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A lenda do Pita Por que seré que todos os que se prestam ao trato coms crénicas vivem revirando as paginas do passado e, de quando em vez, so flagrados em momentos da infancia recontando fatos dessa época da existéncia? Seré 0 mundo adulto assim to enfadonho e insidioso que somente da infancia é que ainda guardamos momentos puros € de real beleza pueril? Quando leio os mestres dessa arte literdria ao rés-do-chao, ld esto as reminiscéncias de um passado distante, da infancia sempre inusitada e pitoresca de cada um: adoro ler a infancia drummondiana contada em crénicas; Os Teixeiras de Rubem Braga, entao, espetdculo!... e por que no falar da infancia do avé de um homem que brinca de ser cronista? Quando crianga, ld pelos meus oito ou nove anos, adorava ouvir as histérias contadas pelo meu avé Vicente - hoje com noventa e cinco anos de idade. Eram histérias engracadas no mais auténtico estilo Viriato Corréa na obra Cazuza. Ainda hoje, nao tive a disposicao de perguntar se eram historinhas apenas recontadas por meio de um atavismo anénimo ou obras nascidas da veia poeta de um homem fadado ao anonimato existencial, embora digno de uma notoriedade universal - afinal, é meu avo! Uma dessas historinhas, apesar de jé passados mais de vinte anos desde que a ouvi pela derradeira vez, ainda persiste na minha retina. As imagens criadas quando da ultima audigo da obra solta ao vento por palavras certeiras do meu progenitor ainda mexem, altaneiras, dentro de mim, implorando que as ponha num sélido local, eternizando-as ou repetindo-as de modo furtivo se forem réplicas indevidas de um outrora criador. Apesar do medo, de me consideram um plagiador das palavras, do mundo literério; arriscarei, colocando-as num papel ao meu estilo. Havia num reino mundo distante, além-mar, uma princesa que sonhava casar, Muitos eram os pretendentes, mas aquele que seria 0 homem digno de desposa-la deveria contar-Ihe uma histéria cujo enigma a bela princesa no soubesse revelar. Numa casinha, situada a beira de um lago, morava uma familia numerosa, era uma prole de onze filhos, todos homens. Um mercador, numa de suas andangas, revelou a todos os moradores do vilarejo onde morava essa feliz familia a exist€ncia do reino distante e a pretensao da princesa. Os dez irmios mais velhos foram, um a um, seguindo rumo ao sonho, mas encontraram a morte. O mercador, orientado pela familia real, omritia que se 0 enigma da historia fosse descoberto pela bela princesa o contador da histéria seria guilhotinado para del e da princesa. E, assim, em cada nova andanga, um dos filhos da mae entristecida seguia rumo ao fim da existéncia. Findos todos os mais velhos, apenas o cacula ainda permanecia junto 4 me que j4 conhecia o fim de cada um dos outros dez filhos. Chega-se uma nova embarcacdo. 0 filho resolve partir. A mée, num desespero materno, quer dar-Ihe outro destino: = Se tem que morrer, que morra por minhas mos! Nao suporto mais perder meus filhos sem o direito de sepulté-los! Prepara- Ihe uma alimentago e 0 orienta: ~ Quando sentir fome coma esse alimento. Nao faga o mesmo que todos 0 seus outros irméos que morreram por mi alimentacao E entrega ao filho uma proviso venenosa que o mataria apés a primeira refei¢o. Chora. Abraca o derradeiro filho e 0 deixa partir © menino resolve seguir rumo ao reino por terra, Adorava andar e resolvera criar a historia que revelaria & princesa durante o percurso da sua trajetéria... Caminha. Caminha. Caminha. Sempre seguido do fiel escudeiro, 0 cachortinho de estimacao que atendia pelo nome de Pita Sente fome. Senta-se para comer, mas ao abrir o bornal e segurar a refeigéo tem o alimento subtraido pelo cachorrinho que salta vorazmente, tomando- Ihe o Gnico alimento disponivel © animal, logo apés devorar a alimentacao, cai desfalecido. O garoto chora e, somente depois, percebe a ago criminosa do amigo que queria apenas salvar-Ihe da morte certa. Néo tendo coragem de deixd-lo no camino, resolve leva-lo como a uma caca abatida, preso as costas. E comega a histéria: - ‘Pao matou Pita, Apés horas de caminhada é interpelado por sete cagadores famintos que observam o animal abatido. Obrigamrno a deixé-los coma caca. Ele diz que é 0 seu cachorro que havia morrido, mas os cacadores ignoram a histéria, Tomanr Ihe o animalzinho. Fazem uma refeigao e, apés comerem o alimento, caem mortos deixando com o garoto os sete rifles que conduziam. 