpa, é experimentada diante dos outros—, a Viriidade tem que ser validada pelos outros homens, em sua ver~ dade de violéncia real ou potencial, e atestada pelo reconhecimen- to de fazer parte de um grupo de “verdadeiros homens”. Intmeros rritos de instituigao, sobretudo os escolares ou militares, compor- tam verdadeiras provas de virilidade, orientadas no sentido de reforgar solidariedades viris. Priticas como, por exemplo, os estu- pros coletivos praticados por bandos de adolescentes — variante desclassificada da vista coletiva ao bordel, tao presente na memé- tia dos adolescentes burgueses —, tm por finalidade pOr os que 77. Como se pose ver na mito de origam, em que ele descolvio com estoelorSo © ‘sexo da mulher © © prazet (em recprciods} que ea The revlova,o homem 48 coco, nosso de oporieSes que 0 gam @ mulher, do lade da boots « dango ruidede (nya), anise tosis do antiie cabo (hab raymil, Sobre xo opesh 50, ver P. Boutdeu & A, Soyo, le Drocinement Lo crise de Fagrcuture radon nal en Alii, Por, sions de Mint, 1964, pp. 9092. 78. Ch. 8. W. Faso, Muscle: Confessions of an Unlikely Body Bult, New York Poseidon, 1981, © L Wocquon, “A Body to Big fo Fel in Moscone, 2 (0), pk marera 1994, pp. 7886, Loic Wocqvan isle, «com 2289, no paredexo do masce lnidode tol qua! 0 revel no bodybuilding’ “bla encrnigada, come dB. Gloss, arta. sentiment de wnerabiidods" «ro “process comple aon da qua sie oiclina §iglerodo #nscrto om um indvdoobiligo parkclar” 79. Aconangbo do habits jidaicoraicionol ns poles da Europ Cenk, am fos do stale XK, mosroae como uo iversdo ll do proceso de coneugdo do hab fusmasclino ta com elg 294i deer; recto exlcka oo culo da wolnci, mor m0 0m suas formes mai vaizadss, come o dle ov © espe, leva @ deoorzar ‘ot execs ios, sobetudo os als voles, for dos exercosinlacis © ‘prvas, que fovorcem o desenvohinerte de duposgses omar e“paiieor [com provadas poo aidade de esuprs a crinas de sang) no comunidade judo. V. Korady, "es just vilance sainiene”, Actes de le recherche an sciences sole. les, 120, dezembro 1977, pp. 33, estdo sendo testados em situagdo de afirmar diante dos demais sua Virilidade pela verdade de sua violéncia,® isto é, fora de todas as ternuras e de todos os enternecimentos desvirilizantes do amor, e manifestar de maneira ostensiva a heteronomia de todas as afir- magées da virilidade, sua dependéncia com relagao ao julgamen- to do grupo viril. Certas formas de “coragem’, as que s20 exigidas ou reconheci- das pelas forgas armadas, ou pelas policias(e, especialmente, pelas “corporagées de elite”), e pelos bandos de delingiientes, ou tam- ‘bém, mais banalmente, certos coletivos de trabalho — como as que, nos oficios da construgao, em particular, encorajam e pres- sionam a recusar as medidas de prudéncia ea negar ou a desafiar © perigo com condutas de exibigio de bravura, responsiveis por numerosos acidentes — encontram seu prinefpio, paradoxalmen- te, no medo de perder a estima ow a consideragao do grupo, de “quebrar a cara” diante dos “companheiros” e de ser ver remetido a categoria, tipicamente feminina, dos “fracos”, dos “delicados’, dos “mulherzinhas’, dos “veados”. Por conseguinte, o que chama- mos de “coragem” muitas vezes tem suas raizes em uma forma de covardia: para comprové-lo, basta lembrar todas as situagdes em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de dominagao, de exploragao ou de opressio baseou-se no medo “viril” de ser exclufdo do mundo dos “homens” sem fraquezas, dos que sio por vezes chamados de “duros” porque sio duros para com 0 préprio sofrimento e sobretudo para com o sofrimento dos outros — assassinos, torturadores e chefetes de todas as ditaduras ce de todas as “instituigdes totais”, mesmo as mais ordinarias, como as prisoes, as casernas ou os internatos —, mas, igualmente, os novos patroes de uma luta que a hagiografia neoliberal exalta e que, nao raro, quando submetidos, eles préprios, a provas de coragem corporal, manifestam seu dominio atirando ao desem- 120, A gosto ene ovirlidode o violéncio 6 expo na radio basen, que escrve 0 pins como ume oma. G. Poke, Bodies, Pleasures ond Poston: ‘Senoal Cure in Contemporary Bri Boson, Beacon Pres, 1991, p. 27). A corm loe50 6 também explicit ene. ponetcso for e.0dominocse p42). prego seus empregados excedentes. A virilidade, como se vé, é uma nogio eminentemente relacional, construida diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construida, primeira- mente, dentro de si mesmo. caPITULO I ANAMNESE DAS CONSTANTES OCULTAS A eescrigto etnotigica de um mundo socal, a0 mesmo tempo suificientemente distanciado para se prestar mais facilmente & objetivagao e inteiramente construfdo em torno da domina¢ao masculina, atua como uma espécie de “detector” de ‘tragos infinitesimais e de fragmentos esparsos da visio androcén- ‘rica do mundo e, por isso, como instrumento de uma arqueologia historica do inconsciente que, originariamente construfda, sem diivida alguma, em um estigio muito antigo e muito arcaico de nossas sociedades, permanece em cada um de nés, homem ou mulher. (Inconsciente hist6rico ligado, portanto, nao a uma natu- reza bioldgica ou psicol6gica, e a propriedades inscritas nesta natureza, como a diferenca entre os sexos segundo a psicanalise, masa um trabalho de construgao propriamente hist6rica — como aquele que visa a produzir o desligamento do menino do universo feminino —e, por conseguinte, suscetivel de ser modificado por ‘uma transformagio de suas condigées hist6ricas de producto.) E preciso, portanto, comesar desligando-nos de tudo aquilo que o conhecimento do modelo acabado do “inconsciente” androcéntrico permite detectar e compreender nas manifestagoes do inconsciente que é 0 nosso, e que se entrega ou se trai, em relances, nas metéforas do poeta ou nas comparagdes familiares, destinadas, por sua evidéncia mesma, a passar despercebidas. A experiéncia que um leitor desprevenido pode ter das relagoes de ‘oposigao ou de homologia que estruturam as priticas (sobretudo as rituais) e as representagbes da sociedade cabila — gragas prin- ipalmente 20 diagrama destinado a dela oferecer uma visio de conjunto, totalmente ausente na prética indigena — pode ir de ‘um sentimento de evidéncia (que, se nele pensamos, nada tem de evidente e que repousa no fato de partilharmos desse mesmo inconsciente) a uma forma de desconcerto, a que pode seguir-se ‘uma impressio de revelac4o, ou melhor, de redescoberta, em tudo semelhante & que traz o inesperado necessério de certas metaforas posticas. E a familiaridade que ele pode muito rapidamente adquirir, tal como a que o etndlogo obteve, mais laboriosamente, antes dele, com cada uma das relagbes de oposigao e com a rede de relagoes de equivaléncia direta ou mediatizada que une cada uma delas a todas as demais em um si necessidade objetiva e subjetiva, nao é a que traz a aquisi¢ao de um ples saber, mas a que advém da reapropriagao de um conheci mento, ao mesmo tempo possuido e perdido desde sempre, que Freud, seguindo Platao, chamava de “anamnese” Mas essa anamnese nao se refere apenas, como em Plato, a contetidos eidéticos; nem apenas, como em Freud, a um processo individual de constituigao do inconsciente, no qual 0 aspecto social, sem chegar aestar excluido, reduz-se a uma estrutura fami liar genérica e universal, jamais caracterizada socialmente. Essa anamnese se alicerga na filogénese e na ontogénese de um incons- ciente a0 mesmo tempo coletivo e individual, trago incorporado de uma historia coletiva e de uma hist6ria individual que impoe a todos os agentes, homens ou mulheres, seu sistema de pressupos- tos imperativos — do qual a etnologia constréi a axiomética, potencialmente libertadora. trabalho de transformagao dos corpos, a0 mesmo tempo sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciador, que se rea~ liza em parte através dos efeitos de sugestao mimética, em parte através de injungoes explicitas, e em parte, enfim, através de toda a construgio simbdlica da visdo do corpo biologico (e em particu- lar do ato sexual, concebido como ato de dominagio, de posse), produz habitus automaticamente diferenciados e diferenciadores. ‘A masculinizacao do corpo masculino e a feminilizagao do corpo feminino, tarefas enormes e, em certo sentido, interminaveis que, sem diivida, hoje mais do que nunca, exigem quase sempre um gasto consideravel de tempo e de esforgos, determinam uma fema, conferindo-Ihe assim sua somatizagao da rela¢ao de dominagao, assim naturalizada. £ atra- ‘yés do adestramento dos corpos que se impdem as disposigoes mais fandamentais, as que tornam ao mesmo tempo inclinados e aptosa entrar nos jogos sociais mais favoraveis a0 desenvolvimen- to da virilidade: a politica, os negécios, a ciéncia etc. (A educacao priméria estimula desigualmente meninos e meninas a se engaja- rem nesses jogos e favorece mais nos meninos as diferentes formas da libido dominandi, que pode encontrar expressoes sublimadas nas formas mais “puras” da libido social, como a libido sciendi.!) ‘A MASCULINIDADE COMO NOBREZA Embora as condigdes “ideais” que a sociedade cabila oferecia as pulsdes do inconsciente androcéntrico tenham sido em grande par- teabolidas, ea dominagio masculina tenha perdido algo de sua evi- déncia imediata, alguns dos mecanismos que fundamentam essa dominagao continuam a funcionar, como a relagao de causalidade circular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espago social e as disposigdes que elas produzem, tanto nos homens como ngs mulheres. As injungdes continuadas, silenciosas e invisiveis, que ‘© mundo sexualmente hierarquizado no qual elas sio langadas Ihes dirige, preparam as mulheres, ao menos tanto quanto os explicitos apelos & ordem, a aceitar como evidentes, naturais e inquestiond- veis prescrigdes e proscrigées arbitrérias que, inscritas na ordem das coisas, imprimem.-se insensivelmente na ordem dos corpos. Embora o mundo hoje se apresente como que semeado de indicios e de signos que designam as coisas a serem feitas, ou ndo factiveis, desenhando, como que em pontilhado, os movimentos e deslocamentos possiveis, provaveis ou impossiveis, os “por fazer” 1. Deveiomes mencionar aqui fedos ax cbseragSex que cetom que, desde 0 mais ten infnclo, 0s cionas 360 objeto de expectovos clevas mulo darts 2. ‘undo sau s0x0« gue, em stage esoler, 0 renin Bo obo dem rokomento Privlegiode icbeae que ox professores hes dedicm rcs terpo, que 280 cis 9. fguiderente exgidos, mals roranente inerompidos @ poricpam mas aos dieu ses gros (0u 0s “por vir” propostos por um universo a partir daf social e economicamente diferenciado, tais indicios ou signos nao se diri- ‘gem a um agente qualquer, uma espécie de x intercambivel, mas especificam-se segundo as posigées e disposicdes de cada agente: eles se apresentam como coisas a serem feitas, ou que néo podem ser feitas, naturais ou impensiveis, normais ou extraordindrias, ‘para tal ou qual categoria isto 6, particularmente para um homem ou para wma mulher (e de tal ou qual condigao). As “expectativas coletivas’, como diria Marcel Mauss, ou as “potencialidades obje- tivas’, na expresso de Max Weber, que os agentes sociais desco- brem a todo instante, nada tem de abstrato, nem de teérico, mes- mo quando a ciéncia, para apreendé-las, tem que recorrer & estatis- tica, Elas estao inscritas na fisionomia do ambiente familiar, sob a forma de oposigao entre o universo piblico, masculino, e os mun- dos privados, femininos, entre a praca piiblica (ow a rua, lugar de todos os perigos) e a casa (jé foi intimeras vezes observado que, na Ppublicidade ou nos desenhos humoristicos, as mulheres esto, na maior parte do tempo, inseridas no espaco doméstico, & diferenga dos homens, que raramente se veem associados & casa e sdo quase sempre representados em lugares exdticos), entre os lugares desti- nados sobretudo aos homens, como os bares ¢ os clubes do univer- 0 anglo-saxio, que, com seus couros, seus méveis pesados, angu- Josos e de cor escura, remetem a uma imagem de dureza e de rude- za vir, eos espacos