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Sentido sem referência

no contexto do projeto logicista de Frege

Resumo
Elliot Santovich Scaramal No artigo médio “Über Sinn und Bedeutung” (1892), Frege ofe-
Mestrando pela UFG rece uma nova proposta de resolução do problema da diferença
Palavras-chave de valor cognitivo entre sentenças das respectivas formas “a=a”
Sentido sem referência; Frege; e “a=b”, que repousa sobre a introdução, por parte do mesmo, de
Operador “/”; Sentenças Fic- uma nova dimensão semântica, distinta dos meros sinais linguís-
cionais. Princípio do Terceiro
Excluído. ticos e daquilo pelo que eles estão. Essa introdução se manifesta
na assunção fregeana de que a atribuição de um nome próprio a
um objeto é mediada por uma descrição associada ao mesmo ou de
que nomes próprios ordinários são termos singulares de referência
indireta. Ademais, no mesmo artigo, Frege amplia a sua clivagem
do conteúdo semântico de nomes próprios também para expressões
insaturadas e sentenças. Nesse mesmo artigo, Frege estipula que
um sentido não assegura uma referência e que, portanto, um nome
próprio, embora tenha um sentido associado a ele, pode não referir.
Ademais, ao admitir que o sentido e a referência de uma sentença
são formados composicionalmente, tão cedo algum constituinte
do sentido da sentença não refira, a mesma não possui valor-de-
-verdade. Em “On Denoting” (1905), Russell critica os resultados da
abordagem do artigo supracitado, acusando-o de violar o Princípio
do Terceiro Excluído, ao admitir que hajam sentenças, bem-for-
madas, com sentido, porém, sem valor-de-verdade. Por exemplo,
se, em uma sentença singular, o nome próprio que seria o sujeito
da mesma, não refere. Russell sugere, como alternativa, sua Teo-
ria das Descrições. Na presente comunicação, tentaremos mostrar
que, malgrado o artigo de 1892 deixar Frege sujeito às críticas de
Russell, as definições do operador “\” (§11), de pensamento (como
a expressão das condições nas quais uma sentença denota o Verda-
deiro, §32) e uma observação acerca da noção de função (§8) nas
“Grundgesetze der Arithmetik” (1893), texto que encarnaria tecni-
camente o projeto logicista de Frege, ao barrarem tanto formação
de nomes próprios sem que a descrição associada a eles seja satis-
feita com unicidade quanto a formação de sentidos distintos para
sentenças com as mesmas condições de verdade, preservam o Prin-
cípio do Terceiro Excluído assim como escapam à introdução de
quaisquer elementos psicológicos ou mentalistas em sua semântica.

1. Introdução: Begriffsschrift e a noção de conteúdo conceitual


O projeto logicista de Frege de fundamentação da aritmética a partir
de leis puramente lógicas dependia, em vários aspectos, da apresen-
tação de uma linguagem formal (Formelsprache) que exibisse, de
forma rigorosa e precisa, a pura forma do pensamento1 enquanto

