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Peter P4l Pelbart re come See an A VERTIGEM POR UM FIO Politicas da Subjetividade Contemporanea eer eters —— on ¢ 1 : Copyright © 2000: eterPal Pelbart Copyright © desta edigdo FditoraTluminuras Lida Copa Fé -estioa garatuja amarcla sobre Matéria em forma le axila (1968), técnica mista sobre tela (81 x 100 em), Antoni Tapies. ‘Colegio Joao Miré (Palma de Mallorca). Revisao: Renata Cordeiro Fumes de capa: Fast Film - Editora Fotolitos Composicao e fibmes de miote ominaras ISBN: 85-7321-125.3 Dosso tte conta com o apoio cultural da via net works 2000 EDITORA ILUMINURASL Rua Oscar Freire, {233 - CEP 01426-001 - Sao Paulo - SP - Brssit Tel: (Oxxl1)3068-9433 / Fax: (Ox 1)282-5317 E-mail: ilumsinur@iluminuras.com.br Site: htep:/4vwwdluminuras.com.br INDICE PROLOGO PARTEL - SUBJETIVIDADE CONTEMPORANEA Eu(rekat) 2 PARTE POLITICAS DE SUBIETIVIDADE Direitos humanos e cyber-2umbis Da claustrofobia contemporinea. Cidade, lugar do possivel.. PARTE HL CRITICA ECLINICA Literatura e loucura A gorda saide dominante_ Solidi de Bartleby PARTEIV ALOUCURAEMCENA Deserto vermelho Usinzz ~ Viagem a Babel. 23 29 43. 53 8. 83 3 witli: PARTEV. ‘TEMPOELOUCURA © tempo se quebra ‘Tempo e psicandlise Da psicose Subjetividade esquizo.. PARTE VE VARIAGOES TEORICAS Imagens de tempo em Deleuze Rizoma temporal “Tempo pos-moderno Oanjo da enone PARTEVIL AGUERRAE O TEMPO Lembrar de esquecer Lampe! A vergonha ¢ 0 intolervel REFERENCIA DOS TEXTOS 13 127 us 161 177 183 187 193 201 207 on 221 PROLOGO ‘Um trapezista se dé conta, subitamente, de que sua visa esté por um tri: “Viver assim, com uma 6 barra entre as mos. E vida, isto?” A existéncia de repente Ihe parece estreita demais, pobre demais, frigil demais. Passa a exigir dois trapézios ein vez de um, e promete “nunca mais e ers circunstincia alguma” voltar a apresentar-se ‘como antigamente, pendendo de uma sinica barra CO trapezista de Kafka, na sua exclamagio apavorada, expressa o que as acrobacias do mundo contempordneo tentam dissimular a todo custo: a percepglo vertiginosa de ue estamos por um fio, a descoberta penosa de ver-se reduzido a quase nada, a suspel- ta crescente de que esse pouco talvez ndo baste para prosseguir. Ao lado da certeza esvaida, a vida depauperada, 0 abismo escancarado, a quebra irremisstvel no fio do tempo € no contorno da alma, Se alguns dos textos que seguem podem ser colocados sob o signo desse sobressalto, © foco principal da maioria deles estd em outra parte. Pois se € certo que parecemos desarmados diante dos miltiplos sentidos que o desgosto primeiro do trapezista continua ‘a suscitar (0 conto de Kafka chama-se “A primeira dot”), é preciso ir além do susto e de ‘seus efeitos de superficie para sondar os gestos de reinvengao da vida que ele esboga. N3o hi como fazé-lo, no contexto contemporiineo, sem antenar para a mirfade de riscos, ‘ofertas ¢ urgéncias na qual nos langa, na sua oscilaglo sincopada, a barra do presente. ste um vo demos de sobras, derests, Quse um diode bord. Reuni aqui tudo agile que roceou uma pesquisa de anos, erica e pessoa, em torno da interseccHo nite fempo'e subjetividade. As vezes um estudo sistemstico produzdo alhres Vai Ginando’ margem ume quantidadeimensa defanjassoltas, anotagBes de pecs, ots de rodapé, pinas avulsas cujo destino em geral€ apéadice, 0 Tixo ou @ favela, Eno enti em retrospect, essa massa de textos vai se revlando menos Fragmentitia do qe parcia a prista vst, eo autor sed conta de que exist, em tneio ao enon apafente, que acéncia conempocinea chama de arto estanho: um onto para one converger distnis trjetiras —- no mes caso, muitasintighes Emibrionéras, desvios aventuroso, curiosidades atrevidas, nfo soficentemente ‘maduresias para contvirem umatese", mas autinomas suficint para distribu rem seus préptos indfios IAs tjetras deste liso gitam em tomo, pois, do efeito de verigem que resuita ™ dessa interseesio entre a subjetividadle contempordnea, com suas mutacbes proprias, 2 a8 cisbes na nossa experiéncia do tempo, seja nas suas manifestagdes estéticas, linicas,filoséficas ou tecnolsgicas, Tal amplitude temética comporta matérias muito hetetosézeas, desde uma anedota de Internet até as desventuras de um anjo da morte, uma reflexdo sobre a cidade contemporinea, um filme de Antonioni, 0 didtio de Kafka ou mesmo uma peca de teatro encenada com pacientes do Hospital-Dia “A Casa”, onde trabalho, Tudo serve para nutri o pensamento: diferentes perspectivas se revezam, diversos encadeamentos so tentados. Pareceu-me que cada uma dessas modalidades expressivas ou te6ricas, representava um vonvite para experimentar de modo renovado a nogiio de subjetividade, de tempo e mesmo de mutagao. ‘A quinta parte deste livro tem um tom nitidamente mais sistematico do que as, ddemais, jf que & composta por fichas de leitura sobre a questao do tempo na loucura, segundo diversas teorias “psi”, Apesar da diferenga de estilo, esse bloco guarda uma cconexiio Secreta e necesséria com o restante. Reservei um tltimo capitulo para uma incursso de indole inteiramente pessoal na hist6ria naga pessoal do Holocausto, Fazia eu, af, € provavel, uma pesquisa “intima” sobre tempo, meméria, historia e subjetividade, ou ainda sobre as imagens de tempo de que dispomos e as quais recomemos nas nossas diferentes narrativas em torno de colapsos inenarraveis, sea na escrita, no sonho ou mesmo no cinema. ‘Parte dos textos aqui reunidos foi originalmente apresentada em coléquios e mesas redondas, ou em cursos na Universidale, Mantive, na medida do possfvel, o tom coloquial e ziguezagueante, o cardter ao mesmo tempo circunstancial e experimental dessas falas. A afinidade te6rica com a filosofia de Deleuze, evidente na maior parte dos textos, no descarta outras entradas nem hibridismos diversos. Fiquei menos pre- ccupado em garantir alguma coeréncia tedrica entre esses percursos do que em ir ‘operando conceitos, descrevendo cenarios € testando as hipsteses de trabalho. Por isso no tentei em momento algum colmatar 0 inacabamento dos vsrios textos aqui reunidos, nem stenuat a variagio perspectiva que eles propiciam. Talvez 0 leitor tenha a impressio, a percorrer estas paginas, de atravessas um canteiro de obras a céu aberto, Se for 0 caso, a0 menos 6 essa uma imagem sinténica com uma das preocups- es bisicas deste livro, qual seja, ade conceber a prépria subjetividade como obra a cu aberto — obra aberta. ‘Aos que me presentearam com sua Vizirhanga nos tiltimos anos e assim colabora- am, voluntéria ou involuntariamente, na elaboragio destes textos — amigos, mestees, alunos, pacientes, aliados e sobretudo as almas gémeas com quem me foi dado com- partilhar secretamente, sem que elas sequer o soubessem, o que aqui vem a lume —, {que este livro possa valer como retribuigio e Ihes chegue sob o signo de minha inaprecisvel gratidio. PARTE I SUBJETIVIDADE CONTEMPORANEA sibjetividad” [-] designagi escolida como que para svar anssa parte de capiritualidade. Por que subjetividade, eno para descr ao fundo do sujeito Sem perder oprivlégio que est