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Resumo
Elliot Santovich Scaramal No artigo médio “Über Sinn und Bedeutung” (1892), Frege ofe-
Mestrando pela UFG rece uma nova proposta de resolução do problema da diferença
Palavras-chave de valor cognitivo entre sentenças das respectivas formas “a=a”
Sentido sem referência; Frege; e “a=b”, que repousa sobre a introdução, por parte do mesmo, de
Operador “/”; Sentenças Fic- uma nova dimensão semântica, distinta dos meros sinais linguís-
cionais. Princípio do Terceiro
Excluído. ticos e daquilo pelo que eles estão. Essa introdução se manifesta
na assunção fregeana de que a atribuição de um nome próprio a
um objeto é mediada por uma descrição associada ao mesmo ou de
que nomes próprios ordinários são termos singulares de referência
indireta. Ademais, no mesmo artigo, Frege amplia a sua clivagem
do conteúdo semântico de nomes próprios também para expressões
insaturadas e sentenças. Nesse mesmo artigo, Frege estipula que
um sentido não assegura uma referência e que, portanto, um nome
próprio, embora tenha um sentido associado a ele, pode não referir.
Ademais, ao admitir que o sentido e a referência de uma sentença
são formados composicionalmente, tão cedo algum constituinte
do sentido da sentença não refira, a mesma não possui valor-de-
-verdade. Em “On Denoting” (1905), Russell critica os resultados da
abordagem do artigo supracitado, acusando-o de violar o Princípio
do Terceiro Excluído, ao admitir que hajam sentenças, bem-for-
madas, com sentido, porém, sem valor-de-verdade. Por exemplo,
se, em uma sentença singular, o nome próprio que seria o sujeito
da mesma, não refere. Russell sugere, como alternativa, sua Teo-
ria das Descrições. Na presente comunicação, tentaremos mostrar
que, malgrado o artigo de 1892 deixar Frege sujeito às críticas de
Russell, as definições do operador “\” (§11), de pensamento (como
a expressão das condições nas quais uma sentença denota o Verda-
deiro, §32) e uma observação acerca da noção de função (§8) nas
“Grundgesetze der Arithmetik” (1893), texto que encarnaria tecni-
camente o projeto logicista de Frege, ao barrarem tanto formação
de nomes próprios sem que a descrição associada a eles seja satis-
feita com unicidade quanto a formação de sentidos distintos para
sentenças com as mesmas condições de verdade, preservam o Prin-
cípio do Terceiro Excluído assim como escapam à introdução de
quaisquer elementos psicológicos ou mentalistas em sua semântica.
2 “O que nos faz tão inclinados a aceitar tais visões errôneas é que definimos a tarefa da
lógica como a investigação acerca das leis do pensamento, ao passo que entendemos por
essa expressão algo no mesmo nível que as leis da natureza”. (FREGE, Logik, 1979, p. 18,
tradução nossa)
3 Prefácio, Begriffsschrift.
4 “Se, em trilhando esse caminho [de encontrar a prova da proposição e segui-la de vol-
ta às verdades primitivas (Urwahrheiten)], nele forem pressupostos apenas as leis lógicas
(die logische Gesetze) e definições, então tem-se uma verdade analítica.” (FREGE, Gl., §3,
tradução nossa).
5 A estratégia fregiana para efetivar o que é chamado processo de análise (uma decom-
posição) do pensamento, provém da matemática e, mais precisamente, da álgebra: a
noção de função. Frege em Função e Conceito (1891) parecia ver seu processo de análise
como uma continuação radical de um curso de ampliação da noção de função. Curso
pelo qual não apenas o domínio de substituição das variáveis aumentaria (“império
romano”, “hidrogênio” e “César” e nomes em geral passariam a ser expressões que satu-
rariam funções), como aquilo que designamos por função também (como funções ordiná-
rias nominais tais quais “a capital de x” e até predicados como “x é mais leve que CO2” e
“x conquistou a Gália”).
122 6 FREGE, 1967, p. 12.