ditos “femininos’, cujas cores suaves, bibel6s e rendas ou fitas falam de fragilidade e de frivolidade. E, sem davida, no encontro comas “expectativas objetivas” que estdo inscritas, sobretudo implicitamente, nas posigbes oferecidas as mulheres pela estrutura, ainda fortemente sexuada, da divisdo de trabalho, que as disposigoes ditas “femininas”, inculcadas pela familia e por toda a ordem social, podem se realizar, ou mesmo se expandir, e se ver, no mesmo ato, recompensadas, contribuindo assim para reforcara dicotomia sexual fundamental, tanto nos car- 808, que parecem exigir a submissdo e a necessidade de seguranca, quanto em seus ocupantes, identificados com posigdes nas quais, encantados ou alienados, eles simultaneamente se encontram e se perdem. A logica, essencialmente social, do que chamamos de “yocagao”, tem por efeito produzir tais encontros harmoniosos entre as disposicbes e as posigdes, encontros que fazem com que as vitimas da dominacao simbélica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do termo) as tarefas subordinadas ou subalternas {que lhes s40 atribudas por suas virtudes de submissio, de gentile- 1, de docilidade, de devotamento e de abnegacio. ‘A libido socialmente sexuada entra em comunicagao com a instituigdo que lhe censura ou Ihe legitima a expressio. As “voca~ «bes” so sempre, por um lado, a antecipagao mais ou menos fan- tasiosa do que o posto promete (por exemplo, a uma secretéria, datilografar os textos) e do que ele permite (por exemplo, manter ‘uma relac3o maternal ou de seducio com o patrao). O encontro com 0 cargo pode ter um efeito de revelacio na medida em que autoriza e favorece, através das expectativas explicitas que ele encerra, certas condutas, técnicas,sociais, mas também sexuais ou sexualmente conotadas. © mundo do trabalho esté, assim, reple- to de pequenos grupos profissionais isolados (servigos de hospi- tal, gabinetes de ministérios etc.) que funcionam como quase- familias, nos quais o chefe do servigo, quase sempre um homem, cexerce uma autoridade paternalista, baseada no envolvimento afe- tivo ow na sedusao, e, a0 mesmo tempo, sobrecarregado de traba- Tho e tendo a seu encargo tudo que acontece na instituigio, ofere- ce uma protegao generalizada a um pessoal subalterno, principal- mente feminino (enfermeiras, assistentes, secretérias) assim enco- rajado a um investimento intenso, muitas vezes patolégico, na instituigao e naquele que a encarna. ‘Mas essas possibilidades objetivas se fazem lembrar também, de maneira bem concreta e bem sensivel, ndo apenas em todos os signos hierérquicos da divisio do trabalho (médico/enfermeira, chefe/secretaria etc.), bem como em todas a5 manifestagdes visi- veis das diferencas entre os sexos (atitude, roupas, penteado) e, mais amplamente, nos detalhes, aparentemente insignificantes, dos comportamentos quotidianos, que encerram inimeros ¢ imperceptiveis apelos a ordem. Assim, nos tablados das televi- 2, Sera recente araar aq fodor ot efi scilsdoqulo que os exsicat ‘agian come lncices do fominitzoeSo, Sobexe, por exonpl, gue 0 perspectiva de sbes, as mulheres esto quase sempre acantonadas nos papéis menores, que so outras tantas variantes da fungao de “anfitrias’, tradicionalmente atribuidas ao “sexo frégil”; quando elas néo estao a frente de um homem, a quem visam a valorizar e que joga muitas vezes, por meio de gracinhas ou de alusoes mais ou menos insistentes, com todas as ambigaidades inscritas na relagio “casa, elas tém dificuldade de se impor, ou de impor a propria palavra, e ficam relegadas a um papel convencionado de “anima- dora” ou de “apresentadora”. Quando elas participam de um debate ptiblico, elas tém que lutar, permanentemente, para ter ‘acesso a palavra e para manter a atengdo, e a diminuigdo que elas sofrem é ainda mais implacavel por nao se inspirar em mé vonta- de explicita e se exercer com a inocéncia total da inconsciéncia cortam-lhes a palavra, orientam, com a maior boa-fé, a um homem a resposta a uma pergunta inteligente que elas acabam de fazer (como se, enquanto tal, ela ndo pudesse, por definicao, vir de uma mulher). Esta espécie de negagao & existéncia as obriga, mui- tas vezes, a recorrer, para se impor, as armas dos fracos, que s6 reforcam seus esterestipos: 0 brilho, que acaba sendo visto como ccapricho sem justificativa ou exibigdo imediatamente qualificada de histérica; a seducdo que, na medida em que se baseia em uma forma de reconhecimento da dominagao, vem reforcar a relagao estabelecida de dominagao simbélica. Seria necessério enumerar todos 0s casos em que os homens mais bem- intencionados (a vio- lencia simbélica, como se sabe, nao opera na ordem das intengdes conscientes) realizam atos discriminatorios, excluindo as mulhe- res, sem nem se colocar a questo, de posigdes de autoridade, reduzindo suas reivindicagdes a caprichos, merecedores de uma TerinllasSe de ume profisdo redie suo debildode « presigio (FJ. C Tonhey, “Elects of Addonal Wamen Prolasionas on Rating of Occupational Presige and Desay, Jounal of Prsonaliy nd Social Paychology, 1974, 29, pp. 8668). E porim menos sabido que © vexrato enaica por a mesma eos, favo: recendo, por exempl, o aquisigao de um conju de dipsipes ue, sem exorem insritorsxgctomrie nos rogromes ois, s60inevleados de manera diva cf -M DynuGallo, Ecole des files. Quelle oration pour quel res aociux, Pais, LUHermaton, 1990, p27} Eobsarose, inv, que mogos tandem 0 50 soit ior nos especiodedes de ensne tena, em que ols S80 minartrios ff M Dun Bella, opt) palavra de apaziguamento ou de um tapinha na face,? ou entdo, ‘com intengao aparentemente oposta, chamando-as e reduzindo- as, de algum modo, a sua feminilidade, pelo fato de desviar a aten- ‘gdo para seu penteado, ou para tal ou qual traco corporal, ou de ‘usar, para se dirigir a elas, de termos familiares (o nome préprio) ou {ntimos(“minha menina’, “querida” etc.) mesmo em uma situacdo “formal” (uma médica diante de seus pacientes), ou tras tantas “escolhas” infinitesimais do inconsciente que, acu- mulando-se, contribuem para construir a situagio diminuida das mulheres e cujos efeitos cumulativos esto registrados nas estatis- ticas da diminuta representagao das mulheres nas posigdes de poder, sobretudo econdmico e politico. Realmente, nao seria exagero comparar a masculinidade a uma nobreza, Para convencer-nos disso, basta observar a légica, bem conhecida dos cabilas, do double standard, como dizem os anglo-sax0es, que instaura uma dissimetria radical na avaliagao das atividades masculinas e femininas. Além do fato de que o ho- mem nao pode, sem derrogacao, rebaixar-se a realizar certas tare- fas socialmente designadas como inferiores (entre outras razoes porque est exclufda a idéia de que ele possa realizé-las), as mes- mas tarefas podem ser nobres e dificeis quando sdo realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptiveis, faceis e fiiteis, quan- do sio realizadas por mulheres, como nos fuz lembrar a diferenga entre um cozinheiro e uma cozinheira, entre o costureiro ea cos- tureira; basta que os homens assumam tarefas reputadas femini- nas eas realizem fora da esfera privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e transfiguradas: “E.0 trabalho, observa Margaret, Maruani, que se constitui sempre como diferente segundo seja efetuado por homens ou por mulheres”. Se a estatistica estabelece {que as profissoes ditas qualificadas caibam sobretudo aos homens, ‘ao passo que os trabalhos atribufdos as mulheres sejam “sem qua- lificagao”, é, em parte, porque toda profissdo, seja ela qual for, vé- 3 nieve: abservodorcsregiarom o diame ene os homant #0 muares no ‘que Noncy Hensy chomou de “o politca de tue”, io 6, facade o a heqian io dos cons corporis (dar um opto no rot, pasar 0 bozo nos ombros oy a cin ot}) se de certo modo qualificada pelo fato de ser realizada por homens (que, sob este ponto de vista, s4o todas, por definicao, de qualidade).* Assim, do mesmo modo que a mais perfeita mestria da esgrima nao bastava para abrir a um plebeu as portas da nobre~ za de espada, do mesmo modo, as digitadoras, cuja entrada nas profissoes gréficas suscitou enormes resistencias por parte dos homens, ameacados em sua mitologia profissional do trabalho altamente qualificado, nao sao reconhecidas como tendo a mesma profissao que seus companheiros masculinos, do qual estdo sepa- radas apenas por uma simples cortina, se bem que realizem 0 mesmo trabalho: “Facam elas 0 que fizerem, as digitadoras sero datil6grafas e, portanto, sem qualificagao alguma. Fagam eles 0 gue fizerem, 0s revisores serio profissionais do livro e, portanto, muito qualificados”S E, depois de longas lutas das mulheres para fazer reconhecer suas qualificagbes, as tarefas que as mudangas tec nolégicas radicalmente redistribuiram entre os homens e as mulheres serdo arbitrariamente recompostas, de modo a empo- brecer o trabalho feminino, mantendo, decisoriamente, 0 valor, superior do trabalho masculino Vemos que o prinefpio cabila que quer que 0 trabalho da mulher, destinado a se efetivar na casa “como a mosca no leite, sem que nada aparesa fora’? fique conde- nado a permanecer invisivel continua a aplicar-se em um contexto «que parece ter-se modificado radicalmente; como o atesta também 0 fato de que as mulheres estao ainda muito comumente privadas do titulo hierarquico correspondente a sua fungio real. que 3 reaiza no vere motene dvanta ‘ getog, tem s0u equivalent no ilo do reproduro, com @oposicdo ee o tam po de prontiogb, om ave o hore dasenpenha um pope vo e deterninone, © fompo do gos cP. Bourdiu, le Sens pote, op cl, pp. 360362) 2 Poro not conrencenes dio, bots ler oenomante os cinco alumes de Use ces formes, digi por Gorges Duby e Michele Parc Ports, Pon, 1991, 1992}, manentemente, desde que existem homens e mulheres, e através da qual a ordem masculina se vé continuamente reproduzida através dos tempos. Em outros termos, uma “hist6ria das mulhe- res", que faz aparecer, mesmo a sua revelia, uma grande parte de constincia, de permanéncia, se quiser ser conseqiiente, tem que dar lugar, e sem divida o primeiro lugar, 8 historia dos agentes e das instituigdes que concorrem permanentemente para garantir essas permanéncias, ou seja, Igreja, Estado, Escola etc., cujo peso relativo e fungdes podem ser diferentes, nas diferentes épocas. Tal historia nao pode se contentar com registrar, por exemplo, a cexclusio das mulheres de tal ou qual profissdo, de tal ou qual car- reira, de tal ou qual disciplina; ela também tem que assinalar e levar em conta a reprodugao e as hierarquias (profissionais, disci- plinares etc.), bem como as predisposigoes hierrquicas que clas favorecem e que levam as mulheres a contribuir para sua propria exclusao dos lugares de que elas sao sistematicamente excludas.