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ISMAIL XAVIER O DISCURSO CINEMATOGRAFICO a opacidade e a transparéncia 32 edigdo Revista e ampliada PAZ E TERRA © Ismail Xavier Fotos: Acervo Cinemateca Brasileira CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Xavier, Ismail, 1947- X19d discurso cinematogréfico: a opacidade e a transparéncia, 3° edicao ~ Sao Paulo, Paz e Terra, 2005 ISBN 85-219-0676-5 Inclui bibliografia 1. Cinema ~ Estética. 2. Cinema - Filosofia I. Ticulo ILS 03-1822 CDD-791.4301 CDU-791.43.01 EDITORA PAZ E TERRA SIA Rua do Triunfo, 177 Santa Efigénia, Si0 Paulo, SP — CEP: 01212-010 Tel: (O11) 3337-8399 Esmail: vendas@pazererra.com.br HomePage: www.pazeterra.com.br 2005 Impresso no Brasil / Pinted in Brazil PREFACIO Ha quase trinta anos, 0 livro O discurso cinematogréfico resiste bravamente como a mais importante obra sobre teoria cinematogrifica produzida no Brasil, mesmo considerando a ex- celéncia de outras contribuigoes que vieram depois, algumas inclusive do mesmo Ismail Xavier. Varias geragoes de profissionais do cinema, audiovisual e comunicacio em geral se formaram nas universidades tendo este livro como a sua principal referéncia bibliogréfica. As razbes si0 simples de elucidar. Em primeiro lugar, Xavier tem uma vasta bagagem de leituras, abrangendo praticamente tudo 0 que de importante foi pensado ¢ escrito no terreno dos estudos de cinema desde as suas origens até as mais recentes discusses sobre o atual reordenamento do audiovisual. ‘Tem também uma invejvel capacidade de condensagio e sintese, sabendo extrair da babel dos debates entre as diferentes tendéncias tedricas o seu fundo conceitual mais importante, para depois destilar isso tudo numa linguagem clara ¢ acessivel, mas sem comprometer a complexi- dade das questdes discutidas, nem sacrificar a necessdria densidade conceitual em nome de qualquer didatismo simplificador. E além de tudo isso, é um autor com opiniao: nao apenas apresenta objetivamente as varias reorias, mas se posiciona com relacio a elas. Eis porque um livto como O discurso cinematogrfico demandava uma edigio nova e atualizada. Evidentemente, um livro publicado originalmente em 1977 reflete as discusses que estavam em proceso naquele momento. Nos anos 1970, 0 processo de recepgio do filme ¢ 0 modo como a posicao, a subjetividade ¢ os afetos do espectador sio trabalhados ou “programa- dos” no cinema mereceram uma atengao concentrada da critica, a ponto desses temas terem se constituido no foco de atengio privilegiado tanto das teorias estruturalistas, psicanaliticas € desconstrucionistas, quanto das andlises mais “engajadas” nas vérias perspectivas marxistas, feministas ¢ multiculturalistas. Nessas abordagens, o aparato tecnoldgico ¢ econémico do cine- ma (na época chamado de “o dispositive”), bem como a modelagao do imagindrio forjada por seus produtos foram submetidos a uma investigacao minuciosa ¢ intensiva, no sentido de veri- ficar como o cinema (um certo tipo de cinema) trabalha para interpelar o seu espectador en- 6 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO quanto sujeito, ou como esse mesmo cinema condiciona o seu puiblico a identificar-se com ¢ através das posigdes de subjetividade construidas pelo filme. Quando 0 “dispositivo” é oculra- do, em favor de um ganho maior de ilusionismo, a operacao se diz de sransparéncia, Quando 0 “dispositive” é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e critica, a operacio se diz de opacidade. Opacidade e transparéncia ~ subtitulo do livro — so os dois pélos de tensio que resume o essencial do pensamento daquele periodo. Nesta nova edicio, Xavier optou por nao interferir no texto original de 1977 (¢ no apéndice de 1984). Em compensacio, adiciona a esta edigao um capitulo novo, que dé conta do posterior avanco da teoria — e também da sua dispersio ou desconcentragio em torno apenas de alguns temas hegeménicos. Esse capitulo adicionado ¢ praticamente um livro novo — como se fosse um Discurso cinematogrdfico 2 — onde, novamente com notavel poder de sintese, Xavier traca 0 percurso do pensamento tedrico desde a critica do “desconstrucionismo” dos anos 1970 até 0 surgimento de novas perspectivas de andlise. De fato, de 1977 para cé, 0 pensamento predominante nos anos 1970 foi submetido a uma revisio as vezes bastante dura. As teorias daquele perfodo pressupunham uma concep¢io um tanto monolitica do que era 0 cinema “dlassico” e essa concepsio comesou a se mostrar problemdtica quando as atengies se voltaram para um numero imenso de filmes “comerciais” ¢ até hollywoodianos que néo referendavam 0 modelo. Por outro lado, a concepgio que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepgao era demasiado abstrata ¢ rigida: 0 espectador era visto, nesses sistemas tedricos, como uma figura ideal, cuja posigio c afetividade encontravam-se estabelecidas a priori pelo aparato ou pelo “texto” cinematogréfico, nao cabendo portanto nenhuma consideragio a respeito de uma possivel resposta auténoma de sua parte. © novo capitulo acrescentado oferece ao leitor uma espécie de mapa conceitual dos novos caminhos perseguidos pelo pensamento cinematogrifico a partir dos anos 1980: a critica dos modelos tedricos do estruturalismo e da psicandlise (David Bordwell, Noel Carroll), os novos modelos da semio-pragmatica (Roger Odin, Francesco Caseti), a retomada da tradigio baziniana em perspectiva contemporanea (Serge Dancy), o retorno ao cinema das origens (Tom Gunning, Miriam Hansen), as perspectivas feministas (Laura Mulvey, Mary Ann Doane), as riticas da cultura (Fredric Jameson, Jean Louis Comolli, Paul Virilio), as incursées de fundo filoséfico (Slavoj Zizek, Stanley Cavell, Gilles Deleuze), os estudos culturais (Raymond Williams, John Fiske, Jesus Martin-Barbero), o diélogo com a pintura (Jacques Aumont, Pascal Bonitzer) ou com a miisica (Michel Chion) ou com as outras artes visuais ¢ audiovisuais (Raymond Bellour, Philipe Dubois) ¢ a recente “inversio do principio” operada por Jacques Ranciére. ‘Trata-se de uma verdadeira viagem pelo pensamento contemporaneo do cinema, do audiovisual ¢ da cultura inteira do presente, onde Xavier faz 0 papel nao apenas de guia, mas também de protagonista, j4 que, em muitos momentos, ele nao esta apenas comentando o pensamento dos outros, mas também dando forma ao seu proprio universo conceitual. Tl PREFACIO Mas, ainda que um certo fundamentalismo ortodoxo dominante nos anos 1970 renha passado pelas necessirias corregGes e relativizagées nas décadas seguintes, o essencial daquela discussio permaneceu de alguma forma e é bom que nao seja esquecido. E muito instrutivo notar como a dialética da opacidade e da transparéncia, anunciada como moribunda no cinema ena tcoria mais recente, retorna agora com toda forca nos novos ambientes computacionais Uma autoridade nessa érca como Oliver Grau, em seu recente livro Virtual art, From illusion to immersion (Cambridge: The MIT Press, 2003), discute as determinagGes ideol6gicas do ilusio- nismo na rcalidade virtual no video game c o faz numa ditegio teérica que lembra estrcita- mente as discuss6es em torno do “dispositive” nos anos 1970. Ele se pergunta se ainda pode haver lugar para a reflexio critica distanciada nos atuais espacos de imersio experimentados através de interagéo. Mostra também como as técnicas de imersio com a interface oculta (cha- mada ingenuamente de “interface natural”) afeta a instituigéo do observador e como, por outro lado, interfaces visiveis, fortemente acentuadas, tornam o observador mais conscio da experién- cia imersiva ¢ podem portanto ser condutoras de reflexao. Se a historia se repete em ciclos, ¢ conveniente, vez por outra, retornar aos modelos de pensamento do passado no apenas para constatar 0 que foi superado, mas também para avaliar o que podemos estar perdendo. Arlindo Machado NOTA INTRODUTORIA A 3¢ EDICAO Quando da primeira edicdo deste livro, organizei a apresentagao das teorias a partir de um eixo que marcava a oposi¢ao entre “opacidade e transparéncia”, partindo da diferenga entre estilos de composigao da imagem ¢ do som no cinema. Num extremo, hao efeito-janela, quan- do se favorece a relagdo intensa do espectador com o mundo visado pela camera — este € cons- truido mas guarda a aparéncia de uma existéncia auténoma. No outro extremo, temos as opera- ges que reforgam a consciéncia da imagem como um efeito de superficie, tornam a tela opaca e chamam a atengio para 0 aparato técnico ¢ textual que viabiliza a representacao.Tal oposigio se ajustava ao debate tedrico de meados dos anos 1970, momento em que se criavam as nogées em consonancia com os desafios trazidos pela pritica do cinema nas verses mais radicais do underground norte-americano ¢ do cinema curopeu pds-1968, este que teve no Godard de Vento do leste, nos documentirios de Jean Daniel Pollet ¢ no cinema conceitual de Jean-Marie Straub seus exemplos mais discutidos. No Brasil, era o momento em que o “cinema de invencao”, ou “experimental”, operava também no terreno da desconstrugao. Desde entao, 0 campo das idéias ¢ teorias cinematograficas se expandiu em variadas des de modo a criar um novo quadro conceitual para o debate, o que exigiria um outro ponto de vista para a apresentagio das teorias dentro do espirito didético, de introdugao, presente no corpo deste livro. Neste longo periodo, as idéias que emergiam do préprio contexto dos cineas- ire- tas ¢ dos criticos conviveram com uma intensa produgao de textos tedricos vinda das universi- dades, uma vez que 0 dado diferencial entre 1977 e hoje foi a consolidagao da pesquisa acadé- mica. Esta explorou os campos da andlise formal (o drama, a narrativa, a composigio visual ¢ a trilha sonora) ¢ a intrincada relagdo entre 0 cinema e as outras artes, num mundo em que a interpretagéo de experiéncias estéticas mostra que nao € mais possivel montar um sistema das artes distintas, especificas, como se fez durante algum tempo e como tentaram fazé-lo os pri- meiros defensores do cinema como arte auténoma. 10 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Tal como os cineastas em seu trabalho, tedricos e criticos tém enfrentado 0 desafio trazido pelo impacto do avango tecnolégico que desestabiliza a prépria definicao do cinema. A ténica é contabilizar perdas ¢ ganhos, reconhecendo que o seu destino esté attelado a0 dos outros suportes da experiéncia audiovisual (0 video, a imagem e som digitais). Transformacoes do mundo pritico rebatem sobre a teoria num momento em que, no plano da reflexao, hé maior complexidade nas relagGes entre a teoria do cinema e a filosofia, e hé um enorme avanco dos estudos histéricos viabilizados pela parceria entre as universidades e as cinematecas. A diversi dade do que foi produzido e as rotagdes havidas no eixo dos debates exigiram, numa atualiza- 40, praticamente um novo livro caso adotasse 0 mesmo padrao de exposigao das teorias ¢ dos programas estéticos. O discurso cinematogrdfico, em seu formato original, tem se mantido de grande utilidade nos cursos de cinema. O testemunho dos colegas atesta a sua renovada procura, 0 que me faz rer que os parametros que o nortearam foram coerentes ¢ eficientes na configuragao do percur- so da teoria até 1977. Nesta nova edi¢do, optei por nao intervir no corpo do texto. Descartei eventuais alteragGes de passagens que posso hoje julgar esquemiticas. Preservei o livro de 1977 sua unidade (incluindo o Apéndice 1984). O dado novo vem no final desta edigao; em texto complementar, fago um breve mapeamento do intervalo que nos separa da primeira, mais a titulo de indicagao do que de explicagao dos tépicos e tendéncias que emergiram como respos- tas ao debate jé apresentado no livro. Optei por um recorte que organiza o campo a partir de um eixo que se ajusta as indagaGes sobre a transparéncia ¢ opacidade, mas traz ao centro a questio do dispositivo cinematogréfico, foco maior da polémica ocorrida nos anos 70, capitulo final da primeira edigao. Ismail Xavier, julho de 2005. SUMARIO Introdugio ... 13 I. A janela do cinema e a identificagao 17 II. A decupagem classica... 7 IIL. Do naturalismo ao realismo critico . 41 A. A representacao naturalista de Hollywood 41 3. As experiéncias de Kulechov .... 46 c. O realismo da “Visio de Mundo” ... 52 . O realismo critico explicitado... 57 IV. O realismo revelatério ¢ a critica 3 montagem . 67 |. O empirismo de Kracauer ¢ 0 humanismo neo-realista 67 8. O modelo de André Bazin 79 C, As correcées fenomenolégicas ¢ a “abertura” 89 V. A vanguarda ... 99 A. O anti-realismo ¢ 0 cinema de sombras .... 99 8, Cinema pottico e cinema puro C. O advento do objeto ¢ a inteligéncia da maquina p. O modelo onirico 11 E. A imagem arquétipo 115 118 F. O olhar visionario ¢ a questo epistemoldgica . 12 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO VI. O cinema-discurso e a desconstrugio ... 129 A. Eisenstein: da montagem de atragdes ao cinema intelectual... 129 B. O impacto das ciéncias da linguagem ... 137 c. A desconstrugao 146 VII. As falsas dicotomias ... 165 Apéndice 1984... 171 175 As aventuras do Dispositivo (1978-2004) .. Indice onomastico ... 212 Indice de revistas... INTRODUGAO Minha tarefa € apresentar, dentro da faixa mais ampla poss(vel, as mais significa- tivas posturas estético-ideoldgicas que foram assuumidas frente ao cinema ao longo de pra- ticamente sessenta anos (da Primeira Guerra Mundial ao inicio da década de 1970). Um periodo tao longo comporta uma diversida- de de formulagées, no nivel da reflexao es- crita, que compée um clenco bastante am- plo para embaracar a quem se propée apre- senté-la em conjunto. Tais formulagdes nao constituem uma rede fechada de proposigdes que se explicam por si mesmas nem sio inte- ligiveis apenas na base de uma clas: cago que fornece o “quadro” de suas diferengas. O cinema nao foge 2 condigao de campo de incidéncia onde se debatem as mais diferen- tes posig6es ideoldgicas, ¢ 0 discurso sobre aquilo que lhe é especifico é também um discurso sobre principios mais gerais que, em uiltima instancia, orientam as respostas a questoes especificas. Tendo em vista tais con- dices, para a montagem das diversas pers- pectivas aqui discutidas, certas selegdes pre- cisam ser feitas e um principio ordenador precisa ser escolhido, de modo que a exposi- ao das propostas seja capaz de tornar claras as implicagoes presentes em cada uma, Fica descartada a apresentagao pura- mente cronolégica, dada a sua tendéncia a produzir a ilusio de que o texto esta dando conta de uma determinada historia ¢ que a simples sucesso constitui um principio ex- plicativo, Nao hé aqui também uma nova “histéria das idéias cinematograficas”, uma vez que nao procuro explicar um processo € sua Idgica de desenvolvimento. Ha apenas 0 objetivo de por em confronto diferentes pos- turas e situd-las com base em sua resposta a uma questio fundamental nos debates em tomo da pratica cinematogréfica. O eixo que me guia nesta exposigio & a concep¢ao assu- mida por diferentes autores ¢ escolas quanto ao estatuto da imagem/som do cinema fren- te & realidade (dentro das concepgées confli- tantes que se tem desta) As varias posig6es assumidas quanto as relagGes entre discurso cinematogrifico e rea lidade nao constituem uma deciséo puramen- te teérica, Para evitar confusdes raramente 14 faco uso do termo “teoria”, uma vez que, esquematicamente, as perspectivas sio com- postas em dois momentos bésicos: hé, em cada proposta, uma ideologia de base que pretende explicar, ou simplesmente postu- lar, a existéncia de certas propriedades na imagem/som do cinema. Dentro do espago criado por tal ideologia ¢ feita uma determi- nada proposicio referida & prética cinema- tografica, basicamente no que diz respeito ao modo de organizar a imagem/som, tendo em vista a realizagao de certo objetivo socio- cultural tomado como tarefa legitima do ci- nema. Em geral, a conexdo entre teoria “ge- ral” € notma “particular” ganha nitidez na medida em que a norma, referida a0 que 0 cinema “deve set”, procura apoio numa teo- ria que, em primeiro lugar, garanta que 0 ci nema “pode ser” o que se Ihe pede e, em se- gundo lugar, afirme que “é mais préprio a sua natureza” ser o que se Ihe pede. Por estes motivos, prefiro usar o termo “estéticas ci- nematograficas’, aplicado a proposic6es dis- poscas a orientar uma determinada pritica e uma determinada critica cinematografica. Para tornar mais didadtica esta apresen- tagdo, optei pela exposi¢ao mais detida das idéias de um conjunto bisico de autores, evi- tando a acumulacéo de referéncias historio- gréficas que dariam mais precisio ao pano- rama tragado, mas que nao contribuiriam decisivamente para a discussio central que me interessa. Ao mesmo tempo, uma tradi- ga de debates em torno do problema do do- cumentério cinematografico nao recebe aqui um tratamento 3 parte, tendo em vista que isto acarretaria uma ampliacao dificil de ma- nejar, dados os limites e proporgaes deste tra- balho, implicando num detalhamento que procurei evitar. Ao discutir cada proposta, minhas considerag6es vao estar concentra- das no cinema ficcional, aquele mesmo que tradicionalmente tem sido oposto ao cine- ma documentério como se fossem generos nitidamente separados. Isto nao significa a aceitagao de tal oposigao nos moldes em que ela em geral foi proposta, seja na base da di- cotomia “natural (espontanea)/artificial (re- presentagio)”, seja na base do grau de “vera- cidade” do filme conforme sua pertinéncia a um género ou outro. Aqui é assumido que 0 cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qual- quer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido ¢ con- trolado, de diferentes formas, por uma fonte produtora.* Neste sentido, o que esté ausen- te no meu texto nao é um discurso sobre o documentério; mas, um discurso sobre de- tetminados autores cuja perspectiva se defi- niu exclusivamente em relagao ao documen- tério — Flaherty, Grierson, Ivens, Jean Rouch, por exemplo (a tinica excegao ¢ 0 répido co- mentirio sobre Dziga Vertov, dada a sua po- sigao central nas referéncias de certos ided- * Fiz um uso largo da idéia de ficcdo - sindnimo aqui de “nao real”, universo do discurso, Nao levei em conta a diferenga peculiar da “ficgao propriamente dita ”, como invencio — simulagzo consentida -, diante de outras formas de discurso, distingao que pode tornar-se relevante em outro contexto de andlise INTRODUGAO 15 logos contemporaneos). As varias estéticas aqui discutidas correspondem ao estabeleci- mento de determinados principios gerais que se aplicam a diferentes modalidades de pro- dugio cinematografica, inclufdo 0 documen- titio. Afinal, as proposig6es de Bazin, Kra- cauer, Pudovkin ou da revista Cinéthique nao estio formuladas de modo a exclui-lo como algo estranho ao seu dominio, pelo contré- rio, Portanto, no que segue, o discurso sobre co documentétio estd presente, embora nao especificado I A JANELA DO CINEMA E A IDENTIFICACAO E comum se dizer da imagem forogré- fica que ela é ao mesmo tempo um icone € um indice em relagio aquilo que representa. Entre outras formulagGes semelhantes, po- demos tomar a de Maya Deren, figura basica da vanguarda americana de 1947 a 1961, que fornece uma clara explicagao em seu artigo “Cinema: 0 uso criativo da realidade” (1960). “O termo imagem (originalmente baseado em imitagao) significa, em sua primeira acepsio, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no proprio ato de espe- cificar a semelhanga, tal termo distingue e estabelece um tipo de experiéncia visual que nao é a experiéncia de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negati- vo = no sentido de que a fotografia de um cavalo nao € 0 préprio cavalo —a fotografia é uma imagem”. Até aqui, 0 critério da seme- Ihanga compreende 0 que, de acordo com a classificagio de Pierce, define um tipo de sig- no: 0 icone (em principio, a imagem denota alguma coisa pelo fato de, ao ser percebida visualmente, apresentar algumas proprieda- des em comum com a coisa denotada). Ao mesmo tempo, a prépria Maya Deren é enfiitica em apontar a diferenga fun- damental que separa a imagem fotogréfica de outros tipos de imagem, obtidas de acor- do com processos distintos (por exemplo, as imagens produzidas pela mao do homem: desenhos, pinturas etc.): “Uma pintura nao é, fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela ¢ algo semelhante a um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintu- ra abstrata, nao carregar nenhuma relacio visivel com um objeto real. A fotografia, en- tretanto, é um processo pelo qual um objeco ctia sua prépria imagem pela ago da luz so- bre o material sensivel. Ela, portanto, apre- senta um circuito fechado precisamente no ponto em que, nas formas tradicionais de arte, ocorre o processo criativo uma vez que a realidade passa através do artista”. Em ou- tras palavras, ela esté falando sobre a indexa- 18 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO lidade da imagem fotogréfica pois, dado que © processo fotogréfico implica numa “im- pressio” luminosa da imagem na pelicula, esta imagem enquadra-se também na cate- goria de indice — “um indice é um signo que se refere a0 objeto que ele denota em virtude de ter sido realmente afetado. por este obje- 10” (Philosophical writings of Pierce, p.102). A partir deste fato, toda uma série de comentarios e discussdes podem ser feitos quanto aos especificos mecanismos presen- tes no funcionamento da imagem fotogréfi- ca como signo, 0 que é justamente levado até as tiltimas conseqiiéncias dentro de uma perspectiva semidtica. Foi comegando por esta constatagao da iconicidade ¢ da indexa- lidade que a pesquisa semiética iniciou sua lida com a fotografia ¢ 0 cinema. Notada- mente a partir da década de 1960, ral pers- pectiva desenvolveu suas investigages no tocante as condigées (de percepsio) presen- tes na leitura da imagem, buscando os c6di g0s responsaveis pelo seu poder significante. A anilise semiética atinge hoje um grau refi nado, mas nao ¢ na diregio desta investiga- ao teérica que vamos caminhar, mas na di redo das implicagdes praticas que advém destas propriedades basicas do material fo- ogréfico € cinematografico. Estou interes- sado em expor e discutir propostas estéticas, defensoras de um tipo particular de cinema, ¢ 0 modo como estas propostas encaram es- tas propriedades. Sem discutir 0 que est por trés da se- melhanga ou da indexalidade, vamos reter a idéia de fidelidade de reproducao de certas propriedades visiveis do objeto ¢ a idéia de que uma fotografia pode ser encarada como um documento apontando para a pré-exis- téncia do elemento que ela denota. Estes sio pontos de partida para a reiterada admissio ingénua de que, na fotografia, sao as coisas mesmas que se apresentam & nossa percep- Gao, numa situagao vista como radicalmente diferente a encontrada em outros tipos de representagio. Se ja é um fato tradicional a celebragao do “realismo” da imagem foto- gréfica, tal celebracao é muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reprodu- zir, nao sé mais uma propriedade do mundo visivel, mas justamente uma propriedade es- sencial 4 sua natureza — 0 movimento. O aumento do coeficiente de fidelidade e a multiplicagao enorme do poder de ilusio estabelecidas gracas a esta reproducio do movimento dos objetos suscitaram reagdes imediatas ¢ reflexes detidas. Estas tém uma longa hist6ria, que se iniciou com a primei: ra projesio cinematogrifica em 1895 ¢ se estende até nossos dias. Nos primeiros tem- pos, s4o0 numerosas as crénicas que nos fa- lam das reages de panico ou de entusiasmo provocadas pela confusio entre imagem do acontecimento ¢ realidade do acontecimen- to visto na tela. Os primeiros tedricos fize- ram deste poder ilusdrio um motivo de elo- gio (ao cinema) e de critica (aos explorado- res do cinema), que thes consumiu boa par- te de suas elaboracées; os psicdlogos, desde Munstenberg (livro publicado em 1916) até os doutores da filmologia (pés-2* Guerra), passando por Arnheim (1933), tiveram af seu tema preferido. E a discussio do tema — a AJANELA DO CINEMA E A IDENTIFICAGAO 19 impressio de realidade no cinema—torna-se 0 estopim para uma polémica fundamental desenvolvida recentemente na Franga, envol- vendo uma tradigao filmolégica, que em cer- tos termos se estende a Jean Miery e Christian Metz, de um lado, € as revistas Cahiers du cinéma ¢ Cinéshique do outro. Entre estas duas revistas, o conflito também ¢ flagrante edele vem participar a figura de Jean-Patrick Lebel. Esta ¢ uma discussdo a que pretendo chegar, mas no estou preparado ainda para’ elucidé-la. Nada foi dito até aqui sobre a implicagao fundamental contida no fato de um filme ser composto por uma sucessio de forografias, Eu disse algo sobre a reproducao do movimento, mas nao disse que 0 eixo das discussées esta justamente no modo como. devem ser encaradas as possibilidades ofere- cidas pelo proceso cinematogrifico. O con- junto de imagens impresso na pelicula cor- responde a uma série finita de fotografias nitidamente separadas; a sua projegio é, a rigor, descontinua. Este proceso material de representagio nao impée, em princfpio, ne- nhum vinculo entre duas foografias sucessi- vas. A relagdo entre elas serd imposta pelas duas operagées basicas na construgao de um filme: a de filmagem, que envolve a opcio de como os varios registros serao feitos, e a montagem, que envolve a escolha do modo como as imagens obtidas sero combinadas e ritmadas. Em primeiro lugar, consideremos uma hipétese elementar: a cimara s6 é posta em funcionamento uma vez ¢ um registro continuo da imagem € efetuado, captando tum certo campo de visao; entre o registro ea projegio da imagem nada ocorre senio a re- velagao ¢ copiagem do material. Neste caso, temos na projegio uma imagem que é perce- bida como um continuum. Uma primeira constatacao é que, mesmo neste caso, 0 re- tangulo da tela nao define apenas 0 campo de visio eferivamente presente diante da ci- mera e impresso na pelicula de modo a for- necer a ilusio de profundidade segundo leis da perspectiva (gracas &s qualidades da len- te). Noel Burch nos lembra muito bem 0 fato elementar de que o espago que se estende fora do campo imediato de visio pode também set definido (em maior ou menor grau). Burch rndo nos diz. “pode ser”; ele é mais taxative na admissao absoluta da virtual presenca deste espago nao captado pelo enquadramento: “Para entender 0 espago cinemitico, pode revelar-se util considerd-lo como de fato cons- tituido por dois tipos diferentes de espac aquele inscrito no interior do enquadramen- to e aquele exterior 20 enquadramento” (Praxis do cinema). A meu ver, esta admissio ja € indicadora de uma valorizacao, onde cer- to tipo de imagem passa implicitamente a nao ser considerada “cinematica” apesar de set materialmente cinematogréfica. Isto fica mais claro, quando tentamos estabelecer de que modo este espago “fora da tela” pode ser definido dentro da hipdte- se inicial (registro e projegao continua). Neste caso, 0 espaco diretamente visado pela ca- mara poderia fornecer uma definigéo do es- paco nao diretamente visado, desde que al- gum elemento visivel estabelecesse alguma relacéo com aquilo que supostamente esta- ria além dos limites do quadro. Uma relagio 20 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO freqiiente vem do fato de que o enquadra- mento recorta uma porgio limitada, 0 que via de regra acarreta a captacio parcial de certos elementos, reconhecidos pelo espec- tador como fragmentos de objetos ou de cor pos. A visdo direta de uma parte sugere a presenga do todo que se estende para o espa- ¢0 “fora da tela”. O primeiro plano de um rosto ou de qualquer outro detalhe implica na admissio da presenga virtual do corpo. De modo mais geral, pode-se dizer que 0 espaco visado tende a sugerir sua propria extenso para fora dos limites do quadro, ou também a apontar para um espaco contiguo nao visivel. Esta propriedade esta longe de ser exclusiva & fotografia ou ao cinema. Ela manifesta-se também em outros tipos de co- municagio visual, dependendo basicamente do critério adotado na organizagao da ima- gem. A tendéncia a denotagio de um espaco “fora da tela” é algo que pode ser intensifica- do ou minimizado pela composigao forne- cida. Nestes termos s6 uma andlise mais cui- dada poderia verificar a validade da afirma- gao de André Bazin: “Os limites da tela (ci- nematografica) nao so, como o vocabulério técnico As vezes o sugere, 0 quadro da ima- gem, mas um ‘recorte’ (cacheem francés) que nao pode sendo mostrar um a parte da reali- dade. O quadro (da pincura) polariza o es- aco em diregio ao seu interior; tudo aquilo que a tela nos mostra, contrariamente, pode se prolongar indefinidamente no universo. quadro € centripeto, a tela é centrifuga” (Quest-ce que le cinéma? =v. th, p.128). Bazin tem a seu favor alguns dados da histéria da pintura no século xix. A tendén- cia 4 composigéo que procura o detalhe nao auto-suficiente ¢ o fragmento como fragmen- to, em vez do todo completo que se fecha em si mesmo, foi crescentemente se mani- festando paralelamente e sob a influéncia da forografia (0 caso Dégas ilustra este efeito da fotografia na concepgao da estrutura da ima- gem pictérica). Além disso, seria forte carac- teristica do instantaneo fotografico resultar numa composigao espacial cuja tendéncia incompletude iria confirmar a tese de Bazin. De qualquer modo, no caso do cine- ma, hi algo mais do que isto. O movimento efetivo dos elementos visiveis sera responsé- vel por uma nova forma de presenga do es- pago “fora da tela”. A imagem estende-se por um determinado intervalo de tempo e algo pode mover-se de dentro para fora do cam- po de visto ou vice-versa. Esta é uma possi- bilidade especifica da imagem cinematoges- fica, gragas & sua duragao. E claro que o tipo de definigio dado ao espago “fora da tela” depende da modalidade de entrada ou saida que efetivamente ocorre. Um exemplo sig- nificativo deste problema nos é dado pelo préprio estagio da chamada “linguagem ci- nematogréfica” no inicio do século. No pe- riodo dominado pelo sempre criticado “tea- tro filmado”, um caso limite de construgao filmica era 0 da adogdo de um ponto de vis- ta fixo. A cimera, fornecendo um plano de conjunto de um ambiente (cendrio teatral), onde determinada representacio se dava nos moldes de uma encenagio convencional, si- tuava-se na cléssica posicao dos espectado- res. Aqui, a entrada e saida dos atores tinha tendéncia a se definir dentro do estilo pré- prio as entradas e saidas de um palco. Este seria um fator responsivel pela redugio do A JANELA DO CINEMA E A IDENTIFICACAO. 21 espaco definido pela camera aos limites do espaco teatral, portanto, no cinemético na acepcio de Burch. Os elementos fundamen- tais para a constituicao da representagao en- contram-se todos contidos dentro do espa- 0 visado pela camera, ocorrendo, além dis- so, um reforco desta tendéncia ao enclausu- ramento, proveniente de dois outros fatores combinados: (1) a propria configuracéo do cenério, tendente a produzir uma unidade fechada em si mesma; (2) a imobilidade eo ponto de vista da cimera, ctimplice no efei- to sugerido pelo cendrio, na medida em que a visio de conjunto evita a fragmentagao do espaco em que a aco se desenvolve. Portanto, a ruptura com este “espaco teatral” e a criagao de um espaco verdadeira- mente cinematico estaria na dependéncia da ruptura com esta configuragao rigida. No caso deste plano fixo e continuo corresponder a filmagem de um evento natural ou aconte- cimento social em espacos abertos, apesar da postura de cimera ser a mesma, a ruptura frente ao espaco teatral estaria garantida pela propria natureza dos elementos focalizados, aptos a produzir a expansio do espago para além dos limites do quadro gracas ao seu movimento. Nunca ninguém associou um plano fixo e continuo numa rua, ou mesmo a famosa chegada do trem da primeira pro- jecio cinematogréfica, a algo como 0 “teatro filmado”. Mesmo num filme constituido de um tinico plano fixo ¢ continuo, pode-se dizer que algo de diferente existe em relagao a0 espaco teatral, ¢ também em relagao a0 espago pictérico (especificamente o da pin- tura) ou mesmo o forogrifico: a dimensio temporal define um novo sentido para as bordas do quadro, nio mais simplesmente limites de uma composicéo, mas ponto de tensio origindrio de transformagées na con- figuracio dada. Na verdade, quando Burch fala em espaco cinematico ele estd se referin- do justamente & organizacao ¢ ao dinamis- mo nascidos desta diferenga. Minha aludida preferéncia pelo “pode ser definido” em vez do “é definido” em telagio ao espago “fora da tela”, vem da admissao de que, nao sé nesta hipétese elementar, mas também ¢ es- pecialmente em escruturas mais complexas, uma construgao absolutamente cinemdtica pode ganhar seu efeito justamente por tra- balhar na diego contréria. Neste caso, pro- curar-se-ia deliberadamente produzir uma indefinigao do nao visto e um enclausura- mento do espaco visado (sem ser teatro fil- mado). Jé falei de algumas coisas especificas a0 cinema e ainda nem toquei nos dois elemen- tos tradicionais sempre considerados como fundadores da arte do cinema: a chamada “expressividade” da cimera € a montagem. Entrar neste terreno significa caminhar em diregao a outras possibilidades advindas da propria natureza material do processo cine- matogréfico: numa delas, ainda mantemos 60 registro continuo, mas conferimos mobi- lidade & camera; na outra, introduzimos a descontinuidade de registro, o que implica ‘em supor o pedaco de filme projetado como combinacao de, pelo menos, dois registros distintos. No caso do movimento continuo de camera, a constante abertura de um novo 22 © DISCURSO CINFMATOGRAFICO campo de visio tende a reforgar a caracteris- tica bisica do quadro cinematogréfico con- forme a tese de Bazin: ser centrifugo. O movimento de cimera ¢ um dispositivo tre- mendamente reforgador da tendéncia & ex- pansio, Concretamente, ele realiza esta ex- pansio e, como diz Burch, transforma o es- paco “fora da tela” em espaco diretamente visado pela camera. As metdforas que pro- poem a lente da cimera como uma espécie de olho de um observador astuto apéiam-se muito no movimento de camera para legiti- mar sua validade, pois sto as mudangas de direcao, os avangos ¢ recuos, que permitem as associag6es entre 0 comportamento do aparelho e os diferentes momentos de um olhar intencionado. Ao lado disto, 0 movi- mento de camera reforca a impressio de que hd um mundo do lado de la, que existe inde- pendentemente da camera em continuidade a0 espaco da imagem percebida. Tal impres- so permitiu a muitos estabelecer com maior intensidade a antiga associaco proposta em relagdo & pintura: o retingulo da imagem é visto como uma espécie de janela que abre para um universo que existe em si ¢ por si, embora separado do nosso mundo pela su- perficie da tela. Esta nocdo de janela (ou as veres de espelho), aplicada ao retangulo ci- nematogréfico, vai marcar a incidéncia de princ{pios tradicionais 4 cultura ocidental, que definem a relagio entre 0 mundo da representacao artistica e 0 mundo dito real. Bela Balazs nos lembra tal tradigao ¢, a0 mesmo tempo, aponta a radical modificagao que vé no préprio estatuto de tal “janela” com o advento do cinema. Ele aponta a con- vengéo segundo a qual a obra de arte apre- senta-se como microcosmo, e procura r. saltar o principio vigente de que ha uma se- paragao radical entre este ¢ 0 mundo real, constituindo-se a obra numa composicao contida em si mesma com suas leis préprias. Como Balazs nos diz, tal microcosmo pode apresentar a realidade mas nao tem nenhu- ma conexao imediata ou contato com ela. Precisamente porque ele a representa, esté separado dela, ndo podendo set sua “conti- nuagio”, A conclusao a que Balazs procura chegar é que a janela cinematogréfica, abrin- do também para um mundo, tende a sub- verter tal segregagio (Fisica), dados os recus- sos poderosos que o cinema apresenta para carregar o espectador para dentro da tela. “Hollywood inventou uma arte que nao ob- serva o principio da composi¢ao contida em si mesma e que, nao apenas elimina a distan- cia entre o espectador ¢ a obra de arte, mas deliberadamente cria a ilusio, no espectador, de que ele est no interior da ago reprodu- zida no espago ficcional do filme” ( Theory of the film, p.50). Aqui, 0 esteta hiingaro faz. coro com uma ampla faixa de teéricos do cinema, em sua preocupagao em incluir, na propria ca- racterizacao bisica da nova arte, esta moda- lidade de relagdo marcada pelo forte efeito de presenga visual dos acontecimentos (na realidade ausentes) e a sua nao-efetividade sobre a situacio fisica do espectador. A and- lise especifica do tipo de experiéncia forne- cida pela projecao cinematografica constitui tema privilegiado dos filmélogos da Revue Internationale de Filmologiea partir de 1947. A JANELA DO CINEMA E A IDENTIFICACAO. 23 Modernamente, em diferentes momentos, ‘Christian Metz vai retomar estas reflexdes em rorno da segregacao dos espacos (0 espaco inreal da tela em oposi¢ao ao espaco real da sala de projegao) e da experiéncia do espec- tador, marcada pela “impressio de realida- de” e pelo mergulho dentro da tela (identifi- cago com personagens, participagao afetiva no mundo representado). Num primeiro ar- tigo - “Sobre a impressio de realidade no cinema’ (1966) ~ ele trabalha num nivel fe- nomenolégico, buscando uma descrigao que revele quais caracteristicas da imagem e das condigdes de projecio que tornam possivel a relacdo de identificagao ¢ o forte ilusionis- mo. Num segundo artigo ~ “O significante imagindrio” (1975) — ele vai trabalhar num. nivel psicanalitico, procurando o que do lado do espectador, em sta estructura psiquica mais profunda, pode explicar a poderosa incidén- cia do cinema. Edgar Morin fez. do processo de iden- tificagao/projecao praticamente o nticleo de seu livro— O cinema ou 0 homem imagindrio (1958). Neste trabalho, que ele proprio de- nomina “ensaio antropolégico”, seu interes- se concentra-se na discussao de um fenéme- no que considera bésico dentro da cultura do século xx: a metamorfose do cinematé- grafo em cinema. O primeiro seria simples- mente a técnica de duplicagio e projecao da imagem em movimento; o segundo seria a constituigéo do mundo imaginario que vem transformar-se no lugar por exceléncia de manifestacao dos desejos, sonhos e mitos do homem, gracas 4 convergéncia entre as ca- racteristicas da imagem cinematogréfica ¢ determinadas estruturas mentais de base. Dentro da literatura sobre cinema, Morin corresponde a um exemplo extremo da vin- culacao essencial entre o fendmeno de iden- tificagao e o préprio cinema como insticui- ao humana ¢ social. Para ele, a identifica- 40 constitui a “alma do cinema”. A partici- pacio afetiva deve ser considerada “como estado genético e como fundamento estru- tural do cinema’ (p.91 do original francés), ou seja, daquilo que € algo mais do que 0 cinematégrafo (técnica de duplicacio), sen- do materializagao daquilo que “a vida pra ca no pode satisfazer”. Portanto, nesta qua- se-identidade (cinema = imaginério, lugar da ficgéo ¢ do preenchimento do desejo), ele julga constatar um dado definidor da essén- cia universal do cinema, Dada sua perspec- tiva, vinculada a uma certa antropologia, Morin ndo parte para a defesa ou ataque de tal fendmeno, do ponto de vista ideoldgico ou estético (a sua propria definicao do esté- tico vai passar pela nogio de participacao afetiva). Ele esta convicto de que esta rela- do, que um cinema particular num momen- to particular estabeleceu com o espectador, é imperativa, fazendo parte da essencia do novo veiculo. Em 1966, a posigao de Metz € basicamente a mesma. Sua reflexao, deposi- tada no mesmo tipo de cinema que inspirou Morin, nao acusa a presena de pressdes em sentido contrério, Tal no acontece no arti- go de 1975. Ele ainda dedica seu pensamen- to exclusivamente ao cinema narrativo tipo Hollywood, mas o contexto geral de produ- cio e discussio cinematogréficas que cer- a, intensificando suas press6es na quebra do 24 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO monolitismo da identificagao, 0 obriga a admitir outras possibilidades. Mesmo para um amante dos “bons tempos” da classica ficgio cinematografica, a vocagio do cine ma para a relagio de identificacio fica sub- metida a dtividas. Este ligeito deslocamento na atitude de Metz esté relacionado com a polémica entre Cinéthique, Cabiers du ciné ma e Lebel, a que me referi. Continuemos, asso a passo, a estabelecer as coordenadas de tal discussio, partindo de consideragdes clementares. Vejamos 0 ponto critico onde a polémica sobre o ilusionismo ¢ a identifica a0 “csquenta”. Dentro dos comentarios fei- tos até aqui sobre o espago cinemitico e sua “realidade”, cheguei A questao do “efeito de janela” e 20 papel do movimento de camera neste efeito; adiantei algo sobre a metafora da “cdmera-olho”. Esta metéfora sera um polo vivo das discuss6es mais recentes (pés- 1968); por longo tempo, permaneceu em segundo plano, diante da carga polémica concentrada na montagem e em seu estatuto frente ao “efeito de janela”. Sabemos que a chamada expressividade da camera nao se esgora na sua possibilidade de movimentar- se, mantendo 0 fluxo continuo de imagens. Ela esta diretamente relacionada também com a multiplicidade de pontos de vista para focalizar os acontecimentos, o que justamen- te é permitido pela montagem. Partindo do registro clementar, chegamos a situagao que implica na instauragao de uma descontinui- dade na percepcao das imagens. O salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituicéo brusca por outra imagem, € um momento em que pode ser posta em xeque a “semelhanga” da represen- tacao frente ao mundo visivel e, mais decisi- vamente ainda, € 0 momento de colapso da “objetividade” contida na indexalidade da imagem. Cada imagem em particular foi impressa na pelicula, como conseqiiéncia de um processo fisico “objetivo”, mas a justapo- sigio de duas imagens ¢ fruto de uma inter- vengao inegavelmente humana e, em princi- pio, nao indica nada senao o ato de manipu- lagio. Para os mais radicais na admissio de uma pretensa objetividade do registro cine- matografico, tendentes a minimizar o papel do sujeito no registro, a montagem seré 0 lugar por exceléncia da perda de inocéncia. Por outro lado, a descontinuidade do corte poderd ser encarada como um afastamento frente a uma suposta continuidade de nossa percepcao do espaco e do tempo na vida real (aqui estaria implicada uma ruptura com a semelhanga). Veremos que tal “ruptura” é perfeitamente superada por um determina- do método de montagem, com vantagens no que se refere ao efeito de identificacao. Para nao nos confundir, chamemos a descontinuidade visual causada pela substi- tuigio de imagens de descontinuidade ele- mentar. E lembremos que as alternativas de agio diante da montagem ocorrem esquema- ticamente em dois niveis articulados: (1) 0 da escolha do tipo de relagao a ser estabelecida entre as imagens justapostas, que envolve 0 tipo de relagao entre os fendmenos represen- tados nestas imagens; esta escolha traz. conse- giiéncias que poderio ser trabalhadas num nivel (2), 0 da opgao entre buscar a neutrali- zagio da descontinuidade elementar ou bus- car a ostentagio desta descontinuidade. AJANELA DO CINEMA E A IDENTIFICAGAO 25 Dependendo das opgdes realizadas diante destas alternativas, 0 “cfeito de jane- a” ea fé no mundo da tela como um duplo do mundo real tera seu ponto de colapso ou de poderosa intensificagio na operagao de montagem. Um método especifico de inten- sificacao serd explicado no préximo capitu- BIBLIOGRAFIA ARNHEIM, Rudolf. Film as art, Berkeley, University of California Press, 1957. BALAZS, Bela. Theory of the film, New York, Dover Public. Inc., 1970. BAZIN, André. Quest-ce que te cinéma? vol. ui, Paris, Editions du Cerf, 1960. BURCH, Noel. Praxis do cinema, (tradugao portuguesa do Praxis du Cinéma, Pa- ris, Gallimard, 1969). “Cinematography: the crea tive use of reality” In Daedalus: the vi- sual arts today, Cambridge, 1960. LEBEL, Jean Patrick. Cinéma et Idéologie, Editions Sociales, Paris, 1971. METZ, Christian. A significacao no cinema, Sao Paulo, Perspectiva, 1971. lo, no qual vou falar algo sobre 0 cinema particular que instituiu ou aproveirou-se de fendmenos ais como a impresséo de realida- deca identificagdo, Passemos a descrigio da decupagem clissica, método que comprovou sua eficiéncia na neutralizagao da desconti- nuidade elementar. MITRY, Jean. Esshétique et psychologie du ci- néma, v. Le st, Editions Universitaires, Paris, 1963/1965. MORIN, Edgar. Le cinéma ou homme ima- ginaire, Paris, Editions de Minuit. MUNSTERBERG, Hugo. The film: a psy- chological study (the silent photoplay in 1916) New York, Dover Public. Inc., aaa PIERCE, Charles S., Philosophical writings of Pierce, New York, Dover Publica- tions, 1955. Revistas: Cahiers du Cinéma, 0.209 n.235/137 — 1969/1972. Cinéthique, n.1 a n.13/14 = 1969/1972. Communications n.23 (1975). U A DECUPAGEM CLASSICA Classicamente, costumou-se dizer que um filme € constituido de seqiiéncias ~ uni- dades menores dentro dele, marcadas por sua fungio dramética e/ou pela sua posigo na narrativa. Cada seqiiéncia seria constituida de cenas ~ cada uma das partes dotadas de unidade espaco-temporal. Partindo dai, de- finamos por enquanto a decupagem como 0 processo de decomposigio do filme (e por- tanto das seqiéncias e cenas) em planos. O plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, & extensio de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que 0 plano é um segmento continuo da imagem. O faro de que o plano corresponde a um determinado ponto de vista em relagio 20 objeto filmado (quando a relagio camera- objeto é fixa), sugere um segundo sentido para este termo que passa a designar a posi- sao particular da camera (distancia e angulo) em relagio a0 objeto. Dai decorre a escala que, a grosso modo, apresento (conforme a fonte, esta classificacao de planos modifica- se, nao havendo regras rigidas para a delimi- tacdo entre um tipo € outro) Plano Geral: em cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos, a camera toma uma posi¢o de modo a mostrar todo © espago da agio. Plano Médio ou de Conjunto: uso aqui para situagdes em que, principalmente em interiores (uma sala por exemplo), a cimera mostra 0 conjunto de elementos envolvido: nna agio (figuras humanas ¢ cenério), A dis- tingdo entre plano de conjunto e plano geral € aqui evidentemente arbitraria ¢ correspon- de ao fato de que o tiltimo abrange um cam- po maior de visao. Plano Americano: corresponde ao pon- to de vista em que as figuras humanas séo mostradas até a cintura aproximadamente, em fungio da maior proximidade da cimera em relagio a ela. Primeiro Plano (close-up): a chimera, pré- xima da figura humana, apresenta apenas um rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa a 28 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO quase totalidade da tela (hé uma variante chamada primeirissimo plano, que se refere a um maior detalhamento — um olho ou uma boca ocupando toda a tela). Quanto aos angulos, consider: getal normal a posicdo em que a camera loca- liza-se & altura dos olhos de um observador de estatura média, que se encontra no mes- se em mo nivel ao da agio mostrada. Adotaremos as exptess6es: “camera alta’ e “cimera baixa” para designar as situagdes em que a camera visa os acontecimentos de uma posicio mais elevada (de cima para baixo) ¢ de um nivel inferior (de baixo para cima). Para esquema- tizar 0s tragos basicos do que denominamos decupagem cldssica, fagamos uma experién- cia, Voltemos aos primeiros tempos da ficgao cinematografica, supondo uma evolugio da decupagem muito bem comportada a titulo de clateza, embora nao seja toralmente corre- to admitir que as coisas empiricamente se passaram do modo exposto a seguir. Tomemos o “teatro filmado”. Acaba- mos de assistit a toda uma cena desenvolvi da dentro de um mesmo espago € fluindo continuamente no tempo, sem saltos. Supo- nhamos que uma outra cena em outro espa- 0 deve seguir-se a esta para dar andamento A est6ria. A construcio provavelmente ado- tada seria a de filmar num s6 plano de con- junto a primeira cena es6 cortar no momento do salto para outro espago. O corte estaria af justificado pela mudanga de cena, ¢ a ime- diata sucesso, sem perda de ritmo, estaria justamente possibilitada pelo corte. Terfamos ‘uma montagem elementar em que a descon- tinuidade espaco-temporal no nivel da die- gese (diegético = tudo 0 que diz respeito a0 mundo representado) motiva e solicita 0 cor- te. A montagem, inevitével, s6 vem quando a descontinuidade € indispensvel para a representacao de eventos separados no espa- 0 € no tempo, nao se violando a integrida de de cada cena em particular. A platéia aceita esta sucess’o nao-natural imediata de ima- gens porque esta sucesso caminha de encon- tro a uma convengio da representagao dra- mitica perfeitamente assimilada. Tal conver- géncia redime o salto, que permanece acei- tavel € natural porque a descontinuidade temporal é dilufda numa continuidade légi ca (de sucesso de cenas ou fatos). A.utilizagdo depreciativa do termo “tea- tro filmado” vem desta obediéncia, tanto as convengées draméticas, quanto as préprias condigdes de percepgio do espetéculo tea- tral (0 espectador tem um tinico ponto de vista frontal em relagéo & encenagio). As ce- nas filmadas em exteriores, apesar da imobi- lidade ¢ unidade de ponto de vista da came- ra permanecer como estilo constante, apre- sentavam algumas condigdes novas. Estas advinham da prépria configuracao do espa- go aberto ¢ tendiam a produzir um afrouxa- mento da rigida estrutura presente na filma- gem de interiores. A cimera podia assumir um ponto de vista sob um Angulo diferente do frontal; as entradas e saidas (c em geral a movimentacao dos atores) eram efetuadas de modo mais livre, permitindo-se inclusive a movimentagao deles em diregao a camera, 0 que sugeria uma abercura que incluia 0 es- pago atrés desta. Como jé apontei, ganhava mais forca a nocao de que o espaco visado é um recorte extraido de um mundo que se estende para fora dos limites do quadro. Os A DECUPAGEM CLASSICA 29 tedricos do cinema, interessados em definir 08 passos decisivos na evolucao da “lingua- gem cinematogréfica” tiveram sempre ten- déncia a dar uma importancia decisiva ao que se passava atris das cimeras. O que implica em, frente aos filmes deste periodo, dar mais importincia 4 identidade de estilo no com- portamento da camera do que as diferengas que poderiam advir da oposicao exterior-in- terior em termos de configuragao espacial. Nao surpreende que a operacio habi- tualmente apontada como libertadora em relagio a prisio teatral seja precisamente a utilizagao do corte no interior de uma cena a mudanga do ponto de vista para mostrar de um outro angulo ou de uma outta dis- tincia o “mesmo fato” que, supostamente, nao sofreu solugio de continuidade, nem se deslocou para outro espaco. Aqui, estou me referindo ao efeito de identidade (mesma agio) e continuidade (a aco é mostrada em todos os seus momentos, fluindo sem inter- TUPGao, retrocessos ou saltos para a frente). E € claro que estou considerando a ago tal como aparece na tela, dando a impressdo de que foi cumprida de uma s6 vez. na integra, independentemente da camera. Todos sabe- mos que isto nao acontece na produgio do filme —a filmagem é o lugar privilegiado da descontinuidade, da repeticéo, da desordem € de tudo aquilo que pode ser dissolvido, transformado ou eliminado na montagem. André Malraux, em seu texto “Esbogo de uma psicologia do cinema”, escrito em 1946, aponta o corte dentro da cena como 0 ato inaugural da arte cinematogréfica, expli- citando algo naquele momento presente na mente de muitos teéricos. Tal consenso nada tem de estranho, porque muita coisa real- mente esté envolvida neste procedimento, embora nao se possa clevé-lo isoladamente a tal posigao, Antes de comentar mais 0 que esté implicado neste tipo de corte, gostaria de citar outro exemplo, cuja importancia no cinema do inicio do século é também enor- me. Trata-se da montagem paralela, focali- zando acontecimentos simultaneos, cujo modelo clissico ¢ a montagem de persegui- Ges. Desde os primeiros anos do século este foi um procedimento capital nas narrativas de aventura, extremamente populares, dada a carga de emogoes que caracteriza os desf chos na base da corrida contra o tempo, onde © bem persegue 0 mal ¢ a figura do herdi Jura contra obstéculos para salvar a heroina, prestes a ser vitima de algum acidente ou cruel ataque. Neste esquema, temos um tipo de si tuagio que solicita uma montagem que esta- beleca uma sucessio temporal de planos cor respondentes a duas acées simultaneas que ocorrem em espagos diferentes, com um grau de contigitidade que pode ser variav. elemento é constante: no final, seré sempre produzida a convergéncia entre as agdes ¢, portanto, entre os espagos. ‘A propria natureza das ages represen- tadas corresponde a uma situagao mais com- plexa do que a desenvolvida numa tinica agio. A necessidade de representar a evolu- Gao simultanca de dois espagos, ¢ sua con- vergéncia, exige os salvos da cimera € a su. cessio descontinua de imagens. Tal como no caso elementar da mudanga de cena no “tea- tro filmado”, também aqui a motivacao ini- cial para o corte vem de uma necessidade da 30 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO narragio e, por sua vez, a visualizagdo expli- cita dos acontecimentos s6 é possivel gracas ao recurso da montagem. Novamente, a que- bra na continuidade da percepsao € justifi- cada. A seqiiéncia de imagens, embora apre- sente descontinuidades flagrantes na passa- gem de um plano a outro, pode ser aceita como abertura para um mundo fluence que esti do lado de Ii da tela porque uma con- vengao bastante eficiente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade admitida em outro nivel: 0 da narragao. As imagens estao definitivamente sepa- radas ¢, na passagem, temos o salto; mas, a combinagio é feita de tal modo que os fatos representados parecem evoluir por si mes- mos, consistentemente. Isto constitui uma garantia para que o conjunto seja percebido como um universo continuo em movimen- to, em relagdo ao qual nos sao fornecidos al guns momentos decisivos. Determinadas re- lagies ldgicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, ¢ uma continuidade de interesse no nivel psicolégico conferem coesio a0 con- junto, estabelecendo a unidade desejada. Historicamente, este procedimento montagem paralela — constituiu um dos po- los de desenvolvimento da narragao cinema- tografica. Esta, obviamente, envolve hoje uma série muito mais complexa de procedi- mentos, que inclui os casos elementares ci- tados. Mas, inegavelmente, a montagem pa- ralela ea mudanca do ponto de vista na apre- sentago de uma tnica cena constituiram duas alavancas basicas no desenvolvimento da chamada “linguagem cinematogréfica”. A reflexao de alguns teéricos na década de 1920 deu-se justamente na direcdo de uma andlise mais detida deste procedimento em suas caracteristicas especificamente cinemé- ticas. Tal € 0 caso de Vitor Chklovski, uma das figuras fundamentais no contexto dos “formalistas russos” (e também roteirista de alguns filmes), que ressaltou muito bem cer- tas caracteristicas particulares da persegui¢ao no cinema e suas diferencas em relacgo & narracao literéria. Preocupado com uma teo- ria da narragao, suas observagées dizem res- peito as conseqiiéncias especificas que advém da durago definida que a montagem confe- re a cada imagem, acentuando a influéncia da organizagio temporal (imposta ao espec- tador) na propria natureza dos fatos escolhi- dos para compor os momentos decisivos da intriga, Como um exemplo simples, cle a- ponta o largo uso de um tipo de ameaga cujo feito pode sempre ser adiado, o que se ajusta perfeitamente as necessidades da manipula- 40 emocional da montagem paralela: a morte iminente da heroina deve ser produto de um dispositivo de ataque mecanicamente clabo- rado ~ a serra que corta 0 tronco na qual ela est amarrada numa posigao cada ver mais proxima da lamina — de duragéo compativel com a ago do heréi, por sua vez, uma corti- da de obstéculos contra o tempo. Tais dispo- sitivos tornam mais eficiente 0 jogo de dura- ges cada vez menores caracterizador da mon- tagem paralela e responsavel pela populari- dade de muitos filmes. Esta combinagao e1 tre dispositivo elaborado e corrida contra 0 tempo é ainda de largo uso nos enlatados exibidos na televisao. Numa versio menos elaborada desta situagéo bisica, também ainda sio numero- 505 0 filmes de aventura em que todo o pro- A DECUPAGEM CLASSICA 31 blema estd em inventar pretextos para o adia- mento da agéo, que pela sua natureza, leva- ria a um desfecho fulminante (todos nés j4 assistimos a filmes em que o vilio “fila de- mais” antes de dar o tiro final). Aos olhos do inicio do século, esta cons- trugéo, intercalando duas ages simultaneas em diferentes lugares, era uma das modal dades de organizacdo espaco-temporal mais evidentemente especificas ao cinema. Embo- ra o procedimento do “enquanto isto...” te- nha raizes literdrias bastante claras, a manei- ra de sua realizaco no cinema, dada a inten- sificagao do efeito em fungao do ritmo e da movimentagio plistica das imagens, era vis- ta como marca de um poder exclusivo a0 novo vefculo. Neste particular, esta monta- gem chamava tanto a atencio dos cinéfilos quanto a expansio espacial da comédia, ba- seada nas desabaladas correrias pelas ruas. Nestas, em suas primeiras versoes, a cimera permanecia fixa, estando no inicio de cada plano a uma considerdvel distancia dos pro- tagonistas, que vinham rapidamente em di regio a cla, dentro da confusao geral estabe- lecida; a tomada de cena nio se interrompia enquanto o desastrado cortejo (em geral de perseguidores e perseguidos) nao passava préximo a cimera, indicando a expansao do espago da agao para outro ponto, onde a ca- mera teria com eles um novo encontro, Uma variante mais elaborada incluia a colocacao de algo (obsticulo ou pessoa entretida numa atividade qualquer) a alguns metros da ci mera e na trilha dos protagonistas, de modo a ctiar uma antecipagao do efeito através da expectativa frente & iminente colisio; esta consumava-se, as vezes fazendo uso de uma nova surpresa. Aqui, 0 efeito de suspense, de expectativa a ser aliviada no momento da convergéncia, era baseado, nao na monta- gem, mas na profundidade do espaco visado pela camera imével ¢ no conseqiiente tempo transcorrido para que os protagonistas 0 atra- vessem. Falo no passado, mas é extremamente facil encontrar tais procedimentos na cons- trugio de filmes atuais. Por outro lado, in- sisto nos exemplos ilustratives destes dois métodos de dramatizacéo — uso da monta- gem ou 0 uso da profundidade — para ressal- tar a sua presenga desde a primeira década do século. Tal presenga é mais significativa se lem- brarmos que, estes procedimentos jé eram utilizados ¢ reiterados em diferentes produ- ges, antes da utilizacao dos movimentos de camera, cujo uso mais sistemético desenvol- veu-se com maior lentidao. A mesma lenti- dao que caracterizou a incorporagio no re- pertério cinematografico do uso de corte em cena, bastante raro em 1908, se tomarmos ainda os filmes de D. W. Griffith como refe- réncia, E somente usado quando carregado de uma motivagéo precisa — mostrar com maior detalhe uma aco importante ou dis- positivo chave no desenvolvimento da esté- ria, que nao poderia ser entendido no usual plano de conjunto (ou plano geral) com que se filmava tudo. O que € mais importante para mim aqui, ndo ¢ 0 fator cronolégico, mas a constatagao bisica de que 0 uso do primeiro plano deu-se em fungao de uma necessidade denotativa — dar uma informa- ao indispensavel para o andamento da nar- rativa. Com outros procedimentos, nao foi outra a trajetéria, como mostra 0 caso dos 32 ‘© DISCURSO CINEMATOGRAFICO movimentos de cimera, de inicio ligados & necessidade de acompanhar as personagens em cenas exteriores. E notivel o fato de que © uso sistematico das “panoramicas” (rota- cao da cera em torno de um cixo fixo), no cinema ficcional, precedeu ao uso dos ‘ravellings (ou cartinho; movimento de trans- lagdo da cimera ao longo de uma direcao determinada). Basicamente, os mesmos fatores respon- sdveis pela “naturalidade” da montagem que liga duas cenas desenvolvidas em espagos di- ferentes estario aptos a conferir “naturalida- de” ao corte no interior de uma cena. Ja vi- mos o papel de convengGes tradicionais dra- maticas e narrativas na aceitagio da descon- tinuidade existente entre as imagens nos dois cexemplos citados; passagem de cena no “tea- tto filmado” ¢ a intercalagio de planos na montagem de perseguigdes. Do mesmo modo, os cortes que decompéem uma cena continua em pedacos nao estilhagam a repre- senta¢ao também em pedagos desde que se- jam efetuados de acordo com determinadas regras. Estas, de um lado, estéo associadas & manipulagao do interesse do espectador; de outro, ao esforco efetuado em favor da ma- nutengio da integridade do fato representa- do. As famosas regras de continuidade fun- cionam justamente para cstabelecer uma combinacio de planos de modo que resulte uma seqiiéncia fluente de imagens, tendente adissolver a “descontinuidade visual elemen- tar” numa continuidade espago-temporal re- construida, O que caracteriza a decupagem classica & seu cariter de sistema cuidadosa- mente elaborado, de repertério lentamente sedimentado na evolucio histérica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o méxi- mo rendimento dos efeitos da montagem ¢ a0 mesmo tempo torné-la invisivel. Em ter- mos das alternativas colocadas ao final do capitulo anterior, a opgao aqui ¢, primeiro estabelecer entre os fendmenos mostrados nos dois planos justapostos uma relagao que reproduz a “Iégica dos fatos” natural e, no nivel da percepsao, buscar a neutralizagao da descontinuidade elementar. O trabalho para conseguir tais efeitos pode ser dividido em varios aspectos. Hé, presidindo toda a claboragio, uma primeira delimitagao: 0 conjunto de planos se insere dentro de um filme cujos objetivos estio ancorados 3 narragio de uma estéria, o que implica na incorporagao de convengées nar- rativas e dramaticas nao exclusivas ao cine- ma, Na sua organizagio geral, o espago-tem- po construido pelas imagens e sons estard obedecendo a leis que regulam modalidades narrativas que podem ser encontradas no ci- nema ou na literatura. A selecao e disposi- 40 dos fatos, 0 conjunto de procedimentos usados para unir uma situagéo a outra, as clipses, a manipulagio das fontes de infor- macio, todas estas so tarefas comuns ao es- ctiror € ao cineasta. Apontei a equivaléncia centre paralelismo da montagem e o “enquan- to isto...” da literatura. Posso apontar equi- valéncias também em rclagio ao procedimen- to considerado chave na génese da arte cine- matogrifica. A mudanga do ponto de vista dentro de uma mesma cena, importante rup- tura frente ao espaco teatral, pode ser apro- ximada a procedimentos freqiientemente usados pelo escritor ao compor literariamente A DECUPAGEM CLASSICA 33 uma cena qualquer. Também este expoe os fatos através de um conjunto de deralhes particulares ou através de observages que dizem respeito a0 conjunto, tal como na representagio do cinema. Esta aproximagio, evidentemente, nao pode ir além desta indi- cacao de uma semelhanga de estructura. Em ambos os casos, trata-se da representagao dos facos construida através de um proceso de decomposigao € de sintese dos seus elemen: tos componentes. Em ambos afirma-se a pre- senca da selegao do narrador, que estabelece suas escolhas de acordo com determinados critérios. O fato de um ser realizado através da mobilizagao de material lingiiistico e de outro ser concretizado em um tipo especifi- co de imagem introduz todas as diferengas que separam a literatura do cinema. Dife- rengas que, em geral, so associadas a0 su- posto contraste entre o “realismo” da ima- gem ¢ a flagrante convencionalidade da pa- lavra escrita. O que tal comparacio esconde éa nacureza particular das convengdes que presidem um determinado método de mon- tagem, pois a hipétese “realista” implica na admisséo de que hé um modo normal, ou natural, de se combinar as imagens (justa~ mente aquele apto a nao destruir a “impres- sio de realidade”). Dentro desta moldura narrativa, 0 in- teresse segundo o qual, em cada detalhe, tudo pareca real torna obrigatérios os cuidados ligados 4 coeréncia na evolugio dos movi- mentos em sua dimensio puramente fisica Sc hé um corte em meio a um gesto de uma personage, toma-se todo 0 cuidado para que o momento do gesto correspondente 20 fim do primeiro plano seja o instante inicial do segundo, resultando na tela uma apresen- taco continua da agao. Todos os objetos ¢ as posigdes dos varios elementos presentes se- ro rigorosamente observados para que uma compatibilidade precisa seja mantida na se- qiiéncia. As entradas ¢ saidas (de quadro) das personagens sero reguladas de modo a que haja logica nos seus movimentos eo especta- dor possa mentalmente construir uma ima- gem do espaco da representacao em suas co- ordenadas bisicas mesmo que nenhum pla- no oferega a totalidade do espago numa tini- ca imagem. As diregoes de olhares das perso- nagens sero fator importante para a cons- trugio de referenciais para o espectador, € vao desenvolver-se segundo uma aplicacao sistemitica de regras de coeréncia, Dentro desta orientacdo, a decupagem seré feita de modo a que os diversos pontos de vista res- peitem dererminadas regras de equilibrio € compatibilidade, em termos da denotacio de um espaco semelhante ao real, produzin- do a impressio de que a ago desenvolveu-se por si mesma eo trabalho da cimera foi “capté-la”. Num outro nivel, superposto aos ante- riores, temos a continuidade produzida como resultado de uma manipulagio precisa da atengao do espectador, onde as substituigoes de imagem obedecem a uma cadeia de moti- vagbes psicolégicas. Passamos de um plano de conjunto a um primeiro plano de um ros- to porque, da prdpria natureza da aco te- presentada, surge uma solicitagdo que ¢ aten- dida justamente por esta mudanga de plano. Contendo nova informagao necesséria a0 andamento da histéria, precisando a teagao de uma personagem particular diante dos 34 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO fatos, denunciando alguma acao marginal imperceptivel para o espectador nos planos anteriores, 0 novo plano é sempre bem vin- do, e sua obediéncia as regras de equilibrio e motivacao o transforma no elemento que sustenta o efeito de continuidade, em vez de ser justamente a ruptura. Tal pritica corresponde a uma exten- jo do esquema elementar do Griffith de 1908 acima apontado, ¢ a grande exposicao teérica e diditica de seus princfpios foi ela- borada por V. Pudovkin; no seu livro Film technique (1926), cle nos explica com gran- de clareza toda a receita. Algo mais pode set encontrado no livro de Pudovkin, assim como jé era encontrado na realizagio de filmes competentes da épo- ca: a preocupagao fundamental com o ritmo de sucessio das imagens ¢ a observacao de que devem haver certas compatibilidades entre duas imagens sucessivas, de modo a se definirem certas relagGes plisticas. As corre- lagoes entre o desenvolvimento dramético € o ritmo da montagem, assim como o jogo de tenses € equilibrios estabelecido no desfile das configuracées visuais, sao dois instrumen- tos A disposigdo de qualquer cineasta. O que é caracteristico da decupagem clissica € a utilizagao destes fenémenos para a criagdo, no nivel sensorial, de suportes para o efeito de continuidade desejado e para a manipula- do exata das emogées. Assim afirma-se um sistema de ressonncias, onde um procedi- mento complementa e multiplica o efeito do outro. Longe de termos um esquema linear que vai da “impressio de realidade” a fé do espectador, 0 que temos € um processo mais uma interagao entre o ilusionis- mo construido ¢ as disposigoes do espect dor, “ligado” aos acontecimentos ¢ domina- do pelo grau de credibilidade especifica que marca a chamada “participagao afetiva”. Nes- te sentido, um dos procedimentos mais sut e de conquista mais tardia, de tremenda efi ciéncia no mecanismo de identificagao, é constituido pela combinagio de dois elemen- tos: 6 esquema denominado no contexto ame- ricano “shot (plano)! reaction-shot” ¢ a deno- minada “camera subjetiva”. A camera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista deuma das personagens, observando os acon- tecimentos de sua posigao, e, digamos, com os seus olhos. O shot/reaction-shot correspon de & situacao em que o novo plano explicita 0 efeito (em geral psicoldgico) dos acontec: mentos mostrados anteriormente no com- portamento de alguma personagem; algo de significativo acontece na evolusao dos acon- tecimentos e segue-se um primeiro plano do herdi explicitando dramaticamente a sua re- agio. E também corresponde ao esquema invertido, que concretiza uma combinagio de grande eficiéncia: num plano, o herdi observa atentamente ¢, no plano seguinte, a cimera assume 0 seu ponto de vista, mos- trando aquilo que ele vé, do modo como ele ve. Neste tiltimo caso, temos a tipica combi- ago das duas técnicas ~ shot/reaction-shor e camera subjetiva. Um dado importante em relagio 3 ca- mera subjetiva € que nem sempre sua pre- senga é evidente, No caso em que 0 herdi realiza um movimento em certa diregao € a cimera, 20 assumir 0 seu ponto de vista, re- produz exatamente o seu movimento, € mais facil o espectador tomar consciéncia do pro- A DECUPAGEM CLASSICA, 35 cesso. Ou também quando o heréi, penetran- do em novo espago, assume uma atitude ex- ploratéria dramaticamente importante, e a camera substitui os seus olhos, explorando 0 novo ambiente de modo a fornecer a platéia a sua experiéncia visual. Mas, em boa parte das situagdes em que ela € utilizada, o fato de que o espectador observa as ages através do ponte de vista de uma personagem, per- manece fora do alcance de sua consciéncia. este Momento que o mecanismo de iden- tificagao torna-se mais eficiente (nao surpre- ende que seu uso sistematico seja nos mo- mentos de maior intensidade dramética). Nosso olhar, em principio identificado com 0 da camera, confande-se com 0 da persona- gem; a partilha do olhar pode saltar para a partilha de um estado psicolégico, e esta tem caminho aberto para catalizar uma identi dade mais profunda diante da total situacio. A titulo de esclarecimento, lembro que é preciso nao confundir o procedimento da camera subjetiva com a reptesentagio direta (visualizagéo) de processos psicolégicos de alguma personagem (lembranga, sonho, ima- ginagio), caso em que se trata de projetar na tela um equivalente visual, apto a denotar 0 processo psicolégico em questio (nao temos aqui uma questo estrita de uso do ponto de vista). Um caso fundamental de combinacio entre camera subjetiva e shot/reaction-shor & © do chamado campo/contra-campo, proce- dimento chave num cinema dramatico cons- truido