encarna, essa presenga privada que 0 corpo, meu corpo sesvel, me faz viver como minha? Mas sea pretendida “subjeti- Vidade" é 0 outro no lugar de mim, elando €subjtiva nem objetiva, 0 outro é ‘sem nterioridade, o anénimo é seu nome, o fora seu pensamento[.] Maurice Blanchot ot Ldertwre du désasve, Pais, Gallimard, 1980, pp. 48:9. EU(REKA)! Forcas poderosas ¢ estatégias insuspeitadas redesenham, a cada dia que passa, nosso rosto incerto no espelho do mundo, Face A vertigem das mutagSes em curso, sobretudo nessa matéra prima tio impalpave} quanto incontorndvel a que chamamos de subjetividade, e a exemplo do que ocorreu desde a queda do muro de Berlim, no paramos de nos perguntar 0 que se passou, 0 que teré acontecido que de repente tudo ‘mudou, que jé no nos reconhecemos no que ainda ontem constitufa 0 mais trivial cotidiano? Aumenta nosso estranhamento com as maneiras emergentes de sentir, de pensar, de fantasiar, de amar, de sonhar, € cada vez mais vemo-nos as voltas com imensos aparelhos de codiieago e capita, que sugam o estofo do que constituta até 1 pouco, nossa mais fntima espessura Subjetividade e Pés-Modernismo Talvez seja conveniente acompanhar Frederic Jameson em pelo menos uma parte de sua avaliagao sobre o momento p6s-moderno!. O chamado capitalismyo tardio, segundo ele, teria penetrado e colonizado dois enclaves até entdo aparentemente inviolaveis, a Natureza co Inconsciente. O Inconsciente, diz Jameson, foi agambarcado pela ascensio da midia e da inddstria de propaganda, segundo uma nova l6gica cultu- ral docapitalismo que nao cabe esmiugar aqui. Importa, nesse contexto, o prego que se ppaga quando o capitalismo impregna a tal ponto a esfera cultural e subjetiva, com ‘conseqiéncias que se conihecem sob o nome de pés-modernismo: descontextualizacio dos objetos, privilégio da superficie, império do simulacro, fim das hermentuticas da profundidade, seja da esséncia e da aparéncia, do latente e do manifesto, ¢ com isso da idéia mesma de repressio. seja ainda dos pares autenticidade e inautenticidade, alie- ‘magdo e desalienagiio — categorias que orientaram nossa cultura marxista, freudiana, existencialista, ou suas hibridagdes diversas. Ao mesmo tempo fim do sujeito centrado, fu do ego burgués, bem como das psicopatologias desse ego, esmaecimento dos nifetos, © desbotamento da grande tematica do tempo, da meméria e do pasado, a irrupgao de um eterno presente de fascinagio com seu efeito alucindgeno, a leshistoricizagao generalizada, etc. 16 podemos interromper esse resumo canhestro de algumas teses de Jameson, € 1) Fredric Jameson, Por Modernismo ~ A Ligica Cultural do Capitaiome Tart. Sb Paulo, Atica, 1996, u Sbvio para distanciar-nos do requisit6rio generalizado a tudo isso que ele enfia ale- gremente no saco de gatos chamado pés:mvadetisme, Mas apesar da temalizagdo Expfcia da aubjetvidade enquanto tal ser ewassa em Ses texts, coniia a0 menos Feet um de ses pots de parida para so pensar de mod alsin a ello nize aubjtvidae e capitaismo, questo incntornvel eas sequen dat algom Semido 2 expresso “subjtvidade eontemportnea",Parafraseando Tameson, seria possvel dizer que o capitalismo tardio, mulinacional, global, lobaririo, mundial Fategrad, em Suma, chame-se como s qulser este momento que vemos, de fo tomou de assltoasbjetividade para invest-la numa escla mane vis, Flix Guta hamiva a atenglo para essa preponderdncia dos flores subetivos na login Capitals, e obretudo para o mao pelo qual as mquinaseenolgies de informa- gfe de comunicagto operam no corto da subjetivdede humana, nfo 6 na sua fnemdri, na sa incigecia, mas também na sua Senibllidae, nos seus afeos, nos bens fanaa inconscene: © ‘Das inimeras conseqléncas dessa investda maciga sobre a subjlividade por pate do capitalism cy acance ninda mal vslumbramng a0 menos dus parecem Incontestveis,eperavem umeurioso eft bumerangue, Pimelrament,asubjtivi- dade ganhou vsibilidade como um dominio proprio, relevante, capital. Michel Foucault oexpresou nests termes: hoje em dla, a ado das lts talons conta & dominagdo (de um povo sobre outo, por exempo)e conta a exporag (de uma clase sobre outta, por exempla) éa ta contra ts formas de assijetameto, iso € de Sobmissio da subjelvidade, que prevalee cada vez mas. Do que ele conclu: “0 objetivo principal hoje nflo\€ desenbrir que somos, mas reust-la". O segundo tfeito bumerangue, estetamenteligado 1 ese, € 0 sepuinte: se-a violencia do capitalismo na sut dnsia de moldar de cabo t abo a subjetividade se revelon tlimarente de modo to obseen eesctneaado, a0 menos te sso a vantagem de nos desfazer do ito de uma subjetivdade dada, Podernosento, por fim, compen Ia como plenament fabricada,produzids,moldade, modulada— e também, por que ve. partir da automoduldvel Talvez Venham da esses discursoscontempordne0s Imaspreocupado em reiventar a ubjeliviade do que em deitéla O que Foucault xpi da sepuinte maneirs Cabe-os “promovernovas formas de subjeividade, Fecusando otipe de individuaidade que nos fo imposto durante sézulos"™| Fabricagiio da subjetividade (Ora, a fabricagio sociale historica da subjetividade ndo é um tema novo. Nietesche ‘mostrou quanta violéncia ¢ crueldade foi preciso para moldar o homem nessa sua forma atual, quanto terror foi preciso para incrustar nesse animal um minimo de civi- lidade, de meméria, de culpa, de senso de promessa e divida, em suma, de moral! S50 e6lebres os métodas evocatos por Nietzsche como auxiliares da mneménica entre os 1 Michel Foucault, Questions et fponses. In H. Dreyfus © P. Rabinow. Michel Focal, un parcours philosophique. Pars, Gallimard, 1988, pp. 303-308, 12 alemies: 0 apedrejamento, o empalamento, 0 dilaceramento ou pisoteamento por avalos, fervura do criminoso.em éleo ou vinho, o popular esfolament, a excisko da carne do peito, et, Recentemente se mostrou que a dcilizagéo de um corpo pode recorreratecnologias mais suaves, dispensando até mesmo a violencia diet, fsa Novas maneiras de moldar 0 corpo, modelé-lo, mar-lo,excité-lo, erties, obriga- toa emit signos, etc. Nao cabe aqui sprofundar 0 sentido dessa domestcago, da gual, pelo visio, ainda nada vimos. Basta lembrar o que da se depreende mais © mais como um tuismo: se form do homem, a formahomem é uma moldagem histrica complexa @ mutante, nfo hi porque desesperat-se com a exclamagio do filGsofo “Bstamos canes do homem". O que o enastia 6 o fato de que’® homem se tornou tum verme mediocre einsosso, e que esse apeqcnamentonivelado se trnau meta de civilzagfo. O homem esta doente, e sua doen¢a chama-se homem, ess forma reativa « impotente que se pretendeeterizar™ E preciso entfo seguir Nietzsche ato fim, mesmo e sobretudo quando seus textos. sugerem que © homem aprisionou a vida, ¢ que ¢ preciso livarse do homem para liberar a vida... trmos contemporineo isso significaria que quando o poder toma de asslto a vida, tendéneia crescente detectada por Foucault hij duas décadns, a resisténcia invoca o poder da vida, bem como de suas maltpls Forgas "Mas como liberar as forgas aprisionadas sob a carcagaatual do homem? E uma vera total, cruel, brutal