Anais do seminário dos sentido de uma sentença sejam suas condições de verdade (o que
estudantes de pós-graduação também será posteriormente elucidado nessa comunicação)7.
em filosofia da UFSCar
2014 Em segundo lugar, a expressão do conteúdo de sentenças ordinárias
10a edição na Begriffsschrift leva em consideração tudo e estritamente aquilo
com o que o falante que enuncia um token da sentença, ao enunciá-
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 -lo, se compromete. Ou seja, todo e apenas o conteúdo apofântico
que o falante pressupõe8 e que pode ser traçado como uma conse-
quência possível semântica daquilo com o que ele se comprome-
te, a esse conteúdo restrito, Frege denomina conteúdo conceitual
(begrifflicher Inhalt). Como nota Kremer (2010), essa restrição se
dá em um contexto de prova da validade de proposições porque o
conteúdo conceitual explicita “somente aquilo que é relevante para
a inferência”9, i.e., somente aquilo que é necessário para inferirmos
ou tomarmos como verdadeira a proposição em questão.
Dessa maneira, Frege parece ter sucesso em construir uma semân-
tica, ao menos no que toca à proposições tomadas como um todo
independentemente da análise de seus constituintes internos com-
pletamente anti-mentalista, ou seja, que não faz apelo a qualquer
elemento mental para a interpretação de seus sinais e sequer pres-
supõe a existência de qualquer sujeito ou estrutura mental, aspecto
que acompanha a recusa enérgica de Frege ao psicologismo. O
sentido de uma proposição, ao menos no que toca ao que pode ser
expresso na linguagem formal da Begriffsschrift é constituído ex-
clusivamente pela explicitação de suas pressuposições, as quais são
tudo aquilo que pode ser traçado como uma consequência possível
semântica do comprometimento com a verdade da sentença corres-
pondente à proposição em questão.
7 Perry, 1997, p. 488: “Para manter a identificação entre pensamento e sentido intacta,
Frege deve nos prover de um sentido completante [completing sense], mas então sua
interpretação acerca de demonstrativos se torna implausível”.
8 FREGE, 1967, p. 5: “Seu primeiro propósito [da Begriffsscrhift], portanto, é o de [...]
apontar toda pressuposição que tente se infiltrar sem ser notada”.
123 9 KREMER, 2010, p. 221.
Anais do seminário dos fregeana de que a atribuição de um nome próprio a um objeto é
estudantes de pós-graduação intermediada por uma descrição geral associada ao mesmo ou, o
em filosofia da UFSCar
2014 que o mesmo, de que nomes próprios ordinários são termos singu-
10a edição lares ou designadores de referência indireta, posição notoriamente
denominada de Descritivismo.
ISSN (Digital): 2358-7334
ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Esse movimento, tomado por Frege para resolver o que já foi desig-
nado pelos nomes de “paradoxos da identidade” por Burge (1977) e
Mendelsohn (2005) ou “Frege’s Puzzle” por Salmon (1986), foi cha-
mado por Michael Beaney (1996) de splitting of content, uma cliva-
gem ou bipartição do conteúdo semântico. No entanto, nessa cliva-
gem, há uma manifesta prioridade lógica de um dos dois elementos
constituintes do conteúdo semântico de uma expressão linguística
(até então nomes próprios ordinários ou termos singulares): os
nomes próprios lidam primeiramente com descrições conceituais
e, portanto, com predicados, expressões insaturadas (expressões
funcionais) de primeira-ordem cuja imagem são algum valor-de-
-verdade ( o que Frege chama seu sentido, Sinn), e só então, uma
vez que essa descrição satisfaz uma determinada propriedade de
segunda ordem (a saber, satisfação com unicidade), o nome próprio
em questão está pelo objeto que satisfaz tal descrição (o que Frege
chama sua referência, Bedeutung).
2.2. Sentenças
Entretanto, no artigo de 1892, Frege se compromete com a expan-
são da sua clivagem do conteúdo semântico de sinais para outras
expressões da linguagem, a saber, tanto expressões insaturadas, ex-
pressões funcionais ordinárias e predicados (das quais não nos ocu-
paremos aqui) quanto outras expressões saturadas, i.e. sentenças.