dentro dos principios da identifica- gio. Seu ponto de aplicagio maxima se dé na filmagem de didlogos. Ora a camera assu- me o ponto de vista de um, ora de outro dos interlocutores, fornecendo uma imagem da cena através da alternincia de pontos de vi ta diametralmente opostos (dai a origem da denominaggo campo/contra-campo), Com este procedimento, 0 espectador é langado para dentro do espago do didlogo. Ele, ao ‘mesmo tempo, intercepta e identifica-se com duas diregdes de olhares, num efeito que se multiplica pela sua percepcao privilegiada das duas séries de reagdes expressas na fisiono- mia € nos gestos das personagens. Falei dos didlogos. Acentuei 0 uso do sistema campo/contra-campo. Este sistema nos fornece um exemplo flagrante do papel da trilha sonora na obtengdo dos efeitos rea- listas e na mobilizagéo emocional do espec- tador. De certo modo, a sua consolidagio o seu refinamento devem-se a sincronizagao. do som com a imagem, uma vez que, no perfodo mudo, a seqiiéncia de planos era interrompida pela presenca dos letreiros in- dicadores das falas. Com o som, a cena dia- logada ganhou maior coeficiente de realida dee também ganhou em ritmo e forca dra- matica. Na verdade, o advento do cinema so- noro, tao lamentado por diferentes esteras, constituiu um passo decisivo no refinamen- to do sistema voltado para o ilusionismo e a identificago. O que nao significa dizer que nao havia outras propostas de utilizacio da trilha sonora, pelo contrétio. Desde 1928, 0 manifesto de Eisenstein, Pudovkin ¢ Alexan- droy, assim como intimeras proclamagées de cineastas ¢ criticos, apontavam para outras diregdes ¢ faziam sua critica incisiva a0 prin- cfpio do som sincronizado com a imagem 36 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO (principio que estabelece a colocacao das palavras e ruidos nos exatos momentos em que vemos funcionar a fonte emissora, de modo a produzit uma correspondéncia aceita como natural entre a imagem e 0 som). O faro € que este principio era necessario para © aperfeigoamento do metodo clissico; tor- nar audivel 0 que jé esté sendo visto é uma forma de torna-lo mais convincente. A ma- nipulagio do chamado ruido ambiente, as- sim como a presenga efetiva da palavra, vem conferir mais espessura e corporeidade & ima- gem, aumentando seu poder de ilusdo. O Cinema sonoro nos tem dado intimeras pro- vas disto na representagao de eventos natu- rais e conflitos humanos. Particularmente, a classica “cena de briga” tem cada vez mais baseado sua credibilidade no som dos gol- pes desferidos de parte a parte, tanto quanto ou mais do que na precisa simulagao visual dos gestos. Por outro lado, a ressonincia de efeitos fornecida pela trilha musical, no ci- nema mudo baseada na presenca da orques- tra na sala de projegéo, teve uma enorme ampliagio de suas possibilidades com o ci- nema sonoro. A entrada, a saida, a modula- ao ¢ a propria pega musical escolhida pas- sam para total controle dos realizadores do filme. Estas observagées sobre a eficiéncia da uiilha sonora no interior de um estilo parti- cular estariam escondendo algo fundamen- tal se eu nao insistisse no faro de que © cine- ‘ma sonoro significa imagem e som como ele- mentos integrantes de mesmo nivel, ¢ nao, como muitos preferem, imagem acrescida de um acessério. A passagem mudo-sonoro re- presenta um momento de extrema impor- tancia na construgao da decupagem clissica. E inegavel que os anos que antecederam a guerra de 1914 constituiram um momento chave de conquista de boa parte dos proce- dimentos. Nao é por acaso que Griffith é 0 cineasta que permeia todo este capitulo. Foi ele sem dtivida o primeiro grande sistemati- zador, 0 modelo a ser seguido pelos cineas- tas. O uso psicolégico do primeiro plano, os seus grandes finais marcados pela convergén- cia de tensdes e pela aceleragao, a combina- do coerente dos varios recursos até entio presentes de maneira dispersa em diferentes filmes, estes so méritos que Griffith con- centra em torno de si. Mas muita coisa ain- da estava por ser feita e aperfeigoada; 0 pro- cesso de formacio estende-se pela década de 1920 e da um verdadeiro salto com o adven- to do som — de inicio, uma implantagao com alguns pontos criticos, mas em pouco tem- po perfeitamente integrado no sistema, com excepcionais vantagens. Voltemos ao principio. Eu havia defi- nido decupagem como simplesmente uma decomposigio das cenas em planos; agora € preciso lembrar 0 que est4 implicado nesta decomposigio. Em primeiro lugar, a rigor, cu deveria falar em decupagem/montagem pois uma pressupée a outra — sao logicamente equivalentes. O uso dos dois termos deve-se uma ordem cronolégica encontrada na pré- tica, onde decupagem identifica-se com a fase de confecsio do roteiro do filme ¢ monta- gem, em sentido estrito, é identificada com as operagdes materiais de organizacao, corte e colagem dos fragmentos filmados. Em se- gundo lugar, aos que estranharam o fato de eu dar énfase ao som num discurso sobre a A DECUPAGEM CLASSICA 37 decupagem, lembro que esta, em um senti do mais amplo, corresponde & construgao efetiva de um espaco-tempo proprio ao ci- nema, E construir um espaco-tempo através da combinagio de imagens define um tipo de trabalho, enquanto que construi-lo atra- vés de imagens e sons € algo qualitativamen- te diferente. Ou seja, a decupagem/monta- gem passa a ter também uma dimensao so- nora, 0 que traz uma infinidade de novos recursos € possibilidades, ao lado de novos problemas. Temos duas fontes de estimulo independentes, e 0 que vemos na tela nem sempre precisa constituir a fonte emissora do som que ouvimos, Mais ainda, este som nem sequer precisa pertencer ao espago definido pelo que vemos. Em termos de decupagem Classica, falo de vantagens excepcionais por- que, mesmo dentro dos limites do principio do sincronismo, restam muitas possibilida- des de combinacio de imagem/som, Na construgio do espago “natural” que a carac- teriza, tal decupagem receberd uma substan- cial ajuda no momento em que contar com uma dimensao sonora: = (1) diante de cada plano, © som pre- sente € mais um favor decisivo de definigao clara do espaco que se estende para além dos limites do quadro; na construgio de toda uma cena, a descontinuidade visual encon- tra mais um forte elemento de coeséo numa continuidade sonora que indica tratar-se 0 tempo todo do “mesmo ambiente”. ~ (2) nos momentos de transigao € nos saltos bruscos de um espaso para outro, a manipulagao do som ¢ de suas surpresas vai constituir um recurso bisico de preparagio c envolvimento do espectador. ~ (3) além do mais, nao ficam exclui- dos do método cléssico certos assincronis- mos especiais, utilizados sempre a partir de uma motivagio especifica e guardando com- patibilidade com os objetivos gerais de cria- io de um espago que parega natural. Gozando ou ndo de tais vantagens ex- cepcionais, 0 sistema de procedimentos que cons certa orientacao, identificado com a verda- deira conquista da especificidade cinemato- grifica, Mas, os seus adeptos, pelo menos no plano teérico, nao puderam ficar tranqiiilos por muito tempo. Nem bem Griffith havia, nas suas linhas basicas na sua versio muda, consolidado este método, a dentincia de se limites ja surgia. O que no impediu que, sob a observincia de seus princfpios, déca- das de cinema ficassem marcadas pelo pre- dominio absoluto deste método de narragio no nivel da produgio industrial em escala mundial, sem excegoes Enquanto isso, as limitagdes apontadas pelos primeitos estetas do cinema, em seu momento ainda acompanhadas pelas home- sui a decupagem classica foi, dentro de nagens que todo cinéfilo sempre gostou de prestar a Griffith ¢ a seus companheiros de pioneirismo, serao crescentemente lembra- das e reanalisadas. A medida em que a frente tinica em defesa do prdprio cinema, em sua acepcao mais abstrata, perde importancia, maior é a tendéncia a se interprerar as “con- quistas” do cinema americano de 1908 a 1914 como a construgio de um cinema particular, 38 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO carregado de nogées particulares, endo como aconstrucao do Cinema. Neste sentido, tam- bem ganha formulacao cada vez mais clara a idéia de que este cinema particular inscrevia o novo veiculo dentro dos limites de conven- Ges particulares, naquele momento jé pre- sentes e vigentes em outras formas de discur- so dramitico e/ou narrativo. Nao se trata apenas de dizer, como ja foi dito, que uma série de construgdes mos- tra-se cada vez mais como manifestagdes ci- nematograficas de estruturas nao exclusivas ao cinema. Dentro da formulagao atual, tra- ta-se mais de acentuar 0 fato de que determi- nadas “descobertas” do comeco do século foram fundamentais porque abriram para 0 cinema a possibilidade de apresentar certas relagdes € estruturas, cumprindo a seu modo, tarefas j4 antes assumidas por outros meios de representacao no interior da sociedade. O que implica dizer: a construgéo do método clissico significa a inscrigao do cinema (como forma de discurso) dentro dos limites defini- dos por uma estética dominante, de modo a fazet cumprit através dele necessidades cor- relaras aos interesses da classe dominante. Asatfinidades do cinema de Griffith com um certo tipo de literatura popular ¢ com um conceito de representagao do século xix tornam-se gradualmente mais relevantes para a teflexdo critica. E passam a ser tio ou mais importantes do que as soluges por ele en- contradas no nivel especifico do cinema. ‘Mesmo porque, a expressao “nivel especifico do cinema” nao tem hoje a conotagio herdi- ca do comego do século, nem encontra no nivel teérico uma definigdo clara, De certo modo, tornou-se hoje mais um problema sofisticado do que uma palavra de ordem de efeito pratico, nao se constituindo no grande pélo de discussio que punha em conflico os estetas de 1920, Esta é uma razdo porque nao é meu interesse aqui discutir a questio da cespecificidade. Inevitavelmente, ao longo da exposigo 0 tema vai aparecer, por forca da propria postura de alguns autores analisados. Mas, o meu interesse maior estd na avaliagao das estéticas cinematogréficas em sua relacao com o conceito de representagéo implicado neste método que chamei de clissico. De um lado, encontraremos propostas que, assumindo tal método como um dado, concentram seus esforgos no debate ideolé- gico-estético enderecado a outros niveis da pritica cinematografica, De outro, encon- traremos as varias oposigdes contra ele, cada uma trazendo consigo suas motivagdes par- ticulares. O que torna estimulante a minha tarefa, ¢ a0 mesmo tempo define os seus li- mites, € 0 fato de que o trajeto que vai dos principios ideolégicos-estéticos gerais a to- mada de posicao diante do processo de de- cupagem/montagem tem sido, em geral, cheio de bifurcacoes. E muitas vezes tem sido percorrido originalmente em sentido inver- so. Em ambos os sentidos, cada ponto de partida, coerente ou incoerentemente, tem levado a pontos de chegada distintos. Neste ponto, via de regra, os estetas e cineastas en- contram companheiros ou conclusées inde- sejaveis, 0 que os obriga a mais um vai-e- vem na sua reflexio. Em todo caso, € pré- prio de uma apresentagao sintética tracar percursos claros, o que me trangiiiliza dian- te das simplificages e desembaralhamentos a que serei obrigado. A DECUPAGEM CLASSICA 39 BIBLIOGRAFIA BAZIN, André. Quest-ce que te cinéma? vol. il, Paris, Editions du Cerf, 1960. BURCH, Noel. Praxis do cinema, (tradugao portuguesa do Praxis du Cinéma, Pax ris, Gallimard, 1969). CHKLOVSKI, Vitor. Cine y lenguage, Bar- celona, Ed. Anagrama, 1971. COHEN-SEAT, Gilbert. Essai sur les prin- cipes d'une philosophie du cinéma, Pa- sis, PUR, 1946, MALRAUX, André. Eiquisse dune psycholo- gie du cinéma, Paris, Gallimard, 1946 MARTIN, Marcel. A linguagem cinematogrd- ‘fica, Belo Horizonte, Itatiaia. PUDOVKIN, V. I. Film technique and film acting, New York, Grove Press Inc., 1970 (deste autor, existe em portugues: Argumento ¢ montagem no cinema, Si0 Paulo, Ed. Iris, 1971; O ator no cine- ma, Rio de Janeiro, Casa do Estudan- te, 1956; Diretor e ator de cinema, Sto Paulo, Ed. 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Desenvolveu um estilo tendente a controlar tudo, de acordo com a concep- 20 do objeto cinematogrifico como produ- to de fibrica Deste modo, reuniu trés elementos ba- sicos para produzir o especifico efeito natu- ralista: a decupagem clissica apta a produzir 0 ilusionismo ¢ deflagrar 0 mecanismo de identificacao —a elaboragao de um método de inter pretagio dos atores dentro de principios na- turalistas, emoldurado por uma preferéncia pela filmagem em estidios, com cendrios também construidos de acordo com prin pios nacuralistas, ~ a escolha de estérias pertencentes a géneros narrativos bastante estratificados em suas convengoes de leitura facil, e de popu- laridade comprovada por larga tradigao de melodramas, aventuras, estérias fantdsticas ete. Tudo neste cinema caminha em dire- io ao controle total da realidade criada pe- jas imagens — tudo composto, cronometrado ¢ previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos meios de producio desta realidade. Em todos os niveis, a pala- vra de ordem € “parecer verdadeito”; mon- tar um sistema de representagéo que procu- ra anular a sua presenga como trabalho de representacio. uso do termo naturalismo nao sig- nifica aqui vinculagao estrita com um estilo Jiterario especifico, datado historicamente. proprio a autores como Emile Zola. Ele é aqui tomado numa acepgao mais larga, rem suas intersecces com o método ficcional de Zola, mas nao se identifica inteiramente com cle. Quando aponto a presenga de critérios a © DISCURSO CINEMATOGRAFICO naturalistas, refiro-me, em particular, 4 cons- trugio de espaco cujo esforco se dé na dire- gio de uma reproducéo fiel das aparéncias imediatas do mundo fisico, ¢ & interpreta- gio dos arores que busca uma reprodugio fiel do comportamento humano, através de movimentos e reagdes “naturais”. Num sen- tido mais geral, refiro-me ao principio que esti por tras das construgées do sistema des- crito: 0 estabelecimento da ilusio de que a platéia esté em contato direto com 0 mundo representado, sem mediacdes, como se to- dos os aparatos de linguagem utilizados cons- tituissem um dispositivo transparente (0 dis- curso como natureza). O importante é que tal naturalismo de base servird de ponte para conferir um peso de realidade aos mais diversos tipos de uni- verso projetados na tela. A produgio indus- trial, dividida em géneros, vai apresentar uma ampla variedade de “universos ficcionais”, fornecendo concretude ao mito (westerns, fl- mes hist6ricos) e, para considerar os extre- mos, oscilando entre seus produtos de de- clarada fantasia (aventuras, est6rias fantésti- cas, contos de fada etc.) e suas incursdes pe- los dramas rotulados de verdadeiros. No caso da estoria deliberadamente fan- tistica, a visio dircta do naturalmente im- possivel ganha todo o seu poder de atracao justamente pela espetacular preciso com que 0 fantastico parece real na tela, O sobrenatu- ral naturaliza-se e constitui a matéria basica do espeticulo. O uso da expressio “espeta- cular preciséo” no é casual. Nao ¢ somente em relagio a franca fantasia que o ilusionis- mo apresenta tal funcionalidade. A propria nogéo de espetéculo emanada deste sistema vincula-se intimamente a idéia de competén- cia na edificagao de uma aparéncia que ilu- de. As superprodusées, da Babilénia de Griffith (uma das partes de /ntolerancia, flr me realizado em 1916) aos cubardes, torres do inferno ¢ terremotos atuais, passando pe- los Moisés e Cledpatras “a la Cecil B. de Mille”, constituem 0 exemplo mais deliran- te desta identificagao entre arte ¢ competén- cia para copiar. Seja enderegada a um evento natural, ou & arquitetura, decoragao, indu- mentiria € “acontecimentos” de um deter- minado perfodo histérico, tal reproducio funciona como instrumento ret6rico. A “se- riedade” da reconstrugao e o cuidado apura- do manifesto nos detalhes simboliza uma atitude de “respeito a verdade” que tende a ser creditada para o filme no seu todo. No caso dos superespeticulos, a idéia de cépia funde-se com a idéia de monumentalidade; € procura-se fazer com que os elementos da intriga ¢ 0 destino das personagens passer por “modelos exemplates”, por auténticas alegorias que carregam um fundo de verda- de profunda face a vida do homem neste ¢ noutros mundos. Menos ostensiva ¢ mais eficiente, tal ret6rica tem seu momento de gloria no me- lodrama convencional, com suas fatalidades eseu maniqueismo, que se apresentam como auténtica “imitagao da vida”. Novamente, 0 naturalismo do método cumpre a funsao de projetar sobre a situagio ficcional um coefi- ciente de verdade tendente a diluir tudo 0 que a hist6ria tem de convencional, de sim- plificagio e de falsa representacio. A mesma equacio, afirma-se: discurso = verdade. O abstrata método torna “palpavel” uma vi DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO, 43 ¢, deste modo, sanciona a mentira, Através desta idéia de preciséo, detalhe correto, con- tinuidade, é fornecida uma experiencia con- vincente, que da consisténcia ao mergulho num mundo de sonhos. E comum se dizer que néo importa muito 0 fato de Hollywood ~ principalmente quando quis propor sua representacio como verdade — ter fornecido uma realidade falsa ¢ fabricada, uma ver. que muita gente parece satisfeita com o dado imediato de que foi sempre uma realidade bem fabricada. Contrariamente, ha os que, independentemente de qualquer andlise ul- terior, empreendem uma incansével batalha contra a fabricagao, tomando-a como siné- nimo de falsificagao € como algo proibitive num suposto discurso verdadeiro. A meu ver, o problema basico em tor- no da producéo de Hollywood nao esta no fato de existir uma fabricagao; mas esté no método desta fabricagao e na articulacao des- te método com os interesses dos donos da industria (ou com os imperativos da ideolo- gia burguesa). Uma questio bésica da criti- ca atual é a da necessidade ou nao desta arti- culagio, ou seja, se € vélido ou nao se dizer que © complexo representagio naturalista/ decupagem clissica/mecanismo de identifi- cagio define necessariamente um mérodo burgués, definidor de um cinema necessa- riamente burgués. Os analistas do sistema hollywoodiano, na defesa de um ou outro ponto de vista, atacam esta questao em duas frentes: num nivel mais conceitual (a prepa- ragio para o seu entendimento é um dos objetivos deste trabalho) ¢ num nivel mais empirico, na base de anilises de filmes que possam servir de prova da validade da posi- ¢40 assumida. Esta andlise de filmes tem sido. cada vez mais praticada, principalmente pe- los que se opdem a ver a relagao em questao, como necessdria. Estes tiltimos agarram-se & esperanga de apontar os contra-exemplos aptos a desmantelar a argumentagio contré- ria. Taticamente, tal atitude tem como obje- tivo a demonstracéo da neutralidade do sis tema de representacio € a possibilidade de sua utilizacao dentro de diferentes perspec- tivas ideoldgicas. Estrategicamente, ela tem 0 objetivo de demonstrar a inviabilidade de qualquer consideragio em bloco frente a0 sistema hollywoodiano dentro de um proje- to mais amplo de negagao da existéncia de “relagdes necessirias” (ou determinagées) no campo da produgao artistica, tomado como lugar da manifestagao irredutivel da indivi- dualidade. No seu aspecto mais geral, esta questio vem de longa data. Reiteradamente, ao lon go da histéria do cinema, encontramos ati- tudes criticas assumidas contra um diagnés- tico geral tendente a inscrever os productos de Hollywood numa categoria e apontar a sua pertinéncia a engrenagem maior que de- fine o seu sentido. No momento em que, sob © dominio de uma estética da expressio in- dividual, a industria do cinema é acusada de antiartistica devido & padronizagio e impes- soalidade dos seus produtos, esta atitude eri- tica manifestou-se numa direcéo particular: uma politica de valorizagio de cineastas par- ticulares ou de filmes particulates, aponta- dos como, essencialmente, algo mais do que manifestacGes das tendéncias do sistema. Um episédio de larga repercussao na critica mun- dial foi a adogao desta atitude por parte dos 44 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Cahiers du cinéma na década de 1950, em sua chamada Politique des Auteurs, responsé- vel por uma certa avidez em descobrir coisas “notéveis” ¢ marcas de um estilo pessoal nos filmes americanos. Nos anos 1950 ¢ também no inicio dos anos 1960, sao dezenas de cri- ticos & procura de um autor, na Europa e nos Estados Unidos, cujos criticos sentiram- se liberados de sua inibicao pelo sinal verde dado pela apologia dos Cahiers. No Brasil, no inicio dos anos 1960, a politica de autor, componente do Cinema Novo, nao deixa de se refletir na atitude de cineastas histori dores frente ao préprio cinema brasileiro, embora nao se possa reduzir esta politica a um mero reflexo da tendéncia internacional = aqui, a valorizagao do autor vinculava-se ao problema-chave de uma cultura nacional ea. uma postura francamente anti-industrial. De qualquer modo, o tratamento dispensa- do a Humberto Mauro pelos historiadores, €a sua encampago pelo Cinema Novo, sio fatos ligados ao fendmeno geral que aponto. E significativo que, na sua revisio critica, Glauber Rocha tenha buscado 0 exemplo do bom cinema brasileiro num autor, indepen- dente do fato de Humberto Mauro ajustar- se ou nao 3 sua politica. Ao lado disto, é tam- bém interessante lembrar que, dentro do pro- blema da cultura nacional, a revalorizacao da chanchada, naquele momento inviavel, tornou-se possivel num momento posterior, também caracterizado pelo declinio da poli- tica autoral (repito: nao estou afirmando que 6 problema se reduz a isto). Em nossos dias, no contexto internacional, o eixo das discus- s6es no é tanto a oposicao autor/ sistema mas 0 problema da vinculacao “método de repre- sentacao/ideologia”. Nao surpreende que encontremos dezenas de criticos ¢ académi- cos 4 procura do filme hollywoodiano fiel a0 método cléssico mas nao-burgués; ou, num projeto bastante atrativo para criticos americanos, a procura do filme hollywoo- diano nao fiel ao método classico. Como a condenagio de hoje cai sobre a combinagao decupagem clissica/mecanismo de identifi- cacao, vemos surgir analistas interessados em apontar distanciamentos brechtianos em John Ford ou criticas a0 método classico (ba sicamente & manipulagio do ponto de vista) no Hitchcock dos anos 1950 (vero livro John Ford, de McBride e Wilmington, e as consi- deragoes de criticos como Andrew Sartis ¢ Robin Wood — ligados a “politica dos auto res” -, bem como a discussao na revista Film Quartely, envolvendo Daniel Dayan ¢ Wil- liam Rothman, defensor de Hitchcock). Hoje, mesmo aos olhos dos recupe dores de filmes ou de cineastas de Holly- wood, a decupagem cléssica, o cinema de esttidio e 0 cultivo de géneros estratificados marcam a realizagao de um cinema possivel, entre outros concretamente presentes. Inclu- sive, encontramos um certo consenso em torno da presenga dominante de um “cine- ma moderno”, fora dos limites mais rigidos do método classico. A este, € reservado um lucrativo absoluto reinado no periodo en- tre as duas guerras mundiais (principalmen- te na fase sonora), época em que falar do ci- nema holliwoodiano era praticamente falar daquilo que se identificava como 0 cinema “normal” — o paradigma ~ frente a manifes- tages marginais, por cle submetidas ao con- finamento (como exotismo nacional diante DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO. 45 de um cinema civilizado cuja produgao se dava na Califérnia, ou como vanguardismo ¢ excentricidade intelectual). Neste sentido, quando me refito a esta producto industrial como sistema, nao es- tou apenas pensando na maquina industrial produtora de filmes, mas em todo 0 aparato discursive (propaganda, critica, literatura sobre) apto a veicular os princ{pios e valores materializados nesta produgio. Tal aparaco discursivo teve um papel importante desde © momento da implantacao, nas primeiras décadas do século. Particularmente, em re- lagdo aos anos 1920 e 1930, quando se co- menta 0 vazio tedrico americano, correlato ao seu dominio industrial, deve-se prestar atengio para a relatividade deste enunciado. Porque os intimeros livros escritos nos Esta- dos Unidos, desde 0 periodo da Primeira Guerra, dedicados a expor com clareza as boas regras para a confec¢io do roteiro, den- tro dos principios aqui comentados, teste- munham em sentido contrario. Estes verda- deiros manuais da boa continuidade, da es- t6ria adequada, da boa interpretagéo ou da boa construgao dramatica, podem nao ter sido escritos por figuras de porte intelectual ¢ presenga cultural dos seus contemporaneos curopeus; mas, constituem uma compilacio significativa que documenta muito bem o quanto toda a ideologia do espetaculo e da fabrica de sonhos nao ficou apenas em esta- do pratico nos filmes. Da mesma forma, o exame de uma amostra de criticas de cinema escritas nos Estados Unidos ¢ em outros pai- ses, por um longo periodo, pode também indicar a incidéncia dos mesmos principios na avaliagio dos produtos da industria. O que afirma uma dinamica bem especifica, onde os manuais pedagdgicos, a pritica in- dustrial e a avaliagao exercida por um grupo de experts compéem um conjunto harméni- co, como uma equipe trabalhando para a concretizagio dos mesmos principios e dis- cutindo apenas as questdes relacionadas com a performance e a eficiéncia do sistema. Este fato adquire importancia maior, quando lembramos o papel exercido por esta literatura de manuais e pelas criticas de revi tas em paises importadores de filmes, como parte do sistema de divulgagéo das concep- gGes de Hollywood. Tal € 0 caso do Brasil, onde os principais grupos iniciadores de uma reflexdo sobre cinema tiveram em sua forma- do uma forte influéncia deste idedrio. Por exemplo, o grupo da revista Cinearte (publi- cada a partir de 1926) apresenta a visio do cinema como fabricacao industrial de um. mundo de aparéncias entregue ao espectador com a melhor das embalagens Ao lado de Cinearte, outro grupo atin- gido pelas mesmas idéias seri o do Chaplin- Clube (Cineclube cujas atividades se esten- deram de 1928 a 1930), apesar da formagio curopéia de seus fandadores. Nas paginas do /4N, jornal do cineclube, seré parente a pre- feréncia pelo modelo de cinema americano, na base dos elogios & continuidade, ao equi Iibrio dramatico e & perfeita consisténcia do universo visivel propria a seus produtos, ‘Tal idedrio vai sobreviver como tendén- cia dominante por décadas, cristalizando-se no Brasil no grande projeto burgués e indus- tial da Companhia Cinematogrifica Vera Cruz (1949), totalmente idealizado dentro do modelo de Hollywood. Ou seja, orienta- 46 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO do para uma produgio dentro do trinémio naturalismo/decupagem classica/mecanismo de identificacao e para a projecio na tela de encarnagdes convincentes do bem ¢ do mal, cumprindo um jogo de fatalidades rurais ou urbanas. Com sede na California, em Cinecited ou em Sio Bernardo, tal modelo representa uma convergéncia radical entre a construgao de um discurso que se quer transparente (efei- to de janela/fluéncia narrativa) € a modela- gem precisa de uma dupla mascara: para pro- por uma ideologia como verdade, tal masca ra insinua-se na superficie da tela (produ- zindo os efeitos ilusionistas) e insinua-se, na profundidade ¢ na duragio produzidas por estes efeitos (produzindo as convengées do universo imagindrio no qual 0 espectador mergulha). B, AS EXPERIENCIAS DE KULECHOV Diante da pritica americana, notivel pelo ritmo dos seus filmes e pela sua fluén- cia narrativa, Kulechov foi o primeiro teéri co a investigar sistematicamente os fatores construtivos responsiveis pela eficiéncia desta pritica ¢ pelo seu enorme sucesso nas telas de todo 0 mundo. Foi nos seus primeiros tempos de cineasta e professor de cinema na Ruissia de 1917, que iniciou o caminho que o transformaria no inaugurador da teoria da montagem. Inspirado por uma atitude tipi camente empirista, pos-se a observar meto- dicamente os filmes e as reagoes da plaréia, procurando isolar a varidvel responsével pela diferenca de atitude dos espectadores, niti- damente favoravel aos filmes americanos em detrimento dos europeus e, particularmen- te, dos filmes russos. Kulechov estava inte- ressado, basicamente, em detectar os fatores do sucesso e, numa anélise comparativa, che- gou logo a conclusio: 0 fator fundamental responsével pelo suc mo da sua montagem, enquanto que a ca- racteristica basica dos europeus é a lentidao com que as imagens se sucedem. Além dis- (0, outro fator evidente é a compatibilidade existente entre a montagem americana ¢ 0 so americano € 0 ri tipo de ficgdo desenvolvido em seus filmes ~ perseguigdes, lutas corporais, cavalgadas, dentro de filmes de aventura, onde movimen- to €agio sio os ingredientes basicos. O con- traste entre as reacies da platéia (e provavel- mente as do proprio Kulechov) diante dos diferentes estilos, leva 0 cineasta russo a es- tabelecer uma correlagao necessaria entre 0 bom cinema e a sucessio répida dos planos. Em 1922, num artigo intitulado “As ameri- canidades”, ele observa com preciso um dos principios basicos da decupagem clissica: “Ao procurar, na medida do possivel, dimi- nuir a extensio de cada parte componente do filme, ou seja, a duragio de cada plano obtido através de um posicionamento de camera, os americanos descobriram um mé- todo simples de resolver a complexidade das cenas através da filmagem daqucle elemento particular do desenvolvimento sem 0 qual, em cada momento determinado, a ado ne- cessiria ¢ vital néo poderia ocorrer; ea ci mera é colocada em tal perspectiva que 0 tema de uma determinada passagem atinge a0 espectador ¢ é entendido por este da ma- neira mais répida, simples e compreensivel”: (Kulechov on film, p.128). DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO 47 A partir daf, 0 raciocinio de Kulechov desdobra-se em duas conclusées fundamen- tais, sempre retornadas quando se fala na montagem: (1) 0 momento crucial da prética cinematogréfica é 0 da organizagio do mate- rial filmado; (2) a justaposigao e o relaciona- mento entre os varios planos expressa 0 que eles tém de essencial e produz o significado do conjunto (Kulechov vai nos falar da mon- tagem como elemento chave na “compreen- séo semantica daquilo que se passa na tela”). © auténtico cinema, a seu ver, esté na montagem eos principios que definem anova arte devem ser buscados, nao na imagem sin- gular de cada plano (matéria-prima), mas na sua combinagao (através de métodos especi- ficos de trabalhar a matéria-prima). Em seu livto, A arte do cinema, publicado em 1929, ele retoma suas idéias basicas, elaboradas durante dez anos, e expde em detalhe os vé- rios passos que definiram o seu caminho rumo a teoria e as experiéncias célebres que realizou no campo da montagem. A preocu- pacao em detectar © que nos filmes america- nos respondia pelo scu sucesso partia de uma motivagio tedrico-pratica bem nitida. O contexto dentro do qual Kulechov desenvol- via seu trabalho era o da tevolugao de 1917, e sua proposta era a de estabelecer bases s6li- das para a edificagio de uma nova cinemato- grafia, a partir das cinzas do cinema czarista e¢ contando com recursos tremendamente escassos, dada a situagio geral do pafs ¢ a guerra civil em andamento. Ele estava con- vencido de que um entendimento profundo da verdadeira natureza do cinema era abso- lutamente necessério para dar consisténcia e sucesso & producio soviética. O caminho escolhido foi a andlise empirica das constru- oes dos “bons” filmes ¢ seu critério de qua- lidade foi a reacéo da platéia. E neste aspecto que acentuo o tom empirista de sua proposta de trabalho. De um lado, tal orientagao permitiu a formulacio do principio célebre conhecido como “efeito Kulechov” e de conceitos reve- ladotes como “geografia criativa’; mas, de ‘outro, ancorou a sua concepgao de cinema aos valotes que derivavam do cinema particular que cle dissecou, Resultado: na década de 1920, Kulechov foi o maior tedrico do cine- mada montagem invisivel eda construcio de um espago-tempo narrativo marcado pela procura da impressio de realidade e da iden- tificacdo. No nivel das experiéncias priticas, nao surpreende que os seus trabalhos afirmem a preferéncia pelos filmes de acio ou comé dias, na base da sucessio répida e principal- mente do clissico método da montagem pa- ralela combinando ages simultineas. ‘A nogio de “geografia criativa” corres- ponde justamente a0 proceso pelo qual a montagem confere um efeito de contigitida- de espacial a imagens obtidas em espacos completamente distantes € da aparéncia de realidadea um todo irreal. No cinema, ¢ per- mitida a construgao de um todo (ou corpo) através da combinacio de partes na realida- de pertencentes a roralidades distintas; po- demos combinar o plano de um rosto de uma pessoa com um plano das maos de outra, ¢ assim sucessivamente para todo 0 corpo, compondo deste modo uma unidade origi- nal na tela. O que ¢ importante para Kule- chov é 0 efeito de realidade obtido. E, den- 48 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO O NASCIMENTO DE UMA NACAO, D. W. Griffith tro da orientagao realista, sua proposta re- presenta um construtivismo radical — cada imagem ou plano constitui apenas um pe- 0 “tijolo queno fragmento de uma edific por tijolo” ¢ vem sua presenga reduzida ao minimo. Kulechov nao confia na imagem isolada como algo eficiente na produsio dos efeitos em cinema. O plano tem de ser o mais ma unidade minima de in- curto possiv formacio, que deve ser simples ¢ clara de modo a permitir uma decodificagao imedia nidade de plano ta ~ ele vai chamar esta signo: “O plano cinematog! fotografia (estética). O plano é um signo, fico nao é uma uma letra para a montagem” (idem, p.80) Ninguém mais do que Kulechov vai acreditar na maleabilidade desta unidade minima: 0 “efeito Kulechov” ¢ um extremo. exemplo disso. A experiéncia, esquematica- mente, consistia em intercalar 0 mesmo pla ao no de um ator (portanto, a mesma expre facial) com trés imagens diferentes, de modo a “provar” que, induzido pela imagem aco- ignificado di- ferente 4 mesma expressio facial, o que seria uma demonstrasao radical do predomi n sobre cada imagem plada, 0 espectador daria um absoluto da montas singular. Esta experiéncia teve uma forte re percussao na Riissia e, em seguida, no Oc dente, sendo amplamente divulgada pelas DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO, i9 conferéncias de Pudovkin, em sua viagem. Na época, era dotada de uma credibilidade que diminuiu com o tempo. O préprio Ku- lechov, em 1967, nos fornece um relato em que 0 scu préprio crédito no efeito perma- nece ambiguo: “Eu alternei o mesmo plano de Mozhuki prato de sopa, uma mulher, um caixao com uma crianga morta), € os planos (de Mo- zhukin) adquiriram um sentido diferente. A descoberta me assombrou — tao convencido. com varios outros planos (um estava eu do enorme poder da montagem” (idem, p.200). ‘Ao conceber a leitura de cada imagem como algo imediato, atribuindo as imagens precedentes um forte poder de indugio nes- ta leitura, 0 exagero de Kulechov indica 0 quanto sua teoria do cinema “em geral” apro- xima-se das normas do cinema particular que ele defende. A leicura imediata ¢ 0 privilégio absoluto do fluxo de imagem sao, sem divvi- da, propriedades ajustaveis aos limites de um cinema narrativo, baseado nas regras de con- tinuidade e de clara motivagao para a mu: danga de plano. E, neste aspecto, Kulechoy € radical, exigindo que todo ¢ qualquer epi- sédio representado seja necessdrio para o desenvolvimento da agio, num ajuste per- feito. Vejamos as suas razdes para o elogio a A woman of Paris, de Charles Chaplin: “Tudo nele flui de um elemento para o seguinte ‘numa ininterrupta seqiiéncia logica: nenhum episddio poderia ser descartado ou 0 conti- nuo encadeamento cine-dramético se perde- ria” (idem, p.95). Esta idéia de perfeigio e organicidade dramética, nitidamente aristotélica em sua formagao, é reproduzida no critério funda- mental de composigio do enquadramento. Este deve focalizar uma imagem funcional, sem “espagos supérfluos na tela” e sem ambi- giiidades. Combinadas estas exigéncias com a sua definigéo do que consticui o material especificamente cinematogrifico, fica claro 0 sentido da proposta realista de Kulechov: “Se comparsissemos estas duas cadeiras (uma pintada por um artista dentro do estilo mais realista possivel, outra verdadeira) projetadas na tela, veriamos que a cadeira real, uma vez fotografada apropriadamente, apatecetia bem. Entretanto, olhando para 0 trecho do filme onde esta registrada a cadeira pintada pelo artista, nao veriamos absoluramente nenhuma cadeira; veriamos apenas a tela, a sua textura, ¢a configuragao de cores em varias combinagées — ou seja, apenas os materiais com 0s quais a cadeira pintada foi feita visi- vel” (idem, p.56). ‘Aqui hé um outro exagero de Kulechov, Veriamos uma cadeira pintada, nao apenas © material da pintura. De qualquer modo. sua conclusio é 0 mais importante: “Torna- se claro, através deste exemplo, que, acima de tudo, coisas reais em contextos reais cons- tituem o material cinematogratico; os mate riais estilizados — a representasao estilizada de uma cadeira — vao aparecer no cinema apenas como estilizacao” (idem, p.56) No seu ataque & pré-estilizacio, ele en- tra em sintonia com grande parte dos teori- cos do periodo, excetuando-se os defensores do cinema abstraro ou os defensores do ex- pressionismo alemao (em especial de O gabi- nete do doutor Caligari), movimento critica- do tanto pelos cineastas russos quanto pela vanguarda francesa - 0 seu flanco de ataque 50 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO seria a estilizagao da interpretagao e da ceno- gratia. As razdes de Kulechov serao semelhan- tes ade Louis Delluc ou de Léon Moussinac: aafinidade do veiculo cinema com a textura do mundo natural, que torna a presenga da representagio artificial algo evidente ede triste efeito na tela. Nesta mesma linha, vao cami- nhar duas figuras significativas no contexto germano-americano: Siegfried Kracauer € Erwin Panofsky. Este ultimo, em seu artigo “Estilo e meio no filme”, também promove um ataque a “pré-estilizagao” (que denuncia a artificialidade daquilo que € posto diante da camera) e defende a incidéncia do estilo somente no nivel da montagem Coerentemente, dentro dos seus prin- cipios, Kulechoy estende 0 scu raciocinio & anilise do gesto humano na tela. E sua con- clusio nao poderia ser outra senao um ata- igura do ator ¢ ao gesto representado el na ques nos moldes teatrais. O elemento not sua posigio é que tal ataque nao resulta na defesa do uso de nao atores ¢ de pessoa muns agindo naturalmente, eficientes na tela gracas a scu tipo (caso de Eisenstein, por exemplo). Por outro lado, para conciliar a sua defesa do controle ¢ da perfeigao com a exigéncia de naturalidade, nao apela para 0 metodo Stanislavski —longe disso. A presen- ga de “psicologia na tela” é 0 seu grande ini- co- migo. Assim como a estéria deve ser desen- voivida na base do “filme de agao” com de- terminacées sociais ¢ interesses concretos, sem incursbes pela “vida interior” das perso- nagens, o trabalho do ator nao poderd ser baseado na expressio de um estado interior. Na busca de uma solugio, Kulechov inspira-se numa concepgao do trabalho in- dustrial como lugar do “gesto perfeito” (pre- ciso, eficiente, econdmico, porque realizado inconscientemente depois de intenso treina- mento), procurando propor para o cinema um método que resulta de sua viséo particu- lar da biomecanica de V. Meyerhold (um método também teatral, mas antipsicologista por exceléncia). Baseado nisto, Kulechov apresenta um claborado sistema de organi- zacao dos gestos e um metodo de treinamen- to do ator para que este atinja a perfeigao do gesto natural ¢ preciso do homem que reali- za uma operagao de trabalho manual. Vemos, assim, que um considerdvel mosaico de influéncias ¢ reelaboragdes mar- ca a diregao especifica em que ele caminha em sua proposta de naturalidade ¢ fluéncia paraa ficgao cinematografica. Naturalista, em sentido ortodoxo, na sua exigéncia de mate- iais reais na composigao da imagem; aristo- télico na sua idéia de composigao visual dramatica; americanista na sua inauguracio da teoria do cinema de agao ¢ da montagem invisivel; culmina com uma proposta expe- rimentalista no nivel do ator. Seu antipsico- logismo tende a afasté-lo da idéia de “totali- dade orginica” ou dos principios caracteris- ticos de um realismo psicolégico modelado na concep¢ao romanesca do século XIX, per- feitamente compativel com os outros aspec- tos da sua teoria. Entretanto, seu apego a construgdes nartativas tradicionais € a regras de verossimilhanga 0 afastam de qualquer compromisso com propostas de ruptura com 0s principios burgueses de representacao, propria a movimentos modernistas, de forte presenga no seu contexto (basta lembrar os poetas cubo-futuristas russos, 0 teatro de DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO, 51 Meyerhold ¢ as propostas de Eisenstein € Vertov no campo do cinema). A idéia de modernidade nao aparece no scu pensamen- to por forca de uma vinculagio entre sua es- tética ¢ 0 clima da Revolugao de 1917 ou por forca de uma adesao decisiva a uma esté- tica experimentalista. Ela vai aparecer atra- vés da idéia de ritmo acelerado, muito difusa na época para definir algo, ou, obliquamen- te, num certo “taylorismo”, implicado na for- ma como elogia a mecanizagao do gesto ba- seado no modelo da racionalizagio do tra- balho industrial Nesta fase dos anos 1920, que deno- mino de pragmitica, o trabalho de Kulechov soffe, na sua propria estrucura, deste mesmo mecanicismo presente na sua concepgao do trabalho do ator ¢ na sua proposta geral de construgio dos filmes ¢ de seus efeitos. O ponto critico de sua teoria esta na forma mecinica com que procura transplantar as caracteristicas de um certo cinema para a sua propria pritica, realizada em um contexto distinto © comandada por necessidades dis- tintas, sem discutir os valores implicados ¢ cinema tomado como modelo. Ques- nes tes como a relagao entre estilo cinemato- grafico ¢ ideologia, ou a relagao entre méto- do de montagem ¢ certas necessidades de um mundo ficcional particular carregado de uma fungao e de valores particulares, sao relegadas um segundo plano diante da sua pesquis em torno da especificidade do cinema. E dis- to que resulta a sua condigio de primeiro teérico do cinema instaurado por Griffith. Em 1935, no capitulo dedicado a mon- tagem, dentro do livro A prética da diregao cinematogriffica, Kulechov vai levantar esta questio, sendo bem enfittico na ligagao indis- do mundo fesa sohivel entrea montagem ea vis do realizador. Em vez de uma simples de da montagem sour court, ele vai concentrat seus argumentos na explicagao de como se di a relagao montagem/ideologia. “Artistas com diferentes vises do mundo percebem a rea- lidade que os cerca diferentemente} eles vem os acontecimentos de modo diferente. os discutem de modo diferente, os mostram, os imaginam ¢ os ligam uns aos outros diferen- temente” (idem, p.184). A seu ver, a montagem justa serd aque- la em que “o relacionamento demonstra a esséncia do fendmeno que nos cerca, pois por tris da montagem ha sempre uma intengao de classe”. Agora, prevalece 0 critério ideo- légico (que define uma visio justa da reali- dade) sobre o antigo critério do ritmo ¢ con- tinuidade. Isto estara articulado com uma alteracio na maneira de encarar cada ima- gem. O plano isolado deixa de ser pedago de realidade puramente fisica e sem sentido, para ser uma “realidade viva filmada”, portanto jd em si mesmo apontando para determina- das diregdes. A relagao entre a montagem ¢ 0 material filmado passa ase definir como uma interdependéncia — certos métodos de mon- tagem ajustam-se a certos materiais e ambos sao fatores interdependentes na transmissio, de uma visio dos fatos. E notavel nesta reformulago de Kule- chov a inversao radical operada, pois da an- tiga desconsideragio dos aspectos ideoldgi- cos, ele passa & proposigao categérica do método de montagem como reflexo da ideo- logia - os tragos dominantes da vida huma na sob 0 capitalismo americano do inicio do século explicam as caracteristicas do cinema que dela emerge. Neste sentido, elabora a mesma interpretagao que encontramos em Eisenstein para a predominancia do estilo de montagem acclerada ¢ do “cinema de acao” no contexto americano: “A arte americana tinha inevitavelmente de se rornar uma arte de consolo, uma arte a que faltava realidade, uma arte que afastava as massas da luca de classes, da consciéncia de seus préprios inte resses de classes; e, por outro lado, tinha de ser uma arte que dirigia a energia para a.com- petitividade, a iniciativa, alimencadas com moralidade burguesa ¢ com psicologia bur- guesa. Eis como 0 “detetive americano” foi criado — os filmes americanos de aventura. De um lado, eles chamaram a atengao para energia, para a competitividade, para a ago; cles chamaram a agio para os “herdis do ca- pitalismo”, fortes ¢ enérgicos, em quem a forga, a eficiéncia, ¢ a coragem sio sempre vitoriosos. De outro lado, estes filmes con- dicionaram as pessoas ao bitolamento, & dis- tincia frente & realidade, condicionando-as ¢ educando-as para o fato de que, com uma energia correspondente, uma pessoa pode adquirir uma fortuna individual, pode pro- ver o sew aluguel, e pode tornar-se um feliz proprictario” (idem, p.190). Logicamente, esta interpretagao éacom- panhada de uma profunda autocritica quan- to aos limites de sua reflexao dos anos 1920, vista como uma aceitagio acritica do modelo americano. Kulechov observa, que no inicio dos anos 1920, tal modelo nao deixava de ser uma “presenga progressista” dados os seus ensinamentos. O seu erro teria sido a nao (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO percepcio da necessidade de assimilar criti- camente e superar tais ensinamentos. Outro deslocamento fundamental rea- lizado por Kulechov nesta revisio € a trans- formagio no critério de qualidade: antes tra- tava-se de ajustar os filmes a um padrio de sucesso; agora trata-se de ajustar os filmes a uma concepgio da realidade. O antigo “rea- lismo” afiliado ao padréo naturalista amer cano dizia respeito aos meios de apresenta- 20. O novo realismo diz respeito a0 mundo social representado (ou significado) pelas imagens, o problema basico é expressar uma visio de mundo correta, capaz de captar a esséncia dos fendmenos € nao apenas a apa- réncia, E interessante ressaltar que, na sua proposta revisada, nada indica uma necessi- dade de abandonar o naturalismo dos meios para atingir uma arte afirmadora de tal visio correta. A idéia de representagio permane- ce, assim como a busca de uma relago com ‘0 espectador nas mesmas bases da narragao continua que desenrola uma totalidade auto- suficiente em evolucio. A idéia do mundo ficcional como mictocosmo que reproduz algo real no ¢ abandonada. C. O REALISMO DA “VISAO DE MUNDO” Vsevolod Pudovkin ¢ Bela Balazs, den- tre aqueles que iniciaram sua reflexio sobre cinema no periodo mudo, serao as figuras mais representativas de uma estética realista de inspiracio marxista. Em seus aspectos mais gerais, inauguram uma tendéncia que se estendera aos italianos Umberto Barbaro (anos 1930, 1940 e inicio dos anos 1950) € Guido Aristarco (mas recentemente). DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO 33 Pudovkin foi o principal discipulo de Kulechov, como cineasta ¢ tedrico. Disto re- sulta uma convergéncia de atitudes frente a elementos basicos da produgao cinematogré fica, havendo algumas divergéncias, em par- te ligadas ao organicismo de Pudovkin, no- tavel em seu livro escrito em 1926. Como Kulechov, vé na montagem o fundamental da arte cinematogrifica. E, como Kulechov, vai construir uma teoria da narracSo baseada no critério de continuidade, ritmo, equili- brio de composigio e sucesso ldgica. Entre tanto, o cinema que ele propde implica numa presenca privilegiada da consciéncia huma- na, no nivel do método de construsio € no da propria ago representada — todos os seus filmes envolvem um processo de tomada de consciéncia, de desalienagio, como compo- nente basico da trajetoria da personagem, De certo modo, hé no mundo cinema- togrifico de Pudovkin lugar para a “psicolo- gia”, assim como hé lugar para uma concep- G0 mais flexivel do trabalho do ator, que inclui uma adaptagéo de Stanislavski para 0 cinema, Considerada a forma especific como Pudovkin concebe o desenvolvimen- to das agdes dentro do seu universo ficcional, temos algo muito préximo do romance rea- lista do século xix (Nao é por acaso que sua obra mais conhecida ¢ uma adapracio de A mae, de Maximo Gorki) Aiideia de visio, como apresentagao de uma tealidade em perspectiva, constitui o eixo da sua teoria. Fazer cinema praticamen- te confunde-se com traduzirem imagens, dar expressio visual a uma representacio da cons ciéncia que, atentamente, observa o mundo que a rodeia. E dai que parte a sua idéia de tema, a seu ver o ponto de partida funda- mental para a construgio do roteiro, base para a realizacdo do filme. A clissica divisio = tema/tratamento (anotagées, desenvolvi- mento das ages, estudo das personagens)/ roteiro— tem sua primeira formulagao expli- a logo nas primeiras paginas do seu livro. Eeeste, em grande parte, consiste numa teo- ria detalhada do roteiro, onde ele defende a idgia de um planejamento da decupagem ¢ de todos os detalhes da filmagem. Tal plane- jamento ¢ fundamental porque o critério ne- cessirio para a construgio de cada detalhe, para a concepgao de cada cena, de cada pla- no, 6 pode vir daquela idéia de origem, pre- viamente existente na consciéncia ~ o tema Assim como o filme, no seu conjunto, & a expressio visualmente claborada de um ponto de vista, cada plano seré a tradugao em detalhe desta perspectiva global que deve contaminar todos os passos da realizacio. O trabalho da cimera sera concebido dentro da formulagio mais pura da metéfora do olhar. Idemtificando camera e 0 olho de um obser- vador privilegiado ¢ ativo, Pudovkin vai en- sinar com detalhe como deve ser feita a decu- pagem de uma cena, satisfazendo a légica e, acima de tudo, expressando uma visio parti- cular dos acontecimentos. Estes, afinal, la sobre esto para que a consciéncia discurse cles. Este discurso da consciéncia estara me nifesto na posiggo da camera, que mostra os fatos decima ou de baixo, de perto oudelonge. €é responsivel por isto. O escritor expressa a sua visio de mundo selecionando ¢ combi- nando palavras num certo estilo; 0 cineasta, realizando as mesmas operagdes com imagens. Eo estilo deste define-se pela maneira como 54 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO cle trabalha o material plastico do cinema, conferindo unidade aos planos separados agindo de modo claro sobre a consciéncia do espectador: emocionalmente, pelo ritmo con- rolado das imagens e pela pulsagio dos pré- prios episédios mostrados; ideologicamente, pela forca conotativa de seus enquadramentos ¢ pelo poder de inferéncia contido na sua montage De modo semelhante a Pudovkin, Bela Balazs pede um cinema sem ambigitidades, lugar de clareza ordem. “Um bom diretor de cinema nao permite que 0 espectador olhe para a cena ao acaso. Ele guia nosso olho ine- xoravelmente, de um detalhe ao outro, a0 longo da linha de sua montagem” (Theory of the film, p.31). Este direcionamento do nos- so olhar seria um dos elementos chaves que afirmam cada filme como expressio viva de uma intengao. E Balazs nao fica aqui na con- sideracdo desta intencionalidade. A scu ver, cla nao apenas aparece como resultado de um. trabalho cocrente de montagem. Ela ja est presente, a priori, como uma condigio ine- rente a qualquer experiéncia do espectador diante de um filme: a platéia tem a conscién- cia de que se trata de um conjunto de planos reunidos para atingir determinado fim; por- tanto ela sempre pressupde € procura um sentido em todos os filmes dados & sua per- cepgio. Mesmo diante de um aglomerado de fenémenos acidentais, a nossa consciéncia tende a procurar um significado. O que 0 trabalho de montagem deve fazer & dar uma direcao definida a esta procura, pois para isto ela tem grande poder de manipulagao. A idéia de “totalidade onginica” ¢ do- minante no pensamento dos dois teéricos, propondo-se a relagao entre 0 todo € as par- tes como uma complexa interdependéncia (concepgao a que Kulechov chegaria na dé- cada de 1930). Balazs expressa tal concep- ao com uma metéfora: “Cada plano toma- do isoladamente est saturado de uma ten- so, de um significado latente que ¢ liberado como uma faisca elétrica quando o plano seguinte é a ele ligado” (idem, p.118). O importante & que esta totalidade organica tem seus niveis especificos de orga- nizagao, definidores de seu modo particular de abordara realidad, a0 mesmo tempo que definidores de sua diferenga diante desta mesma realidade. Em Pudovkin, toda a é fase ¢ dada & irrealidade das imagens (peda- gos de celuldide) ¢ & originalidade do espa- o-tempo definido pela montagem. Ao mes- mo tempo, 0 processo de filmagem nao é visto apenas como uma simples fixagio do acontecimento que se passa em frente a ci mera, mas como forma peculiar de represen taco desse evento. “Entre o evento natural ¢ sua aparéncia na tela existe uma nitida dife- renga. E exatamente esta diferenga que faz do cinema uma arte” (Film technique; p.86). Como observagao marginal, lembro que é exatamente esta formulagao que estd na base de toda a argumentagio de Rudolf Arheim, em seu livro O Filme como arte, publicado em 1933 ~ Atheim concentra-se na anilise das condigoes de percepgio da imagem ci- nematogedfica ¢ na descri¢go das suas carac- teristicas prdprias, que a afastam da imagem n do acontecimento fornecida numa experién- cia direta. Do ponto de vista estético, o elemento fundamental nesta formulacio de Pudovkin DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO 55 é seu papel de base na critica ao naturalismo. Para ele, 0 realismo nao estard na precisio ¢ veracidade dos minimos detalhes da repre. sentacio; a arte seré realista mais pelo signi- ficado produzido do que pela naturalidade de seus meios. Deste modo, no nivel de uma imagem isolada, € perfeitamente legitima a utilizagdo de elementos nao naturais para substituir a apresentacao direta do evento visado pela representagao; as vezes, esta re- presentacio direta nao tem o efeito expressi- vo que uma montagem de elementos arbitra- riamente escolhidos efetivamente possui. ‘Além disso, a reorganizagéo espaco-tempo- tal, a realidade especialmente construida no interior do filme, sio justamente os clemen- tos discursivos que tornam poss{vel a percep- Gao daquilo que nao € imediatamente vistvel na nossa experiéncia direta do mundo. Em textos postcriores ao livro de 1926, Pudovkin vai insistir na diferenga entre na- turalismo ¢ realismo na producao cinemato- grifica: o primeiro seria a procura da repre- sentagio fiel do fato imediato em todos os seus detalhes — a imagem desejando “parecer verdadeira” — ¢ 0 segundo seria a procura de uma fidelidade ao que nao ¢ dado visivel de imediato, ou seja, a propria légica da situa- a0 representada em suas relagdes nao visi- veis com o processo mais global a que ela pertence. O naturalismo estaria tipicamente representado pelo cinema de espericulo no esquema j4 aqui comentado. O realismo implicaria num cinema capaz de apreender relagoes dialé da montagem Para complementar, acrescento que na discussio da vocagio realista do cinema é as, gracas ao processo bisico cacao entre estas duas propostas. Tal confusao ¢ possivel porque 0 uso da nogio de real (ou da nogio de con- creto) esconde a diferenca. Num caso, € con- siderado real e concreto o imediatamente dado, © mundo visivel e palpavel; no outro caso, é real € concreto 0 processo, nio dado 8 percepgao direta, que define a ordem e a inter-relagio entre os fendmenos, sendo rea- lista a representagdo capaz de apreender as es deste processo em suas mani- muito comum a identifi determinags festag es particulares (os fatos sociais). ‘Na formulacio especifica de Pudovkin. tal visto realista nao é privilégio do novo meio mas é prépria a. um metodo de cons- trugio ficcional que tem seu lugar no cine- ma — e sua expressividade especial norada- mente no cinema ~ mas nao somente nele Isto, de certo modo, estava implicado na sua concepgao do tema como uma idéia a ser traduzida visualmente através do conjunto de imagens. A articulagio arte/realidade em Balazs ¢ explorada em diregdes diferentes: novas nuances manifestam-se na sua extre- ‘ensiveis, a seu ver ma atengio aos aspectos definidores, em grande parte, do papel revo- luciondrio da nova técnica. De um lado. representagio no cinema obedece a leis este ticas gerais que se aplicam a arte realista. De outro, a visualidade do processo cartega em si revelagées aptas a influir decisivamente no desenvolvimento histérico da sensibilidade humana. No seu raciocinio, podemos indicar os seguinces passos decisivos: (1) existe uma rea- lidade objetiva independente da nossa cons- ciéncia e de nossas idéias artisticas; (2) arte € formas nao se encontram a priori, como da- mas sao métodos humanos de aproximagao em diregio a cla (3) diferentes métodos podem revelar dife- rentes aspectos ~ 0 cinema vem conquistar novos terrenos na abordagem dos aspectos visiveis desta realidade; (4) 0 que todos os mem comum € 0 fato de serem sempre uma visio humana da realidade, ou seja, uma representacao em perspectiva me- diada por uma subjetividade. Em diltima instincia, Balazs esta nos dizendo que ha um antropomorfismo ine- rente ao ato de representacao, tendente a fi- gurar uma realidade & medida do homem O aspecto rico deste antropomorfismo vem do faco de que esta “medida humana” ngo esti de uma ver por todas definida, havendo desenvolvimento ¢ acumulagio, numa inte- ragio com a realidade objetiva, 0 que trans- forma as formas de representagio. Depen- dendo de condigdes de tempo ¢ lugar, 0 tra- balho artistico, subjetivo, esté inserido em uma determinada cultura, que define certos recursos, certa sensibilidade e certas formas métodos té particulares de representacao. Dentro da interagio dialérica que en- volve os meios (técnicas) disponiveis, os pa- droes de cultura e a sensibilidade humana, 0 cinema representa um ponto de especial in- ceresse, Ele significa a recuperacao da cultu- ra visual, segundo Balazs atrofiada por sécu- los de tradigao lingiiistica e conceitual. No nosso século, seria possivel uma arivagio enriquecedora do olhar humano que, gragas ada ver mais apto a abordar dos seus ao cinema, esta com profundidade 0 real atravé aspectos visiveis, O cinema torna possivel a 56 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO captagao do sentido impresso no gesto, ex presso na face humana ou sugerido pelas li- nhas dominantes de uma paisagem. “O que aparece na face € na expressao facial € uma experiéncia interior que € tornada imediata- mente visivel sem a mediacio de palavras (Theory of the fil, p-40). Usando um termo chave no pensamen- to de Balazs, 0 cinema revela uma nova mensao: a da “fisionomia” ~ conjunto de tra- os que forma uma configuragao espacial € visivel (a de um rosto, por exemplo) capaz de significar algo nao espacial e nao visivel (uma emogio ou intengao, por exemplo). Ele vai acentuar a fungao do primeiro plano, que isola o detalhe, realgando a fisionomia deste € revelando todo 0 complexo proceso que esti por tras e que determina esta fisionomia. No seu elogio a imagem isolada, Balazs aponta numa direcio muito cara aos teéri- cos da vanguarda francesa, mas o seu com- promisso com o modelo realista 0 separa ta- icalmente de teéricos como Jean Epstein (capitulo 6). Num ponto, cle concorda com sionomia, estes tedricos: 0 seu conceito de quando tomado como trago pertencente a qualquer pedaco de realidade visivel, repre- senta o reconhecimento de que o olhar da camera “antropomorfisa” todos os objetos (formulacao tipica de Epstein). Entretanto, antropomorfisar o objeto visado nao signi ca, para Balazs, doar-Ihe uma vida que se define nele ¢ por ele isoladamente (caso de Epstein), mas integré-lo numa cadeia que 0 liga ao destino humano. Colocando-se fran- camente contra 0 que chama de “poesia das coisas”, Balazs dira que o objeto pelo objeto é mero espetdculo, sem sentido. DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO Complerando 0 percurso, reencontra- ta é mos a formulagéo de Pudovkin: ser re estabelecer a relagdo justa entre os fendme- nos. Em Balazs, temos um adendo: ha algo de essencialmente novo na exploragao dos aspectos visiveis da realidade. De um lado, em ambos, 0 realismo nao se define decisiva- mente no nivel da imagem isolada, mas no nivel da estrutura geral do filme. De outro Balazs nos diré, com uma énfase no encon- trada em Pudovkin, que o realismo também deve se definir na representagio visual dos objetos. Sua preocupacao com os poderes de cada imagem ~ cristalizada na nogao de fisio- nomia 0 leva a estender a exigéncia realista A composigio de cada plano. O angulo esco- Ihido para mostrar os objetos, permitida a distorgao inerente a qualquer representagao artistica, deve respeitar aquilo que denomina “estruturae sentido” do objeto. Com isto quer dizer: (1) o objeto deveser reconhecide como tal (ndo perder a sua identidade); (2) a ima- gem deve apresentar uma fisionomia que deriva do objeto, apesar da subjetividade do artista sempre definir uma aproximagao par- ticular que seleciona certos aspectos. Por outro lado, deve haver compatibilidade en- tre cada imagem eas relagdes propostas pelo conjunto. O principio geral que preside esta formulagao esté inscrito dentro do mesmo antropomorfismo que caracteriza a woria eo cinema de Pudovkin, onde mundo fisico, abjero, universo visivel, ganham sentido na medida em que estao inseridos no conjunto de relagées sociais que definem o nivel esser cial da representagio realista Duas extensdes podem ser feitas aqui (1) a qualificagao de antropomérfico sera 57 utilizada por Luchino Visconti para caracte- rizar 0 seu préprio cinema, numa fase, tradu- Gio modelar de um realismo literatio no pla- no cinematogrifico; (2) sera dentro destas mesmas coordenadas que Umberto Barbaro vai situar seu trabalho critico, especialmente apés a irrupgao do cinema neo-tealista, cixo das polémicas em torno da definigio de rea- a do pés-guerra, lismo na Tea D, O REALISMO CRITICO EXPLICITADO Em 1954, Umberto Barbaro dir: “Pu- dovkin é 0 cinema” (L'Unita 2/7/54). Isto expressa 0 grau de identificacio entre sua posigao e a do cineasta russo. Nao surpree! de que seus trabalhos tomem como objero de reflexao os problemas bisicos que chama- ram a atengao de Pudovkin: o roteito, a mon- tagem ¢ 0 trabalho do ator. Nao sé devido a esta aproximagao, mas também em fungao da presenga de Benedeto Croce em sua formacéo, Barbaro contere uma importincia especial 4 unidade como carac- teristica indispensavel & obra de arte. Defi- nindo o cinema como “arte de colaboragio” (produto de um trabalho coletivo}, acompa- nha Pudovkin na colocagéo do problema ¢ na sua solugéo: 0 que fornece unidade a um filme é a presenga de uma tese — cristalizagio de uma visio do mundo — apta a impregnar todos os detalhes da realizagao ¢ comandan- doa montagem, instancia decisiva na execu- 40 da unidade da obra. Novamente, tal formulacao representa a incidéncia, no nivel cinematogrifico, de is vinculados & cons- principios estéticos ger tituigao de uma proposta realista, Basicamen- 58 © DISC te, Barbaro tem como tarefa a abertura de um caminho entre o naturalismo — arte como cépia do real ~ ¢ 0 idealismo subjetivista — arte como expressio da pura interioridade do artista. Balazs havia colocado uma exi- géncia: a tepresentacio, subjetiva e deforma- da, deve respeitar a “estrutura ¢ o sentido do fendmeno em questio, testemunhando um movimento que vai do real & consciéncia que o interpreta. O principio marxista de an- terioridade do real frente & consciéncia € a proposigio de um movimento de determi- nagio que vai da realidade (objetiva) para a consciéncia (subjetiva) — cristalizado na no- cao de reflexo — nao estao explicitos em Balazs. Mas esto, de certo modo, pressupos- tos, uma vez que sio necessarios para a sua idéia de uma representagao subjetiva que, 20 mesmo tempo, “deriva” do objeto. No pensamento de Barbaro vemos, pri- meiro, a explicitagao do que torna possivel tal combinagio entre experiéncia subjetiva respeito & realidade (formulacao do princi- pio acima citado). Em segundo lugar, um discurso sobre a “estrutura e 0 sentido” do real a ser respeitado. No primeiro passo, Bar- baro vai se utilizar do conceito de imagina- ao. Esta é entendida como lugar da supera- Gio, tanto da idéia de representacao mecani- ca, quanto da idéia de intuigao criadora do artista. Descarta a nogio de criatividade no vazio, de intuigao como ato de revelacao idea- lista. E descarta a idéia de que a imaginagao uma forma menor de operagéo mental, condenada a ser lugar das ilusdes humanas. Deste modo, a sua definigao de uma arte rea- lista, apta a se afirmar como uma “forma de conhecimento” (frente a uma realidade exte- SO CINFMATOGRAFICO rior ¢ independente da consciéncia), implica na admissao de que hé um trabalho produt vo por tras da representagio artistica — neste trabalho a imaginagao cumpre um papel fun: damental, Neste sentido, caminha na dire- gao do conceito de “reflexo artistico” defini do por Georg Lukacs, 0 qual justamente sig- nifica a negagio da idéia de reflexo como projesao mecinica da realidade na consci cia (e desta para a arte). E, a0 mesmo tempo, significa a negagao do preconceito segundo livre de determinagies, o qual a imaginagao é operando arbitréria ¢ irracionalmente. Na estética de Umberto Barbaro, ha lugar para categorias como fantasia na base do realismo artistico, de uma fantasia enten- dida, ndo como elaboragio livre do espiito, mas como processo material, sujeito a deter- minagées ¢ contraindo vinculos definidos. Tais dererminag6es sio definidas basicamente pelas condigaes sociais e materiais dentro das quais a subjetividade do artista opera. Em outras palavras, a imaginagao é histérica, guarda corrclagées definidas com 0 proceso biisico que se desenvolve no nivel da realida- de objetiva. Tais vinculos tornam a arte rea- lista possivel sem reduzi-la a uma cépia. Nao sendo automitica € natural, a realizagao des- ta possibilidade € resultado de um processo complexo: de um lado, hé 0 projeto cons. ciente do artista, tendente a buscar um rea- lismo definido dentro dos limites de sua vi sto de mundo; de outro, hi o trabalho efeti- vo de produgao, onde a imaginacio opera trazendo consigo os imperativos de tal co- mando consciente ¢ outras determinagées que escapam a consciéncia do artista (condi Ges impostas pelo meio de representagao, a DO NATURALISMO AQ REALISMO CRITICO, 39 incidéncia da historia). © auténtico realis- mo ocorre quando deste processo emerge um trabalho artistico que constitui uma critica (exame) do real, que, em nossa €poca, tra- duz-se na presenga efetiva de um método particular de representacao. Aqui encontra- mos 0 segundo momento da proposta: a de- finicao explicita do mérodo que possibilita a andlise do real. No primeiro periodo de sua reflexao, 0 método privilegiado por Barbaro encontrava seu modelo pritico no cinema de Pudovkin —um cinema capaz.de caprar a “estructura ¢ 0 sentido” dos fendmenos. Numa segunda fase, seu modelo adquire formulagao tedrica atra- vés da mediagio de Lukacs. Neste particular, falar sobre o seu realismo ¢ falar sobre as pro- postas fundamentais de Guido Aristarco. Assim como Barbaro havia polemizado du- rante duas décadas com seus interlocutores ligados, de um lado, a Luigi Chiarini ¢, de outro, a0 neo-realismo, Aristarco teré tam- bém suas polémicas. Estas serao notadamen- te com os adeptos de Fellini, Antonioni, ou mesmo Visconti (que, segundo Aristarco te tia se afastado do modelo realista a partir de Noites brancas). Nestas polémicas, 0 modelo lukacsiano vai constituir o referencial abso- luto de Aristarco, sempre preocupado cm explicitar suas vinculagdes com o filésofo huingaro. O fato de Aristarco apresentar-se como uma espécie de representante oficial de Lu- kacs no nivel da critica cinemarogréfica, nao impede que encontremos no Umberto Bar- baro dos anos 1950 a adogao do conceito fundamental de “tipo” na definigao do mé- todo realista. Tal nogo constitui um dos cle mentos bésicos que afirma a especificidade do “reflexo artistico” do real em relagao ao “reflexo cientifico” (lugar do conceito). Em 1958, Barbaro escreve: “Espero que nao se diga que é apenas uma referéncia banal a rea- lidade exterior que faz. com que chamemos de legitima a imagem de Pudovkin ¢ ilegiti- ma a de Eisenstein. Uma é um reflexo da realidade © a outra, uma operagao abstrata do pensamento; ¢ é justamente nesta sutil distingéo que reside provavelmente 0 pro- blema mais dificil de uma estética moderna racional: o de estabelecer a especificidade do facto artistico, a distingao entre a arte e as outras formas da atividade intelectual. Da ciéncia, por exemplo, que tem 0 mesmo ob- jeto que a arte, a realidade, mas que tem tam- bém —atengio — 0 mesmo método: a desco- berta, na multiplicidade dos fatos observa- dos, da lei, como se na ciéncia, ou do tipico, como se diz na arte” (Larte del film: strustura e monvagio) Mais adiante, neste capitulo, voltarei a este confronto entre Pudovkin e Eisenstein ¢ discutirei suas implicagdes. Por ora, vejamos como 0 proprio Lukacs refere-se a nogio de “tipo”: “A categoria central ¢ 0 ctitério da literatura realista é 0 tipo, uma sintese espe- cifica que junta organicamente o geral ¢ 0 particular nos personagens e situacdes. O que faz de um tipo um tipo nao € sua qualidade meédia, nem a sua simples existéncia indiv dual, mesmo que profundamente concebi das; 0 que faz dele um tipo é que nele todas as determinantes humanas e sociais essenciais esto presentes no seu mais alto nivel de de- senvolvimento, nos tiltimos desdobramen tos de suas possibilidades latentes, na extre- 60 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ma apresentagao dos extremos, tornando concretas as alturas ¢ as limitagdes dos ho- mens e das épocas”. Atingir determinagGes essenciais, exa- minar as possibilidades latentes ¢ expor os limites dos homens e de uma época, signifi- ca compreender que: “Todo grande periodo histérico € um periodo de transigio, uma contraditéria unidade de crise ¢ renovacio, de destruigao ¢ renascimento; uma nova or- dem social e um novo tipo de homem sur- gem no bojo de um proceso unificado em- bora contraditério™ Q “tipo” pela sua agao e pela sua repre- sentagio do mundo define as “possibilida- des concretas” ¢ a “consciéncia possivel” (u sando uma nogao de Lucien Goldman) pré- prias ao grupo ou a classe social a que ele pertence. E, portanto, revela 0 que hi de es- sencial no processo social que define o mo- vimento do real. Segundo Lukacs, esta d mensio histética fundamental nao € capta- da senao através de um método de narragio — um método de trabalhar com as aparén- ular na sua particularida- cias ¢ com 0 par de, mas capaz de superar a mera descriga0 destas aparéncias do real (caracteristicas da miniicia factual naturalisca que se perde no fragmento). Narrar, na sua acepsio, signifi ca representar os eventos em sua relagao or- ganica com a consciéncia e experiéncia das personagens, estabelecendo o sentido de cada faro dentro do seu percurso e de suas possi- bilidades concretas. O objetivo nao é a des- ctigio pelo amor ao detalhe isolado e & pre cisio, mas a insergao de cada episédio no movimento global que define o real (histéri- co) representado na obra ficcional. A distingao lukacsiana entre o narrar (dinimico) eo descrever (estatico), formula- da num nivel lirerério, vem convergir com as posigdes assumidas por Pudovkin e Balazs, nna sua critica ao culto do detalhe e a0 cinema que se prende & nogao do esperaculo, privile- giando a reproducao competente do fendme- no fisico. (© que ha de comum nos estetas anali- sados ¢ a exigéncia de “toralidade orgdnica” como trago caracteristico da obra de arte ¢, como vimos, a exigéncia de um tipo definido de totalidade, produzido através de um mé- todo construtivo especifico ~ a representa- ao dos eventos em sua dimensao histérica. A concepgio da arte como mimese per- manece fundamental, embora esta mimese se dirija 4 esséncia do real (histérico) ¢ nao a aparéncia (fisica) imediata. Diante das pro- priedades particulates da representacio cine- matogrifica, a posigao assumida seri de de- ntincia das limitagdes do “realismo” da cépia fotogréfica ou fonografica ¢ sua rejeigaio como finalidade da representaco, como garantia de objetividade ou como lugar da definigao do realismo estético. Isto nao impede que esta reprodugao forogrifica e fonogréfica seja vis- ta como um meio de representagao necessé: rio no caminho que leva ao realismo critico. De Pudovkin a Aristarco, em nenhum mo- mento, surge qualquer proposta de destrui 40 ou subversio das aparéncias contidas em cada imagem ou som. Pelo contrario, sua proposta de um cinema realista implica em um respeito por esta imitagao ¢, inclusive, a admissio de regras de montagem cuja final dade é garantir a integridade do chamado mundo diegético (mundo representado na A GRANDE ILUSAO, Jean Renoir O teorarvo, Luchino Viscontti 19 62 © DISCURSO CIN obra). Permanece a idéia de que este mundo diegético deve apresentar-se como um todo continuo em desenvolvimento, equilibrado, consistente em si mesmo, responsével pelos acontecimentos que 0 espectador acompa- nha e motivador dos procedimentos ut dos pelo narrador. Tal como no cinema dito classico, tra~ ta-se de projetar na tela um microcosmo que se propde, na sua totalidade, como réplica em relaczo ao mundo do lado de c4; e, em suas relagées internas, constitui uma rede consistente de fatos que parecem contar-se a si mesmos, produzindo o “feito de anterio- ridade” (os eventos de antemio estariam lA, existindo independencemente da camera que os “captou”). O efcito de anterioridade ¢ 0 efeito de janela (no nivel da construcao espacial) so dois aspectos do mesmo tipo de discurso: a narragao que procura esconder-se a si mes- ma como narragao. A defesa da narracao transparente que abre para um mundo inte- gro em si mesmo € feita por Umberto Bar- iza- baro justamente na discussio que antecede 0 trecho que citei anteriormente. Ele defen- de os procedimentos de Pudovkin porque a metéfora que este utiliza na seqiiéncia final de A maeé construida através da mobilizagio de elementos ja anteriormente presentes no espago da agao representada. A montagem paralela, alternando as imagens da revolta popular (em sua luta contra a repressio cza rista) c as imagens dos movimentos de égua e gelo (levados pela correnteza do rio em ple- no degelo), respeita a integridade do mundo fisico em que revolta, tio e primavera estao inseridos. A personagem principal, inclusi- MATOGRAFICO ve, celebra esta consisténcia, tentando fugir através dos blocos de gelo, cujo poder sim- bélico acentuado pela montagem, na verda- de superpoe-se & sua fungao pritica dentro da acéo em andamento, Em outras palavras, Pudovkin nao intervém ¢ nao acrescenta ele- mentos estranhos a0 mundo que sua narra- a0 desenrola. Tal como seu professor Kule- choy, ele aqui usa objetos ¢ eventos naturais que “derivam” do espago da agio, perten- cendo a este antes de serem promovidos a elementos chaves da metéfora. Em Dura lex (1926) Kulechov confere uma certa tonali- dade a uma cena de conflito entre garimpei- ros reunidos numa cabana isolada ~ 0s pla- nos da luta entre as personagens sio alterna- dos com o primeiro plano de uma lareira, onde se destaca uma panela com Agua em ebuligao. Para tecer o seu comentario, Kule- chov recorre 4 montagem répida, elemento chave do seu discurso cinematogrifico. Mas, sua intervengio permanece imperceptivel, dissolvida no desenvolvimento continuo da aco: o espago desta mantém sua aparente integridade ¢ independéncia. Temos, nestes exemplos, uma obediéncia clara aos princi- pios da decupagem classica. Eisenstein, ao contrério, violando estes ptincipios, intervém deliberadamente no desenvolvimento das agdes e nao se preocu- pa com a “integridade” dos fatos representa- dos, mas com a integridade de um raciocinio feito por meio de imagens — seja na base de metaforas, de elementos simbdlicos ou de di- ferentes conexdes abstratas entre os planos. No seu discurso, freqiientemente interrom- peo fluxo de acontecimentos e faz suas refle- x6es, dirigindo abertamente a leitura do es- DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO 63 SAo BERNARDO, Leon Hirseman peetador. A introducio de elementos nao per- tencentes a0 espago da agao, a intervencao aberta do narrador, a insercio de seqiiéncias intciras de discurso nao-narrativo ea monta- gem dos préprios acontecimentos totalmen te fora das leis de continuidade, sao exem: plos de seu método nao realista d taco. No final de A greve(1925) 0 matadou ro niio pertence ao espago da aga represen, » em que se desenvolve o ma acre dos operrios; a mon tagem 0 introduz porque o narrador quis fazer uma metéfora. Na seqiiéncia da escadaria de Odessa em Potemkin (1926), 0 espaco-tem po criado na representacdo do massacre esta longe de “imirar” qualquer desenvolvimento natural e continuo das agoes. Se Kulechoy nao aceitava 0 que para ele eram as incoeréncias de Eisenstein em seu método de colocar o pensamento em ima gens, se Balazs nao deixa de explicitar suas reservas & montagem eisensteiniana, Barba- ro retoma a velha comparagio com Pudov kin ¢ faz coro com Kulechov, em nome de uma concepcio do narrar como atividade 64 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO mimética dirigida ao desenvolvimento orgi- nico da realidade objeriva. Aristarco nos fornecera uma explicita~ cao destes critérios no seu artigo “Lukacs, 0 Cinema ¢ a dupla mimese” (publicado na re~ vista francesa Cinema 71, em dezembro de 1971) cujo titulo evidencia o movimento do seu raciocinio ~ a mimese dirigida 3 esséncia (do real histérico) passa pela mimese dirigi- dai aparéncia (do mundo fisico supostamen- te captado pela camera). Na pritica, nem sempre os adeptos do realismo critico vao dirigit-se a uma realiza- Gao deste modelo em estado puro ou na visto de Aristarco. Principalmente no cinema pos- terior a 1960, é possivel encontrar propostas tendentes a, de um lado, cumprir alguns dis- positives bésicos do mérodo lukacsiano no que se tefere ao tipo de mundo composte; e, de outro, trabalhar no nivel da decupagem segundo orientagées inspiradas, nfo na de- cupagem clissica, tipica aos autores analisa- dos, mas no exemplo de Eisenstein (para ci- BIBLIOGRAFIA ARISTARCO, Guido. Historia das teorias do cinema, Lisboa, Arcadia, 1961 Il dissolvimento della ragione: discorso sul cinema, Milan, Feltrinelli tore, 1965. “Lukacs, le cinéma et la double mimésis”, Cinéma 71, dez. de 1971. tar um caso que nos ¢ bem conhecido, lem- bremos da tentativa de Leon Hirszman no filme Sao Bernardo). Em geral, tais propostas combinam-se com a tentativa de romper 0 mecanismo de identificagio, estabelecendo-se certos proce- dimentos cujo objetivo ¢ produzir o distan- ciamento critico do espectador. Neste caso, fica evidente também a inspiracao de Brecht, © que nao significa uma garantia de realiza~ do de um cinema que se poderia definir como brechtiano. Tal cinema nao tem ainda claramente equacionadas suas proprias con- dices de possibilidade e, conseqiicntemen- te permanece extremamente discutivel a va- lidade desta qualificagio, mesmo quando aplicada a filmes saturados de procedimen- tos ditos de distanciamento. E no nivel da andlise detalhada de fi mes particulares que teremos condigéo para situar melhor esta questio, assim como aque- la relacionada com a compatibilidade entre diferentes estilos de decupagem e 0 modelo do realismo critico. BALAZS, Bela. (ver bibliografia do capitulo 1) BARBARO, Umberto. Elementos de estética cinematografica, Rio de Janeiro, Civili- zacio Brasileira, 1965. . “Larte del film: aggio”, in Teoria e prassi del cinema in Italia (coletanea). struttura e mon: GOLDMAN, Lucien. Sociologia do roman- ce, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. DO NATURALISMO AO REALISMO CRITICO. 