esofisticada 0 mesmo tempo, nfo menos violent, talve?, déaque aquela que dew origem a esa forma que se quet hoje remover, ecujo campo de batatha nfo é oxsn sendoo préprio gompo do homem, desde os seus genes até os so¥s estos, sua percep, seus afectad Nada esta decidido, pois o homem continua sen- do, conforme a definigao de Nietzsche, “o ainda nio domado, o etemamente futuro”. \ 0 retrato que Nietasche nos lega€ também um chamamests: 0 homem, um grande experimentador de st mesmo partir da que cabetia introduzr o tema da subjeividade contempordnca ¢ sob «9 signo desta triple determinaga0: a forma-homem historicamente esculpida, 8 mal- Spl frgas que batem a pora © pe em xeque essa mesnafrm-homem, ea ida do experimentador de si mesmo. As novas forgas Seria preciso perguntar-se, a partir desse pano de fundo, quais novas forgas, moleculares, césmicas, biotecnol6gicas, cibernéticas, na sua violéncia de infamia ou promessa, estio em vias de desfazer hoje a forma-Homem vigente. Quais forgas até agora desconhecidas nos forgam hoje a novas configuragGes, ou a novos outramentos, segundo o termo cunhado pelo poeta Fernando Pessoa, ele que eta especialista no assunto de virar outro, de outrar-se? Por exemplo, que novos arsertbamentos estariam vocorrendo a partir das Forgas do silfcio, que complem as maquinas de terceira geragio, 1) Fiedrich Nistasche. Genealogia de moral, Paulo César Souza (iad). S80 Palo, Hrasilicnse 1997, p. 63. As FeferEacasuleriorespertencem a0 mesma lv, 13 i ou da engenharia genética? O que nos dizem os olhos inexpressivos da primeira ovetha clonal? Como eserove Deleuze, “no cae femer ov esperar, mas buscar nova armas”. Poi€4e o capitalismo onfvoro € multiforme requer, com toda evidéncia, uma plasieidade subjetiva sem precedentes essa mesma plasticidade reinventa suas dabras € resisténcis, muda suas estratépas, produz incessantemente suas Tinhas de fuga, refaz suas margens, Recta também suas opacidades, suas zonas obscuras, suas intimi- dads, seus novos prageres, seus reeacantamentos, seus animismos maquinicos e sua erética inconfessivel! como 0 que se viu reventemente no estupendo filme Crash. Cronenberg disse que o romance de Ballard em que se baseou esté simplegmente antecipando a psicologia do século XXI, Se ness filme os caros sta usados fisica © sexualmente, é porque o corpo humano deve doravante ser concsbido com suas extensbes tecnol6gicas e nervosas, Como o escreveu uma psicanalista paulista, 0 carro passa a ser “uma alegoria de estranhas relagSes posstveis com o inumano tecnologizado™. E preciso reconhecet entio as novas conexdes e hibridagdes, os novos territérios existenciis que pipocam por toda parte. Se 0 capitalismo desterritoraliza os sujeitos de suas esferas natais, fazendo com que as vezes eles se tetetitorializem sobre referénciasidemitérasarcaicas ou mididtcas, ao mesmo tempo essa nomadizagio generélizada pode signifier uma refludificagio aberta a novas composigées, a novos valores © novas sensibilidades. E nesse vetor, molecular, subrepresentativo, coletivo, que podem surgir novos agenciamentos de desejo os ‘mais inusitados, polifonicos,Reterogéneos. Seria lamentivel se frente asso, continu {ssemnosaferrados a uma representagio reasseguradora de subjtividade, num modelo ‘denttario que considerarfamos como traido ou perdido, enquanto de fato a vivernos esgargada por todos 05 lados,e devassada por um exterior cada vez mais intrusivo! Sujeito e subjetividade Talvez o descolamento progressivo da idéia de subjetividade da consagrada nogio de sujeito, na qual tem origem ¢ da qual ela deriva, seja uma maneira de incluir uma certa uma produtvidede existenialinteiramenteimprevista, mas comparilhavel. E uma provi, de obra, de subjetividade, de inconsciente, de rpturs eremanejamentos na trajetria de wma exiséncia, seja ea individual ou coletiva, em ques trata, como dria Arta, de roubar iden de exstiro fto de viverextraindo da mera existéncia avid, ali onde cla esmoreceenelausorada, Autoinvengdo Um belissimo estudo de Richard Sennett mostrou a que ponto a moderna socieds- de industrial esvaziou a dimensSo teatral do espago publico, desqualificando as més- caras produzidas na cena social e remetendo cada qual para sua suposta interioridade original, seu eu'. Todo 0 jogo teatral em larga escala foi substitufdo pelo predominio dde um espaco interior esvaziado, a tirania da intimidade oca, que ja no pode alimen- tar-se de nada pois é referida a si mesma, no maximo a0 seu efculo doméstico ou familiar. Sennett mostra precisamente que 0 eu de hoje s6 esté assim esvaziado porque ‘oespago publico que o nutria, ¢ 0 teatro que Ihe era coextensivo, foram desqualificados ‘eesvaziados. Ora, essa observagio ressoa inteiramente com os textos de Nietzsche, e {oda sua valorizagio da mascara, e da vida como produtora de mascara, e da conscién- cia que tinham disso os gregos. Uma méscara ndo esconde um rosto original, mas outra assim sucessivamente, de mado que o rostopréprio nfo passa da metamorfose criaglo incessante de méscaras. Nao se trata de retirar a mascara para encontrar a verdade oculta, ou aidentidade velada, mas compreender a que ponto a propria verda- 1) R, Senet. Ollie do homer lic ~ Aste intimidate, So Paulo, Cia das Letras, 1988 Ws de ou mesmo a identidade é uma entre as varias méscaras de que a vida precisa e que cla produz. Se a matriz estética substtui para Nietasche a matriz cientifica, € porque se trata de produzir o ainda ndo nascido, nfo mais de descobrir oj existente. Questao de autoinvencao, néo de auto-tevelagio, de criagio de si, nao de descoberta de si ‘que se vé na construgdo das personagens, que se tém ressondincia com tragos préprios 4s pessoas que 0s encarmamn (com efeito, cada personagem foi construfda a parti dos atores, e com que justeza e cuidado os diretores foram alfaiates da alma, ccerzindo personagens sob medida! —a panto de ser praticamente impossivel “passar™ ‘o papel de um para um out, j4 que os papéis no so universais vazios intercambidveis), ‘ho mesmo tempo, em vez de intensificar psicologicamente os tragos de cada um, nos seus draminhas intimos, iluminando a suposta verdade psiquica interior do sujeito, 0 {que rapidamente descambaria para um psicodrama de qualidade duvidosa, em vez disso 0 teatro faz esses tragos conectarem-se com personagens da histéria, do mito ou da literatura (0 Profeta, o Homem da luz, 0 Treinador de her6is, a Rainha, mas também ‘a Esfinge, 0 Imperador anarquista, a Torre Babelina), com elementos césmicos ov ‘outros (0 Caos, a Tempestade, as Trevas, a Luz, a palavra oracular), Nessa conexao tais tragos singulares so colocados em evidencia mas ao mesmo tempo desterritorializados de seu contexto psiquidtrico,e, arrastados para longe de si mesmos, sio prolongados até uma vizinhanga que lhes permite uma transmutagdo amplificada, numa dindmica que extrapola completamente os dados iniciais e personolégicos, fazendo-0s reverbe- rarem com a cultura como um todo ¢ experimentarem variagGes inusitadas. E onde 0 teatro oferece aos pacientes um campo de metamorfose e de experimentagio