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copyright © 1988 dos Autores capa Moema Cavalean Preperscto: ‘eto Menquita Fib0 Revisto: Coracio Nunes Jrior Regina Colonén Toimaa Domingues Eliana Medeiros 8 “Todos os direitos dest edigto reservados 4 Roa Bandeia Paulista 702, 32 04532-002 — So Paulos? “Teefone: (11) 3707-3500 Fax: (1) 3707-3501 ww companhiadasirs.com.be INDICE De olhos vendados— Adauto Novaes . Sombra ¢ luz em Plato — Gérard Lebrum ... Janela da alma, espetho do mundo — Marilena Chaui. Fenomenologia do olhar — Alfredo Bost 2 ‘As metamorfoses do olhar — Gerd A, Bornbeims . Olhar e meméria — José Moura Gongalves Filho O olhariluminista — Sergio Paulo Rowanet .. Bachelard ¢ Monct: oolho ea mio —Joré Américo Motta Peiramba. - ‘A construsio do olhar — Fiayga Ostrower ..... 5 ‘A emancipagio da cor — Leon Kassovitch .... Barroco: olhar e vertigem — Femina Gullar Manet: o enigma do olhar — Jorge Coli. O que Seurat sera? — Paulo Sérgio Duarte... Arquitecurasimulada — Ortlia Beatriz Fiori Arantes. uminagées profanas (poets, profetas, drogados) — jst Mia Wianik O deménio mudo — Antonio Alcir Bernérdex Pécora. ..... , Visdes do inferno ou o retoino da aura — Flavio Aguiar . Pensa € estar doente dos olhos — Leyla Perrone-Moisés jantes — Sérgio Cardoso Oolhar do estrangeito — Nelson Brssac Peixoto Cinema: revelagio ¢ engano — Ismail Xavier. Antividade do espectador — Lait Renato Martins... Variagbes sobre Michelangelo Antonioni — Gilda de Mello ¢ Souza. Masculino/femninino: 0 olhar da sedugto — Maria Rita Kebt. Olhar-louco — Fabio Landa, Osamantes contra o poder— Renato Janine Ribeiro ‘A Medusa ¢ 0 telesc6pio ou Verggasse 19 — Renato Mezan Osolhos do poder — Katia Murty... - (O paleolhar da televisio — Décio Pignasari ...... a 31 6 89 9% 125 v9 167 183 217 225 247 257 283, 301 317 327 347 361 367 385, 399 4 425 433, 445 479 487 O OLHAR VIAJANTE (DO ETNGLOGO)* Sérgio Cardoso Em bomenagems a Piere Clastres — nos dex anos de sua morte, COMPOSIGAO I: 0 OLHAR ‘Nossa certeza mais primitiva & mesmo a de-ver 0 mundo. Assenta-se na "fé per- ceptiva”, conforme a expressio certcira ¢cettada de Maurice Metleau-Ponty para desig- nar nossa crenga técita — e espontines — na existéncia do mundo. Mundo af, postado fora de n6s, em si mesmo, eabsolutamente apto 3 apreensio de nossos sentides. Porém, «sta convicgio imediata earrega uma ambivaléncia que, no caso da visto, a lingua pron- tamente acusa ¢comenta na oposigéo que governa nosso recurso habitual aos verbos ver ¢ olhar. Nao é, de fato, 0 mesmo, na nossa fala corrente, dizer que vimos algo ou alguém (ou que 0s olhamos. E podemos verificar, sem dificuldade, que esta distingdo usual tra- duz a oscilacto inerente 2 "fé perceptiva’” que faz continuamente hesitar © homem co- ‘mum — que todos somos — quanto aos papéis desempenhados pelo sujeito ¢ o mundo da produgio do conhecimento. Everdade que a distingio destes verbos parce, de imediato, pautarse apenas por ‘uma questio de proporsio, de dosagem dos elementos neles concottentes. Diriamos que ‘o bom emprego de tum ou outro se recomenda consoante a maior ou menor intervengio ¢ responsabilidade do sujeito no acontecimento da visio, que se guia pela tazéo da ativ- (+) Devemos advent kot para que alo espere aqui uma reflex mais suseradae gro: «para oe, neste eto, no despite arlene 2 autores, temas evocabulsio da fist, Debames de lado 0 ten spresentado no curso (fundamentalmente um comencra sobre a condigbes da eenograia, a partir do ‘Dio de B. Malisowaki ede pamagens da obra de Lévi-Staus) para ventar aqui uma empes um tanto vage entavagante—: a decompo e costae reals de incerogasbes e obseragdes que nos comer 20 longo —eimargem — da confi daquele trabalho, ¢ que Ihe srvizam ora de sugestio ora de supore, tran, pottm, apenas latralmente osc petcuno, untam-las em tes “composes (e Que 4 romeaqui eta pls foo seu sentido exolar independents ligadas,€verdade, por wm ecto flo comum — a referéacia mer lexw-pontyana. Que o lett, portato, nos perdse — além das imprecsies ou incotegbes — naqueles mo ‘pens cim que as costes peer um tanto arfcas 04 em que prevalecer ovis de alguma preocpaso Dedapgics.Expressanos também, aqui, nono eecnhecimento 20s colegas do deparamento de Sociologia da tr ~ lien Cardo, José Can Brun, Maca Helena Avgusto, entre outoe —cujo interes pela questo de tempo repereuti, por vias Was, neste tnt. 347 ade € da passividade do vidente no seu encontto com 0 mundo. E, neste sentido, con- cluiriamos que, entre o ver eo olhar, transitamos numa escala, que evoluimos de um 20 outro numa mesma linha, por gradacio. Logo, no entanto, compreendemos que nko € isto 0 que se passa — se observarmos bem. Pois, 20 abandonarmos o registro rarefeito das ordens e medidas por aquele mais espesso da expetiéncia, as progressbes de qua dade apontam sempre, em cada uma de suas diregées, para qualidades diversas; 0 que corre também aqui: o ver ¢ 0 olhar, na sua oposicio, configuram campos de significagio distintos, asinalam em cada extremidade do nosso fio justamente''sentidos" divers. ‘O ver, em geral, conota no vidente uma certa discricto e passividade ou, 20 menos, alguma reserva. Nele um olho décil, quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; ¢ 25 cspelha e registra, reflee e grava. Diriamos mesmo que af 0 olho se turva ¢ se embaca, concentrando sua vida na pelicula lustrosa da superficie, para fazerse espelho... Como se renunciasse a sua prOpria espessura c profundidade para reduzir-se a esta membrana sensivel em que o mundo imprime seus televos. Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, a atividude © vistudes do sujeito, atesta a ead passu nest ayo a espesuta da sua interiotidade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para aém do visto, e pa- tece originar-se sempre da necessidade de “'ver de novo" (ou ver 0 novo), como intento de “olhar bem’. Por isso € sempre direcionado ¢ atento, tenso € alera no seu impulso inquitidor... Como se itrompesse sempre da profundidade aquosa e mistetiosa do olho para interrogar¢ iluminar as dobras da paisagem (mesmo quando “'vago ou “‘ausente"” dcixa ainda adivinharestaatividade, 0 foco que rastreia uma paisagem interior) que, fre- quentemente, parece representar um mero ponto de apoio de sua propria reflexto (Ora, como a visio nos parece produzir-se pela conjungio de um espectadot ede algo visivel, nos patece exigir 0 engate de um sujcito ¢ um objeto, tudo se passa, entio, como se encarregéssemos cada um destes verbos de assinalar 0 poder de um destes pélos,fe- zendo-0s capitalizar as virtudes de um ou outro no talhe de seu feitio semantico particu- lar. Assim, de seu lado, o ver conota ingenuidade no vidente, evoca espontancidade, desprevensio, sugerindo contragto ou rarefasao da subjetividade... como para atestar at imposigOes do mundo, realgar 0 poder das coisas, sua jurisdicio sobre o conhecimento, De outto lado, no olhar — que deixa sempre aflorar uma certa intengio, rai sempre um «certo urdimento, algum calculo ou malicia — as marcas do artificio sublinham 2 aruagio « poderes do sujeito. Logo, portanto, reservamos — é o que fazemos habitualmente — uum para a visio involuntaria, e outro para o ver deliberado — premeditado ou simples- mente intencional —, deixando derrapar a perspectiva da gradacio ¢ romper-se fio da sua continuidade. Segmentam-se, sub-repticiamente, os polos da visio e, entre eles, he- sita seu sentido; pois dobra-se de um lado a percepsio & soberania do mundo e, de ou- tro, tudo se concede aos poderes do sujeito. Podemos, no entanto, explorar ainda um pouco o terreno demarcado por estes ver- bos, seguindo as indicagBes de Merleau-Ponty. Nio encontratemos entre eles somente combinagOes diversas dos mesmos elementos constantemente atuantes na 'quimica”” da visa, nem mesmo apenas um desempenho diferenciado do olho — que progrediria no sentido de um minimo a um méximo da atividade e intervencio no mundo que defron- ta, Na verdade, entre o ver € 0 olhar € a propria configuragio do mundo que se transfor- ‘ma, Testemunhs 5 4 metanorfese “alquimica” da sua uatureza, visto que duss ver- ses — irteconciliaveis — da realidade neles esto presentes, bem como versbes diversas da conjungio do vidente ¢ do visivel. 2d A visio — a simples visio —, ainda que modestamente ciente de seus limites € l- cance citcunscrito, supde um mundo pleno, inteiro e macigo, ¢cré no seu acabamento € totalidade, Toma-o como conjunto dos corpos ou coisas extensas que preenchem 0 espa- 50, e apbia nas qualidades deste a certeza da sua continuidade. Tudo se compse, entZo, ‘numa cocsfo compacta ¢ lisa, indefectivel... como aquela que deparamos na crenga ou ‘no sonho — pois, como ela, desconhece lacunas ¢ incoeréncia e, como cle, tudo acolhe ¢ integra com naturalidade. Opera por soma, acumulacio ¢ envolvimento; busca 0 espraia- -mento, a abrangéncia, a horizontalidade; e projeta, assim, um mundo continuo ¢ coeren- te, e acredita fruir e restituir — ainda que por prestasbes parcelares — a sua integralidade. ‘Jéo universo do olhar tem outta consisténcia. O olhar nto descansa sobre a paisa gem continua de um espaso inteiramente articulado, mas se enteda nos interstcios de ‘extensbes descontinuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho deftonta cons- tantemente limites, lacunas, divis6es ¢ alteridade, conforma-se a um espago aberto, fragmentado ¢ lacerado. Assim, trinca e se rompe a superficie lisa ¢ luminosa antes ofe- recida 8 visto, dando lugar a un lusco-fusto de cons claras ¢ escuras, que se apresentam € se esquivam & totalizagio. E 0 impulso inquitidor do olho nasce justamente desta des- continuidade, deste inacabamento do mundo: o logro das aparéncias, a magia das pets- pectivas, a opacidade das sombras, os enigmas das falhas, enfim, as vacilaOes das signi- ficacbes, ou as resisténcias que encontra a aticulagao plena da sua totalidade. Por iso 0 olhar no acumula ¢ nto abarca, mas procura; nfo deriva sobre uma superficie plana, ‘mas escava, fia ¢ fura, mirando as frestas deste mundo instével e deslizante que instiga « provoca a cada instante sua empresa de inspeegio ¢ interrogagio. Ao invés, pois, da dispersio horizontal da visio, o direcionamento e a concenttacio focal do olho da inves- tigasdo, orientado na vertcalidade. E com Merleau-Ponty que talvez possamos com- preender o cemne desta oposigio. Ela, a simples visio, supde ¢ expe um campo de signi- ficagbes, ele, o olhar — necessitado, inquieto e inquiridor — as deseja procura, seguin- do a tilha