65 KRACAURR, Siegfried. Theory of film - redemption of physical reality Oxford, Univiversity Press, London-New York, 1960. KULECHOV, Lev. Kulechov on film, Berke: ley, Univ. of California Press, 1974. LEYDA, Jay. Kino: A history of the Russian and soviet film, New York, The Mac- Millan Company, 1960. LUKACS, Georg, Studies in european realism, New York, Grosset & Dunlap, 1964. . “Narrar ou descrever?”, ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, zagao Brasileira, 1968. MCBRIDE, Joseph e WILMINGTON, Michael. John Ford, New York, Da Capo Press, 1975. MEYERHOLD, V. Meyerhold on theatre, New York, Hill & Wang, 1969. . O teatro, Rio de Janeiro, zacio Brasileira, 1969. MOUSSINAC, Leon. Naissance du cinéma, Paris, Ed. Povolozky, 1925 PANOFSKY, Erwin. “Style and medium in the moving picture”, em Daniel Talbot (org.) Film, Nova York, Simon and Schuster, 1959. ROCHA, Glauber. Revisido critica do cinema brasileiro, Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 1963 SARRIS, Andrew. The American cinema, New York, E.P. Dutton & Co. Inc., 1968. — “Notes on the auteur theory”, in Film culture reader, coletanea organiza da por P. Adams Sitney, New York, Praeger Pub., 1970. WOOD, Robin. Hitchcock’ films, New York, Castle Books, 1969. Film, a montage of theories, coleti zada por Richard Dyer MacCann, New York, E. P. Dutton & Co. Inc., 1966. Lart du cinéma, antologia organizada por Pierre Lherminier, Seghers. Paris, 1960 (observagao: a mais completa antologia de textos de estética cinematografica) Revistas: Cahiers du cinéma, Paris, especialmente o periodo 1954/1960. Film quartely, publicada na C: LEUA, especialmente os exemplares entre Fall/ 1973 ¢ Fall/1975. IV O REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM A. O EMPIRISMO DE KRACAUER E O HUMA~ NISMO NEO-REALISTA Atingir no cinema uma representagao dos fatos compativel com 0 modelo propos- to pelo realismo critico significa, necessaria- mente, compor um universo ficcional apto a colocar os fatos nartados em perspectiva ¢ capazes de organizar suas relagdes de modo ico: a ima- a que se produza um efeito espe: gem € 0 som nao se combinam com o obje- tivo de mostrar algo mas com o objetivo de ignificar algo; o que implica na apresenta- ao do fato, no como um ato de testemu- ho (eu denuncio que tal situacéo particular existe), mas em nome de uma compreensio do scu significado histérico. O que esta admitido af é que tal signi- ficado existe objetivamente no préprio real, sendo papel do reflexo artistico justamente a explicitagao de tal significado através de ins- crumentos especificos de representagio. Em ‘outras palavras, 0 termo realismo af se justi- fica pela definicao da “boa arte” como cap- tagio do sentido dos fatos endo como doa- do de sentido para um aglomerado abetto ¢ desconexo de fatos em si mesmos vazios de sentido. Os opositores dirio: ral significado nao € palpavel e nao se impde com toda a evidéncia, ¢ assumi-lo significa tomar uma posigao idcolégica. Os defensores responde- ro, neste particular, com toda razio: por trés de qualquer realismo ou anti-realismo (em suma, de qualquer estética) esta sempre uma posicao ideoldgica, € 0 problema essencial no esté no dilema ideologia/nao-ideologia, mas na forma como cada ideologia (c cada estética) particular estabelece seus vinculos e define os interesses com os quais ela assume compromisso. Mais ainda, os defensores do 68 (© DISCURSO CIN realismo critico dirao que o fato de esta sig- nificagéo nao ser palpavel (visivel/audivel) ¢ justamente o fator responsavel pela distin- cia entre o modo como se organiza o mundo ficcional (¢ nossa percepgao dele) e a nossa experiéncia cotidiana, rendente a produzir uma percepcio desintegrada e nao critica dos faros. E esta passagem pelo crivo da critica (exame, andlise) que diferencia a representa ao realista da percepgao imediata c ¢ ela que constitui a riqueza, a validade ¢ o alcance (como forma de conhecimento) do trabalho artistico. O método realista critico se auto- define como lugar da racionalidade e da vi- sio totalizadora da experiéncia humana em oposigao & visio fragmentaria que ele apon- ta como caracteristica a outros métodos. A estética de Kracauer constitui um exemplo tipico de tal “visto fragmentiria”, denominagio que 0 proprio Kracauer pro- vavelmente aceitaria, tendo em vista scu diag- néstico frente a sociedade contemporanea € papel fundamental que ele atribui ao cine ma dentro desta. Partindo de uma posigio radicalmente oposta ao cinema da “visdo do mundo’, vai escrever todo um livro, Theory of film, cujo objetivo sera elaborar a justifi- cagao de um cinema realista supostamente a-ideol6gico; um cinema que chamarei em- pirista — denominagao, reconheso precaria = tal a natureza de suas hipéteses. A razio para a invengio desta denominagao esta em que o cinema de Kracauer nao deve ser con- fundido com um cinema naturalista, seja na acepgao que tenho usado até aqui, seja na acepgio que nos remete ao naturalismo de Zola, uma vez que o dado caracteristico de Kracauer serd a recusa de um principio or- ATOGRAFICO ganizador que imprime um sentido defini- do ao desenvolvimento dos fatos. A primeira de suas hipoteses, de nivel mais geral, é fornecida pela sua visio da so- ciedade ¢ da cultura contemporineas, a seu ver, dominadas pelo que ele chama de “de- sintegracio ideolégica". O declinio da reli- gio e das “ideologias” marcaria a dissolugao das visées sistemiticas da realidade ¢ das ex- plicagdes que apresentam © universo como “totalidade ordenada” (cosmos). Resultaria dai a ctise de valores, a dissolucio da cultu- ra, a telatividade dos costumes e a falta de perspectiva que estaria atingindo a codos os membros da “multidio solitéria’. A queda dos antigos credos é apontada por ele como correlata a expansio da ciéncia, cuja legi midade reconhece ¢ aplaude. A primazia da ciéncia na cultura atual nao é, em Kracaucr, fonte de uma formulagio apocaliptica que proclamaria a decadéncia inexordvel da civi lizagdo ocidental. Ele cré constatar 0 mesmo tipo de realidade que emerge dos textos de certos historiadores apocalipticos (cita com freqiiéncia Spengler), mas suas conclusoes ca- minham em outra diregio; Kracauer, dentro do pensamento burgués para quem o gran- de problema de hoje é a crise de valores e a desorientagdo universal, é um otimista. A ciéncia seré vista por ele como uma fonte positiva de desafios, ¢ nao como instancia demoniaca e corruptora. Estes desafios esta- ro concentrados em torno de duas questées basicas: a da impossibilidade de uma visa integrada do universo — rcafirmada pela tra- jetéria das ciéncias naturais do século xx, marcada por nog6es como indeterminismo ¢ descontinuidade; e da crescente abstragio (© REALIS que o conhecimento cientifico acarreta em sua manipulagio de conceitos, quantificacao € em seus instrumentos mediadores de nossa percepsao da realidade. Para Kracauer, imer- so num oceano de instrumentos sofisticados ¢€ representagées generalizadas, o homem te- ria se desengajado da realidade concreta. E como instancia privilegiada de res- posta a estes desafios que o cinema seré abor- dado. Em principio, sera fungao, nao sé do ema mas da arte em geral, produzir expe- rigncias aptas a fornecer o retorno ao mun- do concreto, a provocar a reativagao da per- cepgao direta ¢ vivida dos eventos. Kracauer cita Whitehead: “Quando entendemos tudo a respeito do sol e da atmosfera ¢ tudo sobre a rotacdo da terra, ainda assim nos faz falea a radiagdo do pér-do-sol. Nao existe substicu- to para a percepgao direta do desenvolvimen- to concreto de um fato em sua presenga efe- tiva. Desejamos 0 fato concreto, com uma intensa luz projetada sobre o que é relevante nna sua preciosidade” ( Theory of film, p.296). E €0 proprio Whitehead que sugere a Kracauer a idéia de uma reeducacao pela apreensio estética. A arte, como lugar privi- legiado desta apreensio estética (sensivel) das coisas, significaria a garantia de que a sensi- bilidade humana nao estaria condenada a morte. Ela ganha assim definigao como com- plemento da explicagao abstrata fornecida pela ciéncia, através da doagio de uma expe- rigncia qualitativamente diferente. No caso especifico do cinema, esta missao fundamen- tal adquire importincia maior em fungao das préoprias caracteristicas deste veiculo. Aqui, entra em cena a admissio da “esséncia realis- ta” do processo cinematografico como téc- MO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 69 nica de reprodugao. Kracauer assume que a fotografia, ¢ por extensao 0 cinema, apresen- tam uma afinidade essencial pelo mundo vi- sivel, sendo capaz de nos revelar a realidade que nos cerca ~ ele vai usar a expressio: “os filmes sao figis 4 natureza do meio (cinema- togeéfico) na medida em que eles penetram o mundo diante de nossos olhos”. Esta idéia da imagem cinematogrifica como revelacio de algo real - é importante notar aqui a dimensio onrolégica assumida: hd aadmissio de que a imagem revela o pré- ser das coisas — constitui um trago co: mum a diferentes formulagGes estéticas. Para situar Kracauer no espectro das ontologias cinematogréficas realistas, & necessério exa- minar 0 tipo de realidade em diregao a qual se dirige a revelagao que ele assume ser pro- priedade fundamental do cinema. O que me permite qualificar seu realis- mo de empirista sao trés aspectos articula- dos, que se destacam em sua formacio: — (1) a revelagao cinematogrifica cor- responde a uma leitura do “livro da nature- za”; a realidade penetrada é, em principio, 0 tecido dos fenémenos fisicos, inclusive nos dominios inacessiveis ao olho natural ¢ sé agora colocados ao alcance da percepga0 humana (mundo microscépio) ~ (2) este nivel, natureza fisica, consti- tui o nivel substancial do mundo que nos cerca; ele nao simbolizaria nenhuma reali dade transcendente, Em relagao ao seu co- nhecimento, os homens estariam agora numa posicao privilegiada, pois a desintegragao das ideologias e a auséncia de preconceitos oriun- dos destas ideologias estariam abrindo espa- ¢0 para um corpo a corpo direto com a na- 70 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO cureza; ou s¢j reveladora porque inocente, uma vez que o homem “fragmentado” — tal como a concep- io clissica do infante ~ € todo disponibili- dade para vivenciar sem os véus idcolégicos aquilo que lhe é dado perceber de seu habitat. Observagao: combinando (1) ¢ (2), emerge um cinema redentor: “O cinema tor- na visivel aquilo que nao viamos — c talver nem mesmo pudéssemos ver — antes do seu advento. Ele efetivamente nos ajuda na des- coberta do mundo material com suas cor- respondéncias psicofisicas, Literalmente, redimimos este mundo da sua inércia, de sua virtual nao existéncia, quando logramos experimenté-lo através da camera. E estamos livres para experimenté-lo porque estamos fragmentados. O cinema pode ser definido como o meio patticularmente equipado para promover a redengao da realidade fisica. Suas imagens nos permitem, pela primeira vez, nos apropriarmos dos objetos ¢ ocorréncias que compreendem 0 fluxo da vida material” (Theory of film. p.300) = (3) a citagao anterior termina com uma expressio ~ “flux da vida material” = co que, de certo modo, ja nos introduz o tema basico de Kracauer no que se refere a dimen- sio humana deste mundo material a ser pesquisado pela camera, Chegamos ao ter- ceiro aspecto: a nogao de experiéncia — basi- cana sua propria concepgao do papel da arte num mundo dominado pela ciéncia — rea- parece como nticleo ¢ limite da verdade hu- na a ser revelada pelo testemunho do ci- € possivel uma experiéncia a nema. Tal como a natureza (da fisica moder- na segundo Kracauer), e em fungio de ra- zoes humanas nao explicitadas, a vida dos homens constitui um proceso indetermina- do, em sua esséncia, lugar do fortuito, da ambigiiidade e abertura. Deste modo, 0 que nos resta como ponto de apoio, do qual de- vemos partir se quisermos entender tm pou- co mais a condicéo humana, € a realidade palpivel do cotidiano. Dentro do fluxo de vida, em seus horizontes indeterminados, 0 apreensivel é a experiéncia do momento sin- gular e do “pequeno fato”, a observacio di- reta das agGes elementares que definem 0 homem em sua relagao com 0 ambiente. Articulando (1), (2) ¢ (3), 0 cinema re- dentor resulta numa comunhio universal da espécie humana em sua vida cotidiana: “Quando colocamos de lado, por um mo- mento, crengas articuladas, objetivos ideo- logicos, missoes especiais, e semelhantes, res- ta-nos ainda as tristezas e alegrias, as discér- dias e festas, desejos e procuras, que marcam a simples tarefa de viver. Produtos do habito ¢ de interagoes microscépicas, eles formam a textura resiliente que se transforma lenta- mente ¢ sobrevive a guerras, epidemias, ter- remotos ¢ revolucées. Os filmes tendem a explorar esta textura da vida cotidiana, cuja composicao varia de acordo com povo, tem- po ¢ lugar. Portanto, eles nos ajudam, nao apenas a apreciar 0 ambiente material que nos é dado, mas a estendé-lo em todas as di- regdes. Eles virtualmente transformam o mundo em nosso lar” (idem, p.304). Kracauer admite diferengas de estilo conforme as distintas culturas, mas no inte- rior de cada sociedade ele promove uma homogeneizagao; nao ha no seu sistema lu- gar para contradiges, sendo cada totalidade social basicamente marcada por uma solida- (© REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM a riedade na contingéncia da vida, partilhada por seus membros, cada um expressando em si uma condigio humana universal. Como resultado, a representagao artistica que abra- 2.0 real deve justamente expressar tais afli- ges ¢ incertezas universais, encarnadas em cada individuo em sua luta didi Nao surpreende que Kracauer seja ca- tegdrico na afirmacao da incompatibilidade radical entre a tragédia (no sentido clissico) € aquilo que ele chama de abordagem cine- matogréfica da realidade. A concepgao de um cosmos ordenado ¢ finito, de uma realidade plena de sentido, que emerge da representa- Gao cldssica nao teria lugar na tela, pois 0 filme constitui um fluxo de acontecimentos aleatérios que envolvem homens ¢ objetos. captando uma modalidade de existénci imersa num universo infinito ¢ contingente. No limite, a proposta de Kracauer implica na extensao de tal incompatibilidade a qual- quer representagio do mundo como totali- dade organizada, o que o afasta tadicalmen- te de uma formulacio como a do realismo critico (determinismo histérico) e como ado. naturalismo de Zola (determinismo biolégi- co). Na sua perspectiva, estas abordagens se- riam ideolégicas ¢, portanto, nao mergulha- das no proprio “ser do real”, condigio so- mente atingivel através de uma dupla frag- mentagio: a do real e a da consciéncia que 0 apreende, capaz de criar a experiéncia trans- Parente que marca a fusao real/consciéncia a-ideolégica. Dentro desta moldura ideoldgica de Kracauer, as regras gerais do bom cinema estarao bastante afinadas com o sistema da montagem invisivel ¢ da representacao na- tural dos fatos que caracteriza a decupagem clissica. No seu esquema, a montagem nao é nada além do que uma “rota de passage’ é preciso dar continuidade ao fluxo de vida projetado na tela. Seus pontos de atrito com Hollywood serio 0 aparato convencional ca manipulagio que caracteriza a producao in- dustrial. Em oposicao a realidade fabricad: ele dara preferéncia a um cinema que cami nha de encontro as afinidades essenciais que constata no processo tecnolégico de base res- ponsével pela existéncia dos filmes: a afin dade com os espagos abertos € no compos- tos, a afinidade com 0 nao encenado, com 0 fortuito, com o sem fim, com o indetermi nado, A situagao que se oferece como para- digma, onde encontramos reunidos tais ele- mentos é a “cena de rua”, com suas surpre- sas ¢ seu mosaico de acontecimentos. A ja- nela do cinema teria em Kracauer um dos seus momentos de gléria, Aqui, em 1960, ele marca encontro com uma tradigio que nos remete a um dos primeiros grandes cri- ticos de cinema (do period 1917-1924): 0 cineasta francés Louis Delluc. Dos elogios de Delluc as revelagées pro- fandas do instantineo fotogrifico ¢ de sua defesa da “poesia das ruas”, cuja riqueza ¢ espessura humana clama pela representacio cinematogrifica, tal tradigao passa por vi- ios autores ¢ tendéncias. Mas, sem duivida um dos seus momentos de maxima cristali- zacio no nivel da pritica ¢ do neo-realismo italiano. A aproximagao Kracauer — neo-realis- mo é possivel. Ao fazé-la, nao estou endos- sando a sua interpretacao do movimento ita- iano, nem estou considerando que, na sua 72 72 toralidade, o projero possa ser visto como op manifestagao da estética sistematizada em 1960 pelo tedrico alemao. Insisto, apenas, que, no aspecto aqui analisado, a convergén- cia € nitida ¢ se expressa reiteradamente nos clogios de Kracauer a Humberto De Paisi, ¢ na sua utilizagao do neo-realismo como um dos modelos do bom cinema em oposigao a propostas nao realistas de vanguarda ¢ a cer- tipicos a Holly- iragao de Zavattini tos géneros convencion: wood. Por outro lado, a nao deixa duividas quanto a esta convergén- cia: “Um retorno ao homem, & criatura que em si mesma é ‘todo espetdculo’: isto deveria liberar-nos. Colocar a cémera nas ruas, em uma sala, olhar com insacivel paciéncia, trei- nar na contemplagio de nosso semelhante em suas ages elementares”, (Zavattini, Se- quences fiom a Cinematic Life, p.2). O humanismo de Zavattini, de Si Rossellini, com sua ética da solidariedade e com scu corpo a corpo com o pés-guerra ita- liano, evidentemente apresenta projetos € implicagdes que ultrapassam a perspectiva de Kracauer. A palavra de ordem de caprar “a duragio real da dor do homem ¢ de sua pre- senga didria, nao como homem metafisico, mas como o homem que encontramos na esquina, ¢ para o qual esta duragio real deve ae URSO CINEMATOGRAFICO corresponder a um esforgo real de nossa so- lidariedade” (Zavattini) e a expressdo rossel- liniana a “Aquilo que me interessa no mun- do é 0 homem ¢ esta aventura dinica, para cada um, da vida” - marcam uma concen- tracdo de interesse no real humano e social Considerando 0 momento em que se produziu, tal humanismo ¢ sua “fome de rea- lidade” (Zavattini) sio fundamentais no pro- cesso de critica 2 falsificagio ¢ a0 mundo dourado da produgio industrial dominance, Se © neo-realismo converge com Kracauer nna defesa da representacao dos pequenos fa- tos e na realizagao de um cinema de rua opos- to ao esttidio, de um modo que nao se expli- cita nos textos do alemao, hd no movimento italiano uma intengao critica € um projeto de cinema nitidamente antiburgués, dirigi doa demincia. Zavattini acentua a oposicéo fundamental: é preciso observar a realidade (cinema neo-realista que da a cada minuto da vida uma importancia histérica) ao invés de extrair ficgdes dela (cinema burgués que enxerta est6rias no real para fazé-lo excitante € espetacular). Enquanto Kracauer nos diz “o cinema ou a redengio da realidade fisi- ca”, Zavattini ou Rossellini nos diriam “o cinema ou a redengio da realidade huma- na’, Precisemos um pouco mais o significa- do ea estratégia desta redengio. * Esta distingdo enfitica frente a Zavattini ¢ o préprio adjetivo — empirista ~ que usei para qualificar Kracauer insinuam uma tendéncia positivista no teérico alemZo, uma postura comprometida com um pensamento burgués da ordem instituida, calcado no prestigio das ciéncias da natureza ¢ sua no\ de verdade, feliz com o progresso técnico tal como este se di. Estas conotagdes estavam no horizonte de minha ‘lise em fungio de Kracauer insistir demais n “verdade contida na reprodusio técnica do visivel e em io de sua premissa social bisica: 0 mundo contemporineo é 0 momento do “fim das ideologias” (© REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 73 que estd implicito na critica ao arti- ficio ¢ a fantasia, neste debrucar-se sobre a realidade, é a idéia da produgao de um dis- curso que se apresenta como “filtragem” do real (uso aqui uma expressao de André Ba- zin). Para Zavattini, a imaginagio é lugar da superposigao de formulas mortas a fatos so- ciais vivos, de negagao daquilo que a prépria realidade jé tem de espetacular e maravilho- so: o homem comum nas suas ages normais, a qualquer hora, a qualquer dia. A proposta de que, no cinema, é preciso confiar mais na vida mesma do que na imaginacao da vida, articula-se, cm Zavattini, com a proposico de uma radical “redugdo do espago que se- ca a polémica com Umberto Barbaro (lem- brar a sua defesa da imaginagio), apesar de tudo 0 que os aproximava, € nos indica a distincia desta formulagao frente a nogao de reflexo artistico de Lukacs. Nao se trata de analisar o real (no sentido de decompor e recompé-lo); nao se trata de estabelecer hie- rarquias ¢ operar reconstrugées na imagina- cao, visando uma representagao sintética que seleciona e promove aarticulagdo de seus ele- maentos essenciais em suas relagdes essenciais, ~ tal como no modelo realista critico. No modelo de Zavattini, tudo é essencial; e, nao somente posso me deter na observacio de qualquer fragmento, como devo detalhar 0 maximo possivel tal mergulho no fragmen- para a coisa da sua descrigao”. Tal mergulho to. E o préprio Zavattini que se compara nna transparéncia (discurso = real) nos expli Interessado em marcar 0 cinema como campo de incidéncia de conflitos sociais ¢, portanto, de lutas ideol6gicas, tomei o diagndstico de Kracauer como algo comprometido com a estratégia conservadora de resposta ao pensamento critico que desmistifica a pretensio de universalidade e objetividade da ideologia dominante (que fala em nome da técnica ¢ do progresso). Posso hoje, considerando a formagio do teérico alemao ¢ a leitura de outros textos, perceber que seu universo esta longe da felicidade positivisea, que seu “fim das ideologias” tem mais a ver com sua sensibilidade & crise da cultura contemporaine: desconfianga diante de sistemas tedricos fechados (ou sistemas de crengas), com suas caracteristicas pessoais que levaram o seu amigo Theodor Adorno, ao enuncié-las, apresentar Kracauer como 0 “estranho realista’ Tal percepgao nova, contudo, nao significa uma reconciliagao com Theory of film, dado que, em termos da questio especifica que orienta minha andlise, sua aceitagio enfatica da “verdade” inerente & técnica 0 enreda no “ilusionismo” num momento em que a discussao teérica ja atingira maior complexidade, seja na teflexao sobre a “impressio de realidade” feita pelos fenomendlogos franceses, seja na critica ao nacu- ralismo feita por diferentes cineastas, notadamente Eisenstein. A concepsao que Kracauet tem da forogra- fia estabelece uma camisa de forsa a envolver 0 seu olhar dirigido aos filmes € nao vemos aqui o critico da cultura mais licido ¢ aberto. Para surpresa de alguns, Theory of film resulta, mais do que tudo, num esforgo de exposigao sistemética, sectéria até de uma ideologia cujo principio é irtedutivel: a técnica do cinema é a “tedengao da realidade fisica”. Ao contrério de Bazin, cujo realismo nunca se cristalizou numa teoria sistematica, Kracauet acaba por montar um esquema inflexivel e seu livro traz. uma tébua de julgamento rigida, um endurecimento tedrico que empobrece sua reflexao. Theory of fim foi escrito no exilio ameri- cano, em inglés: tetia razi0 Adorno ao lembrar o estreitamento provocado pela lingua estrangeira? 74 0 DISCURSO CINEMATOGRAFICO um pintor que, diante de um campo, se per- gunta: afinal por qual folha de grama devo comegar? A estratégia neo-realista, tendo como ponto de partida o fato banal, estabelece que a significagao essencial deste pequeno fato ser captada pela observagio exaustiva, pelo olhar paciente ¢ insistente. E preciso confiar nna realidade; diante de cada cena, permane- cer nela, porque ela pode conter muitos “ecos ¢ reverberagées”, pode conter inclusive tudo aquilo de que nds necessitamos. Em cada “pedago” de realidade estéo contidos todos 0s ingredientes capazes de nos revelar o que podemos saber sobre o real na sua totalida- de. Ou seja, cada fragmento representa 0 todo; o expressa. E uma verdade essencial so- bre o homem ou a sociedade pode ser alcan- gada desde que eu saiba perccber o detalhe, o instante, de modo peculiar. A expressio “filtragem do real” corres ponde a tal operagio paciente da consciéncia que se “deixa atravessar” exaustivamente pe- los dados que compéem uma situagao singu- lar, de modo a que um pedaco integral de realidade nela se deposite, tal como a ima- gem forogrifica ¢ resultado de um “depdsi- to” do mundo visivel na pelicula. Bazin é bem explicito nesta metéfora: ele insiste em que a fotografia mantém a integridade do real recortado; ela néo decompée tal recorte nem o reconstrdi, ela o capta em bloco. O olhar neo-tealista setia a realizado deste modelo baziniano no nivel da captagao da sséncia da realidade. Zavattini nos fala em “deixar as coisas como elas s40, quase que por si mesmas, criar ignificado especial” (“Some © seu préprio s ideas on the cinema’, p.219 do livro A mon- tage of theories, coletanea de Richard Mac- Cann). Ou seja, testemunhar; nao construir, do imaginar. Tal orientagao se traduz clara- mente no sonho zavattiniano de realizagéo de um filme constituido de um tinico plano: acimera acompanhando continuamente um homem em sua caminhada sem que nada de fetivamente especial acontecesse (aqui, é cla- 1a a oposicao polémica ao gosto pela intriga ¢ pela abundancia de acontecimentos carac- teristica ao cinema de Hollywood). De qual- quer modo, é fundamental o fato de que, para Zavattini, tal testemunho seria essen- cialmente realista, sem montagem, dado que a admisso de uma superficie expressiva que revela a profundidade do real em cada frag- mento, ¢ a idéia de escavacao (descer cada ‘vez mais ao detalhe), sustentariam tal obser- vac4o paciente como apta a promover tal re- velagao de esséncia. Bazin, por xemplo, fala da observacio paciente, propria 20 estilo de Umberto D, como uma experiencia essencial para que possamos entender 0 que significa ser Homem. De acordo com 0 modelo da filtragem, vemos portanto que 0 observador expde-se exaustivamente & incidéncia do fluxo de rea- lidade diante de si, de tal modo que sua cons- ciéncia fica “embebida” de tal realidade numa forma depurada. Com o poder revelatério conferido a cada situagao singular, em parti- culara cada imagem-depésito, o uso da mon- tagem torna-se nao essencial ¢ até perturba- dor. Em 1959, Rossellini dira: “A montagem_ nao € mais essencial. As coisas esto af, ¢ so- bretudo neste filme (India). Por que mani- puld-las?” (Cahiers du cinéma, abril 1959). © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 75 Em seguida, retoma a idéia de que o trabalho do cineasta € acompanhar a personagem e mostrar o essencial. A montagem é apenas 0 lugar do corte na pratica necessétio, que vem depois das coisas terem esgotado sua carga de significagio (ou seja, depositado o essencial na imagem captada pela cimera). Actitica a decupagem classica far-se pelo aspecto manipulador e pela sua articu- lagao com a criagao de um mundo imagina- rio que alicna o espectador de sua realidade. Se a decupagem clissica constitui uma base eficiente para um trabalho de construgio do falso que “parece real”, 0 neo-realismo pro- poe-se a substituir tal artificio pelo trabalho de obtencao da imagem que, além de pare- cer, procura “ser real”. Ha uma ética da “con- fianga na realidade”, a da sinceridade, que implica na minimizagao do sujeito do dis- curso, de modo a deixar 0 mundo visivel cap- tado transparecer 0 seu significado. Bazin diré: “nao intervir € deixar que a realidade confesse o scu sentido”. Comparando, pode-se dizer que, en- quanto a critica do realismo critico a mon- tagem do cinema classico visava a natureza das relagdes af representadas, a critica de Rossellini visa 0 caréter manipulatério dessa montagem. De uma postura realista bascada no princ{pio de que a montagem é 0 elemen- to essencial, lugar das relagdes indispensé- veis para conferir sentido a cada imagem (apaténcia), passamos a uma proposta rea- lista na qual a montagem € 0 lugar da inter- vengdo que pode destruir a revelagao do es- sencial (aquilo que emana de cada imagem). No tealismo revelat6rio, se algo fica para se definir, tal indefinigéo é considerada expressio fiel da propria abertura da realida- de, Neste sentido, Zavactini, que explica a inconclusividade de alguns dos seus roteiros bascado na procura de uma fidelidade radi- cal & ambigitidade do real, reencontra Kra- caer. Ou melhor, antecipa Kracauer. E nao s6 ele ‘A mesma fé na transparéncia congéni- ta da imagem cinematogrifica, articulada idéia de que é preciso abracar a realidade do momento sem “totalizagées ideolégicas” sera recomada de modo crescente & medida que avangamos na década de 1950. Trabalhando a partir desta suposta transparéncia (imagem = real), que é também uma das chaves do projeto ilusionista de Hollywood, algumas tendéncias do chamado cinema moderno reclaboram a heranca neo-realista. E 0 triné- mio cinema de rua/ mise-en-scéne impro da/representacio da existéncia cotidiana nao ideolégica, o aqui e agora entendido literal- mente, constituem base também de um cer- to realismo “existencial” que muitos criticos vio celebrar como grande modelo do cine- ma dos anos 1960. A idéia de que na tela se projeta uma “fatia de vida" ou a verdade do momento, a nogio de encontro (as personagens como fi- guras da dialética do eu ¢ do outro) ¢ a pri- mazia da comunicagao (como tema) ¢ da ambigiiidade (como hipétese ¢ método) transformam-se nos elementos-chave do vo- cabulirio da critica e de alguns cineastas. © que me interessa aqui € discutir 0 modo pelo qual esta tendéncia, em casos es- pecificos, vinculou-se explicitamente 4 hipo- tese de que o cinema ¢ lugar privilegiado para a expressio de verdades elementares, uma vez assumida a sinceridade inerente a “lingua gem das imagens”. Um exemplo tipico desta postura nos é fornecido por uma critica pu blicada nos Cahiers du cinéma no inicio da década de 1960. Jean-Luc Godard termina- ra seu primeiro longa-metragem, O acossado (A bout de souffle), a propésito das discus- sées provocadas pelo seu langamento, Lue Moullet faz a defesa de Godard no numero 106 (abril de 1960) da revista, na época ér- a amente oficial da Nowvelle Vague. (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ALEMANHA ANO ZERO, Roberto Rossellini consideradas as ca- £ significative ques racteristicas nitidamente reflexivas (0 filme € um discurso que explicitamente se apre: senta como tal e repensa a narragio cinema- togréfica) deste trabalho fundamental para sua época, Lue Moullet tenha escolhido uma linha de argumentagio orientada para a de- fesa do seu realismo. Moullet nao enfatiza certos procedimentos de Godard naquilo que tém de incrivelmente artificial (a montagem totalmente descontinua, por exemplo) ou de (© REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 7 parddia (ditigida ao cinema industrial de género — no caso, o policial). Ele vai concen- trar seus esforgos na demonstracio de que 0 estilo de Godard, basicamente um estilo que subverte as leis de equilibrio ¢ as regras da decupagem clissica, ¢ elogiavel porque rea- lista. Eo trinémio a que me referi acima é invocado para sustentar a crenga de que O acossado projeta verdades na tela. E verdades sobre o homem moderno, sobre nossa épo- ca, sobre a “desordem” do mundo, a ambi giiidade da vida etc... O referencial de Moullet é bastante claro: “Outra superior dade de Godard é que cle investe contra coi- sas concretas, enquanto que a lembranga, 0 esquecimento, a meméria, 0 tempo, so coi- sas que no so concretas, que nao existem que, assim como 0 didatismo cristio ou 0 comunismo, nao sao suficientemente sérias para serem tratadas por esta linguagem pro- funda que € 0 cinema” (p.36). De um lado, ha por tris desta afirma- sao aquela idéia que vem desde Delluc, pas- sando pela chamada “ascese neo-realista”: a idéia de uma realidade que ascende das ca- madas mais profundas ¢ se revela pela proje- io da imagem. De outro, a admissio expli cita de que a condigao para tal “ascese da verdade” é a pritica de um estilo que aban- dona as visdes sistematicas cujos “dogmas” sio basicamente fonte de nossa cegueira. Aqui Moullet também encontra Kracauer: a desintegracao do discurso eo olhar fragmen- tado constituem o lugar de reconeiliagao com © real. Na mesma linha, 0 Godard dos pri- meiros tempos dird: “A fotografia ¢ a verda- de e 0 cinema ¢ a verdade 24 vezes por se- gundo”, E, em 1967, dentro de um projeto de refinagao tebrica e académica, Christian Metz. vai ver a nogao de verdade infiltrar-se no seu discurso sobre o cinema moderno, ao apontar a sua posico subversiva frente as convengées do cinema clissico. Tal “ideologia da imagem nao-ideols- gica” inverte uma antiga oposigao: de um esquema em que a imagem ¢ tomada como lugar da ilusdo e 0 pensamento articulado em palavras como lugar do discurso racio- nal e dos conceitos verdadeiros, passa-se a um esquema em que a imagem torna-se lu- gar da revelagao verdadeira ¢ a linguagem articulada torna-se obsticulo, convengio, ideologia. O que esta ai implicado ¢ a idéia de uma afinidade, numa ou noutra direcao, entre determinado meio de representacao ¢ determinada modalidade de relagio com 0 mundo de que se fala (ou que se visa através da imagem) Esta suposta afinidade teve s mentos de gloria no periodo do mudo, momento maximo de exaltacio da sinceridade do cinema ¢ de elaboragao das profecias quanto a seus prodigiosos poderes, em geral acentuados em oposigio a “menti- ra teatral” ¢ as “insuficiéncias literdrias”. No meio cinematogréfico permanece até hoje difusa a teoria de que a cimera nao mente. Passando por cima de diferentes moti- vag6es, acentuci uma convergéncia de posi Ges entre Kracauer, neo-fealismo ¢ 0 que chamei a grosso modo de realismo existen- cial. Esta convergéncia delincou-se frente & questao basica que me ocupa — a da vocagao realista da imagem cinematogrifica —e, par- ticularmente, definiu-se pela exigencia co- mum de uma fidelidade necessdria a esta 78 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO vocagio (a ser concretizada no nivel da orga- niizacdo geral do filme). Mais ainda, mostrou- se também comum 0 modelo proposto como realizador da vocacio realista, marcado pela mprovisagio, pelo mergulho na micro-rea- lidade do cotidiano e pela abertura de hori- zontes, considerada um antidoto necessério contra dogmatismos ideolégicos ¢ visoes totalizadoras. O que até aqui ndo ficou ex- plicito é o fato de que esta convergéncia re- cobre a defesa de diferentes estilos e de dife- rentes universos ficcionais. £ dificil, por exemplo, reunir neo-realismo, Antonioni, 0 primeiro Godard ¢ o Fellini dos anos 1950 numa mesma categoria. O que evidencia que ha algo mais nos filmes, nao claborado pelo discurso critico citado até aqui. Um filme neo-tealista pode conter uma interpretago ctistd da realidade supostamente revelada, ¢ outro uma inspiragdo marxista (lembremos La terra trema de Visconti), 0 que cria uma sétie de problemas para a interpretagao de Kracauer, por exemplo. Sua admissio do ca- réter nao ideolégico de determinados filmes é no minimo, altamente discutivel. Do mes- mo modo, seria precipitagio de minha parte considerar que todos os filmes produzidos na Itélia sob a etiqueta nco-realista estariam encaixados no modelo estético extraido da proposta de Zavattini e Rossellini. La terra zrema, por exemplo, estaria mais afinada com 0 modelo do realismo critic. O mesmo, evidentemente, é valido para as caracteristicas gerais do cinema dos anos 1960, onde a observacio de tracos generali- zados € sempre insuficiente para definir o estilo manifesto em cada filme ou a orienta- do especifica de cada cineasta. A insergao de filmes numa mesma categoria pode ser enganosa, mesmo quando da sua pertinén- cia. um movimento determinado promovi- do por certo grupo em condigées determi- nadas. Nouvelle Vague pode set muita coisa, do ponto de vista de estilo e projeto ideolé- gico, seja representada em Godard, Truffaut, Resnais ou Chabrol. [gualmente, mesmo que seja, para determinados fins vilido e poss vel tragar tendéncias gerais e apontar idéias comuns na génese dos filmes do Cinema Novo, 4 medida que se caminha na anélise de cada um, vio se acentuando as diferengas ¢ francas oposigdes quanto ao modo de pro- por a realizagio de tal projeto. Dentro do eixo realismo/ndo-realismo, ¢ mais particu- larmente no que se refere aos critérios da decupagem/montagem, sempre foi fato no- tado a distancia entre Deus e 0 diabo na terra do sole Vidas secas, ou entre O desafio e A hora e a vez de Augusto Matraga. ‘Apontar uma oposigio cinema moder- no/cinema cldssico, e observar a negagao da decupagem clissica contida em Antonioni, Godard, Glauber Rocha ou Straub certamen- te dizer algo, mas certamente é dizer muito pouco. Eo referencial marcado pela polari- dade naturalismo/realismo critico/neo-realis- mo é, sem sombra de duivida, insuficiente para dar conta das transformagdes que se cria- ram na década de 1960. Para ultrapassar este plano de consideragées genéricas, ao lado da necessidade evidente de acrescentar novos elementos vindos de outros universos estéti- leoldgicos, ¢ preciso caminhar um pou- co mais no terreno do “realismo revelatério”, talvez porque o essencial esteja ainda por ser explicado. co-i © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM te Estabelecido o sistema de procedimen- tos que caracteriza a decupagem clissica tabelecidas igualmente as relagées entre de- terminadas propostas estéticas ¢ este cinema, em particular a postura nitidamente critica do neo-realismo frente a ele, cabe agora a abordagem do discurso tedrico que, ao mes- ‘mo tempo, constitui a tradi¢Zo que opée ci- nema cléssico/cinema moderno ¢ elaborou um referencial bem definido para sustentar a existéncia de tal oposicao. Tal discurso nos es- vem justamente daquele que foi o mais sutil intérprete do neo-realismo: André Bazin. Figura-eixo, a influéncia de Bazin na critica cinematogréfica esté institucional- mente expressa na sua posi¢do de co-funda- dor e cérebro fundamental dos Cahiers du cinéma, surgidos em 1951. No que ela tem de contribuigio teérica essencial, sua presen- ga é imperativa porque no significa apenas a proposi¢ao de uma estética particular, mas a elaboragéo de certas categorias de andlise, de um modo ou de outro incorporadas ao discurso critico dos ultimos vinte anos — 0 meu préprio uso das expressdes “decupagem. clissica” e “montagem invisivel” testemu- nham esta presenga. B, O MODELO DE ANDRE BAZIN Esquematicamente, vejamos as linhas dominantes do pensamento de Bazin no que se refere 3 pritica cinematogréfica: a. Rompendo com os teéricos da van- guarda, ele olha a trajet6ria do cinema, nao como desenvolvimento rumo ao cinema puro absolutamente plistico e nao narrati- vo, mas como uma progressio rumo a um isa, estilo narrative cada vex mais r b. Novamente contrariando a tradiggo francesa herdada dos teéricos de 1920, ele defende a inclusao do som no universo cine- matogrifico, bem vindo em fungio da sua contribuigao decisiva para a ampliacao de cal realismo. c. Nesta linha, propde uma afinidade essencial entre a narragao cinematografica e determinadas caracteristicas basicas de um estilo romanesco “objetivo” ¢ “de reporta- gem” prdprio a escritores americanos do sé- culo xx (John dos Passos, Hemingway). d. Fazendo a critica radical dos ce6ri- cos russos, vai minimizar o papel da monta- gem na realizacao cinematogrifica: a signifi- cacao instituida pela combinagéo de imagens deixa de ser 0 nticleo fundamental da arte cinematogrifica. e. Sua teoria do cinema sera a procla- magio do reinado da continuidade, tomada em seu sentido mais absoluto: néo apenas no nivel légico (consisténcia no desenvolvi- mento das ages), mas também no nivel da percepgio visual (desenvolvimento continuo da imagem sem cortes). £ Como resultado, dentro dos limites do cinema narrativo, vai travar um constan- te combate também contra a decupagem clis- sica, chamando a atengéo para os filmes de sua época que, a seu ver, indicavam a supe- taco de tal método ¢ abriam um novo hori- zonte no desenvolvimento da representacao realista. Com Bazin, chega o momento de in- troduzir novos elementos no nosso vocabu- 80 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO litio técnico. Observando o estilo narrative de Jean Renoir e de Orson Wells, aponta uma utilizagdo menos acidental ¢ mais sistemati- ca da “profundidade de campo” e do que ele denominou plano-seqiiéncia. A nogao de profundidade de campo vem da fotografia. Quando o fotégrafo, além de apontar a ca- mera numa certa direcao — 0 que me fornece um determinado campo de visto (operagao de enquadramento), devo regular a maqui- na de modo a obter uma imagem nitida do objeto que me interessa. [sso corresponde & focalizaco, ou colocagao do objero “em foco”. Tudo 0 que aparece sem contornos definidos na fotografia obtida é dito “fora de foco”. A distincia entre a camera ¢ 0 ob- jcto de meu interesse € 0 faror basico que comanda a regulagem. Acontece que, quan- do coloco em foco um objeto localizado a uma certa distancia, outros objetos poderio estar presentes no campo de visio da camera ¢ localizados a distancias diferentes. O grau de nitidez com que estes outros objetos vio aparecer depende de uma sétie de fatores. Num caso extremo, sé estard em foco 0 ob- jeto de meu interesse ¢ aquilo que estiver & mesma distancia que ele em relagao & cime- ra, Os outros objetos estaréo fora de foco (sem nitidez). Neste caso, digo que a pro- fundidade de campo & nula. No outro caso extremo, nao somente o objeto de meu inte- resse, mas todos os outros elementos locali- zados a diferentes distancias estarao em foco. Aqui, digo que tenho foco infinito (a pro- fundidade de campo € maxima); qualquer que seja a posicao do objeto, perto ou longe da camera, ele aparece nitido na foto. Entre os dois extremos, tenho os casos intermedia- rios, onde a extensao do espago correspon- dente aos objetos em foco, ou seja, a profun- didade de campo, varia — posso ter em foco objetos localizados de 5 a 10 metros em rela- a0 A camera, ou 2 a 3 metros etc. Este fendmeno da profundidade de campo tem a sua importincia dramatic. ‘Tanto em fotografia quanto no cinema ele sera responsivel por determinados efeitos. A io nitidez/nao nitidez, que marca uma posi série de objetos co-presentes numa imagem, traz sua carga semantica. Se todos esto em foco tenho uma imagem diferente da que eu teria se apenas um ou alguns estivessem. Na narragio cinematogrdfica, a manipulagao da profundidade de campo ¢ extremamente fun- cional (seleciona ¢ informa, conota, segrega, retine, ajuda a organizar o espaco). E ela tem conseqiiéncias no nivel da decupagem. Ao mostrar um fato, muitas vezes sou obrigado a usar dois planos e fazer uso da montagem justamente porque é impossivel mostrar ni- tidamente os dois elementos de interesse num mesmo plano e simultancamente. De modo geral, quanto maior a profundidade de cam- po, maior € a possibilidade de concentrar informagées num tinico plano. Bazin vai apontar, primeiro, a evolu- 40 técnica dos aparelhos e da pelicula sensi- vel, gracas aos quais a filmagem tornou-se mais ficil e, gragas aos quais tornou-se pos- sivel o recurso a profundidade de campo. Ele vai dizer que temos ai um exemplo de como a técnica tem seus reflexos nitidos no nivel da linguagem. Em segundo lugar, ele vai apontar a preferéncia do cinema moderno pelo uso de movimento de camera e pela ex- ploragio da profundidade de campo, de © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 81 modo a substituir os freqiientes cortes do cinema clissico pelo fluxo continuo da ima- gem, Ele procura citar situagées onde a mul- tiplicidade de planos ¢ a montagem do mé- todo clissico estariam sendo substituidos pelo uso de um tinico e longo plano. Ser este longo plano aquilo que receberd a deno- minagao de plano-seqiiéncia. Nome inspi- rado no fato de que, dentro da segmentagio seqiiéncia/cena/plano, o alongamento deste Uiktimo estaria produzindo modificacées qua- litativas na organizagio do filme, de modo a que um tinico plano passe a cumprit a fun- 0 dramatica da seqiiéncia do esquema clis- sico. A adogo de Orson Welles como um dos exemplos em sua demonstragao, ao lado de Renoir, do neo-tealismo e de Willian Wyler, é sem diivida um dos fatos responsé- veis pela celebridade de Cidadao Kane. Por- que Bazin nao esté interessado apenas em constatar uma mudanga de estilo; seu dis- curso € um franco elogio a esta mudanga. Tomando estes autores ou 0 movimento ita- liano como ponto de partida, procura obter as provas de que ha uma linha de progresso do cinema que passa pelo novo estilo, consi- derado de importincia vital para o entendi- mento do proprio passado cinematogrifico — posto dentro de nova perspectiva - e para uma previséo do futuro. O cinema de mon- tagem, 0 “efeito Kulechov”, as metéforas ¢ seriam maravilhas; discursos de Eisenstei mas, maravilhas do passado, da infincia do cinema, no momento em que nao tinha som ¢ nao tinha ainda atingido o realismo mais maduro do cinema moderno. A decupagem cléssica seria um processo analitico artificial, de decomposigao da realidade em fragmen t0s irreais ¢ reconstituigao dos pedagos que montam um todo expressivo, mas abscrato, consistente logicamente (como um discur- so) mas sem o peso de realidade adquirido pela adogao do plano-seqiiéncia. No novo cinema, no verdadeiro cinema realista, a montagem continua a existir, mas apenas como um residuo: seu papel é€ puramente negativo, de eliminagao inevitivel numa rea- lidade abundante demais. Ou seja, a monta- gem néo institui nenhuma significagao, ne- nhuma relacéo essencial. O plano-seqiiéncia, as relagdes contidas simultaneamente numa mesma imagem, os movimentos de camera ea exploragao de um espago que se abre con- tinuamente revelam o essencial. No limite, como realizagao maxima da “janela cinema- togréfica”, o modelo baziniano eo filme-ideal de Zayattini tm encontro marcado. Neste ponto, cabem as perguntas sobre os fundamentos do realismo de Bazin ¢ s para propor 0 bre quais seriam suas razo novo credo cinematogrifico. Numa formulagio suméria, pode-se dizer que quando Rosellini, em 1959, excla: mou “as coisas estio ai, porque manipula- las?”, expressou num s6 golpe aquilo que Bazin, desde 1945, havia reiterado a cada passo de sua trajetéria. Talvez seja dificil en- contrar alguém que tenha tomado a idéia de reprodugao num sentido tao literal. Hii, em Bazin, um respeito peculiar pelos fatos e pe- las coisas, por tudo 0 que existe em sua indi- vidualidade. Um respeito que comanda sua preferéncia pelo estilo narrativo que elegeu e, de certo modo, explica a sua prépria dedi- cagio ao cinema como meio de representa- ait Vipas Srcas, Nelson Pereira dos Santos cao. Este € respeitavel porque nele temos a presenca das préprias coisas. Dentro da formulagao expressa por Maya Deren (inicio do capitulo 1) assumi- da por Kracauer, Bazin vai acentuar o vincu- lo essencial existente entre um objeto e sua imagem fotogréfica. Ao contrério da imagem produzida pelo pintor, a fotografia seria es- sencialmente objetiva, na medida em que a prdpria coisa imprime sua imagem na peli- cula através de um proceso todo cle desen- volvido segundo leis naturais (a escolha do forégrafo € inessencial). O fundamental é que a fotografia, como vestigio da coisa, teste- munha sua existéncia. O que é tipico de Ba- zin nesta ordem de idéias ¢ a visio da repro- dugio fotogrifica como celebragio: reprodu- zindo e fixando o existente, a fotografia de- volve 0 objeto & nossa atenca e 20 nosso amor — 0 que, em termos bazinianos, seria dizer “ao nosso conhecimento”. A realidade da coisa transfere-se para a imagem (este é 0 modelo) e, na reproduco, dada a impassivi- dade da camera, esta imagem é¢ oferecida li- vre de preconccitos. Resultado, a coisa apa- rece virgem ¢ 0 fato deputado, revelando aquilo que cles so em si mesmos. Temos uma imagem “natural” de um mundo que nao © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 83 sabjamos ou no podiamos ver (Bazin nao se refere aqui a regides inatingiveis como 0 mundo microscépico, mas & realidade de todo dia). “As virtualidades estéticas da fo- tografia consistem na tevelagao do real” (Quest-ce que le cinéma?, v.1, p.18) Ao contrdtio da imagem produzida pela mio ¢ pela subjetividade humana, a forogra- fia como que pertence e vem somar-se a “ctia- géo natural”. Tal idéia esta cristalizada na metifora que Bazin utiliza ao refetit-se a0 cinema como “estado estdtico da matéria”. Ou seja, a matétia quando desnudada e ofe- recida em imagem (fotografica e fonogrifi- ca) & nossa percepsio. Para entender Bazin & preciso que se : 0 cine- tenha clara esta admissio essenci ma nao fornece apenas uma imagem (apa- réncia) do real, mas é capaz de constituir um mundo “2 imagem do real”, para usar a ex- pressio catélica que Ihe é cara. A sutil dife- renga entre dizer que algo é uma “imagem de” e dizer que algo é “feito & imagem de’, nos fornece um exemplo dos intimeros jo- gos de palavras que tornam a Ieitura de Ba- zin facil apenas na sua aparéncia. Ele vai adiante: tal reprodugio de um mundo a imagem do real nao € apenas uma possibilidade do cinema, mas € essencial & sua natureza. Constitui sua missio, pois a cle cabe manter-se fiel a sua dimensio “on- tolégica’: testemunhar uma existéncia, res- peité-la em si mesma ¢ deixar assim que cla revele 0 que cla tem de essencial. Uma comparacéo fundamental, que 0 proprio Bazin estabelece, nos ajuda a perce- ber 0 quanto a natureza “objetiva ¢ natural” da reprodugio cinematogrsfica constitui para cle a razdo da legitimidade da missio realista do cinema. Quando o pintor busca a reprodu- Gio exata de um modelo, Bazin vé ai o perigo de que seu trabalho resulte num mero jogo ilusionista, destituido daquilo que ¢ proprio a0 verdadeiro realismo: “o desejo de expri- mir a significagao concreta e essencial do mundo”, Ele dira: “o universo estético ¢ sub- jetivo ¢ heterogéneo em relagio a0 mundo que © cerca — nao faz parte da ‘criagao natu- ral”, Pois bem, no caso do cinema, a realiza gio de tal realismo verdadeito depende de uma ilusio especifica do real que sé um filme pode provocar. Portanco, no cinema, ha um, ilusionismo legitimo que constitui base para © verdadeiro realismo, tanto mais verdadeiro quanto mais a realidade vista (ou que se su- pode vista) através da janela cinematogratica permanecer integral, respeitada, intocavel, porque a sua simples presenga € reveladora — que legitima, redime a ilusio (pecado) ori- ginal. A histéria do cinema é uma trajetoria rumo & realizagao mais completa deste ilu- sionismo revelador especifico. A sutileza desta revelagao esta em que tal mundo integro ¢ intocdvel que se projeta na tela, construido a imagem do real, € um mundo de represcntagao, imagindrio. Bazin é um apologeta da narragio ficcional ¢ sua estética nao poderia desembocar na propo- sigdo exclusiva de um cinema documenté- rio, um cinema verdade, baseado no registro direto da imagem ¢ som como “captagio da realidade espontanea” que nos cerca. Eviden- temente, 0 seu modelo inclui tal proposta, como uma alternativa, e 0 cinema verdade dos anos 1960, em muitas de suas manifes- 84 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO tages, realmente nio deixou de ser um nema baziniano. Mas, nao é exatamente esta a diregao que ele quer explorar, masa da fran- ca representacio. Diante disto, muita gente poder estar perguntando: Como fica a dimensio onto- légica da imagem cinematogréfica? Como pode o cinema testemunhar o “ser da reali- dade” se 0 que se passa diante da cimera é uma “mentira teatral”? Se Bazin é contra a manipulagio da montagem ¢ quer a realida- de integral na tela, como pode ele admicir tais “manipu tificia mente o que se passa diante da cdmera? Ba- hé manipulagdes e manipu- es” que produzem a zin responder laces; seu julgamento depende do nivel em que elas se situam Deste modo, em principio arbitrério, ele considera legitima a manipulagao que salva a inocéncia do cinema ~ 0 que se passa ‘© REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM. 85 diante da camera néo pertencetia ainda pro- priamente a ele ~ € condena a manipulagso especificamente cinematogréfica — a monta- gem (esta mexe na santa imagem obtida pelo processo cinematografico). As raz6es para tal tratamento diferen- cial vem do fato de que, nem Hollywood le- vou tao a sério como Bazin a necessidade de se manter, para além das dedugdes da ra740 que nao actedita, uma fé irracional na ver- dade da imagem, uma fé que viria do fundo do psiquismo do espectador. Na origem de tudo estaria a dimensao “ontoldgica” do pro- cesso fotogréfico, sua objetividade essencial, € a conseqiiente credibilidade que cerca a imagem. Credibilidade poderosa que se man- teria no cinema desde que se garantisse a nao intervengao da montagem (ou de qualquer truque que profane a imagem obtida no re- gistro; superposicéo, manipulagées de labo- ratério etc). Garantido isto, Bazin nos diz que, devido a esta credibilidade, o poder fun- damental da imagem cinematografica esté em projetar um “valor de realidade” sobre a re- presentacio, sobre a mentira ou seja lé o que for que se passe diante da camera. Ele con- dena moralmente a propaganda no cinema, por varias razdes. “(...) e principalmente por- que a natureza da imagem cinematogréfica ¢ outra: jd que se impée ao nosso espirito como podendo coincidir rigorosamente com a rea- lidade, o cinema é por esséncia incontestivel como a Natureza ¢ como a Histéria” (idem, p.88). A manutengao da inocéncia do cinema (néo montagem) nos explica a natureza do ilusionismo legitimo que sé ele pode ofere- cer: 0 cineasta pode construir todas as ilu- sbes, desde que seus truques aparentemente nao devam nada (na medida em que esto concentrados no que se passa diante da ci- mera), mesmo que no fundo devam tudo (0 que torna os arranjos possiveis ¢ tudo apa- rentemente teal é sua representagio na tela) aos meios especificos do cinema. Para a eficiéncia de tal ilusionismo, é preciso que os truques aplicados aos fatos que se passam diante da camera colaborem com a objetividade essencial do registro cinema- togrifico, compondo um mundo imaginé- rio inserido num espago “a imagem do real” Dois exemplos de Bazin nos ilustram clara- mente 0 assumido. No artigo “Montage imerdit”, elabora sua proposta justamente a propésito de um filme (Ballon rouge, de A. Lamorisse) que se desenvolve em torno de uma situagio inverossimil, francamente ima- gindria. Um balao, tal como um animal de (o, segue, um menino pelas ruas. sea stim: Todo o clogio de Bazin a este filme dev: que 0 cineasta nfo usou a montagem para sugerir 0 comportamento do balio. Este efe- tivamente age ¢ cumpre diante da cimera os movimentos que definem a sua relago com © menino. Como as relagées espaciais pré- prias a0 comportamento do balio sao res- peitadas na sua integridade, mostrando-se simultancamente balio ¢ menino, o imagi- nério adquire na tela uma “densidade espa- cial do real”. E claro que tudo ¢ produto de um truque, mas o importante € 0 efeito de credibilidade que o respeito a unidade espa- cial do evento cria. As mesmas consideracies setiam vélidas para a cena de um filme que apresenta 0 confronto de um homem com uma fera: a presenga simulkinea dos dois na 86 0 Dis tela € muito mais realista do que uma pre- senga alternada construfda através da mon- tagem. Aqui também, Bazin faz questao de salientar a nao relevancia da existéncia de qualquer truque por trés desta presenga si- multinea. “E preciso, para a plena realiza- cio estética do empreendimento, que possa- mos acreditar na realidade dos acontecimen- tos, embora saibamos que sio trucados” (idem, p.124). Cristalizando a sua investida contra o uso da montagem em situagées semelhantes as citadas, Bazin chega a formulacio da lei: “Quando o essencial de um acontecimento depende da presenga simultanea de dois ou mais fatores da acao, a montagem € proibi- da” (idem, p.127). Mesmo que se trate de uma incursao franca num mundo imagindrio, é dever do cinema tal como a seu modo o faz Holly- wood, ser realista na apresentagio de ral mundo. O estilo de Lamorisse é altamente elogidvel justamente porque ele “realiza” 0 imaginério, sendo um exemplo daquilo que Bazin denomina documentario imaginario— tudo se passa como se a cimera estivesse do- cumentando e concretizando a imaginagio. Contrariamente, se Lamorisse tivesse baseado o seu efeito na montagem, altern: do 0 menino € 0 baldo, de modo a sugerir a relagao entre eles, reriamos uma situagao to- almente “literiria”. O filme seria “a imagem, de um conto” ~ tal como na literatura, teria- ‘mos o recurso a. uma linguagem para signifi- car a situagao narrada; nao teriamos a apre- sentagao efetiva do fato (aquela que lhe da o “valor de realidade”), Aqui, Bazin aproveita o exemplo para inverter a formula dos tedri- ) CINEMATOGRAFICO cos russos: a montagem seria o lugar da rup- tura com o especifico cinematogrifico, mos- trando-se um procedimento literdrio, por- que instituiria um relato composto de ima- gens (fragmentos de fatos ou de coisas), nao a reproducio efetiva do fato na sua integ dade. Somente esta reproducio atingiria 0 especifico cinematogréfico, ou seja, a at buigio do “valor de realidade” aos fatos apre- sentados. O elogio de Bazin a determinados filmes baseados em obras literarias estard vin- culado & sua capacidade de “realizar” a ima- ginagio do escritor, fornecendo um peso “ontoldgico” aquilo que, na literatura, é uma significagao abstrata ou uma referéncia aos fatos que tem apenas o “valor do relato”. Da lei da “montagem proibida’ aplica- daa situacdes especificas, Bazin passa a con- ideragdes mais amplas, partindo sempre da natural hipétese de que nossa experién corresponde a percepcao continua de uma realidade também continua ¢ sem lacunas. Esta hipétese é decisiva no seu esquema, uma vez que toda a sua perspectiva estética pode ser sintetizada numa regra fundamental que define as condigoes necessarias e suficientes para o realismo no cinema: um espago “A imagem do real” (tridimensional, continuo, lugar de fatos aparentemente naturais) é“cap- tado” pela camera de modo a que se respeite a sua integridade e de modo a que a imagem projetada na tela forneca uma experiéncia deste espaco que é equivalente A experiéncia sensivel que temos diante da realidade bruta Esta equivaléncia sera obtida quando os meios especificamente cinematogrificos es- tiverem mobilizados, nao apenas para repro- duzir uma certa légica “natural”, mas para © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 87 reproduzir certos dados psicolégicos ou men- tais da percepgao “natural”, Nao basta a exis- téncia de um cenério naturalista, de uma terpretagao naturalista e de uma estéria cons- tituida de fatos aparentemente reais; assim como nao basta a verossimilhanga lgica ¢ 0 ‘espago-tempo fornecido poruma decupagem obediente ao mérodo clissico, Este éeficiente do ponto de vista narrativo, mas nao do pon- to de vista da fidelidade a percepgio narural A decupagem classica seré, inicialmen- te, criticada no nivel pritico, através de uma quase-negacio da eficiéncia do seu ilusion mo: Bazin admite que 0 espectador vai se acostumando ao cinema ¢ que passa a perce- ber o corte, o que denuncia a seqiiéncia de imagens como discurso artificialmente pro- duzido, Ou seja, a montagem deixaria de ser invisivel, perdendo assim sua arma prin pal. Aqui, haveria uma consideravel fragili- dade na argumentacao de Bazin. Primeiro é discutivel a sua concepgao da percepgao na- tural continua; segundo, ela nao esta consi- derando 0 nticleo do problema: 0 mecanis- mo de identificagio. Este tem justamente seu principal reforgo na manipulacio dos pon- tos de vista propria & decupagem clissica. Como eu disse no inicio, a “impress’o de realidade” no € um processo simples € near que vai da fidelidade da imagem a fé do spectador, mas um proceso complexo onde a disposigio emocional deste contribui de- cisivamente para a produgio do ilusionismo, retroagindo, portanto, na sua credibilidade De qualquer modo, o momento decisi- vo da sua argumentagio se dé quando a cri- tica & imagem descontinua e montada passa a ter um peso “ontolégico”. Num primeiro aspecto, a montagem seré dita nao-realista porque ela impossibilita a captacdo do que seria uma proptiedade essencial das coisas ¢ dos fatos: a sua duragdo concreta; sua evolu- do continua e seu movimento intrinseco — aquela temporalidade que é qualitativa e que nenhuma medida “objetiva” pode alcancar. O tempo do relégio me fornece uma quan dade abstrata e, do mesmo modo, quando no cinema, a duragdo concreta nao est ex- pressa na imagem, s6 tenho uma idéia inte- lectual do tempo transcorrido. Na monta- gem, os fragmentos combinados sao capazes de “significar” um espago, assim como de sugerir, significar um tempo. Mas isto nao substitui a sua percepgao efetiva. Como eles no sio dados de imediato e em bloco mi- nha consciéncia, tenho uma situagao equiva- lente & do romance, onde o tempo de leiura no se identifica — qualitativa e quantitativ: mente — com o dos eventos representados. A decupagem classica respeita a integridade légica e a sucessio causal dos eventos no tem- po, mas cla nao me fornece ¢ eu mio experi- mento este tempo como duragao (aqui Bazin inspira-se totalmente em Henri Bergson). E nao é somente neste desrespeito a duracao, como dimensao ontoldgica das coi- sas que a montagem trai o realismo. Ela co- mete uma traigéo maior quando dissolve e renega uma outra dimensio essencial das coisas e dos fatos. “Em