de um potencial insuspeitado. Pois os tragos que compem uma personagem (as singularida- des que habitam cada um) ndo sfo elementos para uma identidade reconhecivel, numa mimese referencial; eles no se somam num contomo psicossocial, ainda que isso possa estar presente, mas como miscara: a “rainha’, o “imperador”... Nao € um ator representando uma personagem, mas tampouco é ele se representando, é 0 ator produ- indo e se produzindo, eriando e se criando ao mesmo tempo num jogo liidico & cexistencialisante, desdobrando uma poténcis, ainda que na forma de uma entidade historica ou eésmica. O que conta, para além da mascara so os estados intensivos que esses tragos expressam ou desencadeiam, as mutagbes de que esses tragos sio portado- tes, as composigées de velocidade e lentidzio que cada corpo consegue, consigoe com ‘0s demais, as passagens fluxionérias, os indices corpéreos, incorpéreos, sonoros, lu- minosos, 0 puro movimento molecular, 0 gesto quantico, o trajeto rizomiatico. Dai porque o espectador no se pergunta “o que aconteceu?” ou “o que aconteceu com tal personagem?”, mas “o que me aconteceu”, registrando o sentido eminente do Acon- tecimento — a afetagao. Estética contemporanea eloucura Se aestética contemporiinea ¢ fragmentériae fluxionéria, rizomsticae metaestével, complexa, ndo-narrativa € nio-representacional (¢ 0 que é um teatro nfo: representacional — sendo o teatro traditionalmente o lugar da representagio?), € 106 preciso dizer que em tudo isso ela ressoa estranhamente com o que nos vem do univers dda psicose. Daf talvez sua espantosa capacidade em acolhé-lo, ea forga desse encontro, Nao se trata de expressar um universo interior j existente (uma cena interior, um lugar nessa cena), mas sobretudo de criar um estado, um gesto, um trajeto, um rastro, uma Cintlancia, uma atmosfera, e nessas passagens (desjencadeadas ir produzindo novas dilatagdes, novas contragdes, de tempo, deespaco, de corporeidade, de afecto, de percepx0, de vidéncia, um pluriverso a imagem e semelhanga desses deslocamentos. ‘Toda a arte dos diretores residiu em recusar 0 dramalho sentimental ou psicolégi- co em favor do trigico no seu sentido mais rigoroso. Seria necessério, para precisar esse tema, novamente evocar Nietzsche ¢ toda a questio do dionisfaco, da relagao dos ‘Bregos com adore a morte, do plus de vitalidade que segundo o fildsofo eles extrafam do lado tenebroso da vida, da alegre afirmagio do efémero ¢ do mbltiplo que alguns Intérpretes de Nietzsche tio bem souberam par em evidéncia. O encontro entre o teatro ea loucura opera o resgate desse tems nictzschiano, confirmando o quanto 0 autor de Zaratustea usava o passado mas eserevia para o futuro, das artes e da eultura, De qualquer modo, no contexto circunserito que nos ocupa, 0 teatro oferece para as mutagdes descritas anteriormente, um campo de imantagio privilegiado. Eu diria, ele oferece um plano de composiggo, um plano de imanéncia: nele tudo ganha consi {ncia desde que passe por essa laboriosa metamorfose migico-poética. Através dele, ‘© impalpavel ganha volume, o pesado fica leve, © mais discrepante recebe lugar e hi espago para 0 erro. Nao é, pois, mero encaixe inclusivo, mas transmutagdo processual A propria pega & uma deriva, uma busca. uma deambulagdo, uma errdncia, e nem ‘mesmo 0 encontro final com a torre Babelina, ¢ a rainha negra que sai de dentro dela freiam esse nomadismo, reteritorializam o espitito, interrompem sua vagabundagem incessante, Na primeira apresentagio, nos sltimos minutos do espeticulo, a trupe sirava em efrculos em torno da torre Babelina, jé que 0 acesso a safda do anfiteatro estava barrada por excesso de paiblico. Um espectadar, paciente de uma outra clinica, resolveu ajudar: colocou-se diante do Homem da Luz e do Profeta e os guiou por um ccaminho lateral em meio a platéia. Tinhamos certeza de que ele sabia para onde nos levava, para alguma porta secreta que ele conhecia, mas engano nosso, demos de cara com uma parede imensa, e ali ele nos nbandonou. Fomos dali margeando a parede até encontrar a safda. Se no inicio 0 piblico estava espalhado pelos corredores esperando ‘atrupe entrar ritualmente, dizendo em coro Ueinzz, Ueinzz, na saida final nos postamos ‘no ball, como que para uma foto de grupo, € assistimos nds A saida dos espectadores, eles um pouco confusos, sem saberem se safam ou aplaudiam ou se ainda ia aconte- cer alguma coisa... Tudo é passagem, o préprio final ainda é errancia Estamos curados? No fim os pacientes chegaram ao camarim euféricos, flizes, preenchidos, gritando Estamos curados! Nao se trata de acreditar nisso literalmente, mas eu diria que o teatro ajuda a curs-los, ea nds também, de uma série de cacoetes, Por exemplo, do cacoete de reduzi-los a personagem exclusiva chamada doente (ou doente-mental), papel a0 qual 107 rmuitas vezes eles mesmos se aferram monocordicamente, embora quando o jornal “O Estado de So Paufo” no artigo que fez sobre o espeticulo os chamou assim, a indig- nnagio fenha sido geral — eles eram atores, nfo doentes mentais, doente mental ¢ 0 jjornalista! Seria preciso entio deixar de representar monotonamente sempre a mesma pecinha hospitalar eedipiana, abrir portas janelas, mudarde teatro (!), mudar de cena (© que haveria de mais radicalmente analitico do que mergulhar numa outra cena, transformando as coordenadas de enunciagao da vida?), mudar o cenério, mudar de roteiro, sobretuda mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles, no para tomar tudo indiferente — ah, a ilusio mais perigosa! — mas para deixar emergir outras personagens (e quantas outras experimentamos nessa quebra e reconstrugdo incessante da “identidade” de terapeuta), outros estados, outras afetagiies < outras conexbes entre cles, entre nés. O teatro pode ajudar a curar-nos da crenga generalizada, partilliada por muitos pacientes e também inimeros profissionais de satide mental, sobre sua suposta impoténcia ou ensimesmamento estéril, incomunicabilidade social, incapacidade criadora, Ou da idéia de que a clinica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se aarte ndo fosse ela mesma um s6 tempo critica e clinica, como se @ arte ndo fosse j4 um dispositivo, como se o oltiar de um diretor de teatro, a escuta de um miisico, ndo fossem, na sua exterioridade em relag3o a0 campo elinico tradicional, e na possibilidade de assistirem a nascimentos que nosso olliar viciado abortaria, poderosamente clinica, € no mais alto grau. ‘A-cenaque o teatro propde (tas isso nio € de hoje, nem novo, talvez seja até o mais, antigo do teatro — © o mais antigo, jé € sabido, tem sua dimensdo inesgotivel de porvir) também pode ajudar acurar-nos da tentago de substancializar nossas persona- ‘gens cotidianas e seus impasses desejantes. Pois ali cada personagem emerge com a forga secreta da ficgao, isto é, contingente © necesséria, precéria e eterna, volétil e memorial, tudo isso ao mesmo tempo. E cada personagem faz fremir, por trés de seu contorno fugidio ¢ do “por um triz” em que se sustenta, singularidades impalpaveis Esses indices mégico-poéticos podem desfraldar novas composigdes de universo, no- vas dobras subjetivas. Por a, talvez, essa conjungo de teatro e loucura nos sirva para evocar, tanto entre loucos como entre os que se dizem sos, aquilo que o desejo ainda estd por descobrir de si e de sua poténcia na cena contemporiinea. 