> A pesquisa histérica ndo pode se limitar a descrever as trans- formacées da condicio das mulheres no decurso dos tempos, nem ‘mesmo a relagao entre os géneros nas diferentes épocas; ela deve empenhar-se em estabelecer, para cada periodo, 0 estado do siste- ma de agentes e das instituigdes, Familia, Igreja, Estado, Escola ‘etc., que, com pesos e medidas diversas em diferentes momentos, contribuiram para arranicar da Histéria, mais ou menos completa- ‘mente, as relagdes de dominagao masculina. O verdadeiro objeto de uma histéria das relagdes entre os sexos 6, portanto, a historia das combinagdes sucessivas (diferentes na Idade Média e no sécu- lo XVII, sob Pétain no inicio dos anos 40 e sob de Gaulle depois, de 1945) de mecanismos estruturais (como os que asseguram a reprodugao da divisio sexual do trabalho) e de estratégias que, por meio das instituigdes e dos agentes singulares, perpetuaram, no curso de uma historia bastante longa, e por vezes & custa de ‘mudangas reais ou aparentes, a estrutura das relagdes de domina- 3. Foi a uma peqvena parle dani inens torfa que me dedi, aide meus pet rcirestabehos, tarde mostor come 0 sate escalreontbuia pra epraduie 2s lirengs,ndo epenas ante + eatgoros sci, mos lamb ene os goneos ‘do entre os sexos; a subordinacao da mulher podendo vir expres- sa em sua entrada no trabalho, como na maior parte das socieda- des pré-industriais, ou, ao contrario, em sua exclusao do trabalho ‘como se deu depois da Revolucao Industrial, com a separagdo entre o trabalho e a casa, com o declinio do peso econdmico das mulheres da burguesia, a partir dai votadas pelo puritanismo vitoriano ao culto da castidade e das prendas do lar, & aquarela e a piano, e também, pelo menos nos paises de tradigto catdlica, & pritica religiosa, cada vez mais exclusivamente femininat Em suma, ao trazer & luz as invariantes trans-historicas da relacdo entre os “generos’, a hist6ria se obriga a tomar como obje- to 0 trabalho historico de des-historicizagao que as produziu e reproduziu continuamente, isto é, 0 trabalho constante de dife- renciagao a que homens e mulheres nao cessam de estar submeti dos e que os leva a distinguir-se masculinizando-se ou feminil zando-se, Ela deveria empenhar-se particularmente em descrever ceanalisar a (re)construgio social, sempre recomegada, dos princi- pios de visao e de divisio geradores dos “géneros” e, mais ampla- mente, das diferentes categorias de préticas sexuais (sobretudo heterossexuais e homossexuais), sendo a propria heterossexuali- dade construfda socialmente e socialmente constituida como padrao universal de toda pratica sexual “normal’, isto 6, distancia- da da ignominia da “contranatureza”5 Uma verdadeira com- preensio das mudangas sobrevindas, nao s6 na condigdo das mulheres, como também nas relagdes entre 0s sexos, nao pode ser esperada, paradoxalmente, a nao ser de uma anélise das transfor- 4. V.L Balloagh, 8 Shon, S. Slovn, The Subordinated Sx, A History of Atiados toward Women, Athen (Go) locre, The Univer of Georgi Press, 1988 2"), 5. Sobemos,sobretudo grag oo liro de George Chouncey, Goy New Yor, que © ‘edvenlo de oporkde ere homostaoise hlresenuos algo muito recente © que {oi sem divido x depais do Sagynde Goer Munda qe oheterssowaldade ov @ homowenvaliode s inp como axl axle. A ai Inmet rom os ue ‘poncvam de um poreso moicline o une pareia fining, podendo homens dios *rermas"detor com um “elerinado® com @ conde de limor oo lodo i “mee ino” do vlog, O+“nvertdos" 0 19,04 homens que dss homens, ado tvom monsros# rojas efeminades, quo conscoram o regedi quando @ diigo ‘onte homostenioi hlrosianviss ofrmov mois earomente. ‘mages dos mecanismos e das instituigdes encarregadas de garan- tir a perpetuagio da ordem dos géneros. O trabalho de reprodugdo esteve garantido, até época recente, por trés instancias principais, a Familia, a Igreja e a Escola, que, objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. £, sem duivida, a familia que ‘abe o papel principal na reproducdo da dominacao e da visio ‘masculinass € na familia que se impde a experiéncia precoce da divisdo sexual do trabalho e da representacao legitima dessa divi- so, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. Quanto Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas a decéncia, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visio pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral familiarista, completamen- te dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dog- ma da inata inferioridade das mulheres. Ela age, além disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas histéricas do incons- ciente, por meio sobretudo da simbélica dos textos sagrados,* da liturgia e até do espaco e do tempo religiosos (marcado pela cor- respondéncia entre a estrutura do ano litirgico e a do ano agré- rio). Em certas épocas, ela chegou a basear-se em um sistema de ‘oposigdes éticas que correspondia a um modelo cosmolégico para justificar a hierarquia no seio da familia — monarquia de direito (6. CE NJ. Chodorow, ep. ot 7. Sobre © papel da igiea expanhla no perpeiostio de visio pessimist sobre as ‘rulheres, ids como responséves pla degtedagéo mora, portania merecedoros de tofrer pore o expiocdo de todos ot pecodos do mundo, ef W. A. Christin J, Visions. The Sponsh Republic andthe Reign of Chis, Berkeley, Univer of Califomic Press, 1997, Esa ico da axpogto ext mbm no certo da restvrovo operada pelo governe de Vichy, que se arma da rpresenlcto meisarcoica do tlhe © com apoio dos mubares, el como os proces espanks ue, no momento mao am gue corlnavam @mpurezafinino, explorovo os paquenes "sind: fos", que eram sobretedo mulheres, « wos vitSes milogrors (cf. F. Musl Dreyfus, Vichy et Bene fminin, Pris, Elitons du Sal, 1996) 8.CE J Maire, Mystique a onions. Eso! de psychanalyse socichsriqe, Paris, Editons du Co, 1997, divino baseada na autoridade do pai — e para impor uma vi do mundo social e do lugar que af cabe a mulher por meio de uma verdadeira “propaganda iconografica’® = Por fim, a Escola, mesmo quando jé liberta da tutela da Igreja, ‘continua a transmitir os pressupostos da representasao patriarcal (baseada na homologia entre a relagio homem/mulher ea relagdo adulto/crianca) e sobretudo, talvez, 0s que esto inscritos em suas préprias estruturas hierarquicas, todas sexualmente conotadas, entre as diferentes escolas ou as diferentes faculdades, entre as di ciplinas (“moles” ou “duras” — ou, mais préximas da inquietagao mitica original, “ressecantes”), entre as especialidades, isto & entre as maneiras de ser e as maneiras de ver, de sever, de se repre- sentarem as prOprias aptiddes e inclinagdes, em suma, tudo aqui- Jo que contribui para tragar nao s6 0s destinos sociais como tam- bém a intimidade das imagens de si mesmo.1® De fato, é toda a cultura académica, veiculada pela instituigao escolar, que, em suas variiveis tanto literdrias ou filoséficas quanto médicas ou juris cas, nunca deixou de encaminhar, até época recente, modos de pensar e modelos arcaicos (tendo, por exemplo, o peso da tradi- ‘40 aristotélica que faz do homem o principio ativo e da mulher 0 elemento passivo) ¢ um discurso oficial sobre o segundo sexo, para 0 qual colaboram teélogos, legistas, médicos e moralistas;, discurso que visa a restringir a autonomia da esposa, sobretudo em matéria de trabalho, em nome de sua natureza “pueril”¢ tola, cada época valendo-se para tal dos “tesouros” da época anterior (por exemplo, no século XVI os fabliawx em Iingua vulgar ou as 0 9. GES. F Mathews Greco, Ange ov dablesse. La représenain dela forme oo Xs, Pais, Flammarion, 1991, p. 387. “Os mos de comunicogéo esto sem- pro em mos do sexo foe: ives, imagens @ vrmSes s50 composts, devenhados, Ceclamades por omens, 09 posto que 8 murs &velodo, por sa flo de ins ‘ie memo, o acest &culura e ao sober eer" (6. 327). 10. Foderseio rior desl eccasBo dos formas expecicas que esse o domine «0 mos ring ear 0 que ela pode ede oporenioree abst, se {undo Tor Moi em suo andle dos reprosentodase dos cosaficogbes ecole, oor vie dos qi inluénia de Sore se imps 2 Simone de Boowoi(l.T. Mol, Simone {Se Boowrsr. The Making ofan local Woman, Cambridge, Blackwall, 1994; eP Seven, "Apolgie pour une ferme range”, prefio do lira de Moi, Simone de Beco. Colts dune ielcele, Paris, Diderot Ee, 1995, pp VIX, dissertagoes teolégicas em latim).!1 Mas ela é ao mesmo tempo, ‘como veremos, um dos principios mais decisivos da mudanga nas relagdes entre os sexos, devido as contradigdes que nela ocorrem e as que ela propria introduz. Para terminar este recenseamento dos fatores institucionais da reproducao da divisto dos géneros, terfamos que levar em con- ta 0 papel do Estado, que veio ratificar e reforgar as prescrigdes e as proscrigdes do patriarcado privado com as de um patriarcado piiblico, inscrito em todas as instituigdes encarregadas de gerir e regulamentar a existéncia quotidiana da unidade domeéstica. Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas e autoritérios (como a Franga de Pétain ou a Espanha de Franco), realizacbes acabadas da visio ultraconservadora que faz da familia patriarcal © principio e modelo da ordem social como ordem moral, funda- mentada na preeminéncia absoluta dos homens em relagio as mulheres, dos adultos sobre as criancas e na identificacao da moralidade com a forga, da coragem com o dominio do corpo, lugar de tentagbes e de desejos,!? os Estados modernos inscreve- ram no direito de familia, especialmente nas regras que definem 0 estado civil dos cidadaos, todos os principios fundamentais da visio androcéntrica.'3 E a ambighidade essencial do Estado con- siste, por um lado, determinante, no fato de que ele reproduz em sua estrutura mesma, com a oposigao entre os ministérios finan- TT. A medina oleecey, oto seule XN, juntos anotmins @ filigias * pore 0 ceive do mulher lsabretido em relogSo & wa ord reprodtoral Cl. . Porat, Le Teval des appornces, ou les onsormations dy sores Rimini, XVID sil, Pre, Etions do Saul, 1984 12. Ch. G. Loko, Moral Police. Who! Conservatives Know tht librals Dot, CChicogo, The University of Chicago Press, 1998, 13, Seria nacessro lambrar ag, em dace, or policas de goto dor cores sob ot diorenosroginas polos. Nos rgines cuore, om primero lugar, com at grondesporodos mires cu os rornes ebicdes de gindico, om que te prea 2 fovofieulomotulna da eveugde corseradoro, boseads no cule do macho 1h dado, do comunidad moselina © do mara! hetice de esceze da tensdo(c. G Moste, Uimage de homme: Finvention dela vité moderne, Fors, Abbevile, 1997) ov o llores paternal # ragressva do governe de Vichy fe. F. Mul Dry, op. Ct Mas tomb, nor reginas damocriticos, sbiedo com epalica de Komi, ‘em pavar 0 que Rémi Lenoir choma de fomilariin (lB eno,“ fle, oe closet", em Aces do lo recherche on scioncetsocile, 113, jnho, 1996, Pp. 1620) indo attavés de toda ¢ ao ececaive ceiros e os ministérios de administragao, entre sua mao direita, paternalista, familiarista e protetora, e sua mao esquerda, voltada para o social, a divisdo arquetfpica entre o masculino e o femini no, ficando as mulheres com a parte ligada ao Estado social, nado 86 como responsaveis por, como enquanto destinatarias privile- giadas de seus cuidados e de seus servigos.!4 Essa evocacio do conjunto de instincias que contribuem para reproduzira hierarquia dos géneros deveria permitir esbocar 0 pro- grama de uma anilise histérica do que permaneceu e do que se transformou naquelas instancias; andlise esta que, por si s6, pode fornecer os instrumentos indispensaveis 4 compreensio tanto da- quilo que podemos constatar ter, ndo raro de forma surpreendente, permanecido constante na condicio das mulheres (e isto sem pre- cisar invocar a resisténcia e a m4-vontade masculina'$ ou a respon- sabilidade das proprias mulheres), quanto as mudangas visiveis ou invisiveis que tal condigdo experimentou em periodo recente (Os FATORES DE MUDANGA ‘A maior mudanga esté, sem dtivida, no fato de que a domina- ‘go masculina nao se impde mais com a evidencia de algo que é indiscutivel. Em razao, sobretudo, do enorme trabalho critico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas éreas do espago social, conseguiu romper 0 circulo do reforgo generalizado, esta evidencia passou a ser vista, em muitas ocasides, como algo que é preciso defender ou justificar, ow algo de que é preciso se defender ‘ousse justificar. O questionamento das evidéncias caminha pari pas- ‘su com as profundas transformagoes por que passou a condi¢do 1a, lemtvar a fing do Esodo come intumento de un ararccio melisizado do poder & ig do tndncio «fazer do poder masculno sabe as mulberes [oo cian 28) no Forilio o logar principal do dominogae maseulva lonbare difererconéo desta fangdo & afta o foo dabole, que pde em confilecaos feminists, sobre @ ‘questo de sober 2. Eta &, pare as mulheres, opestor oy libsrodor. 