do sentido. O olhar pensa; € a visio feita interrogagio. ‘Assim, a configuracio deste mundo implicado.na atividade do olhar nos obriga a reconsiderar também o estatuto que, talvez, até aqui tenhamos ingenuamente guardado para a conjungio que nela se opera entre o vidente e 0 visvel. Nao podemos pensi-la co- ‘mo no registro da visio. No vet a integridade e suficiéncia do mundo, bem como sua s6- lida e rija consisténcia,rejeitam o vidente para o dominio de uma total exterioridade em telagio a si, fazem o vistvel dublar-se de um outro absolutamente separado — que, co- ‘mo subjetividade ou substincia pensante, 0 envolve ¢ reflete na sua atividade de repre- sentagio ¢ conhecimento (c este sujeito, como espirito retrafdo do mundo, parece encon- ‘rat, entdo, na pelicula delgada e brilhante do olho, a Gnica evocasdo mundana da sua poténcia de iluminagio). No universo do olhar, no entanto, deparamos outra forma de articulagio. Nele, vidente ¢ visvel misturam-se e confundem-se em cada modulacio do mundo, em cada né da sua cecelagem, mostram-se imbricados em cada ponto de sua in decisa extensio. E se a realidade os entrelaga, € porque o mundo visivel no se dé mais como conjunto de ‘coisas’, rigidas e fntegras, positvas (como também no € matéria inerte nem caos que um sujeito, como demiurgo, molda ¢ informa), mas como o contor- ‘no de um campo em que o sentido ora se adensae se aglutina, orase difunde e dui numa cxisténcia rarefeita, sempre vazado de lacunas ¢ indeterminagio. Como tio bem nos sou- bbe moscrar Merleau-Ponty, 0 vsfvel ented vidente por apresentar-se como aber ‘ura e passagem, por s6 fazer sentido como linha de forca ¢ fuga, penetrado portanto de laéncia e interrogagio. Deste modo a conjungio entre eles se faz por participacio, in- 2a ctustasfo reciproca, por comunidade, aderéncia c confusio, como indica o filbsofo; en- quanto no ver, que se alicerga na ‘fe peteeptiva”” o encontto se dé por contato, justapo- sigio e envolvimento, guardando pois cada polo sua autonomia e suficiéncia, sua intean- sigente identidade. Diatamos ha pouco que o olhar pensa, que testemunha a visio como interrogacio. Mas esta forrmulagio arrisca ainda suger a segmentacio ingénua dos p6los da visio. De- vemos, entio, corrigi-lae livré-la desta suspeita, pois compreendemos que nao € 0 olhar {que poe quest6es 20 mundo (comprometendo seu continuum — ex6tico ou ordenado — pela interrogagi0), como no é o mundo que na sua positiva finitude e descontinuidade as impoe a0 olhar. Talvez devéssemos dizer que ‘'o mundo se pensa”, se compreende- ‘mos que ele € sempre internamente aerado ¢ fermentado pelo pensamento, constante- mente escavado — como regio do sentido — pela penettacio do olhar. ‘Nao hi continuidade entre o vet ¢ 0 olhar. E 2 passagem entre eles nfo se faz por sgradagio; requer um salto, Passamos da segmentagio ¢ exterioridade entre 0 sujeito ¢ 0 ‘mundo supostes na 'fé perceptiva’’, para ua incxtrincével conjunszo na constivuigio do sentido. A operagdo de "“aproximar’” ou ‘‘focalizat”” que se observa no movimento do olhar, 20 invés de ‘ampliar” e precisa oalcance da visio, permite, na verdade, saltat do cspago das significagées estabelecidas e meigulhar no mundo temporal do sentido. Faz-5e, no entanto, necessiria uma Giltima observacio. Para compreendermos bem «esta passagem, e bem avaliarmos esse ‘'salto"’, no podemos confinar o mundo da visio — este espago das significagbes pressupostas que se apéia na “fe perceptiva’’ — apenas 10 registio da “renga”, que € tlo-somente um dos modos fundamentais da sua ‘operasio ¢ realidade. Assim procedendo, attiscamo-nos a ignorar (por negligenciat ou confundit) a diferenga da descontinuidade e abertura temporal do mundo do olhar, com a “fragmentagio" (atemporal,referida 3 extensio) do universo dos “‘sonhos". Ora, de- vemos observar que 0 sonho (para o sonhador, e nZo para o homem desperto que exami- na seus sonhos) opera, como a crenca, sempre no continuo; supe sempre identidade € totalizasio, ndo permitindo, pois, confundir sew tecido liso e compacto com o mundo lacunar que o olhar vigilante experimenta na sva investigagZo. Entretanto, se 0 sonho — como a ctenga — supde o continuo (slinhando-se, também cle, do lado da visto que, portanto, ndo cré apenas, pois pode sonhat), nao deixa de apresentar face a cla uma dife- fenga essencial (que justamente da conta da sua ''fragmentacio"”): a crenga busca seu su- porte na unidade do mundo, cle na unidade do sujeito. © que gacante a unidade dos elementos do sonho é, fundamentalmente, a identidade pressuposta do sonhador, O su- jeito, na sua identidade, € o principio (formal) da unidade das "‘associagBes” de fato condensadas no sonho (desde-que, evidentemente, este nfo seja tomado como um uni- verso ca6tico ¢ sem sentido, ou interpretado “religiosamente’, isto é, como simples vel- culo de uma significacio ou mensagem, exterior ¢ estranha ao sonhador) — pois os ele- mentos descontinuos pertencem 2 um mesmo sonho apenas, ou essencialmente, por se- rem sonhados por ele. J na ctenga a unidade é fiada pela continuidade do mundo, apa- recendo como descontinuo ¢ fragmentado (pois se engana, ignora,oscila)o pélo dosujei- to, No sonho slo, pois, seus elementos ou as “associagbes' de fato, dadas, que