resumo, a montagem opée-se essencialmente e por natureza a ex- pressio da ambigiiidade” (idem, p.144), Ela €a “criagdo de um sentido que as imagens nao contém objetivamente ¢ que provém tao 86 de seu relacionamento” (idem, p.133). Ela €0 lugar do nao mostrar, da aluséo. Quando 88 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO decomponho uma cena em planos, 0 que estou fazendo € estabelecer uma certa sele- gio e ordem de leitura dos eventos, imposta a0 espectador. Veja isto ¢ depois aquilo. ‘A conclusao de Bazin é que, mesmo no nivel mais imediato da apresentagao dos fa- tos, a mais modesta montagem j4 impde uma diregao que tende a dar uma unidade de sen- tido para os eventos. O contrétio tenderia a acontecer com a “profundidade de campo” 0 plano-seqiiéncia. Aqui pode-se dizer que 0 espectador é colocado “numa relacdo com a imagem mais intima do que aquela que ele mantém com a realidade. E portanto certo dizer que, independentemente do contetido cm si, a estrutura da imagem € assim mais realista” (idem, p.143). Além disto, 0 novo estilo € extrema- mente “democritico”, dando liberdade de escolha ao espectador ¢ formulando um con- vite a sua participago ativa, dado que de sua vontade depende o fato da imagem ter um sentido. Da parte do diretor, tal estilo teste- munha uma elogidvel humildade, dado que © respeito & liberdade do espectador articu- la-se com a remincia do sujeito a “subjetivar” a realidade (impondo um significado as coi- sas) ¢ sua alta compreensio do que é “obje- tividade” que, no fundo, consiste no respei- to a ambigiidade imanente ao real. Posta nestes termos, a estética realista de Bazin julga-se auto-definida sem que haja maiores explicitagdes sobre o elemento cha- ve por onde comecam as discussdes neste ter- reno: a nogio de realidade. As coisas “esto ai”, disponiveis para a nossa percepsio; elas duram e sua existéncia tem seus mistérios. Mas, podemos conversar sobre elas, pois 0 nosso senso comum é suficiente para que nos entendamos quanto ao peso inegavel de sua presenga. Quanto ao mais, tudo é ambiguo em esséncia. O sentido que entrevemos tem sua legitimidade apenas no nivel da experién- cia individual, 0 que nos aconselha um mé- ximo respeito pelo outro e por tudo que nos cerca. E preciso, com humildade, tomar a sério e em si mesmos cada um dos elemen- tos dados a percepgio; sao exemplares da Criagao, que existem antes que eu diga algo a seu respeito ou os utilize para atingir uma finalidade e um sentido que define a minha perspectiva. “Eles (os neo-realistas) nao ¢s- quecem que, antes de ser condenavel, o mun- do, simplesmente, é” (Quist-ce que le ciné- ‘ma? v.2, p.16). O realismo estético nao estd no discur- so que reorganiza os dados imediatos do real de modo a decifré-lo e ir além da percepeao. A representacao legitima das coisas e dos fa- tos nio € senao a sua reapresentagao integral, trabalhada, artificial, por isso mesmo esté ca; mas, acima de tudo, respeitosa, evitando acréscimos, de modo a que cada coisa res- ponda por si mesma, ocupando o seu lugar que marca sua presenga na realidade bruta. Nada de simbolismos. Ou seja, nada de tomar uma coisa pela outra ou usar um objeto apenas como suporte para a represen tacdo de uma idéia abstrata. O que €a mon- tagem sendo o lugar das manipulagées cria- doras de tais simbolismos? O que ¢a monta- gem sendo o lugar da anulagio da presenga das coisas, que deixam de valer por aquilo que sao para valer por aquela auséncia que elas representa? ‘Ao invés de projetar uma sombra sobre esta presenca e enredé-la nos véus do discur- © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 89 so, devemos celebré-la. O realismo estético nao é a expresso de um pensamento, mas um exercicio do olhar. Nao importam as d ferencas que separam 0 cinema de esttidio de Orson Wells, 0 neo-realismo, os dramas hollywoodianos de William Wyler e as ob- servagées do jogo social em Jean Renoir. O que importa € a manifestagao de um estilo de camera, de uma nova narragio, que nto se apresenta como discurso construido “ti- jolo por tijolo” (Kulechov) mas como des coberta de uma realidade virgem, que o olhar vai encontrando ¢ explorando. No modelo de Bazin, 0 realismo capaz de exprimir “a significagao concreta ¢ essen- cial do mundo” é um ato de fé, onde a trans- paréncia mais cristalina se revela através da reprodugio do mistério da existéncia, da duplicacao do mundo em sua ambigiiidade. O cineasta no é um juiz, mas uma humilde testemunha. E af esté toda a sutileza: clemen- to todo poderoso, criador deste duplo “ima- gindrio” que nos ¢ aberto pelo olhar da ci- mera, ele atinge o méximo refinamento esté- tico justamente no momento em que a sua presenga se apaga diante da duracao (viva) concreta de suas criaturas. “O ponto de vista da camera nao é aquele abstrato do oniscien- te romancista que escreve na terceira pessoa, mas nem por isso € aquele da camera subje- tiva, estiipida e burra, mas sim um modo de ver, livre de qualquer contingéncia e que, no entanto, guarda as servidées e a qualidade concreta do olhar, sua continuidade no tem- po, seu ponto de fuga tinico no espaco: 0 olho de Deus no sentido préprio, se Deus soubesse se satisfazer com um olho s6” (Ca- hiers du cinéma, n.8, abril 52, p.26). C. AS CORREGOES FENOMENOLOGICAS E A “ABERTURA” Bazin, em certas passagens de sua refle- x40 sobre o neo-realismo, refere-se a0 res- peito pela “integridade fenomenolégica” dos fatos. Se quisermos verificar 0 que afinal sig- nifica fenomenologia dentro do seu vocabu- Lirio, temos uma passagem mais explicita: “Seja a servic dos interesses de uma tese ideolégica, de uma moral, ou de uma acao dramitica, 0 realismo subordina aquilo que ele empresta da realidade a sua necessidade transcendental. O neo-realismo conhece ape- nas a imanéncia, Partindo apenas da aparén- cia dos seres ¢ do mundo, ele sabe como de- duzir as idéias que ele revela. E uma feno- menologia” (Qu’est-ce que le cinéma? v4, p.76). A fenomenologia baziniana implica numa operagéo de “por entre parénteses”, nao considerar, nao fazer uso de, nao pressu- por. O objeto desta operacao, ou seja, aquilo que é posto de lado, ¢ a ideologia ou, m: radicalmente, a propria “representacao” (dis- curso que, segundo convengses, dispde de cetta linguagem para “dizer” 0 mundo). Pois Bazin, nao somente se opde & presenga da tese ideolégica, mas também a presenca da agio dramatica, a qual ele entende como agio presa as convengées da representacao teatral, como aco reorganizada tendo em vista de- terminada idéia que se tem do real. Coeren- temente com o estilo que ele solicita, Bazin quer um cinema que s6 conhegaa imanéncia = um cinema que s6 veja 0 que vem do real; uma passividade no olhar, cuja isengio lhe torna capaz de “receber” 0 que emana dos 90 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO seres ¢ do mundo. O mergulho radical na aparéncia fica sendo a condigao para a acu- mulagao de dados sensiveis capaz de provo- car a ascengao (desencavacao) das idéias jus- tas — nao ideolégicas. Ele fala em dedugio, mas fica dificil compreender onde esta este trabalho de dedugio, que pressupde uma ela~ boracao dos dados para chegar ao nao-dado. Sua fenomenologia emerge como respeito & aparéncia dada, como fé no fendmeno como algo que se auto-revela, desvendando o seu significado. Eno examina o clemento que constitui o ponto de partida fundamental dentro daquilo que se possa chamar feno- consciéncia menologia propriamente dita: (Husser!), ou 0 corpo (Merleau-Ponty), que pereebe Em vez de se dirigir a0 exame da per- cepeéo como atividade e ao exame das con- goes ¢ implicagoes presentes nesta ativida- deo que levaria Bazin na diregao de uma auténtica fenomenologia ~ ele pressupde ra- zoavelmente conhecida sua natureza (dentro do modelo da contemplagio) € concentra seus esforgos na expulsio de qualquer ati dade estranha a ela. Em suma, fenomenolo- gia = contemplagao reveladora (de um trans- cendente que se insinua no real, em iiltima instancia, representado na ambigtiidade e no mistério que rodeia os fatos € as coisas). Apesar da presenga de algumas expres- sées comuns, apesar do tema comum da ambigitidade, hé uma considerdvel distan- cia entre a fenomenologia de Merleau-Ponty, tal como se manifesta em sua conferéncia de 1945, “O cinema e a nova psicologia’, ¢ a postura de Bazin. O que desautoriza a idéia de que tal conferéncia seria uma antecipagao de Bazin — na verdade cla seria uma anteci- pacio de Mitry. Em Merleau-Ponty, a ambigiiidade vin- cula-se, A negagio de qualquer Absoluto, & admissio de uma incompletude fundamen- tal da percepgio, dada a condigéo do homem como ser mergulhado no mundo. ma néo se afirma como lugar da presenga das coisas mesmas ou como experiéncia revelatéria. O interesse do fildsofo pela nova atte estaré vinculado ao filme como “objeto de percepcao” capaz de, pelas suas proprias caracteristicas, tornar explicitas certas estru- turas que organiza o nosso comércio com © mundo: a imagem cinematogréfica apre- senta uma figuragao do comportamento dos homens capaz de expressar a contingéncia como condigao humana (0 estar-em-situa- ido dentro de condigées derermi- 30 cine- Para Merleau-Ponty, no cinema, torna- se manifesta a unio entre mente € corpo, mente e mundo, ¢ a expressio de um no ou- tro. Nele, trata-se de tornar manifesta a fa- léncia da dicotomia interior/exterior e mos- trar que o sentido é aderente 20 comporta- mento. “Célera, vergonha, édio ou amor nao so fatos psiquicos ocultos no mais profun- do da consciéncia de outrem; sao tipos de comportamento ou estilos de conduta, visi- veis pelo lado de fora. Eles estio sobre este rosto ou nestes gestos € nunca ocultos por detrés deles” (O cinema ea nova psicologia). H4 um momento em que Merleau- Ponty nos induz a uma aproximaggo com Bazin, ao propor a producio de significacoes © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM wn no cinema como algo que emana de uma organizagao das aparéncias (arranjo espago- temporal dos elementos) ¢ ao cristalizar sua perspectiva numa férmula: “um filme nao é pensados ele é percebido”. Porém, tal prima- do da percepg4o caminha numa diregao o- posta as idéias bazinianas de contemplacio. Localizado em outro nivel, ele vincula-se & critica de Merleau-Ponty a concep¢io classi- ca da percep¢ao — aquela que promove a se- Pparagao entre a sensagao (desorganizada) ea inteligéncia organizadora, Como a nova psi- cologia (Gestalt) 0 mostra ¢ a fenomenolo- gia da percepgio o interpreta, a percepgio € uma atividade organizada ¢ marca uma rela- Gio corporal com o mundo, uma decifragao estruturada, anterior a inteligéncia. Neste sentido, 0 traco fundamental de um filme como objeto de percepcao € sua presenca como “Gestalt temporal”. Este privilégio dado ao filme como estrutura, como totali- dade organizada “mais exata do que o mun- do” alia-se ao franco elogio ao efeito Kule- chov (referido por Merleau-Ponty como de Pudovkin). Em sua conferéncia nao ha nada que possa ser visto como critica & decupa- gem classica. Pelo contratio, celebra a con- vergéncia de sua filosofia com as reflexes dos tedricos da montagem. O cinema como forma, ¢ suas leis especificas, constituem 0 horizonte de suas observagées. O elemento notdvel em tal forma (Gestalt) é sua conver- géncia com a postura da nova filosofia: esta “nao se constitui no encadeamento de con- itos ¢, sim, no descrever a fusao da cons- ciéncia com 0 universo, seu compromisso dentro de um corpo, sua coexisténcia com « as outras” (O cinema e a nova psicologia’, p.31 de A idéia do cinema), ou seja, aquilo que Merleau-Ponty denomina “material ci- nematogrifico por exceléncia”. Tal convergencia ocorre, nao devido & influéncia de um sobre outro, mas em fun- a0 de algo que engloba cinema ¢ filosofia, e, em ambos, se expressa, “Se, entao, a filo- sofia ¢ 0 cinema estao de acordo, se a refle- x40 e o trabalho critico correm no mesmo sentido, & porque o fildsofo ¢ o cinema tém em comum um certo modo de ser, uma de- terminada visio do mundo que é aquela de uma geragio” (O cinema e a nova psicolo- gia’, p.32 de A idéia do cinema). A breve incursao cinematografica de Merleau-Ponty define, em suas linhas gerais, as condigdes que fazem do cinema lugar pri- vilegiado da expressio de uma “visio do mundo” onde contingéncia, ambigiiidade, ¢ a concepgao do homem como ser-em-situa- G40, informado por uma visio em perspecti- va, constituem elementos-chave. Sem duvi- da, mais do que as manifestagdes difusas de tal formulagio ao longo dos anos que sepa- ram a conferéncia de Merleau-Ponty e 0 tra- tado de Jean Mitry, este serd a tentativa mais sistematica de pensar o cinema ¢ elaborar sua estética dentro de parimetros afinados com tal visio do mundo. Em 1963, € publicado o primeiro vo- lume de Estetica e psicologia do cinema, e, em 1965, 0 segundo. Através das quase mil pa- ginas que compéem seu trabalho, Mitry pro- cura expor uma estética do cinema “em ge- ral”, ou seja, todo ¢ qualquer cinema. O seu projeto ¢ extremamente ambicioso: ao con- 92 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO trétio dos que o antecederam, vai rentar es- tabelecer principios realmente gerais, esca- pando as limitagoes anteriores, Portanto, vai comegar pelo comeco dos comesos, procu rando definir “as condigdes de existéncia do cinema”. Buscando suas bases nas fenome- nologias de Husserl, Merleau-Ponty ou Sar- tre, ou na filosofia da “duragao” de Henri Bergson, ou nas formulagées mais moder- nas no campo da logica, Mitry retine ecleti- camente tudo 0 que é possivel para, no fun- do, esbogar uma nova filosofia. Ou seja, as- sim como os que 0 antecederam, na verdade defende um cinema particular afinado com sua visto de mundo. E esta se traduz numa idgia do cinema que fica a meio caminho entre o realismo revelatério de Bazin (cine- ma amarrado ao real que ele duplica) ¢ 0 ci- nema-discurso do semidlogo (cinema fran- camente irreal porque discurso inscrito nas convengdes das varias linguagens nele pre- sentes). A formula de Mitry ser: no cinema © real se organiza em discurso. Partindo do mesmo ponto inicial de Ambheim, seu primeiro trabalho ¢ analisar a imagem filmica ¢ suas diferengas perante a realidade. Entretanto, ao contrario de Ar- nheim, Mitry nao se atém a uma descri¢ao de certas diferengas de imediato dadas na configuragio da imagem projetada na tela (superficie plana, os limites do quadro, a es- colha do ponto de vista, a descontinuidade instituida pela montagem) — a estratégia do esteta alemao em 1933 foi enumerar estas diferencas ¢, em seguida, falar sobre 0 “uso artistico” delas na realizagao do filme (0 pro- jeto de Arnheim era o de defesa radical do cinema mudo e de ataque ao som como apro- ximagao “nao artistica” em direcéo ao real) Mitry nao vai apenas desenvolver uma dis- cussao psicolégica das condicées de percep- go da imagem. Suas consideragées sobre a imagem dizem respeito & sua natureza € es tendem-se em todas as direcdes possiveis: imagem e palavra; imagem filmica ¢ imagem mental, imagem ¢ légica. Num primeiro momento de seu discur- so, emerge uma critica radical as crencas de Bazin, Mitry quer repor a fenomenologia em seu devido lugar, procurando discernir o que cada fenémeno visual é em esséncia. O re- sultado de suas reflexdes € uma nogio da imagem cinematogréfica que, sem ser “essen- cialmente objetiva’, nao se descola do real. Deixados de lado os poderes revelatérios as- sumidos por Bazin, a imagem de Mitry car- rega consigo a presenca das coisas ¢ tem como missio fundamental mostrar um “aspecto do mundo”, tornar presentes 0s objetos como produto de um “olhar” que define um “cam- po” ¢ uma “intencionalidade”. A realidade da tela é, a diferenga do mundo real, orien- tada (tendente a realizar uma finalidade). Nela, a presenga das coisas marca uma certa necessidade e o fragmento do mundo natu- ral apresentado € inscrito num novo espaco- tempo (montagem). O cinema de Mitry nio € portanto, a contemplacio revelatéria de uma esséncia do. mundo dada a priori, mas é a produgao de novos significados. A montagem tem nele seu lugar - é um recurso de organizacao legiti- mo. Na verdade, a montagem, juntamente com as caracteristicas proprias do enquadra- mento (ponto de vista, limites do quadro), € responsavel por aquilo que Mitry chama re- (© REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 93 forma dos elementos reais dados. f nesta re- forma que esté concentrado o poder do ci- nema em revelar novas significagGes; em di zer algo a respeito do mundo. Em outras palavras, Mitry diré que, no cinema, 0 real torna-se elemento de sua prépria afabulacio. “O tempo do romance é construido com palavras. No cinema, é construido com fa- tos. O romance suscita um mundo, enquan- to que o filme coloca-nos em presenga de um mundo que ele organiza conforme uma certa continuidade. © romance é uma nar- rago que se organiza em mundo, o filme € um mundo que se organiza em narragio” (Esthétique et psycologie du cinéma, v.2, p.354). Mitry admite que algo se acrescenta (uma intencionalidade) e algo se perde na transformagao do real em discurso cinema- togrifico, o que afasta e distingue o mundo imaginario da tela do mundo cotidiano que nos cerca. Por outro lado; continua a usar a expresso “cinema = arte do real”, admitin- do a presenga de uma ponte essencial que liga tal imaginario 2 realidade. Daf a utiliza- (0 da idéia de reforma e nao da idéia de Construgio: 0 imagindrio € composto por varios “tijolos” extraidos do real e estes, na nova ordem, nao perdem seu peso de “coi dade”. Tal ponte com o real fica mais evi- dente quando Mitry, enfaticamente, promo- ve um ataque a qualquer construcio franca- mente artificial apta a denunciar a nfo na- turalidade do material visado pela camera. Ele vai combater 0 expressionismo (pré-es- tilizagao dos cendrios e uso ostensivo de pin- turas), Eisenstein (metéforas impostas a0 mundo diegético, 0 uso simbélico de obje- tos, montagem intelectual seguindo uma idéia e nao os fatos) e Bergman (cujos sim- bolos artificiais se misturam arbitrariamen- te aos fatos). De certo modo, apesar de sua veemente critica & metafisica de Bazin, Micry dele aproxima-se na critica ao simbolismo, ao cinema de tese que “forca” os fatos para veicular uma idéia. E, na sua aceitagio da montagem, seu ponto de partida é muito préximo postura de Umberto Barbaro, que exige um respeito & integridade do mundo narrado e quer metéforas ou conotagées “na- turais”, Entre os exemplos por ele utilizados, Mitry cita a seqiiéncia de Pudovkin jé aqui comentada, Como Bazin, Mitry prefere um cine- ma que sé conhega a imanéncia, dando a impressao de que a camera “capta” o “acon tecimento se fazendo diante dela’ ¢ de que a imagem constitui a apresentagao de uma rea- fidade viva que se desenrola livremente. E por af que cle encontra um caminho para definir o realismo cinematogrifico. Como Kracauer, opde 0 mundo cinematografico 3 tragédia classica (cosmos organizado e fecha- do). Ao mesmo tempo, opera com o par es- séncia/existéncia, tomando seus termos como dois pélos de uma fundamental oposicio, apta a legitimar uma classificagao dos filmes. A partir dai, surge um cinema realista fiel 2 imanéncia, is coisas que existem, aberto, cap- tando o mundo contingente ~ 0 aqui ¢ ago- rao ser situado que vive diante da camera f um cinema irrcalista, em busca de essén- ias, que procura liberar-se do contingente ¢ atingir verdades atemporais. Este tiltimo se- ria o lugar da obra fechada, cuja harmonia e perfeicao estariam vinculados a constituigao 94 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO de um espaco dramético semelhante ao tea- tral. O cinema realista seria, tal como 0 ci- nema contemporaneo (em torno de 1960), o lugar da desdramatizagao, da perda da per- feigdo e o lugar da informidade. Um cinema capar. de surpreender-se com as coisas, onde © acaso se insinua ¢ o desenvolvimento légi- coe coerente é abandonado em nome de uma maior “autenticidade” e de um maior “rea~ lismo” ao mostrar o instante, 0 momento: ivido. Mitry tem suas restrig6es ao cinema de Antonioni ou de Godard. Mas, faz questio de afirmar que, no nivel da organizagao do filme, quanto a maneira de dizer € quanto ao olhar que eles depositam sobre 0 mundo, estes cineastas caminham na diregio certa. Tal como Luc Moullet e outros criticos con- temporaneos, ou mesmo como Bazin, Mitry elabora sua estética em torno da contingén- cia e ambigiiidade do real. A nogio de realis- mo vincula-se com a de existéncia (indivi- dual) de cada ser em sua particularidade “indeterminagao”. necessirio apontar aqui uma aproxi- magao e uma diferenga. Tornou-se lugar co- mum na critica de arte das tiltimas décadas a adogao, como hipétese de trabalho, do prin cipio de que a obra de arte &, por definigao, ambigua. Aqui, tal nogao refere-se & plurali- dade de significados que caracteriza a obra de arte; a sua abertura ou disponibilidade para diferentes leituras ¢ interpretagdes, con- forme o referencial ¢ 0 ponto de vista, cons- ciente ou inconscientemente escolhido pelo leitor. Esta admissao nao constitui fato ori- ginalmente revelado pela critica do pés-guer- ra, mas sua penctragao em todos os cantos € sua transformagio em principio basico do esteta, deve-se a uma série de fatores, entre os quais as préprias caracteristicas da arte moderna. O importante é que foi nas ulti- mas décadas que a ambigiiidade cornou-se um tema privilegiado de discussio. Na Fran- ¢a, desde os tempos polémicos da “nova cri- tica”, Roland Barthes evidenciou tal fené meno ¢, na Itilia, a publicacao do livro de Umberto Eco, A obra aberta (1962), cristali- zou a transformagao da ambigiiidade que, de acidente indesejével, passa a elemento ca- racterizador do objeto artistico. O que vemos em Bazin ou Mitry é uma admisso que vai mais adiante: a ambigiti- dade nao é traco exclusivo definidor do ob- jeto artistico; ela € um elemento definidor da propria realidade. O que significa dizer que tem presenga obrigatéria dentro de qual- quer realismo, pois a fidelidade ao real co- mega por ela. No caso de criticos como Eco ¢ Barthes, a énfase na ambigiiidade inerente ao discurso artistico vincula-se 4 critica de uma nogio dogmitica de realismo. No caso de Bazin ou Mitry, a énfase na ambigiiidade faz-se em sentido contrério, ou seja, para definir 0 novo ¢ verdadeiro realismo. Uma coisa ¢ dizer: a arte é ambigua. Outra € di- zer: a arte deve ser ambigua porque a reali- dade é ambigua. E interessante notar que o livro de Eco representa um exemplo significativo da os- cilagao entre permanecer no nivel da primeira afirmagao ¢ caminhar em direcao & segunda. Sem duivida é uma tarefa estimulante anali- sar 0 livro de Eco sob o ponto de vista desta tensao ¢ ver qual é a relagao que procura es- tabelecer entre pluralidade de significados na © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM 95 obra de arte ¢ a proposigao de uma indeter- minagao essencial inerente A realidade que nos cerca. Porém, o que me interesse apon- tar do livro , primeiro, 0 conceito de obra aberta ¢, segundo, a sua relacdo com o cine- ma dito moderno. Inicialmente, segundo Eco, hé uma primeira abertura inerente a qualquer obje- to artistico, seja uma tragédia classica, a Mona Lisa ou um filme de Chaplin. Esta deve-se a que, pelo préprio modo de organizacio, 0 discutso artistico é aberto, podendo adqui- tir diferentes significados dependendo das condigdes que cercam ¢ definem a natureza do Ieitor. Isto explicaria a “perenidade” de determinadas obras, a0 longo da histéria sempre admitidas ¢ interpretadas pelas dife- rentes geragées. Eco, inclusive, vai preferir falar em “estrucuras de fruigao” (definidoras de tipos de interagéo obra-leitor) — em cons- ante transformagio — ao invés de falar em estrutura da obra, que nela estaria objetiva- mente presente ¢, de uma vex por todas, dada. Em seguida, temos uma segunda aber- tura, definidora de um tipo particular de arte — justamente a arte moderna. Nesta, estari docorrendo uma inversio do esforgo do artis- ta, antes voltado para a minimizagio da am- bigiiidade inevitavel, agora assumindo esta ambigilidade, ¢ trabalhando em favor dela A obra aberta propriamente dita seria pro- duto justamente desta nova atitude, uma obra tendente ao nfo acabamento, cheia de lacu- nas, convidando o espectador a participar de sua prépria construgao e completé-la. Con- forme o meio de representagio, ou melhor, 0 tipo de objeto artistico em questio, tal aber- tura e convite a participacao podem atingir um sentido mais literal (como diante do ob- jeto inacabado do artista plistico que 0 con- sumidor deve completar ou manipular; ou também no caso da musica serial dada a margem de escolha do intérprete), ou podem atingit, diante de objetos fisicamente pron- tos, um grau sofisticado de participagio no nivel dos deciframentos e das préprias alter- nativas de estruturagao deixadas a cargo do fruidor. A poesia pés-Mallarmé, 0 romance de Joyce, 0 “novo romance” de Robbe- Grillet, o livro de Cortazar (nao citado por Eco) teriam em comum um certo tipo de proposta ao leitor. Quanto ao cinema narra- tivo afinado com tais tendéncias, provavel- mente poderiamos fornecer uma série de exemplos, concentrados basicamente na dé- cada de 1960. Quando Eco preparava seu livro, ainda nao haviam se consolidado no cendrio internacional as manifestagdes da Nouvelle Vague e dos Cinemas Novos. Seu comentério sobre a obra aberta cinemarogré fica concentra-se na figura discutida no seu pais, principalmente entre os intelectuai Antonioni. O mesmo Antonioni que. maneira de dizer”, caminha na direc reta, segundo Mitry. Numa nota acrescenta da posteriormente ~ nota presente na ediga brasileira — Eco prope uma répida compa- ragao entre Visconti (cineasta clissico e aris- totélico nas suas construgoes dramaticas aca badas ¢ perfeitas) ¢ Rossi (cineasta de pes- quisa, moderno, apontando para a ambigiti- dade dos faros ¢ deixando interrogacées que provocam a reflexio do espectador). Porém, em 1962, as ambigiiidades de A aventura na 10 cor 10 96 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Cipapao Kane, Orson Welles constituem 0 paradigma da obra aberta ci- nematogrifica para Eco. Mesmo naquela época, se tivesse am- pliado sua atengao para um cinema nao do- minante no mercado, teria encontrado ou- trosexemplos, inclusive verificaria quea “obra aberta” cinematogréfica marca sua presenga desde os anos 1920. Nesta diregio, Eco teria encontrado as manifesi Ges no plano do cinema dos mesmos movimentos ¢ propostas estéticas que marearam as rupturas com modelos clissicos ¢ a consolidagao de uma dinamica propria que caracteriza a arte mo- derna que cle defende. Ao fazé-lo, Eco estaria lidando com o cinema mudo de vanguarda, correlato a futurismo, cubismo, expressionis- mo, dadaismo, surrealismo ¢ abstracionismo do comego do século; um cinema nem sem- pre narrativo, composto de filmes que busca- ram seus principios fora dos limites da veros- © REALISMO REVELATORIO E A CRITICA A MONTAGEM similhanga factual, constituindo seu estilo fora das restrigées da decupagem clissica ou do realismo baziniano, Um cinema que, an- tes de Bazin, j4 era “moderno” e, antes de Mirty ou Eco, ja era “aberto”. Bazin instiruiu um sistema de referén- cia para criar a distingao cinema classico/ci- nema moderno; posteriormente a Nouvelle Vague e os Cinemas Noves instituiram uma nova moldura que transformou Renoit, We- Iles ¢ neo-realismo em “precursores” para BIBLIOGRAPIA BAZIN, André. Quest-ce que le cinéma? vol. tay, Paris, Editions du Cerf, 1960/64. ECO, Umberto. A obra aberta, Sao Paulo, Perspectiva, MERLEAU-PONTY, Maurice. “O cinema ca nova psicologia” In A idéia do cine- ‘ma, colecinea de José Lino Grunewald, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1969, ROSSELLINI, Roberto, “Textos escolhi- dos”, in Liart du cinéma (coletanea de t), Pierre Lhermi um novo cinema moderno dos anos 1960. E. fundamental, neste ponto, reiterar, a0 lado da evidente relatividade da nogao de moder- no, 0 carater sintético do cinema dos ulti mos 16 anos. Nele, nao sé se retrabalha uma heranga de meio século de cinema narrativo industrial, mas se retoma meio século de um cinema nao industrial, dito experimental, cuja consideragéo € bisica para que se en- tenda os referenciais de trabalho proprios aos cineastas contemporaneos. ZAVATTINL, Cesare. Sequences from a cine- matic life, Londres, Prentisse-Hall, 1970. ————. “Some ideas on the cinema”, in ibn: A montage of theories (coletinea de Richard Dyer MacCann). VERDONE, Mario. Roberto Rossellini, Pa- ris, Seghers, 1963 Revistas: Cahiers du cinéma (periodo 1952/1960). Revue du cinéma (periodo 1946/1949). V A VANGUARDA A. O ANTI-REALISMO E O SOMBRAS Desde 0 Manifesto das Sete Artes, es- crito por Ricciorto Canudo e publicado em Paris, em 1911, é possivel encontrar a exal- tagio das ricas possibilidades da nova arte, entendidas como algo essencialmente ligado ao “valor poético” da imagem. No exame das concepgdes que sustentam tal valor poético € possivel encontrar um caminho para en- tender a relagdo entre cinema e realidade na visio de Canudo ¢ de outras figuras da van- guarda dos anos 1920. O trago comum aos diferentes “ismos” daquele periodo é sua oposigao a uma tradi- Gao classica, resumida na proposigao da arte como “imitagao”, é iquilo que era entendi- do como uma nova versio mais moderna — © realismo artistico tal como cristalizado na literatura ¢ na representagao pictérica (ante- rior ao impressionismo) do século xix. Vista dentro de uma perspectiva mais ampla, tal oposicao ao estabelecido, néo im- plica necessariamente que o projeto das vé- rias vanguardas adquira como definiggo ab- soluta a qualificagao de anti-realista. Se, em suas virias vers6es, a vanguarda apresenta como caracteristica imediata a ruptura com técnicas e convengées préprias a uma forma particular de representagao, esta ruptura esta articulada com um discurso teérico-critico onde © novo estilo encontra suas justifica- Ges em visbes especificas da realidade, dis- tintas daquela que presidiu o projeto realista do século xix. O pintor impressionista dird que sua visio e seu modo de pintar sio mais fiis 2 pura sensacio visual e as propriedades dinamicas da luz do que 0 realismo que o precedeu, preso a regras responsdveis por uma representagao convencional e irreal do mun- do visivel. Cézanne dir que todo o seu pro- jeto liga-se & pintura que provém da nature- za; € muitos criticos favoraveis ao estilo cubista dirao que 0 novo espaco pictérico é 1 com as condigées da vida moderna ¢ as novas descobertas da ciéncia do que velhas receitas académicas. Fernand Léger sera explicito na proposigao da van- guarda como um mais rico ¢ mais profundo mais compat 100 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO realismo. O cineasta ¢ o pintor surrealista dirao que o mundo surreal que emana de suas imagens € mais real, como 0 préprio nome o indica, do que o real captado ¢ organizado pelo nosso senso comum. Em suma, falar das propostas da van- guarda, significa falar de uma estética que, a rigor, somente ¢ anti-realista porque vista por olhos enquadrados na perspectiva constitu da na Renascenga ou porque, no plano nar- rativo, julgada com os critérios de uma nar- ragio linear cronolégica, dominada pela 16- gica do senso comum. Afinal, todo ¢ qual- quer realismo é sempre uma questao de ponto de vista, e envolve a mobilizagao de uma ideo- logia cuja perspectiva diante do real legitima ‘ou condena certo método de construgao ar- tistica. Como o olhar renascentista e uma certa concepgao de narrar constitufa o estilo dominante, as novas propostas por mais que teoricamente se vinculassem a projetos “rea listas” dentro de outros referenciais, ficaram associadas a anti-realismo. Isto, em princi. pio, denora apenas sua investida contra con- vengoes vigentes. Este é um aspecto da questo. Ao lado disco, ha que se considerar a enorme contri- buigio que o proprio discurso da vanguarda ofereceu A estratificagao da equagio segun- do a qual vanguarda se identifica com anti- realismo. Investindo contra a propria idéia de representacao (mimese) e propondo a ati- vidade artistica como criagio de um objeto (entre outros) auténomo e dotado de leis proprias de organizagao, o pintor modernis- ta tende a destruir a visio do quadro como janela que abre para um duplo do nosso mundo. Num primeiro momento, tal rup- tura prevalece sobre qualquer consideragao. mais detida a respeito do tipo de “realidade” depositada na superficie da tela. Uma arte que busca provocar estranheza, que denun- cia sua presenga ostensiva como objeto nao natural e trabalhado, e que nao permite um acesso imediaco (sem mediagao de uma te ria) As suas conveng6es € critérios construti- vos, tende a desencorajar as tentativas do lei- tor em relaciona-la com realidades existen- tes fora da obra. O que nao impede que, no seio mesmo deste aparente irrealismo, uma legitimagio do novo estilo seja proposta a partir de sua compatibilidade com um certo tipo de realidade, de tal modo que as velhas idéias de “captagao do essencial” ¢ de “reve- lagio das profundezas” sejam reintroduzidas. Posto isto, vejamos como se desenvol- vem as varias propostas “anti-realistas” no caso especifico do cinema. A construsio do “cinema poético” compativel com os diver- sos “ismos” da vanguarda implica em traba- Ihar contra a reproducio “natural” e contra a idéia de mimese no préprio terreno onde tal naturalidade de tal perfeiga0 mimsética pare- cem estar inscritas no prdprio instrumento € na propria técnica de base. Diante deste pro- blema, conforme a vanguarda particular que se considere, a resposta ser4 diferente. O ataque frontal & aparéncia realista da imagem cinematogréfica vem, inicialmente, de uma tendéncia especifica marcada por uma ostensiva pré-estilizagdo do material colocado em frente & cimera: a tendéncia expressionista. A mesma que, 20 longo da histéria do cinema, receberia um duplo ara- que, sendo alvo dos defensores dos varios realismos ¢ alvo dos teéricos da vanguarda. A VANGUARDA lol Os primeiros nunca estiveram dispostos a aceitar a “artificialidade” dos métodos de representagao expressionistas ou a metafisi- ca proposta através destes métodos; os segun- dos nunca perdoaram ao expressionismo a sua “sacrilega” violagéo dos principios da especificidade cinematogréfica ao apelar para 08 recursos estilisticos que se tornaram céle- bres a partir de O gabinete do doutor caligari (1919). Na diregao da vanguarda ou na di- rego do realismo, pode-se dizer que sempre predominou uma frente tinica em defesa dos privilégios da camera e da montagem como momentos de introdugao do estilo na arte cinematogrifica. Kracauer concorda com Moussinac ¢ Epstein na proposta de que nao élegitimo basear uma estética do cinema na claboragio artistica do material a ser filma- do, reduzindo-se a cimera ao simples papel de registro, ¢ 4 montagem a praticamente nada, Nao foi exatamente isto que 0 expres- sionismo fea, mas esta ficou sendo sua eti: queta. O que nao surpreende, uma vez que seu procedimento mais caracteristico ¢ ev dente foi justamente a pré-estilizagio como forma de “trait” o realismo da imagem foto- grifica. Sem duivida, sua marca € a elaboracéo de um espago dramédtico sintético artificial- mente construido por um trabalho cenogr’- fico que procura os mais diversos efeitos, exceto a criagdo da ilusio de profundidade segundo leis da perspectiva. E Caligarié evi dentemente o extremo exemplo de tal méto- do. Utilizando superficies, paredes ¢ solos pintados num estilo marcado por distorgoes, linhas curvas ¢ formas distances daquelas encontradas no espago natural, este filme transporta para o ambito cinematografico estruturas espaciais ¢ formas préprias a0 mundo do teatro nao naturalista ¢ ao espaco pict6rico da arte moderna. Neste sentido, cria uma linha de associagGes que ainda hoje in- duz.as pessoas a qualificar de expressionista qualquer distorca0, exagero ou despropor- Géo manifestas na tela do cinema. Igualmen- te, outros filmes expressionistas, com seu caracteristico jogo de sombras, criam uma tradicgao que associa ao expressionismo 0 es- tilo forografico marcado pela nao definisio da toralidade do quadro, num forte contras- eis e zonas de trevas. O te entre zonas vi: que 0 expressionismo nao associou a si - isto sem diivida estd manifesto em alguns fil- mes desta tendéncia — é a nao obediéncia 3 regras de continuidade e aos padrdes de coe- réncia espacial proprios & decupagem cléssi- ca, jé amadurecida o suficiente naquele mo- mento para que a decupagem de Caligariseja encarada como ruptura. ‘Trabalhando contra a superficie clara, a decupagem clara, contra 0 gesto natural ¢ o drama inteligivel segundo leis naturais, a obra expressionista privilegia 0 comporta- mento obscuro, de seres humanos que se deslocam estranhamente num espaco cheio de dobras e, desta forma, instaura um espa- g0 dramético regulade por forcas distintas. Contra a textura de um mundo continuo e claro, o olhar expressionista quer libertar-se da priso dos estimulos imediatos, abrindo brechas nesta textuta do mundo e procuran- do recuperar uma nogio de experiéncia onde 0s sentidos voltam a ser a “ponte entre o in- compreensivel ¢ 0 compreensivel”, tal como odizo pintor August Macke. O jogo de som- 102 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO bras ¢ as distorcGes sistemacicas, tendentes a agugar as caracteristicas basicas da forma, procuram constituir uma experiéncia sens vel modelada segundo estruturas primordiais da “alma humana’ ~ 0 projeto € reintrodu- zit no nosso cotidiano a “sensagio do cos- mos’. Um objeto nao € apenas um objeto, ha sempre um além por tras da sua presenca imediata: “mesmo a matéria morta ¢ espiri- to vivo” (Kandinski). ‘Ao quebrar a continuidade do espago, 20 instituir suas dobras ¢ suas sombras, 0 drama expressionista quer reintroduzir as marcas do invisivel, desmascarar 0 mundo visfvel. A sombra provoca o desnudamento ¢ € poderosa justamente porque constitui a presenga mais nitida da forma pura sem as diluig6es que a textuta material impée. Nela, temos a esséncia sem os acidentes da super- ficie. “A forma é a expressao exterior de um. contetido interior” (Kandinski, Der blaue reiter almanac, 1912). Na perspectiva expres- sionista, tal contetido ganha definigio atra- vés da nogdo de incompreensivel ¢ através da idéia de percepgao direta do segredo das coisas: “idéias incompreensiveis se expressam em formas compreensiveis” € a “forma é um mistétio para nés porque é a expresso de misteriosos poderes. Somente através dela és percebemos os poderes secretos, o Deus invisivel (August Macke, “Masks”, Der blaue reiter almanac, 1912). A idéia de uma esséncia encarnada ¢ a pritica de um idealismo platénico surgem como resposta 2 mentalidade positivisea sin- tonizada com o progresso recnolégico ¢ ma- terial. Encontramos no contexto expressio- nista uma postura dramarica de revolta, de chamado a recuperacéo de uma esséncia hu- mana supostamente perdida, numa atitude que se julga anunciadora de uma nova era de espiritualidade: “uma grande era se inicia, 0 acordar espiritual, a tendéncia crescente de recuperagio do ‘equilibrio perdido’, a neces- sidade inevitavel do cultivo espiritual, o de- sabrochar do primeiro lirio. Estamos no miar de uma das maiores épocas que a hu: manidade jamais experimentou, a época de uma grande espiritualidade. No século x1x, apenas acabado, quando parecia haver 0 com- pleto florescimento — a grande vit6ria ~ do i- material, os primeiros elementos ‘novos’ de uma atmosfera espiritual formaram-se pra- jes forneceram € ticamente despercebidos, vao fornecer 0 alimento necessério para ao florescimento do espirito” (Editorial escrito por Kandinski ¢ Franz Mare para o Der blaue reiter almanac) Em tal apostolado, o essencial ¢ a rela: géo “alma a alma”, a possibilidade de atra- vessar a superficie material e atingir a comu- nicagao direta das forgas espirituais dentro de cada um de nés. A arte, como lugar privi- legiado da construcio de formas ¢ da intui- gio reveladora, afirma-se como a experién- cia fundamental: o lugar da expresso nua da interioridade e da comunhio através do extase, Quanto ao cinema, como sucessor ime- diato do teatro de sombras, ele € 0 veiculo . Eo expressionismo vai abor- por exceléne dé-lo como o lugar do nao-discurso, como um além da linguagem. O olhar expressio- nista aponta a cimera para as formas essen- ciais capazes de revelar a “alma humana”, as forcas do coragio (como no filme Metrépolis, A VANGUARDA 103 realizado por Fritz Lang em 1926) e 0 Deus invisivel. Ancorado na idéia de expresso como encarnagio direta do espirito na ma- téria, tal cinema nao discursa, nem sequer forografa o real; ele tem “vis6es”. B. O CINEMA POETICO E O CINEMA PURO) ‘Ao lidar com a supervalorizacao da sualidade em seu poder revelatério ¢ em sua capacidade de superar as convencées da lin- guagem verbal, a vanguarda francesa cami- nha numa direcao bastante distinta do cine- ma de sombras. Na sua perspectiva, a expres- sao do essencial ¢ a emergéncia do poético ocorrem num espaco de clareza, no proprio seio da “objetividade” da reprodugao foto- grafica. Tal “objetividade”, sera celebrada, sendo assumida como a alavanca fundamen- tal para o cinema no scu caminho rumo a supera¢ao da narrativa realista € rumo A su- premacia de sua dimensao poética. Na sua luta contra o discurso, contra 0 que é assumido como linguagem convencio- nal, a vanguarda privilegia a imagem cine: matogrifica naquilo que ela tem de “visio direta’, sem mediagdes, ¢ naquilo que cla tem de especial frente a visio natural. Para Ca- nudo ¢ Delluc, além de ser a expresso nao discursiva de algo ~ a idéia € de que o cine- ma no fala das coisas, mas as mostra (como. em Bazin ¢ Mitry) — a imagem do cinema é dotada de um poder de transformagio que desnuda 0 objeto ou 0 rosto focalizado (no claro, a diferenga da postura expressionista). Aqui, configura-se uma antecipagio de Ba- zin, mas a crenga no poder revelatério no se combina com a defesa de um cinema nar- rativo centrado em torno da figura humana cinema da vanguarda purista (nao incluo aqui o surrealismo ¢ 0 dadaismo) quer justa- mente quebrar as hierarquias de tal realis- mo, € sua maior aspiragao € dissolver 0 ho- mem e o social dentro de um universo ho- mogénco, onde a tinica ordem ¢ tinica inte- ligéncia possivel se define no nivel da nacu- reza, Nao aquela do naturalismo burgués ou aquela que a razio explica, mas aquela nacu- reza “sdbia” dotada de subjetividade e de finalismo, cuja apreensao sé pode ocorrer como um ato de intuigo para 0 qual con- corre fundamentalmente a sensibilidade. ‘Nesta perspectiva, 0 cinema é também pon- to culminante de uma liturgia — a verdade que ele revela ¢ “indizivel” ¢ origina-se nas virtudes da propria imagem luminosa. Nao € fruto de um trabalho discursivo, da articu- ago de elementos ou da construcao de um espago que cria um lugar para as coisas. resultado apenas da presenga bruta de cada elemento, respeitado em seu desenvolvimen- to continuo, dentro de um ritmo que lhe é caracteristico. O importante € cada imagem singular e seu poder gerador de uma nova experiéncia do mundo visivel. O cinema ¢ instrumento de um novo Iitismo e sua linguagem € poética justamen- te porque ele faz parte da natureza. © pro- cesso de obtengao da imagem corresponde a um proceso natural — é 0 olho 0 “cérebro” da camera que nos fornecem a nova ¢ mais perfeita imagem das coisas. O. nosso papel, como espectadores, é elevar nossa sensibil dade de modo a superar a “leitura conven- cional” da imagem e conseguir ver, para além do evento imediato focalizado, a imensa 104 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO orquestragao do organismo natural e a ex- pressao do “estado de alma” que se afirmam na prodigiosa relagio cimera-objeto. Tal leitura convencional estaria intima- nos mente ligada aos condicionamentos qui sa “razao estreita” impde, na medida em que promove uma relagao com o visivel marcada por objetivos de ordem pratica e nao respei- ta aquilo que de mais profundo existe nas coisas, Uma relacao sensorial mais integral com 0 mundo ¢ a apreensao de sua “poesia” cornar-se-ia possivel gragas 2 nova arte € sett poder de purificacao do olhar. Ao celebrar fundamentalmente a rela- 40 cimera/objero, tal liturgia do “olhar pu- rificado” deve instalar-se na brecha criada pela desintegracao do espago dramético e narrati- vo. Pata que a verdade da Natureza e do “ser natural” que existe dentro de nds se revele, & preciso dissolver as concatenagées narrativas as rensoes elaboradas dentro de convengdes proprias ao teatro. Ou seja, para que a “obje- tividade” da imagem seja compativel com 0 “cinema poético” é preciso que ela se organi. ze de modo a explorar as “revelagées” vindas de cada relagio cimera/objeto. E preciso abrir guerra contra 0 encadeamento dos eventos a partir de seus efeitos priticos, pois a narragao 0s explora em sua “exterioridade” ¢ no em sua “interioridade”. O que de mimético existe na reprodu- Gio cinematografica fica accito e redimido hha medida em que a mimese proposta no se esgote na “exterioridade dos fatos” ¢ seja ca: paz de atingir a “profundidade” do enfoque postico (expresso de um estado de alma) contra a “superficialidade” das concatenagoes légicas. Dentro de tal perspectiva, a discussio sobre os critérios de decupagem/montagem tende a se concentrar no problema do rit- mo. As questoes relacionadas com a cons- truigo de um espaco coerente perdem rele- vancia eas reflexdes dos teéricos se dirigem para o clogio as virtudes plisticas de cada camera-objeto particular. O pri to plano atrai para si as maiores especula- goes, dada a sua associagao com tragos como detalhe revelador, intimidade, movimento secteto, visualizacao do invisivel. A monta- gem s6 recebe especial atencao no pensamen- to de Moussinac, cujo cinema pottico estar baseado na nogdo de ritmo em seu modelo musical, um ritmo formalizado e produzido em fungao de relagdes quantificdveis. O re- ferencial musical sera assumido de maneira mais radical por cineastas e estetas como Germaine Dulac, Viking Eggeling ou Hans Richter. Nao surpreende que sua estética te nha como ponto de chegada a realizacao do “cinema puro”. Este, correlato ao abstracio- nismo pictérico (também referenciado ao modelo musical em sua teoria) vai mais lon- ge na desintegragao do referencial realista Nao s6 proclama a dissolugio da narrativa ou a eliminagao do espago dramatico; exige a supressio de qualquer vestigio mimético, de qualquer referéncia a um espago-tempo natural exterior ao filme, ¢ toma como tni- ca realidade a din&mica da luz ¢ os seus efei: tos geométricos ¢ ritmicos na superficie da tela. Dentro destes principios, Richter, Eggeling ¢ Dulac realizam, nos anos 1920, alguns de seus filmes, buscando procedimen- tos destinados a reduzir a experiencia cine- matogréfica a seus elementos mais puros. rela nei- A. VANGUARDA Neste caso, perde o sentido 0 uso de expresses como decupagem, uma vez que a montagem de linhas, figuras geométricas ou 0s jogos de luz e sombras, nao se produz atra- vés da filmagem de “cenas” divididas em pla- nos, mas através da filmagem “quadro a qua- dro”, onde cada fotografia corresponde ao registro de uma imagem pictérica ¢ abstrata. A técnica utilizada nas experiéncias do cine- ma puro &a mesma que encontramos na rea- lizagao dos desenhos animados, com a dife- renca de que o cartoon de maior divulgagio comercial corresponde & constituigao de um espaco narrativo ¢ antropomérfico (lembre- mos Walt Disney). No cinema puro, temos uma seqiiéncia de imagens nao figurativas. No caso do cinema de Richter, caleula- das variagGes em torno da figura retangular (retngulos brancos em tela preta ou vice- versa) constituem a matéria para um estudo da relagéo superficie/profundidade: a redu- a0 do cinema e seus elementos mais puros —0 branco € © preto ~ € vista como 0 cami- nho certo para a andlise do filme como obje- to em si mesmo, como algo dorado de quali- dades préprias, como luz projetada numa superficie ¢ nada mais. Dentro desea estéti- ca, trata-se de investigar o funcionamento da petcepcio, as modalidades de resposta do espectador diante de um estimulo que esté aquém da “representagao”, aquém da presen- ga de objetos reconheciveis mergulhados num espaco tridimensional — 0 espago s0- cial de seres humanos ¢ objetos. Se este espa 0 pode ser projetado na tela gracas & ilusdo criada pelas leis da perspectiva inscricas no proprio aparelho (lentes forograficas), 0 ci- neasta abstrato busca a recusa deste ilusio- 105 nismo ¢, ao mesmo tempo, encaminha sua pesquisa para o nivel sensorial. Ele quer for necer um estimulo que produza no especta- dor uma reagao capaz de ensinar a este como cle percebe e capaz de o fazer entender 0 que 0 “cinema em esséncia”, como objeto, an- tes que as luzes projetadas na superficie da tela sejam organizadas pelo projeto ilusionista do cinema de ficsio. Tais luzes serio organizadas segundo projetos pictéricos marcados por diferentes orientagdes, conforme o cineasta em ques- tao, tendo as varias perspectivas, como traco, comum, a valorizagio das caracteristicas plis- ticas da imagem e as propriedades fisicas do objeto-cinema. Varias formas de cinema de animaca dro a quadro” de imagens e desenhos pinta- dos pelo cineasta-artista plistico, articulam- se com diferentes propostas jé presentes no nivel da pinura (desde o abstracionismo geo- métrico até um simbolismo recuperador das mais diferentes mitologias ocidentais e orien- tais). Um cinema muito especifico emerge. Como diz Robert Breer, figura basica no atual cinema grifico americano, aquele cinema que se define por uma “evolugao das formas de- rivadas da pintura do autor”. Como outros praticantes do cinema grafico (Harry Smith. Len Lye, Jordan Belson), Robert Breer é um homem que vem de um trabalho original em (0, caractetizadas pela filmagem “qua- pintura, prolongando suas pesquisas dentro de um contexto filmico, 0 que implica em lidar com a movimentagio das configuragoes visiveis ¢ com o estabelecimento de uma duragio definida para cada imagem em par- ticular, propondo um tipo de leitura ao e: pectador, 106 (© DISCURSO CINFMATOGRAFIC A tendéncia a considerar o filme-obje- to chega a uma formulagio mais radical no momento em que, nos anos 1950 ¢ 1960, Peter Kubelka, Gregory Markopoulos ¢ 0 préprio Breer passam a trabalhar com o fo- tograma (cada uma das forografias que com- poem a pelicula cinematografica) como uni- dade basica da experiéncia visual da plaréia, Dar privilégio a cada fotograma como fonte de uma configuracao diferente das outras, € atacar 0 principio, num determinado mo- mento considerado cientifico, de que o es- pectador ¢ incapaz de perceber, como uni- dades separadas, cada um dos fotogramas. Pois bem, é justamente este principio que vai constituir um dos alvos da vanguarda americana, de Markopoulos a Brakhage, pas- sando por Breer, Kubelka e outros. Contra a tradicao, eles vao defender a tese de que € possivel enxergar cada forograma c, portan- to, o cineasta deve concentrar sua mensagem, carregando cada 1/24 de segundo com uma nova configuragio, como se a seqiiéncia de fotogramas fosse uma série de hieroglifos a serem decifrados. Markopoulos vai inserir esta idéia do cinema de single-frame (foto gtama individualizado) dentro de um proje- to de cinema narrativo: 0 género mito-poé- tico, Brakhage vai inserir tal ataque (a0 que cle considera um “preconceito” do mundo cientifico) dentro do seu projeto global de ataque as limitagdes que a cultura — como conjunto de convengées que condiciona a percepgao — impde ao nosso olhar; € vai montar seus filmes sem preocupar-se com 0 velho problema do “limiar da percepgio”. Breer vai trabalhar mais sistematicamente com 05 efeitos da ripida sucessio de cores com a introdugio da série descontinua de fotogramas como estratégia de ataque ao ilu- sionismo ou, mais precisamente, como ten- tativa de revelagao, para o espectador, daquilo que est por trds do ilusionismo do cinema janela. O modelo musical reaparece, reviven- do os ideais de Dulac, mas agora dentro de uma nogao mais matematica. Os fotogramas isolados, como notas, constituiriam as uni- dades bisicas de uma construgao rfemica apta a produzir experiéncias sensoriais de mesmo nivel que a experiéncia auditiva fornecida pela musica. O modelo chega a sua formula- 40 mais radical em Kubelka, que propde e executa filmes curtos extremamente clabo- rados no nivel da relagao matematica entre fotogramas ¢ extremamente voltados para a nao figuragio, para a apresentagio de um objeto dado & percepgio como algo indepen- dente e fechado em si mesmo. Com Kubelka, © cinema puro afirma-se como sucessio ma- temética de luz (tela branca) obscuridade (tela totalmente preta), numa produgio que realiza o velho sonho do cinema com “parti- tura”, Se as cépias de Arnulf Rainer (1960) de Kubelka se perderem, qualquer pessoa poderd refazer o filme, uma vez que cle apre- senta apenas luz pura e auséncia de luz, al- ternadas segundo certas relages numéricas. O flickering cinema (tela piscando segundo certas leis mateméticas) inicia sua carreira ¢ vai constituir tema de especulacao de Conrad € outros, preocupados com as modalidades da experiéncia sensorial. ‘A matematizagio © 0 modelo musical ligam-se 4 critica & continuidade ¢ Kubelka chega a inverter as tradicionais definigdes do cinema: “O cinema nao ¢ movimento. O ci: A VANGUARDA 107 nema é a projegio de foros (stills) — ou seja, imagens que nao se movem — num ritmo acelerado” (Kubelka, entrevista a Jonas Me- kas, in New forms in films, p.80). Dentro desta definigao, a articulagao basica de um filme se dé no intervalo entre dois fotogra- mas: “Onde esta entao a articulagao do cine- ma? Eisenstein, por exemplo, disse: € a coli sao entre dois planos. Mas ¢ estranho que ninguém nunca tenha dito que nao é entre dois planos mas entre dois fotogramas. entre os forogramas que o cinema fala” (idem, p-80). Na afirmagéo do filme como objeto dotado de uma textura prépria, é a técnica de base ¢ sao 0s cuidados essenciais aos olhos dos inventores do cinema, que recebem 0 ataque do cineasta. Dentro do projeto histé- rico que geta 0 mecanismo reprodutor do movimento (0 cinematégrafo de Edison ¢ Lumiére), a ilusao de continuidade ¢ um horizonte essencial — condigao para a simi- laridade entre a tela de cinema ¢ 0 mundo. Neste caso, a recuperagio da descontinuida- de, daquela descontinuidade que realmente acontece na projegio do filme, significa tra- er para o nivel da percepgio a presenga ime- diata da pelicula cinematogréfica como ob- jeto, com suas propriedades fisicas (série de forografias dispostas de um certo modo). O pedaco de celuldide prevalece sobre a idéia de imagem representativa — nao ha aqui ne- nhuma auséncia (objetos, mundo) que este- ja sendo visada pela presenca da imagem for- necida. Nao somos remetidos a nada que nao seja 0 objeto (filme) que se mostra, Ele € 0 discurso que fala apenas de si mesmo. Cada filme é uma auto-definigao. Para Jonas Mekas, este cinema, como arte, atinge seus niveis mais altos “em dire- € ao a uma iluminagao estética mais sutil menos racional”, E, neste movimento, equi- para-se is outras artes em suas tendéncias mais modernas. Se lhe dissermos que ha muita abs- tragao no encaminhamento desta forma par- ticular de negar o projeto ilusionista, Mekas nos responde negativamente. Num desvio empirista para um homem devotado ao ci- nema visiondrio e poético ~ ou melhor, numa demonstragéo do quanto hé de comum en- tre empirismo e poesia visionétia — ele assu- me que nada é mais concreco do que a pre- senca imediata do objeto c as sensagaes dele derivadas; “O cinema, mesmo aquele mais ideal e mais abstrato, permanece em sua ¢s- séncia concreto; permanece a arte do movi- mento, luz ¢ cor. Quando deixamos os pre- conceitos ¢os pré-condicionamentos de lado, nos abrimos para a concretude da experién- cia puramente visual e cinestética, para o “rea: lismo” da luz e do movimento, para a pura experiencia do olho, para a matéria do cine- ma. “Assim como o pintor teve que se cornar consciente da matéria da pincura ~ a tinta ou10 escultor, igualmente, da pedra, madeira ou marmore; assim também, para chegar 2 sua maturidade, a arte do cinema teve que assumir a consciéncia de sua matéria ~ luz, movimento, celuldide, tela” (Mekas, Movie journal, p.219). C. © ADVENTO DO OBJETO E A INTELIGEN- CIA DA MAQUINA Hans Richter, nos anos 1920, fora pega fundamental na inauguragio do cinema puro 108 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ou abstrato. Depois da Segunda Guerra, quando o palco principal do “cinema posti co” transfere-se para os Estados Unidos, cle vai reintroduzir no seu cinema a presenga dos “objetos externos”. Nesta sua nova fase, res- peitada a figuragao das coisas ¢ aceita a pre- senca dos objetos na tela, a ruptura com 0 mundo natural faz-se através do deslocamen- to e da integracao destes objctos numa nova ordem constituida de valores plésticos-ritmi- cos. O objeto cotidiano, o fragmento da miquina, a imagem familiar, sao destacados dos seus contextos ¢ convidados a participar numa combinagao de outra natureza, nao pela sua funcionalidade, mas pelas suas qua- lidades plasticas. Ou seja, sua presenga na tela € organizada de modo a tomar sua for- ma e textura um puro esperdculo. Ballet mécanique (1924), de Fernand Léger, cons- Gitui o modelo de tal “orquestragao de ritmo ¢ forma” onde o brilho de determinadas su- perficies, iluminadas de diferentes formas ¢ combinadas em diferentes séries, fornece 0 material para um “novo realismo” (na expres- sao de Léger). O artista francés fala nas no- vas condigGes de percepgao que caracterizam a vida urbana na sociedade industrial e quer produzir um cinema apto a fornecer uma experiéncia compativel com a nossa nova relagao com os objetos ¢ com as maquinas. Através de suas imagens, trara-se de explorar as possibilidades plisticas do objeto cotidia- no, liberto de nossa visio utilitéria, que o aprisiona ao Ihe definir certas fungdes. Em Léger, trata-se basicamente de operar com a imaginagao, romper com a narragio e 0 dra- ma teatral — celebrar 0 “advento do objeto” ¢ fazer do cinema uma arte exclusivamente plastica, de montagem, propriaa fornecer em sua mais sofisticada versio aquilo que, em certa medida, jd é fornecido pelo espeticulo das ruas, pelas técnicas de decoracio de vi- trines ¢ por toda esta transformacao ambicn- ral que, sem duivida, tem suas influéncias decisivas na sensibilidade do homem. Em relagdo & interagéo homem/ambiente, Eps tein terd uma formulagao mais incisiva ¢ mais aristocratica, falando da “nova inteligéncia que seria prépria aos cultores da vida mo- derna, No esquema de Epstein, 0 cinema ocuparia um lugar privilegiado na modela- gem desta nova inteligéncia: “E impensavel que um tal instrumento nao venha a ter in- fluéncia sobre 0 pensamento. As maquinas que o homem inventa tém sua inteligéncia & qual recorre a inteligéncia humana” (Ecrits de Jean Epstein, p.244) Um misto de temas futuristas e técni: cas cubistas inspira as formulagdes de Léger ¢ Epstein, com diferencas. Do manifesto pela cinematografia futurista de 1916, reaparece aidéia de celebragio da maquina e do objeto manufaturado, e a dissoluggo do homem numa ordem mecanica, com a transforma- gao da arte num discurso das coisas. A mo- dernidade ensinaria a retirar 0 homem do centro do mundo ¢ a deslocar 0 palco dos grandes dramas. Ao celebrar o advento da maquina e do objeto industrial, Léger nao assume as im- plicacées ideolégicas contidas no programa futurista. A nogio de que fazer cinema e manipular imagens e explorar possibilidades contidas num certo material ¢ assumida den: tro de uma racionalidade diferente. A seu modo, ele dissolve a hierarquia humanista € A VANGUARDA 109 © primado da consciéncia, transformando 0 objeto no centro do discurso. Em tal des- jivo é a desinte- centramento, 0 passo deci gracao do espaco social, refletida no estilo da decupagem. O primeiro plano, maior in- vengao do cinema segundo toda a vanguar- da francesa, assume literalmente a fungao de produzir uma nova percepgao ¢ a idéia de enquadramentro como um “retirar do con- texto” é levada as suas tltimas conseqiién- cias, A nogio de “novo realismo”, de con- cretude, liga-se & proposta de celebrar, pela plastica, a presenca de cada objeto, de cada pedaco do mundo material dado em espeté culo para os olhos. Indo além das preocupagoes mais eco- logicas de Léger, Jean Epstein penetra num terreno ontoldgico ¢ fala de “personalidade”, de “vida prépria” contida em cada fragmen- to isolado pelo quadro cinematografico. Ao lado do poder de revelacao psicolégica fren- te a um rosto, 0 cinema para Epstein tem um poder animico frente aos objetos ¢ aos elementos naturais, A diferenga da nogao de concreto que preside o espeticulo naturalis- ta ~ preso a nogio de fato & cadeia de acon- tecimentos vinculados por uma relagio de causalidade — a concretude de Léger e Eps- tein pressupde a descontinuidade, 0 nao en- cadcamento de fatos, a ordenagio em série segundo critérios fora do espaco e do tempo do senso comum. “O primeiro plano fere também de outro modo a ordem familiar das aparéncias, A imagem de um olho, de uma mao, de uma boca, que ocupa toda a tela — no s6 porque aumentada em trezentas ve- zes, mas também porque vista fora da co- munidade orginica — assume um carater de autonomia animal. Este olho, estes dedos, estes labios, jd s4o seres que possuem, cada um, suas préprias fronteiras, seus movimen- tos, sua vida, sua finalidade préprias. Eles existem em si” (Ecrits, de Jean Epstein, p.256, texto escrito em 1946). Abrindo guerra contra a percepcio que prevalece na vida cotidiana dos homens, Epstein vai construir o referencial mais sis- tematico na tentativa de justificar a imagi- nagio poética em sua oposi¢io ao cinema dominante ¢ na tentativa de demonstrar a profunda afinidade entre as estruturas do fil- me como objeto e as novas revelagies da fisi- ca moderna, Como Kracauer, ele parte de uma interpretacao particular dos dados da ciéncia e, como Kracauer, formula uma pro- posta que atribui 2 nova arte uma funcio decisiva na cultura moderna. No entanto, sua interpretagdo, desde os anos 1920, sempre caminhou em diregao oposta & do teérico alemao. Para o poeta, cineasta e teérico fran. cés, o cinema € 0 lugar de um aprendizado especifico; ele éa via de acesso para uma nova € mais verdadeira percepgao do espaco-tem- po em que estamos inseridos. “Se, hoje, qual- quer homem medianamente culto consegue representar 0 universo como uma continui- dade com quatro dimensdes, em que todos os acidentes materiais resultam da articula- ao de quatro varidveis espago-temporais: se esta figura mais rica, mais dinamica, mais verdadeira talvez, substituiu pouco a pouco a imagem tridimensional do mundo, assim como esta substituiu primitivas esquemati- rages planas da terra e do céu; sea unidade indivisivel dos quatro fatores do espaco-rem- po esté paulatinamente se tornando tio evi- 110 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO dente como a inseparabilidade das tres di- mensacs do espago puro, isto se deve muito a0 cinematégrafo, a ele se deve esta ampla penctracao da teoria 4 qual Einstein e Minko- wski, principalmente, ligaram seu nome” (idem, p.284, 1944), De que modo pode o cinema desem- penhar tal fungdo? Primeito, porque na sala de espeticulos estamos em todo lugar ¢ em parte nenhuma; somos dotados de uma ubi- gitidade que transforma nossa visto do mun- do. Ao ser-no-mundo de Merleau Ponty ¢ ao homem “em situagao” do existencialismo, Epstein opie o ser-em-toda-parte ¢o homem, imagindrio, o mesmo que a antropologia de Edgar Morin vai discutir nos anos 1950. Em segundo lugar, porque, acima de tudo, o « nema € © reinado da descontinuidade. No proprio processo de registro, tal descontinui- dade esté impressa ¢, por sua vez, a monta~ gem cria um universo fragmentado, cuja con- tinuidade, mesmo no mais simples filme narrativo, é produto de uma sintese da nossa consciéncia. Portanto, nos dois niveis, o que © cinema demonstra ¢ a convencionalidade deste mundo integrado ¢ “sem vazios” que julgamos habitar. O espago-tempo de Ep: tein é cheio de curvas ¢ a temporalidade se desenvolve segundo diferentes trajetos locais; © presente, cada instante, ndo é senio o lu- gar de uma concorréncia (celebrada no cine- ma pela montagem ou pela superposicao de imagens). A identidade do objeto ou da pes- soa que vemos na tela ¢ relativa; vemos sem- pre particularidades. A experiéncia cinema- togrifica mostra que a unidade do espago ¢ uma ficgdo em nossa cabega. E o principio de causalidade deixa de nos aparecer como algo inerente & natureza. O cinema é uma reeducagio pelo absurdo. Principalmente quando o cineasta sabe organizar 0 material de modo a produzir uma ficcio magica ca- paz de deflagrar a experiéncia reveladora. Para tal, cle deve seguir a “inteligéncia do préprio cinema’, desta maquina de sonhos, que nos demonstra a relatividade de tudo ¢ a equiva lencia das varias formas possiveis. (© procedimento fundamental capaz de coroar 0 proceso de revelagio, promovido pela inteligencia da cémera, ¢ a alteragao de velocidades permitida pela projegio cinema- togrifica. E af que se cristaliza a relatividade da nogao de tempo. Em camera lenta, so: mos capazes de acompanhar os minimos movimentos que compéem uma expressio facial que carrega uma emogao, ou somos capazes de estudar os movimentos de ani- mais ¢a evolugio de processos naturais. Atra- do registro descontinuo ¢ lento do cres- cimento de uma planta ou do deslocamento de um acidente natural, obremos uma séric de fotografias que, projetadas em 24 quadros por segundo, nos revelam a vida ali concen: trada em seus ritmos caracteristicos fora do nosso alcance na percepg4o comum, Na con- cepsao de Epstein, no cinema, manipulamos 6 tempo, invertemos a diregio dos processos ¢ violamos a segunda lei da termodinamica. Tudo isto demonstraria como a oposi- 40 animado/inanimado € arbitréria e pro- duto dos limites do nosso senso comum, e como a fixidez da qualidade das coisas é re- lativa, a0 mesmo tempo, deixaria claro todo © aprendizado que nos espera na necessiria revisio de nossos referenciais. Se o universo se mostra em sua descontinuidade ¢ se 0 tem- ve A VANGUARDA ut po se multiplica e se inverte, para Epstein, € a prépria nogio de real que se esfumaca, pelo menos aquela nogio que teriamos herdado através de longa trajetéria da cultura ociden- tal. O que nao o impede de se apoiar em elementos particulares desta tradigao para coroar sua visio de mundo e seu discurso sobre o olho “surreal” do cinema. Em seu interesse pela teoria da relatividade e em sua dissolugio das especificidades do mundo social e humano, Epstein apdia terpretagio muito particular dos novos re- sultados da ciéncia, basicamente encami- nhando-se para a fundamentagio de uma sé numa in- nova religiao a partir dos elementos aqui enumerados. O discurso cinematogréfico — poético, livre, ancorado numa nova inteli- géncia inscrita na propria maquina que ele utiliza — € © ponto culminante de uma liturgia: aquela que define um certo panteis- mo moderno. Epstein nao apenas nos diz: “Nao sobra senio um reino: a vida’. Mas procura nos especificar os fundamentos de te mundo desdiferenciado: “Nao 6 a vida estd em toda parte, mas também o instinto ¢ a inteligéncia ea alma” (idem, p. 389). E conclui: “A vida é uma esséncia universal, manifestagao primordial da existéncia div na, Jé que a mesma vida move todas as ap: réncias, o mesmo Deus, tinico ¢ uno, consti- tui o principio imanente de todas as coisas” (idem, p.390) Este pantefsmo, associado ao culto da inteligéncia e extrema atengao pelos aspe tos quantitativos dos dados sensiveis, cami- nha em diregao & definigio de uma certa or dem oculta dirigida pelos nimeros ~ a filo- sofia de Epstein afirma-se como um neopi- tagorismo. Anticartesiano, ele defende o pri mado da imaginagao, basicamente como for- ma de experimentar, pela montagem e pelos enquadramentos cinematogtaficos, as varias ficgdes possiveis, as varias ordens que def riam realidades imaginatias, entre as quais a do “senso comum”. O “cinema do diabo” de Epstein € he- rético ¢ alquimista. Na sua batalha contra 0 naturalismo ¢ 0 cinema narrativo, a sua ima- gem é uma transubstanciagao do real ¢ seu discurso podtico € uma reivindicacio pelos direitos e pela legitimidade de uma visio magica do mundo. D. © MODELO ONIRICO da década de 1950, Bunuel , 0 elemento essencial de No ini escreve: “O mistér qualquer obra de arte, esta em geral ausente dos filmes. Autores, diterores ¢ producores, com sacrificio, conservam nossa paz, deixar do hermeticamente fechada a janela que leva ao mundo liberador da poesia. Preferem fa- vet a tela refletir temas que poderiam inte- grar a continuidade normal de nossa vida cotidiana, tepetir mil vezes o mesmo drama ou fazer-nos esquecer as duras horas do tra- balho didtio. E tudo isso € naturalmence san- cionado pela moralidade habitual, governo, censura internacional ¢ religido, dominados pelo bom-gosto e enlevados pelo humor in- sipido ¢ outros imperativos prosaicos da rea- lidade” (Conferéncia “Cinema: instrumen- to de poesia”, 1953, publicada no livro Luiz Butiuel de Francisco Aranda) No mesmo texto, ele cita suas conver- sas com Zavattini, figura basica do “cinema 112 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO prosaico” que ele mais respeita — 0 cinema neo-tealista. Nesta conversa, Bufiuel explica diferenga basica entre 0 cinema que ele quer, um cinema poético e aberto para o fantisti- co, € 0 olhar neo-tealista: “Como jantava- mos juntos, 0 primeiro exemplo que se ofe- receu a mim foi o do copo de vinho. Para um neo-realista, eu disse a ele, um copo é um copo ¢ nada mais; vocé o vé retirado da prateleira, cheio com liquido, levado & cozi- nha onde a empregada o lava ¢ as vezes 0 quebra, 0 que resulta no seu retorno ou nao etc. Mas, este mesmo copo, observado por seres diferentes, pode ser mil coisas diferen- tes, porque cada um carrega de aféto 0 que vé; ninguém vé as coisas como elas sdo, mas como seus desejos ¢ seu estado de espirito 0 fazem ver. Eu luto por um cinema que me mostre este tipo de copo, porque este cine- ma vai me dar uma visio integral da realida- de, vai alargar meu conhecimento das coisas e das pessoas, vai me abrir 0 maravilhoso mundo do desconhecido, de tudo aquilo que eu nao encontro nes jornais nem na rua” (mesma conferéncia). Quando ele nos fala de uma visto inte- gral da realidade, Bufuel esté levando em conta o principio bésico formulado por Breton desde o primeiro manifesto surrealis- ta: a uansmutagio dos dois estados aparente~ mente contraditérios, sonho ¢ realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade. E ¢ 0 proprio Bufuel quem cita Breton, na sua sintética formula, propondo a dissolucao da diferenca entre o real eo fantas- tico propria ao senso comum: “O que é mais admirdvel no fantastico é que cle nao existe, tudo é real” (Breton citado por Bufuel). Em 1924, no mesmo ano em que Fran~ cis Picabia e René Clair realizavam Entriacte, filme que introduz no cinema os dispositivos de choque ¢ os ataques as convengaes da boa arte préprios a0 comportamento dadaista, Breton langava o primeiro manifesto surrea- lista. Se quisermos nele encontrar alguma referéncia explicita ao cinema, encontramos apenas uma tinica frase: “O cinema? Viva as salas escuras!”