2) Divi com Renata Pull e Paula Francisgueitt a coordenagio geral Jesse projeto. Virias das obsergdet gui (eamiritas prowl de converse wocas com a equipe, com os dictoes com bs alores, a quem dedico este relts, Posteriormente uma segunda peg foi levada aos paleo, instulada Dédalus, com mak de Vine aptesealaes pdbicas,ente elas via ternporada no ‘Teatro Ofcina, no Cento Cultural S50 Paulo, no Tucarena e100 TUSP. A tp batizada des entio de Cia Tetral Usinzz, foi convidada © apresentouse com grande sucesen no 9 Festal ao de Cuitib, em marzo de 20. 108 PARTE V TEMPO E LOUCURA ‘A loucurs ¢ freqilentemente associada a um colapso na experiéneia do tempo. Mas cada teoria formula essa faléncia a seu modo, conforme seus pressupostos mais gerais. Nio foi pretensdo minha, nos capitulos que compoem essa parte, fazer um estudo ‘comparativo das vérias teorias a respeito da loucura, mas submeté-las ao crivo desta, \inica questo: como pensam elas 0 tempo e sua perturbagio na psicose? Em que aspectos sua teorizagdo, sobre 0 aparelho psiquico em geral, ou sobre os mecanismos presentes na psicose, em particular, descobre aberragées temporais? E em que medida essas aberragGes colocam em xeque uma imagem de tempo hegeménica em nossa cultura, ou nessas mesmas teorias? Liberam-se, a partir dai, outras imagens de tempo? Quais so elas? Seri que elas nos servem para pluralizar nossa idéia de tempo? Acaso poderiam ajudar a repensar a subjetividade nas suas diversas inflexdes temporais? ‘Varias dessas quest6es surgiram no rastro de um estudo abrangente sobre aidéia de tempo na obra de Gilles Deleuze, publicado sob o titulo de O tempo ndo-reconciliado (Perspectiva, 1998), ecujo teor éretomado no préximo bloco. Com efeito, pareceu-me {que certas imagens de tempo trabalhadas por Deleuze sugeriam um ealouquecimento do tempo que evocava, por sua vez, 0 tempo da loucura, Essa hipétese de fundo atravessa as notas de leitura que seguem, na forma de uma questo recorrente: no que serd que as “condutas” temporais detectaveis na psicose impelem a uma teorizagao do fempo que a reflexio clinica ela mesma nem sempre se preocupou em formular positivamente, isto é, de modo nao privativo? Nao seria possivel pensar, enfim, que a critica que O Anti-Edipo formula & psicanslise, tal como a reporto no dltimo texto esse bloco, pode ser lida também como a distancia entre a temporalidade da psicose € 0s tempos da psicanilise? ut O TEMPO SE QUEBRA' Foucault e 0 sonko fenomenologico Em 1954 Miche’ Foucault publica um cutioso preficio ao livro de Ludwig Binswanger Le Réve et Existence’, em que compata, do ponto de vista do sonho, a abordagem da psicandlise ea da fenomenologia, Deixemos apenas reistrado 0 eixo principal da argu- ‘mentagho: Freud, ao fazer das imagens do sonho 0 eco do Desejo,tesia ignorado os poderes dindmicos da imagem, suas les prprias, em suma, sua estrutura morfoldgica & sintética, em proveito exclusivo de sua fungio Semfntca. Por ter descanhecido essa estrutura de linguagem que envolve a experiéncia onitica, “a psicandlise freadiana do sonho nio ¢ jamais uma apreens6o compreensiva do sentido". O pano de fundo dessa crftca 6 0 lame natural, porém estrinseco, que a psicandlise supra entre a imagem ¢ 0 sentido, sem elaborar uma “sramstica da modaliade imaginéria e uma anise do ato cexpressivo em sua necessidade”. Melanie Kleine Jacques Lacan s6 triam intensficada ssa polridade, uma do lado da imagem (as fantasias como a matéra prima da experién- ia psiquica),o outro do lado da linguagem, ampliando o hiato entre uma psicologia da imagem e uma psiclogia do sentido. A acusagao de Foucault se resume nesta frase lopidar: “A psicandlise nunca consepsi fazer falarem as imagens”, Se a fenomenologia foi bem sucedida ao fazé-lo, apenas uma anise existencial poderia fornecer a possbilidade de uma compreensio vélida, como o sugeriv Jaspers, e como o fez Binswanger. Naocabe esmiugar aquios inimeros aspectos dessa critica ipsicanise feita por Foucault desde um ponto de vista fenomenol6gico(!), nem de sua posigao em relagio 2 fenomenologia nesse escrito de juventude, abandonada ulteriormente’, Basta notar 1) Fate promuncinds por paciente de Eugtne Minkowski 2) Ladwig Binswanger Le Réve ef 'Busence. Pai, Desc De Brouwer, 198%, “Introduction” de M, Foucault, retomad eI Dits er Eersy. I, op ct 3) Gérard Lebron mostou co!ne a obra posiesior de Foucault 6 um acerto de contas com a fenomenologi, mais especificamente com a analiticn da Gnitae: "Pois este discurso gira 90 ‘sso. O seu combate conza 0 ciemsmo e 0 positivism jé de ada serve: "A verdadeira conetagao 40 positivism aio esté num fetorno 20 vivio..” O retro 90 vivido flea apisionado num ‘ivem sem fim eRe @ eseriedo & fundago,Prticamente ao hs reserva srpresas, pos ‘estamos previomente assegurados de "descobris no homem o Tundamento do confecimento, a ‘elnigan’ de seus limites c, para conclu, a verade de toda 2 veedade (At palesra e acest: p. #48). Mais ainda: esse diseurso noe mantém mum novo sono dogmaies, que x6 acabard ‘quando se tver a coragem de reconhecer que 0 home alo passa do nome de um dispostiva da Episteme moderna, e quando se twver “uspendde {| 0 reconcile anropol6gia sob roa &s ‘Stas formas", pare "lornar a inlerogar of limites do pensamenta”, Nitesche, aerescenta Fou aut, for quem duo sinal porn sso. Sarre parece consul © principal alvo dessa pagina, Mas 43 ‘que para Foucault a experiéncia onirica possui um contedido tanto mais rico quanto mais se mostra irredutivel as determinagbes psicol6gicas em que se tenta inser-la, sendo sustentada por toda uma tradigdo literéria, mistica, popular, rom@ntica, mas igualmente filossfien, Trata-se de ver no sonho uma experiéneia do homem como ser de ranscendéncia, jf que 0 sonho 6 abertura a0 mundo, receptividade, possibilidade de ser afetado por ele, mers, entrelagamento, co do mundo no homem. O sonh anuncia ao homem o mundo se fazendo, na sua substincia e nos seus elementos (luz, gua, fogo, escuridfo, etc.) ‘porém mais do que esse tema romntico caro a Novalis, por exemplo, prima o prinefpio heraclitiano do sonhador como aquele que se dirige a um mundo que Ihe & préprio. Foucault interpreta o dito de Hericlto,tratado por Binswanger em artigo anterior, 3 luz de Heidegger, no sentido de que 0 sonho desvela 0 movimento da liberdade em diregao ‘a0 mundo, “ponto origindrio a partir do qual aliberdade se faz mundo", e ndo o lugar da temergéncia do “equipamento biol6gico dos instintos libidinais”. A experigneia onirica implica uma subjetividade radical, sem que o sujeito possa ser cireuscrito a um lugar determinado no interior do sonho. O sujeito do sonho, segundo Foucault leitor de Binswanger, no caso de um sonho relatado por este ultimo, & 0 sono inteiro, a doente ngustiada, mas também 0 