1 Aqui tomaremos como sinônimos, no contexto da filosofia de Frege os termos “pensa-


121 mento” e “proposição”.
Anais do seminário dos uma atividade semântica e não psicológica2. Dado este instrumento,
estudantes de pós-graduação poderíamos, então, através de um método de prova (ou, leibni-
em filosofia da UFSCar
2014 zianamente, um calculus ratiocinator), atestar se a verdade de um
10a edição dado pensamento poderia ser inferida a partir de sua mera forma3,
independentemente do seu conteúdo particular ou do significado de
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 seus constituintes, ou seja, analiticamente conforme a terminologia
introduzida em Die Grundlagen der Arithmetik4 (1884).
Com isso, Frege é levado a passar, de maneira articulada ao seu
projeto geral, por um processo de explicitação da forma lógica ou
da estrutura interna disso que ele então chamava conteúdo judi-
cável (urteilbarer Inhalt), o que deveria ser levado a cabo por um
processo posteriormente chamado de análise5. Esse projeto de ex-
plicitação da forma do pensamento mediante a sua tradução para
uma linguagem formal, com o qual Frege havia se comprometido,
envolveria tanto um aspecto exclusivo quanto um aspecto rigo-
rosamente inclusivo: Por um lado, essa notação deveria excluir
de seu escopo tudo o que em sentenças da linguagem ordinária
dissesse respeito à mera interação entre interlocutores6. Por outro,
ela não deveria deixar nenhum elemento relevante ao seu escopo
subentendido ou implícito.
Dada a introdução destas duas condições pelas quais pode-se le-
var a cabo a expressão do conteúdo de sentenças da linguagem
ordinária sob a notação da Begriffsschrift, de pronto, pode-se con-
cluir que, primeiramente, seriam eliminados todos os elementos
contextuais dessas sentenças, próprios da interação entre falante
e ouvinte. Esse é o caso, por exemplo, das expressões indexicais,
cujo estatuto semântico seria melhor tratado apenas na investiga-
ção rudimentar acerca de indexicais puros (como “Eu” e expressões
temporais tensed, que compõem sentenças ordinárias que expres-
sam implicitamente as determinações temporais [Zeitbestimmun-
gen] da proposição correspondente) no ensaio tardio de Frege: Der
Gedanke (1918). Expressões essas que, segundo os argumentos de
John Perry (1997), introduziriam sérios problemas na semântica de
Frege, em especial, acerca da distinção entre sentido e referência
aplicada a sentenças, em que Frege não poderia manter simultane-
amente que “modo de apresentação” (Art des Gegebenseins) seja o
definiens exclusivo de “sentido” (como veremos adiante) e que o

2 “O que nos faz tão inclinados a aceitar tais visões errôneas é que definimos a tarefa da
lógica como a investigação acerca das leis do pensamento, ao passo que entendemos por
essa expressão algo no mesmo nível que as leis da natureza”. (FREGE, Logik, 1979, p. 18,
tradução nossa)
3 Prefácio, Begriffsschrift.
4 “Se, em trilhando esse caminho [de encontrar a prova da proposição e segui-la de vol-
ta às verdades primitivas (Urwahrheiten)], nele forem pressupostos apenas as leis lógicas
(die logische Gesetze) e definições, então tem-se uma verdade analítica.” (FREGE, Gl., §3,
tradução nossa).
5 A estratégia fregiana para efetivar o que é chamado processo de análise (uma decom-
posição) do pensamento, provém da matemática e, mais precisamente, da álgebra: a
noção de função. Frege em Função e Conceito (1891) parecia ver seu processo de análise
como uma continuação radical de um curso de ampliação da noção de função. Curso
pelo qual não apenas o domínio de substituição das variáveis aumentaria (“império
romano”, “hidrogênio” e “César” e nomes em geral passariam a ser expressões que satu-
rariam funções), como aquilo que designamos por função também (como funções ordiná-
rias nominais tais quais “a capital de x” e até predicados como “x é mais leve que CO2” e
“x conquistou a Gália”).
122 6 FREGE, 1967, p. 12.
Anais do seminário dos sentido de uma sentença sejam suas condições de verdade (o que
estudantes de pós-graduação também será posteriormente elucidado nessa comunicação)7.
em filosofia da UFSCar
2014 Em segundo lugar, a expressão do conteúdo de sentenças ordinárias
10a edição na Begriffsschrift leva em consideração tudo e estritamente aquilo
com o que o falante que enuncia um token da sentença, ao enunciá-
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 -lo, se compromete. Ou seja, todo e apenas o conteúdo apofântico
que o falante pressupõe8 e que pode ser traçado como uma conse-
quência possível semântica daquilo com o que ele se comprome-
te, a esse conteúdo restrito, Frege denomina conteúdo conceitual
(begrifflicher Inhalt). Como nota Kremer (2010), essa restrição se
dá em um contexto de prova da validade de proposições porque o
conteúdo conceitual explicita “somente aquilo que é relevante para
a inferência”9, i.e., somente aquilo que é necessário para inferirmos
ou tomarmos como verdadeira a proposição em questão.
Dessa maneira, Frege parece ter sucesso em construir uma semân-
tica, ao menos no que toca à proposições tomadas como um todo
independentemente da análise de seus constituintes internos com-
pletamente anti-mentalista, ou seja, que não faz apelo a qualquer
elemento mental para a interpretação de seus sinais e sequer pres-
supõe a existência de qualquer sujeito ou estrutura mental, aspecto
que acompanha a recusa enérgica de Frege ao psicologismo. O
sentido de uma proposição, ao menos no que toca ao que pode ser
expresso na linguagem formal da Begriffsschrift é constituído ex-
clusivamente pela explicitação de suas pressuposições, as quais são
tudo aquilo que pode ser traçado como uma consequência possível
semântica do comprometimento com a verdade da sentença corres-
pondente à proposição em questão.