15. Flor ve, evdenomente, rade tem de nogigoncievele que ava atows do gre 90:30 de ores inci, tonto dento dos undades domésios quono no mundo ‘ce trobolho,« lombin atavis de opSersimbsieas emiconcterades, como as do “neomachsme ov de clo etea do “pliiomante corto. feminina, sobretudo nas categorias sociais mais favorecidas: € 0 caso, por exemplo, do aumento do acesso ao ensino secundério e superior, a0 trabalho assalariado e, com isso, & esfera piiblicas é também o distanciamento em relagdo as tarefas domésticas!6 e as fangoes de reprodiugio (relacionado com o progresso e 0 uso gene- ralizado de técnicas anticonceptivas e & redugo de tamanho das familias); €, sobretudo, o adiamento da idade do casamento e da procriacdo, a abreviacao da interrupcdo da atividade profissional por ocasiao do nascimento de um filho, e também a elevagao dos percentuais de divércio e queda dos percentuais de casamento.!7 De todos 0s fatores de mudanga, os mais importantes sio os que estio relacionados com a transformagio decisiva da funcio da instituigdo escolar na reprodugao da diferenga entre os géneros, tais ‘como o aumento do acesso das mulheres a instrugao e, correlativa- ‘mente, & independéncia econdmica e transformagao das estrutu- ras familiares (em conseqiiéncia, sobretudo, da elevacdo nos indi- es de div6rcios): assim, embora a inércia dos habitus, e do dircito, ‘ultrapassando as transformagbes da familia real, tenda a perpetuar ‘© modelo dominante da estrutura familiar e, no mesmo ato, o da sexualidade legitima, heterossexual e orientada para a reprodu¢ao; embora se organize tacitamente em relagio a ela a socializacao e, simultaneamente, a transmissdo dos principios de divisio tradicio- nais, 0 surgimento de novos tipos de familia, como as familias compostas e 0 acesso a visibilidade pablica de novos modelos de 16. Un for de mudonca que no pode sar ngligencio sam dvd, 0 miipico- ‘0 do intumaros enicoe dos bons do consumo, que conbuiram pore alivar (de ‘moneire clereciodo segundo 0 posed soil os fatlas domain como cosinor, evar, impor fazer compro te. ome 0 comprova ofa da que emp dedi ao rabsibo domésico diinuiyreguarmerte ono no Esrope quarto nes Etodos Unido, fondo 9 cidodo ds cians com algo mes dil de er imi frame quando prtihodo),epesar do aumento do nmero de caches eos maar 17... W Hofman, “Changes in Family Roles, Socilzoton ond Sex Diforncos”, ‘American Poychologi, 1977, 32, pp. 644857. No 6 posive lmbror, mesma em oveos laws, todas as madoncas que o oreo em mania dos muhares 8 adcor 60 secandéva superior pide determina, robrabido nos campos police @eigixe, ‘2 fombim om todas as pofiasesforgosamertefiniizodos. Cio simpasment, © {ivi de example, os movimartos, depo inleiromente nova, que se ovlodeoninaram “oordenorées" fe. D. Kergat fd] as nirmvas ot lou eaordination, 1988-1989, Por, ame, 1992) sexualidade (sobretudo os homossexuais), contribuem para que- brar a déxa e ampliar o espago das possibilidades em matéria de sexualidade. Do mesmo modo, e mais banalmente, o aumento do iiimero de mulheres que trabalham nao pode deixar de afetar a divisto de tarefas domésticas e, a0 mesmo tempo, os modelos tra- dicionais masculinos e femininos, acarretando, sem dtivida, conse- qiéncias na aquisigao de posigdes sexualmente diferenciadas no seio da familia: pode-se, assim, observar que as filhas de maes que trabalham tém aspiracdes de carreira mais elevadas e so menos apegadas a0 modelo tradicional da condigdo feminina.16 Mas uma das mudangas mais importantes na condiglo das mulheres e um dos fatores mais decisivos da transformagio dessa condigao é, sem sombra de diivida, 0 aumento do acesso das jovens ao ensino secundério e superior que, estando relacionado com as transformag6es das estruturas produtivas (sobretudo 0 desenvolvimento das grandes administragdes piblicas ou priva- das e das novas tecnologias sociais de organizagao de quadros), Jevou a uma modificacdo realmente importante da posiao das mulheres na divisio do trabalho: observa-se, assim, um forte aumento da representagio de mulheres nas profissdes intelectuais ow na administragao e nas diferentes formas de venda de servigos simbélicos (jornalismo, televisio, cinema, rédio, relagoes publi- cas, publicidade, decoragao) e também uma intensificagao de sua participacao nas profissoes mais proximas da definigao tradicio- nal de atividades femininas (ensino, assisténcia social, atividades paramédicas). Apesar disso, as diplomadas encontraram sua prin- cipal oferta de trabalho nas profissdes intermedidrias de nivel médio (quadros administrativos de nivel médio, técnicos, mem- | bros do corpo médico e social etc.), mas continuam vendo-se pra- | ticamente excluidas dos cargos de autoridade e de responsabilida- de, sobretudo na economia, nas finangas e na politica. ‘As mudangas visiveis de condigdes ocultam, de fato, a perma- néncia nas posigdes relativas: a igualizagto de oportunidades de T8.LW. Hallinan, or ct acesso e indices de representagio nao deve mascarar as desigualda- des que persistem na distribuigdo entre os diferentes niveis escola- res e, simultaneamente, entre as carreiras possiveis. Em nimero maior que 0s rapazes, quer para obtengao do bacharelado, quer nos estudos universitarios, as mogas esto bem menos representadas nos departamentos mais cotados, mantendo-se sua representacao inferior nos Departamentos de Ciéncias, ao passo que cresce nos Departamentos de Letras. Nos liceus profissionais elas permane- cem, igualmente, direcionadas sobretudo para as especializacoes tradicionalmente consideradas “femininas” e pouco qualificadas (como as de empregadas da coletividade ou do comércio, secreta- riado e profiss6es da dea de satide), ficando certas especialidades (mecanica, eletricidade, eletronica) praticamente reservadas aos rapazes. A mesma persisténcia de desigualdades se verifica nas clas- ses preparatorias para as grandes escolas cientificas e para essas ‘mesmas escolas, Nas faculdades de Medicina, a porgao de mulheres decresce 4 medida que se sobe na hierarquia das especialidades, algumas das quais, como a cirurgia, Ihes estao praticamente interdi- tadas, a0 passo que outras, como a pediatria, ou a ginecologia, Ihes estdo quase que reservadas, Como se vé, a estrutura se perpetua nos pares de oposigao homslogos as grandes divis6es tradicionais, com a oposicio entre as grandes escolas e as faculdades, ou, dentro des- tas, entre as faculdades de Direito e de Medicina e as faculdades de Letras, ou, dentro destas, entre a Filosofia ou a Sociologia e a Psicologia ou a Historia da Arte. E é sabido que o mesmo prinefpio de divisio é ainda aplicado, dentro de cada disciplina, atribuindo aos homens 0 mais nobre, o mais sintético, 0 mais te6rico e as mulheres 0 mais analitico, o mais pritico, 6 menos prestigioso.!9 A mesma logica rege 0 acesso as diferentes profissdes e as dife- rentes fosigdes dentro de cada uma delas: no trabalho, tal como na educagio, os progressos das mulheres nao devem dissimular os 19. Sobre dlevenga ente os sexor nos excohos flssfios, cf. Chaves Souk “Anotemie do goitphlosaphique", Actes de lo recherche ep sciences sciles, 109, ‘uvbr0 1995, pp. 3:28, avangos correspondentes dos homens, que fazem com que, como ‘em uma corrida com handicap, a estrutura das distancias se man- tenha.2” exemplo mais flagrante dessa permanéncia dentro da mudanga e pela mudanga € 0 fato de que as posigdes que se femi- nilizam estejam ou desvalorizadas (os operarios especializados so majoritariamente mulheres ou imigrantes) ou declinantes, com sua desvalorizagao duplicada, em um efeito de bola de neve, pela desersao dos homens, que ela contribuiu para provocar. ‘Além disso, embora seja verdade que encontramos mulheres em todos os niveis do espaco social, suas oportunidades de acesso (seus indices de representagdo) decrescem & medida que se atin- gem posicdes mais raras e mais elevadas (de modo que o indice real e potencial de feminilizacao é, sem diivida, melhor indicio da posigao e do valor ainda relativos das diferentes profissoes2!). Assim, em cada nivel, apesar dos efeitos de uma super-selegao, 'aigualdade formal entre os homens e as mulheres tende a dissimu- lar que, sendo as coisas em tudo iguais, as mulheres ocupam sem- pre as posicdes menos favorecidas. Por exemplo, sendo embora ‘verdade que as mulheres esto cada vez mais representadas em fun- es piiblicas, sio sempre as posigGes mais baixas e mais precérias ue lhes sao reservadas (elas sio particularmente numerosas entre as nao tituladas e os agentes de tempo parcial, e, na administragao local, por exemplo, véem ser-Ihes atribudas posigoes subalternas e ancilares, deassisténcia e cuidados— mulheres da limpeza, meren- deiras, crecheiras etc.).22 A melhor prova das incertezas do estatuto atribuido as mulheres no mercado de trabalho reside, sem diivida, no fato de que elas sfo sempre menos remuneradas que os homens, e mesmo quando todas as coisas sao em tudo iguais, elas obtém cargos menos elevados com os mesmos diplomas e, sobretudo, sd 720.8 Lagrave, "Une Emancipation sostvate.Edueatin ot wave des femmes ov Nie sil’, am G, Duby © M Pero fa), Histor des formes, Pari, len, 1992. 2. HY. Meynovd, “Lact ou dere cerca fa portcipotion das anes ox ston ‘et de powoir dant les entepises, Rowve rangle ds afloressciles, 420 année, I janitomarga 1988, pp. 67.87; “Ay coeut de Terrie EDF, lo lente monte dos ‘lscrcies dans lat poss de powair, Buln dhisove de lecic, Actes de lo jour del forme ot lees, 1993. . 22.CE M. Amin, Los Personnel eriviux, Pts Edsions du CNFPT, 1994, ‘as atingidas, proporcionalmente, pelo desemprego, pela preca- riedade de empregos e relegadas com mais facilidade a cargos de trabalho parcial — o que tem, entre outros efeitos, o de exclui-las quase que infalivelmente dos jogos de poder e das perspectivas de carreira.2 Dai, pelo fato de estarem ligadas ao Estado social e as posigoes “sociais” dentro do campo burocratico, bem como aos setores das empresas privadas mais vulnerdveis as politicas de “pre- carizagio”, tudo permite prever que elas serdo as principais vitimas da politica neoliberal, que visa a reduzir a dimensio social do Estado efavorecer a “desregulamentagao” do mercado de trabalho. As posicoes dominantes, que elas ocupam em nuimero cada vvez maior, situam-se essencialmente nas regides dominadas da rea do poder, isto é, no dominio da produgio e da circulagao de bens simbélicos (como a edicao, 0 jornalismo, a midia, o ensino). “Elites discriminadas”, segundo a expresso de Maria Antonia Garcia de Leén, elas tém que pagar sua eleigdo com um esforso’ constante no sentido de satisfazer as exigencias suplementares que Ihes sdo quase sempre impostas e de banir toda conotagao self de seu hexis corporal e de seus trajes.4 Para compreender adequadamente a distribuigao estatistca dos poderes e privilégios entre os homens e as mulheres, e sua evo- lugdo no decurso do tempo, é preciso levar em conta, simultanea- mente, duas propriedades que, & primeira vista, podem parecer contradit6rias. Por um lado, qualquer que seja sua posisao no} espaco social, as mulheres tem em comum o fato de estarem sepa-| radas dos homens por um coeficiente simblico negativo que, tal ‘como a cor da pele para os negros, ou qualquer outro sinal de per- tencer a um grupo social estigmatizado, afeta negativamente tudo que elas sd0 e fazem, e esti na propria base de um conjunto siste- ritico de diferensas homélogas: ha algo em comum, apesar da 23. Ck M Mawani, Fanzisaton ot dsciminotion. Eoluon de Focivié Rinne on Fronco’, !Onenofonsoloretprofesionnae, 1991, 20,3, po. 243256; “lemamps ‘ule pao", Le Monde des dbo, |, ousbro 1982, pp. 89; “Stott socio et mode empl, Rew ongise de sciolagi, XX, 1989, pp. 31-39: ): aor eA Rouge, “ot de polos de crite det femeas cadet cc de omnes la dion dons la phir Snomique",Roppor do Cane desde Femple, 97/90, 117 p. 24. CEH. Mevnaud, oc ‘enormidade da distincia, entre a mulher PDG*, que, para ter a for- ga de enfrentar a tensio ligada ao exercicio do poder sobre os homens — ot: a0 meio masculino—, tem que se massagear a cada manha, ea mulher OS" da metalurgia, que tem que buscar na soli- dariedade das “companheiras” um conforto contra as provagdes, ligadas ao trabalho em meio masculino, como o assédio sexual ou, simplesmente, a degradacio da propria imagem e da auto-estima infringidas pela feitira e sujeira impostas pelas condigoes de traba- Iho. Por outro lado, apesar das experincias especificas