mar, © homem inquietante que nele aparece, o mundo iniial- ‘mente enigmitico, depois imével e morto, que ao fim retoma sua vitalidade. No sonho, nota Foucault, tudo diz “eu”, mesmo os objetos e animais, até 0 espaco vazio, as coisas Tonginquase estranhas, f que © sonho &a existEncia se revolvendo em espago deserto, se uebrando em caos, explodindo em estridéncia. O sonho € mundo na sua aurora de jorramento quando ele ainda nio é objetividade, Para além da critica a0 positivismo e objetivagiio do homem que a fenomenologia impata a0 corpus freudiano, e que abordaremos em seguida, aproveito as poucas indicagdes que precedem pata introduzir a problemdtica temporal que, na andlise de um sonho proposto por Binswanger, Foucault tangencia, depois de comentar aspectos espaciais de grande interesse. Trata-se em suma do sentido atribuido por Binswanger ao eixo vertical do espago em sua significagdo: uma existéncia que se transcende no centusiasmo, num auto-ultrapassamento, mas que por isso mesmo implica numa perda do chio, a vertigem de uma desmedida que nio promete sendo uma queda. Eis af Foveailt vio, por além dele, toda a analitea da finiude, io ¢, a fenomenoogiae sua derivaga0 cexistencils, in Recordar Roeault, Renato Fania Ribeiro (org). $s0 Paulo, Brasilien. p. 13. Para um estido mais detido das rmzdes desta ruptura com as anlises do vivido, doravante tentendida coms una lenaiva de restaragdo da “era da Repesenag8o”, ver Lebron, "Notes sur la phénomenologe’. in Michel Foneault pilosophe. rencontre internationale, Pais Sil, 1989 [No geal no dere o juz de Pool Veyne:"O modo de Foveaut tem povevelmente, como ponto de pari, uma reagdo contra 9 onda fenomenoldgica que, na Prange, se produzia logo pds libenagto, O probleme tlvex tenha sido o segvine: como consezuir mais do que pode lua lsofia da consigacia Sem, com iso, cir aasaprias do marvsino"? (Foucault révolutionne PPhistoie”, in Comment on écrit histoire, Paris, Sevil, 1978, p- 383, ct. por Lebrun). Ver igualmente Dreyfus e Rabinow. Micha! Foucault, un parcours philowophiqu. Pais, Gallimard, 984, 4) L, Binswanger. Lappheasion héracitéenne de Vhomne. In nroduction d Manalse exisenel Paris, Minuit1971 (0 original ¢€ de 1961). HS versto espanhola disponivel em Arsfeulos y finferencias exogidas, Maid, Ed Gredos, 1973. Pane do material include na ego espanhola fot publieado em Diseurt, parcours et Freud, Paris, Gallimard, 1970 5) Fouseult. Introduction, op. eit. p. 64 14 expostas, pois, coordenadas do alto e baixo, No sonho de Ellen West exposto por Binswanger, 0 mundo subierraneo da vida grosseira da familia, grande wmulo da existéncia, €0 mundo etéreo e luminoso, promessa de uma existacia livre erenascida. ‘A terra para essa enferma s6 significa a morte. Desapareceu de seu mundo 0 espago sélido ¢ consistente do movimento real, da progressio no devir. © sentido essencial dis oposigSes na verticalidade (ascenglo/queda), na horizontalidade (préximo/distante), na luminosidade (claro/escuro) é que pe a nu as estruturas da temporalidade, Na oposigao horizontal, por exemplo, do prdximo e do Jonginquo, o tempo s6 se expressa como progresséo cronolégica, entre um ponto de partida e outro de chegada, prometendo, quando af extenuado, sua retomada sob a forma da repetigio e de um recomeco. E um tempo nostélgico, tempo da epopéia, circular ou iterativo, Na oposigdo clarofescuro, trata-se de ums “tempo ritmico escandido de oscilagbes, de um tempo sazonal”, onde a auséncia é sempre promessa de retorno e a morte garantia de ressureigéo. E no movimento de ascengao e queda, contudo, que se apreende a temporalidade auténtica, pela qual a existéncia antecipa Sobre sua morte @ assume a0 mesmo tempo sua solidi e sua facticidade. A tascendéncia do existente a si mesmo no movimento «de sua temporalidade di-se no eixo vertical do imaginério. Mas pode faz8-Io também passado, pelas quais se atribui ao futuro € a0 projeto um privilégio absoluto. Nessavatezoria poderiam ser inclufdas todas as verses de uma fenomenologia existencial tal como as reportamos no capitulo precedente. Temporalizacao e sedugao origindria Ora, a idéia de Laplanche, a0 contrério, € poder operar a triade presente»passado-futuro como um movimento originério de temporalizagao. Para tanto, recorre & sua prépria teoria da sedugio generalizada, A sedugdo origindria se define como uma relagiio de atividade-passividade, de dissimetria constitutiva na relagio entre 0 aduito¢ a crianga, em que esta se vé confrontada a um mundo adulto que The envia mensagens ¢ excitagbes impregnadas de signifieagées sexuais inconsci- centes, percebidas por ela como enigmticas (e que portanto Ihe chegam como des- traduzidas),e cujo sentido cabe a ela, na sequéncia, tentar raduzir (isto €, re-tcaduzir). Tentativa sempre frustra, de tradugzo ¢ autoteorizacZo, que deixa atrés de si elementos intraduzidos, primeiros tudimentos do inconsciente”. ‘A dissimetria sinerdnica inicial pripria& situago da sedugdo originéra, tal como acima descrita, 6 entendida coir 0 motor da temporalizagto, ja que esta é concebida em fungao do ‘movimento interminGvel de taduclo, des-tradugio ¢ re-tradusao do origindrio adulto. Eno ddesequiltrio diacrGnico ente o por-traduzi (Jefinigo do inconsciente) ea traduo presente imnpetiita, impelindo @ uma tadugzo sempre renovada, que se dio os remanejamentos de perspectiva, a propria temporalizagio do sujeito, Nao & outo 0 sentido que dé Laplanche a0 ‘apris-coup freudiano, & aos remanejamentos constantes que suscita 1) Freud, © posta © 08 somhos diuros, 1907. In Obras completas, v. 1h, Madrid L981, p. 1345, verso modificada 4) fait Roberto Monzani, em texto escrito em 1981-2, deseavolve iia similar a vespeito de wa edao orginara presente em Freud, susentando que eS hipétese no foi “arquvads” quando flo aandono de teria da sedueao, Entano, o autor faz questo de assinalar que disconda do fomo teérca tomado por Laplanche aa seqléncia, A conclusto no refer texto diz: “que 5© Tenens nogto de reloaea9 ng0 no interior dein Mal tnperal. Aqui (ome pura a sedusao) 1 isi see mlomada erepensada, mas nam outro nivel: no da idia de um chogue de séries". As cries sto: destjo da esangaldesejo da mie, sedogo/fatasia, Presume-se que a teporalizag80 “evva de un chogue Je sees, mals do que de am bito temporal. CE Feud. O movimento Ppensemento. Campinas, Ed. Unicamp, 1989, pp. 85, 53 128 No encadeamento presente=passado—futuro proposte por Freud, mas lido a par- tir dessa implantagio da mensagem enigmitica de um outro (outra pessoa, 0 adulto) no sujeito, germe do algo-outro estrangeiro implantado no sujeito (inconsciente), a tentativa de tadugio pelo sujeito passa a ser 0 motor imével de sua temporalizacio, assim que Laplanche pensa escapar a0 dilema que ameaga a pritica psicanalft- ca, de str concebida como um puro determinismo (0 outro em mim contera jé pronta fa chave que tudo abre) ov como pura doagio de sentido (0 outro em mim & bruto, portanto aberto & doago de sentido, seja ele qual for, o que a torna arbitréria), Nem determinismo causalista (passado=presente=sfuturo), nem