2. O artigo médio de 1892: uma nova dimensão semântica e a


irrestrição do Princípio de Composicionalidade

2.1. Nomes próprios ordinários ou termos singulares


No entanto, Frege, após a publicação da Begriffsschrift, ainda exer-
gava um problema em sua semântica, no que concerne, em espe-
cial, à suposta incapacidade de excluir uma certa arbitrariedade em
que culminaria a interpretação de sentenças de identidade da forma
“a=b” como regras metalinguisticamente estabelecidas que prescre-
vem a intersubstitutividade entre os sinais relata, de modo que essa
interpretação fosse vista por Frege como insatisfatória para expli-
car as diferenças de valor cognitivo entre sentenças das respectivas
formas “a=a” e “a=b”. No artigo médio Über Sinn und Bedeutung
(1892), Frege oferece uma elegante e razoável resolução desse pro-
blema, que repousa sobre a introdução, por parte de Frege, de uma
nova dimensão semântica, distinta dos meros objetos concretos que
usamos linguisticamente, os sinais gráficos ou sonoros, e os objetos
pelos quais eles estão. Essa introdução se manifesta na assunção

7 Perry, 1997, p. 488: “Para manter a identificação entre pensamento e sentido intacta,
Frege deve nos prover de um sentido completante [completing sense], mas então sua
interpretação acerca de demonstrativos se torna implausível”.
8 FREGE, 1967, p. 5: “Seu primeiro propósito [da Begriffsscrhift], portanto, é o de [...]
apontar toda pressuposição que tente se infiltrar sem ser notada”.
123 9 KREMER, 2010, p. 221.
Anais do seminário dos fregeana de que a atribuição de um nome próprio a um objeto é
estudantes de pós-graduação intermediada por uma descrição geral associada ao mesmo ou, o
em filosofia da UFSCar
2014 que o mesmo, de que nomes próprios ordinários são termos singu-
10a edição lares ou designadores de referência indireta, posição notoriamente
denominada de Descritivismo.
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Esse movimento, tomado por Frege para resolver o que já foi desig-
nado pelos nomes de “paradoxos da identidade” por Burge (1977) e
Mendelsohn (2005) ou “Frege’s Puzzle” por Salmon (1986), foi cha-
mado por Michael Beaney (1996) de splitting of content, uma cliva-
gem ou bipartição do conteúdo semântico. No entanto, nessa cliva-
gem, há uma manifesta prioridade lógica de um dos dois elementos
constituintes do conteúdo semântico de uma expressão linguística
(até então nomes próprios ordinários ou termos singulares): os
nomes próprios lidam primeiramente com descrições conceituais
e, portanto, com predicados, expressões insaturadas (expressões
funcionais) de primeira-ordem cuja imagem são algum valor-de-
-verdade ( o que Frege chama seu sentido, Sinn), e só então, uma
vez que essa descrição satisfaz uma determinada propriedade de
segunda ordem (a saber, satisfação com unicidade), o nome próprio
em questão está pelo objeto que satisfaz tal descrição (o que Frege
chama sua referência, Bedeutung).

2.2. Sentenças
Entretanto, no artigo de 1892, Frege se compromete com a expan-
são da sua clivagem do conteúdo semântico de sinais para outras
expressões da linguagem, a saber, tanto expressões insaturadas, ex-
pressões funcionais ordinárias e predicados (das quais não nos ocu-
paremos aqui) quanto outras expressões saturadas, i.e. sentenças.
Frege admite de antemão que uma sentença lida com um conteúdo
semântico que é chamado o pensamento (Gedanke), mas à respeito
desse resta ainda saber a qual dos dois níveis semânticos resultan-
tes da clivagem o mesmo pertence. Para responder essa questão,
Frege parece lançar mão de dois argumentos para defender uma
de suas teses mais exóticas e impalatáveis, a saber: a tese de que
ao passo que o pensamento é o sentido expresso por uma sentença,
sua referência é seu valor-de-verdade e que sentenças são nomes
que estão por objetos, seus valores-de-verdade.
Para decidir a questão levantada, Frege leva a cabo seu primei-
ro argumento através das seguintes premissas, a saber, de que (i)
conforme dita sua análise funcional da linguagem, uma sentença
é uma expressão composta pela articução entre um sujeito e um
predicado lógico e (ii) o que Mendelsohn chama o Princípio de
Composicionalidade aplicado paralelamente ao sentido e à referên-
cia de um sinal, ou seja, que ambos os níveis semânticos operam
composicionalmente10. Uma sentença, portanto, só tem o seu senti-
do determinado pelos sentidos dos seus constituintes intra-propo-
sicionais, assim como a existência de sua referência demanda que
os mesmos constituintes também tenham referência11. Frege então
acrescenta que aparentemente aquilo que uma sentença tem se e