0 garoto verifica cada um dos armamentos e escolhe o melhor deles para conduzir no restante da caminhada. E a histéria prossegue: -‘P&o matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melho! Agora, com munic&o e armamento, inicia uma cacada a fim de conseguir a alimentagao. Observa um passaro num galho, atirando em seguida na intengdo de abaté-lo. Erra o tiro, mas acerta um outro que estava noutro galho, distante da sua linha de visdo. E continua: - ‘Pao matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirei no que vi e acertei no que no vi. Corre. Alcanca 0 passaro abatido e procura um espeto para cozé-lo. Como no tem faca, resolve espeta-lo numa estaca que obtém ao quebrar uma cruz deixada na floresta, revelando que ali havia um corpo desfalecido e que fora enterrado num ritual comum aos povos civilizados. Faz um fogo. Alimenta-se. E prossegu ~ ‘Pao matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirei no que vi e acertei no que nao vi, Assei carne com pau santo. Agora farto do alimento que a sorte colocara em suas mos, tem sede. A floresta seca nao permite que as fontes limpidas de dguas brotem naquela regio inéspita. A sede o consome, Nenhuma fonte ha para sacié-lo. Quando ja se dava por vencido, observa um animal distante. Vai ao encontro dele, © animal, suado, emana sinais de cansaco e de sede. Aproxima-se do animal e, numa atitude de subsisténcia, sorve-Ihe o suor que é retirado com os dedos e, dessa forma, sacia a sede j4 quase insuportdvell Passado 0 asco da superagao humana, conclui por fim a histéria uma vez que o palacio descrito é vislumbrado por ele, embora ainda longinquo: = "Po matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirei no que vie acertei no que no vi. Assei carne com pau santo. Bebi dgua que no era nem do céu nem da terra...” Pronto. Essa sera a histéria que contarei a princesa to logo tenha oportunidade Chega ao paldcio e revela o desejo de ser um dos pretendentes ao trono. Dias depois, é levado ao encontro da princesa que o interpela, friamente = Qual sua histéria, plebeu?! ~ Minha histéria, princesa, é a seguinte: ‘Pao matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirei no que vie acertei no que ndo vi. Asse carne com pau santo. Bebi 4gua que néo era nem do céu nem da terra. E apés isso, estou aqui.’ Do que trata essa histéria, princesa? A princesa, enrubescida, chamou seus asseclas e os mentores da corte. Nada, Nao tinham uma explicagao para o enredo. Por fim, sentencia: - Peco um tempo para responder! - Até o amanhecer, princesa, intervém o jovem plebeu, decididamente. — Até 0 amanhecer, concorda a princesa, Se ao amanhecer nao tiver a resposta, casarei com vocé! Amanhece. O jovem plebeu é levado & presenca da princesa. Ela 0 observa e, sem pormenores, revela: — Nao fui capaz de descobrir do que trata a histéria e, conforme o prometido por meu pai, casar-me-ei com vocé. Antes, porém, preciso conhecer a verdade uma vez que se for uma histéria inconsistente, morreré como um viléo mentiroso e torpe! = Que seja assim, princesa. Essa é a histéria da minha peregrinagéo desde que sai de minha casa até chegar aqui. E prossegue: = Todos os meus outros dez irmios desfaleceram na esperanca de desposar a mais bela princesa anunciada pelos andarilhos errantes. Eu, liltimo de uma descendéncia, também vim em busca disso e trazia comrigo um ¢&o que morreu apés comer 0 alimento preparado por minha m&e que talvez ndo me quisesse como mais uma das vitimas. Coma morte do cdo, iniciei a histéria: ‘Po matou Pita...” A carne do meu animal serviu de alimento a sete cacadores famintos que morreram ao fim da refeigo. Dos rifles que traziam consigo apanhei 0 que me pareceu o melhor. E a historia prosseguiu: ‘Po matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor.’ A princesa e todo 0 seu corpo de juiri assistiam ao relato silenciosamente. 0 jovem plebeu, alheio a tudo, prosseguia, agora mais convicto de si: = Como rifle, tentei abater um passaro que observei numa drvore, mas errei o tiro, atingindo outro que nao vi. Disso veio mais um trecho da histéria: ‘Po matou Pita. Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirel no que vie acertei no que nao vi.’ Por fim, apés depenar a cacar e de nao ter como que espeta-la, fiz um espeto improvisado com os restos de uma cruz que havia no caminho. Apés a alimentacao senti sede e fui saciado bebendo o suor de um cavalo que surgiu, néo sei como, diante de mim. Apés isso, vislumbrei o palicio onde agora estou contando toda e histéria que se resume no que relatei ontem: ‘Pao matou Pita, Pita matou sete e dos sete, escolhi o melhor. Atirei no que vie acertei no que nao vi. Assei carne com pau santo. Bebi gua que nao era nem do céu nem da terra.” Os conselheiros formaram um cerco junto & princesa e sentenciaram: - Vivas, ao futuro reil Seré preciso concluir dizendo em tom solene que foram felizes para sempre? Tudo bem. Eles se casaram e foram felizes para sempre. Fim,

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