medem ¢ determinam o campo da totalizacto possivel (garantida de antemdo pela unidade do su- jeito); enquanto na crenga € uma totalidade atual — mesmo quando apenas pressuposta — que mede ¢ predetermina as associagBes posstveis. Enfim: do mesmo modo que a tenga supde a identidade do mundo, o sonho supe a (cré na) identidade do sujeito. Ora, este principio pressuposto (oculto, “‘inconsciente') da unidade do sonho 30 (que envolve seus elementos fragmentados — hetet6clitos —, inscrevendo neles um sen- tido latente) esta na origem de sua absoluta tolerdincia: nenhuma associagzo € impossi- vel, ou nenhum elemento Ihe € “estranho", ¢ votado, assim, a ser excluido da malha cerrada de um mesmo sono, ou do “‘mundo’” que ele projeta (tanto que, numa psica nilise — se a assentamos no exercicio do sonho —, nlo hi residuo, resto, tudo € signifi- ‘ativo, tudo integra seu percurso). Na crenga, por outro lado, a unidade — suposta, “re- vyelada’", ou apreendida por sinais — € 0 principio de uma absoluta intoletincia; pois 0 que escapa 2 totalizacio prévia (pré-vista) do mundo aparece como “'sonho'” ou alucina- so — 0 que faz 0 vidente sempre petseguido pela figura do visiondrio, sonhador. Por- tanto, no sonho, no s6 “Yo mundo €0 que eu vejo"” — como ocorre em toda “fe percep- tiva’” — mas ainda “tudo 0 que vejo € mundo” (o que cai na rede € peixe, como se costu- ma dizer), constivui a totalidade, pois se impregna, de imediato, da identidade do sujei- tw. Jia crenga, por seu lado, parece condenada a separar, sem descanso, ‘0 joio do trigo"” (precisa sempre separar seus peixes), dublada que é, constitutivamente, pela ameaga do fengano e da ilusta, (Por isso 25 religibes s2o vigilantes, combativas e inquisitoriais. De- ‘vem sempre, como um juiz em funcZo, distinguiro verdadeiro do falso, separaro real do itus6rio, o bem do mal. E exigem disciplina, pois seu teino néo & imediato, eo reconhe- cimento da unidade do todo passa necessaiamente pela exclusio. Ja a psicanilise, quan- do reivindics 0 terreno do sonho, toma o sentido oposto (¢ simétrico) 20 da religifo, pro- curando deste modo, no seu exetcicio, imediatez e espontancidade. Assim, odeia as ds- ciplinas © censuras, 05 atos sedimentados, os modelos ¢ regras, ¢ mesmo a eongruéncia, das significagies.... mas tem que exorcizat continuamente o petigo da complacéacia ou dda aventura, se nio da irresponsabilidade.) (Ora, vigilante como a ctenga ¢ aberto como 0 sonho, o olhar, que nio cré, também rio sonha. Nao pressupde qualquer unidade, afasta toda identidade prévia, seja do ‘mundo ou do sujeito. Por isso nos enteda no tempo (o Mundo nto nos € dado), ¢ nos desperta do nosso sono mais primitivo, aquele de “ver o mundo'’ (em que, afinal, an- tes de tudo sonhamos — verdadeiro Kindertraum! — nossa propria identidade). COMPOSIGAO II: VIAGENS Viajar,sabemos, nao € dado a todos. Hi homens acomodados, cascirose sedentirios, que parecem ignorar as divisdes do ‘spago ¢ pouco prezam a geografia. Sto quase naturalmente alhcios 3s viagens. Se se des- Jocam (visto que nao renunciam 20s trinstos, pois isto seria impossivel), concebem scus ‘movimentos no interior de um espaso ordenado, compacto ¢ pouco acidentado, que tu- do acomoda nos desdobramentos de sua extensio concertada ¢ continua. Assim, a sblida uunidade deste mundo parece ofuscar os cortes de horizonte, neutralizar os relevos ¢ des- niveis, como que sombreando as bareiras e suturando as fendas que parecem se impor com tanta nitidez & topografia. O desdém de tais homens pelas divisas e fronteiras faz ‘muitas vezes — como entre os ndmades — que seu movimento se desvencilhe, pois tudo cnyolvem num halo de proximidade. Assim, chegam mesmo a riscat 0 espago com gran de desembarago (como os gedmetras), © podem percorrer toda a terra... No entanto, nunca viajam. Pois as diregbes se tornam indiferentes (€is6tzopo, lembremo-not, 0 espa- 50 gcométrico), eas disténcias quase despreziveis, quando se esté por toda parte em casa. ‘Mas hé também homens inquictos — curiosos ou insatisfeitos — aos quais o ponto 451 cego do horizonte obseda, constantemente fustigae desafia, Desdenham homogéaco 0 continuo, e mostram-se extiemamente sensives s diferenga ¢atentos as limites, A cada ponto divisam algo adiante, em cada plano outro lado; e por toda parte medem discs, poll pham em eK Soa compete cps de gees — > luzidos que sio pelos elementos da topologia — quase sempre os impelem para o espaco sbato, cor levunaafonas menus ees, sbadcuone rats Ata dfcoet param em casa (se chegam a ter uma); sua atragdo pela frontcras parece tornc-los, . ‘mo condigio necessitia da unidade virtual do movimento efetivo do mével ou do sujeito (€ justamente para pensar a conjungio desta existéncia efetiva e unidade virtual do movi mento que os escolistcos forjam a nogto de “ato imperfeito”). De modo que se explica a sucesso (do movimento ¢ do tempo), retendo-se dem lado a pressuposicao da unida- de de um espago, ¢ supondo-se, de outro, a unidade e identidade do mével que produ © movimento. Ou seja, as condigoes de possibilidade do continuo sucessivo estzo, final. ‘mente, em duas unidades pressupostas: e da extensio ¢ a do sujeito, Portanto no parece dificil detectar o estratagema de que se vale esta explicagao do cariter 