10 Ver também BEANEY, 1996, p. 157-8.


124 11 BEANEY, 1996, p. 160.
Anais do seminário dos somente se todos os seus consituintes intra-proposicionais têm
estudantes de pós-graduação referência é o seu valor-de-verdade.
em filosofia da UFSCar
2014 O segundo argumento de Frege apela para uma premissa inspira-
10a edição da em Leibniz (embora a mesma pareça se aplicar de forma mais
razoável apenas para sinais intra-sentenciais) segundo a qual, em
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 sua formulação mais geral, dois sinais se referem ao mesmo se po-
demos substitui-los salva veritate. Frege adiante parece argumentar
que não só se pudermos substituir um determinado nome próprio
por um outro em qualquer sentença mantendo o valor-de-verdade
da mesma, eles são correferenciais ou se pudermos subtituir um
predicado por outro em qualquer sentença mantendo o valor-de-
-verdade da mesma eles são coextensivos, mas também se substi-
tuirmos uma sentença inteira por outra (inobstante eventuais sen-
tidos distintos) mantendo o seu valor-de-verdade, ambas também
são correferenciais, uma vez que aquilo que inobstante tais substi-
tuições se mantém para que o valor-de-verdade seja mantido é o
próprio valor-de-verdade da sentença1213.

2.3. Sentido sem referência


No artigo de 1892, logo após introduzir sua nova dimensão semân-
tica para nomes próprios como medida para solucionar o problema
da diferença de valor cognitivo entre sentenças de identidade das
formas “a=a” e “a=b” a qual chamou “sentido” e que definiu cano-
nicamente como o modo apresentação (Art des Gegebenseins), Fre-
ge afirma que a associação de um sentido a um sinal, embora uma
condição necessária não é uma condição suficiente para assegurar
uma referência para o mesmo sinal. Assim, Frege daria espaço para
o que foi popularizado na literatura secundária como “nomes va-
zios”. Tal afirmação parece introduzir uma incoerência com a defi-
nição canônica de sentido, como nota Makin (2010):Uma vez que
“apresentar” é uma relação parece um contrassenso afirmar que
possa haver um modo de apresentação sem que nada seja apresen-
tado. Como Makin mesmo apresenta o problema:
Uma vez que não há referente dificilmente poderia haver uma
maneira pela qual o referente é apresentado, um “modo de
apresentação de um referente” não pode ser considerada a no-
ção definidora de sentido em geral – há sentidos para os quais
essa caracterização não se aplica (Frege’s Distinction Between
Sense and Reference, 2010, p. 152, tradução nossa).

A admissão de nomes próprios com sentido e sem referência por


parte de Frege é o fio condutor para os problemas posteriormente
apresentados por Russell em seu On Denoting 1905. Dado o Prin-
cípio do Composicionalidade aplicado a referências que estipularia
que uma expressão complexa bem-formada tem referência se e

12 BEANEY, 1996, p. 158.


13 Uma outra via de argumentação, embora não presente no artigo de 1892 é essa
reconstruída por Michael Beaney (2007): “É natural pensar que a relação entre o argu-
mento de uma função e o termo para aquele argumento (por exemplo, a relação entre o
argumento -1 e o numeral “-1”) é a mesma que a relação entre o valor da função (para
um dado argumento) e o termo para aquele valor. Então se o valor da função é um
valor-de-verdade, então qualquer expressão para aquele valor-de-verdade significará ou
125 denotará o argumento.” (tradução nossa)
Anais do seminário dos somente se seus constituintes também tem, tão cedo algum cons-
estudantes de pós-graduação tituinte do sentido da sentença não refira, a mesma também não
em filosofia da UFSCar
2014 possui referência e, portanto, não possui qualquer valor de verdade.
10a edição Esse é o tratamento dado a sentenças ficcionais no artigo se por
essas entendemos principalmente sentenças singulares cujo nome
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 próprio que figura como sujeito, embora tenha um sentido que
assegure (juntamente como o sentido dos outros constituintes pro-
posicionais) o sentido da sentença como um todo, não refira.