que as aproximam (como algo infinitamente pequeno da dominagio que io as intimeras feridas, as vezes subliminares, causadas pela ordem masculina), as mulheres continuam separadas umas das outras por diferengas econdmicas e culturais, que afetam, entre outras coisas, sua maneira objetiva e subjetiva de sentir e vivenciar a dominagio masculina— sem com isso anular tudo que esta liga- do diminuigao do capital simb6lico trazido pela feminilidade. Enfim, as proprias mudangas da condi¢2o feminina obede- ‘cem sempre a légica do modelo tradicional entre 0 masculino eo feminino. Os homens continuam a dominar o espago ptiblico e a rea de poder (sobretudo econdmico, sobre a produgao), a0 passo {que as mulheres ficam destinadas (predominantemente) ao espa- {50 privado (doméstico, lugar da reprodugo) em que se perpetua a logica da economia de bens simbdlicos, ou a essas espécies de extensoes deste espaco, que sto 0s servigos sociais (sobretudo hos- pitalares) e educativos, ou ainda aos universos da produgao sim- Délica (dreas literdria e artistica, jornalismo etc.). Se as estruturas antigas da divisio sexual parecem ainda determinar a direcao e a forma das mudangas, é porque, além de cestarem objetivadas nos niveis, nas carreiras, nos cargos mais ou ‘menos fortemente sexuados, elas atuam através de trés princfpios ppréticos que no s6 as mulheres, mas também seu proprio am- biente, poem em agao em suas escolhas: de acordo com o primei- ro destes prinefpios, as fungdes que convém as mulheres se situam. no prolongamento das fungdes domeésticas: ensino, cuidados, ser- + 0G — Abrevchia de Pbsidnt recov girérel (NT). + OS —Abrevahzs de Ouvierspaciasé NT) vigo; segundo, que uma mulher nao pode ter autoridade sobre homens e tem, portanto, todas as possibilidades de, sendo todas as, coisas em tudo iguais, ver-se preterida por um homem para uma posigao de autoridade ow de ser relegada a fungbes subordinadas, de auxiliar; o terceiro confere a0 homem © monopélio da manu- tengo dos objetos técnicos e das maquinas.25 _ Quando indagamos de adolescentes a respeito de sua expe- rigncia escolar, ndo podemos deixar de chocar-nos com 0 peso das incitagdes e injungoes, positivas ou negativas, dos pais, dos pro- fessores e sobretudo dos orientadores escolares, ou dos colegas, sempre prontos a lembrar-Ihes, de maneira tdcita ou implicita, 0 destino que Ihes ¢ indicado pelo principio da divisio tradicional: assim, grande ntimero delas observa como os professores das dis- ciplinas cientificas solicitam e estimulam menos as mogas que os Fapazes, e como os pais, tais como os professores ou os orientado- res, as desviam, “para seu bem’, de determinadas carreiras consi- deradas masculinas (“Quando seu pai Ihe diz: ‘voce nunca vai se dar bem nesta profissao} isto é estupidamente vexaminoso”), ain- dda mais porque eles encorajam seus irmaos a segui-las. Mas estas chamadas & ordem devem grande parte de sua eficacia ao fato de que toda uma série de experiéncias anteriores, sobretudo o espor- te, que é muitas vezes ocasido de se confrontar com a discrimina- sao, prepararam-nas para aceitar antecipadamente tais sugestoes, fazendo-as introjetar a visto dominante: elas “nao se sentem bem dando ordens” a homens, ou simplesmente trabalhando em uma funcdo tipicamente masculina. A divisio social de tarefas, inscrita na objetividade de categorias sociais diretamente visiveis, ea esta- tistica esponténea, através da qual se forma a representacio que cada um de nés tem do normal, ensinaram-lhes que, como disse ‘uma delas em uma dessas magnificas tautologias em que se enun- 25. Em ume litage de 335 carrot rogundo a percentogam de seus manbros que ‘0 mulheres, vemos aporecer, no primeta nivel dor coriosFeminnas, os profie SBes que tim par exe 0 cidor de criongat (Cid core, esno, da doengas fener its), de cata ovrehold cleaners and eerony de peioas (oc ions ¢ “domestcdade buroensien') (et B. R Bergman, The Econo ‘mie Emergence of Work, New Yo, Basi Boos, 1986, pp. 317 #0 ciam as evidéncias sociais, “hoje em dia, ndo se veem muitas mulheres fazendo 0 trabalho de homens.” Em suuma, através da experiéncia de uma ordem social “sexual- mente” ordenada e das chamadas & ordem explicitas que Ihes si0 dirigidas por seus pais, seus professores e seus colegas, e dotadas de principios de visto que elas proprias adquiriram em experiéncias de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de es- ‘quemas de percepcio e de avaliacio dificlmente acessiveis & cons- ciéncia, os principios da visto dominante que as levam a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é ea prever, de certo modo, o proprio destino, recusando as posigdes ou as carrei- ras de que estdo sistematicamente excluidas e encaminhando-se para as que Ihes sio sistematicamente destinadas. A constancia dos habitus que dat resulta 6, assim, um dos fatores mais importantes da relativa constancia da estrutura da divisio sexual de trabalho: pelo fato de serem estes principios transmitidos, essencialmente, corpo a corpo, aquém da consciéncia e do discurso, eles escapam, em grande parte, as tomadas de controle consciente e, simultanea- mente, as transformagdes ou 3s correcdes (como © comprovam as defasagens, nao raro observadas, entre as declaragdes eas praticas, ‘os homens que se dizem favorsveis 2 igualdade entre 0s sexos no participando mais do trabalho doméstico, por exemplo, que os outros); além disso, sendo objetivamente orquestrados, eles se confirmam e se reforgam mutuamente. ‘Além disso, sem que se atribuam aos homens estratégias onganizadas de resistencia, pode-se supor que a l6gica espontanea das operacdes de cooptagao — que tende sempre a conservar as propriedades mais raras dos corpos sociais, das quais a sex ratio2® ocupa o primeiro lugar — enraiza-se em uma apreensio confusa, e muito carregada de emogao, do perigo que a raridade, e portan- to 0 valor de uma posicao social, bem como, de algum modo, a Jdentidade sexual de seus ocupantes, corre coma feminilizacao. A 26. For vezes de manera “milagrso”, come ne coo dos recrtomento de profes. ret custares do eine superior que foram reaizados no Fronga nos anes 70, pore fener ace 00 afino de estdontes (cL P Bosedau, Home academics, op. ci pp. 171205, sbreido pp. 182-183} violéncia de certas reagdes emocionais contra a entrada das mulheres em tal ou qual profissdo é compreensivel, se virmos que as proprias posigdes sociais sao sexuadas, e sexualizantes, e que, ao defender seus cargos contra a feminilizagio, é sua idéia mais profunda de si mesmos como homens que os homens esto pre- tendendo proteger, sobretudo no caso de categorias sociais como 0 trabalhadores manuais, ou de profissdes como as das forgas armadas, que devem boa parte, sendo a totalidade, de seu valor, até mesmo a seus prOprios olhos, & sua imagem de virilidade.2” ECONOMIA DOS BENS SIMBOLICOS E ESTRATEGIAS DE REPRODUGAO ‘Mas um outro fator determinante da perpetuaclo das dife- rengas € a permanéncia que a economia dos bens simbélicos (do qual o casamento é uma pega central) deve a sua autonomia rela- tiva, que permite dominacao masculina nela perpetuar-se, aci- ma das transformagoes dos modos de produgdo econémica; isto, com 0 apoio permanente explicito que a familia, principal guar- dia do capital simbdlico, recebe das Igrejas e do Direito. O exerci cio legitimo da sexualidade, embora possa parecer cada vez mais liberto da obrigagao matrimonial, permanece ordenado e subor- dinado a transmissao do patrimOnio, através do casamento, que continua sendo uma das vias legitimas da transferéncia da rique- za. Como Robert A. Nye se esforca por demonstrar, as familias burguesas ndo deixaram de investir nas estratégias de reproducio, sobretudo matrimoniais, visando a conservar ou aumentar seu capital simbélico. E isto muito mais que as famflias do Ancien Régime, porque a manutengio de sua posigao depende estrita- mente da reprodugio de seu capital simbélico, através da produ- ‘40 de herdeiros capazes de perpetuar a heranca do grupo ea aquisicao de aliados de prestigio;8 e, se, na Franca moderna, as 27. Ch CL Wiliams, Gender Diferances ot Werk: Women and Men in Nonrad tional Occupations, Bertley, University of Colfemia Press 1988, Moruoni eC. Nese, 9p ct 28. A. Nye, op ct. 9 tombim M disposigoes da honra masculina continuam a reger as atividades publicas dos homens, do duelo a polidez ou ao esporte, é porque, tal como se dé na sociedade cabila, elas nao fazem mais que mani- festar e realizar a tendencia da familia (burguesa) de se perpetuat, por meio das estratégias de reprodugao impostas pela légica da economia de bens simbdlicos; légica que, sobretudo no universo da economia doméstica, manteve suas exigéncias especificas, dis- tintas das que regem a economia abertamente econdmica do mundo dos negécios. Excluidas do universo das coisas sérias, dos assuntos piiblicos, ¢ mais especialmente dos econémicos, as mulheres ficaram durante muito tempo confinadas ao universo doméstico e as ati- vidades associadas & reproducao biologica e social da descendén- cia; atividades (principalmente maternas) que, mesmo quando aparentemente reconhecidas e por vezes ritualmente celebradas, s6 0 sio realmente enquanto permanecem subordinadas as ativi- dades de produgao, as tinicas que recebem uma verdadeira sangio econdmica e social, e organizadas em relagdo aos interesses mate- riais e simbolicos da descendéncia, isto é, dos homens. E assim que ‘uma parte muito importante do trabalho domeéstico que cabe &s mulheres tem ainda hoje por finalidade, em diferentes meios, man- ter a solidariedade e a integragio da familia, sustentando relagdes de parentesco e todo 0 capital social com a organizagao de toda uma série de atividades sociais ordindrias, como as refeigoes, em que toda a familia se encontra,® ou extraordinérias, como as cerimé- nias e as festas (aniversérios etc.) destinadas a celebrar ritualmente 10s lacos de parentesco e a assegurar a manutengio das relagdes sociais e da projesdo social da familia, ou as trocas de presentes, de visitas, de cartas ou de cartes postais¢ telefonemas.2° 29, J6 vmos papel important ave tem a relegdo na vido do foi, fl como & ‘cxgoriza @ So, omy, encornosdo do “esp defanili,cxo desoporecimerto ‘coreg una do vida alta eda wnidade de vida domi 50. No cars da buguesa¢ da pequana burgusia dos Estados Unidos, et robaho ‘demande do capil vc domi , portant, dea nidede, cabo quote que terchsiemente& mulher, qua goronaincksie a manvanso de laces com os pare tes do morido ef M. dearer, “The Female Watld of Cords ond Holidays: Women, Families ond the Wedd of Kinship" Signs, 12, primavera 1987, pp. 410459; «sobre Esse trabalho doméstico passa, em sua maior parte, desperce- ido, ou mesmo malvisto (por exemplo, a dentincia permanente do prazer feminino com a “fofoca’, sobretudo por telefone...) e, quando ele se impoe ao olhar, ele é desrealizado, transferindo-o a0 plano da espiritualidade, da moral e do sentimento, o que faci lita seu cardter nao lucrativo e “desinteressado”, O fato de que 0 trabalho doméstico da mulher nao tenha uma retribuigao em dinheiro contribui realmente para desvalorizé-lo, inclusive a seus, proprios olhos, como se este tempo, nao tendo valor de mercado, fosse sem importincia e pudesse ser dado sem contrapartida, € sem limites, primeiro aos membros da familia, e sobretudo as ctiangas (j4 foi comentado que o tempo materno pode mais facil- ‘mente ser interrompido), mas também externamente, em tarefas de beneficéncia, sobretudo para a Igreja, em instituigdes de cari- dade ou, cada vez mais, em associagdes ou partidos. Nao raro con- finadas nessas atividades nao remuneradas, e pouco inclinadas, Por isso, a pensar em termos de equivaléncia entre o trabalho e 0 dinheiro, as mulheres estdo, muito mais que os homens, dispostas a beneficéncia, sobretudo religiosa ou de caridade, Do mesmo modo que, nas sociedades menos diferenciadas, clas eram tratadas como meios de troca, permitindo aos homens acumular capital social e capital simbolico através de casamentos — verdadeiros