'sucessivo” do tempo. Seu ardil est justamente na pressupasicdo da totalida. de que distibuiria a sétie dos pontos consecutivos percottides pelo mével, jd que sem ela parece impossivel compreender a possiblidade da sucessio. De modo que, 20 atentat- ‘mos bem, observamos que esta totalidade € afastada com uma mao (20 se destituir, co ‘mo vimos, a continuidade da extensio pela atualizacio de suas "partes"” — que justa- ‘meme faz emergir a descontinuidade que requer 0 movimento) e reposta com a outta (na pressuposicio de que estes elementos descontinuos constituam uma série positiva de consecutivos, dispostos numa determinads relacfo de oxdem e proximidade), sustentan. do-se, pois, por esta desta prestidigitasio, a possibilidade de “‘ordenat”” a sucessa0 © “‘detetminar'' o movimento. Ou seja, no momento mesmo em que se €levado a poste. lara divisto ¢ descontinuidade dos lugares pressupostas pelo movimento (pois ele se ini- cia em um ponto ¢ termina noutto, vai sempre daqui para ali) mantém-se sub-repticia. ‘mente a sua unidade e continuidade pela projegio da série dos " pontos de refeténcia”™ que ordenam (segundo o anterior ¢ o posterior) 2s “tapas” do movimento, cujos limi tes "reais" se determinatiam pot seus termos extremos. Ora, como manter a relagto to- do/partes — ainda que purifcada e suilizada numa simples relagio de ordem —, quan. do a descontinuidade que exige o movimento justamente assinala nesta “totalidade"™ fragmentagio ¢ lacunas ¢, portanto, abertura ¢ indeterminasio?] De fato! Quando dizemos que o tempo € um continuo sucessivo (una wealidade cujas “ partes" nunca existem simultaneamente — juntas —, mas umas depois das ou. tras) referimos seu movimento continuo a uma sequéncia de ag ‘ta Merleau-Ponty, a convengdo de tepresentar esta série de agoras por pontos sobre uma linha) ¢ 0 conformarmos 3 interpretagio mais imediata do movimento, o deslocamento de um mével de um lugar para um outro, de uma “coisa” extensa a uma outa, como é ensado usualmente o movimento, Ora, nio € difiil perceber que, assim tomado, 0 ‘movimento implica uma referéncia inevtivel 2 totalidade de uma extensdo (petcortida Por um sujito); € nfo nos damos comta que, da continuidade imediata (positiva e ima- ‘indria) desta & articulacao constituinte do tempo, hé mudanga de registro ou, como di ria o mestre Arist6teles, “métabasis efs Allo genos"’ joras (de onde, como mos- (© movimento local parece exigit, como sua condigio, a projesdo de um trajeto Pois, se se move — segundo acreditamos — de alguma coisa para outa, e se est sempre, ‘enquanto movimento, entte seu ponto de partida ¢ um ponto de chegada, totna-se im- [possivel pensé-lo se nio se detém, de algum modo, a unidade do percurso que o deter- ‘mina, se nko se "conhece"” 0 ponto de chegada (¢ isto que permite, por exemplo, afi mar que estar em movimento de um lugar para outro & estar “‘vitualmente” neste outro ga). Se, portant, nao se pré-éo tjeto e, nee, a esta final do movimento, nfo porlemos epesené-o—exatamente como naquels eso in que nfo sibendo alg para onde ir, revela-se impossivel scu movimento: nao vai, permanece parado (os sofistas jf fastigavam o velho Socrates com um problema semelhante relativo ao conhecimento: se nio se sabe o que se procura, como procuri-lo? Este paradoxo, que renta dssbadi de ‘qualquer pretensio de buscar 0 conhecimento, parece justamente induzir 0 placonismo & color, am determinado momento, opostulido di remiss, ja o cones ‘mento parccetia supor alguma pré-visio, alguma virtualidade ou pré-disposigfo no st- re eecess ers a oe oe alteridade quando tudo se compoe na extensio ordenada de um trajeto, no seio de uma ‘mesma totalidade? Merleau-Ponty, de seu lado, vai contornar esta dificuldade interpretando a tempo- talidade nto mais pelo modelo do deslocamento — balizado por uma série de pontos ou ‘momentos —, mas como dimensio constitutiva de um mesmo “campo de transcendén- cia’ ou “campo de presenca"", trabalhado pot uma diferenciagio interna permanente, por uma alteracio conscante. Nao mais, portamto, passagem de win pono a outso, ou de {um agora a um outto, mas autodiferenciagio como modo de existncia — temporal — do presente; mudanga ou metamorfose de um ‘"caripo"* ou de um "mundo", em per- ‘manente transformagio (passagem de si2 si ou, come diz fil6sofo,"‘escoamento de si ppara si mesmo). E esta, indica-nos ele, a estrutura do tempo: artculagao ¢ diferenciagio latente do passado ¢ do futuro no campo do presente, pois este guarda os tragos de suas configuraspes passadaseevoca em simesino outs posites, Pot sto no encontamos& temporalidade na sucessio (de diferentes momentos ou instantes) mas na simultancida- de desta presenca espessa, movedica, permeada pelas marcas de um aquém e projetada para adiante pelos sina do ausente inscrtos na suas dobras. Ao refett-e & espessura ou profundidade do presente, Merleau-Ponty nos lembra, pois, que cle nfo é "um segmen- to de vero de contornes defines", uma duragto deserminaa ¢conines — come tum individuo espaso-ternporal —, mas um “campo”, aberto ¢ ""poroso",indecisoc lax cunar, em uj inacabamenteitdeterminago se encntra jutamentc wa abertrs pe 2 0 outro, para.o ausente, ou ainds — para usar sua expressio mais cara — para o "invi- Sve" esta “conerapartida secretado vise... nsrita[petmanentemente] ele, em fli prana’. Esta ‘abertura" (inscrita no presente) € 0 elemento do tempo, pois € o motor da scons dierent, sia ms endl pera Compreendemos, entio, que a temporalidade nao se constitui por extensio sgregasao, acumulagto ou envolvimento, as — por sero presente incabado, indedso «lacunar — se faz por alteragio, quebra c transformagto, esilhagamento ¢ teorganiza- slo de um mesmo "'campo"’, por desintegrasio € teconstituigdo (sempre ‘‘aberta") do seu sentido, Se ha passagem, ela é, portanto, de uma configurasio 2 outra do sentido. {Sua forma emblematica a encontramos certamente naquela experiéncia — tdo scosvcmente desta caaliadn cm O wel € 0 tnvtel da “desado”, ov da 356 uebra de uma certeza, uma significasao estabelecida ou alguma aglutinacto de sentido. Pois, quando exploramos suas zonas opacas, ou interrogamos suas lacunas (esse fundo constitutivo de auséncia de todo “visivel”), ela se “estlhaga”, dando lugar a uma ou- tra, que absorve of tragos da primeira numa forma mais aglutinadora e congruente. Co- ‘mo naqueles casos em que, tendo visto algo, e logo tentados a ‘olhar bem'’ — levados certamente pot alguma discrepancia, obseuridade ou lacuna que nos “‘chama a atengio"" —, aquilo mesmo que viramos se revela outra coisa, que vern desclassificar nossa expe- ‘itncia anterior como um “engano” ou ‘ilusfo"’. Do mesmo modo experimentamos tempo: 0 passado no € um momento que deixamos para tris, mas uma configuracéo perdida do sentido, excluida, pois vertida ¢ vazada no presente, passada nele, ¢ apenas existente nas dobras desta nova evidéncia, nos tragos de uma outra configuragio. E 0 fu- ‘tro ndo € algo positive que se tem pela frente, mas jf se delineia no horizonte do pre- sente — nas frestas abertas de sua indetetmina¢io —, como outro possivel deste mesmo mundo. A temporalidade, pois, sempre a encontramos nas linhas do presente, no devit constitutivo de seu préprio sentido.) Ora, se a representagio do tempo como sucessio, decalcado no “movimento local" — e, pois, inevitavelmente refetida 2 extensto compreensiva e envolvente de um ‘campo de proximidade — excluia a distancia, torna-se possivel agora pensar sua consti- tuigio, pois ela encontra na dimensio temporal do presente as condigdes de sua articula sfo. A distancia se produz pelo afastamento — como passagem para um outro —; mas este s6 se revela verdadeizo enquanto movimento de uma configurasio a outra do senti- do. Pois, de outro modo, 0 movimento parece neutralizarse pelo confinamento na con- tinuidade de uma grandeza, de uma totalidade, ou, entio, tornar-se impensivel pelo isolamento e completa indiferenca das extensBes que balizariam seu trajeto. Assim, condiclo de possibilidade da distancia que vemos articular-se num verdadeiro movimen- to esti na temporalidade, ou na abertura constitutiva de um presente; pois o distancia. ‘mento que a engendra nada mais € que a temporalizacio do seu sentido. Na verdade, podemos verifiar que tempo e distancia se entiedefinem, produzidos que slo, ambos, exclusivamente por este afastamento de si, pela diferenciacio interna de um campo de sentido. Enfim, a extensto € rcino da proximidade — sempre devedora da imaginaczo —, a distancia € um “produto” do tempo (que é distanciamento). Mas s6 compreende- ‘mas o aleance desta afitmaro quando poupamos inteiramente o tempo dos constrangi- mentos da totalidade (quando nio mais consideramos que cle "‘conforma-se i srandeza’’, para pensé-lo na sua abertura para o ausente, para 0 novo ou10 seu "‘outro"” Talvez possamos agora, finalmente, compreender nossa dificuldades iniciais refe- rentes A predicagto da distincia€ & definigio das viagens. Pois, sea atribuigio da primei 12 nos parecia derrapar inevitavelmente no terteno da controvérsia, isto acontecia por ‘do a distinguitmos da proximidade, por as confundirmos como determinagoes de um ‘mesmo género — relativas ambas a grandeza —, pelo qual transitarfamos por escala, comparacio gradacio. Ora, ao verificarmos agora que nio hi entre elas passagem con tinua, mas mudanga de registro, salto para outra ordem (pois uma se refere i coesto de uum todo, ou a unidade de uma extensio, outra & quebra ou desintegracao das ordena- shes configuragbes estabelecidas em que se investe 0 tempo), cambéi compreendemos © engano em que incortem os dicionétios na consideragio das viagens. £ verdade que, 20 defini-las pela distancia — assinalando-as, pois, como distanciamentos, por oposigio 40s simples deslocamentos —, parecem entrever sua determinasio fundamental. Porém, 337 miostram-se incapazes de pensé-la (tomam, ji vimos, o distanciamento como modalida- de do movimento local, como se fosse possvel acedermos ao distante, passarmos a um outro", por um trajeto continuo, sem quebras ou ruptura, sem experimentarmos a vertigem do tempo). Os dicionérios nfo se equivocam, pois, 20 indicar as viagens como distarciamentos, enganam-se quando as vinculam ao espago, quando ingenuamente re- presentam esses movimentos como mudangas de lugar no interior de um mesmo mun- do. Nao permitem compreender que o viajante se distancia porque se diferencia e trans- fom seu mundo; que a viens so sempre empreitads no tempo . Nao esquecamos, porém, que hd homens que — segundo créem — apenas transi tam no interior de um mundo cnjecido na consonancia das unidade, que, em tlio 20 préprio tempo, imaginam-se percorrendo uma linha de instantes de antemao dados ¢ ordenados. E que hi outros que, por seus deslocamentos, somam acidentes ¢ aventuras, detivam e erram por um universo disperso e fragmentado. E 0 segmento de tempo que delimica suas vidas parece fiarse na linha ténue que amarra suas estas, reunidas (08 natradas) sempre sem ordem ou seqiiéncia estabelecida, por associagio, contaminagio ou contigiidade de algum de seus elementos... como nos sonhos. Tais homens, uns € outros, tudo aproximam; desconhecem as distancias. Locomovem:se por uma superficie achatada, por um mundo plano e pleno de coisas — lugares, momentos, eventos, orde- ‘nados ou sem ordem —, ignorando sua abertura ¢ profundidade. Asssim nao viajam. Pois, £ na indeterminagao desta “abertuta’” que se enteda o distanciamento; 56 nela se aloja 0 tempo. (Por isso a bem poucos — como diziamos — & dado viajar.) COMPOSICAO Ill: O OLHAR VIAJANTE (DO ETNGLOGO) Deixemos de lado as viagens interessadas que alimentam a significacio mais pro- saica do vocbulo e nos induzem a defini-lo como simples mudanga de lugar (pois qua- se sempre encontramos suas razdes nas finalidades externas que as movem, ¢ determina- ‘mos seu movimento pelas estagBes que as limita). Busquemos aquelas que, tendo seus objetivos menos nitides, permitem-nos concentrar sua significagao no ato mesmo de via- jar. Verificaremos encio que, assim tomadas, as viagens revelam inequlvoco parentesco com ¢ atividade do olhar. E também que esta afinidade nao Ihes vem apenas de certos tragos de sua operagio, ou da economia de seu funcionamento, mas que, umas ¢ outfo, viagens, na verdade, patecem ampliar — intensificar ¢ prolongar — o mesmo movimen- to que cotidianamente verficamos no exesciio do olhar... Como se, em ocasies privile- siadss, os olhos arrebatassem todo o corpo na sua empresa de exploracao da alteridade, no seu intuito de investigar ¢ compreender, no seu desejo de “thar bem” © olhar, sabemos, nao descansa sobre o plano amplo e espraiado que define um horizonte, mas procura barreiras¢ limites, perscruta suas diferencase vazios. Trata-se de algo bem conhecido. Que qualquer relevo ou sinuosidade, falha ou obscuridade destoe da unidade pré-vista da paisagem familiar, que um ponto de descontinuidade ou incon- sgruéncia se manifeste, qualquer sinal de ruptura, inesperado ou imprevisto... ¢a visto inocente — distendida ou distraida — vacila, estaca e atende, convoca o olhar; contrai-se no foco vertical da atencio, no impulso de envolver 0 novo e — quase sempre — na ten tatwava de devolver 2 paiager sua inepidade. Asim, o olhat se embreaba peas fs tas do mundo na investigasto dos obstéculos ou lacunas que constantemente comprome- tem a unidade hesitante das significagdes (quando ele proprio nio lhes escava o terreno, abrindo fendas nas aglomeragies custosamente sedimentadas na duracio). Da mesma forma as viagens. Tembém elas — como exercicios do olhar — tém origem nas brechas do sentido. Se o viajante fura o horizonte da proximidade ¢ transpoe os limites de seu ‘mundo para fixar a atensio mais além — no que nio se deixa vet mas apenas advinhar ou entrever —, & sempre pelos vdos do préprio mundo que ele penetra, na medida em que surgem brechas na sua evidéncia, abrindo passagens na paisagem ou contornando desniveis ¢ vazios. A viagem, entdo, como olhar, vazando por esses poros, temporaliza a tealidade reempreendendo a busca de seu sentido. Assim, manifesta-se nela a abertura ou indeterminagto do mundo, e nesta — para usarmos a expressdo de Merleau-Ponty — © escoamento inesgorével do tempo. Compreendemos, portanto, que as viagens sejam sempre experiéncias de estranha- mento. E podemos mesmo observar que esti, talvez, neste efcto de distanciamento, 0 sentimento de dépaysement (termo forjado com tanta felicidade pela lingua francesa, ‘aja significagto se aproximaria do nosso termo “‘desterro"_ se 0 toméssemas num regis. tto exclusivamente psicolégico e simbdlico) que, de um modo ou de outro, sempre en. volve o viajante (que nao se mostte inabalavelmente frivolo), o seu nticleo essencial esua expressio mais intima. Ora, esta experiencia € frequentemente atribufda a simples estra- heza do entorno que localiza o viajamte, a sua posigdo em um meio adverts, cuja oposi $30, separasio e "‘distdncia” relativamente 20 seu universo préptio o fariam sentir-se “deslocado’” ou ‘'fora do lugat". Esta oposigio se encatregaria, entio, de explicar o ¢s- tteitamento de seu mundo (a redugdo da extensio das conexSes da proximidade que 0 definem) ¢, com ele, a erordo da sua propria corporeidade (pois contraise, afinal, a r6ptia extensio do sujeito, risto que se imbrica e se confunde na grandeza do mundo), fazendo-o pousar como sombra num mundo alheio e exterior. Esta interpretaglo, no en tanto, certamente dissimula o sentido mais profundo desta experitacia; pois, encontra suas halizas na considerasio da extensio, esquecendo-se de quc as viageus slo, essencial- ‘mente, empreitads no tempo. Mas como compreendé-la, entlo? O que nos revela, na verdade, esta experitncia? Quando consideramos o cardver temporal das viagens, compreendemos