3. As críticas de Russell no On Denoting de 1905


Em 1905, já posteriormente à publicação dos dois volumes das
Grundgesetze der Arithmetik de Frege, Russell apresenta críticas às
semânticas de Meinong e Frege acerca de expressões denotativas
ao passo que o mesmo advoca sua Teoria da Descrições segundo
a qual expressões denotativas são sentenças quantificadas. Rus-
sell, em uma de suas críticas, acusa Frege de violar o Princípio do
Terceiro Excluído, ao admitir que hajam sentenças, bem-formadas
e com sentido, porém, sem valor de verdade. Por exemplo, se, em
uma sentença singular, o nome próprio que seria o sujeito da mes-
ma, não refere. Na semântica alternativa de Russell, o que corres-
ponderia a um termo singular de referência indireta seria uma sen-
tença que afirma a satisfação e a unicidade de satisfação de uma
descrição geral, de modo que, caso a mesma não seja satisfeita, a
sentença, como um todo, é simplesmente falsa.
Muito se discutiu já na literatura secundária acerca de o quanto as
críticas de Russell no On Denoting de fato afetam a semântica de
Frege. Geach (1959), por exemplo, defendeu que essas críticas eram
em muito irrelevantes e inócuas à semânticas de Frege. Tentaremos
defender adiante que as críticas de Russell, embora incisivas esta-
vam por muito atrasadas quando feitas: seguindo parte da leitura de
Blackburn & Code (1978) e Manser (1985), assumimos que elas re-
velam, sim, sérios problemas acerca do tratamento dado à distinção
entre sentido e referência no artigo de 1892. No entanto, defende-
mos que o tratamento da mesma distinção no primeiro volume das
Grundgesetze der Arithmetik, publicado em 1893, é completamente
imune a essas mesmas críticas e pode inclusive ser considerado um
precursor mais refinado da Teoria das Descrições de Russell, princi-
palmente se considerarmos como essa é aplicada no primeiro volu-
me dos Principia Mathematica14 de Russell e Whitehead.

4. As Grundgesetze der Arithmetik de 1893


„ Die Grundgesetze der Arithmetik“ consiste no texto que encarna
de um ponto de vista técnico e detalhado o projeto de fundamen-
tação da aritmética que Frege se comprometeu a levar a cabo, a
saber, demonstrar como sem quaisquer lacunas inferenciais e sem

14 O sinal “\” é usado por Frege em §11 nas suas Grundgesetze der Arithmetik como
uma função que é o substituto formal em sua notação para um artigo definido em lin-
guagem ordinária e não parece ser propriamente definido, mas são claramente determi-
nadas as situações nas quais ele pode ser usado e estas são a satisfação e a unicidade de
satisfação de um conceito P (Őx PxDzޯy Py -> y=x) . Por sua vez, ”˾” é introduzido por
Russell e Whitehead nos Principia Mathematica em *14, mas tampouco é definido, embo-
ra o sejam quaisquer proposições nas quais o sinal ocorra, similarmente a: (Q( xPx) )<->
126 (Őx PxDz(ޯy Py -> y=x)DzQx).
Anais do seminário dos quaisquer pressuposições não explicitas que as proposições da arit-
estudantes de pós-graduação mética são formal e perfeitamente deriváveis apenas de leis primi-
em filosofia da UFSCar
2014 tivas da lógica e definições. Não foi senão com uma boa justifica-
10a edição tiva que, à despeito do paradoxo que gerava, formulado um tanto
quanto sofridamente por Russell em 1902, o texto foi chamado por
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Dummett em Frege’s Philosophy of Mathematics (1991) a magnum
opus15 de Frege. Nos comprometeremos a mostrar mediante duas
vias como a semântica das Grundgesetze é imune ao problema
posteriormente levantado por Russell acima mencionado, a saber, a
violação do Princípio do Terceiro Excluído que provém da admis-
são de termos singulares (com sentido) e sem referência, ao seguir
em parte o tratamento dado às descrições definidas nas Grundlagen
e no artigo médio “Über Begriff und Gegenstand”, também de 1892.