hermenéutica (presente=futuro=passado} Tanto a via progrediente quanto a ret6grada sio recu- sadas. Em vez de priorizar a deisdo ou a resoluglo evocadas por Heidegger, aandlise privilegia a Lésung como Auflisung, a solugio como dissolugao, como decompo: Gio, a passagem pelo passado como um subir a montante dissolvente,resolutiva O tempo da consciéncia Além desse sentido do Nachirglicheit, Laplanche também faz referéncia a. um outro tempo em Freud, um tempo da consciéncia como originado na percepeo. Toman- do por referencia o texto sabre 0 Bloco Magico ele nota que a origem da idsia de tempo estar no modo de funeionamento descontnuo intermitente do sistema Pept-Cs, rata se das dus camadas necssirias a0 aparelho perceptivo. A primeira € como um escudo protetor: sua funcao é diminuir a intensidade das exctagSes que invadem 0 psiquismo. A segunda & uma superficie situada atris desse escudo, e que recebe os estimulos jd atbrandados, o sistema Pept-Cs propriamente dito. Visto que a protego dada pela primeira camada parece insuficiente, € acrescido um mecanismo de descontinuidade e de inermitncia num abee-e-fecha de flashs protetores. O tempo elaborado af por Freud, como onota J Gondar®,€ mais um conceit, uma iia abstata (tempo como sucessio de instantes) derivada do ritmo constante na alterndncia percepedo/nao-percepcéo, conscincia/ndo-consciéncia. Ora, sogundo Laplanche, essa idéia diz respeito mais 3 percepeo dos instantes, a0 tempo perceptivo (digamos, a0 plano da temporalidade, no limite comumn também ao animal) do que a temporalizagio do ser humano, Portanto & uma nogio extrapsicanaitica,jé que os concetos maiores da psicandlise (sexualidade, recaleamento,defesa,transferéncia)ndo encontram af nenhum lugar 1 4, Laplanche, Le fomps et Fate. In Pechaualyse a PUniversié, 1991, 16, Gl, pp. 33-56 5) 8 Gondar. Os tempor de Freud. Kio de lanete, Revises, 1995, p. 40 6) ineramente vata, como se sabe, a posigi de Jacques Deri, que no conceit descontnusta do tempo sugerido por Freud no Bioco Maigico, associa perodicidade (devi-visvel altemando ‘om apagamento, 0 bilho © © desvanesimento da consigneia na percepeto, em suma, 2 io citbldade pedis) ¢ espagamento da exeia, A pr da, ele pode diver: “A ternporaidde om espagmento no serpents deasatiuidade horizon na cadeis de sgnos mas a escrita como interrupgio e retablecimento do conto enite ae diversas profundiades Jas camadse Psiqicas, 9 teido temporal to heterogéaee do prio trabalho psiguico, Nia se reenconta a hema continuidade da loka nem a homogeneidale do volume; mara duragio e a profundigade Giferencindas de wina cena, seu espagamenta, Para além do propisito de Dertida Je pensar a fsrtara evanescente do tga © 0 espapamente, & preciso dizer que suas observagSes caer para 129 Aaatemporalidade relativa do inconsciente Coube a Maurice Dayan, no entanto, 2 partir de uma andlise cuidadasa dos postu- lados freudianos a respeito da atemporalidade do inconsciente, revelar que sex sentido privativo s6 podia ser sustentado por Freud em contraposigo ao tempo seqiencial da consciéncia’. Em outras palavras, © inconsciente nio € atemporal absolutamente, mas relativamente, isto é, em comparag0 com o tempo do consciente-pré-consciente, © na medida em que este € tomado como representante exclusivo do que seja um regime temporal. Pois € evidente que as ts afirmagées recorrentes de Freud sobre 0 empo no inconsciente deixam entrever uma temporalidade positiva, Como se sabe, Freud diz que os processos animicos inconscientes no sio ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum os altera, e que eles ndo sém relagdo alguma com 0 tempo, Ora, nota Dayzn, o terceiro enunciady nio resume nem € a consequéncia necesséria dos dois precedentes, sendo de longe 0 mais contestivel. Pois como cconceber processos (mencionados no primeiro enunciado) sem supor qualquer relago a tempo? Um processo situa-se entre um antes e um depois. Além do mais, todos os pressupostos atribuidos por Freud ao inconsciente sdo impensaveis segundo a hipé- tese de uma atemporalidade absoluta, Por exemplo: a admissio de que o Ies é “vivo, 2 claborgdo temporal do provsso primo (tal come serio deseriias 90 final deste capitol). De gum modo @ propio ator reconbece, 20 escrever: “A eadeia fGnica ou a cada de ecrta fonética jg esto sempre distendidas por esse minim de espagamento essencial sabre o qual poderto ceva o trabalho do sonho eto regress formal em eral”, (L'erre et la direc Pais, Seu, 1967, p. 35, erifo meu). Maurice Dayan, Déni de la mon et passage do temps. In Paychanayre 2 "Universi, , 18, $7 Paris, 1990, p. 16:21. Jacques Derrida, muito antes diero, no contexto Je sua abordager Singular, sustentov o mesmo: "A atemporaliade do insconsciente é sem dvida determinada apenas por oposigio a um conceito rovrente We tempo, conecito tradicional, conccito da ‘elaisiea, tempo di mecinica ou tempo da coniciéneis. | @inconsciente certamente £6 & temporal em» comparagso com wm certo conceit wpat do tempo, in L'ecriture el dférence, op. it, p. 318, A validade da expresso "conceito vulzar" de tempo foi quesionads pelo préprio stor, nam denso escrito ullerior em torno Je Heidegger ("Ousia © Gramme”, primeiea ‘ertdo publicada em L'endurance de la pensée, cleinea coltiva, Pour saluer Jeat Beaufre. Pars, Plon, 1968, retomado om trlugto portuguesa in Marzens di flea. Porto, Rés, s:) 1) "0 Inconscienie”: "Os processos do sistema Ter so atemporai, isto &, nfo esto ordenados etm referencia ao tempo, alo se modificam pelo trnscurso deste gem tém, emt gerah qualquer relago com ee, Também a relag0 fpr se acs fg a0 batho do sistema Cx" esto 8 panir de Sigmund read. Obras Completa. Buenos Aires, Atgororts Ed, 1986, XIV, p. 184, Para a recorrénciae anteriores, f, mesma pagina, nota) "além do principio de prazer: Vinos que 0s procestos asimicas inconscients S10 ems ‘stemporss" Isso significa, em prego lugar, qbe mio se Ordenaraim femporalmente, que © tempo nado alert eles, que alo se Thes pode aplicar a representagdo de tempo. Eis algunas caractertaticae negativas que sé podemos conceber por comparagio eom os processos anlmicos onscieates" der, XVII, p. 28). “Novas conferéncasincodutrias& picanlise, XXXI": "No fet mada hd que poss equparr se A nogagio, e ainda ge perecbe com surpresa a excersio a0 entncado do flésofo sepuno © qual espace © tenipo so formas mecestiria de ossos atos pquicos. No isso nada hi que corresponda i epresentaglo do tempo, nenhm recoshecimento de um decurse temporal & © que € assombroso no mais alto grau € aguatda ser apreciado pelo peasamento filosofico feahuma alteragao do processo psiquieo pelo transcuso do tempo,” (idem. XX, p69), ? 