que o dé- Paysement nao vestemuba a cxterioridade € estranheza do mundo circundante, ou mes- ‘mo a intersecsd0 ou sobzeposigdo imaginatia de extensBes diversas (sobreposigio fantas. magérica jf que — segunco se diz — "dois corpos nao podem ocupar o mesmo ‘spaco"), mas asinala sempre desarranjos intemnos ao pr6prio territ6tio do viajante, ad. vindos das fissuras ¢ fendas que permeiam sua identidade. Pois, as viagens, na verdade, ‘nunca transladam 0 viajante a um meio completamente estranho, nunca 0 atiram em plena ¢ adversa exterioridade (mesmo porque ele nZo se encontra "dentro do espago’ ‘como uma coisa, nem “fora dele", como um espirito, como a cada passo insiste em lem: brar Merleau-Ponty); mas, marcadas pela interiotidade do tempo, alteram e diferenciam seu pr6prio mundo, tornam-no estranho para si mesmo, Assim, neste sentimento de es- tranheza, de “'alheamento"’ ¢ distincia, seu mundo ndo se esteita, se abe; nlo se blo- qucia, mas experimenta a vertigem da desestruturacio (sempre, em alguma medida, ‘marcada pela perda e a morte) que lhe impoem as alteragBcs do tempo. E desta natureza © estranhamento das viagens:ndo € nunca relativo a um outro, mas sempre 20 proprio viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensio circunsctta de sua frgil iatidade, no interior dele pr6prio. O distanciamento das viagens nao desenratza 0 sujeito, apenas diferencia seu mundo... quando, € verdade, ele no se mostra demasia- damente compacto — e defendido — para deixar penetrar o tempo. ‘Mas procuremos atentar ainda para um ensinamento mais amplo trazido por esta cexperitneia. O que ela nas faz mais profundamente compreender € que, 0 “outro”, 860 alcancamos em nés mesmos, que o ‘‘estranho"’ — quando nao € absoluta exterioridade «enfo-sentido — esta prefigurado no sentido aberto do nosso proprio mundo, inscrito no fluxo e no movimento da sua temporalidade. Compreendemos por ela qué o “estrangei- ro" est sempre jf delineado — latente ¢ invisivel — nas brechas da nossa identidade, ra wilha aberta por nossa pr6pria indeterminaci0. Nao podemos apanhi-lo fora, $60 to- ‘eamos dentro (de nés mesmos), pagando o prego da nossa propria transformagio. Pois 0 “outro”, enfim — para parafrasear uma observasio tornada emblemitica da obra de Merleau-Ponty —, € sempre (e apenas) o que exige de n6s distanciamento (de n6s para ‘80s mesmos, nto € demais insist) para que dele tenhamos experiencia. ‘Nio € dificil perceber que estas observagées nos encaminham diretamente para 0 terreno da ctnologia. Pois, se ji vislumbramos nelas que 0 verdadeiro viajante € sempre virtualmente etnélogo, devemos considerar também, converso ttinere, o vinculo desta cincia com a armacio temporal das viagens, j que 6 ela abre pagsagem para a verds- deira alteridade. Se 2 temporalidade € 0 solo da comunicasio com o outro, s6 nela € que aleangamos o fundamento deste saber alargado do homem a que prentede a exnologia. ‘Sabemos, no entanto, que nao foi este (ao imenos até o momento) 0 caminho bus- cado por ela para pensar o problema desta comunicasio. A etnologia sempre tentou dis- tribuira diversidade do humaro em alguma extensto (que coincide, afinal, com os con- tornos da propria ciéncia), procurou, a cada passo, costurs-la com os fios de alguma con- tinuidade, visou sempre, enfim, a sua totalizagéo. Podemos observi-lo nas suas formula- sBes mais dispares, pois procede deste modo seja quando pressupde uma sucessdo das di- versas “‘etapas" da cultura — buscando na evolusio o principio de ordenacio ou distr- buigio do diverso —, seja quando toma uma certa forma de integragio (quer seja seu to- do concebido como uma ordem de disttibuigdes funcionais ou estruturais, seja tomado como modelo ou delimitado pelo conjunto das propriedades formais das suas relagdes, cou mesmo ainda visto como simples esquema orientador da observacio, constrangida a tomar como parimetro de suas colheitas as insttuigées da cultura do observadot) como piv6 das equivaléncias que Ihe permitem transitar entre a diversas sociedades. & sempre, segundo o modelo do espaco que ela compreende sua propria articulagio, pois bus+ jinterruptamente; envolver 0 “outro” em algum horizonte de proximidade, na continuidade de uma mesma extensio.’Por isso esta sempre 3s voltas com “ partes" “etapas”, “modelos”, “homologias”’, ou “grupos de transformagio"” que nos reme- tem 2 totalidade, como terreno de comunicasio € incusi. Ora, justamente esta constante projesao da proximidade veda & etnologia 0 acesse 4“ distincia’’, ao afastamento que trama o tempo € nos permite alcangar.0 novo € 0 ou- tro (que € sempre — ja pudemos observar — 0 novo de nés mesmos). Ela, que guard ‘um vinculo umbilical com as viagens, tem, portanto, muito a aprender delas... desde que renuncie, porém, a instrumentalizé-las, a tom-las como mera condigio do contata, anga a ser abandonada e esquecida (ou lembrada sempre com algum pejo, 2 margeti da cigncia) com o advento do conhecimento, a reconstituiso de uma outra — ext —tealidade... desde, pois, que esquesa por um momento suas viagens interessadas,€ que procure aquelas que, tendo seus objetivos menos aitidos, Ihe permitam concentra se no sentido do ato mesmo de viajar. a

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