. E, evidentemente, uma série de propostas cuja formulagio dirigida ao tra- balho poético em literatura praticamente solicita um transplante para o terreno cine- matogrifico. Isto, em termos de critica, seri feito por Robert Desnos, 0 poeta surrealisca que durante toda a década de 1920 batalhou por um cinema apto a projetar na tela o “maravilhoso surrealista”. Como Buel trin- taanos depois, Denos, em sua coluna critica, constata uma auséncia: a do cinema livre, poético e maravilhoso, E o filme dadaista de René Clair ¢ 0 nico que satisfaz a sensibili- dade surrealista. O que muito se deve a certas afinidades de espirito e de atitude entre esses dois movimentos: aagressao ao senso comum, 0 cultivo do humor aliado & ironia frente as convengoes burguesas ¢ as regras estéticas vigentes; em alguns aspectos, 0 surtealismo, que “oficialmente” inaugura-se em 1924, é um desdobramento, numa direcéo espect ca do Dadaismo de 1916-1920 ~ mais cen- tralizado ¢ mais canalizado para o cultivo de um método do que o anticonformismo anar- quista ¢ a autofagia dos movimentos Dada. Posto de lado Entr‘acte, Desnos s6 vé no cinema a distancia entre as possibilidades posticas ¢ a pobreza da pritica dominante, a mesma pobreza que revolta Bufiuel nos anos A VANGUARDA 3 1950. Desnos nao se envolve nas contendas que partem da dicotomia entre cinema nar- rativo-comercial ¢ cinema poético de va guarda. Diante da tendéncia naturalista do cinema griffid Epstein esta longe de constituir uma alrer- nativa, Contra 0 esteticismo da vanguarda, Desnos propée o cinema autenticamente liberador, segundo os principios surrealiscas: um cinema de sonho, de aventura, de misté- rio ¢ de milagres; um cinema que, como Bufiuel o exige, incorpore a sua imagem a dimensio do desejo, sem repressoes. O fundamental para o surrealismo € 0 rompimento de um citculo: 0 do desejo su- blimado e inscrito nas convengées culturais c estéticas de um cinema que cultua a suges Go, que usa a montagem como construgio de um espaco verossimil ¢ 0 corte como re- pressao da imagem proibida. O cineasta sur- realista quer atingir 0 maravilhoso, ¢, para tal, precisa hutar contra o cinema que cele- bra a estabilidade do mundo de frustragdes cotidianas ou fornece uma experiéncia esca- pista bem comportada que nada mais faz se- no aprisionar o espectador no circulo de suas fantasias. O cincasta surrealista quer denun- ciara rede de censuras articuladas com a es- tética do cinema dominante. O filme sur- realista deve ser um ato liberador e a produ- sao de suas imagens deve obedecer a outros imperativos que nao os da verossimilhanga e os do respeito as regras da percepgdo comum: Nao bastam as transformagées no contetido das cenas filmadas ¢ a liberagao do gesto humano que compéem sua narrativa. E pre- ciso introduzir a ruptura no proprio nivel da estruturagio das imagens, no nivel da no, a vanguarda de Dulac e construcao do espago, quebrando a tranqiii- lidade do olhar submisso as regras. Em sua defesa da montagem que obe- dece aos imperatives tinicos da imaginagio, a proposta surrealista implica numa agres- sao direta 4s convengGes da decupagem clis- sica, Em vez de caminhar em direcio a uma ilusdo de continuidade, a montagem cria uma cadeia associativa de imagens que frustra as expectativas de quem espera uma narragio trivial com referéncias de espago e tempo cla ras. Os leteiros de Un chien andalou (1929) sugerem uma cronologia; as imagens negam tal informacio, cuja presenca torna-se iréni- ca. A descontinuidade e 0 non-sense insta ram-se na sucessdo de gestos ¢ cenas articu- lados em diferentes espagos. Cada plano é lugar de uma nova definigao dos elementos em jogo: um objeto que nao estava ali no plano anterior, trangiiilamente aparece no plano seguinte: um gesto que se inicia num quarto de apartamento em Paris completa~ se rigorosamente num jardim distante; 0 es- pago ¢ 0 tempo transformam-se em “ocasiio” de eventos controlados por uma instancia que se recusa a obedecer as limitagées impostas pelo “principio de realidade” (Freud) Tal como na “escrita automatica” pro- posta por Breton no manifesto de 1924, 0 principio da “associaczo livre” instala-se na confeccéo da montagem cinematogrifica. E ral como na experiéncia de Breton ¢ Philippe Soupault no plano literario, Buiuel ¢ Salva- dor Dali compéem conjuntamente o tecido de ocorréncias de Un chien andalow, fazendo questio de explicitar o critério de combina- gao das imagens: “O produtor-diretor do fil- me, Buituel, escreveu o (roteiro) em colabo- 4 O DISCURSO CI ragio com o pintor Dali. Ambos partiram do ponto de vista de uma imagem onirica, que, por sua vez, buscava outras pelo mes- mo processo, até que 0 todo tomava forma de continuidade. E de se notar que, quando uma imagem ou idéia surgia, os colaborado- res a abandonavam imediatamente se nasc! da de uma lembranga ou de seu standard cultural ow se, simplesmente, tinha associa ¢a0 consciente com qualquer idéia anterior. Aceitavam como vilidas apenas aquelas re- presentagdes que, embora os comovessem profundamente, nao tinham explicacao pos- sivel. Naturalmente, rejeitavam as limitagoes da moralidade e razao costumeiras. A moti- das imagens, eta, ou procurava ser, | Sao to misteriosas vat puramente irracional inexplicaveis para os dois colaboradores como para o espectador. NADA, no filme, SiM- BOLIZA COISA ALGUMA. O tinico método de investigacio dos simbolos seria, talvez, a psi- canilise” (Historia do cinema francés, p.57) O discurso cinematografico nao deve imitar 0 verossimil (denominador real), tal como na decupagem classica. Ele deve imi- tar a articulagao dos sonhos, a légica de uma experiéncia que é 0 “preenchimento do de- sejo” por exceléncia. Para tal, ele est melhor equipado do que qualquer outra modalida- de de instrumento a disposigao do poeta: 0 seu material (imagens visuais e sonoras) apre- senta exclusiva afinidade com o material tra- balhado pelo inconsciente (tal como enten- dido por Freud), Justamente o inconsciente que o discurso surrealista, dentro de condi- goes diferentes das do sonho propriamente dito, quet expressar. As “condigdes de repre- sentabilidade” (Freud) que governam a ex- XEMATOGRAFICO pressio do desejo no sonho tém no cinema © seu modelo mais préximo. E tal afinidade entre material cinema- togréfico e material do inconsciente é dado fundamental para Buftuel e seus companhei- 10s; € por af € nao através de fidelidades pro- saicas a um falso real que se encontra a via liberadora, 0 poder transformador do cine- ma. O escindalo para o surrealista é que a producao dominante alimenta-se em parte desta afinidade, para nao produzir senio 0 filme inofensivo e nivelado pelas limitagées da sociedade. O cinema dominante trai as suas raizes inconscientes € representa a vit6- ia da autoridade e do conformismo sobre 0 “senso de liberagao” e sobre o desejo de sub- versio da realidade, afirmados na experién- cia onirica. Nao sendo um sonho (individual e so- litario) e, em se sabendo como nao-sonho, o discurso surrealista é um ato poético de libe- ragao frente as repressdes sociais; sendo uma experiéncia social e consciente, procura imi- tar a ldgica da experiéncia onirica para ser eficaz em sua subversao, uma vez que 0 seu imagindrio excita as profundezas da psiqué, dirigindo-se ao inconsciente na sua prépria linguagem. E somente neste caso, como manifestagio da linguagem do inconsciente com as estruturas préprias aos processos mentais primérios, que Bufiuel vé a tela do cinema refletindo a “luz adequada”: “a pu- pila branca da tela de cinema, bastar-Ihe-ia refletir a luz que lhe € propria, para explodit o Universo” (mesma conferéncia). ‘A questio do real fica superada. A con- tinuidade oferecida pela decupagem clissica perde sua autoridade e fungao. A dinamica A VANGUARDA 115 do psiquismo individual segundo Freud, marcada pela dialética natureza (instinto)/ cultura (leis), projeta-se para o dominio so- cial, ¢ 0 antiautoritarismo do projeto surrea- lista afirma a supremacia do imaginério ¢ propde © cinema como a demonstragao de seus poderes liberadores. E, A IMAGEM ARQUETIPO Em Maya Deren, a negagio do cinema narrativo légico-causal e a recusa de uma montagem criadora do espaco-tempo conti- nuo convergem com certas estratégias de “disjungéo” ¢ descontinuidade préprias a0 surrealismo. Mas, clas esto inseridas dentro de uma outta perspectiva. Tomemos o filme A choreography for the camera (1945). Den- tro de um corte semelhante ao que caracteri- za certas passagens em Un chien andalou, vemos um gesto iniciado, tendo como fun- do uma paisagem, completar-se numa sala de visitas; em seguida, a figura humana que acompanhamos, prossegue em seu movimen- to, cumprindo uma légica interna, saltando de espaco a espaco, indiferente as limitagoes do tempo e aos imperativos da gravidade ter- restre. Entretanto, a distingio frente ao ges- to surrealista provém do fato de que tal ges- to de dangarino, calculado ¢ cheio de dis: plina, prevalece sobre a natureza porque cle constitui uma forma. Porque, longe de ma- nifestar uma liberagio do inconsciente, ele é produto das forgas organizadoras da cultura eda consciéncia humana. Ou scja, ele é pro- duto daquelas entidades marcadas pela ca- pacidade de constituir formas especificas nao redutiveis ao império da natureza. Para De- ren, formas que adquirem um estatuto de perenidade, formas cheias de coeréncia in- terna — como o gesto do dangarino ~ e que afirmam os poderes da criatividade humana quando impulsionada pela sua necessidade de representacéo do “cosmos”, quando im- pulsionada pela necessidade de uma visio totalizadora que organiza a existéncia nas varias modalidades de cultura manifestas Deren quer um cinema-ritual; segun- do cla, néo como experiéncia religiosa, mas como exercicio consciente ¢ controlado, Como jogo de exploracao que dé lugar para a descoberta de estruturas de consciéneia que iluminam a relacao homem/cosmos, revelan- do diferentes facetas do existente. A arte, esta perspectiva, guia-se por um modelo classico; tal como na Grécia Antiga ¢ outras civilizages, transforma-se no lugar da expe- cia peculiar capaz de expressar as idias essenciais que a cultura apresenta no seu de- bate com as “formas invisiveis ¢ as relagies do cosmos”. E 0 artista moderno pode en- tao encarnar em si a formalizagio do mito e © mergulho nos meandros da subjetividade (tal como Jean Cocteau a partir de O sangue do poeta ~ 1930). Nesta encarnagio, Deren celebra a face junguiana de uma estética que comercia com a psicandlise, ¢ o fez contra a aptopriagao de Freud que fica & sua esquer- da, a saber: a surrealista Nao surpreendem os seus fregiientes ataques a estética da liberacéo surrealista, vista por ela como uma modalidade de naturalis- mo, como arte que “reivindicando a atitude cientifica frente realidade como sua fonte de inspiracao, resulta numa exaltagao roman- tica ou realista da natureza, ¢ finalmente se 116 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Lace p’or, Luis Buruel desdobra no éxtase de um surrealismo cujas conquistas triunfantes consistem na elimi- nagao simultanea das fungées da conscién- cia e da inteligéncia” (“An anagram of ideas (1946), p.8, in Film culture, 0.39, 1965). As formas originais da consciénc lecer ¢ a imagem cinematogrifica ia de- vem pret deve ser 0 lugar da produgio de metiforas que remetem a idéias abstratas. Ou melhor, a tela do cinema deve refletir, nao a luz ex plosiva” de Bufuel, mas u na imagem-arqué- tipo coerente em si mesma, contendo sua propria Idgica, sem referenciais de espago tempo, capaz de criar uma A. VANGUARDA 7 toldgica”, Esta, em sua eterna validade, tem também seu lugar em nossa “civilizagao ci tifica” uma ver que corresponde & ctiagio poética de uma-realidade-feita-pelo-homem, tal como os modelos da ciéncia moderna. Complementando a investigagao cientifica, a funcao da arte seria a de propor modelos de organizacio da experiéncia fora dos qua- dros naturais, sendo o cinema o lugar para a manipulacio do tempo, seja através da mon- tagem, seja através da variagéo de velo: na sucessio dos fotogramas. A combi de imagens criadora de um espaco-tempo da consciéncia, projetando suas formas de ex- perimentar cada situagio, recebe em Deren uma formulagao especifica. De um lado, como Epstein, Deren toma o da relatividade e como instancia de realiza- do de um universo poético nio realista. De outro, como Bazin, cla defende o “realismo” essencial do registro forogrifico, O resulta- lizagao desta poesia através da ci inema como metéfora para a teori doéar mara lenta, da montagem, da ritualizag dos gestos, todos os elementos contribuindo para a celebracao de uma forma nao similar ao mundo natural, Na sua luta contra o dra- ma realista, Deren vale-se de uma oposi¢ao basica — abordagem vertical/abordagem ho- rizontal — e de uma estratégia particular de envolvimento do espectador, baseada na no- ao de “dupla exposigao” “O que distingue a poesia é sua cons- trugio (aquilo que eu entendo por ‘estrutura pottica’), ¢ esta provém do fato de que uma investigacao ‘vertical’ de uma situagao ¢ efe- tuada, um exame das ramificagoes do mo- mento, voltado para a sua qualidade € pro- fundidade; a poesia se ocupa, de um certo modo, nao com 0 que esté ocorrendo, mas com seu impacto ¢ significado. Um poema, para mim, cria formas visiveis e audiveis para algo invisivel, que é 0 sentimento, ou a emo- io, ou 0 contetido merafisico do movimen- to. Ele pode incluir uma ago, mas seu ata- que é aquele que eu denomino ataque vert cal, que fica mais facil de entender se 0 con- trastamos com 0 ‘ataque horizontal’ préprio ao drama, que esti voltado para o desenvol- vimento, digamos, no interior de uma pe- quena situacao, de sentimento a sentimen- to”, (“Poesia ¢ cinema, um simpésio”, pu- blicado em The film culture reader, p.174) Para celebrar esta verticalidade do ins- tante postico, o cineasta nio teria o dircito de violar 0 registro fotogrifico obtido com a camera, Deren € radicalmente contra super- posicdes, cinema abstrato, ou qualquer mo- dalidade no puramente fotogrifica de ob tengo de cada forograma. Isto porque, para ela, o que da especificidade ao cinema como arte, € a manipulacdo dos “dados reais” no nivel da montagem. E preciso que o especta- dor seja envolvido pela “autoridade oncolé gica” do registro forografico e, no préprio terreno deste realismo, cle seja clevado a cx- periéncia mitoldgica fornecida pela aborda- gem vertical: neste esquema, as estruturas da consciéncia estariam aptas a projetar-se na tela carregando o peso da realidade. A nogao de “dupla exposigao” refere-se justamente a experiéncia do espectador que, a cada momento, estar’ comparando duas “bandas de imagem”: a que o filme Ihe pro- poe ea que ele processa em sua cabeca, com- parando sua prévia experiéncia com que ele 118 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO véna tela. Deren assume que, diante de uma fotografia ou da imagem cinematogréfica, nossa leitura comega pelo “reconhecimento” de uma certa realidade, por comparacio. Este reconhecimento € 0 primeiro passo para a captagao de um sentido. Ela quer um cine- ma que preserve este proceso. Diante de um gesto em camera lenta, € essencial que o es- pectador reconhega que se trata de um gesto (j4 conhecido) transfigurado, alterado para sugerir algo numa direcdo especifica. O en- volvimento do espectador viria justamente da tensio advinda da percepgio dessa dife- renga: o gesto €o mesmo € nio é, € real ¢ nao é, porque estd transfigurado. O abstracionis- mo nio seria capaz de produzir este efcito, pois nao teria a mediacao da “realidade da fotografia” para provocar uma reacao que & especifica ao cinema. Este é 0 mais rico de todos os meios de expressio porque é flexi vel 0 suficiente para permitir todas as ricas variagGes de estruturas espago-temporais; € cle é “natural” o suficiente para fornecer um status de “fato fisico e visivel” para consttu- Ges que sio isomorfas (semelhantes em es- trutura) 4 consciéncia e, em tiltima instan- cia, as formas da cultura. O cinema poético de Maya Deren re- presenta uma forma muito particular de pro- posigio modernista: assumindo como alvo de ataque a visio naturalista, tomada como propria ao século xix, ela defende a aborda- gem vertical do instante tal como vivido pela consciéncia e sua representagdo através de estruturas especificas de montagem. Porém, © faz para que se possa instaurar um método ritualistico apto a cristalizar uma estrucura “valida para sempre”, um arquétipo. Ao ca- nalizar scu antinaturalismo para a produgio de uma experiéncia mitolégica e para a cele- bragdo de um antropomorfismo radical, Deren reencontra um nitido referencial clés- sico, nao faltando nem a idéia basica de “cos- mos”, Tal reencontro é por ela bem aceito como antidoto para aquilo que considera “excessiva dose de expressio pessoal” presente no seu contexto. Deten tende a assumir a relagao individuo/coletividade como dicoto- mia, numa oposigao radical s6 superavel atr vés do ritual que dissolve um no outro. O seu ataque a decupagem cléssica é motivado pela obediéncia desta decupagem a uma con- cepgao do tempo como fluxo linear e conti- nuo, 0 que ¢ resolvido em sua proposta por um salto metafisico: a domesticagao deste fluxo para afirmar a supremacia das formas atemporais. © OLHAR VISIONARIO E A QUESTAO EPISTEMOLOGICA A “experiéncia mitolégica” e o “ataque vertical” de Maya Deren constituem um modelo que remete a propostas de Elie Faure, representante destacado de uma nogio do cinema como ritual coletivo nos moldes da tragédia clissica. O classicismo ¢ a concep- ao da imagem cinematogrifica como vef- culo de elevagao espiritual, proprios ao esteta francés do inicio do século, so explicitamen- te retomados também por Gregory Marko- poulos no contexto americano dos anos 1960. No que interessa aqui, a teoria deste propée o filme como uma série descontinua de forogramas, com a valorizagao de cada imagem, de cada composi¢a0, como expres- A VANGUARDA 19 sio concentrada da visio poética do cineas- ta. Ao lado da adogio do modelo musical proprio aos estetas do cinema puro, Marko- poulos procura dar énfase & carga semantica contida em cada imagem, transformada em uma espécie de hicroglifo. Ele nao explora esta aproximagao com a antiga forma de es- crita na mesma direcao em que Eisenstein 0 faz, mas tem em comum com 0 cineasta rus- so a defesa da imagem como algo mais do que uma representago analégica. Markopoulos reclama da resistencia do espectador a reconhecer o fato de que as ima- gens podem funcionar como palavras ¢ res- ponsabiliza a platéia pelo nao entendimento dos filmes de vanguarda. Segundo ele, hd toda uma revelacdo e um novo mundo aber- riatividade” to aos homens comuns pela do cineasta; mas, é preciso que o espectador se liberte dos condicionamentos do cinema dominante. Diante do filme de vanguarda, no encontramos 0 habitual fluxo narrativo de um cinema acelerado, ¢ devemos procu- rar nos adaptar & nova temporalidade pro- posta aos sentidos. O espectador precisa agu- sar sua sensibilidade plastica para perceber no minimo detalhe a incidéncia de um esti- lo ea expressio de um sentimento interior. Nos filmes de vanguarda as imagens, em constelagées, multiplicam-se. Nao os fatos, nao a representacdo naturalista de uma ca- deia de acontecimentos. A poesia feita de imagens solicita um novo tipo de olhar (que um olhar para dentro de si) e & necessatio suspender o tempo. “Gradualmente, 0 espec- tador do novo cinema reconsidera o tempo como algo que ¢ seu, sua mais ousada pos sessio, da aurora ao creptisculo. Assistir a Sleep (Warhol), The art of vision (Brakhage) oa proposta The last homeric laught (Mar- kopoulos) torna-se um inevitével ato religio- so: contendo tudo aquilo que as ciéncias, variadas como elas sao, freqiientemente nao possuem, ¢ aquilo que nao se comunica ao espectador comum” (conferéncia pronuncia- da em 15 de abril de 1965). Portanto, é preciso que nos apossemos do tempo quando olhamos para a tela do cinema. Porque a luz que ela reflete vem catregada de mitos. Os antigos, recomados, € 05 novos, criados pela atividade mito-poé- tica do cineasta. Este deve, acima de tudo, assumir a sua “missio césmica’, produzin- do uma experiéncia dionisiaca marcada por uma “sensualidade convulsa” e apta a ressus- citar as “energias espirituais do Homem”, empobrecido pela auséncia de “criatividade” caracteristica da cultura dominante. O cinema dito poético ¢ 0 cinema liri- co (expresso do eu do cineasta) predomi nam por algum tempo na vanguarda ou no chamado cinema underground (ver Visionary cinema, livro de P. Adams produzidos em plena capital do império da decupagem cléssica ¢ do cinema narrativo- representativo, os filmes da vanguarda ame- ricana constituem wma radical destruigéo do espago-tempo continuo, da imagem que aju- da o espectador a perceber os “fatos”, do es- peticulo claro e dotado de forografias nitidas que abrem para um espaco ficcional auto- suficiente. Em suas varias tendéncias, 0 cine- ma poético representa sempre a introdugao de farores que perturbam a fruigio de uma imagem transparente, Com suas variagdes de luz, foque/desfoque, superposigées, imagens 120 0 DISCURSO CINEMATOGRAFICO fixas combinadas com movimento continuo ¢ convencional, com suas intervengées dire- tas na pelicula (riscos feitos & mao, letras, impressoes digitais), com seus movimentos répidos ¢ irregulares feitos com a camera na mio, tal cinema radicaliza certos procedimen- toscomunsa producao dos cinemas artesanais dos anos 1960 (em outros contextos dirigi- dos para um discurso sociopolitico mais di- reto). © cinema “rebelde” americano con- centra-se no ataque a superficie limpa da imagem. Ele é uma revolta estética canaliza- da para a destruigio do espelho, da janela ou da vitrine higiénica de Hollywood. Produ- indo tais “ruidos” na comunicacao do es- pectador com o que a cimera “mostra”, ele convida a platéia a ter uma experiéncia sen- sorial organizada dentro de outtos parimetros echama aatengio paraa textura da tela como superficie bidimensional e néo como janela que se abre para um espaco tridimensional Nas combinagdes de fotogramas isolados ou nas operagdes de montagem, superposigao € desnaturalizagao da imagem, diferentes dire- des sao seguidas, dentro de uma inclinagao geral para a expresso da subjetividade do Cineasta ¢/ou para elaboragao de uma inter- pretagio mitolégicadaculcura. “O artista tem carregado a tradigao do ver e visualizar atra- vés de eras. No momento, poucos tém dado continuidade ao processo de percepgao vi- sual em seu sentido mais profundo e trans- formado suas inspiragdes em experiéncias nematogréficas. Eles criam uma nova lin- guagem tornada possivel pela imagem do cinema. Eles criam onde antes deles 0 medo havia criado a maior das necessidades. Esto essencialmente preocupados, ¢ lidam imagis- ticamente, com nascimento, sexo, morte, € a procura de Deus” (Stan Brakhage, Metaphors on vision, p.1). No cinema implicado nesta procura, renasce de novo 0 mito do discurso nao ideoldgico: “Esqueca ideologia, porque © filme nao nascido, tal como estd, nao tem linguagem e fala como um aborigene — reté- rica monétona” (idem, p.2). Na ldgica do ataque “vertical e poéti- co”, ha um desdobramento. No nivel da tex- tura da imagem e do som (quando este exis te), tal cinema, a0 inverter as proposigaes de Hollywood, passa também a chamar a aten- cao para o artista atris da camera. Da espes. sura da pelicula ¢ sua concretude, a atengao do espectador passa a ser dirigida ostensiva- mente para o gesto do “homem com a ci- mera’. Tal como o pintor expressionista abs- rato (action-painting), 0 cineasta tansfor- ma o objeto (filme) em vestigio do seu ges- to: a imagem nao representa um mundo ficcional mas aponta para 0 gesto que nela deixou suas marcas, suas diregées, intensi dade, hesitagies ¢ estilo, O cineasta nao tra- balha com tintas mas procura fazer 0 mes- mo com a cimera, a luz ¢ os instrumentos de manipulagéo da imagem que 0 processo de montagem oferece. O herdi dos filmes expressionistas abstratos é 0 homem atras da camera, tal como em nossos sonhos onde somos sempre grandes protagonistas da fic- Gao que nos oferecemos. E 0 scu olhar que interessa, ¢ 0 seu esforgo est voltado para 0 nosso reconhecimento de sua experiencia de exploragio com a camera transformada em uma extensio do corpo. Nesta forma de poesia, ¢ 0 filme todo que se transforma em cimera subjetiva, apon- A VANGUARDA 21 tada para exteriorizagao de uma visio inte- rior. Neste ponto, atingimos o grau maximo de apropriagio da imagem cinematogrifica pelo artista — ela éa sua imagem, o seu olhar, ou sua meméria, e nela estao impressas os- tensivamente as operagdes da sua imagina- Gao. O que nos faz conscientes de sua pre- senga é justamente 0 arsenal de estratégias destruidoras da representagao prépria ao ci- nema diegético ¢ afirmadoras das operagdes da camera e da montagem como expresso direta de uma experiéncia interior, como ex- tenséo de seu olho capaz de produzir uma nova percepgao. O que vemos € uma ima- gem nao veiculadora de um mundo focali- zado segundo os padres que a educacao for- nece; mas uma imagem que procura denun- Giar 0 olhar que focaliza ou desfocaliza, se fecha e se abre, em rapidos lampejos de ima- gens a duras penas reconheciveis. O projeto expressionista abstrato de Brakhage procura a ampliagao do visivel, e suas “visdes” refe- rem-se A revelagio daquela parte “subcons- ciente” do nosso olhar. Através desta amplia- io, procura produzir um cinema que ¢ me- diagao para que as “visdes” se materializem, uma vez que a experiéncia subjetiva do artis- ta e sua imaginagao estariam dotadas de um peso ontolégico (revelacao do set das coisas) € carregariam uma verdade fora dos limites da linguagem convencional. A imagem do cinema dominante, como parte desta lingua- gem convencional, nao satisfaz: “O ‘realis- mo absoluco’ da imagem cinematogréfica & uma ilusio do século xx, essencialmente oc dental” (idem, p.4). O ideal do artista é a posse de um olho que estabelece 0 comércio direto com aque- Je mundo de luz ¢ texturas que a cultura nos impede de ver, porque a linguagem, nos seus recortes, nos bitola. “Imagine um olho nao regulado pelas leis (fabricadas) da perspecti- va, um olho sem os preconceitos da légica composicional, um olho que nao reage 20 nome das coisas mas que deve conhecer cada ‘objeto encontrado na vida através de uma aventura da percepgao. Quantas cores ha num gramado para um bebé sem conscién- cia do ‘verde? Quantos arco-iris pode a luz criar para um olho sem tutcla? Quao sensi: vel as variagGes em freqiiéncia de onda tal olho pode ser? Imagine um mundo anima- do por objetos incompreensiveis ¢ brilhan- do com uma variedade infinita de movimen- tos c inumeraveis graduagées de cor. Imagi- ne um mundo anterior ao ‘no comeco era 0 verbo” (idem, 1* pardgrafo). Perdida a inocéncia infantil e imerso nosso olhar no reino da cultura, a revelacao visual por exceléncia 56 viria da interiorids de, do olho que possuimos em nossa mente reprimida ¢ inconsciente. “Permita que a chamada alucinagao entre no seio da percep- Gao, (...) aceite as visées do sonho (...) e até mesmo permita que as abstragdes, que se movem tio dinamicamente quando pilpe- bras cerradas so sujeitas & pressao, sejam realmente percebidas” (idem, p.1). Brakhage propée o artista como viden- te, aquele que possui a imagem reveladora com 0 olho fechado ¢ que vé com os olhos da mente. No seu cinema, a percep¢ao con- vencional do mundo exterior se desintegra para dar lugar a0 conjunto de procedimen: tos capazes de produzir uma metéfora para estas visoes interiores. “Compulsivamente eu 122 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO me torno instrumento para a passagem da visio interior, através de minhas sensibilida- des, para a sua forma exterior. Meu papel mais ativo neste proceso € o de aumentar minhas sensibilidades (para que todos os fil- mes provenham de uma drea total do ser ou da ‘vida plena’) ¢, num momento de possivel criagio, agir apenas compelido. Em outras palavras, estou principalmente voltado para a revelagao” (idem). ‘A imagem do projeto ilusionista, dado seu caréter codificado, € substituida pelo conjunto de procedimentos aptos a “obscu- do convencional para “iluminar” recer” a a nossa experiéncia visual em outro nivel. O espaco deve ser abolido e o proceso de des naturalizagao, em Brakhage, é coroado pelo uso particular dos movimentos de camera que se transformam em elementos onipresentes. O filme todo ¢ composto por uma combina- cao extremamente rapida de imagens em movimento, obtidas com a cimera na mao ¢ como predominio de primeirissimos planos, © que resulta numa delirante exploragao de superficies e texturas dos objetos que refle- tem uma determinada luz. A iluséo de pro- fundidade criada pela perspectiva desapare- ce, uma vez que 0 picotamento da banda de imagem, o desfoque, o continuo movimento e aexploragao de texturas do visivel achatam a imagem, que se revela tio plana como a superficie da tela. O encadeamento desapa- rece e 0 que prevalece é cada exploragao da textura imediata que a camera descobre; cada momento ¢ um recomegar a experiéncia sen- sorial, 0 encontro com nova percepgao, sem que a combinagao de planos se oriente rumo aquele finalismo préprio a narracio. A teleo- logia desta dissolve-se ¢ estamos sempre ope- rando num presente que nao contém tensbes que apontam para certas direcdes e desdo- bramentos, exceto as tensdes advindas do gesto insistente do cineasta. ‘A “arte de ver” ¢ a supremacia da ima- ginacao prevalecem sobre qualquer determi- visual nagdo espago-temporal: a experién determina sua propria temporalidade ¢ 0 es- paco social da ago (préprio ao drama) é substituido por um “espago” a duas dimen- ses, puramente ético, que se constitui a par- tir de um “novo olhar”. No cinema visiona- rio, a imaginagdo marca sua onipresenga € sua quase tinica realidade; ela é 0 comego, 0 meio ¢ 0 fim do discurso cinematogrifico, que é sempre um “eu vejo” na primeira pes- soa € a indicagio imediata do préprio exer- cfcio do olhar (para dentro) como ocasiao de uma experiéncia revelatéria No plano oposto, em contraposigéo & “herdica retina” do cineasta expressionista abstrato, encontramos a “retina banal” do artista pop. A celebragao da visio interior é substituida pela celebragao do cotidiano, do familiar, do banal, reduzida ao absurdo: 0 deslocamento da imagem cotidiana do Em- pire State Building para a tela ¢ a filmagem de seis horas de sono de um individuo, res- peitadas em sua duragao e monotonia, exe- cutam um plano antigo de modo jamais so- nhado pelo proprio Zavattini, com seu fil- me de hora ¢ meia de um homem a quem nao acontece nada. O “as coisas estao af, olhe- mos novamente” é realizado sem heroismos ¢ sem revelagées. E é um outro artista pop que nos explicita um dos principios basicos do projeto: “Eu acho que a arte, depois de 123 ‘A VANGUARDA 23 Cézanne, tornou-se extremamente romin- tica ¢ anti-realista, se alimentando de arte; é utdpica. Tem tido cada vez menos relacao com o mundo, olha para dentro — neo-zen e tudo aquilo. O mundo esta af fora; af estd. A Pop Art olha para © mundo; parece aceitar 0 seu ambiente, que nao é bom nem mau, mas diferente — um outro estado de espirito” (Roy Lichtenstein, em entrevista a G. R. Swenson). O filme — plano de Warhol inverte iro- nicamente a celebrago da descontinuidade ¢ do fotogtama feita por Kubclka. Ele ¢ a repeticao do mesmo, em sua duragio ¢ con- tinuidade, levada a seu extremo: 0 do puro registro mecinico, justamente aquele que anula o cineasta atrés da camera ¢ afirma a obra cinematogréfica como pura repeticao (“eu gostaria de ser uma maquina” — Warhol). A experiéncia revelatéria dissolve-se na ba- nalidade da imagem, ¢ a decupagem cléssica no recupera seus direitos. Como duplicador, € 0 registro cinematogrifico que prevalece num projeto anti-expressio € anti-subjeti mo que resulta numa minimizagao do dis curso. Se algo em tais filmes é enunciado, 0 objeto do dito é 0 préprio cinema e suas re- lagées com o mundo; © retorno A imagem continua, desta vez levado as tiltimas conse- qiiéncias, repde a questao original de 1895: 0 que € 0 cinema além da mera repetigao da aparéncia visivel do mundo? Andy Warhol nos diria que é um olhar insistente que retira do contexto; um olhar que, depositado num objeto escolhido, nao se propde como “mais sensivel” do que 0 olhar natural, mas apenas como “olhar in- dustrializado”. Aquele que se repete em série € portanto repete o objeto em série, estabele cendo um continum entre 0 mundo da tela ¢ © mundo cotidiano ¢ procurando dissolver as fronteiras entre objeto ¢ obra de arte: qual- quer objeto, ou melhor, qualquer aparéncia é digna de ser celebrada (duplicada). ‘A questéo recolocada pela continuida- de absoluta (auséncia de decupagem) ¢ pela reproducao do objeto, propria ao filme pop, encontra scus desdobramentos ¢ tentativas de resposta num cinema voltado basicamen- te para uma discussio das possibilidades de estruturagio das imagens ¢ para a nacureza do discurso cinematogréfico como constru- ao de um espago-tempo proprio. Seja numa direso que desemboca no chamado “cine- ma estructural” (denominagio de P. Adams Sitney), seja na produgio de filmes que r metem explicitamente a determinados esti- los, €o préprio cinema que se consolida como objeto de discurso. O “cinema estrutural”, as vezes, elabo- ra-se como um cinema-jogo que, baseado numa determinada lei de composigio (em geral relacionada com certa operacéo pura- mente intelectual), revela essa lei na combi- nagdo de suas imagens. No fundo, tal lei ¢ tal operagao intelectual constituem 0 objeto do discurso ¢ as imagens utilizadas consti- tuem as pecas do jogo (tal como no filme Zorns-Lemma tealizado por Hollis Frampton em 1970). Nesta tendéncia, o filme de van- guarda procura, através da montagem, pro- duzir um padrio de relagdes capaz de reme- ter a platdia a uma discusséo sobre a organi- zagio da linguagem do cinema ¢ suas rela- ges com o discurso falado. Em outta de suas tendéncias, 0 novo filme de vanguarda bus- ca.a apresentacao de uma estrutura simples, 124 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO capaz de constituir uma metéfora para cer~ tas operagées da consciéncia e especialmen- te para a atividade da percepgo. Neste sen- tido, culmina, num projeto de tendéncia in- telectual, a inclinagao geral da vanguarda americana para a proposigao de um cinema voltado para a subjetividade ¢ para a proje- a0 dos “mundos interiores” na tela. Em oposigio ou complemento frente a um cinema disposto a advogar em defesa da supremacia do imaginario, tal cinema inte- lectual concentra-se, sem herofsmo ¢ sem a liturgia dos podetes criadores da subjetivi- dade, na produgao de metéforas capazes de provocar uma reflexio sobre as relagdes que estabelece com 0 mundo € 0 a conse! modo como, nesse comércio consciéncia/ mundo, consolidam-se determinadas estru- turas de espaco ¢ tempo. Nos anos 1960, um cinema europeu inscrito no terreno da nar- ragdo procurou constituir uma ‘fenomeno- logia’ voltada para a experiéncia intersubje- tiva ¢ imersa no espago dramatico das rela- Ges sociais. No cinema intelectual da van- guarda, tal fenomenologia encontra seu cor- relato, dentro uma outta tendéncia explora- t6ria: aqui, nao é a percepgao do eu, a co- municagio as contradigoes da subjetivida- de em sua existéncia social que constituem 0 objeto de reflexio; € a atividade perceptiva, em sua dimensio mais pura (a constituigao do mundo natural) que emerge como o ob- jeto fundamental de um discurso que pro- cura lidar com nogoes universais como es- paco, tempo, matéria, energi ‘Anette Michelson, principal intérprete da vanguarda americana dos tiltimos dez anos, explicita algumas caracteristicas de tal projeto a propésito de um filme de Michael Snow, Wavelength (1967): “No discurso con: temporineo hd uma metéfora recorrente so- bre a natureza da consciéncia: a do cinema. E hd trabalhos cinematogréficos que se apre- sentam como andlogos 3 consciéncia em suas formas constitutiva reflexiva, como se a investigagao sobre a natureza e os processos da experiéncia tivessem encontrado nesta arte do século xx um modo de apresentagao no- tavel e especialmente direto”. (“Toward Snow” In Ariforum, junho 71, p.30). E, par- ticularmente, sobre a longa zoom que cons- titui o filme de Snow: “Vamos da incerteza & certeza, 8 medida em que nossa camera es- treita seu campo, intensificando e relaxando nossa tenso na inverrogagio quanto ao des- tino final; na espléndida pureza do scu mo- vimento singular, lento, ela descreve a nogao teristica de qualquer processo subjetivo e fundamental como um trago de intencionalidade” (idem, p.31). Se- gue-se a citaggo de um texto de Edmund Husserl extraido de Meditagées cartesianas. A teferéncia a Husserl ¢ a proposigao do filme como meréfora para um dos trasos definidores da intencionalidade da conscién- cia nos fornecem um exemplo significativo do tipo de questao envolvida na produgao de filmes como 0 de Michael Snow. A expe- rigncia mitolégica de Deren ¢ a poesia visio- naria de Brakhage sto substituidas por uma indagagio de tipo epistemolégico onde a imagem cinematografica ¢ organizada de modo a fornecer uma experiéncia intelectual, procurando tornar visiveis certas estruturas da consciéncia. Através desta fenomenolo- le “horizonte” cara A VANGUARDA gia ou através do filme que faz da propria atividade cinematogrifica 0 seu objeto de discurso, a vanguarda americana constitu um terreno onde s bre o cinema que nos remetem a um contex to, distinto, onde tais questées foram for- muladas de modo nao menos distinto: 0 ci- nema de Eisenstein ¢ Vertov. No seu combate ao cinema diegético (representativo-narrativo-ficcional), a pritica jo retomadas questdes so- BIBLIOGRAPIA Der blaue reiter almanac, editado por Wassily Kandinsky ¢ Franz Marc, republicado na colegao Documents of 20th-Cen- tury Art, New York, The Viking Press, 1974, [Are du cinéma, coletanea de Pierre Lhermi- nier ~ principalmente para textos de Canudo, Delluc, Dulac, Epstein ¢ Ganee. Futurist manifestes, editado por Umbro Apo- llonio, New York, The Viking Press, 1973. New forms in films, Catilogo da mostra de Montreaux (Suiga) — 1974. Textos so- bre a vanguarda americana e entrevis- tas com cineastas. The essential cinema, editado por P. Adams Sitney, Anthology Film Archives e New York University Press, New York, 1975. Lart cinématographique, n. an, vit, 19251 1928, Paris. 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ATRA- GOES AO CINEMA INTELECTUAL Em 1923, no seu artigo-manifesto “Montagem de atragées”, Eisenstein distin- gue nitidamente dois tipos de teatro: o nar- rativo-representativo, préprio a ala direita da producao teatral ¢ 0 teatro de ‘agit-atragées’, definidor da linha correta na edificagao de uma pritica teatral compativel com as exi- géncias ideolégicas da revolugao. Diante de qualquer espeticulo, € preciso “guiar o es- pectador na direcéo desejada” , tendo em vista tal objetivo revolucionatio, o teatro na- turalista nao estaria equipado com os recur- sos necessérios. Preso a imitacao do fato ¢ & utilizagao dos elementos de encenagio para a criagao de “atmosfera” ele nao seria efi- ciente na discussio das implicaées ideols- gicas daquilo que estaria representado pelo espeticulo. A imitagdo naturalista, Eisens- tein opSe a nogao de “Espeticulo de atra- g6es”. “Um novo método emerge — monta- gem livre de efeitos (atracées) independen- tes, arbitrariamente selecionados (fora dos limites da composigao dada e das ligagées entre as personagens advindas da estéria); livre, mas nao sem uma visio que estabelece um certo efeito tematico final — montagem de atragées” (“Montagem de atragies”, em The drama review, margo 74, p.79). Na definigao de Eisenstein: “Uma atra- géo € qualquer aspecto agressivo do teatro; ou seja, qualquer elemento que submere 0 espectador a um impacto sensual e psicolé- gico, regulado experimentalmente e matema- ticamente calculado para produzir nele cer- tos choques emocionais que, quando postos em uma seqiiéncia apropriada na totalidade da produgao, tornam-se 0 tnico meio que habilita 0 espectador a perceber o lado ideo- légico daquilo que esté sendo demonstrado ~a conclusio ideoldgica final. (Os meios da cognigao — ‘através do jogo vivo de paixdes — aplicam-se especificamente ao teatro)” (idem, p.78). Nesta proposta, vemos a defesa radical da introdugao de artificios manipuldveis, no sentido de promover um discurso que rom- pe com 0 projeto ilusionista, tirando & esté- 130 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO € a0 que hé de “representacao de fatos” no teatro, o seu carater de totalidade inde- pendente ¢ autodeterminada, contida em si mesma. © método fundamental é tomar a situagdo basica da pega e montar um espeté: culo capaz de transformar os fatos represen- tados em uma atragéo entre outras; ou seja, manipular o texto, como em cinema Eisens- tein iré manipular as imagens. As cenas fica- riam inseridas num conjunto onde a hierar- quia “fatos essenciais + ornamentos de ence- nagdo” nao teria lugar, sendo substituida por uma apresentagio de estimulos nao amarra- dos & intriga do texto. Tais estimulos seriam combinados de modo a produzir os efeitos emocionais ¢ os “impactos” necessdrios para tornar claros a significacao ¢ os valores pro- postos pelo espetéculo. Como um homem de teatro, Eisenstein conclui: “O filme ¢, acima de tudo, o music-halle 0 citco consti tuem a escola para o montador, pois, em lin- guagem correta, produzir um bom espeté- culo (do ponto de vista formal) significa construir um forte programa de music-hall- circus, partindo da situagao basica da pega” (idem, p.79). Quando envolvido na producao cine- matogréfica, ele transforma a montagem de atragoes no “método para a produgao de um cinema proletério”, ou seja, de um cinema que, longe da pseudo-objetividade do realis- mo burgués, caminharia rumo a uma estru- tura francamente discursiva, baseado na com- binacao de elementos e comentarios em tor- no de uma situagao factual basica. O mode- lo griffithiano precisaria ser superado, dadas as limitagoes ideolégicas do ilusionismo, de mesma natureza que as encontradas no tea- tro € na literatura naturalista. Em resumo, o que esta admitido no projeto cinematogréfi co de Eisenstein € 0 principio de Maiako- vski: sem forma revoluciondria nao hé arte revolucionéria. Contra a montagem do cinema classi- co narrativo e contra as teorias de Kulechov ¢ Pudovkin, Eisenstein vai propor a “mon- tagem figurativa”. Uma montagem que se- gue o raciocinio, que compara e define sig- nificagoes claras. Uma montagem que inter- rompe o fluxo de acontecimentos € marca a intervengio do sujeito do discurso através da insergao de planos que destroem a continui- dade do espago diegético, que se transforma em parte integrante da exposigao de uma idéia. No seu cinema, a sucesso de eventos nao obedece a uma estrita causalidade linear € nao encontramos uma evolucao dramatica do tipo psicolégico. Eisenstein prefere falar em “justaposicao de planos”, ao invés de en- cadeamento. Em tal montagem, é praticada uma s temitica “disjunga0”: (1) na evolucao de um acontecimento, é aberta uma brecha na ca- deia que liga as varias agdes, ¢ temos a inser- ao de imagens nao pertencentes ao espaco da aco, construgies metaféricas tendentes a comentar determinados fatos particulares; (2) na prépria “representaso dos fatos”, nao € obedecido o critério naturalista — a inter- pretagao dos atores é estilizada no sentido de compor uma tipologia de agentes histéricos € a montagem de planos que dao conta de uma mesma aco é feita de um modo des- continuo, com repetigdes do mesmo gesto, fixagoes de um instante através da multipl cagéo de detalhes que distende a temporal (© CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO. 131 dade do acontecimento. Em Outubro, a pon- te que liga 0 centro de Sao Petersburgo é cle- vada para que seja reprimida uma manifes- taco de operdrios: a montagem “discursi- va” de Eisenstein nao mostra simplesmente © fato naturalisticamente em sua continui- dade (ponte se clevando), mas procura criar um espaco — tempo préprio, descontinuo, capaz de fazer daquele instante e daquele fato particular algo em que nosso olhar se detém para seguir diregGes de eventos simultaneos, de tal modo que a sua significagao social (en- grenagem da repressdo versus manifestagio popular) seja “figurada” pela composicao visual nao-natural que a montagem oferece. Desse modo, cada episédio deixa de ser ape- nas um elo na cadeia, mas compée-se de tal modo que, pela estrutura da montagem, uma reflexéo sobre o seu significado fique visual- mente explicita. Ao falar da aquisigao de tal montagem figurativa, Eisenstein esclarece: “O cinema de Griffith ndo conhece este tipo de cons- trugio na montagem (o figurativo). Seus close-ups criam atmosfera, delineiam tragos de carter, alternam didlogos das personagens principais, e os close-ups do perseguidor e do perseguido aceleram o tempo da cacada. Mas Griffith permanece sempre no nivel da re- presentacao ¢ objetividade, ¢ nunca tenta formar um significado ou uma imagem atra- vés da justaposigdo de planos” (Film form, p.240). Quando Eisenstein nos fala em “for- mar imagens”, vale-se da distingao entre ima- gem ¢ representagio por ele feita no artigo “palavra e imagem” (as vezes traduzido como “Montagem”, 1938). A representacao est contida em cada um dos planos que desig- nam certos fatos ou objetos. A imagem é uma “unidade complexa” constituida por uma unidade de planos montados de modo a ul- trapassar 0 nivel denotativo ¢ propor uma significagao, um valor especifico para deter- minado momento, objeto ou personagem do filme. A imagem, como unidade complexa, nao mostra algo (Bazin, Mitry), mas signifi- ca algo nao contido em cada uma das repre- sentagGes particulares. A sintese produzida por tal montagem faz com que o cinema passe da “esfera da aco” para a “esfera da significancia, do entendimento”. A respeito de Outubro, Eisenstein vai dizer que se trata mais de uma série de ensaios visuais em tor- no de temas extraidos dos fatos de outubro de 1917 do que a tentativa de um relato his- t6rico voltado para a representacao integra desses mesmos fatos. O mesmo acontecen- do com A greve, filme revolucionatio na medida em que se propée a “expor uma titi- ca’, explicar um processo de luta, analisan- do a produgao de um ato revolucionario € nao apenas fornecendo uma descrigao de seus ances espetaculares. Para que tal passagem para uma nova qualidade seja claramente proposta para o espectador, € preciso que o filme no seu con- junto subverta a relagao “normal” de fruigao que este estabelece com o cinema obediente a decupagem classica. Para isso sio funda- mentais varias estratégias articuladas: (1) estilizago dos elementos postos diante da camera (aqui Eisenstein aproveita as ligdes de Meyerhold, seu mestre teatral); (2) mon- tagem “disjuntiva” (no que se refere & apre- sentacio de cada fato) e “figurativa” (na in- 132 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO sergio de planos nao inseridos no espaco da aco); (3) descontinuidade ostensiva, articu- Jada a uma diferente nogio de enquadramen- to, Vejamos o ultimo ponto. Eisenstein dos anos 1920 quer dis- solver a nogao de enquadramento como “ponto de vista’. No seu cinema-discurso, a0 contririo de Pudovkin, ele quer comba- ter a nogao de que ha um olhar depositado no objeto ¢ uma consciéncia atrés da cime- ra. O discurso ¢ elaborado de modo que haja uma inversao: nao se trata de fornecer ao es- pectador a melhor colegio de pontos de vis- ta para observar um fato que parece se pro- duzir independentemente do ato de filmar; trata-se de compor visualmente “quadros”, privilegiando as configuragGes plisticas ca- pazes de fornecer a relacao mais apropriada entre os elementos ao nivel da significacao desejada, O primeiro plano nao significa um. “chegar mais perto do objeto”; mas a cons- trugao de um discurso pictérico, que, mui- tas veres, desloca o objeto do espaco de ori- gem ou combina os varios detalhes segundo regras que nao si de continuidades, mas de conflito dentro do espaco especifico criado pelo préprio discurso. “O cinema ‘antigo’ captava uma acio a partir de um miltiplo ponto de vista. novo cinema monta um onto de vista a partir de muileiplas agées” (“Notas paraa filmagem de O capital” 1927- 28, in Cinema nuovo, n.226, 1974). Em outras palavras, 4 manipulacao da camera no sentido de construir a unidade dos fatos, Eisenstein opée a manipulagao dos fatos para conseguir uma unidade do pensa- mento. O evento diante da cémera, a ala- vanca do realismo revelatério e base do cine- ma-janela, desintegra-se, e as imagens se re- integram em um outro nivel de organizagao; longe de seguir um modelo da realidade, 0 filme vai seguir as modalidades do pensamen- to, ou seja, assumir aquilo que ele é: discur- so. Longe de professar um realismo entendi- do como projecao objetiva da realidade so- cial na tela, Eisenstein defende a tese do par- 1i-pris, O Cinema é um discurso ¢ é ideolé- gico. A ideologia da consolagao ¢ a0 mani- queismo préprio ao melodrama, Eisenstein nao opée o espelho para refletir as aparén- cias do real. Ao mundo fabricado da indis- tria, Eisenstein nao opde a desfabricagio ea dissolugao do discurso no mundo. O que ele propée € 0 cinema com parti-pris. “Em mi- nha opinio, sem uma apresentacao clara do ‘porque’ nao se pode comegar o trabalho num filme. E impossivel criar sem reconhecer os sentimentos € paixdes em torno dos quais queremos especular — desculpe a expressio, sei que nao é gentil, mas é profissionalmente € por definicao exata. Dirigimos as paixdes dos espectadores, mas usamos uma vilvula de seguranga, um para-raios, e este € 0 parti- pris, Ignorar o ‘vies’ e desperdicar energia € 0 maior crime de nossa geragao. Para mim, ¢ em si mesmo, o viés tem um grande poten- cial artistico, embora nao precise sempre ser to politico, ou tao conscientemente politi co, como em Potenkim. Quando ele est com- pletamente ausente, quando 0 filme é consi derado como simples passatempo, sedativo ¢ hipnético, entao esta auséncia pode ser in- terpretada como realmente ‘cnviesada’, na manutengdo da tranqililidade e no deixar a platéia satisfeita com as condigées tal como esto” (Film essays and a lecture, p.15). oa Em tal perspectiva, 0 cinema realista de Pudovkin ¢ seu método de montagem sao submetidos a uma critica que procura apon- tar seu “mecanicismo” em oposigao & dialé- tica que Eisenstein vé em seus préprios fil- mes baseados na nogio de conflito: entre formas no interior de cada imagem, entre os diferentes planos, entre as expectativas da platéia e as combinagGes executadas, entre 0 fato ¢ a manipulacéo pela montagem. De- fendendo a desproporcao e a irregularidade, bascando seus efeitos no “principio de com- paracao” que assume presidir as reagdes da platéia, Eisenstein se opde ao equilibrio ¢ & harmonia préprios a uma estética aristotélica, no fundo assumida por Kulechov ¢ Pudov- kin. Estes também serao atacados porque em seus filmes ocorre uma progressao linear, um plano se acrescentando 20 outro, numa cons- trugio “tijolo a tijolo”, enquanto que, para Eisenstein, a perspectiva correta é produzir choques - um plano conflitando com 0 ou- tro — para arrancar o espectador da “atitude cotidiana”, Nas suas notas para filmar O capital, ele é explicito na defesa da necessidade de pro- vocar 0 espectador através da produsao de combinaces “estranhas”, no que ele chama “cotidiano aldgico” ou “interpretagao nio- cotidiana de um detalhe”, E necessario pro- vocar a desanedotizago dos elementos ex- tratdos do espago cotidiano, para deixar cla- ro que hé um outro principio regulando a seqiiéncia de imagens ¢ hé uma outra leitura possivel e mais correta, para além do nivel puramente anedético. Por exemplo, a estra- tégia de repetic6es do mesmo fendmeno, bastante freqiiente em sua montagem, é vista INEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO. 133 por cle como instrumento retérico para de- senvolyer a situagao em conceito, para supe- rar a primeira fase de leitura e propor o salto para uma nova qualidade, a do pensamento abstrato. Tal abstragio se produz como sinte- se elaborada a partir dos elementos imediata- mente dados; a teoria da montagem como conflito define-se justamente pela combina- do das representag6es para formar uma uni- dade complexa de natureza peculiar, apon- tando para um sentido nao contido nos com- ponentes, mas no seu confronto. Propondo um cinema que “pensa por imagens” em vez de “narrar por imagens”, Eisenstein esta consciente dos problemas a enfrentar mas esta convencido de que as ten- ses existentes entre a leitura naturalista, vin- da da semelhanga de cada imagem com as aparéncias do real, ¢ a leitura dialética, pro- duzida pela “montagem de atragées”, pro- duzem ricas solugdes em favor da tiltima: “O plano, considerado como material para a composigéo, € mais resistente do que um granito. Esta resisténcia Ihe é especifica. A sua tendéncia & completa imutabilidade fac- tual est enraizada em sua natureza. ‘fal in- sisténcia tem sido largamente responsével pela riqueza e variedade das formas e estilos de montagem — ¢ esta se transforma no mais poderoso meio para um criativo ¢ realmente importante remodelamento da natureza” (Film form, p.5).. Em tal remodelagdo da natureza, a fé nos poderes semanticos da montagem pas- sou por significativas diferencas em grau e qualidade, nas varias fases do pensamento de Eisenstein, Estou concentrado no periodo 1925-33, fase anterior & proclamagio de uma 134 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO estética oficial - a do realismo socialista ~ no contexto soviético, ¢ que teve suas conse- giiéncias na trajetéria de Eisenstein, bastan- te nitidas quando se confronta os filmes da década de 1920 com Alexandre Neuski ou Ivan, o terrivel, ou quando se examina em detalhe os textos tedricos. Considerando suas propostas estéticas, tal como se desenvolvem da montagem de atragées (1923) ao cinema incelectual (1927/1932), € possivel integrar na sua formulagao argumentos extraidos de textos posteriores. Isto é permitido pelo ni- vel de generalidade desta (minha) exposicao ¢ também pelo fato de que, nos textos tedri- cos de Eisenstein, ocorre menos um aban- dono de propostas ¢ mais uma tentativa de reinterpretacdo, tarefa a que ele se entregou para “corrigit os excessos” e superar “a doenca infantil do esquerdismo”. Pois bem, como Eisenstein ao longo da década de 1930 cada vex se dispds a propor menos e a se explicar mais, € como estou mais interessado em des- crever propostas do que discutir a fundo ba- ses te6ricas, fico no Eisenstein supostamen- te contaminado pela doenca infantil. O que me interessam s4o, portanto, seus excessos diante dos olhos stalinistas ¢ do “cinema humanista” de Zdanoy, que, a seu modo, quetia 0 novo homem vivo e a nova realida- de projetados na tela-janela do cinema. Na década de 1920, do principio basi- co de um cinema antinaturalista baseado na montagem e nos poderes da composicio pic- térica, a estética de Eisenstein desdobra-se nna proposigao do cinema intelectual. Esta, na pritica, cristaliza-se no projeto de filmar O capital e na colocagio de Outubro como 0 filme-ensaio onde certos procedimentos te- riam sido experimentados, dentro dos prin- cipios gerais de um cinema que procura atin- gir a “esfera do entendimento”. Na sua mais radical formulagzo, 0 cine- ma intelectual define-se em franca oposigao ao cinema narrativo: “O cinema € capaz de, ¢ conseqiientemente deve alcangar a tradu- 20 sensual e concreta da dialética essencial desenvolvida em nossos debates ideolégicos. Sem o recurso da estéria, da intriga, ou do ‘homem-vivo” (Film essaysand.a lecture, p.46, extraido do texto “Perspectivas”, 1929). Eisenstein procura redefinir conceitos como percep¢ao, forma contetido, de modo a superar a leitura burguesa destes conceitos ¢ propor uma sintese dialética entre a “lin- guagem das imagens” ea “linguagem da logi- ca’, reunidas na linguagem da chamada “cine- dialética”. O que estd implicado nesta cine- dialética ¢ a edificagao do cinema como lu- gar especifico da fusdo entre o sentir € 0 pen- sar—a percepcao visual organizada de modo a projetar a “reflexao abstrata no seio da ago pritica” ¢ a “devolver sensualidade & cién- cia’, No limite, tal cinema intelectual atingi- ria a esfera da exposigio do conceito sem. mediacées préprias a0 cinema dramético narrativo, concretizando a postura antinar- racio manifesta no texto de 1929 intitulado “Perspectivas”. Neste estdgio, o projeto éatin- gir uma montagem de imagens como forma de escrita pictérica (tal como a hietoglifica) que, pela justaposigao de unidades discretas, conseguiria traduzir 0 pensamento articula- do, expondo conceitos. Como exemplo pré- tico desta escrita conceitual priméria, Fisens- tein aponta a “seqiiéncia dos deuses” do fil- me Outubro, onde ele manipula diferentes ‘© CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO. 135 imagens da divindade, cristalizadas em dife- rentes estatuetas, combinando com letreiros, com estatuetas de Napoledo, insignias mili- tares ¢ Kerenski no Palicio de Inverno, de modo a produzir determinado efeito: “Neste caso, 0 conflito era entre 0 conceito ¢ a sim- bolizagao de Deus. Enquanto a idéia ea ima- gem parecem estar em completo acordo na primeira estétua mostrada, os dois elemen- tos se afastam mutuamente a cada imagem sucessiva. Mantendo a denotagio de ‘Deus’, as imagens crescentemente discordam de nosso conceito de Deus, levando inevitavel- mente a conclusées individuais sobre a ver- dadeira natureza de todas as divindades. As- sim, uma cadeia de imagens procura alcan- at um raciocinio puramente intelectual, re- sultante de um conflito entre o preconc seu descrédito gradual a cada passo intencio- nal. Passo a passo, por um mecanismo de comparagéo de cada nova imagem com a denotagao comum, energia éacumulada num processo que pode ser formalmente identifi- cado com aquele da dedugao ldgica”. Ele nos explica, em seguida, que esta seqiiéncia é um primeiro e embrionério passo rumo & futura montagem intelectual (Film form, p.62). Nas notas para filmagen de O capital, © cinema intelectual define-se de um modo distinto. Afirma-se como explicitagao de uma modalidade de raciocinio, como titica de provocacao a partir de atragdes calculadas, mas no esté af implicada a libertagao toral frente aos vestigios narrativos. Nestas notas, ele acha necessério partir de uma situacéo basica, tomada como pretexto para a discus- so desenvolvida pelas imagens (aqui terfa- ‘mos uma versio “intelectual” do projeto da montagem de atragées formulado em 1923). Ao lado disto, o modelo literdrio de James Joyce se mostra de fundamental importincia para Eisenstein que nele vé um estimulante exemplo de “exposi¢ao de um processo men- tal”, A partir de tal inspiragio, ele quer cami- nhar em outra diregio, procurando, a seu modo, “expor um processo mental”: pen- samento dialético em process. E nao pre- tende expor o texto de O capitalem imagens, mas fazer com 0 livro de Marx aquilo que ensaiara em Outubro frente & revolugio de 1917: construir um conjunto de ensaios em torno de temas extraidos do livro. Ou seja, projetar na tela um método de pensamento, 0 dialético. Em relagio a realidade, Eisens- tein sempre combatera o cinema espelho: portanto, frente ao livro, nao seria coerente propor um espelhamento do texto. Logo, a sua proposta bisica refere-se a um ensina- mento bem definido: utilizar o cinema como veiculo para expor as massas o método dialé- tico em algumas de suas caracteristicas fun- damentais, nao a letra de O capital. A idéia eisensteiniana de uma monta- gem que expe o raciocinio ou o método de pensar, esta estreitamente ligada as suas con- vicgdes quanto 4 montagem, entendida num sentido mais amplo, como paradigma — como operagao por exceléncia — do proceso de pensamento em geral, Em suas propostas procura sempre fornecer base tedrica para 0 programa estético, 0 que em geral implica na mobilizagio de consideracées antropolé- gicas (o problema do pensamento “primiti- vo") e psicolégicas (a teoria reflexoldgica de Pavlov é fundamental ¢ as teorias do desen- volvimento do pensamento conceitual na 136 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO ctianga, principalmente o papel ¢ 0 estatuto do “mondlogo interior” em tal desenvolvi- mento). © psicélogo russo Lev S. Vygotsky, com sua teoria especifica sobre 0 “mondlo- go interior”, tem também suas influéncias sobre Eisenstein, que procura montar a teo- tia do monélogo interior no terreno cine- matogréfico, considerando a presenga priti- ca deste na producao literdria. O cinema se- ria 0 coroamento ¢ 0 veiculo por exceléncia do enriquecimento de um método de di curso que explicita um proceso mental em sua interioridade, com a tremenda vantagem advinda de seus recursos de imagem e som: “Somente 0 cinema sonoro € capaz de re- construir todas as fases ¢ todas as peculiari- dades do curso do pensamento” (Filn form, p.105). E, como conclusio, ele acrescenta “Que a forma-montagem, como estrutura, é a reconstrucéo das leis do processo de pen- samento. (...) Entretanto, isto de modo al- gum implica em que o pensar pela monta- gem deva necessariamente ter o processo de pensamento como seu tema” (Film form, p-106). Ou seja, 0 pensamento explicitado numa forma de montagem cinematografica nao precisa estar situado no espago-tempo da consciéncia de uma personagem da fic- Gio. Ele pode simplesmente ser o pensamento do filme ou 0 pensamento exposto pelo dit curso-filme. Em suas varias acepgGes, 0 cinema in- telectual de Eisenstein representa a proposi io do cinema-discurso em sua formulacio mais incisiva. Entretanto, a sua teoria sobre 0 monélogo interior corte o risco de se ver contaminada pelo mesmo esquema de espe- thamento que Eisenstein critica em relagio ao filme realista: recusando-se a espelhar 0 mundo em sua imediata faticidade, o cine- ma intelectual pode ser reduzido a um espe- Ihamento da consciéncia, que percebe, ima- gina ou pensa. Ou seja, exatamente aquilo que vemos esquematizado na teoria e priti- ca da vanguarda americana, principalmente em sua tendéncia intelectual mais recente. ‘Uma discussio mais profunda em torno des- te modelo eisensteiniano particular, basea- do na “exposigao de pensamento”, levaria a consideragies sobre suas relagbes com a fe- nomenologia praticada no cinema contem- poranco nao narrative; 0 que também en- volve uma discussio sobre o projeto literd- rio de Joyce ¢ outras produgées de presenca fundamental na cultura deste século. Do seu modelo, que toma Joyce como uma das re feréncias, Eisenstein s6 nos deixou notas ¢ nenhum filme realizado por diferentes ra~ zoes. O que impede observacées sintéticas baseadas na referéncia a elementos explici tados por cle préprio. De qualquer modo, a sua orientago rumo a exposigao do pensa- mento dialético define suas diferencas de principio frente as propostas da vanguarda atual; € seus esbocos presentes em Outubroe A linha geral afirmam claramente uma pré- tica cinematografica distante de qualquer outra proposta nao naturalista. Se no scu projeto emerge a questo epistemoldgica — © cinema como forma de conhecimento como exposi¢ao de conceitos — sua estraté- gia é bem distinta da de Michael Snow ou Hollis Frampton. Ea questao da percep¢a0 ¢ das operagGes da consciéncia nao se fecha num modelo puramente légico ou numa metéfora que visa produzir a experiéncia vi- © CINEMA-DI sivel de uma “forma” ou modalidade de per- cepsio frente 20 mundo natural, mas abre- se para uma discussio das formas de cons- ciéncia social como manifestagdes ideolégi- cas sujeitas a determinagées que sc localizam fora dela (consciéncia). Seu cinema de montagem, oposto ao império da “impressio de realidade” ¢ su defesa ostensiva do cinema-discurso, consti- tuem, juntamente com as propostas de Vertov frente ao documentério, modelos de referéncia basica dentro do debate que en- volve as diferentes tendéncias do pensamen- to cinematografico contemporineo. A van- guarda americana coma Eisenstein como exemplo de experimentagao estética ¢ epis- temolégica, os tedricos estruturalistas discu: tem Eisenstein em suas contribuigées para uma teoria da significagao do cinema, e os cineastas militantes ajustam contas com ele na discussao dos efeitos politico-ideolégicos do seu discurso. B. © IMPACTO DAS CIENCIAS DA. LINGUAGEM No contexto semiolégico, Eisenstein € lembrado por alguns investigadores como um precursor. Uma referéncia explicita & sua teoria da metéfora no cinema bem como & sua teoria da sinédoque, é feita por Viatches- lay Ivanov nas paginas do Cahiers du ciné- ma, n. 220-221 (1970). No seu artigo, “Ei- senstein e a lingiistica estrutural moderna’, Ivanov acentua a atividade quase semiolégi- ca do cineasta, acompanhando o respeito geral dos tedricos dos Cahiers, em sua nova fase, pelos textos de Eisenstein. Maria Bystr- 'URSO E A DESCONSTRUGAO 137 zycka, na coletinea organizada por J. Grei- mas, publica um artigo ~ “Eisenstein como precursor da semantica na arte do cinema” ~ onde analisa as formulagdes do cineasta rus- so sobre a imagem cinematogréfica como ideograma. ‘Ao longo do seu trabalho tedrico, prin- cipalmente no artigo “O principio cinema- togréfico ¢ 0 idcograma” (1929), Eisenstein compara o processo de montagem no cine- ma com 0 principio basico do funcionamen- to da escrita japonesa (duas imagens desig- nativas de objetos ou fendmenos naturais produzindo a representagao de uma idéia abstrata). Estudioso das formas de represen- taco prdprias 4 pintura japonesa, ele de- monstra particular interesse em discutir as deformagées “expressivas” e o anti-natura- lismo proprios ao desenho de certos artistas otientais ¢ & encenagio teatral kabuki, de re- lativa influéncia em seu trabalho. A maior atengio seré dirigida & escrita ideogramatica e, dentro dela, a0 ideograma copulativo: “A questio € que a cépula (talvez devéssemos falar em combinagio) de dois hieroglifos das séties mais simples nao deve ser olhada como sua soma, mas como seu produto, ou seja, como um valor de outra dimensio, outro grau; cada um, separadamente, corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combina- Gio corresponde a um conceito” (Film form, p.30). E Eisenstein fornece exemplos: “ca- chorro + boca = latir; crianga + boca = gritars passaro + boca = cantar; faca + coragao = tris- teza, ¢ assim por diante. Mas, isto €~ mon- tagem!”. (Film form, p.30). Maria Bystrzycka vai concordar com determinadas formulagées vistas por Fisens- 138 0 DISCURSO CINEMATOGRAFICO tein como uma das bases para sua proposta de cinema intelectual. Ela vai ressalear a im- portincia dos estudos sobre a representagao ideogramética como instrumento util na clucidacao de problemas no nivel da histé- ria do pensamento, dado que o ideograma articula a interdependéncia entre 0 “mundo das coisas ¢ aparéncias” e o “mundo de ex- periéncias e significados”. “Por meio de ideo- gramas € possivel captar 0 proceso de for- magio de conceitos a partir de figuras e sua transformagio em signos” (p.476, Colerinea Sign-Language-Culture, 1970). A postura de valorizagio das idéias de Eisenstein encon- tradas em Ivanov ¢ Maria Bystraycka nao encontra eco em Christian Metz, figura cen- tral da semiologia do cinema na Franga. No capitulo “Cinema e escritura” do livro Langage et cinéma, Mewz dedica uma das seges a uma discussio breve sobre as relagGes entre a imagem cinematogrifica ¢ ideografia. De forma paciente, aponta as li- mitagées desta aproximagio “apressada” de isenstein, citando o que julga serem dife- rengas basicas em termos de codificagao ¢ concentrando-se na distingdo entre 0 esque- matismo das figuras que compéem o ideo- grama ca “impressio de realidade”, € 0 nao- esquematismo da imagem fotogrifica, base do cinema. O que é significativo é que Metz dispensa sem maiores consideragées a ques- tao da montagem ¢ aquilo que poderia dar maior sustentacéo para as idéias de Eisens- tein. Ao prender-se & nocéo de analogia (se- melhanca de cada imagem com o real) Metz admite como dado natural e indiscutivel aquilo que Eisenstein julgava um problema ¢ um desafio a enfrentar: a “resisténcia do plano” as manipulagdes. Isto € feito com apoio em citages de Mitry ¢, inclusive André Bazin, num discurso que, sem afirmar dire- tamente, torna implicita a maior autoridade teérica destes tiltimos em relagio A “pressa” cisensteiniana. Diante da problematica e nao sistemé- tica formulagao de Eisenstein, Metz acentua as imprecisdes e nao explora as potencialida- des do texto, nem sequer o analisa para en- tender melhor 0 contexto da proposta. E as- sim procede em fungio de raz6es ideolégi- cas. O que é evidenciado pelo fato de o rea- lismo revelatério de Bazin ¢ a “impresso de realidade” constituirem os referenciais apre- sentados como alternativa oposta A pressa tedrica de Eisenstein. Se a montagem-ideo- grama é algo semiologicamente discutivel, a imagem revelatéria de Bazin € algo mais do que discutivel. Neste mesmo capitulo, Metz ainda se refere ao seu artigo “Cinema: lin gua ou linguagem?” (ver o livro A significa- ao no cinema), no qual de maneira menos obliqua encontramos um compromisso cla- ro com a estética baziniana, numa apologia a dupla Rosselini-Bazin que acaba se refle- tindo em suas conclusGes teéricas numa di- regio que causou estranheza no mundo se- miolégico. No seio de um discurso inscrito numa disciplina cientifica cujo ponto de partida é a investigagao dos cédigos que es- to por tras da significago do cinema, Metz privilegia o real projetado sem cédigo na ja- nela cinematogrifica. Tal incoeréncia tedri- ca nao é casual ou fruto de um “cochilo”. Eis ai a razo pela qual me detenho na referéncia ao trabalho de Metz. Através dele, configura-se uma nitida tomada de posicio (© CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO, 139 no interior da problemdtica que me tem ocu- pado aqui e o que me interessa ¢ expor 0 seu projeto estético-ideolégico frente a outros igualmente presentes no contexto semiolé- gico. Portanto, concentro-me nao nos pro- blemas tedricos da semiologia, mas na esté- tica dos semiélogos. Voltado sempre para a teoria do cine- ma de que gosta — 0 cinema narrativo repre- sentativo, Metz desdobra sua estética em trés fases: a primeira é francamente baziniana ¢ esté refletida em alguns dos seus primeiros ensaios. O coroamento desta postura € jus- tamente o artigo acima citado, onde toda a tradicao fenomenoldgica afirma-se em seu discurso, nao simplesmente como etapa pre- liminar de investigagéo, mas como postura basica diante do cinema. A estranha conclu- sao do artigo foi: “O cinema é uma lingua- gem sem lingua’. Ou seja, alimentado pela presenca das préprias coisas e acontecimen- tos na tela, o filme “expressaria” os seus sig- nificados na medida em que tais coisas ¢ even- tos estariam impregnados de sentido (que € imanente ao real, como em Bazin). A oposi- Gio classica de Saussure, significante/signifi- cado, ele propde a oposicao expressante/ex- pressado para o caso especifico do cinema. Ou seja, a ideologia da expresso natural ¢ do nao-discurso infiltra-se numa investiga- o cuja hipétese fundamental éa de que nao existe uma produgio natural de significados sem mediagdo de signos inseridos num cé- digo cultural. O cinema como linguagem (é inegivel que ele produz significados), sem cddigo de base, seria a morte da semiologia decretada pelo préprio Metz. E claro que ele préprio faria depois a autocritica. Mas, nes- te primeiro momento, partindo da justa ob- servagao de que no cinema nio € possivel encontrar 0 tipo de organizagéo proprio a0 sistema lingiiistico, ele fica a meio caminho entre esta constatagao € a discussao mais sis- tematica de outras formas de codificagio possiveis. Nesta brecha, sua retaguarda esté- tico-ideolégica manifesta-se ¢ cle apela para 0 seu professor Mikel Dufrenne e para a he- ranga de Bazin ¢ Mitry. Como este tiltimo, Metz estabelece uma relagéo obliqua com Bazin: aceita a interpretacao deste em rela- cao 4 histéria da narragio cinematogrifica (progresso rumo 3 nao manipulagéo da ima- gem) ¢ assume a estética da imagem conti- nua e da narracio que nao faz uso de “sim- bolos”, deixando que o real revele seu senti- do imanente; por outro lado, desvincula esta aceitagio do compromisso com as bases metafisicas de Bazin, procurando corrigir sua fenomenologia. Da franca reveréncia inicial ¢ do clogio 4 antimanipulagio, ele vai expli- citar suas reservas 4 metafisica de Bazin em outros artigos. No longo texto sobre cinema moderno (incluido em A significagao no ci- nema), Metz relativiza 0 modelo baziniano para poder dar conta do cinema narrativo da década de 1960. Como Umberto Eco, com sua nogao de “obra aberta”, como Noel Burch, com suas nogoes de “estruturas de agressio” de “aci- dente incorporado” (em Praxis do cinema), como Mitry com seu modelo de um cinema existencial, como Pasolini com sua nogio de cinema de poesia, Metz faz 0 elogio do cine- ma moderno e procura apresentar 0 seu pré- prio diagnéstico em relacéo ao trago defini- dor deste cinema. Como todos os outros te6- 140 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ricos aqui citados, ele sabe que nao é possi _—_-é também frigil porque tais criticos nao de- vel aceitar tal cinema e defendé-lo com base _finem o que € narragao. O que Metz tenta no referencial fornecido pela decupagem clis-. _-- demonstrar que o cinema moderno é a sica ¢a narrativa tradicional ou mesmo com —_ampliagao das possibilidades narrativas, ou base no realismo baziniano. Em certo senti- _seja, longe de ser a destruigao da narrativi- do Metz reconhece que 0 cinema dos anos _dade, tal cinema seu enriquecimento. 