investimentos que permitiam instaurar aliangas ‘mais ou menos amplas e prestigiosas —, também hoje elas trazem uma contribuigdo decisiva & produgio e & reproducao do capital simbélico da familia, antes de mais nada expressando o capital sim- bolico do grupo doméstico com tudo que concorre para sua apa- © papel deverminawte des converts tlfricas ner robs: C. S. Ficher, “Genser and the Resdentel Telephone, 1890.19640, Techroogis of Secchi”, Seciologic! Forum, 3 (2), pinavera 1988, pp. 211.233) INSo powo dala de var ono elo da submindo 90% modelos daninanes © alo de av, foro no Fonga ‘quote nos Estodos Unidos, a5 ous tdics,copazes de se mosrorom excl tos no que uma do suas cies chomo de “a code tora” [ace fr hoor, uo concerto foda @ cangdo # @ disco, elpsondo mognifios rabalhos — ila ‘como ales, llntomente mais rics eras fcundos, mesmo do poto de vito ee 2, mos menos calor 6 isi, Ypicomeniemoseuine, do“ réncia — maquilagem, trajes, porte et.: dafficarem, por esse fato, classificadas do lado do parecer e do agradar." O mundo social funciona (em graus diferentes, segundo as 4reas) como um mer- cado de bens simbélicos dominado pela visio masculina: ser, quando se trata de mulheres, é, como vimos, ser-percebido, e per- cebido pelo olhar masculino, ou por um olhar marcado pelas categorias masculinas — as que entram em ago, mesmo sem se conseguir enuncié-las explicitamente, quando se elogia uma obra de mulher por ser “feminina’, ou, ao contrario, “nao ser em abso- lato feminina’. Ser “feminina” é essencialmente evitar todas as propriedades e praticas que podem funcionar como sinais de vi lidade; e dizer de uma mulher de poder que ela é “muito femini- na” nao é mais que um modo particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a este atributo caracteristicamente masculino que é 0 poder. A posigao peculiar das mulheres no mercado de bens simb6- licos explica o que ha de mais essencial nas disposigies femininas: se toda relagao social é, sob certos aspectos, 0 lugar de troca no qual cada um oferece a avaliagio seu aparecer sensivel, € maior para a mulher que para o homem a parte que, em seu ser-percebi- do, compete ao corpo, reduzindo-o ao que se chama por vezes de © “fisico” (potencialmente sexualizado), em relagao a proprieda- des menos diretamente sensiveis, como a linguagem. Enquanto que, para os homens, a aparéncia e os trajes tendem a apagar 0 corpo em proveito de signos sociais de posigao social (roupas, ‘ornamentos, uniformes etc.), nas mulheres, eles tendem a exalta- loea dele fazer uma linguagem de sedu¢ao. O que explica que 0 investimento (em tempo, em dinheiro, em energia) no trabalho de apresentagao seja muito maior na mulher, 11, Aap cabe um indo, que poder ps igniicanle, do poste derncil ‘es homens 6 dos mulhors nos vlogs de repro do copia smbSlico: nos Enodor Unidos, no grande buguetia, ha umo Wrdéacia @ dor nomes frncesas 6 thos, vies como objets da moda ede seducdo, co poss que o+rapazet, guar ides do nome de fora @ witlor dos aos desinados © perp, recebem romespréprios xcohides no etoque de names nig ertsouredos pa linhogem, Estando, assim, socialmente levadas a tratar a si proprias como objetos estéticos e, por conseguinte, a dedicar uma atencao cons- tante a tudo que se refere & beleza, a elegincia do corpo, das vestes, da postura, elas tém naturalmente a seu cargo, na divisio do traba- lho doméstico, tudo que se refere a estética e, mais amplamente, & gestdo da imagem publica e das aparéncias sociais dos membros da uunidade doméstica, dos filhos, obviamente, mas também do espo- so, que lhes delega muitas vezes a escolha de sua indumentéria. S40 também elas que assumem o cuidado ea preocupaco com a deco- ragdo na vida quotidiana, da casa e de sua decoracao interior, da parte de gratuidade e de finalidade sem fim que ai tem sempre lugar, mesmo entre os mais despossuidos (assim como as antigas hortas camponesas tinham um canto reservado as flores ornamen- tais, os apartamentos mais pobres das cidades operdrias tém seus vvasos de flores, seus bibelds e seus cromos). Direcionadas a gestdo do capital simbélico das familias, as mulheres sao logicamente levadas a transportar este papel para dentro da empresa, onde se lhes pede quase sempre para coorde- nar as atividades de apresentagio e de representacao, de recepa0 eacolhida (aeromoga, recepcionista, anfitria, guia turistico, aten- dente, recepcionista de congresso, acompanhante etc.), e também ‘a gestao dos grandes rituais burocriticos que, tais como os rituais domésticos, contribuem para a manutengdo e o aumento do capi- tal social de relagdes e do capital simbélico da empresa. Limite extremo de todas as espécies de servigos simbolicos que © universo burocratico exige das mulheres, os luxuosos clubes de hospedagem japoneses, para os quais as grandes empresas gostam de convidar seus quadros, oferecem, nao servicos sexuais, como ‘0s lugares de prazer comuns, mas servigos simbélicos altamente ersonalizados, com alusdes a detalhes da vida pessoal dos clien- tes e referéncias admirativas a sua fungdo ou profissio. Quanto ‘ais elevada for a posigao de um clube na hierarquia dos presti- gi0s e pregos, mais os servigos serdo particularizados e dessexuali- zados, e tendentes a fazer a entrega feminina parecer totalmente ‘gratuita, realizada por amor e nao por dinheiro; o que se dé cus- ta de um trabalho propriamente cultural de eufemizagao (o mes- ‘mo que impoe a prostituigdo nos hotéis e que as prostitutas con- sideram infinitamente mais penoso e custoso que as rapidas tro- cas sexuais da prostituicao de rua®2). A demonstragio de atengdes particulares e de artificios de sedugdo, entre os quais uma conver- sa refinada nao é um dos menores, podendo implicar certa provo- cacao er6tica, visa a dar a clientes que nao querem ser vistos como tais a impressdo de serem apreciados, admirados e até mesmo desejados ou amados por eles mesmos, por sta pessoa em sua sin- gularidade, e nao por seu dinheiro, e de serem muito importantes — ow, simplesmente, “de se sentirem homens”? Desnecessétio dizer que essas atividades de comércio simbdli- co, que so para as empresas 0 que as estratégias de apresentaglo sao para os individuos, exigem, para serem adequadamente reali- zadas, uma extrema atengio a aparéncia fisica e predisposigoes & sedugio que esto de acordo com o papel que, tradicionalmente, compete mais 4 mulher. E compreende-se que, de modo geral, se possa confiar as mulheres, por uma simples extensio de seu papel, tradicional, fungdes (na maior parte das vezes subordinadas, embora a 4rea cultural seja uma das tinicas em que elas podem ‘ocupar cargos de direcdo) na produgdo ou no consumo de bens ¢ servigos simbélicos, ou, mais precisamente, sinais de distingao, que vao dos produtos ou servigos de estética (cabeleireiras, esteti- cistas, manicuras etc.) & alta costura ou & cultura erudita, Respon- sdveis dentro da unidade doméstica pela conversio do capital eco- némico em capital simbélico, elas tendem a entrar na dialética permanente da pretensio e da distingao, 4 qual a moda oferece tum de seus campos prediletos e que é também o motor da vida cultural, com o movimento permanente de ultrapassagem e de escalada simbélicas. As mulheres da pequena burguesia, que, 32. CLC. Haigard e L, Fiatod, Bockeets, Prostiuon, Money and love, Corr bridge, Poliy ress, 1992, 23, CHA Alison, Nighwerk Plouur and Corporate Marculialy ao Tolyo Hostess Cb, Chicago, Univer of Chicago Press, 1994 como se sabe, levam a extremos a atengdo aos cuidados com o corpo ou com a aparéncia fisica™e, por extensao, a0 cuidado com a respeitabilidade ética e estética, sdo as vitimas privilegiadas da dominagao simbélica, mas também os instrumentos mais ade- quados para modificar seus efeitos em relagao as categorias domi- nadas. Marcadas pela aspiragdo de se identificarem com os mode- Jos dominantes — como 0 comprova sua tendéncia & hipercorre- ‘a0 estética e lingtistica —, elas estao particularmente inclinadas a se apropriarem, a qualquer prego (isto é, na maior parte das vezes, a crédito), das propriedades distintivas, por serem as que distinguem os dominantes, ea contribuirem para sua imperativa divulgagdo em favor, sobretudo, do poder simbélico circunstan- cial, que pode assegurar a seu proselitismo de recém-convertidas ‘uma posigao no aparelho de producao e de circulacio dos bens culturais (por exemplo, em um jornal feminino).%5 Tudo se passa, entdo, como se o mercado de bens simbélicos, ao qual as mulhe- res devem as melhores provas de stia emancipagao profissional, 6 concedesse a essas “trabalhadoras livres” da producio simbolica ‘uma aparente liberdade visando a melhor obter delas uma sub- missio diligente e uma contribuicao para a dominagao simbélica, ‘que se exerce através dos mecanismos da economia de bens sim- bolicos e dos quais elas sao, igualmente, as vitimas prediletas. A intuigZo desses mecanismos, que esté, sem ditvida, a base de cer- tas estratégias de subversao propostas pelo movimento feminista, como defesa do natural look, deveria estender-se a todas as situa~ es em que as mulheres podem crer, e fazer crer, que elas exercem as responsabilidades de um agente que se pée em aio no momento mesmo que elas se véemn reduzidas na condigao de ins- trumentos de exibigao ou de manipulacao simbdlicas. 134. CEP. Bourdieu, Lo Distinction. Crtque sociale du jgemen! Poi, Elion de ‘Miaut, 1979, pp. 226229, 35. Nicola Wooley iggatolarece ua desersd0 exemplar de une fame porcig mmotica de proeliismo eulural no bote da mao-de-bra fominino em seu lo CChoramote Coptlim (Chicago, Univerty ol Chicago Press, 1988) A FORGA DA ESTRUTURA Assim, uma apreensto verdadeiramente relacional da relaa0 de dominagao entre os homens e as mulheres, tal como ela se esta- belece em todosos espagose subespagos sociais, ito 6, ndo s6 na fami- lia, mas também no universo escolar e no mundo do trabalho, no universo burocritico e no campo da midia, leva a deixar em peda- 0s a imagem fantasiosa de um “eterno feminino’, para fazer ver ‘melhor a permanéncia da estrutura da relagao de dominagao entre os homens eas mulheres, que se mantém acima das diferengas subs- tanciaisde condigio, ligadas aos momentos da historia es posigoes no espaco social. Esta constatacao da consténcia trans-histérica da relagao de domninacao masculina, longe de produzir, como por vezes se finge temer, um efeito de des-historicizagao, e portanto de natu- ralizagio, obriga a reverter a problemética ordindria, fundamenta- da na constatagao das mudangas mais visiveis na condicao das mulheres: na realidade, isto obriga a colocar a questo, sempre ignorada, do trabalho hist6rico, sempre renovado, que se desenvol- vve para arrancar da Hist6ria a dominagdo masculina e os mecani mos e as agdes hist6ricas; trabalho este que é responsivel por sa aparente des-historicizagao e que toda a politica de transformagao hist6rica tem que conhecer sob pena de se ver fadada a impoténcia. Ele obriga, enfim, e principalmente, a perceber a vaidade dos apelos ostentat6rios dos fildsofos “p6s-modernos” no sentido de “ultrapassar os dualismos”: estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos, nao nasceram de um simples feito de nominagao verbal e nao podem ser abolidos com um ato de magia performética — os géneros, longe de serem simples “papéis” com que se poderia jogar a vontade (a maneira das drag queens), estao inscritos nos corpos e em todo um universo do qual cextraem sua forga.% £ a ordem dos géneros que fundamenta a efi- 136 din Boer poece a Proprio reebor @ vise “clio” da ghnero que ola ‘area artes propor en Gander Treble quondoexcee: “The misapprehension about (ender perforate isis tha! gender ia che, o hat gander isa rl, that gor