4.1. Condições de uso do operador “\”


A introdução da legitmidade linguística de nomes próprios ordiná-
rios sem referência repousa sobre a admissão de que a condição de
associação de um sentido a um nome (simples) “a” é suficientemen-
te satisfeita por “ޯx Px <-> x=a” ou, no caso de descrições defi-
nidas (ou nomes complexos), de que a conversão de uma descrição
geral “P” em uma descrição definida “o P”, um termo singular de
referência indireta, é suficientemente satisfeita pelo uso singular
vinculado à descrição ou da pretensão de singularidade por parte
do falante, independentemente da verdade da proposição “፲x(PxᏉ
ޯx(Py ->(x=y)))”, ou seja, da instanciação do conceito e da sua
cláusula de singularização. Essa admissão vai contra a corrente dos
requerimentos que Frege estipulava para o uso do artigo definido
conectado a um conceito para formar uma expressão saturada que
está por um objeto, uma vez que um conceito ordinariamente de-
veria ser antecedido de um artigo indefinido. Como podemos ver
nestas duas passagens:
Inteiramente diferente disso é a definição de um objeto a partir
de um conceito, sob o qual o mesmo cai. A expressão “a maior
fração própria”, por exemplo, não tem conteúdo, uma vez que
o artigo definido requer [erhebt] que se refira [hinzuweisen] a
um objeto determinado. [...] No entanto, quando se quer me-
diante esse conceito um objeto determinado, que cai sob ele,
é antes necessário mostrar duas coisas: 1. Que um objeto caia
sob esse conceito. 2. Que apenas um único objeto caia sob ele.
Agora uma vez que já a primeira dessas sentenças é falsa, en-
tão a expressão “a maior fração própria” é sem sentido [sinn-
los]. (Grundlagen der Arithmetik, §74, nota, tradução nossa).
‘O número 4 não é nada outro que o resultado da adição de 3 e
1’ o artigo definido antes de ‘resultado’ só é aqui logicamente
justificado, caso seja admitido: 1. Que haja um tal resultado.
2. Que não haja mais do que um. Só então essa conexão de
palavras [Worterverbindung] designa um objeto e deve ser
tomada [aufzufassen] como um nome próprio. (Über Begriff
und Gegenstand, p. 204, tradução nossa).

Similarmente, Frege, na notação das Grundgesetze, mais precisa-


mente em §11, introduz o seu correspondente formal para o artigo
definido. Esse operador, embora não propriamente definido, têm
suas condições de uso perfeitamente estipuladas. A barra diagonal

127 15 1991, p. 1.
Anais do seminário dos (“\”) se aplica à variável de uma função conceitual P(x) para con-
estudantes de pós-graduação verter a expressão insaturada em questão em um termo singular
em filosofia da UFSCar
2014 de referência indireta “\x. Px”, mas esta só é uma expressão bem-
10a edição -formada segundo as regras de formação da linguagem em ques-
tão uma vez satisfeita a condição de que o curso-de–valores ou
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 a extensão do conceito ser unitária, ou seja, que só haja um ele-
mento pertencente à mesma.Portanto, um sinal só seria um termo
singular legítimo se sua aribuição de denotação for intermediada
por uma descrição conceitual que é satisfeita com unicidade ou,
traduzindo para o vocabulário introduzido em “Uber Sinn und Be-
deutung”, um sinal só é um nome próprio se ele tiver o sentido de
um nome próprio e, tendo esse sentido, ele há de ter referência.