1960 é justamente a superacio destes refe- s filmes de Godard nao apresentam renciais. © que Metz nao endossa éatenta- _mais aquele tipo de espetéculo cuja imagem tiva de certa critica em demonstrar que 0 _se oferecia como uma transparéncia revela- novo cinema representa a rupturacomanar- _dora dos fatos ~ ele utiliza-se, de um modo racio ou a ruptura com uma suposta gramé- _crescente, de um universo visual heterogé- tica cinematogeéfica, pois, para cle, tal gra- neo, composto de diferentes materiais, ¢ matica nunca existiu. A nogio de cinema- —_—_avanga decididamente rumo & descontinui- poesia de Pasolini é frigil porque os concei-. dade do cinema-discurso. A cimera do cine- tos de prosa € poesia estéo por demais vin- ma moderno nao mais se esconde, mas par- culados linguagem verbal e, além disso, _ticipa abertamente do jogo de relagbes que Merz aponta alguns exemplos bésicos que _d estrutura aos filmes. Os atores no mais fornecem evidéncias histéricas que negam a__pretendem ignorara presenca do equipamen- “poeticidade” como trago especifico do ci- toe filmagem e sta agao deixou de ser mise- nema contemporaneo.* A destruigao da nar- —_en-scene tradicional. Agora, eles fazem 0 even- ratividade, apontada por alguns entusiastas, co acontecer diante da camera, de improvi sua falta + Para caracterizar melhor o pensamento de Pasolini, seria necessério ultrapassar esta referén: de “rigor conceitual”. No plano tedrico, hi, sem diivida, um problema bisico: cle adere, sem discussio, & hipstese realista, Como Bazin e Kracauer, ele vé o real impresso nna tela; nao se interessa em discu questio do ilusionismo, da analogia; toma-os como ponto de partida. Em cima da analogia propria & imagem do cinema, constréi, contudo, uma analogia lingifstica peculiar, lance discutivel do qual extrai conseqiléncias estéticas importantes: o cinema é a escritura (registro impresso) de uma “linguagem da cio”, tal como a escrita alfabética é 0 registro da linguagem oral. Para o realismo de Pasolini, 0 cotidiano uma espécie de “cinema ao natural”, fluxo vivo desta “linguagem da aga” que, quando capturado pela camera c organizado pela montagem, se faz morte (escritura, trago) ¢, exatamente por isto (o estancamento da vida), consegue dar sentido & experiéncia humana em questio, permite dar um desfecho para a abertu- ra sem fim da realidade. Se esta é “cinema ao natural”, inversamente, o cinema ¢ a realidade coagulada, cristal desvitalizado da experiéncia que dizalgo sobre esta e afirma seu sentido quando ela nao é mais. Se, a rigor, Pasolini néo chega a esclarecer os termos desta “linguagem da ago” (= real) ¢ deixa aberto o flanco para as criticas 4 sua semiologia do cinema como semiologia da tealidade, a metéfora que propée— cinema como escritura (trago) ~ ¢ alimentadora de toda uma postura de trabalho e tem seu rendimento estético, orientando as escolhas préprias a seu realismo ¢ marcando a sua originalidade. Pasolini tem uma concep- © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 141 so, € encaram a objetiva dirigindo-se direta- mente a platéia. Com isto ¢ outras estraté- gias de comunicagao, o cinema moderno dis- tancia-se do cinema classico e introduz na sua imagem no seu som, tal como a van- guarda, uma série de indices que chamam a atengao do espectador para o filme enquan- to objeto, procurando criar a consciéncia de que se trata de uma narracéo, cujo trabalho comega a se confessar para a platéia. Met reconhece isso, mas seu interesse maior é res- saltar © quanto este cinema é contador de estérias, estando 0s novos procedimentos ainda inscritos num discurso narrativo. ‘O cinema-objeto de sua teoria é resul- tado do “histérico encontro” entre 0 novo veiculo (cinematografia) ¢ a narratividade, ¢ os filmes modernos sao bem-vindos na me- dida em que, para cle, esses filmes represen- tam a abertura de novos “possiveis” no do- m(nio da narragao. O que estaria sendo des- truido seria apenas um determinado conjun- to de convengées particulares, 0 que Met chama de verossimil: 0 que cstaria sendo posto em questio seria o discurso que se quer verdade e mascara a convengio. O novo dis- curso teria denunciado os seus artificios, re- velando a sua farsa. ‘Ao contrério de Burch, que se define por uma preocupacao com o problema das articulagbes de espago-tempo especificas a0 cinema e com a montage como “arte plis- tica’, Eco aborda o cinema moderno de um modo similar a Metz. Em suas preferéncias por este cinema como lugar da “obra aber- ta”, o paralelismo entre ele e Metz é marcante quando se trata de montar a dindmica “sis- tema de regras versus obras inovadoras” € quando se trata de apontar no novo cinema as caracteristicas que o afastam do espetécu- lo transparente € inequivoco que desenrola uma fic¢do supostamente auténoma. Apesar do discurso estético de Eco estar inserido num projeto de defesa da arte moderna em geral ¢, portanto, estar sintonizado com as propostas pictéricas e musicais da vanguar- da, sua distancia frente aos problemas espe- cificos levantados pelo cinema faz com que <4o particular da montage como morte, fechamento, mas a vé como necessiria: o dizer no cinema nao é reprodugio da abertura dos fluxos de ago mas se define pela sintese dos fragmentos obtidos (retirados deste fluxo) numa operagio (enquadramento, montagem) feita pelo cineasta. Defendendo a “expressio sintética” do real, ele solicita a montagem e critica o plano-seqiiéncia como desvio nacuralista. No fundo, seu realismo nao 0 de Bazin. E seu instrumental teérico, que privilegia a formagao de um “ponto de vista” na expressio cinematogréfica, é bastante fecundo quando ele se ocupa da narrativa de cineastas como Antonioni, Bertolucci, Godard ¢ Glauber Rocha. Relegadas a segundo plano as criticas conceituais de Metz, o seu artigo “Cinema de poesia” (1966) caracteriza muito bem 0 estilo do novo cinema “que Faz sentir a cimera”. Sua explicagio revela como o narrador, neste cinema, trabalha a montagem ¢ os movi- mentos de camera para embaralhar sua perspectiva com a da personagem, como o narrador sai de sua onisciéncia toda poderosa ¢ cria ambigilidades, interrogasdes, 0 discurso das imagens pasando a cortesponder a um entrelagado de intengées e valores, tal como em outras expressics da arte moderna, 142 © DISCI le reduza 0 problema da significacéo nos filmes a uma combinacio entre o codigo de reprodugio (da imagem e do som) € 0s cédi- gos narrativos, A diferenca entre Eco e Metz manifesta-se no descompromisso do italia- no com a tradicéo baziniana, que ainda uma vez que se infiltra no discurso do semiélogo francés sobre o cinema moderno. Isto é niti- doa propésito de um filme de Godard, quan- do Metz exalta a presenga de um “momento de verdade” (uma verdade extremamente di- ficil de definir como cle diz), em algo que € interpretado por ele como manifestagio de tum traco geral do cinema moderno: a apre- sentacio de um “certo tipo de verdade” aos espectadores. “Pode-se inclusive dizer que estas instancias — cuja verdade esta por se definir — sio, pela sua fragilidade, as con- quistas mais preciosas do cinema que, desde 1966, temos chamado de ‘moderno’. Nao se trata, com certeza, de nao sei que objetivida- de de principio, de nao sei que realismo sem falha, que possam definir 0 cinema moder- no, mas da aptidéo a algumas verdades, ou melhor a algumas justezas que fazem do jo- vem cinema um cinema mais adulto, e do cinema antigo um cinema as vezes bem jo- vem” (A significagio no cinema, p.187). ‘Metz converge com Mitry em seu elo- gio a0 acontecimento que se fez original men- te diante de uma camera que se mostra, e em seu elogio ao “encontro”, vivido de uma nova forma pelos atores: um momento de “verda- de existencial” ai se expressa. Eco, num discurso que passa pelo nema sem nele se deter, esté mais preocupa- do em definir a relagéo entre cada obra ¢ 0 sistema de representacao dominante, definin- RSQ CINEMATOGRAFICO do trés estratégias basicas para uma arte cri- tica: (1) o simples uso deste sistema para a veiculagéo de noves contetidos que seriam imediatamente compreendidos porque o fil me estaria utilizando cédigos de dominio piiblico —o realismo critico estaria neste caso (a critica da sociedade ¢ da visto de mundo burguesa através da utilizago de cédigos de nattacio montados pela cultura burguesa); (2) a destruigio dos cédigos de representa- Gao vigentes ¢ a proposigao de outras moda- lidades de estruturacao do discurso — as di- ferentes vanguardas seriam protétipos desta atitude; e sua elitizagao nao significaria 0 abandono de uma insergao histérica, porque cada obra atuaria como foco emissor de uma proposta destinada a influir sobre outras obras ¢, através de um processo de diluicao, destinada a adquirir uma presenga cada ver maior na dinamica cultural; (3) nem sim- plesmente usar nem destruir, mas “parodiar” © sistema de representacao, utilizando suas regras de forma deslocada e denunciando o seu cardter convencional e sua nio-verdade 0 Godard dos primeiros filmes (0 exemplo & meu) seria uma manifestacao desta atitude transformadora e, mais recentemente, 0 ale- mao Fassbinder (0 exemplo também é meu) retomaria tal parddia-critica frente ao melo- drama hollywoodiano. Na perspectiva de Eco, a simpatia cai sobre a obra de vanguarda e sobre a parédia ao sistema, ficando as reservas dirigidas a0 cinema realista critico. A defesa da “segunda abertura propria a arte moderna” implica numa postura critica a qualquer pratica ar- tistica dentro dos velhos cédigos da repre- sentacao “orginica” porque esses cédigos © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 143 guardam relagdes com o projeto ideolégico dentro do qual se originaram (0 mundo clés sico da tragédia, 0 mundo burgués do ro- mance realista). Em A estrutura ausente, Eco substitui os termos de Mew: este usa a opo- sigdo verossimil (velho cédigo)/verdade (obra inovadora), porque nao trabalha com a no- ao de ideologia até o fim. Eco prefere falar da mesma dindmica em outros termos: “Mas toda verdadeira subversio das expectativas ideolégicas é efetiva na medida em que se traduz em mensagens que também subver- tam os sistemas de expectativas retéricas. E toda subversio profunda das expectativas retoricas é também o redimensionamento das expectativas ideolégicas. Nesse principio se baseia a arte de vanguarda. Mesmo nos seus momentos definidos como “formalistas”, quando, usando o cédigo de maneira alta- mente informativa, nao s6 0 poe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do cédigo, a crise das ideologias com as quais ele se identificava” (A estrutura ausente, p.87). E adiante: “Mas a investigacao semiolégica ndo nos mostra apenas as modalidades de renovagao que as mensagens informativas executam em face dos oddigos ¢ ideologias. Mostra-nos, ao mesmo tempo, o movimen- to continuo pelo qual a informacao redimen- siona cédigos e ideologias e se retraduz em novo cédigo e nova ideologia” (idem, p.88). Sabemos que Metz mudou de modo ignificativo a orientacdo de seu trabalho se- miolégico, numa reclaboragio que, num pri- meio momento, resultou numa abordagem mais sistematica da nocio de cédigo (em Langage et cinéma) e, num segundo momen- to, resultou numa critica 4 “semiologia clés- sica” e na adogao de uma semiologia de ba- ses psicanaliticas, acompanhada de um ata- que a estética de Bazin e Mitry como lugar de uma teoria idealista do cinema. Nesta transformaco, sio elementos fundamentais 0 debate com os semidlogos italianos (Eco, Bettetini, Garroni) ¢ as press6es dos tedricos da “desconstrucao”. Garroni, ainda num ter- reno semistico estruturalista, caminha numa direcio paralela a de Eco: a defesa da van- guarda € seu ponto de partida. Do ponto de vista tedrico, ele elabora a critica & primeira semiologia de Metz dentro de uma perspec- tiva diferente. Eco havia se concentrado no ataque & nogio de analogia, procurando des- crever os cédigos de petcep¢io que estio por trés da “impressio de realidade” no cinema. Garroni concentra-se no ataque & teoria das “grandes unidades significantes”, tal como proposta por Metz para o cinema. Basicamente, 0 primeiro enfoque de Metz esté dirigido para um estudo da “ca- deia sintagmatica” (as imagens encadeadas que compéem um filme consideradas em suas relagGes reciprocas ¢ em sua miitua pre- senca) e para classificacao de varios segmen- tos do filme a partir de sua fungao no desen- volvimento da narrativa. Na opiniao de Gar- roni, tal enfoque seria muito limitado. Ele estd tentando livrar-se dos paradoxos de Metz (reduzido & consideragao de cédigos narrati- vos sem atacar de frente o problema da ima- gem) e, a0 mesmo tempo, esté tentando pro- por algo mais do que os “cédigos percepti- vos” de Eco. O seu livro, Projeto de semidtica, resulta numa colegao de sugestées nao operacionalizadas que guardam uma frigil relagio com a introdugao do livro, onde 144 (© DISCURSO CINEMATOGRAFIC Garroni faz a sua declaracao de principios estéticos. Dois elementos sao significativos para mim diante da linha de discussio aqui adotada. Do ponto de vista semiolégico, as su- gestées de Garroni mostram-se mais recep- tivas 4 heranga tedrica eisensteiniana e, como Bettetini, inclui em suas considerages 0 pro- blema da metéfora visual instieuida pela montagem “a la Eisenstein”; a0 mesmo tem- Po, aponta como questao decisiva na sua se- midtica a relago entre imagem ¢ palavra, no cinema cristalizada na presenga de “siglas lin- giifsticas implicitas” em suas formas visuais. Neste caso, 0 contexto russo dos anos 1920 retorna através da figura de Boris Eichen- baum, que sabemos vinculada as transfor- macoes da teoria literdria promovida pelo chamado grupo dos formalistas. Eichenbaum é citado varias vezes por Garroni, que reto- ma a sua idéia de que existe um “discurso interior na mente do espectador que conecta os varios planos do filme. Tal discurso inte- rior seria uma das marcas da tradutibilidade agem/palavra. Garroni nos diz: “Em rea- lidade, estamos lidando com imagens cons- truidas de acordo com um determinado pla- no discursive, no qual falta (excero no caso de letreiros ou rétulos) um aspecto ou mo- mento lingiiistico propriamente dito e a0 qual se pode (e mais, se deve) associar um discurso interior que por sua vez pode ser formulado novamente — pelo menos dentro de certos limites — em discurso verbal expli- cito, O qual nos fornece nao somente uma comprovacio indireta da hipétese de uma Jlinguagem interior, isto ¢, de uma linguagem verbal implicita que concorre essencialmen- te na construgio da linguagem filmica expli- cita ou por imagens, mas também a possibi- lidade de individualizar — ainda que, admi- timos, dentro de um campo muito limitado —alguns pontos de apoio substanciais, como substitutivos em fungao dos quais uma lin- guagem interior também € efetivamente construivel” (Proyecto de semiotica, p.359). Garroni sustenta que a dimensio ver- bal nao é estranha & imagem, constituindo uma das condigdes basicas de sua estrutura € de sua legibilidade; ao lado disto, cita Vy- gotsky © esté preocupado com o “discurso interior” que sabemos ter sido uma das ba- ses de Eisenstein na sua formulacio do cine- ma intelectual. Ele ndo caminha exatamente na mesma direcdo, nem € seu objetivo for- sélida para 0 cinema intelectual, porém é nitida sua ten tativa de englobar na investigagao semidtica um cinema estrururado como um process complexo e heterogéneo de produgao de mensagem e nao apenas como discurso nar- rativo-imitativo. Nao surpreende que a titi ma pagina de seu texto encaminha-se para a homenagem &s teorias de Bisenstein & luci- dez de Godard (0 artifice do discurso cine- matogréfico heterogéneo por exceléncia). Do necer uma base tedrica mai ponto de vista estético-ideolégico, na sua in- troducao, Garroni sustenta a afinidade entre © projeto das vanguardas artisticas ¢ © dis- curso semidtico, ambos voltados para o des- mascaramento dos cédigos de representacao vigentes ¢ do “discurso dbvio” produzido sob a égide da aceitagao integral destes cédigos. O cinema moderno € por cle valorizado na medida em que suas violagdes de regras tra- dicionais rompem com a visio do filme como © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 145 “pedago de vida” e obrigam & consideragao do conjunto de imagens como “mensagem” — “como algo relacionado com uma espécie de linguagem especifica cujo cédigo ou lin- gua € preciso conhecer” (p.19 do Proyecto de semiotica), A tarefa de dessacralizaco e de “conquista de um novo espaco social” em- preendida pela vanguarda em sua impacién- cia, € oposta por ele & consagragio do ébvio como estratégia do discurso conservador “dos reacionsrios francos € dos revolucionérios antiquados”. Estes procuram mascarar a au- séncia de explicagéo para os processos em curso e para as contradicoes da cultura con- temporinea escondendo-se nos velhos cédi- gos assumidos como normais ¢ venerados porque supostamente constituem a garantia de uma comunicacao transparente — so os discursos “plenos de sentido” em oposigio ao “formalismo” da vanguarda. Para Garro- ni, a “plenitude”, o “bom senso” ¢ a “comu- nicabilidade natural” do discurso burgués ou pseudo-revolucionério, apoiados na “trans- paréncia dos fatos”, sio justamente aquele ritual em corno do ébvio que seu projeto de semiética quer denunciar: “E 0 ébvio, fique bem claro, nao nos satisfaz porque seja sim- plesmente dbvio, mas porque nao é nada. E um fato, € algo que se hé de explicar, ¢ ndo um principio de explicagao. Ou melhor, como veremos, é um velho princ{pio de ex- plicagao, desconhecido como tal, e transfor- mado em coisa distinta, em comportamen- to automatico, dogmatico e contraditério” (idem, p.21). Em suma, a postura de Garroni é uma traducao da formula de Roland Barthes se- gundo a qual é preciso “desnacuralizar” a lin- guagem, deste modo sabotando uma das bases da visio de mundo burguesa: a idéia do espelhamento linguagem-mundo articu- lada a transformagio do discurso dominan- te no bom senso universal baseado na “or- dem natural das coisas”. Tal como assumido por Eco ou Garroni, o discurso semiolégi- co, mesmo em sua fase de inspiragio estru- turalista, afirma-se como um discurso tedri- co de sustentacao das varias vanguardas e de ataque direto as ilusdes do espelhamento ar- tistico ¢ as armadilhas da mensagem de sen- tido claro. Neste sentido, tais autores, assim como outros em diferentes terrenos, nos for- necem um exemplo de como uma interpre- taco especifica dos principios e dados do projeto semiolégico abre um nove flanco de ataque & nogao burguesa de representacio. Em termos de cinema, cristaliza-se mais uma frente contra a decupagem classica e contra 0 projeto ilusionista, ficando 0 “realismo da imagem” criticado como falso principio, ao mesmo tempo em que é promovido um re~ toro a defesa do cinema de montagem, sob a égide de uma nogio de discurso como algo essencialmente produzido pela manipulagao de elementos. Certas caracteristicas de uma semiolo- gia clissica estruturalista, principalmente a hipétese basica da onipresenca de cédigos ¢ da impossibilidade de uma transparéncia da mensagem, serviram de apoio teérico para que no contexto francés se eferuasse a disso- lugao de uma heranga existencial-fenomeno- logica (Bazin, Henri Agel, Mitry, 0 primeiro Metz, a primeira Nouvelle Vague) € houvesse um deslocamento dos critérios de discussdo cinematogréfica, Godard passa pelas ciéncias 146 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO da linguagem no seu caminho rumo ao cine- ma militante (basicamente motivado pelos eventos politicos de maio, 1968). No campo teérico, quando 0 solo baziniano € sacudido, é 0 vocabulério das ciéncias da linguagem que se afirma, retomado e inserido na pers- pectiva daqueles intelectuais e cineastas vol- tados para a defesa de um cinema revolucio- nério dentro do contexto sociocultural fran- cés, dinamizado vivamente pela revolta de maio. ‘A questo dos “cédigos de representa- gio” ¢ sua subversao vincula-se mais incisi- vamente a militancia politico-ideolégica. Semiologia, psicandlise e marxismo com! nam-se para aproximar as nogoes de cédigo ideologia, bem como para transformaraidéia do “cinema metalingiiistico” (aquele que te- matiza a si pr6prio) na idéia de um “cinema que incorpora a si um discurso sobre suas condigées materiais ¢ sociais de produsa0”. Deste modo, 0 ataque & transparéncia é reto- mado como estratégia basica do discurso politico ¢ as explicagées tedricas voltam-se para o problema fundamental das condigoes de produgio do cinema. A discusséo da opa- cidade ou transparéncia do discurso “sem otigem”, “tomado como um dado da per- cepsao”, é substituida pela polémica em tor- no do cinema-discurso como trabalho. . A DESCONSTRUGAO, A destituigéo da critica cinematografi ca de inspiragao existencial-fenomenolégica tem um de seus momentos espetaculares na transmissio de poder operada nos Cahiers du cinéma em 1969, ¢ na emergencia da revista Cinéshique, que consolida sua presenga po- Iitico-culeural na mesma época. Nos Cahiers, © bazinismo modernizado € substituido por um retorno a Eisenstein e Vertov, e o cinema de montagem retoma a palavra decisivamen- te. Acrftica & “fascinacio pela imagem” € a0 reinado da continuidade € feita através de uma ostensiva defesa da manipulagao do material sonoro e visual — nesta manipula- Gao esta localizado 0 trabalho produtivo es- sencial. Mesmo o elogio de Jean Louis Com- moli ao cinema-direto é feito em outros ter- ‘mos, no mais apoiado na idéia de uma ver- dade registrada (extraida do real), mas na idéia de que os métodos do cinema direto desafiam a “representagio” (projegio na tela de uma significacao que pré-existe ao dis- curso) ¢ afirmam a idéia de “produgio de significado” pelo trabalho de transformagao € desrealizagao que a filmagem/montagem opera. No texto coletivo, “Questao tedrica” (n.210, 3/1969), Silvie Pierre, Comolli Narboni, entre outros, afirmam a montagem descontinua (portanto, algo que rompe com a decupagem classica e com o bazinismo) como tinica forma “nao reaciondria” de fa- zet cinema. Contra 0 ébvio o filme “pleno de sentido”, como Garroni, defendem a “lin- guagem obscura” de Straub, 0 discurso de Godard, as experiéncias da vanguarda ame- ricana e o cinema da “interdicao do sentido” de Jean Daniel Poller (filme Mediterrante, 0 mesmo que constitui a obra bésica na argu- mentagio de Cinéthique). A tradigao privilegiada nos Cahiers € aquela que vem de Eisenstein. Porém, den- tro do clogio & descontinuidade, a homena- gem ao cineasta russo é feita nao sem certo © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO. 147 desconforto, uma vez que o seu discurso cla- ro € 0 seu cinema que quer “dizer” as coisas no constituem bem o modelo privilegiado pela revista francesa. Afinal, é a propria idéia de “obra unitéria” que os redatores dos Ca- hiers atacam. O desenvolvimento orginico de um discurso pleno de sentido e tomado como reacionério e, aproveitando-se da am- bigiiidade da nogao de “sentido”, 0s criti- cos dos Cahiers atacam generalizadamente qualquer sombra de continuidade que possa manifestar-se num filme. Tal ataque é claro quando se dirige ao filme natrativo clissico. Neste, as imagens se organizam para, num desenvolvimento continuo, cumprit uma fi- nalidade, apontar para uma certa direcdo (sentido), conforme o modelo da “realidade orientada” de que fala Jean Mitry, Uma te- leologia definida impregna o discurso narra- tivo dominante no cinema industrial: os vé- rios segmentos se justificam em fungéo de seu papel na consumagio de um desfecho que, retrospectivamente, “da sentido” a tudo que o precede. Mas, hé que se reconhecer que 0 uso da nogao de “sentido” nos textos dos Cahiers ultrapassa esta acepgio mais pal- pavel que se refere diretamente & continui- dade do cinema clissico. Quando na revista se fala em “sentido”, que se procura fazer & uma alusio a tradigao metafisica que assume 0 mundo como “totalidade orginica” dota- da de uma finalidade essencial, ¢ que assume a consciéncia humana como poder de “re- presentagio” desta totalidade, O ataque dos eriticos dirige-se & combinacio de trés enun- ciados dogméticos: 0 mundo é “pleno de sen- tido”; 0 sujeito é capaz de captar as verdades essenciais ¢ o “sentido” de tal mundo; a lin- guagem, como instrumento de representa do, expressa, em sua clarcza, o pensamento do sujeito que conhece. Para os Cahiers, a claboracao de um discurso que se quer claro e¢ sem lacunas, “pleno de sentido”, é uma forma de assumir compromisso com tal dog- matismo. A nio aceitagao da continuidade adquire, portanto, um significado mais am- plo do que a exclusiva condenagio do cine- ma clissico. Este é apenas uma das manifes- tages particulares do pensamento idealista. O problema, no caso dos Cahiers, é que, a0 lado deste esquema teérico, a pritica de ané- lise de filmes basicamente reduz. a aplicagéo de tal modelo a filmes classicos dos anos 1930 € 1940. O debate com o cinema dito mo- derno permanece orientado por um referen- cial extremamente ambiguo, onde a nogio de “sentido” serve como um “coringa” que acaba preenchendo as préprias “lacunas” do discurso dos criticos. Situando a perspectiva eritica dos Ca- hiers no contexto francés dos anos 1960, numa inscriggo que também é valida para Cinéthique, vemos que sua produgio tedrica um reflexo direto das formulacdes de Louis Althusser e de sua particular revisio de Marx. E nitidamente althusseriana a critica as idéias de continuidade, totalidade e desenvolvimen- to organico, as quais Althusser vincula es- sencialmente a tradic&o idealista (a dialética hegeliana seria 0 principal alvo de ataque em fangdo da presenga-chave de tais elementos no seu edificio). O referencial althusseriano é patente em outros textos dos Cahiers — & também em boa parte da produgao de Ciné- thique. Ambas as revistas assumem a “critica da Representagao” como seu horizonte e pro- 148 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO curam denunciar 0 idealismo do cinema li- gado as “filosofias da consciéncia”: 0 cine- ma mimético-representativo, seja ele hol- lywoodiano, ou neo-realista, de inspiragao fenomenoldgica ou lukacsiana. No manifes- to “Cinémalldéologie/Critique” 0 referencial psicanalitico freudiano (via Jacques Lacan), proprio a Althusser, constitui a base para o ataque as “ilusdes da consciéncia”. E a no- ao de idcologia é formulada de modo a pra- ticamente confundir-se com percepgao (= depésito das ilusées da consciéncia e lugar da criagao de continuidade, teleologia ¢ re- presentagées falsas do mundo). “Nesse sen- tido, a teoria da ‘transparéncia’ (0 classicismo inematogrifico) ¢ eminentemente reaciond- ria: nao € a ‘realidade concreta’ do mundo que é ‘apreendida’ por (ou melhor: que im- pregna) um instrumento nao intervencionis- ta, mas antes o mundo vago, informulado, nio teorizado, impensado, da ideologia do- minante. As linguagens pelas quais 0 mun- do fala (entre elas, o cinema) constituem a sua ideologia, pois, ao se expressar, o mundo oferece-se tal como é vivido ¢ apreendido, isto ¢, na chave da ilusao ideolégica” (“Ci- néma/Idéologie/Critique”, Cahiers du ciné- ma, n.216, outubro 1969). A férmula dos teéricos idealistas, ima- gem = real, é substicufda pela formula ima- gem = ideologia. A justa inscrigao da ima- gem cinematogréfica no dominio das formas ideolégicas de representacio apresenta aqui um problema. £ formulada de tal modo que, em principio, a critica imagem como ma- nifestacao de uma ideologia atinge um nivel de generalidade que identifica o visivel com © ideolégico por definigao. Ou seja, existe fatalmente um carter ideolégico na percep- io — como atividade humana “em geral” — que se faz presente antes mesmo da incidén- ia de interesses de classe ¢ da insergao do fendmeno percebido no tecido das rclagGes humanas dentro de uma estructura social de- cerminada. Nos Cahiers nao sao claramente elaboradas as explicagoes que permitiriam uma elucidagao do processo pelo qual uma (€ nao a) ideologia deixaria sua marca na imagem projetada na tela, Falar em ideologia no singular sugere a oposicao, também pré- priaa Althusser, entre idcologia ¢ pritica ted- rica. Apesar de inseridos no referencial al- thusseriano, os Cahiers nao vao tomar como vilida a oposigao cinema ideolégico/cinema cientifico, nem o fari Cinéthique, embora ambos se acusem de tal esquematismo. A oposigao fundamental que orienta ambas as revistas na sua militancia ideolégica é aquela entre cinema materialista e cinema idealista. Tal oposicio ¢ formulada de modo a evitar 0 paralelismo com a oposicéo ciéncia/ideolo- gia, vista por ambas como nio ajustével a0 dominio cinematogrifico, Nesta linha, os Cahiers vio fazer a distingio entre os filmes que sio pura manifestagao actitica do siste- ma de representagao dominante vinculado & ideologia burguesa, ¢ os filmes que estio dotados de uma atividade critica no domi- nio dos métodos de representagao (e nao apenas diante de um real a ser tematizado), dentro do que ¢ chamado “desconstrucao critica do sistema de representacéo” (termo emprestado aos criticos literdrios da revista Tel Quel, a quem Cinéthiqueesté ligada). Na definigao do cinema materialista, Cinéthique também usa, ¢ com prioridade, a nogao de DISCURSO E A DESCONSTRUGAO. 149 O HOMeM Da CAMERA, Dziga Vertov desconstrugao. Nos Cahiers, cle é assumido de forma vinculada & questo da imagem fotogrifica ¢ aos métodos de combinacao préprios ao cinema idealista (aquele cinema baseado na “impressio de realidade” ¢ no mecanismo de identificagao). Nesta orienta- sao comum, a polémica entre as revistas apa- rece no momento da explicitagao do termo desconstrugao, entendido pelos Cahiers de € praticamente refe- metafisic rindo-se a diferentes graus de “atividade cri- a” que o filme demonstre frente ao sistema dominante. Na categoria dos “filmes que forma mi interessam” os Cabiers vao colocar, inclusive, filmes realizados no esquema de producio hollywoodiano, alegando que certos filmes (de John Ford, por exemplo) seriam capazes de operar certa desmontagem no préprio sis- tema ideolégico dentro do qual eles esto inseridos. Cinéthique é mais incisiva na pro- posta de desconstrugao, reduzindo os “fil- mes que interessam” as produces dos anos 1960 realizadas na Franga e fora dos grandes esquemas (Mediterranée, Octobre i Madrid, os trabalhos de Godard ¢ Gorin no grupo Driga Verto). O ataque de Cinéthiquea Ei- 150 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO senstein sera mais radical que o dos Cabierse sua recuperagdo de Vertov no sera sem pro- blemas, uma vez que Cinéthique reconhece a presenga de tragos idealistas na concepgao que Vertov tinha de “imagem do mundo” capta- da pela cimera. De certo modo, tal como no proprio grupo Dziga Vertov de Godard Gorin, a referéncia a Vertov sera motivada mais pelo método de trabalho do documen- tarista, pela sua rejeicéo toral da “representa ao burguesa” (= ficcio, em Vertov) e pela sua nogao do cineasta como produtor de um trabalho (eliminacao da categoria de artista que Eisenstein nao operou), ¢ menos pela incorporacao das teorias do cineasta russo sobre a imagem cinematogréfica. ‘A positividade de Vertov é assumida muito em fungao de sua visio global da tare- fa ideolégica do cineasta: “O presente filme apresenta a realidade tomada de assalto pe- las cdmeras, e prepara o tema do trabalho criador sobre 0 fundo das contradigées de classe e da vida cotidiana. Ao desvendar a origem das coisas ¢ do pio, a camera oferece a cada trabalhador a possibilidade de se con- vencer concretamente que ¢ ele, operario, que fabrica todas estas coisas € que ¢, portanto, a ele que elas pertencem” (Articles, Journaux, Projets, p.51). Por outro lado, a referéncia a Vertov é feita também em fungao de um fil- me fundamental como O homem da camera (1929) que € tomado como obra destinada a contribuir na constituigao de um cinema que se pensa e discute suas préprias condigées de producao. Filme que, em varios de seus procedimentos, constitui uma antecipacao das taticas desconstrutoras do cinema con- temporaneo. Entretanto, o Kino-Pravda (ci nema verdade) ¢ o Kino-glaz (cine-olho) de Vertov nao deixam de implicar uma fé no “olho perfeito” da maquina na sua capaci- dade de captar as ocorréncias espontaneas do mundo ¢ registrar a verdade na pelicula. Apesar de todo o seu projeto estar baseado na montagem como proceso onipresente na produgio dos filmes (na preparacao, na fil- magem, na montagem propriamente dita), sua condenagio radical a qualquer ficcao no cinema indica 0 quanto a oposigao natural- artificial é fundamental na sua perspectiva. ‘Numa postura que encontra seus ecos na cri- tica que os neo-realistas vo fazer a Holly- wood, Vertov fala em “mostrar as pessoas sem méscara, sem maquilagem, capti-las com 0 olho da cimera no momento em que elas nao interpretam, ler os seus pensamentos postos a nu pela camera”. E 0 cine-olho é definido como a “possibilidade de tornar visivel o invisivel, iluminar a escuridao, des- nudar o mascarado, tornar a representacao uma no-representagio, tornar a mentira uma verdade” (idem, p.62). © “ver” eo “mostrar” assumem em Vertov uma fungio revolucionaria decisiva na sua oposigao ao cinema espetdculo (mis- cara do real). O que nio surpreende, uma vez que a abertura da camera-olho para o mundo social tem, em 1920, um significado diferente daquele que teré em 1970, quando as operagées dle “desmascaramento” revolu- Ciondrio estio voltadas para outros aspectos da pratica cinematogrifica. As consideragies dos Cahiers ¢ de Cinéthique sobre 0s com- promissos ideolégicos do cinema-espetécu- lo estéo fundamentadas de modo distinto, havendo uma preocupagio pela desrealiza- © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 151 cdo da imagem-registro, nao existente em Vertoy, Se este apresenta seus desvios idealis- tas na sua admissio de uma absoluta objet vidade da cdmera ¢ da imagem por ela pro- duzida, por sua vez, os tedricos contempo- rancos nao encontram um caminho facil na sua critica 3 equagio imagem = real, tal como formulada pelos estetas idealistas. Vejamos, primeiro, 0 caso dos Cahiers. Quando ha uma referéncia clara a de- cerminadas formas de organizagao do discur- so cinematografico (proceso de decupagem/ montagem), os redatores sao claros na expl citagao daquilo que eles entendem por “sis- tema de representacéo dominante”: trata-se justamente do sistema instaurado pela nar- racio realista e pela decupagem classica, den- tro do conjunto de regras de verossimilhan- a jé aqui comentado, Mas, quando encon- tramos formulagées do tipo: “Deste modo 0 cinema € logo marcado, desde o primeiro metro de pelicula impressionada, por esta fatalidade de reprodugao, nao das coisas na sua realidade concreta, mas tais como elas sao retratadas pela idcologia” — nio hé maio- res explicagées de como a ideologia (como entidade singular) esta lé “desde o primeiro metro de pelicula impressionada’’ Patrick Lebel, através da revista Nouve- le critique, em artigos tepublicados no livro Cinema e ideologia, ataca os redatores dos Cabiers justamente em fungao de tal admis- sao tacita e os acusa de transformar a ideolo- gia numa “esséncia” que estaria pairando no ar e seria captada pela cimera, tal como a realidade seria captada na acepgio de Bazin. Haveria, digamos, uma simples transposicio de termos: onde Bazin diria esséncia do real, 08 Cahiers diriam ideologia, A légica da cap- tagao estaria mantida e, com isto, o discurso de Comolli e Narboni estaria comprometi- do com o essencialismo que cles querem combater. Uma resposta a essas questdes ¢ uma formulagio muito menos vulnerdvel aos ata- ques de Lebel, encontramos em Cinéthique, cujo discurso sobre a imagem cinematogr: fica articula de um modo mais claro o pro- cesso que vai da idéia de representagio pré- pria & cultura burguesa ao cinema como vel- culo privilegiado dessa idéia. No n.6, os re- datores da revista explicam uma formulagao de Marcelin Pleynet, feita no n.4: “Pleynet dissera claramente 0 seguinte: se a cimera, ha situagio ideol6gica historicamente deter- minada em que nos encontramos, produz imagens que so cimplices ideolégicos da ideologia dominante, nao é por reproduzi rem o mundo (veremos que a imagem nao duplicagao do mundo), mas porque ela cons- tréi_ uma representagao espacial em acordo com 0s artificios historicamente determina- dos (datados quanto 3 origem: 0 Quatracen- 10) da perspectiva monocular” (Cinéthique, n.6, p. 8). Um sistema de representacio instaura- do num determinado momento histérico (a Renascenga) nao constitui a visdo objetiva do mundo, mas a representagio que dele ela- borou um determinado grupo social, dota- do de certas “estruturas mentais”. Citando Pierre Francastel, Cinéthique acentua o fato de que 0 cédigo da perspectiva nao é nacu- ral, mas produto histérico: “A perspectiva, bem como o espago, nao é uma realidade estavel, exterior ao homem. Alids, nao hd uma 152 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO perspectiva, mas perspectivas cujo valor ab- soluto é equivalente e que se constituem sem- pre que um grupo de individuos convém atti buir a um sistema grifico um valor de anali- se e de representagao estavel, exatamente co- mo quando se trata de um alfabeto” (Ciné- thique n.9110, p.54). Portanto, se diante da imagem cinema- togréfica, ocorre a famosa “impressao de rea- lidade”, isto se deve a que ela reproduz os cédigos que definem a “objetividade visual” segundo a cultura dominance em nossa so- ciedade; 0 que implica dizer que a reprodu- do fotogréfica é “objetiva” justamente por- que ela é resultado de um aparelho construt- do para confirmar a nossa nogio ideolégica de objetividade visual (0 socidlogo Pierre Bourdieu, também apoiado em observagbes de Francastel e Erwin Panofsky, refere-se a este curto-circuito ideolégico no livro Un are Moyen). Portanto, a “impressio de realida- de no cinema, no fundo, nada mais é que a celebragao de uma forma ideolégica de re- presentagao do espaco-tempo elaborada his- toricamente: Cinéthique vai denominar tal impressio de “efeito-cimera’. E, para os redatores da revista, a demincia das implica- Ges de tal efeito tem um valor politico fun- damental, pois seria ai, sob 0 manto da cien- tificidade do processo desenvolvido dentro da maquina, que teriamos a cristalizagao médxima do projeto burgués. Ou scja, a dis- solugao do discurso na natureza ¢ a imposi- gio da “tepresentagao” como “tealidade” — o mundo dado sem mediagGes através de uma linguagem transparente. A “impressio de realidade” cumpritia basicamente o papel de legitimagio ou naturalizacao, do discurso da burguesia, carregando consigo uma ideolo- gia especifica: aquela que nega a representa- 40 enquanto representagio ¢ procura dar a imagem como se cla fosse o proprio mundo concreto. Jean Paul Fargier ¢ Jean Louis Bau- dry vao explorar essa formulagio basica em diregées paralclas. Em seu artigo “Cinema: 0s efeitos ideo- Iogicos produzidos pelo aparelho de base”, Baudry procura definir o sistema da pers- pectiva como cédigo de representacéo pic- térica essencialmente vinculado a uma filo- sofia idealista, Tal sistema de representagao tem por caracteristica basica a colocagio do sujeito (do olhar) como foco ativo ¢ “origem do sentido”. “A visio monocular da camera (...) €baseada no principio de um ponto fixo em fungio do qual se organizam os objetos vistos, ¢ em contrapartida cla determina a posicio do “sujeito”, o lugar mesmo que ele deve necessariamente ocupar” (Cinéthique, n.7/8, p.3). Instaurando um centro em rorno do qual o mundo se organiza e apontando para osujeito-olho implicito, mas ausente na ima- gem, o que a perspectiva sugere é a “necessi- dade de uma transcendéncia” — tal olho-su- jeito (transcendente) propde-se como 0 po- der constituinte, como a forga capaz de or- ganizar e hierarquizar tal universo ¢ doté-lo de uma finalidade (como o olhar divino). Para Baudry, a arte baseada nesse sistema for- nece uma “representacio sensivel da metafi- sica’. Sua funcio ideolégica cumpre-se jus- tamente por essa pscudo prova que cle for- nece & consciéncia, produzindo uma expe- rigncia sensivel organizada segundo os crité- rios que presidem suas ilusdes a respeito de (© CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAQ. 153 sua prépria capacidade de conhecer e de olhar objetivamente para as coisas. Numa diregao paralela a Baudry, Metz, jd em sua fase psi- canalitica, vai falar das ilusdes do esteta fe- nomendlogo, que vé no cinema uma meté- fora para 0 processo do conhecimento. Metz vai contrapor a tese de que o cinema é, na verdade, uma metéfora para 0 processo de mascaramento que ilude 0 sujeito. O apara- to cinematografico define as condigoes ¢ de- termina a natureza da experiéncia do sujei- to, bem como seu lugar na engrenagem da maquina industrial e institucional que pro- duz a imagem; ¢ o faz de tal modo que o sujeito tem a ilusio de que ele é 0 centro de tudo e de que é através dele que as imagens adquirem sentido. Pondo o sujeito num de- terminado lugar, as condigdes de percepcio da imagem/som no cinema estariam lhe for- necendo a ilusio de que é ele quem esté de- tetminando um lugar para as coisas. Sua transcendéncia frente ao percebido seria, portanto, tao iluséria quanto aquela que a filosofia idealista define para o sujeito do conhecimento por oposi¢ao ao objeto de conhecimento. Voltemos a Baudry. “B se 0 olho que se desloca nao é mais obstruido por um corpo, pelas leis da maré- ria, pela dimensio temporal, se nao se pode mais fixar limites ao deslocamento 40 que a cimera e a pelicula tornaram posstvel -, en- tao o mundo nao é mais constituido apenas por ele, mas também para ele mesmo. Os movimentos da camera parecem concretizar as condigdes mais favordveis @ manifestacao de um sujeito transcendental” (idem, p-5). Dentro dessas condiges gerais, encontramos modos de organizagao particulares: 0 siste- ma de decupagem cléssica ¢ 0 modelo bazi- niano, construidos para recuperar a conti- nuidade no seio mesmo da descontinuidade produzida pelos cortes ¢ pela sucessio, aos saltos, dos varios aspectos do mundo. Tal sis- tema tem como fungao impedir que uma ruptura se instale na relagao entre 0 sujeito (transcendental) e o mundo visado. E preci- so que esse mundo se apresente “pleno de sentido” e unificado; € preciso que a repre- sentacio oferega a consciéncia a ilusao de que suas operagées de sintese, que impéem uma continuidade e uma finalidade as coisas, sao essencialmente “objetivas”. E a continuida- de narrativa do cinema clissico € 0 grande monument erigido para a satisfagao de tais necessidades: “A busca desta continuidade narrativa, materialmente tao dificil de con- seguir, s6 se entende se for pelo valor ideolé- gico essencial que se Ihe atribui: trata-se de salvaguardar a qualquer custo a unidade sin- tética do lugar donde provem o sentido, a fungao transcendental constitutiva a qual remete, como se fosse a sua secrecio natural, a continuidade narrativa” (idem, p.6). ‘As bases lacanianas de Baudry mani- festam-se claramente na sua tentativa de ex- plicar a eficacia da experiéncia cinematogré- fica a partir de substratos inconscientes que estariam na base do processo de identifica- cao: “A disposicao dos diversos elementos — projetor, sala escura, tela -, além de repro- duzir de modo bastante impressionante 0 ‘espaco da caverna, cenério exemplar de qual- quer transcendéncia e modelo topolégico do idealismo, reproduz o dispositive necessério para que tenha inicio a fase do espelho des- coberta por Lacan” (idem, p.7). A constitui- 154 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ao imaginaria do eu na crianga (em torno de um ano de idade), a partir da identifica- ao com a imagem do seu corpo unificado visto através do espelho, ¢ feita dentro de duas condigoes basicas: a imaturidade motriz € a maturac’o precoce de sua organizacao visual. Baudry nos lembra que essas duas condig&es séo reproduzidas na experiéncia cinemato- grifica - 0 espectador esté num estado de submotricidade ¢ superpercep¢éo (férmula retomada também por Metz) — 0 que serve de ponte para que esta, no plano inconsciente fique remetida & “cena primitiva” (a da fase do espelho na crianga). O resultado ¢ uma dupla identificagao: aquela, sempre reconhe- cida, que se dirige a0 contetido da imagem (personagens, basicamente) e a identificacéo mais decisiva com a propria camera como elemento constitutive do mundo projetado na tela. Reforgando 0 esquema idealista re- ferido acima, 0 espectador identifica-se “me- nos com o representado no espetaculo em si, do que com 0 que produz o espeticulo; com © que nao € visivel, mas que torna visivel (...)” (idem. p.7/8). A concluséo de Baudry é de que o me- canismo ideolégico em agéo no cinema con- centra-se na relagio sujeito/cimera. O cine- maalienante promove a “teflexéo especular”, através da qual o espectador, além da identi- ficagao com os heréis da tela, identifica-se primariamente com o aparato cinematogr- fico, E, desse modo, o cinema cumpre sua fungao especifica no interior da “ideologia da representagio”: constituir 0 sujeito pela constituigao ilusdria de um lugar central. O cinema cria a “fantasmatizagio” do sujeito € colabora com grande eficécia para a manu- tengo do idealismo. Estas formulagées se- rio retomadas por Baudry, numa compara- do mais elaborada entre a sala de cinema ea caverna platénica, no mesmo ntimero (23) da revista Communication em que Metz vai procurar reformular a teoria da identifica- 20 elaborada em Cinéthique, propondo cor- regées que ndo alrerem substancialmente a critica de Baudry a teoria idealista do cine- ma (que inclui Epstein, Bazin, Mitry e mes- mo os marxistas de inspiracéo luckacsiana). Mas, evidentemente, Metz nao caminha na mesma diregdo no que se refere a defesa do cinema revolucionitio, nao narrativo e vol- tado para a desconstrugio do sistema bur- gués de representagao. Nao surpreende que seja o préprio Metz uma das bases em que se apéia Jean Patrick Lebel em sua polémica contra Cinéshique. Referindo-se principalmente ao livro Langage et cinema, Lebel procura desmontar os argumentos dos teéricos da desconstru- Gio e defender a neutralidade dos diversos recursos estilisticos e formais & disposicio do cineasta. Sua hipétese bésica é extremamen- te genérica ¢ traduz um princ{pio estructural de ficil aceitagéo: é © conjunto de relagées instaurado pela organizacao do filme, como totalidade, que confere um determinado sen- tido a cada uma de suas partes. Isto, para Lebel, significa dizer: a “representagio” ou 0 cinema narrative conforme o modelo cléssi- co constituem uma “forma” ¢, como tal, podem inserir-se em diferentes projetos ideo- l6gicos, cada um trazendo seus préprios ele- mentos de modo a instaurar uma totalidade (filme) que fornecerda essa “forma” uma sig- nificagao diferente. Lebel supde que as “for- © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 155 mas” no tém sentido ideolégico em si mes- mas ¢, para ele, dizer que determinada mo- dalidade de narragéo é burguesa “em essén- cia” significa assumir uma postura ide: Nesta orientagio, ele assume a impossibil dade de fixagio de um modelo para 0 cine- ma materialista, acusando Cinéthique de “fi xismo” ¢ “essencialismo” (pela vinculagéo es- sencial entre representaco ¢ ideologia bur- guesa). ‘As colocagées de Lebel atingem 0 que ha de problematico e discutivel nas formu- lagdes dos defensores da desconstrucéo mas, ao mesmo tempo, apresentam simplificagées vagas que o colocam em um ecletismo que gera incoeréncias no momento de definir posigées diante dos filmes, Em primeiro lu- gar, 0 uso da nogio de forma significa a ado- Sao de um conceito tradicional, ambiguo ¢ tendente a transformar a linguagem em mero instrumento inocente ¢ neutro a disposigio do usuério, Este assumiria completo dom{- nio dos elementos de que se utiliza para vei- cular um “conteddo” exterior as formas que serviriam de meio para a sua comunicagio. Nesta oposigao forma/contetido Lebel seria o idealista. E ele enfrenta problemas nitidos quando tenta defender Costa-Gavras e seu cinema politico baseado no maniqueismo de herdis ¢ vilées com uma estrutura narrativa prdpria aos filmes de aventura hollywoodia- nos. Apés a defesa do filme Z, Lebel ataca A confissdo. Para evitar a acusagio de estar de- fendendo o oportunismo de Costa-Gavras, ele procura fazer um balango geral ¢ suas conclusées 0 acabam levando na direcio dos tebricos da desconstrugio, involuntariamen- te. Depois de basear-se na neutralidade das “formas” e confiar no poder do autor no seu justo emprego, ele conclui que a “analogia formal” entre Ze A confissao, ¢ a “irrespon- sabilidade estética” de Costa-Gavras seriam as causas do efeito despolitizador destes fil- mes tomados em conjunto. “Esta identida- de formal em como resultado (de modo mais ‘ou menos inconsciente para aqueles que so- frem 0 efeito) jogar uns contra os outros e, portanto, reduzir 0 jogo politico a algo ab- surdo. “Tanto faz o lado, politica é aquela sujeira mesmo. Melhor nem se meter.” Tal é, esquematicamente resumida, a liggo da do- bradinha Z/A confissao. um convite a uma revolta € uma indignacdo meramente mora- lizadoras. Devido a seu parentesco estético, A confissao desvaloriza Z a posteriori, assim como Z compromete A confissao a priori” (Cinéma et idéologie, p.184). E, na conclu- sao final, cle reafirma um dos motivos pelos quais os tedricos de Cinéthique propéem a intima conexao entre cinema militante ¢ 0 projeto de desconstrucao. Lebel introduz no seu raciocinio a idéia de que o empréstimo de determinada “forma” compromete o ci- neasta: “Os autores de A confissao nao leva- ram suficientemente em conta o fato de que no cinema a moral € ‘questo de rravellings . E provavelmente Costa-Gavras no serd ca- paz (ou nao tera vontade) de fazer outro tipo de cinema, além daquele que empresta a0 cinema policial as suas formas principais e seus efeitos mais grossciros; provavelmente, © que cle gosta mesmo é de filmar uma ‘boa’ corrida de automéveis ou uma ‘boa’ cena movimentada; infelizmente ele nao tem cons- ciéncia de que os recursos que a gente usa nao sio desprovidos de significagio, e que 156 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO compete & responsabilidad de qualquer ci- neasta que queira dar aulinhas de politica, comegar por entender ¢ assumir as conse- qiigncias ideolégicas e politicas dos signos de que se vale” (idem, p.185). ‘A gindstica de Lebel para por de pé 0 seu ecletismo, 0 que tende a identificar au- séncia de proposta estética com abertura dia- Iética, nao deixa de ter as suas correspondén- cias do lado dos teéricos da desconstrugio. Afinal, estes podem efetivamente ser acusa- dos de carregar o que o préprio Lebel chama de “concepcio monolitica da ideologia do- minante”. Ou seja, de olhar para os produ- tos da cultura burguesa como se eles fossem sempre resultado de um projeto sem contra- digdes, fruto da lucidez ¢ da autoconscién- cia de uma classe que se anteciparia & histé- ria € construiria seus cédigos de representa- 0 com tal coeréncia ¢ funcionalidade para a defesa dos seus interesses. O exemplo mais nitido desta discussio é fornecido pela criti- cade Lebel a tese de Cinéthique sobre os efei- tos ideolégicos do aparelho de base. Para Lebel, a cimera e 0 equipamento cinemato- grafico so produtos da ciéncia e da técnica, sendo neutros do ponto de vista ideolégico. Nao carregam em si mesmos nenhuma afi- nidade com determinada ideologia em par- ticular, ¢ seré no contexto de um projeto es- pecifico que vao estar comprometides com interesses particulares: € 0 uso social de um aparelho técnico que define 0 seu compro- misso ideolégico, nao as suas caracteristicas tomadas em si mesmas. Nesta linha, quando Marcelin Pleynet (em Cinéthique) e Godard- Gorin (em Vento do leste— 1969) atribuem a invengao da fotografia a um estratagema da burguesia para satisfazer a seus interesses ideolégicos num momento especifico (sécu- Jo x1x), Lebel af vé uma explicagao idealista: seria a ideologia, monolitica e autoconscien- te, manifestando uma superlucidez, que es- taria se antecipando ao progresso material ¢ determinando a diregao dos processos sociais. Caricaturando, ele afirma que a solugio de Cinéthique seria a destruicdo de todas as cAmeras € a negagio total do cinema, uma ver que este carregaria a “tara” de seus desig- niios burgueses, sendo intitil do ponto de vista de uma cultura revolucionaria. Cinéthique responde que, onde seus redatores apontaram uma relagio de sincro- nismo (na verdade isto nao estd claro no tex- to), Lebel viu uma relagdo de causalidade (que realmente pode ser lida na formulagao de Pleynet e Godard), ¢ que nao é suficiente dizer que a camera é uma maquina para de- cretar a sua neutralidade. Cinéthique diz que acimera tem uma fungao idcolégica na me- dida em que é um aparelho ligado a “repre- sentacao do espaco”, nao podendo ser com- parada com um avido, por exemplo. Privile- giar a origem técnico-cientifico do aparelho, esquecendo a sua operagao especifica (repre- sentar), édemonstrar uma concepsao instru- mentalista da técnica e uma visio positivista da ciéncia (que Lebel realmente carrega). ‘A consideracao basica que determina a posicio da revista é a de que “um processo ideolégico — ¢ a pratica cinematogréfica, an- tes de mais nada, é isso — nao confere aos instrumentos que usa 0 mesmo estatuto que © processo econémico confere as maquinas que 0 servem, nem o processo cientifico, a seus aparelhos (nem que sejam de dtica); um © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 157 processo ideolégico, outrossim, nao confere a mesma fungio determinante a todos os ins- trumentos técnicos que usa; é sem divida necessirio diferenciar papel desempenha- do por uma célula foto-elétrica, por exem- plo, ou por uma camera” (Cinéthique, n.91 10, p.57). Embora nao aceite o “neutralismo” de Lebel, Cinéthique reconhece 0 caréter pro- blematico de suas teses, ressaltando que, mesmo dentro de certo exagero, o fundamen- tal é que a questo da perspectiva ¢ do efei- to-cimera foi colocada. O que significaria uma contribuigio fundamental para a andli- se das relagdcs entre cinema ¢ projeto ideo- légico. A polémica gerada pelas teses da re- vista teria levado a superacao de tabus e in- serido a questao da visio ideolégica no cine- ma dentro de uma nova problematica. Neste particular, Cinéthique esté com a razo mas, dentro desta “abertura” de nova problematica, nao deixa de ser vélida a ob- servacao segundo a qual a revista caminhou na diregio de uma “concepsio monolitica da ideologia dominante”; 0 que se deu mui- to em fungio de suas bases vindas de Lacan ¢ Althusser, dentro de um marxismo de in- clinagio estruturalista, onde a nocio de Cé- digo, ¢ a rigida sistematizacio ai implicada, tende a privilegiar 0 aspecto légico-formal das representacées ideolégicas, tomadas como manifestacao de uma Lei (sistema de regras). Ea propria Cinérhique quem se refe- re a isto ¢ faz a autocritica, “O erro nao con- sistia em definir como codificado ideologi- camente pela histéria aquilo (camera, siste- mas formais) que Lebel, que julgou poder acusar-nos de essencialismo define como ‘ideologicamente neutro’ — mas sim, consis- tia na supervalorizagio da fungio desempe- nhada por este cddigo no conjunto das con- tradigdes codificadas ¢ dos cédigos contra- ditérios que produzem um filme. Paradoxo: enquanto que para Francastel 0 cédigo da perspectiva servia para lutar contra uma con- cep¢ao idealista do cinema, isto porque iden- tificava a ‘origem’ histérica de um dos seus cédigos, acabava, em nés, devido a0 peso histérico que Ihe atribuimos, por tornar-se, como se fosse uma esséncia, 0 Cédigo. O erro —e 0 texto de Baudry vai também nesta diregao— consistia nesta supervalorizagao que acabava dando a impressao de que o cinema nao podia escapar & metafisica, ao idealis- mo, & ideologia burguesa” (idem, p.55). E acrescenta: “Indagar a relagao material (ins titucional) da cimera com a ideologia, defi- nila como a reprodugao de um cédigo de perspectiva centrado sobre 0 sujeito € sus- tentado por aparclhos ideolégicos de estado (..) € isto mesmo que nao podiamos fazer nos nossos textos anteriores, mas que agora podemos escrever sem contradizé-los. E es- crever isto € lutar contra o discurso (inclusi ve o de Lebel) que afirma a universidade, a naturalidade, a neuttalidade deste cédigo da perspectiva (...) discurso este que esti no poder nas instancias do saber (aparelhos es- colares, universitérios, culturais), fato este que por si s6 0 sustenta” (idem, p.56). E Ginéshique ressalta que este € apenas um dos aspectos da discussio sobre a “im- pressio de realidade”. A andlise da funcao ideolégica da imagem fotogréfica em sua fi- delidade & perspectiva monocular (e nao 20 real) estaré articulada a critica a0 cinema que 158 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO organiza as imagens no sentido de obter a “representagao” de um mundo ficcional, com a construgao de um espago-tempo na pro- fundidade (iluséria) da tela. Neste particu- lar, é importante ressaltar o que € especifico a revista na sua critica ao cinema dominan- te. Como sabemos, as motivagées de Ciné- thique si mais de ordem politico-ideol6gi- ca, emenos de ordem estético-ontolégica (tal como em Brakhage ou nos tedricos do cine- ma postico). O cinema espeticulo é alvo da critica nao porque corrompe o destino miti- co-estético da nova arte, mas porque opera um duplo mascaramento, no nivel do papel do cinema na sociedade (oferecer espetécu- Jo) e no nivel de uma concep¢ao das praticas humanas em geral (a idéia de criagio preva- lecendo sobre a idéia de produgao-trabalho). Para Jean Paul Fargier, o duplo oculta- mento define-se da seguinte forma: (1) 0 ci- nema-espeticulo oculta as outras formas de produgio cinematografica. Dentro do pro- jeto da ideologia dominante € preciso pro- vocar a identificagao do cinema com “espe- tdculo” e, assim, reduzir 0 uso da técnica & sua modalidade mais inofensiva do ponto de vista politico. O desdobramento desta tatica cesta manifesto na produgio do senso-comum segundo o qual o filme politico corresponde a.um género especial constitui algo “anor- mal”; a politica no fundo presente em todos 0s filmes, € posta entre parénteses ¢ sua pre- senga, quando inegavel, é assumida como invasio imprépria; (2) 0 cinema espeticulo oculta o trabalho de produgio do filme. Reproduzindo os cédigos da ideologia do- minante e produzindo uma ideologia pré- pria (a da “impressao de realidade”), tal ci- nema impede o conhecimento dele préprio como produto, resultado de um trabalho dentro de condigées determinadas. O cine- ma revolucionario, ao destruir a idéia de re- presentacao, ao se negar a fornecer a ima- gem transparente, produz um conhecimen- to sobre ele mesmo, em primeiro lugar, como condigao para a produgao de um conheci- mento dirigido a uma realidade que engloba o filme. O essencial na nova proposta desrealizar a imagem, evidencié-la como peca de discurso; é desconstruir o sistema de re- gras da narracéo ¢ da decupagem-montagem proprias ao cinema burgués. A mistificagao da janela que se abre para o real (dado natu- ral), é preciso responder com a materialidade da imagem/som, como signo produzido, com o cinema-discurso capaz de modificar, ndo a sociedade diretamente, mas a relagao de forcas ideolégicas. Eis porque a oposicao fundamental em Cinéthique, ¢ também nos Cahiers, € entre materialismo ¢ idealismo; ¢ a tarefa do ci- neasta militante é a “transformagio ideolé- gica” do cinema, que deve libertar-se do cir- culo idealista da “impressao de realidade” e penetrar num novo dominio: 0 da concep- a0 do objeto cultural como produgao. Para além da polémica que envolve as duas revis- tas, elas tem em comum a defesa de um ci- nema que traga em sia marca do proceso de produgéo, ao invés de tentar apagar os tragos que o denunciam como objeto traba- Ihado e como discurso que tem por tras uma fonte produtora e seus interesses. Contra a ficcdo que pretende existir por si mesma, como reflexo do real, é proposto o discurso que fala sobre suas prdprias condigées de (© CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 159 existéncia e, portanto, afirma-se como refle- xo do trabalho de producio e de suas fun- ‘gBes sociais e materiais. Cinéehique, em par- ticular, procura corrigir a nogéo de reflexo, acentuando que existe um processo pelo qual um produto reflete certas condigdes sociais dentro das quais ele se insere. O filme mate- rialista € a explicagao desse processo, no a incursdo no terreno da arte realista que cons- tr6i uma “realidade pronta’ e a propée como semelhante ao real, O realismo esté compro- metido com a idéia de mimese, uma con- cepcao burguesa do objeto estético, cuja ex- pressio maxima se dé no cinema-espetdcu- lo. O cinema materialista de Cinéthique é uma desconstrugéo porque scu particular método construtivo desmonta-se diante do espectador. E o deve fazer literalmente. O modelo proposto deve nao apenas desobe- decer as regras classicas, produzindo deslo- camentos ou distanciamentos criticos frente 2 ficcgo dominante; ele deve ir além, pro- movendo um verdadeiro strip-tease do dis- curso: este tem de se mostrar como tal em sua estrutura profunda; pega por pega, deve revelar-se como operacio de linguagem, es- clarecendo suas leis de producio e suas con- digées praticas, ao mesmo tempo em que discurindo seu préprio estatuto frente ao “tema’, & realidade” ou ao “contexto” a res- peito do qual o filme tenta falar. Cinéthique diria: € preciso demonstrar a “Idgica do sig- nificante”, discutir 0 modo pelo qual o com- plexo imagem/som é capaz de “dizer” ou “sig- nificar” algo dentro de condigées especifi- cas. E, assim, produzir um discurso materia- lista, apto a superar efetivamente as ilus6es do cinema mimético, idealista ¢ comprome- tido com o sistema dominante, mesmo quan- do na sua superficie se afirme (como mésca- ra) uma intengio critica. Enquanto isto, para os Cahiers, os fil- mes desconstrutores nao so apenas aqueles que mostram suas “entranhas”, mas também aqueles que, pelo modo como sao construi- dos, carregam indicadores que revelam 0 que ha de basico sobre as suas condigdes de pro- ducio e sobre os seus cédigos, A anti-repre- sentagio nao € assumida tao literalmente como em Cinéshique. Nesta, numa primeira fase, predomina a defesa total da “interdicgao do sentido” (conforme o filme Mediterranée). ¢ 0 discurso “sobre 0 mundo” esté proibido. ‘A imagem que se desmonta, ao denunciar 0 idealismo da linguagem transparente da bur- guesia, fica amarrada na auto-anilise, na re- feréncia A sua prdpria textura, na operacio de revelar que 0 discurso é discurso. Jean Paul Fargier fala em “relagdes de textura”, capa- zes de revelar a “légica do significante” (tex- tura = concreto cinematogréfico, 0 comple- xo imagem/som), em oposigao as “relagbes de espago e tempo” (- cinema diegético, que procura transformar o significante numa transparéncia). E Mediterranée é visto como um caminho para a instituigéo do cinema materialista porque ele nao se define como a “representagao” de um espaco-tempo, mas como um filme sobre a idéia de Representa- 40 que informa a pratica cinematografica burguesa Os Cahiers, em fungao de sua politica mais “tolerante”, acusam Cinéthique de van- guardismo ¢ de praticar um sectarismo esté- til. E consideram inaceitivel a posigao de elogio que Cinéthique assume diante de 160 ‘© DISCURSO CINEMATOGRAFICO Octobre 4 Madrid, filme de Marcel Hanoun, confessadamente um cineasta metafisico, voltado para experiéncias de vanguarda nos maoldes do cinema poético americano. Se, de um lado, os Cabiers irritam Cinéthique pela aceitagao de cineastas como Marco Ferreri, Straub e, inclusive, Robert Bresson (com toda a sua metafisica), do outro, Cinéthique esta- ria se comprometendo com um tipo de pro- ducio dificilmente separével da vanguarda americana em seus trabalhos de desconstru- gio: antiperspectiva (Brakhage) ¢ cinema re- flexivo (Snow, Jacobs). Qual seria a diferenga entre 0 cinema mito-poético, ou o cinema estrutural-fenomenolégico, eas obras elogia- das por Cinéshique como materialistas? Os redatores dos Cahiers nao formula- ram de modo tio direto esta pergunta, tal como eu a formulo aqui. E, provavelmente, a resposta de Cinéthique, para ser razoavel, demandatia todo um livro ou, pelo menos, um hiporético némero especial da revista. De qualquer modo, ancecipemos esquematica- mente uma resposta, procurando caminhar dentro dos principios de Cinéshique. Tudo provavelmente comecaria com a considera- ‘ao de que a presenga do “sentido” e de um apelo a transcendéncias caracterizam o filme visionério da vanguarda ontolégica, ao lado de uma hipertrofia do sujeito como instin- cia fundadora ¢ como o préprio objeto do discurso. O modelo de Cinéthique constitui- ria a verdadeira critica a celebracdo dos po- deres reveladores do artista, produzindo um descentramento do sujeito, desalojando a subjetividade do artista de sua posi¢ao cen- tral ¢ fundante na produgio do discurso. Ao mesmo tempo, o cinema materialista substi- tuiria as “criag6es” © “profecias” da arte-an- tena da vanguarda ontoldgica pela nogao de arte-trabalho, deslocando 0 dominio estéti- co do seu solo merafisico e inscrevendo a ati- vidade artistica no conjunto das praticas humanas (materiais e sociais). Em relacao & matéria especifica desta pritica, o complexo imagem/som, o cinema de Cinéthique subs- tituiria os “poderes mégicos” (afirmados pelo cinema poético) pela experimentacdo que analisa tal matéria e procura elucidar o seu funcionamento “significante” dentro de con- dig6es determinadas. Na verdade, esta ope- racdo de “interdicéo do sentido” tomada ra- dicalmente e esta “desautorizagao” do sujei- to como “doador de sentido” para a matéria do cinema seriam os elementos inaceitdveis para a critica burguesa, incluida a vanguar- da. As hesitages dos Cahiers seriam também um indice desta inaceitagao da “descontinui- dade radical” (outra maneira de formular 0 ataque & representacao e as “filosofias da cons- ciéncia’), visto que a continuidade, para Ci néthique, é, por exemplo, a marca da inter- vengao da consciéncia, ou melhor, a conti- nuidade pertence ao dominio das ilusées da consciéncia que percebe — 0 “paradigma” de tal formulagio seria 0 processo bsico que ocorre na projecio cinematografica onde, de uma série descontinua, nossa “consciéncia” produz a ilusio de continuidade. Cinéthique quer propor uma “outra leitura” do comple- xo imagem/som, justamente aquela que mes- mo 08 teéricos afinados com as experiéncias do “cinema poético” estariam recusando. Tal setia 0 caso de Noel Burch, em seus primei- © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUGAO 161 ros esctitos. O tipo de desligago ou descon- tinuidade radical apresentado por Mediter- ranée (entre as imagens ou entre 0 texto de Philippe Sollers e as imagens) é criticado vio- lentamente por Burch em Praxis do cinema (1969). A base para o ataque de Burch é a idéia de que deve existir uma dialética conti- nuidade/descontinuidade para que qualquer discurso possa ser “inteligivel”. Neste prin- cfpio de cont/descont, Cinéthique vé exata- mente a “falsa dialética” ¢ 0 idealismo de Burch (fé no sentido instaurado por um movimento continuo subjacente ao discur- so). Ea revista ataca os critérios puramente estético-formais que orientam o livro Praxis do cinema. Nele, 0 autor est4 preocupado com uma especificidade do cinema nos mol- des da especificidade musical; apontando um repertério de estruturas nao voltadas para a imitagao do real, estruturas cujo rastreamento € feito ao longo do livro, Burch teria supera- do o realismo ingénuo, mas estaria inscre- vendo seu discurso numa estética idealista, baseado que esté numa concepgao organicista da obra de arte. O desdobramento de tais polémicas resulta em deslocamentos de parte a parte. Burch caminha na diregao de uma teoria da desconstrucao, basicamente seguindo 0 mo- delo dos Cahiers — a desconstrugao é enten- dida como nao obediéncia ao cédigo vigen- te, como bloqueio da leitura imediata. Ba- seado também em Eco ¢ Francastel, ele pas- saa rastrear, na esfera do cinema, as obras desconstrutoras que, em cada momento da historia do cinema, desafiaram o sistema dominante (notadamente a decupagem clis- sica) ~ ver o texto intitulado “Proposig6es”, publicado na revista inglesa Afterimage (pri- mavera 1974). Cinéshique ¢ os Cahiers ca- minham em diregio a uma definigéo mais politica de seu debate no contexto francés, procurando pér em prética uma militincia no que passam a caracterizar como front cul- tural, 0 que leva a uma predominancia de discussdes sobre a producio ¢ distribuigo de filmes militantes e sobre as questes em torno da pratica artistica no interior da so- ciedade capitalista. Pode-se, inclusive, dizer que hé uma segunda fase, principalmente em Ginéthique, catacterizada pelo ataque & esté- tica da desconstrugao e, particularmente, a Méditerranée e aos filmes de Straub como trabalhos alimentados por uma postura idea- lista (dada a sua subversio puramente for- mal). A partir do n,11/12, Cinéehique ataca explicitamente o seu antigo modelo, consi- derado agora um desvio rumo a uma consi- deragio exclusiva dos problemas de lingua- gem. O novo filme revolucionétio, nao es- quecendo a necessidade de pesquisa no nivel da linguagem, deve estar mais decisivamen- te comprometido com um projeto de mili- tancia diretamente politica. A revista passa a se definir mais como uma “contribuigéo a uma politica cultural marxista-leninista”, tomada num sentido mais global. O discur- so especifico sobre as taticas desta “politica cultural” no que se refere & imagem/som do cinema nao € produzido nos moldes da pri- meita fase da revista; ¢ 0 siléncio sobre ques- tes especificas indica uma admisséo vicita de que permanecem vilidas as teses sobre a “impressio de realidade” formuladas entre 162 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO eeee eee eee perfodo, polémico, a posigao de Cinéshique pode ser resumida pela citago de uma frase antecipadora, dita pela atriz Juliette Bertot em Le gai savoir, filme de Godard realizado em 1968: “Eu quero aprender, ensinar a mim mesma, a todos, como voltar contra 0 inimigo aquela arma com a qual ele nos ataca: a linguagem”. © que temos na critica de cinema pés- 1968 na Franga é, de certo modo, a tentativa de formalizar, especificar ¢ levar numa certa diregio propostas e sugestoes de Walter Ben- jamim, citado varias vezes por Cahiers e Ci- néthique. Uma proposigao enderecada & pro- dugio literdria repete-se nas duas revista “Gostatia de mostrar-Ihes que a tendéncia de uma obra sé poderd ser politicamente justa se for literariamente justa” (texto extraido de “O Autor como Produtor”). Traduzida em termos de Cinéthique e dos Cahiers, tal formulagao significa: todo discurso critico comeca pela critica do di curso — no cinema, a andlise politica justa comeca pela discussio das préprias condi- goes (sociopoliticas ¢ materiais) da prtica cinematogrifica como “pritica significante” (expressio de Julia Kristeva), ou seja, como pritica que opera sobre elementos (signos) pertencentes a uma determinada linguagem. Estrategicamente, nao se faz referéncia ao texto de Walter Benjamim no qual a re- flexao sobre cinema é mais explicita: “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade téc- nica” (1936). Tal texto foi escrito num mo- mento em que o cinema (em geral) é receb do com entusiasmo por aqueles intelectua e artistas engajados numa transformacao dos padres de producio estética, Em tal mo- mento, 0 trabalho de Griffith e 0 cinema industrial em geral (americano ou europeu), a despeito de seu franco compromisso com a narraco € com os valores burgueses, sio vistos como aspectos “progressistas” no con- texto da cultura contemporanea. Benjamim, de certo modo, culmina tal “otimismo” fren- te & producio industrial: 0 cinema “em ge- ral” teria vinculado asi um papel fundamen- talmente critico frente aos conceitos tradi- cionais de arte, e teria cumprido um papel subversivo, em fungéo do préprio carter téc- nico (teprodugao em série/audiéncia de mas- sa) da atividade cinematogréfica, apta a “dessactalizar” 0 dominio da experiéncia es- tética, A critica francesa pés-1968 nao parti- Iha de tal otimismo e, a0 mesmo tempo, des- carta também outras alternativas de reden- gio do cinema no campo de batalha ideolé- gico. A “vocagio realista” do cinema sono- ro, apontada no perfodo que se segue 4 Se- gunda Guerra Mundial (neo-realismo, rea- tivacao do realismo critico de inspiraso lukacsiana nos anos 1950 ¢ 1960), esta lon- ge de ganhar aceitacéo no contexto de Ciné- thique e dos Cabiers. Eo cinema direto, ou cinema verdade como também é chamado, mostra-se uma faca de dois gumes, carregan- do a bandeira da denincia social, mas ins- crevendo tal dentincia num discurso idealis- ta, na maioria dos casos embuido daquela fé que constitui o inimigo mortal dos descons- trutores: a crenga baziniana. Se o sistema absorve todas as modali dades de cinema critico, do neo-realismo aos “cinemas novos”, ¢ éa indtistria quem acaba explorando as novas formas de representa- G0 sem perder 0 set esquema de mascara- © CINEMA-DISCURSO E A DESCONSTRUG mento, se o cinema mimético nao se liberta das premissas idealistas, € preciso romper. A “impaciéncia” de Cinéthique frente aos ardis da representagdo diz respeito exatamente a0 momento em que as tolerncias ¢ simpatias para com as “contribuig6es” do cinema nar- rativo e industrial transformam-se em agres- sividade ¢ desengano, com a percepgao clara de que o espetaculo constitui a “reabilitagio” do projeto revolucionario e a sua absorga0 como mercadoria altamente rentavel. A des- construgio ¢ a batalha no terreno da lingua- gem surgem como a alternativa. Desta vez, & preciso questionar a técnica cinematografi- ca, repensé-la, porque ela é agora encarada como reafirmagio da nogao de arte e de lin- guagem burguesas, nao como sua desinte- gracio (como na primeira metade do sécu- lo). E nesta batalha pela desnaturalizacao da linguagem ¢ pela afirmacao do filme como trabalho inserido dentro de relag6es de pro- dugio determinadas, as teses de Cinéshique BIBLIOGRAFIA BENJAMIM, Walter. “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técni ca” in Teoria da Cultura de Massa, cole- tinea editada por Luis Costa Lima, Rio de Janeiro, Saga, 2002. . “The author as producer” In Understanding Brecht, NLB, Londres, 1973, (oO 163 € a pratica do Grupo Dziga Vertov cristali- zam um momento polémico (1969/1971), numa revisdo que promove um repensar todo o cinema, de Griffith a Godard. Nao o fiz € nao seria possivel desenvol- ver aqui uma discussio detalhada do uso que Cinéthique e os Cahiers favem da nogio de Cédigo ¢ da heranga psicanalitica ¢ althus- seriana. O fundamental era compor um qua- dro do debate de modo a acentuar o salto qualitativo por ele produzido na andlise das relagées entre cinema e ideologia, e na andli- se da “impressao de realidade”, do cinema- janela e do mecanismo de identificagio como elementos de uma retérica particular. As te- ses de Cinéshique estio em discussao e algo estd claro cm relagao ao cinema contempo- neo; a procura de alternativas frente ao sis- tema dominante de representagao ¢ 0 com- bate as ilusées do cinema passam pelas refle- xGes em torno da desconstrusio. BORDIEY, Pierre. Un art moyen: essai sur les usages sociaux: de la photographie, 2 ed. Paris: Les Editions de Minuit, 1963. BURCH, Noel, “Propositions” in Afterimage n.5, Spring 1974, BETTETINI, Gianfranco. The language and technique of the film, Paris, Mouton, 1973. ECO, Umberto. A estrutura ausente, Sao Pau- lo, Perspectiva, 1972. 