130 capaz de desenvolvimento”, que ele envin derivados, que ele “é acesivel ds ages exercidas pela vido (que ele fnffuencia constantemente o Pes", e que “ele mesma de seu tado,€ submetido 2s influéncias por pate do Pes” © comentério de Dayan vai no sentido de entrever no inconsciente nao uma ‘atemporalidade eternitéria, mas antes uma desordem temporal, contrapesta i endow sucessiva do tempo no real. Embora haja uma mengdo répida a uma possivel "multiplcidade temporal ela ¢ logo concebida como uma mera reversibilidade. Assim, se a ondem que rege 0 processo secundéio postula que: 3} que ocorteu nao pode nde {er ocorrido; 2) nada pode ser reproduzido de forma idémtica a si mesmo, ¢ 3) todo ‘contecimento se distancia cada vez mais dos seres que foram seus protagonistas, preciso admitirentio que no inconsciente regem princfpios inteiramente outros; 1) o ue acontecen pode em certes casos ser anulado: 2) um acontecimento pede ser reeditado exatamente como foi conhecido e experimentado, ¢ 3) renhum acontecimento intercorrente pode tornar a coisa passada mais longingua do ser a quem ela adveio. De qualquer modo, a pista aberta por Dayan sobre a atemporalidade relativa do inconsclente, sua suxzestfo a respeito do sentido temporal dos processos inconscicntes 6, por fim, a mengo a uma multiplicidade temporal no inconsciente i por si s6 sao valiosas, embora ele mesmo mio as tenha explorado posiivamente Psicandlise versus fenomenologia Num estudo sistemitico em torno do pensamento de Freud sobre o tempo, 36 Gondar embry na estca de Laplace, quco emo sdesasimonees pein «quando 0 sujeito esté em questio, ou quando 0 sujeito pode ser posto em questi embora ndo se trate, observa ela com acerto, de um tempo subjetivo"", Pols abordar a produgao do sujeito ndo significa que se esteja tematizando o tempo tal como o Sujelto 0 vivencta, ou tem consciéncia dele. Para relomar as categoria de Laplonche meio oo ino deste capil pscnse no tem ade neces dizer sobre 0 tempo no plano da remporalizagdo, mas isso nada tem a ver tom @ {tempo vivido to caro aos fenomenslogos. O tempo da psicandlise se distancia do da fenomenologia, segundo a autora, grosso modo, na medida em que para esta a gonsciéncia abarea tudo e sintetiza processos diversos, tais como percepedo, maginagdo e meméria, runindo numa tnica “presenga” ou num nico fluxo vivido séries diversas. © homem pode entio estabelecer uma sfntese entre momentos descontinuos, entre diversos “vividos”,inserindo-se numa dimemsdo hist6rica, Para Freud, ao contrtio, » aparetho psfquico no possi unidade nem qualquer fungao de sintese, € desmemrado em vérias instincias, com funcionamentos distintos de tal 2 Gado por M Digan “0 incoscient” 10) Un oo sc ipa Jee eno de Dra, ut mo pasos abc a de apo 8 neta da erp inconcene, «gic dstaiaspicndne, mee eg i nae do ser-para-a-morte. Isso serd retomado mais adignte Mo 11) 20 Gondar Os tempor de Fred, op cit At Ps pi argumentagées € conclusdes desse estudo. a 131 modo que a percepgio € desvinculada da meméria, ¢ a descontinuidade permanece 0 dado basico (a percepsio se realiza por intermiténcias, 0 discurso consciente & {nterrompido por lacunas, etc). O principal & que ao separar consciéneia e meméria, tornando-as excludentes, Freud fecha a via para uma continuidade dada pela conscincia, bem como para um tempo vivido continuo. Acrescente-se a isso a postulagtio de que nem todos os tragos mnemicos so vivenciais (nem tudo 0 que se ‘mantém inconsciente foi vivido ou expetimentado por um sujeito, p. ex. as protofantasias), e conclui-se que para a psicanilise ndo € 0 tempo vivide que introduz ‘© homem na experéncia da historia, ¢ no é através dele que se poderia pensar a constituigio de um sujeto. A idéia forte que estrutura a pesquisa de Gondar, porém, consiste em postular em Freud, além da posterioridade e do tempo da consciéncia analisados por Laplanche, mais dois outros tempos, os tempos da pulsio. Mas antes de percorrer em sua compa- hia essa via inspirada, cabe ainda dizer com ela algumas palavras sobre a famosa postetioridade, comentada acima apenas parcialmente e numa perspectiva sobretudo laplanchiana, Hiato temporal ‘Vem de Charcot a idéia inicial de um hiato temporal entre trauma e sintoma, mas © lapso de tempo € af considerado como de uma espera para a manifestago do sintoma, ¢ nao como o tempo de uma produgo, visto que a causa da sintoma esta localizada na violéncia sofrida pelo psiquismo no evento traumatico, 34 em Freud, & diferenga de Charcot, 0s acontecimentos responsdveis pela causagao neurdtica sio a) do campo sexual, de um perfodo infantil, b) & a lembranga que € traumatica (os histéticos sofrem de reminiscncias) ec) 0 trauma exige a participagao de dois tempos, em que o segundo, apés a puberdade, por traco associative, confere um carter traumético & primeira experiéncia, A eficécia traumatica depende pois do enlace centre duas representagbes, de modo que entre elas ni ha uma articulagao cronol6gica, ‘mas légica, Com o abandono da teoria da seduglo, ¢ a descoberta da sexualidade infantil, o lugar do trauma se ampliaem diresio a fantasia relacionada ao eixo Edipo- castragao. Para o trauma e o recalque surge a mesma Idgica da posterioridade: o trauma sé surge como tal ao ser evocado por uma segunda representagao, assim como o recalque 6 se revela no retorno do recalcado. No limite, nio haveria diferenca no tempo entre ‘© recalcado ¢ 0 seu retomno, pois 0 recalque no poderia ser pensado como preexistente A produgao do sintoma, E assim que todas as produgdes inconscientes sero encara- das em funglo de um a posteriori, Significa que o inconsciente nao existe senio nas suas manifestagdes atuai, fora disso ele nio é algo que possui uma realidade presente ‘no tempo, $6 podemos falar de suas irrupgdes, que so constitufdas por uma operagio temporal singolar, Sabe-se a que ponto a escola francesa levou essa idéia a sério, 20 colocar a nfase na reorganizagiio retrospectiva, nos momentos criticos que propici- ‘am a reordenagio das contingncias anteriores. Criagio e recriagzo do passado, reordenamento da meméria, caréter plistico, Muido, pleno de volteios da historia. S6 132 hi passadoaprés-coup" Se essa iia for radicalizada,pode-se dizer, como o sugere Gandar, que o inconsciente€ uma vitwalidade,que deforma sbitae desconinaa se catia em trevssvias manifests; ele no ets antes que um sintoma ou om Sto falhosejam proturides. mpde-se, para falar do inonsciente do pont de visa temporal, um tempo do efeuaydo, em gue o sentido € qe faz existraqulo que 0 produz Sera possivel pensar comibuigdo de Lacan a partir dessa ogi, com os rearanjos dindmicos, a esruura temporal de pulsagho, o abre-<-fecha puss, o inconsciente emergindo num momento preciso mas inantcipave,esvaindese entre uma abertura @ seu fechamento, etc. Nese sentido, 0 retoro do recalcado, pontoculminante do process, surge como segundo do ponto de vist eronolégico, mas primeiro Jo ponto de vista igieo, Em sun rata-se de uma modaliade temporal reroativa, em gue 0 sentido do passado é dado a partir do presente. Mas também esta em jogo ura temporalzag, isto 6, um modo pelo qulo sueito se produze se organiza no temo FE um tempo inrnseco a0 sujet o sujeito capaz de engendrar um tempo prope simultneamente ¢ por ele constituid. Esse tempo no preexiste nem exist ulterior mente 3s operagdes de produ subjetiva ‘Se reportamos de modo susinto alguns elementos dessa rettospectiva, € porque

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