4.2. Definição de “Função” e a Teoria da Definição de Conceitos no


Volume II das Grundgesetze
Em §8, Frege esclarece uma nova nota característica para o que ele
chama “função”. Não mais apenas expressões que envolvem pelo
menos uma expressão que simplesmente indique indefinidamente
(unbestimmt andeutet) argumentos16, viz., uma variável, a qual ex-
plicita que a função é incompleta (unvollständig), insaturada (un-
gesättigt) ou uma expressão que demanda complementação (ergän-
zungsbedürftig) para que constitua alguma expressão bem-formada.
Para que se atribuia a alguma expressão o estatuto de uma função
requere-se imprescindivelmente também que a mesma tenha uma
imagem ou um valor determinado para qualquer argumento (sendo
esse argumento um nome que denote um objeto).
A partir de uma particularização dessa exposição geral do conceito
de função, segue-se a doutrina da definição conceitual em §56-67
do segundo volume das Grundgesetze, uma vez que conceitos não
são senão funções cujas imagens são valores-de-verdades, doutri-
na segundo a qual “não deve haver nenhum objeto em relação ao
qual a definição deixa em dúvida se o mesmo cai sob o conceito”17.
Dessa maneira, dado um conceito monádico ou poliádico, um
valor-de-verdade deve estar determinado para qualquer objeto que
saturar sua ou suas variáveis. Portanto, uma vez que não temos,
conforme foi acima mostrado termos singulares em referência e
todo termo geral se saturado com qualquer termo singular forma
uma proposição com um valor-de-verdade determinado, não pare-
cem haver meios de violação do Princípio do Terceiro Excluído.

4.3. Definição de “Pensamento”


Ademais, para mostrar que a semântica da linguagem das Grund-
gesetze de Frege, além de inteiramente imune às críticas de Rus-
sell é também inteiramente destituída de elementos psicológicos
e mentalistas sugerimos a maneira como é definida a noção de
pensamento. Como vimos anteriormente, no artigo “Über Sinn und
Bedeutung”, Frege outorgou ao pensamento o estatuto de sentido
expresso por uma sentença completa ou modo de apresentação ao
nome do seu valor-de-verdade. Todavia, em §32, Frege comple-

16 FREGE, Funktion und Begriff, pp. 5-6.


128 17 FREGE, Grundgesetze der Arithmetik, Vol. II, §56.
Anais do seminário dos menta a essa definição de pensamento, ao declarar que o mesmo
estudantes de pós-graduação não é senão as condições pelas quais a sentença em questão denota
em filosofia da UFSCar
2014 o verdadeiro.
10a edição “O sentido desse nome – o pensamento – é o pensamento de que
essas condições são satisfeitas”. Dessa maneira, o sentido de uma
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 sentença não passa senão a ser uma descrição completa das si-
tuações que caso sejam o caso tornam a mesma verdadeira ou
fazem com que a mesma denote o Verdadeiro. É custoso não notar
como essa definição de pensamento retoma a noção de conteúdo
conceitual. Se a abordagem do sentido de uma sentença no artigo
de 1892 oferecia um apelo ao entendimento de um sujeito, como
interpreta Dummett, o qual oferece resistência em levar a sério a
noção de conteúdo conceitual na Begriffsschrift sugerindo uma
estranheza em “creditá-lo com uma teoria rival”18, a abordagem
oferecida nas Grundgesetze parece completamente destituída das
mesmas pressuposições.

5. Conclusão: O que resta do artigo de 1892?


À parte da incoerência entre a definição canônica de sentido e a
tese de que é possível haver expressões com sentido e sem refe-
rência, a abordagem do artigo de 1892 parece introduzir um novo
interessante insight no estatuto da linguagem. A admissão da pos-
sibilidade de expressões com sentido e sem referência faz patente
que o estatuto singular atribuído a um termo depende inteiramente
dos falantes e não de como está o mundo que torna verdadeira ou
falsa certas condições de satisfação de um determinado conceito:
uma termo é singular simplesmente se ele desempenhar o papel
de um nome próprio (steht für einen Eigenname19) ou se o usar-
mos como se ele fosse singular (em algumas línguas naturais, por
exemplo, se conectarmos a uma descrição P um artigo definido)
independentemente de a descrição associada a ele ser satisfeita com
unicidade ou mesmos de sabermos disso. Embora interessante, con-
forme defendemos, esse insight teve de ser abandonado em prol do
projeto logicista de Frege de fundamentação da aritmética, o qual,
em uma estratégia radical de erradicação do psicologismo, lançou
mão da tese da auto-suficiência da linguagem.

18 DUMMETT, 1981, pp. 298 - 301.


129 19 FREGE, Über Sinn und Bedeutung, p.25.
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