164 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO EISENSTEIN, S. M. Reflexes de um cineas- ta, Rio de Janeiro, Zahar. ———. 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A relacao entre esta pritica ¢ os modelos dis- cutidos nao é simples e seria falso considerar tais modelos como referenciais absolutos destinados a orientar uma categorizagao mecénica dos filmes. Na verdade, as oposi- ges que permeiam o meu texto ~ transpa- rencia/textura, espetéculo/discurso, represen- tacdo/desconstrugdo, realismo/vanguarda, continuidade/descontinuidade — est4o lon- ge de expressar a separagao de tragos mutua- mente exclusivos, como se fosse clara ¢ in- discutivel a escolha entre isto ou aquilo. Em geral, ¢ iluséria a idéia de uma escolha bind- ria, ou de que se trata de mergulhar num pélo (a vanguarda, por exemplo) para evitar © outro (0 realismo). Em primeiro lugar, porque cada um dos elementos componen- tes destas oposigées recobre uma multiplici dade de perspectivas ¢ modalidades de cine- ma; a oposi¢ao entre vanguarda e Bazin nao. significa que, em todos os sentidos ¢ aspec- tos, um representa a negacio total daquilo que motiva o outro; se ha um “realismo re- velatério” de inspiragao crista em Bazin, 0 que dizer das “visdes” expressionistas € sua nova era de espiritualidade? Ou do cinema visiondrio de Brakhage? O fato de certa postura ideolégica se traduzir numa estratégia especifica no plano do discurso cinematogréfico tem conseqiién- cias fundamentais no efetivo papel que cada proposta assume no processo cultural em que estamos envolvidos. Mas, certos conflitos entre tendéncias diferentes, em geral aguga- dos por aquilo que elas explicitamente assu- mem ¢ defendem, nao significa que nao haja 166 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO pontos comuns entre elas, principalmente quando a nossa atengao é dirigida para aqui- Jo que permanece implicito em cada proposta ¢ cercado de um sintomatico siléncio. Ape- sar das esquematizagdes deste texto, creio ter ficado claro o grau em que conccitos como realismo, vanguarda, representagao, concre- to ¢ reflexo nao sio de leitura imediata ¢ exi: gem um contexto dentro do qual cles adqui rem um significado particular. E cr cado claro que ha muitos realismos ¢ muitas vanguardas, assim como h4 mais de uma perspectiva desconstrutora frente ao sistema dominante de representagao. Um modo freqiiente de aplicar meca- nicamente esses conceitos, sutil em sua fal: ficacao, € aquele em que se procura projetar no tempo, e de modo linear, tais oposicoes. Estabelece-se um referencial aparentemente histérico, em que cada modalidade particu- lar de cinema é encarada como prépria ¢ ex- clusiva a um certo periodo, sendo por esse motive de presenga condendvel numa “eta pa” posterior de “evolugio”. Como se a ra- zo para que haja o debate e se defenda ou ataque certo tipo de discurso fosse de ordem cronolégica. Fala-se em “era da montagem”, “era do bazinismo”, “era da desconstrugao”. Tais eras produzem a ilusio de que determi nada proposta realmente se cumpriu ¢ se es- gotou, devendo dar lugar a vers6es “mais modernas” do fazer cinematogréfico. Nesta linha, a presenga de um cinema dominante, construido dentro de critérios considerados superados por certos cineastas de vanguar- da, reduz-se a um fato estético € a uma “au- séncia de criatividade”, como se no hou- vvesse razes mais profundas para a dominan- cia de um certo tipo de discurso em deter- minado momento. Tal atitude, encontramos em alguns adeptos da vanguarda como solu- fo exclusiva para a prética cinematogréfica, principalmente nos Estados Unidos. O pri- vilgio dado & oposigio tradicional/moder- no transforma a presenga de inovagées diri gidas a aspectos parciais da produgao cine- matogréfica no elemento decisive na oposi- fo teacionério/revolucionatio. A hipotese de uma evolugio linear ~ século xix = realismo, século xx = modcrnismo — predomina; ¢ as varias ontologias, cosmogonias e revelagbes do “eu” sao agrupadas num conjunto de ten- déncias vistas positivamente pelo simples fato de serem uma negagao do cinema dominan- te ou de uma estética realista. Dentro de uma perspectiva mais conseqiiente, creio ser fun- damental nao apenas considerar 0 que uma proposta rejeita, mas também o que ela inci- siva ou veladamente afirma. E, principalmen- te no que se refere a propostas recobertas por conceitos como vanguarda, realismo ou des- construgao, a tarefa fundamental do analista é a intetrogacao pelo que de particular tal realismo, tal vanguarda ou tal desconstrugao apresenta. Tais etiquetas, via de regra, con- sistem na instancia inicial de um debate; aquelas nogdes por onde a discussio comega € nio a referéncia definitiva por onde a dis- cussao termina. O panorama aqui tragado deixa ind- meras quest6es em aberto. Notadamente as que dizem respeito as relagées nao explicitas entre as diferentes propostas consideradas ou as referentes a certas teses particulares de tumas em relagao as outras. Seriam os filmes da vanguarda ontolégica (Mckas, Brakhage, AS FALSAS DICOTOMIAS 167 Mabe IN USA, Jean-Luc-Godard Snow, entre outros) um ato de desconstru- sao compativel com as teses de Cinéthique? Seria o discurso claro de Eisenstein um des vio idealista como 0 quer 0 Godard de Vento do leste? O ataque de Godard esté baseado na comparacio com Griffith. Seria correto dizer que Eisenstein, em Posenkim, apenas aplicou os métodos do cineasta americano dentro de outra perspectiva ideolégica? Ei- senstein responderia que a visio de Godard é simplista, uma vez que todo o seu longo artigo “Dickens, Griffith ¢ o filme hoje” (1944) constitui uma demonstragio da dife rena entre o seu método ¢ 0 de Griffith. O que nao climina totalmente os problemas, uma vez que cabe analisar mais de perto 0 artigo de Eisenstein. Falei das relages entre Walter Benjamim ¢ 0 discurso dos tedricos da desconstrugao. Uma questao que nao res- pondi diz respeito ao tipo de leitura dos tex- tos de Benjamim feita por eles, bem como sua revisio das mais diferentes estéticas des te século. E uma interrogagao fundamental praticamente fica em suspenso ao longo de 168 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO todo este trabalho: a que diz respeito as rela- propostas de Brecht ¢ 0 cine- ces entre ma, questio que, cada vez mais, solicita uma investigacao especifica, dada a proclamacao, freqitente no cinema contemporineo, da existéncia de uma filiagio brechtiana em cer tos trabalhos (Godard, Straub, Glauber, Fassbinder, 0 grego Angelopoulos, Marco Ferreri e outros), Ao lado disto, é preciso ultrapassar 0 nivel de um estudo comparativo das varias modalidades de discurso no cinema, para que se possa abordar em profundidade o proble- ma da significagao ideolégica dos filmes num determinado contexto especifico. O tipo de discussao aqui feita € capaz. de estabelecer as vinculagées entre discurso filmico e ideolo- gia em uma de suas dimensdes: a da propo- sigao de um determinado estatuto da ima- gem/som do cinema (e da linguagem em ge ral) frente ao real; estatuto que s6 pode ser definido no interior de uma concepgao glo- bal do real, a qual constitui a referéncia de base para a proposta estética. O plano em que fiquei nao deu ensejo, a nao ser episodi camente, para que se colocassem outras va- ridveis em jogo, como a relagdo entre estas modalidades de discurso ¢ a constituigao de uma produgao cinematogrdfica nacional. Evidentemente, 0 quadro internacional de producio ¢ distribuigao propde uma série de problemas no nivel da “luta pelo mercado” e, em cada contexto especifico, esta luta ad- quite uma significagio ideolégico-politica diferente. As consideragées frente aos problemas de mercado numa proposta estética elabora- da nos Estados Unidos, na Teélia, na Franga ‘ow nos paises da América Latina, assumem tum cariter ideolégico distinto, em certo grau. Se uma determinada modalidade de cinema carrega cm sua proposigéo uma determina- da atitude frente ao sistema de distribuigao dominante — um pér-se & margem, um bus- car novas formas de produgado/difusao, ou um projeto de conquista de uma fatia maior ou menor dentro do sistema — toda uma sé- rie de problemas aparecem no momento em que se procura equacionar a natureza das re- laces entre a modalidade de cinema propos- ta, as condigées de comunicagao € a luta cco- némica. Em outros termos, a maior dificul- dade esta em estabelecer em cada contexto nacional ¢ em cada momento, qual © peso ideolégico-politico de cada um dos aspectos em jogo. Nos paises latino-americanos, onde a questio nacional ¢ a luta pela conquista do mercado assumem uma significagio muito especifica ral), as consideraces do cineasta frente a di ferentes modalidades de discurso tendem a assumir uma orientagao diferente daquelas encontradas no cinema “desenvolvido” con- temporaneo. As dificuldades neste terreno refletem- se nas ambigilidades e nos siléncios de Ciné thique face A validade universal do projeto luta contra a colonizagao cultu- de desconstrugao, bem como em suas difi culdades na analise dos filmes latino-ame canos, principalmente no que se refere & re- lagio entre a modalidade do discurso ¢ sua significacao ideolégica. E, num exemplo modelar da diferenga de orientagao, encon- tramos as consideragdes de ordem nacional- econémica como pontos fundamentais na discussio entre Glauber Rocha ¢ Jean-Luc AS PALSAS DICOTOMIAS 169 ‘TERRA EM TRANSE, Glauber Rocha Godard por ocasiio da filmagem do Vento do leste, Ap6s uma década de miituo apoio 0 conflito entre os dois cineastas se dé justa- mente no momento em que Godard, mobi- lizado no projeto de desconstrucao, vé nas propostas de Glauber para a “edificagio do cinema do Terceiro Mundo” um recuo in- dustrialista (economicista) ¢ uma coneilia- cao com 0 conceito burgués de representa- Gio. Ao mesmo tempo em que Glauber vé na desconstrugdo um mergulho em especu- lagies filosdficas sem saida, totalmente afas- iro Mundo. Nao tado dos problemas do Terc me interessa entrar nos detalhes da argumen- tagio posta em jogo neste debate, mesmo io introduzir uma série porque seria neces de novos elementos que compéem o pano de fundo da discussio. Por exemplo, as po: lémicas de Godard ¢ Glauber em cada um dos contextos nacionais. E preciso lembrar que, na mesma época, Glauber discutia com brasileiro, 0s lideres do “cinema marginal perspectiva que guarda certas rclagoes com a desconstrugao de inspiracao francesa. Fago uso desta referéncia apenas para ilustrar 0 quanto as consideragées em rorno da trans- 170 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO paréncia, da desconstrugao do cinema-dis- curso nao se esgotam no nivel desenvolvido aqui e 0 quanto efetivamente cada contexto especifico gera motivaces novas na orienta- gao das escolhas estéticas. O que fica registrado nestas notas fi- nais, no sem a reafirmagao de que a preocu- pacdo com a luta econémica ¢ o exercicio de um nacionalismo cultural anticolonialista, nao tornam itrelevantes tais “interrogagées filoséficas” enderegadas ao discurso ¢ aos problemas de linguagem, Uma desconside- rao por este aspecto decisivo da pritica ci- nematogréfica, traduzida numa mitologia da “consciéncia critica” que expressa seus con- tetidos naturalmente ou traduzida no opor- tunismo dos reprodutores das formulas vi gentes, significa uma dissolugao efetiva de tal “consciéncia critica” € uma adesfo & transpa- réncia que reafirma os dogmas do idealismo. APENDICE 1984 ‘Termine’ o livro, em 1977, falando em “adesio A transparéncia” e reafirmando a preocupagio central de “critica ao ilusionis- mo’, feita entao dentro das coordenadas es- tabelecidas pela producio tedrica francesa pés-estruturalista, marcada pela psicandlise de Lacan, de um lado, e por Jacques Der da, de outro — Derrida cujos textos fizeram emergir o debate da desconstrugao no plano da filosofia e da literatura, antes de seu trans- plante para o campo do cinema. Relendo, observo que, na apresentagao do debate fran- cés, eu deveria ter advertido o leitor para 0 fato de que, ao se transplantar para o cine- ma, a desconstrucao recebeu tradugao parti cular que nao corresponde bem 3 sua for- mulagio em Derrida. Este toma a questio da linguagem e da escritura como flanco pri- vilegiado de discussao das premissas de toda uma tradigao filoséfica ocidental. Operan- do com os dados trazidos pela investigacio da ciéncia lingiiistica moderna, apoiando-se na leitura de Heidegger, Derrida é radical no descarte da idéia de que hé um sentido pré- prio (primeiro, literal) nos elementos que compéem a linguagem, por oposi¢ao a um sentido figurado (segundo). No limite, ele questiona qualquer hipétese que pense a lin: guagem como instrumento (técnica), como superficie transparente apta a veicular men- sagens cuja verdade caberia restituir com base numa instincia origindria ~ 0 sujeito, o de- terminismo histérico, Deus ~ que dé funda- mento i producao de sentido, que fornece um centro fixo a partir do qual os significa- dos se articulam. O seu anti-ilusionismo é um discurso sobre a “falicia de uma origem fixa”: 0 mascaramento fundamental de uma certa concepgao da linguagem é 0 de criar a iluséo de uma origem, a nostalgia de uma presenga (na origem) que nao € mais, que estd ausente, que caberia recuperar. Interro- gando a propria nogao de “significado”, re- definindo a concepgio de “leitura’, Derrida estd as voltas com a demolicao dos pressu- postos de toda uma merafisica com a qual 0 proprio marxismo esté comprometido (0 sentido da histéria etc.). Os tedricos da re- vista Cinéthique, no transplante, promovem uma redugao do problema aos rermos com- pativeis com o referencial marxista; ¢ des- construcao torna-se um colocar em evidén- ia as regras do préprio discurso enquanto referidas a um solo histérico-social concre- 172 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO to, torna-se um desnudar 0 trabalho da re- presentagao, suas condigées de produgao no interior da luta de classes. O mais importante diante dessa inter- pretagao particular, nao é propriamente cor- rigi-la, nem seria eu capaz aqui de esmiugar uma questio que ainda me ulerapassa (ironi- camente, remeto-os & “origem”: Derrida). Cabe, isto sim, retomar os scus motivos ideo- Iégicos trabalhar um pouco mais o momen- todo transplante quando, afinal, toda a apos ta de cineastas ¢ tedricos empenhados neste proceso estava concentrada no rendimento politico imediato de sua baralha contra o ilu- sionismo. A virada dos anos 1960 para os anos 1970 esta, de diferentes formas, marcada pelo mergulho radical na critica a0 “fetiche da imagem”, 4 manipulagio do desejo ¢ da frustragio que um discurso ficcional opera reiteradamente. E 0 momento de desencan- co com qualquer residuo de transparéncia na imagem/som do cinema ~ terreno de aliena- io inevitivel. A palavra de ordem é a sabo. tagem do prazer cinematogréfico, em qual- ico se atrela mais quer nivel, € 0 cinema polit do que nunca i desconstrugao. A represen- tagio, cléssica ou moderna, senta no banco dos réus € 0 cineasta investe em criar meca- nismos de discussio de seu préprio filme, enquanto o tedrico investe na explicagio do que, para o espectador comum, é um desa- fio, uma “chatice.” A tendéncia é um cine- ma ascético ~ 4 Godard do perfodo 1969- 1972, & Straub — que namora o conceitual, ou um cinema autoral que, ignorando deli- beradamente as convengdes, presta-se a uma lcitura desconstrutiva (¢ 0 momento de aten- gio maior a0 underground; no Brasil, € 0 momento do salto maior do cinema experi- mental — penso na Bel-Air, de Bressane ¢ Sganzerla, no trabalho de jovens que radica- lizaram o cinema independente entre 1969 € 1971). E recente a experiéncia utépica de maio de 1968, 0 desejo solicita a aceleragao dos relégios e qualquer consideragio sobre 0 ritmo das transformagées histricas tem pou- co efeito, principalmente para quem, sendo de cinema, esta habituado & propria escala reduzida dentro da qual a representagio ci- nematogréfica se constituiu, entrou em cri se, softett abalos e parece desabar. ‘Ao longo dos anos 1970, apés os aba- los sismicos de muita teoria ¢ de alguma pra- tica, 0 terreno se acomoda, a experiéncia mais radical se confina, ganhando continuidade apenas em projetos muito particulares ~ lem- bro Straub, Marguerite Duras, Chantal ‘Ackerman, Syberberg entre outros. A ordem nao entra em colapso, Hollywood se recu- pera e determinados cinemas nacionais am- parados pelo investimento estatal ~ penso no cinema alemao (a intervengao do Estado no Brasil nao se deu para fazer emergir uma nova geracdo, nem uma multiplicagio de propos- tas) ~ dao espaco para jovens emergirem com uma pluralidade de propostas, a perspectiva do cinema de autor se revigorando em novas bases como parimetro no mercado (que ¢ © mesmo e envolve as mesmas forgas). Os no- vos cineastas de maior talento disputam, atra- vés dos velhos festivais, as posigdes de honra no comércio internacional. Aos tempos de Godard, sucedem os tempos de Fassbinder, Wim Wenders, Saura, Tanner. O antici nismo, enquanto referencia, perde o impeto no debate ¢ 0 sentimento de urgéncia asso- APENDICE 1984 173 ciado a desconstrugao do cinema cede lugar para uma consciéncia atenuada do esgota- mento das convengées. A citagao, o refazer, © deslocar, elementos jé presentes desde 0 inicio dos Cinemas Novos, passam a primei- to plano, novamente. O politico concilia com 0 cinéfilo; o cineasta de hoje, com 0 adolescente espectador de ontem. E.a ténica da produgao autoral é uma “ficgao de segun- do grau”, a repeticio de dispositivos clissi- cos que se julga (¢ esperemos que sim) ga- nhar novo sentido porque sua atmosfera nao € mais a de um uso inocente da convengao € do repertério mas a do rearranjo hipercons- ciente das mesmas figuras de estilo, desloca- das, revigoradas pela introdugao de ingre- dientes novos. A grande aposta € que, em todo este proceso de reiteragées ¢ desloca- mentos, 0 cinema de hoje faga ver melhor as proprias convengGes de linguagem, as leis dos géneros da industria cinematogrifica ¢ seu sentido, ideoldgico € politico, no interior da cultura de massas. Penso aqui na versio mais conseqiiente do cinema contemporaneo, porque, neste “cinema de segundo grau”, a fronteira é ténue entre a recriagao que insta- laa diferenga ¢ o refazer que é pura instancia de repeticao. Nos Estados Unidos, por exem- plo, a diluicao barateamento (que custa milhdes de délares) daquela “consciéncia do estilo” prépria ao cinema politico dos anos 1960 chega a seu extremo: € agora estratégia maxima das grandes produgées onde o artis- ta se pde, como nos velhos tempos, como. profissional competente ¢ refaz (na brinca- deira) todo o arsenal das aventuras classicas, consolidando a era do “cinema de alusées” (expressao de Noel Carroll). Instala-se 0 “pas- satempo em segundo grau”, O (novo) cine- ma como nostalgia do (velho) cinema esque- ce as inquietacaes, os dilaceramentos, a d mensao critica, e entrega-se ao esporte de retrazer 0 imaginario da adolescéncia ¢ as velhas mitologias hollywoodianas, sempre etnocéntricas. Tal perspectiva hidica reativa 0s motivos profundos da velha “fabrica de sonhos” (agora pesadelos divertidos) e, a0 mesmo tempo, confere a confortavel sensa- ao de distancia: a hiperconsciéncia das re- gras do jogo retine o profissional ¢ seus es- pectadores ~ ficamos apenas de olho na per- formance, colocamos no trono a competén- ‘cia em edificar 0 pueril. Pela via da sofistica- ao tecnolégica, 0 cinema industrial dom nante se recupera, revive até grandes suces- sos dos bons tempos num momento em que a ctise geral do mercado da menos espago ainda ao que se convencionou chamar de al- ternativo. No cenario pés-modernista, é a indis- tria cultural que esta na ofensiva ¢ mostra competéncia na absorcie do que veio para negé-la. A politica de sabotagem do “fetiche da imagem”, ou mesmo outros tratamentos de choque propostos pelas vanguardas, no estendendo a sua esfera de poder, tornam-se um campo de curiosidade, de estudo, entre outros. E.a reflexio sobre o cinema, afinada aos novos tempos, pde-se a renovar seus ins- trumentos para explicar melhor a sobrevi- véncia do que se tentou demolir ou se jul- gou esgotado. Nos tiltimos anos, pensar 0 cinema é via de regra um explicar, de modo cada vez mais sofisticado, 0 cinema clissico e seus herdeiros. Ha derivagées particulares oriundas de grupos emergentes: 0 discurso 174 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO feminista, que mobiliza a psicandlise para discutir a questio de um cinema ¢ de um olhar feminino, que faz a critica dos pressu- postos patriarcais de todo um cinema; ou 0 discurso daqueles que esto engajados numa pritica que retine cinema ¢ antropologia, sempre dispostos a criar experiéncias e dis- cutir a questo da alteridade do olhar, 0 did- logo com a perspectiva do “outro”, cujos cédigos de percepcao sio diferentes dos meus. No plano de uma “teoria geral”, ndo descarto a existéncia de excegdes & tonalida- de cinza que predomina (lembro do livro de Gilles Deleuze —Limage— mouvement sau- dado com euforia em circulos franceses; a tradugio ver af, fiquemos atentos). Por en- quanto, 0 que o tempo nos oferece éa exegese BIBLIOGRAFIA DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferen- (4, Sio Paulo, Perspectiva, 1971. DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento, cinema |, trad. Stella Senra, Sao Paulo, Brasiliense, 1985. do conhecido, a forga do cinema industrial exigindo o recurso & psicanilise, & bioener- gética, & solidez. dos arquétipos, ou simples- mente © retorno 4 esquemitica explicacio que combina poder econémico e condicio- namento behaviorista para resolver todo 0 problema que a cultura apresenta. E tempo de arqueologia. E este revirar ruinas provavelmente esta a preparar revela- Oes aptas a revigorar a critica inspiradora de novas priticas. Na superficie, no entan- to, o destino atual das escavagdes, como no novo seriado de Hollywood, mostra-se sob a protecao de arquedlogos profissionais com- petentissimos sempre dispostos a domesti- car a descoberta e colocé-la a servico da or- dem instituida da representagao. AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) Ismail Xavier Como exposto na parte final do livro, a visio do cinema como um Dispositivo (Jean- Louis Baudry) trouxe uma sintese do percurso da teoria nos anos 1970, propondo uma anilise critica do efeito-janela que levava em conta nao sé as caracterfsticas préprias da imagem mas também as condigées psiquicas de sua recepsao. Resumindo, ha um cinema (0 cléssico e suas atualizagGes) que explora a poténcia de simulacao do dispositivo, dando ensejo a que o especta- dor se veja diante do espetdculo como um sujeito soberano a quem o mundo se oferece para a petcepgao ¢ 0 conhecimento em condigées ideais, de modo a compor a relagdo sujeito-objeto nos moldes cartesianos, ou seja, segundo uma nogao do sujeito consolidada dentro da tradicao burguesa. Lembro aqui este aspecto da teoria porque era central este movimento de vincular 0 aparato técnico com uma formagao ideolégica que se questionava a partir de uma inspiracao vinda dos pensadores associados 4 desmistificago do sujeito ¢ da consciéncia como entidades auténomas (Marx, Nietzsche ¢ Freud). E havia também o pressuposto da dominagio social — a qual o cinema classico prestaria 0 seu servigo — ¢ a hipétese de que a eficécia do cinema neste papel estava apoiada na prépria estrutura da psique (segundo a t6pica freudiana) que encontra- va no dispositivo cinematogréfico o seu espelho. Se 0 cinema se coloca socialmente como “maquina de prazeres”, esta teoria apoiada na psicandlise entende seu efeito como um movimento de regressao narcisista pelo qual 0 especta- dor se entrega a uma identificagZo com 0 aparato e, em seguida, com imagindrio representado na tela. Jean-Louis Baudry publicou mais tarde o livro O efeito-cinema’ que realca novamente esta dupla dimensio do filme como artefato (0 fazer, a arte, a representacao) como experiéncia subjetiva de gratificagao vivida por uma platéia fascinada em fungao da sintonia entre sua dis posicao ¢ 0 bom objeto oferecido na sala escura (oferecido por um cinema, nao todo o cinema, porque um cinema moderno mais radical ¢ 0 momento da desconstrugao traziam a ruptura com isto). Ver Jean-Louis Baudry, Léffet-cinéma (Paris, Albatros, 1978) 176 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Christian Metz, o mais equilibrado sistematizador desta teoria, deixou claro que Dispo- sitivo nao é apenas o aparato técnico, mas toda a engrenagem que envolve o filme, © publico ¢ a critica; enfim, todo o proceso de producio e circulagdo das imagens onde se atuam os cédi- {g0s internalizados por todos os parceiros do jogo. Deste modo, o Dispositivo se poe como uma instituigdo social da modernidade” que comesa entao a ser decifrada em suas bases mais pro- fundas.’ Merz buscou mais tarde novas inflexdes no enfoque da “questao do espectador”, en- contrando uma afinidade no trabalho de Francesco Casetti que, tanto quanto ele, dissolveu a dimensio de militincia critica dirigida ao cinema industrial (mesmo em 1975-77, Metz ja buscara uma preciséo conceitual maior, sem horizontes de negagio de qualquer cinema). Nas formulagées que ele ¢ Casetti fizeram depois, o ponto force foi dar maior especificagao a este lugar do espectador” no processo, entendida a posigao do sujeito-teceptor tal qual o proprio filme a constréi ao se ditigit & platéia.’ Ou seja, a teoria nao descreve 0 comportamento de sujeitos “empiricos” ld cfetivamente na sala escura, mas o espectador suposto pelo filme (“im- plicado na forma do texto”); enfim, o consumidor que o filme deseja ¢ para quem ele se mostra ajustado. Tal ressalva estd longe de tornar a teoria do Dispositivo (versio Metz) imune & critica @ a refutacao, mas se mostra mais refinada do que certas observagdes de seus adversirios quando estes insistem na dbvia diferenga que se instala quando o filme encontra espectadores particula- res em situagdes particulares, pois a questao nao € constarar diferengas mas explicar certas rea- es comuns geradas por produtos de grande audiéncia apesar das enormes distancias de forma- ao, valores € contexto cultural que separam as platéias. Um bom exemplo do desdobramento das consideragées sobre o lugar do espectador € seus regimes de leicura do filme é dado pelo trabalho de Roger Odin, principal figura da semio- pragmatica, que combina a andlise imanente do filme a consideragdes sobre a situagao especifi- ca da comunicagao. Odin trouxe notavel contribuigdo a intrincada discussao sobre as diferengas ¢ identidades entre “ficgio” ¢ “documentério”. Para ele, a distingao entre os dois modos nao se coloca no plano exclusivo do objeto-filme, devendo incluir consideracdes sobre o tipo de inves- timento feito pelo espectador na sua relagdo com o filme. Esta pode mobilizar uma leitura “documentarizante”, ao pressupor que a imagem na tela tem um doador-narrador real, ou seja, alguém que pertence ao “nosso” mundo e que podemos questionar sobre identidade, verdade, fatura; ou uma leitura “ficcionalizante”, ao pressupor um doador-narrador ficticio, que perten- cea um mundo que nao € 0 nosso, figura inquestiondvel.* > sta €a rardo pela qual Dispositivo se refere aqui sempre & teoria que envolve este jogo de espelhos entre 6 técnico e © psiquico, com todas as supostas implicagdes ideol6gicas; ¢ dispositivo se refere ao aparato tecnico responsivel pela especificidade do cinema, Ver Christian Metz, Le signifiant imaginaire: psychanalyse et cinéma (Paris, Union Générale d’Editions, 1977}; Francesco Casetti, ET film y su espectador (Madri, Catedra, 1989) *Ver Roger Odin, De la fiction, Bruxelas, Editions De Boeck Université, 2000). AS AVENTURAS DO DISPOSHIVO (1978-2004) "7 Metz, Odin ¢ Casetti definiram seus projetos com nitidas diferengas face & reoria do Dispositivo na versio de Baudry, mas sem uma ténica de oposigdo a muitas de suas premissas. A seu modo, também o contexto anglo-americano — onde 0 termo & Apparatus — incorporou legado e Ihe deu novos desdobramentos. Quando rejeitada, a teoria do Dispositivo foi alvo de polémicas acitradas dos dois lados do Atlintico, num combate que no esté encerrado la no passado como bem mostram publicagées recentes.° A) AS AVENTURAS DO DIsPOsttIVo: PRIMEIRO MOVIMENTO Em aplicagoes mais especificas, a teoria do Dispositivo foi incorporada a uma parcela dos estudos de cinema levados a efeito de uma perspectiva feminista, quando 0 ponto central era a andlise da questo do género (gender); nestes casos, foi mantida a dimensio de combare ideol6 gico ao cinema clissico e a seu olhar, combate concentrado em sua dimensio considerada sexis- ar exatamente as “posigdes de sujeito’ ta, pois 0 que interessava para esses estuclos era caracter (masculino/feminino) favorecidas pelo estilo classico de narrativa. Mais tarde, 0 desenvolvi- mento da queer theory tornou mais complexa a questao, pois deixou claro que as posigdes de espectador e tudo 0 mais referente ao estatuto da imagem ¢ aos investimentos de descjo envolve uma taxonomia mais ampla que inclui 0 eixo homossexual/heterossexual € supde ainda um espectro mais nuangado que deve considerar todas as ambiguidades nesta atribuigao de identi- dade que incluem zonas de fronteira." S Nao se trata aqui de uma apresentagio compreensiva e geral das questdes ¢ teorias que vou citar, Uma exposicéo clara ¢ abrangente, que apresenta outto recorte das teorias recentes, ¢ encontrada no livro de Robert Stam, Una introdugito a teoria do cinema Sio Paulo, Papirus, 2003). Ha também o posficio as novas edigoes de A experiéncia do cinema (1983, 1990, 2003), antologia de textos clissicos de critica ¢ teoria que organizei para a editora Graal (livro que pode ser lido em conexao com este, dado que o percurso é paralelo) Hi, no final dessa antologia, uma apresentagio sintética do campo te6rico nos anos 80, onde destaquei Gilles Deleuze ¢ 0 cognitivismo norte-americano como dois pélos de combate ao que era hegemdnico nos anos 70. Esti sendo langada uma antologia organizada por Fernao Ramos, Teoria contemporinea de cinema. pela Editora do senac: (Si Paulo), que compoe uma nova colegao de textos disponiveis para o leitor “Para estudos feministas, ver M.A, Doane, P. Mellencamp e L. Williams (orgs.), Re-vistonsressays on feminist film criticism (Fredetick, Md, University Publications of America, 1983); Tetesa de Lauretis, Teehnolagie of gender( Bloomington, Indiana University Press, 1987); Marie Ann Doane, Femmes fttales: feminism, flor theory, Psychoanalysis (Londres, Routledge, 1991). Pata queer theory, ver Jan Campbell Arguing with she phallus: feminism, queer and postcolonial theory (Londres, ZED Books, 2000); Chris Strayer, Deviant eyes deviant bodies: sexual re-orientations in fil and video (Nova York, Columbia University Press, 1996): Richard Dyer, Now you see its studies on lesbian and gay filon (Londres, Routledge, 1990) 178 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO A tradigao inglesa de anilise da ‘posigao do espectador” ganhou diversificagao e caminho proprio. Em verdade, teve Ié na origem um ponto de inflexio fundamental, antes mesmo da importagao mais sistematica da teoria francesa, no texto de Laura Mulvey “Prazer visual e cine ma narrativo”, de 1975.” Ai, o fundamento é a psicandlise, mas as suas interrogages — quem é objeto ¢ quem é sujeito do olhar no filme clissico? — se apdiam diretamente em Freud, sem passar por Lacan. ale, neste sentido, uma observacio. Mulvey sinaliza a tensdo entre duas di- mensoes da experiéncia (e do desejo) do espectador diante de um filme narrativo: (1) a da fixagao na imagem (onde esté em jogo o fetichismo, vontade de permanéncia da imagem alheia ao fluxo narrativo); (2) ¢ a da identificacio com as posigoes das personagens no enredo (onde, ao conttario, se trata de mergulhar na narrativa ¢ nas ages, querer chegar ao desfecho). Desta forma, ela permite que se tematize, em chave psicanalitica, certas tensbes que os tedticos de cinema sempre enfrentaram e que ainda hoje representam um desafio: como examinar 0 que, na imagem, se ajusta ao encadeamento narrativo ~ contribuindo para a l6gica das agdes no espago eno tempo ~ € 0 que, na imagem, ultrapassa esta insergio, pondo-se como um “suplemento” na experiencia visual com efeitos nem sempre compativeis com o plano das ages € reagbes. Ou seja, a imagem como “pura presenga” das coisas ¢ das fisionomias. Este € um problema que, focalizado ou nio, habita os percutsos da teoria e da critica de cinema, estando implicito nas formulacdes dos conceitos ¢ nas anilises de filmes, como 0 préprio destino das formulacoes de Baudry ¢ de seus adversdrios demonstram muito bem. Neste sentido, néo vou me deter aqui na consideragio dos desenvolvimentos da teoria da narrativa no cinema. Privilegio anotagdes que tratam destes cotejos entre 0 dispositivo técnico € as questées ligadas aos caminhos da representagao (e sua crise), ou ligadas a essas tensdes entre o narrativo e o que, na imagem, excede. A rigor, eu deveria dizer o que, na imagem-som, excede, pois o dispositivo ¢ esta articulagao instavel, e 0 elenco das tens6es presentes no corpo de um filme inclui, em plano essencial, as relagoes entre a vor, os ruidos e a mtisica com a imagem, num processo que o cinema clissico tratou de domesticar com scu principio de transparénc (nao sem problemas), € que 0 cinema moderne deixou expandir com a formagio de corpos heterogéneos, discursos opacos em que as bandas flutuam uma sobre a outra, em montagem vertical (Eisenstein), produzindo novos efeitos de sentido. No que segue, esté pressuposto este binémio, mesmo quando a economia da frase nao o torne explicico.* Este artigo de Laura Mulvey esta incluido na antologia que organizei: A experiéncia do cinema (3. ed., Rio de Janeiro, Editora Graal, 2003) * Para a relacio entre som e corpo do filme, ver Mary Ann Doane, “A voz no cinema: articulago de corpo e espago”, em A experiéncia do cinema. A reflexdo sobre 0 som avangou muito a partir de 1980 Dentre os autores responséveis por isto, destaco Michel Chion. Ver La voix au cinéma (Paris, Editions Cahiers du cinéma, 1982), Le son au cinéma (Paris, Editions de Etoile, 1985) ¢ La musique au cinéma (Paris, Fayard, 1995) AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 79 Um exemplo simples que envolve a oposigéo entre o vertical (a forca do instante) ¢ 0 horizontal (a forca da sucesso) se refere — aqui pensando mais em termos de imagem, seguindo as observacdes de Laura Mulvey ~ aos poderes de atragao dos filmes da industria sustentados pelo carisma ¢ sex-appeal da esteela, da persona (mascara) de um ator ou atriz; enfim a forsa do corpo ¢ da fisionomia (notadamente quando esté em pauta 0 Star System). A mesma tensio (ou harmonia) se instala em outros casos em que a forga de imantacao do detalhe reverbera na recepgao das obras, como o impacto de um contexto sociogeogrifico, ou do que seria um fragmento de natureza “selvagem’, como ja se observou desde os primeiros tedricos do cinema que clogiaram os filmes de viagem ¢, depois, certos géneros de ficcio como o western. Aqui, um senso de recuperagio de uma natureza perdida ajudou a criar a mitologia em rorno deste género m fungio do efeito-paisagem, da reinsergio do humano numa ordem vital mais ampla, o que, mais tarde se elaborou melhor a partir de uma perspectiva histérica, observando a relagio da imagem cinematogrifica com as tradig6es pictéricas e iconogréficas, quando espacos como 0 do Monument Valley foram analisados em sua dimensio mitica. Outra forma do imagético ultrapassar a narrativa, definir uma presenga que excede o drama, é a insergao de emblemas, no da natureza, mas da urbanidade, quando o detalhe menor, 0 que patece objeto banal, ganha amplitude como qualidade relativamente auténoma, gerando sentidos ou efeitos pop nao atre- Jados & hist6ria que se conta no filme. Voltarei a esta questao das tensdes entre imagem e dimen- sao narrativo-dramatica do cinema na parte final desta exposigao, onde vai ecoar essa observa- io sobre 0 trabalho de Laura Mulvey. A revista Screen, publicada na Eseécia, foi nos anos 70/80 uma das cidadelas dos criticos anglo-americanos que incorporaram, com ajustes, a tcoria do Dispositivo dentro do eixo Jacques Lacan- Louis Althusser, 0 que definiu um programa de andlise de ideologia em que a questio da “teoria do sujeito” e uma tipologia das suas “posigdes” (nao espaciais, mas de investimento libidinal) foi um campo especial de um debate que cada vez mais se deslocou para uma teoria dos géneros, seja 0 gender (maselfem), seja 0 genre (tal como constituidos no cinema indus- trial).’ Quando o recorte do gender e aliou ao recorte do genre, esta vertente se alinhou a critica que, a partir dos anos de 1970, se fez a hegemonia do Autor como baliza de anilise. Concorre para esta critica do Autor nao s6 0 descarte das posturas modernistas que privilegiaram ao longo do século as “grandes obras de ruptura”, mas também o descarte da “politique des auteurs conduzida pelos Cuhiers du cinéma desde os anos 1950 (politica cuja inspiragao era outra, nao propriamente modernista). A recuperacio dos estudos de géneros dramiticos (ou géneros da industria, como a comédia musical, o filme de gangster, o western) fer parte do abandono das posigdes radicais de 1968-1970, fazendo voltar um interesse pelo roteiro (pelas regras da escrica ” Para uma sintese da perspectiva da revista Screen, ha o volume The sexual object: a screen reader in sexuality (Londres, Routledge, 1992). Este livro traz artigos publicados na revista nos anos 1970-80. 180 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO para cinema) € questionando 0 exclusivo clogio a mise-en-scéne como traco de estilo e sinal exclusivo de uma inflexio subjetiva (autoral) presente no olhar da cimera ou na montagem." Ha uma nova andlise do entretenimento interessada em explorar, sem ignorar as dimensoes regressivas jd apontadas, um outro lado: o das dimensdes utépicas implicadas (e refiguradas) no cinema, quando se supde que se possa alcancar, através do espeticulo coletivo, uma experiéncia de partilha onde o dado essencial é a presenga de um movimento integrativo, de vivéncia de um sonho na sala escura que é sintoma de um desejo de superagao dos problemas ¢ nao apenas um devaneio escapista. A dinamica de ideologia (identificagao regressiva com valores dados) ¢ uto- pia (desejo de superagao) foi objeto de anilise nos trabalhos vindos de uma esquerda nao afeta- da pela teoria do Dispositivo ¢ mais envolvida com o narrativo-dramético. Fredric Jameson concebeu suas andlises dentro desta dindmica de ideologia (fator regressivo) € utopia (Fator progressivo), voltando-se para produtos de Hollywood, antes que suas anilises da questao do pés-moderno o tenham levado a acentuar 0 cinema como um dispositivo, jé nao tao central, dentro da engrenagem da midia cujo avango na esfera publica estaria gerando uma peculiar esquizofrenia.'' Ou seja, a construcao de um presente eterno vivido por sujeitos sem meméria, dissociados, fragmentados por uma crise do senso da temporalidade (esquecimento da hist6- ria), incapazes de sintese atropelados por uma velocidade dos estimulos que, em sua forma interpelativa, se define como um mecanismo de controle. O que esté em jogo aqui é a constatagao de que a situagao atual privilegia um senso de controle pela via da saturagao e nao pela da ocultagao das imagens. O “complexo exibicionério”,? pelo qual os poderes sociais ofereceram em espetéculo um mundo construido & sua imagem, € um dispositivo eficiente de doagao-administragio de pontos de vista (quando sou um suposto sujeito do olhar mas cumpro um programa que nao escolhi). Como mecanismo de controle, vem complementar a forma mais tradicional simbolizada hoje na “camera de vigilancia” (onde sou objeto do olhar). As referéncias ao tudo ver do pandptico (lembremos Michel Foucault) acentuam o dado mais visivel e, ao mesmo tempo, mais elementar de um sistema que sofisticou ao extremo a “logistica da percepgio”. Dentro desta, os dispositivos do olhar cumprem variadas fungdes que incluem o que esté implicado nos cendrios de guerra onde desempenham um papel Sobre a teoria dos géneros, ver Thomas Schate, Hollywood genres (Nova York, Random House, 1981); Nick Browne (org,), Refiguring american filon genres: history and theory (Berkeley, University of California Press, 1998); Rick Aleman, Les géneros cinematograficos (Barcelona, Paidés, 2000) modernismo, a ligica cultural ' Ver Fredric Jameson, As marcas do visivel (Rio de Janeito, Graal, 1995) Pés do capitalismo tardio (Sto Paulo, Acica, 1996). "2 Ver Tony Bennett, “The exhibitionary complex” em The birth of the museum: history, theory, politics (Londres, Routledge, 1995). AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 181 chave (e cada vez maior) como bem nos tem mostrado Paul Virilio em anélises como a do livro Guerra e cinema.® © principio de que “vencer € estar sempre com 0 inimigo sob a vista” diz bem do quanto o cinema e outras maquinas da viséo esto implicados - por forca de sua prépria natureza como dispositivos ~ nao sé na estratégia militar, mas também na administra- ao de outras formas de conflito. © jogo do visivel e do invisivel, do iluminar 0 campo de batalha e do camuflar, sio modalidades da relagao entre o ver e o poder que vivemos no cotidi no, pela experiéncia nos espagos piblicos e privados, nas ruas ou diante da 1V. Ver poder é 0 titulo de livro recente de Jean Louis Comolli, uma das figuras de lideranca intelectual nos Cubiers du cinéma no periodo 1968-1972. Concentrado na anilise das relagoes entre técnica, estética ¢ ideologia, é 0 autor cuja militancia critica hoje guarda uma relagao mais orgénica com as posigdes de entdo, pois os deslocamentos que fez em sua teoria, para se afastar da “descons- truco” como operacio radical e iconoclasta, mantém a forte clivagem ideolégica em que opde, a0 plano institucional da “sociedade do espetéculo” (seguindo a nogao de Guy Debord), uma pritica cinematogréfica no terreno do documentirio, voltada para a recuperagao da experiencia c do sujeito (contra a informagio programada; contra a ilusio do sujeito que se faz autémato a0 buscar expressio “individual” dentro da engrenagem dos reality shows). O espeticulo é “positividade do mundo” (cu poderia dizer, é a transparéncia), hipervisibilidade que supde que “tudo estd ai, visivel” num sistema de circulago que nos faz empilhar imagens e nos confundir pela velocidade da maquina publicieéria, Comolli propde um agenciamento de imagem-som que ofereca ao espectador 0 momento reflexive do ver (em que cle se vé vendo), que Ihe dé oportunidade de trabalhar senso de limite (ha sempre algo que se esconde; o invisivel a condigio e sentido do visivel). O objetivo ¢ discutir o estatuto e 0 funcionamento do espetéculo mididtico a partir da insergao da diivida na esfera do visivel, o que também implica na tematizacao = sem inocéncia, pois esta se perdeu — da utopia origindria do cinema (o regime da crenga na ¢ reinstale a reflexio que passa por esta dialética de crenca/duvida/crenga, imagem) para que s apesar de tudo. O essencial é renovar aquela aposta (que a desconstrugio radical abandonou) nas virtudes do dispositivo técnico naquilo que, desde o século XIX, foi visto como a sua capaci- dade de “ir além”, negar, subverter o célculo, surpreender."* Esta referéncia a Virilio ea Comolli, em fungéo de que o dispositive técnico esté direta- mente implicado em suas reflexes, visa apenas evocar a nogio da “sociedade do espetdculo” (Guy Debord) ¢ 0 desconfortavel elo existente entre a geometrizagio do olhar ¢ a militarizacio da cultura, processo que tem assumido uma feigao cada vez mais abstrata no ambiente tecnolégico "Ver Paul Virilio, Guerra e cinema (Sao Paulo, Pagina Aberta, 1993), “Ver Jean-Louis Comolli, Voir er pouvoir ~ Linnocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documensaire (Lagrasse, Editions Verdier, 2004). 182 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO em que vivemos. Por este ¢ outros caminhos, a reflexao sobre a estrutura da experiéncia diante da imagem contemporanea envolve um debate entre os filésofos ou “crfticos da cultura” — como Fredric Jameson, Jean-Francois Lyorard, Jean Baudrillard, Paul Virilio Slavoj Zizek — que, embora crucial, resta aqui como pano de undo. Sao percursos amplos e diagnésticos ambiciosos com os quais a critica e a teoria do cinema tém mantido um didlogo variado, cujo interesse é tanto maior quanto a sua capacidade de oferecer respostas a quest6es especificas. Ou seja, quan- do, ao pensar o cinema, a teoria incorpora tais visbes gerais sem anular 0 exame mais especifico da forma e do que est implicado no dispositivo técnico, sem o qual 0 estudo se empobrece, pois faz do filme uma mera confirmacio-ilustragio dos grandes esquemas jé formulados. ‘Ao contrario do que se elabora a partir dos “criticos da cultura” e seus diagnésticos mais sombrios, uma patcela significativa da reflexio sobre cinema tem mostrado a tendéncia a flexibilizagdo do juizo endercgado ao filme classico ¢ a0 mundo do espeticulo. Tal tonica se manifesta nos dois campos, nos adversirios da teoria do Dispositivo ¢ nos que a assumem como matriz mas se afastam das suas formulacdes mais radicais. Tal é 0 caso, por exemplo, de Slavoj Zizek. Ele tem retomado tal paradigma tedrico, movimentando-se entre Lacan ¢ a filosofia, € tem combatido em nome dele os argumentos da perspectiva cognitivista de alguns tedricos norte-americanos. No entanto, trabalha o mundo da industria cultural sem se alinhar & des- construgao ¢ sem manifestar efetiva militancia por revolugées estéticas, concentrando-se mais nna anélise refinada do sistema da midia como sintoma que, lido sem temores, pode se tornar 0 campo produtivo de uma psicandlise politizada em “estado pratico”, experiéncia que ele assume como um jogo revelador."* Hoje, efetivamente, mesmo para quem mantém como horizonte a critica do sistema — andlise de ideologia, a insergio do cinema no debate politico — nfo se trata mais de assumir a recusa radical da decupagem clissica, optar por uma defesa intransigente da opacidade que muuitas vezes trava a critica e a reduz a repetigao do mesmo nao importa qual seja 0 objeto. Um dos terrenos onde isto 4 claro é no estudo do melodrama que alcancou novos patamares a partir de meados dos anos 70, mobilizando psicandlise ¢ andlise de ideologia, num movimento que teve o cineasta Rainer W. Fassbinder e 0 critico Thomas Elsaesser como pdlos de renovagio, encontrando desdobramentos nos estudos dos géneros dramiticos feitos na Inglaterra e nos Estados Unidos."° 2 Ver Slavoj Zizek (org). Everything you always wanted 10 know about Lacan (but where affraid to ask hitchcock (Londres, Verso, 1993); Looking awry: an introduction to Jacques Lacan through popular culture (Cambridge, MIT Press, 1991) "© artigo de Thomas Elsaesser, “Tales of sound and fury: observations on the family melodrama’, é de 1972, e foi incluido na antologia de Christine Gledhill (org.), Home is where the heart is: studies in melo- drama and woman's film (Londres, BFI, 1987). AS AVENTURAS DO DISPOSETIVO (1978-2004) 183 Outro campo de flexibilizagao da teoria das demandas vem da constelagio dos chama- dos cultural studies. Ao assumir uma tradigio de pesquisas em histéria da cultura consolidada na Inglaterra a partir de autores como Raymond Williams, E. P. Thompson ¢ Richard Hogeart, tal tendéncia tem trabalhado a questio da cultura ¢ da comunicagao com 0 olhar voltado para politicas de identidade que discutem a questo do sujeito, nao a partir de um diagnéstico de suas ilusdes “estruturais”, mas a partir de conflitos sociais efetivos (¢ localizados) em que hi afirmagio ¢ negacio de etnias, ou de identidades sexuais. O movimento mais decisivo ai € o da condigées particularizagio historica, incluida neste movimento a questio do sujeito ¢ de empiricas da recepgao. Em que condigées e com que formagio cultural operam os espectadores m cada contexto sociogeogrifico ¢ cultural? Ou seja, os “estudos culturais’, como projeto de natureza i aprofundar o afastamento face & mattiz tedrica francesa — de teor mais filos6fico — ¢ a ajustar os estudos de género (nas duas acepgoes do termo) a uma perspectiva mais socioantropolégica preocupada em contextualizar as experiéncias, denunciar o lado abstraro deste Universal conti- do na nogio de espectador vinda de Baudry, ¢ acentuando quest6es mais incisivas ligadas a tragos de identidade sexual (como na queer theory e nos estudos feministas), étnica, nacional e de classe dos espectadores. A andlise do discurso da midia ¢ da sua recepsio procura o reforgo de ica; quando erdisciplinar tendem a pesquisas empiricas e dialoga mais com historia e ciéncias sociais do que com a es se derém nos filmes, tende a se concentrar no nivel narrativo-dramatico."” Na observagio do cinema como instituigao social, a tendéncia foi se assumir um ponto de vista menos apoiado em Durkheim e Sausstire, ou em Althusser, € mais na reflexio sobre 0 poder inspirada em Foucault, referéncia que tem substituido Gramsci e os marxistas ingleses, de modo ase configurar uma outra nogio do controle na sociedade ¢ dos dispositivos do poder, Empe- nhados em questionar a nogao de induistria cultural cunhada por Adorno e Horkheimer, muitos praticantes dos cultural studies investiram pesadamente na caracterizagao da recepgio como processo ative, em que espectadores negociam, se reapropriam do que a indvistria thes oferece de modo a que se produzam efeitos de sentido nao previstos, nao toralmente inscritos na perspec~ tiva do sistema. Um cnorme contingente de pesquisas se fez nesta diregao de valorizar 0 receptor como agente capaz desta reapropriagio, tentando mostrar que, apesar da natureza do sistema oposigio 3 formulagio de Baudry, os caeliunal srudies igual Razio pela qual, embora partilhem de um. mente tomam distineia do cognitivismo cujos protagonistas privilegiam o terreno da estética, da andlise formal e da consideragao em detalhe dos processos cognitivos tal como ocorrem diante da forma narrativa cdo estilo, "Ver Michel Foucaule, Micrafisica do poder— org, Roberto Machado (Rio de Janciro, Graal, 1979), ¢ Ent defesa da sociedade (Sao Paulo, Martins Fontes. 1999), 184 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO produtivo, nem tudo seria colonizado pela industria.” Os estudo de cultura popular, ou de géneros populares no sentido de cultura de mercado, caminharam, na América Latina, nesta diregao mais afinada ao cultural studies do que & tradicao da teoria critica da Escola de Frankfurt, € pensaram a questao das “mediagées” (culturais, locais, contextuais) como fator de variabilidade das leituras ¢, como preferem os mais otimistas, de reinvengao dos sentidos a partir do material oferecido pela midia, 0 que resulta numa implicita recusa da teoria do Dispositivo ¢ sua énfase na condigdo estrutural que aprisiona os sujeitos receptores. O essencial ai é examinar melhor 0 polo da recepgao, nao a partir de uma teoria da estrutura da psique, como fazem, a scu modo, também os cognitivistas (ver abaixo), mas a partir de andlises empiricas do modo como as diferentes classes, etnias ¢ grupos sociais reelaboram o contetido das mensagens.”” Por diferentes caminhos se consolidou um debate que envolve a recuperagio do valor do entretenimento ou, pelo menos, um deslocamento na concepgio que se tem dos seus efeitos. No campo de uma adesio ao imaginario de Hollywood, ralvez 0 exemplo mais nitido de com- bate aos tedricos de esquerda e aos “contextualistas” de modo geral (estudos feministas, queer studies, cultural studies) seja o de Stanley Cavell, professor de Harvard, ligado a tradigao da filosofia analitica norte-americana, Em seus livros sobre os géneros de Hollywood, Cavell pro- poe uma nova teoria da comédia e do melodrama a partir de uma referéncia aos pensadores norte-americanos associados as utopias de formagao da sociedade, e a legitimidade da “busca da felicidade” (insctita na propria constituigao do pais). Faz, portanto, um movimento de reafirmagio de valores liberais ¢ de conciliagao com a natureza que ganha enorme repercussio, por exemplo, na Franga, onde os seus livros passaram a ser celebrados (os de filosofia ¢ de cinema) por uma parcela da critica que se vé como herdeira de André Bazin ¢ da cinefilia tipica chave filoséfica.” a0s Cahiers du cinéma dos anos 50, vivida agora em no} Para uma antologia abrangente, ver Lawrence Grossberg, Cary Nelson e Paula’Treichler (orgs.), Cultu- nal studies (Londres, Routledge, 1992); outros titulos: Dick Hebdige, Subculture: the meaning of style (Londres, Methuen, 1979}; Tania Modleski (org,), Studies in entertainment: critical approaches to mass eulture(Bloomington, Indiana University Press, 1986); John Fiske, Understanding popular culture (Boston, Unwin Hyman, 1989), Para textos de (e sobre) Stuart Hall, figura cencral nos ciuural studies, ver David Morley ¢ Kuan-Hsing Chen (orgs.), Stuart Hall: critical dialogues in cultural studies Londres, Routledge, 1996) Na América Latina, a revalorizagio dos géneros populares da midia encontra um exemplo no livro ds Martin-Barbero, De los medios a las mediaciones (México, G.Gili, 1987) influcnte de Je © Sobre Hollywood, ver Stanley Cavell, The pursuit of happiness (Cambridge, Harvard Univ, Press., 1981) © Contesting tears: the Hollywood melodrama of the unknown woman (Chicago, Univ. of Chicago Press, 1996). Para sua ontologia do cinema, ver The world viewed (Cambridge, Harvard Univ, Press, 1971). AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 185 Este namoro de criticos franceses com Cavell é um apenas entre outros sintomas de que 0 intercdmbio ora se faz nas duas diregdes ao atravessar 0 Atlintico. Estamos longe da auto referéncia tipica da critica francesa até os anos 70 (salpicada de um ou outro autor clissico alemao). No entanto, nas relagdes entre os dois contextos, o ponto mais visivel é 0 da polémica gerada pelos lideres da incorporacao do cognitivismo a tcoria do cinema, que fazem o ataque mais acirrado a teoria do Dispositivo ¢ & psicandlise. Tal combate tem ocorrido desde 0s anos 80, mas os quase vinte anos de estranhamento mutuo — ¢ tudo o que jd se amenizou nos desdobramentos da teoria do Dispositivo — nao fez arrefecer 0 tom da refrega, 0 que muiras veres a torna uma pega retérica de afirmagao de um grupo teérico que se constitui pela refura- Gio e supSe que tudo na ciéncia (sim, pois ai a teoria se quer ciéncia) ¢ competigao entre duas explicagoes mutuamente excludentes, aniquiladora uma da outta, in totum, Neste sentido, con- testaram a teoria do Dispositivo exatamente pelo lado que parecia ser a suia forga maior nos anos 70: a visio totalizante do proceso que articulava uma estética (a andlise da forma), uma légica da dinamica do capitalismo e da fungio social do espetéculo, explicando ao mesmo tempo 0 que, em termos psiquicos, fundamentava o bom exercicio desta fungao. Esta visio rotalizante favoreceu, desde sempre, uma disputa acirrada de hegemonia que os cognitivistas aceitaram como um ponto central de seu proprio projeto. Como observei, 0 combate ¢ antigo mas seu lance mais recente se traduziu no uso de Teoria (com “T” maitisculo) como estratégia de ataque. O livro organizado por David Bordwell e Noel Carroll: Post-Theory — reconseructing film studies, traz no proprio titulo a estocada irénica que abre uma contestagdo “em bloco” ao campo unifi- cado pela nogao de Dispositivo.’? Na concepcio geral, nas introdugées ¢ nos varios textos que abordam tépicos especificos, a referencia & Teoria vem sublinhar 0 combate ao que fundamenta © seu impulso de unidade que articula dispositivo técnico, natureza da imagem, psicanilise € politica a partir de uma mesma mattiz explicativa. Como Noel Carroll explicita, 0 programa te6rico expresso no livro envolve a defesa da piece-meal theory que se constr6i na pluralidade de tcorias parciais, com a construgio de quadros conceituais ¢ modelos explicativos que tém vali- dade local (ou seja, no ambito de um problema em questao, seja o da montagem, da “posigao do sujeito-espectador”, 0 da narrativa, o dos enquadramentos). A idéia & que tal postura engen- draria respostas mais precisas a perguntas mais modestas; a0 mesmo tempo, se ajustaria melhor ao fato de que as multiplas dimensées do cinema nao permitem que uma Teoria unificada dé conta de seus virios aspectos e, acima de tudo, de suas implicagdes ideolégicas, Como a referencia aqui & a questio do Dispositivo (a imagem cinematografica ¢ psiqu do espectador), tomo apenas um exemplo: o da construcao de um modelo para a experiéncia do espectador. Neste caso, Bordwell ¢ Carroll se concentram no ataque ao que entendem como Ver David Bordwell ¢ Noel Carroll (orgs.), Post- Theory — reconstructing film studies (Madison, The University of Wisconsin Press, 1996) 186 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO uma impropriedade da Teoria que supde um espectador em estado regressive, do sonhar acor- dado, passivo ¢ capturado pelo movimento das imagens ¢ pela narrativa, num estado de torpor que o deixaria & mercé do cinema em sua engenharia de consciéncias. Descartando a psicanilise ¢ mobilizando a psicologia cognitiva, eles propéem um modelo que acentua que hd uma ativi- dade racional, de estado de alerta, pelo qual 0 espectador conduz operagoes de leitura como pritica de “solugio de problemas” (atribuir sentido é cotejar esquemas conceituais com “dicas” percebidas no contato com 0 texto). Trata-se entio de processar dados, usar determinados mo- delos, proceder segundo rotinas (como um computador), usar estruturas assimiladas, mobilizar os chamados filme envolve um processo cognitive que torna a recepcao uma experiéncia distinta daquela suposta pela Teoria. A partir deste problema especifico, ao qual eles supem ter dado uma resposta mais precisa (porque, para eles, ou opera uma coisa ou outta, nao havendo lugar para a superposigdo de processos), fica sugerido que os outros elos da Teoria ficam sob suspeita ¢ haveriam de encontrar refutagées localizadas quando submetidos, cada qual, ao exame. Con. forme o terreno, tal exame nao sera de mesmo teor para todos os pesquisadores que adotam o schemata que nao sao universais mas culturalmente varidveis. Enfim, assistir a um cognitivismo, pois a regra do “conhecimento local” deixa em aberto a diregao dos movimentos subsequentes de interpretagio (de um filme, género ou tendéncia estética). Nao ha propria- positivo, uma defesa do filme clissico ou de outro estilo qualquer, pois ular seu entendimento de como se dé a recepgio do filme com diferen- ica, no sentido de mente, na recusa ao 6 pesquisador pode arti tes opgdes quanto ao cinema desejado. De sua teoria, nao se deduz uma est um programa para um cinema ctitico, alternativo, nem uma acomodagio ao cinema industrial vigente. O que Bordwell, por exemplo, quer fazer é uma “poética hist6rica” (poética no sentido de estudo formal das obras & maneira de Aristételes), de modo a caracterizar formas narrativas em sua variedade ¢ emergéncia num dado momento, ¢ caracterizar uma histéria dos estilos, recorrendo em grande parte, para a andlise de texto (no do espectador), a0 legado dos formalistas russos construido no inicio do século xx, fundamental na evolugao da teoria da narrativa ¢ dos generos.