© “amor puro’, esta arte pela arte do amor, é uma invengao histérica relativamente recente, como a arte pela arte, o amor puro da arte com o qual ele tem relagao, histérica e estrutural- mente-t Nao ha diivida de que s6 muito raramente o encontramos em sua forma mais perfeita e, limite quase nunca atingido — che- g8-se a falar no caso em “amor louco” —, ele é intrinsecamente frdgil, porque sempre associado a exigéncias excessivas, a “loucu- 12s” (no € por nele se investir demasiado que 0 casamento se ve tao fortemente arriscado ao div6rcio?), e sem cessar ameacado pe- la crise que suscita 0 retorno do célculo egoista ou em simples conseqiténcia da rotina. Mas ele existe suficientemente, apesar de 2, Gow se onde ondamenalneni 20 fla da wear o ovo come iam, como pro mea de goz0, sm lvor am conta ios pris Finalidodes. 53.Ct P. Soule, “Le cope ot ect, Actes de racharche en cence scile, 104, setenbeo 1994, p. 2 4.CEP. Boudiu, Les Rigor de far. Gand at acre dy champ liar, Pai, Eaton du Soul, 1992, tudo, sobretudo nas mulheres, para poder ser institufdo em nor- ‘ma, ou em ideal prético, digno de ser perseguido por ele mesmo e pelas experiéncias de excegto que ele traz. A aura de mistério que 0 cerca, sobretudo na tradigZo literéria, pode ser facilmente com- preendida de um ponto de vista estritamente antropolégico: basea- do na suspensio da luta pelo poder simbélico que a busca de reco- mhecimento e a tentagdo correlativa de dominar suscitam, 0 reco- nhecimento mittuo pelo qual cada um se reconhece no outro e 0 reconhece também como tal pode levar, em sua perfeita reflexivi- dade, para além da alternativa do egoismo ¢ do altruismo ou até da distingao do sujeito e do objeto, a um estado de fusto e de comunhao, muitas vezes evocado em metéforas proximas as do mistico, em que dois seres podem “perder-se um no outro” sem se perder. Conseguindo sair da instabilidade e da inseguranga carac- teristicas da dialética da honra que, embora baseada em uma pos- tulagto de igualdade, esta sempre exposta a0 impulso do domina- dor da escalada, 0 sujeito amoroso s6 pode obter o reconhecimen- tode um outro sujeito, mas que abdique, como ele o fez, da inten- 0 de dominar. Ele entrega livremente sua liberdade a um dono que Ihe entrega igualmente a sua, coincidindo com ele em um ato de livre alienagao indefinidamente afirmado (através da repetiga0, sem redundancias, do “eu te amo”). Ele se vivencia como um cria~ dor quase divino que faz, ex nihilo, a pessoa amada através do poder que esta the concede (sobretudo 0 poder de nominagao, manifesto em todos os nomes tinicos e conhecidos apenas de ambos que os apaixonados se dio mutuamente ¢ que, como em uum ritual inicidtico, marcam um novo nascimento, um primeiro comego absoluto, uma mudanga de estatuto ontolégico); mas um criador que, em retorno e simultaneamente, vé-se, & diferenga de uum Pigmaliao egocéntrico e dominador, como o criador de sua criatura Reconhecimento mittuo, troca de justificagoes de existéncia e de razies de ser, testemunhos reciprocos de confianga, signos, todos, da total reciprocidade que confere ao circulo em que se encerra a diade amorosa, unidade social elementar, indivisivel e dotada de uma poténcia autérquica simbélica, 0 poder de rivalizar vitoriosamente com todas as consagragdes que ordinariamente se pedem as instituigdes e aos ritos da “Sociedade”, este substituto mundano de Deus 5, Sabre ofogSe proponent eolégiopotica do iralticde« ge sus rs, verP Boutdiau, Méhttons posalenes op. cit, pp. 279288) CONCLUSAO A, civaigagao da andtsecientitica de uma forma de dominacao tem necessariamente efeitos sociais, mas que podem ser de sentidos opostos: ela pode reforcar simbolicamente a dominacao, quando suas constatagdes parecerem retomar ou recortar 0 discurso dominante (cujos veredictos negativos assu- ‘mem muitas vezes os contornos de um puro registro comprovan- te), ou contribuir para neutraliz4-la, & maneira da divulgagao de ‘um segredo de Estado, favorecendo a mobilizagao das vitimas. Ela esté, portanto, exposta a toda sorte de mal-entendidos, mais féceis de serem revistos que de serem de antemao dissipados. Diante de tao dificeis condigdes de receped0, o analistaficaria tentado a simplesmente invocar sua boa-fé, se ndo soubesse que, em assuntos to sensiveis, esta é insuficiente; como 0 6, igualmente, a convicgao militante que inspira um sem-mtimero de escritos dedi- cados 4 condicao feminina (e que esté no principio do interesse por objetos até entdo ignorados ou negligenciados). Nao poderiamos, realmente, subestimar os riscos @ que esta exposto todo projeto cientifico que se deixa impor seu objeto por consideragdes externas, por mais nobres e generosas que sejam. As “boas causas” ndo podem servir de justificativas epistemol6gicas e dispensar a andlise reflexiva, que por vezes obriga a descobrir que a prioridade conce- dda aos “bons sentimentos” nao exclui necessariamente o interes- se pelos Iucros associados as “boas lutas” (0 que nao significa, em absoluto, que, como jé fui obrigado a dizer de outras vezes, “todo projeto militante seja acientifico’, Se nao se trata de excluir da cién- cia, em nome de alguma utopica Wertfreiheit (“abstengao — de jui- 20 de valor”), a motivagio individual ou coletiva que suscita a exis- téncia de uma mobilizacao politica e intelectual, o que se pode dizer € que o melhor dos movimentos politicos esta fadado a fazer uma mi ciéncia e, em siltima instancia, uma mé politica, se nao conse- guir transformar suas disposigoes subversivas em inspiragao critica —e, antes de mais nada, em autocritica, - £, sem duivida, plenamente compreensivel que, para evitar ratificar 0 real aparentando registré-lo cientificamente, possamos vver-nos levados a deixar passar em siléncio os efeitos mais visivel- ‘mente negativos da dominagao e da exploragao: quer quando, por ‘um cuidado de reabilitagao, ou por medo de dar armas a0 racis- mo, que inscreve exatamente as diferengas culturais na natureza dos dominados e que autoriza a “culpar as vitimas’, poem-se entre parénteses as condigoes de existéncia de que elas sdo produto, ou se toma partido, mais ou menos consciente, de falar ern “cultura popular” ou, a propésito dos negros dos Estados Unidos, em “cul- tura da pobreza”; quer quando, como no caso de algumas femi nistas atuais, se prefere “deixar de lado a andlise da submissdo, por medo de que, ao admitir a participagao das mulheres na relago de dominagao, nao se eve a transferir dos homens para as mulhe- res a carga de responsabilidade”! De fato, contra a tentagio, apa- rentemente generosa e qual foram sacrificados tantos movimen- tos subversivos, de, em nome da simpatia, da solidariedade ou da indignagao, dar uma representacao idealizada dos oprimidos e dos estigmatizados, deixando passar em silencio os proprios ef tos da dominagao, principalmente os mais negativos, € preciso assumir 0 risco de parecer justificar a ordem estabelecida, trazen- do a luz as propriedades pelas quais os dominados (mulheres, operérios etc.) tais como a dominasao os fez, podem contribuir para sua propria dominagéo.? As aparéncias — ser preciso lem- 1-1 Benjarin, The Borde oF love, Prychooncls, Farnum ond he Problems of o- ‘mination, New York, Ponioon Books, 1988, p. 9. 2. De mesma modo, pram foot elas qu a dominagéo masclina exerce sobre ft habits motalinos 150 8, como alguns podardo cir, ter declpar os homens. E most que © exorg no sentido de baar as mulheres do domiorce, io 6, das | ets cbetnes reorporadas que 8 hes impSem, no pode ve dar serum efor (2 parael no seid de liborar os homes dssos mermor sutras cue fazem com {ue eles conttovom pare imple, sere engenensa brar mais uma vez? — sto sempre pela aparéncia, e a tentativa de desvelé-las se expe a suscitar ao mesmo tempo as condenagées indignadas do conservadorismo e as dentincias farisaicas do revo- lucionarismo, Particularmente lticida, exatamente por isso, quan- to aos efeitos provaveis da lucidez, Catharine MacKinnon deplo- rra, assim, que, quando ela se esforca por descrever a verdade das relagGes entre os sexos, acusam-na imediatamente de ser “condes- cendente para com as mulheres” (condescending to women), quan- do ela nao faz mais que dizer como “as mulheres sao objeto de condescendéncia” (women are condescended to). Acusacao ainda ‘mais provavel quando se trata de um homem, que evidentemente nada pode contrapor aquelas que se arrogam, em nome da auto- ridade absoluta que representa a “experiencia” da feminilidade, 0 direito de condenar sem apelacio toda tentativa de pensar 0 obje- to cujo monopélio elas assim detém sem dificuldade. Em suma, a prejudicial suspeita que pesa muitas vezes sobre ‘os escritos masculinos a respeito da diferenga entre os sexos nao € inteiramente infundada. Nao s6 porque o analista, que esta envol- vido por aquilo que ele cré compreender, pode, obedecendo 5 perceber a inteng6es justificativas, tomar pressupostos que ele _Bréprio adotou como revelagdes sobre os pressupostos dos agen- tes, Mas sobretudo porque, ao lidar com uma instituigao que estd hhé milénios inscrita na objetividade das estruturas sociais e na subjetividade das estruturas cognitivas, e nfo tendo, portanto, para pensar a oposicio entze a masculino é o feminino mais que— tim espirito estruturado segundo esta oposigao, ele se expoe a ‘usar, como instrumentos de conhecimento, esquemas de percep= 3. Ch. A MacKinnon, Forint Unmedlid, Discourses on life and Law, Com bridge Moss ¢ Londres, HorardUniversy Press, 1987. 4. Reivindcor 0 monopslio de um objet, quclqur que sea (nem que tejo com o sie les uso do “6s", corona am cares crosfeminitay], om nome do privlgio cog tivo que 9 cr stor ostoguado cpanos pelo foto de ser 20 mesmo tmp veo @ ‘objeto, «, mais recone, der axperimeniodo am primeira pesioa a foo ung lor do corde hunone ue se bisea oraz cierthcomente, inporor pora@ com: po ienico a defesa police de paticulsmes que avorize ua descorionsa @ ‘ror ep em quasiboouniverscismo que, ons obreudo do dio da zesso @ toot 0 objeto, 6 um dos fondomenos da Repiblica dos céni, ‘go. de pensamento que ele deveria tratar como objetos de conhecimento. E mesmo 0 analista mais esclarecido (um Kant ou umm Sartre, um Freud ou até um Lacan...) esté arriscado a extrair ‘sem o saber, de um inconsciente impensad6, Os instrumiento pensamento que ele usa para tentar pensar o inconsciente. Se me aventurei, pois, depois de muita hesitagao ¢ com a maior apreensdo, por um terreno extremamente dificil e quase que inteiramente monopolizado hoje pelas mulheres, é porque eu tinha o sentimento de que a relagdo de exterioridade na simpatia ‘em que eu me havia colocado poderia permitir-me produzir, com ‘© apoio do imenso trabalho estimulado pelo movimento femini ta, e também dos resultados de minha propria pesquisa a respeito das causas e dos efeitos sociais da dominagdo simbélica, uma and- lise capaz de orientar de outro modo nao s6 a pesquisa sobre a condigao ferinina, ou, de maneira mais relacional, sobre as rela- ‘gbes entre os generos, como também a agao destinada a transfor- mié-las, Realmente, creio que, se a unidade doméstica é um dos ogaes em gi a domino mavens mania 6 manera indiscutivel (e nao s6 através do recurso a violéncia fisica), 0 principio de perpetuagao das relagbes de forga materials ¢simbO= licas que ai se exercem se coloca essencialmente fe run de, em instancias como a Igreja, a Escola ou o Estado e em stias” agoes propriamente politicas, detaradas out escondidas, oficiais ou oficiosas (basta, para nos convenceritios disto, observan, nia {Tealidade imediata, as reagbes e as resisténcias ao projeto de con: trate de unido sock / O que significa que o movimento fe a contribuiu muito para uma considervel ampliagdo da érea politica ou do politiz4- vel, fazendo entrar na esfera do politicamente discutivel ou con- testével objetos e preocupagoes afastadas ou ignoradas pela tradi- cao politica, porque parecem pertencer a ordem do privados mas no deve igualmente deixar-se levar a excluir, sob pretexto de elas ppertencerem a légica mais tradicional da politica, as lutas a prop6- sito de instancias que, com sua aco negativa, e em grande parte invisivel — porque elas estao ligadas as estruturas dos inconscien- tes masculinos e também femininos —, contribuem fortemente a *\ para a perpetuacao das relagdes sociais de dominagio entre os | sexos. O movimento feminista nao deve mais deixar-se encerrar apenas em formas de luta politica rotuladas de feministas, como a reivindicagao de paridade entre os homens e as mulheres nas ins- tancias politicas: se elas tém o mérito de lembrar que o universa- lismo de principio que postula o Direito Constitucional nao é tio universal quanto parece — sobretudo por s6 reconhecer indivi- duos abstratos e desprovidos de qualificagdes sociais —, estas Iutas correm o risco de redobrar 0s efeitos de uma outra forma de universalismo ficticio, favorecendo prioritariamente mulheres saidas das mesmas éreas do espaco social que os homens que ocu- pam atualmente as posicées dominantes. S6 uma agdo politica que leve realmente em conta todos os fets de dominacdo ques execem através da camplicdadeobe- tiva entre as estruturas incorporadas (tanto entre as mulheres” quanto entre os homens) randes instituic6es em {que se realizam ese produzem nao s6 a ordem masculina, mas tam- bém toda a ordem social (a comecar pelo Estado, estruturado em la oposi sua “ma ® masculina, e sua % esquerda’,ferninina, ea Escola, responsivel pela reproducao efet va de todos os principios de visdo e de divisto funda organizada também em torno de oposigdes homdlogas) poder4, a Jongo prazo, sem diivida, e trabalhando com as contradigées ine- ‘Tentes aos diferentes mecanismos Ou InsTTUiGOes Teteridas, contri- buir para 0 desaparecimento progressive da dominagaio masculina.” ALGUMAS QUESTOES SOBRE O MOVIMENTO GAY E LESBICO O movimento gay e lésbico coloca, ao mesmo tempo, tacitamente, com sua existéncia e suas acdes simbdlicas, € explicitamente, com os discursos e teorias que produz, ou a que dé lugar, um certo mimero de questoes que estdo entre as mais importantes das ciéncias sociais e que, para alguns, sao totalmen- te novas.! Esse movimento de revolta contra uma forma particu- lar de violencia simbélica, além de suscitar novos objetos de and- lise, pde profundamente em questdo a ordem simbélica vigente e coloca de maneira bastante radical a questdo dos fundamentos desta ordem e das condigdes de uma mobilizagio bem-sucedida visando a subye ‘A forma particular de dominagao simbélica de que sio viti- ‘mas os homossexuais, marcados por um estigma que, a diferenga da cor da pele ou da feminilidade, pode ser ocultado (ou exibido), impde-se através de atos coletivos de categorizagio que dio mar- gem a diferencas significativas, negativamente marcadas, e com isso a grupos ou categorias Sociais estigmatizadas. Como em cer- tos tipos de racismo, ela assume, no caso, a forma de uma negacdo da sua existéncia publica, visfvel. A opressio como forma de “in- Visibilizagao” traduz uma recusa a existéncia legitima, publica, 1, Neva feo, de que openricl um primaire asbogo am um encanto consogrado @ perqut sobre ot goys ot lxbicor, folate openos do “movimento”, sem Yomor porido sobre 9 rlosdo, boston complexo, quo os diferentes grupos, clevos © scciogbes que o onimam menlém com o fv as) “colsvdades)" ov “catego * mois que "comunidedes” — de goys« isbios, lols] masal de df dfn. {0 [deverionos tomar como evo os pritcassexuais — mot declradas ou econ dos, efivos ou potoncais— ova keqlénci @ deteminedes ygaes ov um caro ‘elo de vid) isto 6, conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por uma ‘estigmatizagao que 86 aparece de forma realmente declarada quando 0 movimento reivindica a visibilidade. Alega-se, entdo, explicitamente, a “discrigao” ou a dissimulagao que ele é ordina- riamente obrigado a se impor. Falar de dominagao, ou de violencia simbélica, € dizer que, salvo uma revolta subversiva que conduza a inversao das catego- rias de percepcio e de avaliagao, 0 dominado tende a assumir a _respeito de si mesmo o ponto de vista dominante: através, princi- almente, do efeito de destino que a categorizagao estigmatizante produz, e em particular do insulto, real ou potencial, ele pode ser “assim levado a aplicar a si mesmo e a aceitar, constrangido e for- ado, as categorias de percepgdo direitas (straight, em oposigao a crooked, tortas), ea viver envergonhadamente a experiéncia sexual que, do ponto de vista das categorias dominantes, o define, equi- librando-se entre o medo de ser visto, desmascarado, ¢ 0 desejo de ser reconhecido pelos demais homossexuais. ‘A particularidade desta relagao de dominagao simbélica é que ela nao esté ligada aos signos sexuais visiveis, e sim a pratica se- xual. A definigao dominante da forma legitima desta pratica, vis- ta como relagdo de dominagio do principio masculino (ativo, penetrante) sobre o principio feminino (passivo, penetrado) implica o tabu da feminilizagao, sacrilégio do masculino, isto do principio dominante, que est inscrito na relagdo homossexual. ‘Comprovando a universalidade do reconhecimento concedido a s préprios homossexuais, embora 1eres) as primeiras vitimas, aplicam mitologia androcéntrica, sejam disso (tal como as mulhi a si mesmos muitas vezes os principios dominantes: tal como as lésbicas, eles ndo raro reproduzem, nos casais que formam, uma divisio dos papéis masculing e feminino (inadequada a aproxi- mé-los das feministas, sempre prontas a suspeitar de sua cumpli cidade com o género masculino a que pertencem, mesmo se este ram por macao da viriidade Inscritos a0 mesmo tempo na objetividade, sob forma das ivisdes instituidas, e nos corpos, sob a forma de uma relacao de dominagao somatizada (que se trai na vergonha), as oposigoes paralelas que sdo constitutivas dessa mitologia estruturam a per- cepgio dos proprios corpos e dos usos, sobretudo sexuais, que deles se fazem, isto &, a0 mesmo tempo, a divisto sexual do traba- Iho e a divisao do trabalho sexual. E 6, talvez, por lembrar de for- ma particularmente aguda 0 lago que une a sexualidade ao poder, _fportanto a politica (evocando, por exemplo, o cardter mons- ‘truoso, porque duplamente “contra a natureza’, de que se reveste, ‘em intimeras sociedades, a homossexualidade passiva com um dominado), que a andlise da homossexualidade pode levar a uma politica (ou a uma utopia) da sexualidade visando a diferenciar adicalmente a relagio sexual de uma relagao de poder. Mas, por nao querer, ou ndo poder, dar-se como objetivo uma tal subversio radical das estruturas sociais e das estruturas cogni- tivas, subversio essa que deveria mobilizar todas as vitimas de uma discriminacio de base sexual (e, de maneira mais geral, todos 0s estigmatizados), condenam-se nao raro a se e das mais trgicas antinomias de dominacao simbélica: como se na categorizacao socialmente imposta organi- | zando-se como uma categoria construida segundo esta categori- | zagao e fazendo assim existirem as classificagoes e as restrigOes as _quais se pretende resistir — em vez de, por exemplo, lutar por uma nova ordem sexual em que a distingao entre os diferentes estatutos sexuais fosse indiferente? Como 0 movimento que con- {tribuiu para Tembrar que, assim como a f regido, a nagao (ou qualquer outra entidade coletiva, o estatuto de gay ou de lésbi- ca no passa de uma construgio social, baseada na cren¢a, pode- se contentar com uma revolugdo simbélica capaz de dar visibilt dade, conhecida e reconhecida, a esta construcdo, com conferir- Ihe a existéncia plena e total de uma categoria realizada, inverten- do o sinal de estigmatizagao para transformé-lo em emblema — como 0 faz 0 gay pride em sua manifestacio publica, pontual e _extra-ordindria da existéncia coletiva do grupo invisivel? Ainda mais porque, ao fazer ver que o estatuto de “gay” ou de “lésbica” & uma construgao social, uma ficgao coletiva da ordem “heteronor- mativa’, que se construiu, alids, em parte contra o homosexual, e lembrando a diversidade extrema de todos 0s membros dessa categoria construida, o movimento tende (é uma outra antino- mia) a dissolver de certo modo suas préprias bases sociais, aque- las mesmas que ele tem que construir para existir enquanto forca social capaz de reverter a ordem simbélica dominante e para dar fora reivindicagao de que é portador. E deve ele levar a cabo sua aco reivindicatoria (¢ sua contra- digdo) exigindo do Estado que confira ao grupo estigmatizado 0 reconhecimento duradouro e comum de um estatuto piiblico e publicado, por meio de um ato solene de estado civil? A verdade € que, de fato, a acdo de subversio simbélica, se quiser ser realista, nao pode se limitar a rupturas simbélicas — mesmo quando, ‘como se dé em certas provocacées estéticas, elas sejam eficazes no sentido de levar a suspensto das evidéncias. Para mudar duradc ramente as representagies, o movimento tem que operar ‘uma transformagio duradoura das categorias incorporadas (dos esquemas de pensamento) que, através da educagio, conferem uum estatuto de realidade evidente, necess scutida, nat ral, nos limites de sua algada de validade, is categorias sociais que las produzem, Ele tem que exigir do Direito (que, como a palavra ‘mesma diz, esta parcialmente ligado ao straight. um reconheci mento da particularidade, que implica sua anulacao: tudo se pas- “sa. de fato, como se os homossexuais, que tiveram que lutar para _passar da invisibilidade para a visibilidade, para deixarem de ser excluidos e invisibilizados, visassem a voltar a ser invisiv certo modo neutros e neutralizados, pela, ‘dominante,? Basta pensar em todas as contradigoes que a nogao de “arrimo de familia” implica quando aplicada a um dos mem- 2, A coriadigdo enraualexiene om 20 pipe condano os movimento nosch dos dos gupos dominados esigmatzodos © uma tel pendulordo eee invisbilt _20¢50# 9 exbgto, ene 2 orlogdoe a calabro de dernca, quo fox com que, ‘tsim como o movimento dos Dios Cvs ov © movimento fins, eles odotom, egundo 0 cicustncios, ume au ovo esaigi, am fungi da erature dos ogee rizogSes, do cess & pice «dos famas da opotieSo enconkades [M. Baran, “Celaration ond Suppression the Stotgic Uses of Init by th Lesbian ard Gay ‘Movemen", American Jounal of Sociology, 103, novembre 1997, pp. $3165) | bros de um casal homossexual para compreender que o realismo que leva a ver no contrato de uniao civil o preco a ser pago para “retornar A ordem” e obter o direito a visibilidade invisivel do bom soldado, do bom cidadao ou do bom conjuge, ¢, no mesmo ato, de uma parte minima dos direitos normalmente concedidos a todos (08 membros da parte inteira, que é a comunidade (tais como os direitos de sucessdo), dificilmente possam justificar totalmente, para intimeros homossexuais, as concessdes a ordem simbélica {que um tal contrato implica, como, por exemplo, a condigao de dependente de um dos membros do casal. (E significativo que, para minimizar a inconsequncia que resulta da manutengao da diferenga, ou até da hierarquia, em casais que realizaram a trans- gressio escandalosa da fronteira sagrada entre o masculino e 0 feminino, as associagdes de homossexuais dos paises nérdicos que obtiveram o reconhecimento da uniao civil de homossexuais tenham escolhido, como observou Annick Prieur, exibir publica- ‘mente casais de quase-gémeos, que ndo apresentam nenhum dos signos capazes de fazer lembrar aquela divisdo simbélica e a opo- sigdo ativo/passivo que ela subentende.) Ser possivel converter a antinomia em alternativa suscetivel de ser digida por uma escolha racional? A forca da ortodoxia, 6 que impée todo tipo de dominio “simbélico (branco, masculino, burgués), provém do fato de que ela transforma particularidades nascidas da discriminagao hist6- _rica em disposigoes incorporadas, revestidas de todos os signos do natural; estas disposigbes, que na maior parte das vezes sao pro- fundamente ajustadas as pressdes objetivas de que sto produto ¢ que implicam uma forma de aceitagao tacita dessas pressdes (por _ exemplo, fazendo da guerizacao “amor ao gueto”), estdo fadadas a aparecer, quando ligadas aos dominantes, quer como atributos nao marcados, neutros, universais, isto é a0 mesmo tempo visi- veis, distintivos, e invisiveis, nao marcados, “naturais” (a “distin- «do natural”); quer, quando ligadas aos dominados, como “

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