Frege admite de antemão que uma sentença lida com um conteúdo
semântico que é chamado o pensamento (Gedanke), mas à respeito
desse resta ainda saber a qual dos dois níveis semânticos resultan-
tes da clivagem o mesmo pertence. Para responder essa questão,
Frege parece lançar mão de dois argumentos para defender uma
de suas teses mais exóticas e impalatáveis, a saber: a tese de que
ao passo que o pensamento é o sentido expresso por uma sentença,
sua referência é seu valor-de-verdade e que sentenças são nomes
que estão por objetos, seus valores-de-verdade.
Para decidir a questão levantada, Frege leva a cabo seu primei-
ro argumento através das seguintes premissas, a saber, de que (i)
conforme dita sua análise funcional da linguagem, uma sentença
é uma expressão composta pela articução entre um sujeito e um
predicado lógico e (ii) o que Mendelsohn chama o Princípio de
Composicionalidade aplicado paralelamente ao sentido e à referên-
cia de um sinal, ou seja, que ambos os níveis semânticos operam
composicionalmente10. Uma sentença, portanto, só tem o seu senti-
do determinado pelos sentidos dos seus constituintes intra-propo-
sicionais, assim como a existência de sua referência demanda que
os mesmos constituintes também tenham referência11. Frege então
acrescenta que aparentemente aquilo que uma sentença tem se e
14 O sinal “\” é usado por Frege em §11 nas suas Grundgesetze der Arithmetik como
uma função que é o substituto formal em sua notação para um artigo definido em lin-
guagem ordinária e não parece ser propriamente definido, mas são claramente determi-
nadas as situações nas quais ele pode ser usado e estas são a satisfação e a unicidade de
satisfação de um conceito P (Őx PxDzޯy Py -> y=x) . Por sua vez, ”˾” é introduzido por
Russell e Whitehead nos Principia Mathematica em *14, mas tampouco é definido, embo-
ra o sejam quaisquer proposições nas quais o sinal ocorra, similarmente a: (Q( xPx) )<->
126 (Őx PxDz(ޯy Py -> y=x)DzQx).
Anais do seminário dos quaisquer pressuposições não explicitas que as proposições da arit-
estudantes de pós-graduação mética são formal e perfeitamente deriváveis apenas de leis primi-
em filosofia da UFSCar
2014 tivas da lógica e definições. Não foi senão com uma boa justifica-
10a edição tiva que, à despeito do paradoxo que gerava, formulado um tanto
quanto sofridamente por Russell em 1902, o texto foi chamado por
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Dummett em Frege’s Philosophy of Mathematics (1991) a magnum
opus15 de Frege. Nos comprometeremos a mostrar mediante duas
vias como a semântica das Grundgesetze é imune ao problema
posteriormente levantado por Russell acima mencionado, a saber, a
violação do Princípio do Terceiro Excluído que provém da admis-
são de termos singulares (com sentido) e sem referência, ao seguir
em parte o tratamento dado às descrições definidas nas Grundlagen
e no artigo médio “Über Begriff und Gegenstand”, também de 1892.
127 15 1991, p. 1.
Anais do seminário dos (“\”) se aplica à variável de uma função conceitual P(x) para con-
estudantes de pós-graduação verter a expressão insaturada em questão em um termo singular
em filosofia da UFSCar
2014 de referência indireta “\x. Px”, mas esta só é uma expressão bem-
10a edição -formada segundo as regras de formação da linguagem em ques-
tão uma vez satisfeita a condição de que o curso-de–valores ou
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417 a extensão do conceito ser unitária, ou seja, que só haja um ele-
mento pertencente à mesma.Portanto, um sinal só seria um termo
singular legítimo se sua aribuição de denotação for intermediada
por uma descrição conceitual que é satisfeita com unicidade ou,
traduzindo para o vocabulário introduzido em “Uber Sinn und Be-
deutung”, um sinal só é um nome próprio se ele tiver o sentido de
um nome próprio e, tendo esse sentido, ele há de ter referência.
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