® Aqui, opacidade e transparéncia nao sao valores, pois a teoria deve apenas defini em que condigées podem ocorrer, expondo as operagdes racionais que levam o espectador a discernir afinal do que se trata quando ele sc depara com determinado fluxo das imagens. O percurso de Noel Carroll ilustra bem que nao ha relagao intrinseca entre a teoria (como as coisas funcionam) ¢ a postura estética do critico. Nos anos 80, polemizou com Stephen Heath, figura expoente da revista Screen, nas paginas da revista October, de Nova York, eviden- “Ver David Bordwell, Nurnation in the fiction film (Madison, The Univ, of Wisconsin Press, 1985), Making meaning: inference and rhetoric in the interpretation of cinema (Cambridge, Harvard Univ, Press, 1989} ¢ On the history of film soyle (Cambridge, Harvard Univ. Press, 1997); ¢ Noel Carroll, Mystifjing movies: fads and fallacies in contemporary film theory (Nova York, Columbia Univ. Press, 1988). AS AVENTURAS DO DISPOSTTIVO (1978-2004) 187 ciando que podia se identificar com 0 modernismo estético sem adorar teorias particulares. incluida a que produziu a nogao de Dispositivo e seus derivados. Carroll, cognitivista, encami- nha suas interpretagaes no sentido da critica ideolégica que lé muito bem Eisenstein e celebra O bandido Juliano, de Francesco Rossi. Sua formacio estabelece um forte diélogo com o grupo da revista October, noradamente Annette Michelson, principal intérprere do cinema underground. B) AS AVENTURAS DO DispOsrtivo: SEGUNDO MOVIMENTO, Como observei, a data do livro Post-Theory esta longe de significar que as contestagdes is incisivas tenham se inaugurado ai. A polémica Carroll-Heath nos anos 80 é um pequeno episédio de um processo mais amplo que envolveu os prés ¢ contras na avaliagao da Teoria no contexto anglo-americano, terreno em que o debate seguit caminho oposto ao que encontra- mos na Franga. O pendor totalizante da teoria do Dispositive convidava ao confronto irrestrito ou pelo menos ao desgaste de suas formulagdes mais radicais, 0 que se deu, em parte, pela dissolugao do espirico de 1968 e, em parte, porque a propria constelagao intelectual ¢ filosdtica daquele momento abrigava um pensamento que, jd em 1971, no livro O anti-édipo de Gilles Deleuze ¢ Felix Guattari, questionava a psicanillise e sua nogio do inconsciente, em particular 0 bindmio Lacan-Althusser, buscando uma outra forma de entender o processo cultural e politi- ema a partir de 1983. Apesar de seu numa ocasiao co, um pensamento que veio explicitar sua teoria do impacto, esta foi de assimilagao lenta, a ponto de nao constar como referénci simbé a da reflexio sobre a crise da teoria do cinema na Franga. Em 1989, a revista Hors cadre, ditigida por Marie-Claire Ropars, Michéle Lagny e Pierre Sorlin, em seu n.7, coloca em debate a crise dans la théorie, movendo-se num campo tripartive: a tradigao semiolégica, onde textos de Roger Odin e Francesco Casetti dirigem a questio para a semio-pragmatica; a nova histéria do cinema (campo de Lagny e Sorlin); ¢ a psicanalise, onde 0 diagnéstico da crise se concentra na avaliagio dos estudos inspirados em Lacan. Hi outras indagacdes na revista, mas ha apenas um parigrafo referido aos livros de Deleuze quando Reda concentra no comentario a critica Bensmaia, em nota explicativa ao artigo Lintérée de la crise, s que 0 fildsofo fez a redugio da imagem cinematogréfica a algo equivalente 2 um enunciado (como o faz. Meta, entre outros), ¢ seu ataque as bases linguisticas da teoria do cinema hegeménica na Franga. Ha, portanto, nessa avaliagdo do estado da tcoria uma relagio tangencial com aquela que se colocava como a contestago mais frontal da Teoria, excluida do leque central de posi goes em debate. Hors cadre esté mais interessada na avaliago de um campo teérico em sua propria crise interna, digamos assim, no momento que sinaliza a necessidade de uma revisio dos seus caminhos. Em contrapartida, Gilles Deleuze combate as premissas, tanto as da semiologia, como observado, quanto as da teoria do Dispositivo. Para ele, nao ha sentido em redurir nossa relacao com a imagem cinematogréfica aos termos da estrutura da psique observada dentro do cixo 188 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO Freud-Lacan, pois a questo maior nao esté na dita “ilusdo de base” pela qual recalcamos a descontinuidade radical (0 fato de o filme ser constituido pela projecio intermitente dos foto gramas, imagens fixas) € assumimos a continuidade da imagem em movimento, fazendo a “sutura’ pela qual o filme e nds, sujeitos-espectadores, nos espelhamos como unidade-identida- de. A propria énfase dada ao intervalo entre duas posigées fixas como “ilusdo de movimento” jé esti atrelada a uma nocdo equivocada do tempo, envolvendo uma forma de inscrigao do cinema numa nogao mecinica (¢ espacial) do movimento, operagao que nao dé conta do que, para ele, é essencial na imagem cinematografica como fluxo, devir, mudanga qualitativa. Cada momento carrega o antes ¢ 0 depois, cada presente ndo & apenas uma “posicio relativa dos corpos, dos objetos ¢ dos olhares” mas uma impulsio dotada de intensidade que faz da imagem algo inves- tido de forgas, de relagdes acumuladas, intuicdes reveladoras.” Para Deleuze, é fundamental registrar que o cinema teve sua emergéncia associada a crise da psicologia tematizada no trabalho de Bergson que tinha uma outra forma de entender a relacdo subjetivo-objetivo, sendo consciéncia ¢ mundo elementos mutuamente inclusivos, ha- vendo sempre movimento incessante entre 0 “dentro” € o “fora”. A relacao sujeito-mundo nao é de separacio, contemplagao de verdades objetivas Ié fora, mas de inser¢ao no movimento do Todo que nio se reduz a deslocamentos no espago; é duragéo que o cinema vem tornar visivel Nesta visio, as afinidades eletivas do dispositivo técnico apontam decisivamente para uma filo- sofia que ctitica a nogao de tempo afirmada pela ciéncia positiva ¢ critica a nogo de aparéncia como ocultagao da verdade. Nao ha ai lugar para a idéia de reposigéo de um sujeito cartesiano que, iludido pela falsa aparéncia, contemplaria um mundo a sua semelhanga; pelo contritio, 0 cinema vem expressar a crise deste sujeito tematizada pela filosofia. Ea tarefa da tcoria ¢ analisar as formas do cinema fazé-lo, 0 que acarreta uma invengao intelectual que nio ¢ apenas um discurso “sobre o cinema” mas uma nova constelacao conceitual capaz de ressaltar o essencial “rornar-se outro” que esté af implicado num mundo onde nao hé lugar para a estabilidade da identidade clissica. Cabe entio descartar o paradigma da ilusao presente na alegoria da caverna de Placao (metifora para 0 cinema como mundo das sombras, na acepeio de muitos, em espe- cial de Baudry), € apreciar 0 que, no cinema, ¢ forma de pensamento, experiéncia da duragao, profunda intuigdo vital que traz de volta um elo fundamental com 0 mundo, como ja sugeri- ram, cada qual a seu modo, Balazs, Epstein, Bazin € Pasolini Em conexo com estes pressupostos, 0 combate a taxonomia das imagens feita com base em modelos emprestados da linguistica, ¢ apoiada na associagéo das imagens com enunciados, se faz a partir da elaboragao de uma nova taxonomia que toma como baliza a semistica de em que a teoria dos signos opera a partir da andlise de conexdes entre os fendmenos que Pier -“Telegrafo aqui o argumento que importa na concestagio a0 Dispositivo. Ver Gilles Deleuze, A imagem- ‘movimento (Sao Paulo, Brasiliense, 1985) ¢ A émagem-tempo (Sa0 Paulo, Brasiliense, 1990). AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 189 no passa pelo recorte trazido pela lingua. Vale entao a distingdo entre duas formas de agenciamento: aquela cuja baliza € o fluxo encadeado de ages ~ nos quais se recorta, das ima- gens, 0 que nelas € cliché, ou seja, 0 que interessa captar em fungio de deerminado fim (o objetivo da agao em resposta a uma situagao); e aquela que ocorre quando hii a suspensio de tal teleologia actancial ¢ irrompem modos de percepgao nao atrelados ao finalismo do sistema sensdrio-motor de agdes ¢ reagoes, momentos em que o cinema oferece as sensagdes Sticas puras capazes de tornar visivel o tempo, © pensamento, o sonho. O objetivo da taxonomia é, de um lado, esclarecer quando © porque estamos no regime do que ele chama imagem-movimento (representagio indireta do tempo) ou no regime da imagem-tempo (representacio direta do tempo), ou seja, quando e porque a representagao do tempo se apdia nos deslocamentos que constatamos no espago fisico ou se oferece como duragao, como um tornar visivel o pensamen: to. E, de outro, oferecer, no mesmo movimento de exposi¢io, uma nova forma de marcar a diferenga entre 0 cinema cléssico (imagem-movimento) ¢ 0 cinema moderno (imagem-tempo) Nesta breve evocagao, interessa esse movimento pelo qual a teoria se constitui a partir da referéncia ao que singulariza o trabalho de certos cineastas, pois pensar o cinema é, neste caso, ar certos estilos em operagao para, a partir de descrigdes ¢ cotejos, ir formulando a caracter teoria de tal maneira que a invengio dos conceitos nao se faga em abstrato mas no corpo a corpo com sequencias de filmes, E, ai evidente a recuperagao da anilise estilistica, da atengao ao deta Ihe, com a correlata minimizagao da teoria da narrativa que tanto marcou 6 estruturalismo ¢ as anilises dos que operaram dentro do modelo linguistico. Em outras palavras, hi a incorporagio de um elenco consideravel de observagdes criticas ¢ de idéias geradas na tradicao dos Cahiers du cinéma, num momento anterior ao da formulacso da teoria do Dispositivo e da polémica Ca- hiers- Cinéthique desctita neste livro. O resultado é a reafirmagio de criérios de valor estético ¢ modos de percepgio que consagram os cineastas do panteio dos Cahiers, com énfase para um grande arco de valorizagao do cinema moderno (neo-realismo, Nowvelle-Vague, Bresson) ¢ da tradigao clissica japonesa privilegiada por Noel Burch em seu livro.” Neste sentido, nao ha em Deleuze simplesmente uma teoria geral da relagdo entre tempo ¢ cinematografia na modernidade; a reflexao passa pela constitui rios especificos. O movimento aqui € nas duas direcdes, de modo a criar uma teoria do todo (0 cinema) ¢ ditigir 0 foco para os exemplos em que este todo brilha com maior intensidade. expressa melhor o seu movimento, Estamos, enfim, diante do elogio ao cinema moderno e seus distintos modos de fazer pensar, quando a recusa do fluxo “normal” da continuidade clissica se faz. movimento aberrante, ¢ as vores do narrador confidvel (a autoridade do sujeito sua Verda- 10 dos estilos ¢ seus ima; de no filme classico) dao lugar a construgées geradoras do indiscernivel, © que Deleuze nomeia * Ver Noel Burch, Pour un observateur lointain (Paris, Cabiers du cinéma-Gallimard, 1983). 190 © DISCURSO CINFMATOGRAFICO “poténcia do falso”. Quando observa o documentitio, o elogio se dirige ao “tornar-se ourro” presente na experiéncia do encontro tipica ao cinema direto de Jean Rouch, tao matricial na emergéncia da Nonvelle-Vague como reconheceu Godard. Emerge entio o cinema modetno como campo da experiéncia de uma nogdo do tempo como rede nao linear, nao teleoldgica. Ao recolher a tradigéo dos Cahiers nas consideragées formais sobre a mise-en-scéne € 0 estilo, Deleuze articula seu movimento conceitual que valoriza o cinema come forma de pensa- mento (aqui, a referencia é 0 antigo debate filosdfico sobre o estatuto da imagem e da aparén- cia) a uma estética que, sendo pés-1968, retoma os temas de Epstein, Bazin ¢ Pasolini em outra chave, dialogando de modo mais direto com Serge Daney, a figura que, nos anos 70-80, encarnou 9 movimento de reposigao, nos Cahiers, da postura herdada de André Bazin, mais empenhada tno ensaismo critico e no pensar a partir das obras do que na aplicacao, em abstrato, de princi: pios tedricos generalizantes. Se meut caminho aqui toma como baliza as formas de contestagao ¢ de afastamento face a teoria do Dispositivo, cabe lembrar o papel decisivo de Daney em todo esse deslocamento havido ainda nos anos 70, quando ele mesmo, como diretor da revista, explicitou a proposta de se sair do “teoricismo dogmatico” da fase maoista marcada pelo dabate Cahiers-Cinéthique. Daney simboliza a forga do critico na nova fase pés-desconstrugao, em que se recuperou a reflexao a partir do constante corpo-a-corpo com os filmes e se deixou de estig- matizar a cinefilia, Seu livro La rampe faz uma cronica deste momento de passagem que inclui fragmentos de auto-biografia, uma reuniao de textos publicades nos Cahiers (entre 1970 € 1981) comentarios escritos em 1982 que colocam, com simpatica ironia, todo o material em perspectiva, seja a sua releitura do projeto de Straub e da pedagogia do grupo Dziga Vertov, sejam seus proprios caminhos na mobilizagao da psicanilise na critica de cinema. Ele fecha 0 livro com um curto ensaio que diz muito bem de um novo ponto de vista para pensar a oposi- a0 clissico/moderno que encontrara outras variantes no pensamento de Bazin, nos Cahiers du Ginéma nos anos 60, em Noel Burch, Christian Metz e Pasolini; oposigao que iria balizar os livros de Deleuze em 1983 € 1985, com atengao especial ao dispositivo técnico. A taxonomia de Daney envolve trés momentos do cinema — lembremos que escreve em 1981 ~e tem como referencia a idéia da scénographie e suas variagdes. Esta € entendida como uma sintese formal que engloba a construgao do espago ¢ a mise-en-scene, o olhar da camera ¢ as formas da montagem. Como tal, ela confere um certo estatuto & imagem (um regime de com- posigao) € sugere, ao mesmo tempo, uma forma de leictura (um regime de recepgao). Grosso modo, 0 cinema classico é 0 lugar dos efeitos de profundidade, da cena submetida aos efeitos da montagem ¢ do enquadramento, tendo em vista percursos do olhar balizados pela superacao dos obstaculos rumo a uma revelagao final: o desejo que o sustenta é o de sempre se ver mais, aleangar “o segredo atris da porta’, como diz o titulo original do filme de Fritz Lang (The secret beyond the door, Fritz Lang, 1948). Ou seja, viver o tempo como uma sucesso de fragmentos a servico de uma teleologia que supée uma verdade escondida ¢ 0 caminho tortuoso de sua adia- da descoberta. O cinema moderno cria uma outta scénographie quebrando © pacto desta pro- AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 11 messa de algo além (atrés da porta) e tornando a imagem “chata’, pura superficie que ela cfetivamente é em sua imanéncia, sem profundidade. A tela devolve o olhar ao espectador, faz a guerra contra o ilusionismo, desnaturaliza o teatro € busca a sua afinidade com a pintura Diante de tal cinema, 0 espectador capta o seu proprio olhar como 0 de um intruso, ¢ sua indagacao nao se dirige mais ao que estaria por detrds, mas & sua propria capacidade de susten- tacao do olhar diante do que vé (de horror, de prazer) na imagem que se desenrola num unico plano, pois o desconforto inibe identificages, distancia, como quando se filma o indescjavel de frente. Ha nesta segunda seénographie uma pedagogia da imagem em sua imanéncia, como nos filmes de Godard (cest juste une image). Nos anos 70, surge um terceiro tipo nao mais empenha- do na dentincia do ilusionismo, nem na reposicao da profundidade classica (a transcendéncia), mas na composicéo de um cinema em que se pode deslizar lentamente pelas imagens, elas mesmas também deslizando umas sobre as outras, com prazer ¢ ironia. Como num muscu da Hist6ria do cinema, trata-se de uma scénographie em que 0 fundo da imagem é também uma imagem de cinema, em que os diferentes “sistemas de ilusio” podem conviver, lado a lado, ¢ 0 que se oferece aos espectadores é uma “visita guiada”, uma arrumagio em labirinro, maneirista, que embaralha oposigdes (Raul Ruiz ¢ S, Syberberg so os exemplos). Quando se trata de Ho- Ilywood, 0 que se oferece € a pletora de “efeitos especiais”, um mundo de atragées afinadas & fantasmagoria do cinema mudo. Este breve e denso ensaio de Daney traz sugestiva simetria face ao texto sintese “Evolugio da linguagem cinematografica’ (1950-55), de André Bazin, na qualidade de balanco critico que oferece um marco de referéncia histérico, Dancy nos lembra, em seu terceiro termo, certas caracterizagoes identificadas com 0 p6s-moderno, nogao que o autor prefere nao usar, embora © pudesse tendo em vista o debate da época, Nao por acaso, 0 conjunto desta taxonomia hist6- rica, em especial sua acepgio do moderno como momento da “pedagogia da imagem”, sera comentado por Deleuze, dentro daquela tnica de reapropriagao enciclopédica da tradigéo dos Cahiers° C) REVENDO AS OPOSIGOES: OPACIDADE/TRANSPARENCIA, VERTICAL (POESIA)/ HORIZONTAL(NARRATIVA), FORGA DO FRAGMENTO/LOGICA DO TODO. Para 0 que me interessa aqui, a taxonomia de Daney permite salientar as novas formas por certas oposigées que tratam de temas recorrentes. Daney nao se vale da oposigao assumida er Serge Daney, “La rampe (bis)” em La rampe: Cahier critique 1970-1982 (Paris, Editions Gallimard, 1983). A afinidade entre Daney ¢ Deleuze se expressa, entre outros gestos, no preficio que o fildsofo escreveu para 0 livro de Daney, Ciné journal 1981-1986 (Paris, Editions Cahiers du cinéma, 1986), onde Deleuze comenta o artigo aqui destacado. 192 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO opacidade/transparéncia (tomada radicalmente, ela seria desconstrutiva demais), mas usa a opo- sigdo superficie/profundidade que, nao sendo idéntica, nao Ihe é distance. Afinal, 0 adensamento da imagem em sua imanéncia, subtraido 0 clissico salto do olhar para o que a transcende, € 0 afrouxamento da teleologia nartativa sio dados afinados & idéia de opacidade, em oposi efeito de profundidade (transparéncia) ¢ & teleologia (a verdade a se revelar no final). O esque- ma tripartite supde uma dimensio narrativo-dramatica, como acontece nas taxonomias de Ba- zin, Pasolini e Deleuze. No entanto, todas acentuam uma leitura da forma do fragmento, centradas que esto na questio no estilo como expresso de um espaco-tempo vivide. Nao ha algo equi- valente a uma descrigZo de um “sistema textual”, como faria Metz, ou a especificagdo de formas variadas de estrutura dramatica ¢ actancial (personagens etc...), elementos que foram objeto de todo um filo da teoria do cinema mais empenhada em analises de filmes que dialogam com a teoria literdria ¢ a dramaturgia, setores da reflexdo mais em moda hoje, dada a centralidade adquirida pelo roteiro, exatamente aquele aspecto da pritica cinematogrifica sujeito a0 questionamento da “politica dos autores” dos Cahiers desde 0s anos 50, em sua batalha contra “cinema de qualidade” francés (o fundamental para os Cahiers era o que, grosso modo, Daney resume como scénographie) Uma distingdo feita por David Bordwell, em Narration in the fiction film, permite ser pedagdgico nesta questao. Ha aspectos de um filme narrativo que podem ser tratados com um esquema conceitual partilhado por cinema, teatro ¢ literatura: 0 nivel da fabula (diegese), ou estoria contada, ¢ 0 nivel da trama, que corresponde ao modo como o filme apresenta a fibula em termos da ordem das cenas, das idas e vindas no tempo, das elipses narrativas etc... . Em contra- posigio, hé aspectos que exigem a consideragio do que € especifico (cimera, luz, montagem, mise-en-scene), ou seja, do que compéc o nivel do estilo. E neste que esto em ques das escolhas do cineasta em sua forma de usar os recursos préprios ao cinema (ao seu dispositi- vo técnico) € que, portanto, nao podem ser descritas ou analisadas sem referéncia a eles. Nao te foi o terreno em que se instalou a critica na tradigao dos Cahiers, mais voltada para a anlise do estilo (e dos nticleos tematicos, quando se tratava de por em pritica a questao dos tragos recorrentes de um autor). A tradigao de andlise estilistica, a observacao dos tragos percebidos nos deralhes das obras, é um procedimento critico secular que, no cinema, se conso- lida nos anos 50 e attavessa todo 0 periodo do “sistematismo” estrucuralista, quando recebe criticas, para voltar como traco essencial da critica francesa na fase pés-deconstrugao. por aca 0. muitas Quando faz a distingao entre 0 esti: montando as bases dos estudos académicos do cinema narrativo que compéem uma Pos ca Historica cujos princ{pios polemizam, no geral, com a wadigio francesa, mas tém seus pon- tos de convergéncia com ela em seus procedimentos de andlise estilistica. Sua taxonomia € mais detalhada do que a de Daney, pois compée todo um livro que é didético em sua estrutura, ico, ou vice-versa, pois a sua 0 especifico (Fibula ¢ trama) ¢ 0 especifico (estilo), Bordwell descritivo, sem posturas de defesa do moderno frente ao cli taxonomia nao prepara uma hierarquia. Apenas nos traz mais um exemplo da lida com as AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 193 tensdes entre o narrativo-dramitico ¢ o plistico, préprias a qualquer anilise textual do cinema. E sempre um desafio articular a atengio ao encadeamento ¢ a atengao a textura de cada ima- gem-plano, pois esta sempre “transborda’ face as concatenagoes l6gicas, especialmente no filme moderno, empenhado em repor as discussdes ligadas ao especifico e em renovar a pergunta “o que € 0 cinema?”, feita pelo pensamento das vanguardas histéricas dos anos 20 ¢ pelos estetas que vieram depois, de Bazin ¢ Kracauer (os modernos realistas), de Daney ¢ Deleuze (os moder- nos pés-estruturalistas). Ha, em todos estes casos, 0 mesmo empenho: conectar o valor estético a exploracao do que o cinema tem de especifico. Vimos nos capitulos V e VI deste livro o esforgo de cineastas-tedricos nesta direcéo (Epstein, Eisenstein, Dulac, os surrealistas); e vimos a preo- cupagio com o dispositive técnico retornando com toda forca na emergéncia do neo-realismo, de um lado do Adantico, ¢ na emergéncia do underground cinema, do outro lado. Tanto Maya Deren — que trabalhou a oposicio entre a verticalidade do instante (cinema poético) € a horizontalidade da narrativa ~ quanto Kracauer (em Theory of film, 1960) enfrentaram esta tensio. Os criticos franceses, das piginas dos Cahiers a Deleuze, vao pensar 0 problema em termos da anilise da forma do estilo que, voltada ou nao para as marcas de autores, serio inscritas num arcabougo conceitual que aponta para novas teorias do cinema. O que ha de convergente nestas variagées é a menor atengao 4 narrarologia como terreno da discussio; uma concentragao na imagem-som como presenga, fora de concatenagbes cronolégicas, actanciais. A narragao é ai referida de modo obliquo, como uma espécie de fundo ld presente para destacar io imagética e sonora que tudo condensa, destacando as a forma, o estilo, o deralhe de constru virtudes expressivas do dispositivo. Um modo de evocarmos, na pritica, 0 teor destas tensdes entre imagem-presenca ¢ 0 encadeamento narrativo-dramdtico é a crénica que envolve certas reagoes ocortidas na célebre projec inaugural no Café de Paris, em 28 de dezembro de 1895. Entre outros filmes dos Irmaos Lumiere, foi projetado O Lanche do bebé. A camera assume uma posigio relativamente proxima a uma mesa que foi colocada nos jardins da Mansao dos Lumiere; deste modo, com- poe uma visio de conjunto da cena da familia burguesa em que se dé o ritual festivo da alimen- agao da crianga. No centro, 0 bebé; compondo a cena, pais e servicais que o cercam. Ao fundo, vemos (ou nao?) as arvores do jardim sendo agitadas pelo vento enquanto a agio central dos mimos & mesa tem andamento. Hé, portanto, a cena que se compée para um olhar frontal segundo as convengdes da época, cena diante da qual um espectador l4 presente — Georges Malis ~ manifestou seu desinteresse. Enquanto os espectadores se entretinham com as caretas do infante ¢ os sorrisos dos adultos, numa pega tipica a um género futuramente tao prolifico (0 filme de familia), Méliés olhou para outras ocorréncias. Nao esta ai, neste registro da cena familiar, o prodigio do cinema. O fundamental, ¢ fascinante, é 0 que se pode perceber no canto do quadro: “as folhas se movem”. E este movimento que atesta a forca do cinema como capta- gio do efémero, do fugidio, do que nao se repete. Enfim, esta af a novidade. No teatro, teriamos um “pano de fundo” com o jardim desenhado. No cinema, a imagem toda esta solidéria em seu 194 (© DISCURSO CINEMALOGRAFICO fluxo cemporal, ¢ 0 ponto singular a destacar sao essas folhas ao vento, testemunho de que 0 especifico do cinema é essa nova percepgio do mundo: na tela, o movimento das folhas ganha uma nova dimensio, como que pondo em relevo o instante, dando ensejo a que 0 acontecimen- to. de inicio insignificante, adquira um novo sentido gragas ao que estetas dos anos 20 vio definir como forogenia. O olho de Mélits, espectador, foi atento ao todo da imagem — por isto mesmo a fez imagem em sentido pleno — ¢ captou 0 que nao estava atrelado ao encadeamento das ages, a0 pequeno teatro da familia © movimento que acabou por consolidar o cinema clissico tem muito a ver com esta possibilidade de manter a atencao concentrada no encadeamento dramitico, nas agdes ¢ rea- goes, de modo a prender o espectador neste nivel da experiéncia, tornando seletiva, interessada, a percepgao da imagem, de modo a eliminar os seus “excessos” (0 que nao ¢ funcional). Dafa afinidade do cinema classico com o teatro de 1900 ¢ 0 recalque, nele, daquela forma de relacao da imagem cinematogréfica com 0 espaco e 0 tempo que, segundo a tradigao dos esteras, Ihe seria mais propria. No clissico, os procedimentos ¢ os olhares se subordinam ao drama; é um cinema “orientado para a personagem” (expressio de David Bordwell) que procura prender 0 olhar a motives que tém o drama como centro ¢ impedem que o espectador perceba que “as folhas se move”, No cinema moderno (versio européia), ha um movimento de reposic’o daquela dimensio da imagem pouco ou nada explorada pelo clissico. Renova-se a atengio a0 dispositivo ¢ pergunta-se de novo “o que € 0 cinema?”. Vem ao centro “o que lhe é proprio”, seja a ambiguidade do real (Bazin e os fenomendlogos), 0 Iirico-poético (Pasolini), a imagem-tempo (Deleuze) ou a imagem-figura (Jacques Aumont). Muito j4 se disse ao descrever € interpretar esta experiéncia, valendo aqui uma referéncia a Antonioni ea Godard, pois ambos, em constru ‘gdes muito distintas, definiram de modo extraordinario essa revisio do dispositivo que evoca as reagdes geradas pela primeira sesso de cinema. A tensao entre a sucesso horizontal da narrativa e a experiéncia do olhar vivida nos termos da intuigao de Méliés face ao instante (0 que é efémero ¢ sc eclipsa) é central em O eclipse (1962), marcando a estrutura maior ¢ certos detalhes do filme. O movimento dos protagonistas envolve concentragéo (promissora apropriagio do espago pelo encontro amoroso) ¢ dispersio (0 vazio do desencontro), composigao € dissolugao da cena, empatia fugaz e estranhamento, dispersio na paisagem urbana, nao faltando, em certo instante, a evocagio das “folhas que se mover”. Godard, como sempre mais loquaz € provocativo, verbaliza a questio, explicita 0 tema em determinada sequéncia de Duas ow trés coisas que eu sei dela (1966). Ou seja, compoe a imagem ¢ o seu comentario a partir deste mote fundamental do movimento das folhas. A protagonista ¢ uma amiga chegam a um posto de gasolina, lava rapido, e entregam o carro para 08 devidos cuidados. Enquanto esperam ~ ¢ € essencial este momento de espera, imobilidade — mesa 0 filme compée um mosaico de imagens comentadas pela voz de Godard. De um lado, ele ironiza o problema dos limites da narrativa (a nao transposigao entre o linguistico e a imagem em movimento), concluindo que, entre isto ¢ aquilo, € preciso escolher as imagens. Ao mesmo AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004), 195, tempo, compée, a partir do seu discurso-montagem sobre tais limites, um mosaico de movi- mentos que — entre as mogas que esperam, 0 objeto-fetiche (0 carro) ¢ a presenga de outras personagens ~ destaca algumas arvores atts do posto, com as folhas agitadas pelo vento. Nessa pica evocagio “simultaneista” que lembra as proocupagses do inicio do século diante da expe- rigncia urbana, ele adensa o instante ao definir uma constelagio de correspondéncias, com irnico destaque para a afinidade entre 0 “tremor” das mogas ¢ 0 das drvores nesta tarde em que a engrenagem do mundo evidencia a importincia maior dos objetos no mundo da mercadoria Ha, nesta fixagio do instante recheado de comentitios, algo inspirado em Brecht (a suspensio do fluxo, a atengio ao pormenor, a ironia enderegada a inversio de valores); em outa chave, a seqiiéncia, pela montagem e num tom distinto ao de Antonioni, faz também de uma instancia de imobililidade um momento de itradiagéo do pensamento nos termos da imagem-tempo Neste movimento, explorar a forca do instante, a pedagogia da imagem, ver o que nela é vo fora do teatro-cinema intuigao de uma presenca, significa volar as virtudes do disposi clissico; ¢ fazer, com nova desenvolcura, algo que foi tematizado pelos que pensaram a fotogenia. Maya Deren diria ~ “éa verticalidade do poético” — ¢ 0 proprio Godard identifica nesta sequéncia a coexisténcia do poeta, do pintor do cineasta, lembrando as quest6es que inserem o cinema na problemdtica das artes visuais, questoes que, tendo emergido jé no inicio do século xx. ao de novos suportes como 0 video Viriam a ganhar impulso nos anos 80, quando a consolidag decerminaram uma revisio geral do campo da visualidade. Diante da chamada “crise da teoria” nos anos 80, alguns tedricos franceses menos atrai- ando as rela- ges entre cinema e pintura, com énfase para 0 momento em que a arte moderna, na virada de 1900, foi afetada pela emergéncia do cinema e questdes como a captura do efémero vieram a primeiro plano. Dentre eles, Jacques Aumont foi quem elaborou 0 cotejo formal de maneira mais sistematica, buscando a diferenga entre as artes dentro da problemdtica comum que foi a construgio, na modernidade, do “olho varidvel”. Ele nao se ocupa daquilo que jd era um cliché: ta” a pintura. Ao contririo, combate os elogios apressados a tais filmes, e vé 0 gesto do cineasta como pura afetagao ¢ busca de nobreza por uma via equivocada (o cinema fugindo do video ¢ da Tv para se aproximar das “artes”). O que the interessa € a questio geral da visdo na modernidade, de que pintura e cinema fazem parte como dispositivos distintos, tal como se configura, por exemplo, nesse impulso para a representagao visual do nou dos pela narratologia omaram 0 caminho de uma reflexao sobre a estética, focal a referéncia ao filme que efémero, do impalpavel (0 vento, a atmosfera) que mobilizou os pintores no século XIX ¢ reto como uma prerrogativa do cinema, tal como se observou em 1900.2” Em consonancia com este movimento cm diregio 2 estética, Aumont procura, na andlise dos filmes, crabalhar a “imagem Ver Jacques Aumont, O olla intermindvel: cinema e pintura (Sao Paulo, Cosac & Naify, 2004) 196 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO que pensa ¢ se pensa como imagem”, capaz de produzir pensamentos que nenhum discurso antes delas articulou. Este é novo torneio pelo qual ele vai ao dispositivo, ao detalhe, descartan- do o todo (a narrativa) ¢ indo as passagens em que a imagem em movimento inventa a “figura” como forma especifica de pensar, 0 acontecimento singular como motivo (senso musical) acoplado a redes que engendram uma estrutura de pensamento.”* Aumont discute muitas experiéncias, mas deixa de lado 0 cinema snderground como lugar do debate cinema-pintura ¢ como lugar da imagem-pensamento. Seu discurso corre para- Ielo ao que se elabora nos Estados Unidos a partir de um campo de experiéncias que permitiu a renovacio do sentido do cinema intelectual em outras diregdes. Talvez o melhor exemplo aqui seja.o de Annette Michelson que Ié as formas do underground norte-americano através da me- diagao de Fisenstein e Vertov, compondo de outro modo a constelagio do cinema moderno ¢ da “imagem que pensa’, Ela se apdia na fenomenologia ¢ em outros instrumentos para descre- ver de que maneira certos estilos do cinema experimental (do romantismo de Stan Brakhage a0 conceptualismo de Hollis Frampton ¢ Michael Snow) exploram a tensfo entre o plistico ¢ 0 narrativo pata compor a imagem-pensamento, para constituir uma extraordindria cristalizacio para as operagoes do cérebro.”” Apoiado no cinema moderno europeu, Pascal Bonitzer focalizou a relagao cinema-pintu- ra. partir do problema da composigao do quadro, destacando as formas de desequilibrio sugeridas pelo que ele chama desenquadramento operado em certas construgées imagéticas encontradas em autores como Antonioni, Rohmer, Dreyer e Cassavetes.” Raymond Bellour e Philippe Dubois fizeram um duplo movimento cm que 0 gesto de inserir o cinema numa rede mais ampla significou cotejé-lo, nao apenas com as priticas que o antecederam (pintura, teatro, fotografia), s tecnologias da ima- mas também com as praticas que vieram depois, como 0 video € as nov: gem digital. Séo dois exemplos de reflexao em que o fundamental é a questao dos dispositivos ¢ das texturas possiveis da imagem, uma vez que a série pintura-foto-cinema-video compoe um repertério de enorme complexidade que acabou tomando a foto (a sua imobilidade) como uma espécie de unidade minima de possiveis agenciamentos. Estes encontram hoje uma realidade nio sé fisica como mental, e compdem um novo quadro que deflagra a imaginagdo ¢ a materia- liza em obras. Raymond Bellour, em particular, expressa muito bem a tendéncia geral de afastamento narratologia e aos contetidos da representagio no periodo mais recente. Nos anos 70, a face cs Aumont, A quoi pensent les films? (Paris, Editions Séguier, 1996), Ver Jacqu ©" Ver Annette Michelson, “The man with the movie camera: from magician co epistemologist” em Arif rum, matco de 1972; ¢ “Toward Snow” em Artforum, junho de 1971 Ver Pacal Bonitzer, Cinéma et peinture: décadrages (Paris, Cahiers du cinéma/ Editions de! Etoile, 1987) AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 197 questo da narrativa havia estado mais presente em seus longos ensaios de andlise de filmes, quando procurava a integracéo dos varios niveis num “sistema textual” e elegia a psicandlise como referéncia central. O que o interessava era o filme em seu movimento integral, disponivel para a psicanélise. Nos anos de 1980, ele passa a se concentrar na questéo dos dispositivos (foro, cinema, video) para aprofundar a discussdo sobre as passagens de um tipo de imagem a outro. Bellour esta interessado neste processo pelo qual do seu interior ¢ de fora (com a reprodugio em video) o cinema recebe pressoes que alteram a natureza ea percep¢ao das imagens, uma vez que cada passagem (da mobilidade para imobilidade; de uma velocidade a outra; de uma textura a outra) define um campo de mutagito da imagem, pelo qual ela perde a sua transparéncia forogré- fica e se abre para outro estatuto como imagem fisica ¢ mental. Um outro tempo se produz nestas passagens da imagem, nesta mutagio, dentro de um movimento que Bellour resume no conccito de entre-imagens (lugar fisico e mental, instavel, muiltiplo). Este espaco-tempo “entre- imagens” envolve a revisio do campo da visualidade em termos de imagens inscritas num su- ‘io entre tais imagens em E inclui uma nova rela porte ou definidas como imagens mentai mutagio e a literatura (no controle dos gestos de enunciagao, na capacidade reflexiva). Enire- imagens diz. respeito, portanto, hé uma diversidade de experiéncias de hibridizacio, citagées de um dispositive por outro, ¢ corresponde a um novo paradigma estético-culeural. Tal como Bellour, Philipe Dubois sc interessa pelo video como lugar de passagem, dado que ele condensa no mote: “o video pensa o que o cinema cria” (como nos trabalhos de Godard). Um filme se torna uma reserva de imagens que podem se redefinir, como realidade fisica ¢ mental, deixando mais claras as implicagoes do que jé vimos desde os anos 60 — 0 congelamento da imagem — ¢ do que se refinou nos anos 80 — a mudanga de velocidade (como acontece em Salve-se quem puder: a vida, de Godard, analisado por Bellour). Por outro lado, nas passagens de um meio a outro, como a reprodugao em video, abre-se a experiéncia nova que, antes terreno do montador e do critico, se disseminou com o home video: a possibilidade de “suspender o fluxo”, tomar nosso tempo diante da imagem. Tal forma de manipulagao altera o regime do espectador radicalmente."! No primeiro movimento deste texto, citei o artigo de Laura Mulvey publicado em 1975 ¢€ sua lida com as tensoes que venho focalizando neste balanso (anélise da imagem e a anilise do encadeamento narrativo-dramatico), dimensoes relacionadas por ela com duas formas do pra- zer do espectador. A sua preocupacao, na época se voltava para a imagem-fetiche, ponto a partir do qual sua psicandlise do cinema avangou para consideracées mais complexas envolvendo um cinema politico que procurava explorar uma outra relagdo com a imagem pautada pela Entre-imagens: foto, cinema, video (Campinas, Papirus, 1997) ¢ Philippe Dubois, 10 Paulo, Cosac & Naify, 2004). Para a fronteira, cinema-video-imagem digital, *Ver Raymond Bellour, Cinema, video, Godard (S 198 (© DISCURSO CINFMATOGRAFICO ‘curiosidade”(epistemoldgica, politica),"? movimento em que teve papel chave a sua anilise do cinema de Godard. Em didlogo com a nocéo de entre-imagens de Bellour ¢ com a nova expe- riéncia de recepgao dos filmes através do video, ela definiu todo um campo de pesquisa cujo objetivo é analisar © novo tipo de espectador, hipétese que ela explora na considerago de melodramas ¢ de filmes experimentais. A implicagio ai presente & a de que nao s6 0 moderno ou o experimental podem hoje gerar a reflexao, a suspensio do fluxo, mas também o cinema clis- sico € seus géneros cujas imagens disponiveis para a manipulagao perderiam a fluéncia € a transparéncia para se adensarem em novas relagdes. Em livro de 2001, Victor Burgin faz inda- gages sobre nossa relagao prolongada com as imagens lembrando que muito do que definimos do cinema nio se di como embate direto com a imagem fisica projetada na como experiéne tela ou no video, mas como uma riquissima elaboragao secundaria, feita de afetos e cadcias associativas, em que os fragmentos mais pregnantes se impdem de modo a que se recomponha um outro filme na meméria que se expande e petmanece disponivel para novas relagoes. O ensaio de Burgin tem sua afinidade com o influente livro de Jean Louis Schefer no contexto francés, Llhomme ordinaire du cinéma (Gallimard, 1980). Embora este seja mais denso na con- sideracdo do momento mais restrito da projecio em que a imagem se di como “percepgao de um tempo”, Burgin analisa um movimento complementar pés-projecio, marcando ambos a atengio reiterada ao que nao ¢ a transparéncia do narrativo. A forga da idéia de “paralisagao da imagem”, que a fortalece em sta espessura-opacidade, teve seu momento mais irénico nas confissées de Roland Barthes referentes & sua obsessao pela forografia e pelas imagens fixas quando ele escteve 0 texto “Saindo do cinema” (Communications n. 23, 1975). Tece ali o elogio das fotos de cena afixadas na entrada do cinema como um convite & imaginacio, aventura pessoal extra-filme. Nao surpreende que um de seus textos mais citados, no que diz respeito & analise do filme seja “O terceito sentido” , forma alternativa de atengdo ao fragmento, leitura obliqua da cena que recupeta o que estd li como “excesso” na imagem ¢ que, de modo peculiar, craz uma expressio fisionémica dotada de certa excentricidade, podendo ser “aberrance”. Em movimento correlato — nesta énfase no ponto singular de atragao — 0 seu livto A cdmara clara trard a nogdo de punctum para se referir ao que “pinga o olhar do espectador”, este ponto imantado que se faz centro energético da percepgao da foro independente de seu tema e das s do fordgrafo (dependendo mais do espectador que projeta ai sua experiéncia) inteng ver Philippe Dubois, Frank Beau e Gérard Leblanc (orgs.), Cinéma et demniéres technologies (Bruxclas, De Boeck Université, 1998); Arlindo Machado, Pré-cinemas & pds-cinemas (Campinas, Papirus, 1997) ¢ Maquina e imagindrio: o desafto das poéticas teenolégicas (S40 Paulo, Edusp, 1993); André Parente (org,), Imagem-maquina: a era das tecnologias do virtual (S40 Paulo, Editora 34, 1993) fer Laura Mulvey, Fetichism and Curiosity (Londres, BF Publications, 1996). “Ver Victor Burgin, The remembered film (Londres, Reaktion Book, 2004). AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 199 Dois movimentos a destacar nestes exemplos todos: a atengao se desloca ao movimento do espectador, as suas formas de se relacionar com o singular. Num contexto teérico distinto, Philippe Dubois vai trabalhar com 0 “desvio”. o estranho, a excentricidade na imagem cinema- ogréfica, a partir da nogao de “figural” , emprestada de Lyotard. Para Dubois, o figural se refere ao que faz sentido, tem efeiro, sem se inserir num sistema de signos dado, num protocolo usual de leitura (orientado por qualquer codificagao, seja enquanto icone, indice ou simbolo, para usar a taxonomia de Pierce). Ele quer destacar a anomalia que perturba o fluxo das imagens, deter-se em sua forma, para mostrar que ela nao est “em exilio”, mas se articula, acaba por “fazer sistema’, entrar numa rede de imagens que constréi um sentido que nao é mera projecio do espectador. Ao contririo de outros estudos, seu problema nao é a “posicao do espectador” mas uma dinamica interna a0 mundo das imagens.”* Mais uma vez, © ponto comum é a atengao ao fragmento € as associagdes “desviantes” face av encadeamento légico. Qualquer cinema entio é um cinema em camadas, com prolon- gamentos virtuais imprevisiveis, tal como qualquer cinema, por forca do dispositivo de base, tem sua percepgao alterada quando novas formas de produgio técnica e de exibicao da imagem provocam as mutagées, tornando opaco o que se fez como transparéncia, O novo contexto de “mutagio do cinema”, gerado pela nova configuragao técnica do audiovisual, fez 0 tema do dispositivo retornar em trabalhos voltados para um recuo histérico que nao faz corejos com a pintura ou a fotografia. Certas abordagens do momento de emergén- cia da cinemarografia se concentram na categoria do tempo, buscando caracterizar 0 ponto de inflexio definido pela nova técnica da imagem numa chave distinta daquela que encontramos em Deleuze. Para citar dois exemplos, hd 0 caminho de Leo Charney que repoe a discussio da captura do instante ¢ da forogenia a partir de uma releitura dos esctitos de Jean Epstein usando a mediagio da categoria de “presente” em Heidegger (no em Bergson); hi‘ o livro de Mary Ann Doane, também voltado para as relagées entre 0 cinema ¢ 0 “contingent” (o efémero), que vem dialogar com a questio de Méligs ¢ buscar a sintese de uma tradigéo teérica que faz a indagagao sobre o tempo e 0 papel do cinema na constituigio de novos padrées de experiencia: uualizagaio” do tempo (representabi- no seu percurso, hi a questao da medida e a questio da “vi lidade), o tecnolégico ¢ 0 vivido em constante interagao.* Embora tenha a referencia de Deleuze se instala é mais hist6rico-social, em para se aproximar da problemadtica, 0 campo em que ¢ ® Ver Philippe Dubois, *Lécriture figural dans le cinéma muet des années 20” em Francois Aubral ¢ Dominique Chateau (orgs.), Figure, figural (Paris, ['Harmattan, 1999). “Ver Leo Chamey e Vanessa Schwartz (orgs.), O cinema ¢ a invengito det vida moderna (Sao Paulo, Cosac & Naif, 2001); € Marie Ann Doane, The emergence of cinematic time: modernity, contingency, the archive (Cambridge, Harvard Univ. Press, 2002). 200 (© DISCURSO CINEMATOGRAHCO didlogo decisivo com os historiadores que formularam a “tese da modernidade” quando estuda- ram o cinema do inicio do século xx, sendo ‘Tom Gunning ¢ Miriam Hansen os autores de maior destaque.* Refiro-me aquele conjunto de estudos apoiados na idéia de que o avango récnico determinou um salto nos modos de percepgio do tempo e do espaco, € a correlaca necessidade de dispositivos de defesa e adaptagao aos novos desafios enfrentados pela sensibili dade, Vale ai a referéncia teérica dos pioneiros alemies que tematizaram a questo — Georg Simmel, Siegfried Kracauer ¢ Walter Benjamin. Com pesos diferentes conforme 0 caso, eles 0 © contexto m inspirado todo um trabalho de pesquisa capaz de descrever com mais preci histérico-social que da relevo a um estatuto especifico do tempo na modernidade ~ urbani 40, avango tecnoldgico, velocidade ~ e sua relagéo com a experiéncia de choque ¢ a crise do Sujeito, com a cultura do “sensacional” (correlata ao impulso ganho pelo melodrama como género), ¢ 0 que nos interpela com violéncia (o trafego no cruzamento, o acidente, a publicida- de, a multiplicagio dos estimulos). A “tese da modernidade” marca pesquisas em histéria do cinema preocupadas em encontré-lo fora dele mesmo, como um padrao de movimento ¢ de percepcao ja dado no social e que o dispositivo vem cristalizat. Neste contexto teérico, um dado especifico vem confirmar a mesma tensdo que apontei: renovam-se os estudos de modo a desta- car as potencialidades do dispositive fora da armadura narrativa do cinema cléssico; em parti- cular, faz-se a pesquisa do chamado “primeiro cinema” (1895-1907) sem reduzi-lo a uma etapa “primitiva” de uma nova arte que sc dirige & maturidade narrativa, mas considerando-o em seus proprios critérios de composicio ¢ fazendo dele um patadigma cultural especifico que pode ser insetido na “tese da modernidade”. Esta € uma operagao realizada com brilho por Tom Gunning ¢ André Gaudreault que cunharam a nogio de “cinema de atragGes” para caracterizar a descon- tinuidade, a heterogeneidade, a nao linearidade ¢ a variedade de formas, temas e “atragées” do primeiro cinema.” © uso do termo “atragées”, tao caro a Eisenstein, é uma forma de pensamento que privilegia a montagem como um paradigma da modernidade ¢ procura certas afinidades (com o circo, por exemplo) que podem fechar um circuito de relagées quando nos lembramos da taxonomia de Daney ¢ seu terceiro tipo no regime de composigio e recepgao das ¢ fazer claro um “Ver Ben Singer, Melodrama and modernity: early sensational cinema and its contexts (Nova York, Columbia Univ. Press, 2001); O cinema ea invencao da vida moderna (op. cit.); Mitiam Hansen, Babel and Babylon: spectatorship in american silent film (Cambridge, Harvard Univ. Press, 1991); Tom Gunning, “The whole town’s gawking: early cinema and the visual experience of modernity” em Yale Journal of Criticism vol.7 . 1994 © Para os textos de Tom Gunning e André Gaudreaul, ver Thomas Elsaesser (org,), Early cinema: space, frame, narrative (Londres, BFI Publishing, 1990). a. AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 201 imagens — esse no qual elas deslizam umas sobre as outras, funcionando como referéncia mitua ¢ espécie de museu do proprio cinema. No final de seu texto, Daney aponta a semelhanga- afinidade entre tal regime (dos anos 70-80) e 0 “primeiro cinema’, o das atragées, fechando 0 circuito entre a fantasmagoria de Syberberg, em Hitler, um filme da Alemanha (1977), ¢ a do autor de Viagem @ Lua (1902), agora pensada nos termos do que foi o cinema de Méliés, nao sua intuigéo diante do lanche do bebé dos Lumitre, pega ao ar livre. Tom Gunning, como Germaine Dulac o fizera nos anos 20, relaciona o primeiro cinema ¢ o espirito das vanguardas que se interceptam no véo da imaginacao apoiado no fascinio pelas virtudes do dispositivo.* Insisto nesta ponte entre 1900 ¢ o terceiro regime de Daney porque valem ai os termos de uma imaginagao onde se configura, no retorno operado por um cineasta pds-moderno sofisti- cado, a hiperconsciéncia do dispositive tomado agora como um museu de citagées da imagem cujo locusé 0 esttidio, mesmo que se faca do mundo inteiro um estudio, pois este & 0 principio. Tal como a meméria, o estidio permite a visita guiada na qual corpos, pedagos de cenografia, reliquias de toda sorte se apresentam como fragmentos dispontveis para uma reciclagem que pode ser expressio do mancirismo e do artificio, uma regra atual do espetaculo. Nisto, hé a via da reflexdo, em que o teatro se compe como um cenirio feito de figuras ora enigmiticas ora nitidamente alegéricas na composicao da fabula, como em Dogville (2003), de Lars Von Tries. E ha via do cinema de agao onde, se 0 cendrio ¢ 0 do parque tematico, o que vemos sio corpos inscritos numa coreografia cujo destino é 0 dilaceramento fisico. Portanto, nao aquele dilaceramento que associamos a ciséo do sujeito ¢ a sensibilidade barroca, mas & sua vulgata que desfila na produgéo miliondria quando retornamos ao desfile veloz de atracdes. Ai, violencia ¢ efeitos especiais levados a0 paroxismo podem, quando conduzidos com ironia, embaralhar os termos da oposicéo entre transparéncia e opacidade. Em nome de sonhos de infancia. D) INDAGAGAO FINAL Consideradas as variadas formas de trabalhar as tensoes entre a cinematografia (0 dispo- sitivo) e a representacao (o narrativo-dramético), fica patente uma insisténcia da teoria no sen- tido de refazer uma operacao muito prépria a vanguarda histérica dos anos 20, empenhada em defender 0 que se pode evidenciar, na experiéncia de um filme, mesmo que em fragmentos, como uma presenca reveladora ou como salto imediato para correspondéncias simbdlicas que marca- riam sua vocagio maior, esta que foi traida por uma leitura horizontal da narrativa (isto comentei no corpo deste livro ¢ em Sétima arte: um culto moderno). De novo, a polaridade em paura nao Ver‘Tom Gunning, “The cinema of attraction: early film, its spectator, and the avant-garde” em Wide angle, n.8, 1986. 202 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO se confunde com a oposigao entre opacidade ¢ transparéncia, mas envolve algo correlato: fluén- cia versus suspensio, imagem como representagao (diegese) versus imagem como presenga (vir- tude do dispositivo) e ganha feicao especial quando focaliza o modo documentarizante de leitura daimagem-som que ganhou atengao especial e consolidou uma nova biliografia feita de taxonomias que descrevem formas de relagao entre o cineasta e 0 mundo que ele encontra (observacional, interativa, reflexiva).” Em termos de valor estético do documentatio, a tonica do contempora- neo € de atencao as virtudes do dispositivo, seja na captura do efeito gerado por uma presenca imediata, seja na sua condigao de gerar experiéncias decisivas de relacao com o espago-tempo fora de quadros conceituais explicados por um locutor ou mesmo sugerides pela montagem. Enfim, a forga expressiva fora das cadeias narrativas (apandgio do documentirio tradicional, com ou sem esta voz da autoridade). O elogio hoje ao documentdrio caminha pela via da consagracio do instante ~ ha momentos da entrevista (Eduardo Coutinho) em que les feuilles qui bougent dentro da cena ~ ou pela escolha da franca subjetivagio do processo, para explorar as poténcias do falso ou a simulagao reveladora de uma auto-biografia incerta. Nao se trata aqui de fazer o inventério exaustivo das situaces em que a teoria mais recente manifesta o interesse pelas singularidades que conectam o visivel, no cinema, com ou- tras experiéncias. Vale mais a teafirmagao de que é clara a distingdo entre o trazer ao centro da indagacao 0 que pode ser apreendido através dos estudos de narrativa e dramaturgia, ¢ 0 tazer ao centro 0 que € andllise dos estilos, das atragdes, das “mutagées das imagens” no plano do video ou da meméria, ou mesmo das formas pelas quais, num fragmento de filme, se oferece uma percepgao direta da forga do cinema enquanto via de acesso ao mundo. Criticos ¢ teéricos ligados a vanguarda ou ao cinema moderno tendem a operar segundo um principio: ha mais valor ¢ arte quanto mais for explorada a via indicada na prépria natureza do dispositivo. Talvez a teoria do Dispositivo (Baudry) tenha armado 0 escandalo (e 0 beco sem saida) por ter feito justamente 0 contrario, vendo na ilusio € no fetiche a vocagio do dispositivo, sem nuances, nada mais restando de consolo para a cinefilia. Ao longo da histéria do cinema e, em especial, na constelagdo moderna, 0 cenario tendeu a ser outro. Mesmo propostas alternativas mais ir transigentes se conciliaram com o elogio ao dispositivo técnico, elegendo uma tendéncia, um géneto ou exemplos isolados de filmes que a prética conhecida lhes oferecia. Nao encontrando 6 bom objeto, conscruiam uma utopia de libertacao do dispositivo de seus “entraves”.*” Embo: “Ver Bill Nichols, Representing reality (Bloomington, Indiana Univ. Press, 1991). Ou também, Michael Renov, Theorizing documentary (Londres, Routledge, 1993), ¢ Francois Niney, Lépreuve du réel a Uéeran: essai sur le principe de réalité documentaire (Bruxelas, De Boeck Université, 2000). © Ha excegdes a este movimento de “liberasio”, pois Christian Metz, por exemplo, cclebrow ourra forma de “fundacio da arte do cinema’: 0 encontto do dispositivo técnico com a narrativa (ele no questiona a idgia de uma teleologia da “conquista” da narrativa como vocagio do cinema), AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 203 ra nem todas as formulagées alinhadas ao espirito das vanguardas tenham explicitado o princi pio acima enunciado é possivel observar a recorréncia: as teorias da vanguarda (de Epstein a Michelson) ¢ as do cinema moderno (de Bazin a Deleuze) trazem este horizonte de attibuir valor ao que aviva, explora melhor, o que julgam estar implicado no dispositivo. Ou seja, é na relagao com a natureza do dispositive que esté a pedra de toque do valor. Em Sétima arte, constatei a vigéncia desse principio no percurso inicial da critica e dos cineastas ligados & vanguarda francesa dos anos 20, ¢ me parecia muito peculiar o fato de que. diante do cinema entio corrente, os autores fizessem a operagio de subteair as imagens do encadeamento ¢ do drama, para refazer um outro filme cm sua percepgao seletiva, tendo em vista a pedagogia necessaria para afirmar os valores do que deveria set o verdadeiro cinema, Citei, inclusive, uma declaragao do critico ¢ historiador da arte, Elie Faure, no momento de sua conversio ao cinema, quando nao mais se importou com 0 sofrimento da heroina e, comovido, constatou, num lampejo, “a magnificiéncia que assumia a relagao de um costume preto com 0 que o fez assumir o filme como um “sistema de ee muro cinza de um albergue”, experiénci valores escalonados do branco ao preto, ininterruptamente mesclados ¢ méveis na superfi profundidade da tela..."." A forma recorrente com que se tem afirmado o principio (°E da nacureza do dispositive que derivam os valores da arte”) ao longo da histéria do cinema ganha um novo desdobramento num texto recente de Jacques Ranciére que enseja um comentirio final neste mapeamento, pela amplitude do que 0 texto coloca em pauta."? © intuito do filésofo € operar uma inversdo: questionar o principio. Para tanto, ele trabalha as distingdes feitas até aqui em outros termos. Prefere opor dois regimes (ou idades) da arte (em geral), 0 mimético ¢ 0 estético. O primeiro diz respeito a representacao, ao mythos tal como nos vem desde a Poética de Aristételes, que acentua ‘© agenciamento das agdes ¢ conflitos, o drama ¢ as inversées de destino dos humanos. Podemos i-lo ao que tenho me referido como o narrativo-dramatico (plano da mimese, segundo a assoc tradigao clissica e figurativa, onde se insere o cinema diegético). O segundo diz respeito a uma operacao tipica a idade moderna (entenda-se, de Gustave Flaubert e do impressionismo para cé), pela qual se deposita o valor na forma que, descartando 0 mythos ¢ a arte figurativa, é capaz de fazer emergir o esplendor puro do ser, a poténcia expressiva inscrita nas coisas mesmas, no insignificance. Segundo o comentitio de Ranciére, o “regime estético da arte” exige uma opera sua poténcia maior de criagao em liberdade (atividade a0 complicada em que o artista exerce pura) e se “faz passivo”, compondo um esrilo que enseja um “olhar vazio” que procura minimizar * Para a citagdo integral e 0 contexto da discussio, ver Ismail Xavier, Sétima arte: um culto maderno (Sao Paulo, Perspectiva. 1978, p.63). “Ver Jacques Ranciére, La fable cinématographique (Paris, Seuil, 2001) 204 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO a sua diferenga face & prosa ordindria do mundo: a vida, a matéria, as cores, os sons, como presenga pura. Ou seja, a meta é uma absorgio “passiva” da poesia ja inscrita no insignificante. Este “tornar-se passivo” seria, no caso do escritor ou do pintor, uma conquista histérica (nada natural) que resulta de um esforgo do estilo. No caso do cinema, o esquema estaria invertido, pois o dispositivo, com seu auromatismo ¢ jd, por natureza, esse olhar vazio, essa passividade. E. 0 olhar inconsciente da camera (a inteligéncia da maquina, como dizia Jean Epstein) resolveria, de imediaro, as tensdes entre a tepresentacao ¢ a presenga das coisas, vendo 0 que o olho huma- no nao vé; ou seja, a verdade interior do sensivel feita imagem exterior, o essencial movimento das coisas Os primeiros cineastas ¢ criticos que elogiaram as virtudes desse olhar automético ¢ in- consciente o fizeram a partir do cinema narrativo a que assistiam (os melodramas, as comédias), de tal modo que extraiam do fluxo de imagens representativas do drama vivido pelas persona- gens um “outro filme” em que se desenrolava outro drama: feito das variages de luz, da plasticidade da atmosfera e da rextura dos objetos. Ou seja, subtrair ¢ compor um outro filme a partir do filme dado era uma operacao comum de Canudo a Dulac que Ranciére vé retomada nos teéricos modernos. Ao assim proceder, todos estariam operando de forma semelhante aos ctiticos de arte afinados ao “regime estérico” desta, que tornam toda a arte (mimética) do pasado disponivel para uma desfiguragdo pela qual o que se destaca é a matéria da pintura, por exemplo, subtraindo-a da representagao a servigo de que cla era moldada. Ou seja, 0 que os Cinéfilos sofisticados fizeram foi retomar uma opcragio j4 formulada em outros terrenos, por exemplo no teatro simbolista ou na pintura moderna, © que deixaria claro, portanto, que o elemento decisivo da constituigao do valor nao € natureza do dispositivo especifico mas uma certa concepeao da arte que atravessa fronteiras e que o critico-cineasta endossa. Ranciére insis-~ te na origem nao-cinematografica de muitos principios do “regime estético da arte” que se instalou no modernismo e que a vanguarda cinematogréfica veio a partilhar. Para ele, a defesa de uma certa forma moderna de arte nao se deduz do dispositive técnico mas de uma concep- cao e de uma idéia da arte. Posto isto, gostaria de deixar uma pergunta que néo se dirige apenas ao texto de Ranciére, ‘lvada a origem nao-cinematografica de certa idéia mas a todo o percurso desta discussio. Res de renovagao, nao traria tal idéia — no atravessamento que faz pela pluralidade de matérias de expressio ~ aquele nticleo comum de atengio ao dispositivo especifico, num gesto que atuaria como alavanca para alcangar a forma original, a revolucio estética? © argumento apoiado na hipsrese de que hé um regime estético da arte que se manifesta em todas elas setia, entio, suficiente para invalidar o principio afirmado pelos tedricos do cinema (de vanguarda) ou do cinema modetno? Pelo contritio, nao seria tal principio © que justamente vem cimentar 0 dito regime estético da arte? Ha um outro argumento de Ranciére referido aos efeitos do dispositive técnico que me interessa comentar, pois resume muitas questdes. Ele nos lembra que o cinema definiu uma AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 205 diregao dominante que contraria 0 princfpio adotado pelas teorias das vanguardas, fazendo-se 0 lugar por exceléncia da representagio e do mythos, a partir da mesma dialética do ativo-passivo. Ou seja, 0 cinema tem no seu dispositive a identidade do ativo e do passivo que fez 0 principio da revolugo na arte moderna (constituigao do regime estético da arte), mas tal identidade confere af toda forga ao seu contrério, ou seja, ao movimento regressivo pelo qual o cinema trai a teleologia do modernismo e torna as propriedades do dispositive um instrumento da repre- sentagdo (mythos), condicéo pela qual serve & recupetago do que a arte demorou a expulsar. Se © cinema “majoritério” contrariou os princfpios do regime estético da arte, ¢ fez-se mimético, em novo torneio nesta dindmica, a vanguarda ¢ os modernos construiram a desfiguracdo que extrai o detalhe ¢ 0 toma como lugar de uma intuigao essencial pelo “efeito de presenga” ou “efeito do real” (usando a expressao de Roland Barthes, a propésito do estilo de Flaubert). Seria, entio, nessa dialética entre um pélo (representacio) € outro (presenga) que o cinema conduziria a sua fibula, como um terreno desse jogo de contrariedades. A arte do cinema é um trabalho a contrapelo, no um caminho direto do dispositive técnico & esséncia da arte, pois € em nome de uma idéia (da arte) que se usa um dispositivo nesta ou naquela diregao. Neste sentido, a fibula do cinema € contrariada, nao s6 porque o cinema dominante alia o dispositivo a uma regressio, mas também porque a vanguarda tem de se construir a partir de um pensamento que vai a contrapelo do narrativo-dramitico e se concebe a partir do gesto de desfiguragio (fazer um filme com os elementos de outro, subverter a percepcio, liberté-la da sucessio narrativa). Tal operagéo, Ranciére a ilustra com um texto de Jean Epstein, nao de Elie Faure. E depois labora © argumento para apontar a mesma operagio nos tedricos do moderno (Bazin, Deleuze) ¢ no Godard de Histoire(s) du cinéma. Se a forga original da arte cinematogrifica vem 3 tona quando se suprime os dados da ficcao que sto comuns a arte de contar histérias; se o que se constata é a insisténcia dos teéricos em retomar a operagao (podemos dizer também que a insisténcia de muitos cineastas), Rancigre conclui que tal gesto de extragio nao é peculiaridade de época, mas algo consubstancial & histé ria do cinema como arte e como objeto do pensamento. Constitutiva da experiéncia do cinema, essa légica da contrariedade seria o trago especifi- co da sua arte, envolvendo nao sé a relagéo com seus meios técnicos préprios (0 dispositive) mas também 0 jogo de trocas ¢ inversées com a fabula literdria, a forma plastica € a voz teatral, como cle vé expresso com clareza nos filmes de Robert Bresson A discussao feita por Ranciére renova os termos da tradicional tensio na abordagem das duas dimensdes ~ a do encadeamento narrativo-dramatico (que nao ¢ apenas uma sucessio, mas uma configuracao) € a que destaca, no fragmento, os tracos que atestam uma experiéncia mais genuina de apropriagao do dispositivo técnico capaz de inserir 0 cinema no regime estéti- co da arte. Isto faz. avangar 0 debate, pois sua generalizagio faz rever todo um percurso, permi- tindo, inclusive, o seu comentitio critico ao que vé como ambiguidades que ele encontra nos argumentos préprios a tradicao tedrica que destaca o fragmento € 0 estilo, trabalhando as sen- 206 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO sages dticas e sonoras puras (para usar os termos de Deleuze). No entanto, sua especificagao da logica da contrariedade (que seria inerente & arte do cinema), através de exemplos concretos, desliza para a descricio do que é, efetivamente, uma interacio (ou complementaridade) entre 0 que ele chama de “Iégica da agio” (0 verossimil segundo um prorocolo da representagio) € 0 “efeito do real” (a presenga do insignificante, das coisas ordindrias). Ou seja, hé uma nitida semelhanga entre sua formulago e a que Christian Metz apresentou nos anos 60, também em afinidade com Roland Barthes mas com vocabulirio baziniano, quando falou da instauragio do cinema moderno como um processo de enxertar “momentos de verdade” no seio do veros- simil (as regras do género, as convenes da narrativa). Esta semelhanga evidencia a vigéncia de um referencial limitado demais para uma reflexao sobre “o cinema em geral” que Rancitre propoe. Descreve, no fundo, 0 mesmo cinema moderno ja descrito em outros termos pelos autores de quem, em outro eixo, ele se vé separado porque adotam aquele principio acima discutido (0 valor estético deriva do dispositivo). De certa forma repete-se 0 cendrio que se montou na tradigao do moderno vinda de Bazin ¢ dos Cahiers, pautada pela distancia-esqueci- mento face a um enorme contingente de filmes (antes ¢ depois das vanguardas histéricas; antes, durante e depois do cinema moderno) que afirmam uma forte relagio com a natureza do dispo- sitivo sem estar em relagio “desfigurativa” com aquela dimensao narrativo-dramética a que Ranciére confere uma certa onipresenga (injustificada). Em formulagoes mais recentes, a teoria que dialoga decisivamente com esta tradigao, incorporou em seu campo de visio tal contingen- te (um exemplo é a atengao ao underground norte-americano), mas sem resolver efetivamente os problemas trazidos por esta demarcacio."* Ao destacar uma tecorréncia que cle submete a critica, Rancitre enseja uma revisio da problemética do dispositive; no entanto, sua aceitagao ticita (ndo tematizada) das mesmas demarcagées presentes na teoria do cinema moderno de feigao européia o leva a incorporar os limites desta teoria na ¢ estética, ou entre a natureza do dispositivo e as formas encontradas pelo cinema para se inserir no regime estético da arte, para ‘ago aqui a observagao apenas para lembrar 0 quanto o debate sobre o scussao das relagdes entre técni usar os seus termes. papel do dispositivo e sobre a interagao entre o cinema e outras priticas ultrapassa essa moldura ¢ nao se reduz 4 questao da “fibula contrariada’, embora esta renha seu campo de pertinéncia. A seu modo, a teoria do Dispositive (Baudry), como um momento deste percurso de indagagGes sobre a relagio entre técnica, estética ¢ politica, trazia esta dimensdo de “contrarie- dade", mas numa versio radical, pois seu horizonte era a critica do préprio dispositive técnico (por todo 0 jogo de espelhos que o transformava no Dispositive como instituigao social). Neste André Parente discute esta questo em referéncia & teoria de Gilles Deleuze. Ver André Parente, Marra- tiva e modernidade: os cinemas ndo-narrativos do pés-guerra (Campinas, Papirus, 2000). AS AVENTURAS DO DISPOSITIVO (1978-2004) 207 sentido, a divisa da desconstrugao, tal como entendida nesse momento dogmatico, nao deixava brechas para a utopia que tinha alimentado 0 cinema moderno e mesmo as vanguardas histéri- cas com seu “regime estético da arte”. O ideal da desconstrugio pura e dura era 0 “regime ascético da arte”, e seus tedricos, na pritica, tiveram de “negociar” com exemplos do “regime estético” para tornar visivel a direcao desejada. Em outros tetmos, procuraram ler a variedade de propostas alternativas na sua chave ou fazer filmes que traziam algo de seu idedtio mas 0 ultrapassavam, como o fizeram Godard ¢ Gi em casos como o de Vento do leste (1969). Terminei o livro, em 1977, citando este filme naquilo que permitia comentar a divergén- cia entre Glauber Rocha (que esté li numa sequéncia) e seu amigo diretor que o convidara para entrar no debate. Mas nao hd aqui nenhuma intengao de fechar 0 circulo, repondo a equagao em termos semelhantes. Ha uma conexdo entre os dois momentos que vem da constatacao de que 0s questionamentos a teoria do Dispositivo nao tiraram a figura do dispositive técnico do centro da discusséo, mas tal permanéncia nao deve esconder as radicais diferencas na composi ‘cdo das variéveis do jogo. Além de deslocamentos conceituais em termos de teoria e de estética, hé hoje o dado radical da nova configuracao dos meios técnicos de producio de som ¢ imagem. Naquele momento, o cinema assumia com mais forga a sua condigo de experiéncia-matriz na discussio estética, mesmo que ja convivesse com televisio ¢ video. Hoje, a rede heterogénea € gigantesca que vai se constiruindo no terreno da produgao ¢ circulagio de imagens-sons torna mais complexo o cotejo entre 0 valor estético, 0 efeito politico ¢ as propriedades especificas de um dispositivo, entre outras coisas porque tanto a histéria desta producdo quanto a sua confi- guragio atual tém mostrado que é preciso mudar a nossa percepgao do lugar do cinema entre os dispositivos. BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. A cémara clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. BENJAMIN, Walter. Magia ¢ téonica, arte e politica: ensaios sobre literatura e historia da cultura. Sao Paulo, Brasiliense, 1985. KRACAUER, Siegfried. The mass ornament: weimer essays. Cambridge, Harvard Univ. Press, 1995, IMMEL, Georg. “A metrépole ¢ a vida mental” em Otdvio Guilherme Velho (org.) O fendme- no urbano. Rio de Janciro, Zahar Editores, 1976. INDICE ONOMASTICO AGEL, Henri. 145 187 ANGELOPOULOS. 168 ANTONIONI, Michelangelo. 59, 78, 94, 95, 141, 194-196 ARISTARCO, Guido. 53, 59, 60, 64 ARNHEIM, Rudolf. 18, 25, 92 AUMONT, Jacques. 6, 194, 195 BALAZS, Bela. 22, 25, 52, 54-58, 60, 63, 64, 188 BARBARO, Umberto. 53, 58, 62-64, 73, 93 BARBERO, Jestis-Martin. 6, 184 BARTHES, Roland. 94, 145, 198, 205-207 BAUDRY, Jean Louis. 152-154, 157, 175, 177, 178, 183, 188, 202, 206 BAZIN, André. 15, 20, 22, 39, 73-75, 79-90, 103, 117, 125, 131, 138-141, 143, 145, 151, 154, 165, 184, 188, 190-194, 203, 205, 206 BELLOUR, Raymond. 6, 196-198 BELSON, Jordan. 105 BENJAMIM, Walter. 162, 163, 167 BENSMAIA, Réda. 187 BERGMAN, Ingmar. 93 BERGSON, Henri. 87, 92, 188, 199 BERTOT, Juliette. 162 BETTETINI, Gianfrane, 143, 144, 164 BORDWELL, David. 6, 185, 186, 192, 194 BOURDIEU, Pierre. 152 BRAKHAGE, Stan. 106, 119, 120-122, 124, 126, 158, 160, 165, 166, 196 BRECHT, Bertholt. 44, 64, 168, 175 BREER, Robert. 105, 106 BRESSON, Robert. 160, 189, 205 BRETON, André. 112, 113, 125 BUNUEL, Luis. 111-114, 116, 117, 125 BURCH, Noel. 19, 21, 22, 25, 39, 139, 141, 160, 161, 163, 189 BURGIN, Victor. 198 BYSTRZYCKA, Maria. 137, 138 CANUDO, Ricciotto. 99, 103, 125, 204 CARROL, Noel. 6, 173, 185-187 CAVELL, Stanley. 6, 184 CEZANNE, Paul. 99, 123 CHABROL, Claude. 78 CHAPLIN, Charles. 45, 49, 95 CHARNEY, Leo. 199 CHIARINI, Luigi. 59 CHKLOVSKI, Vitor. 30, 39 CLAIR, René. 112 COCTEAY, Jean. 115 COMMOLI, Jean Louis. 146 210 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO CONRAD. 106 CORTAZAR, Julio. 95 COSTA-GRAVAS. 155, 163 DALI, Salvador. 113, 114 DANEY, Serge. 6, 190-193, 200, 201 DAYAN, Daniel. 44 DE MILLE, Cecil B. 42 DE SICA, Vittorio. 72 DEGAS, Edgar. 20 DELEUZE, Gilles. 6, 174, 177, 187-194, 199, 203, 205, 206 DELLUC, Louis. 50, 71, 77, 103, 125, DEREN, Maya. 17, 25, 82, 115, 117, 118, 124, 125, 193, 195 DESNOS, Robert. 112, 113, 125 DISNEY, Walt. 105 DOANE, Mary Ann. 6, 177, 178, 199 DUBOIS, Philipe. 6, 196-199 DUFRENNE, Mikel. 139 DULAC, Germaine. 104, 106, 113, 125, 193, 201, 204 ECO, Umberto. 94, 97, 139, 163 EGGELING, V. 104 EICHENBALM, Boris. 144, 164 EISENSTEIN, S. M. 35, 39, 50-52, 62-64, 73, 81, 93, 107, 119, 125, 129-138, 144, 146, 150, 164, 167, 178, 187, 193, 196, 200 ELSAESSER, Thomas. 182, 200 EPSTEIN, Jean. 56, 101, 108-111, 113, 117, 125, 154, 190, 193, 199, 203, 204, 205, 206 FARGIER, Jean Paul. 152, 158, 159 BINDER. 142, 168, 172, 182 FAURE, Flie. 118, 126, 203, 205 FELLINI, Federico. 59, 78 FERRERI, Marco. 160, 168 FLAHERTY. 14 FORD, John. 44, 65, 149 FRAMPTON, Hollis. 123, 136, 196 FRANCASTEL, Pierre.151, 152, 157, 161, 164 FREUD, Sigmund. 113-115, 175, 178, 188 GARRONI, Ei 143-145, 146 GAUDREAULT, André, 20 GODARD, Jean-Luc. 9, 76, 77, 78, 84, 94, 140-146, 149, 150, 156, 162, 163, 164, 167, 168, 169, 172, 190, 191, 194, 195, 197, 198, 205, 207 GOLDMAN, Lucien. 60, 64 GORIN, Jean-Pierre. 149, 150, 156, 207 GREIMAS, A. J. 137, 164 GRIERSON, John. 14 GRIFFITH, D. W, 31, 34, 36-38, 42, 48, 51, 125, 131, 162, 163, 167 GUATARRI, Félix. 187 GUNNING, Tom. 187 HANOUN, Marcel. 160 HANSEN, Miriam. 6, 200 HEATH. 186, 187 HEIDEGGER, Martin. 171, 199 HEMINGWAY, Ernest. 79 HIRSZMAN, Leon. 63, 64 K, Alfred. 44 HOGGART, Richard. 183 HUSSERL, Edmund. 90, 92, 124 IVANOY, Viatcheslav. 137, 138 IVENS, Joris. 14 JACOBS, Ken. 160 JOYCE, James. 96, 135, 136 JUNG, Carl Gustav. 115 KANDINSKI. 102, 125 KRACAUER, Siegfried. 15, 50, 65, 67-73, 75,77, 78, 82, 93, 101, 109, 140, 193, 200, 207 KRISTEVA, Julia. 162 INDICE ONOMASTICO 2 KUBELKA, Peter. 106, 107, 123 KULECHOY, Lev. 46-54, 62, 63, 65, 81, 89, 91, 130, 133 LACAN, Jacques. 148, 154, 157, 173, 178, 182, 187, 188 LAMORISSE, Albert. 85, 86 LANG, Fritz, 103, 190 LEBEL, Patnick Jean. 19, 24, 151, 154-157 R, Fernand. 99, 108, 109, 126 LHERMINIER, Pidrre. 65, 97, 125 LICHTENSTEIN, Roy. 123, 126 LUKACS, Georg. 58-60, 64, 65, 74 LYE, Len. 105 MACKE, August. 101, 102 MAIAKOVSKI. 130, 164 MALLARME. 95 MALRAUX, André. 29, 39 MARG, Franz. 102, 125 MARKOPOULOS, Gregory. 106, 118, 119, 126 MARX, Karl. 135, 147, 175 MAURO, Humberto. 44 McACANN, Richard. 65, 74, 97, 177 McBRIDE, Joseph. 44, 65 MEKAS, Jonas. 107, 126, 167 MELIES, George. 193 MERLEAU-PONTY, Maurice. 91-92, 97, 110 METZ, Christian. 19, 23-25, 77, 138-143, 145, 153, 154, 164, 176, 177, 187, 190, 192, 202, 206 MEYERHOLD, V. E. 50, 51, 65, 131 MICHELSON, Annette. 124, 126, 187, 196, 203 MITRY, Jean. 19, 25, 90-95, 98, 103, 131, 138, 139, 142, 143, 145, 147, 154 MORIN, Edgar. 23, 25, 110 MOULLET, Luc. 76, 77, 94 MOUSSINAG, Léon. 50, 65, 101, 104, 125 MULVEY, Laura. 6, 178, 179, 197, 198 MUNSTENBERG, Hugo. 18 NARBONI, Jean. 146, 151 NICHOLS, Bill. 202 PANOFSKY, Erwin. 50, 65, 152 PASOLINI, Pier Paolo. 139, 140, 188, 190, 192, 194 PASSOS, John dos. 79 PAVLOV, Ivan Petrovich. 136 PICABIA, Francis. 112 PIERC! charles S. 17, 25, 188, 199 PIERRE, Silvie. Ee 151, 156 Jean Dee. 9, 146 PUDOVKIN, Vsevolod. 15, 34, 35, 39, 49, 52-55, 57, 59, 60, 62, 63, 91, 93, 130, 132, 133 RANCIERE, Jacques. 6, 203-206 RENOIR, Jean. 61, 80, 81, 89, 97 RENOY, Michel. 202 RESNAIS, Alain. 78 RICHTER, Hans. 104, 105, 107 ROBBE-GRILLET, Alain. 95 ROCHA, Glauber. 44, 65, 79, 141, 169, 207 ROSSELLINI, Roberto. 72, 74-76, 78, 97 ROSSI, Francesco. 95, 187 ROTHMAN, William. 44 ROUCH, Jean. 14, 190 RUIZ, Raul. 191 s S, Andrew. 44, 65 . Georg. 200, 207, SITNEY, P. Adams. 65, 119, 123, 125, 126 SMITH, Harry. 105 SNOW, Michael. 124, 125, 136, 160. 167, 196 SOLLERS, Philippe. 161 SOUPAULT, Philippe. 113 SPENGLER. 68 STANISLAVSKI, Constantin. 50, 53 STRAUB, Jean-Marie. 9, 79, 146, 160, 161, 168, 172, 190 SYBERBERG, S. 172, 191, 201 THOMPSON, E. R. 183 TRUFFAUT, Frangois. 78 VERTOV, Dziga. 14, 51, 125, 137, 146, 149, 150, 151, 163, 164, 190, 196 VISCONTI, Luchino. 57, 59, 78, 95 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO VYGOTSKY, Lev S. 136, 144 WARHOL, Andy. 119, 123, 126 WELLES, Orson. 81, 96, 97 WHITEHEAD, 69 WILLIAMS, Raymond. 6, 183 WILMINGTON, Michael. 44, 65 WOOD, Robin. 44, 65 WYLER, William. 81, 89 ZAVATTINI, Cesare. 72-75, 78, 81, 97, 111, 122 ZDANOV. 134 ZOLA, Emile. 41, 68, 71 INDICE DE REVISTAS Cahiers du Cinéma 19, 24, 25, 44, 65, 74, 76, 79, 89, 97, 137, 146, 148, 164, 179, 181, 184, 189, 190, 191, 196 Cinearte 45 Cinéthique 15, 19, 24, 25, 146-152, 154- 163, 167, 168, 171, 189, 190 Communications 25, 39, 154, 164, 198 Fan (Chaplin Club) 45 Fil Quartely 44, 65 Nouvelle Critique 151 Revue Internationale de Filmologie 23, 39 Tel Quel 148

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