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Gestão de águas em bacias hidrográficas transfronteiriças: o caso da bacia do Prata 1

por

B.P.F. Braga 2

Existem no mundo 261 bacias hidrográficas cujos rios fluem através de dois ou mais países.
São as chamadas bacias hidrográficas transfronteiriças. Essas bacias cobrem 45,3% da
superfície do globo (Wolf et al., 1999). Nelas os limites físico-geográficos não coincidem com
os limites políticos dos países envolvidos. Em alguns casos, como do rio Nilo, a bacia
hidrográfica engloba nada menos do que 10 países. A racionalidade sugere o uso dos limites
físicos das bacias hidrográficas para promover o planejamento e a gestão de seus recursos
hídricos. No âmbito brasileiro é o que determina a lei federal nº 9433/97 também conhecida
por Lei das Águas. Entretanto, como os países detêm soberania sobre seus territórios e as
ações sobre o território têm impacto direto nos córregos, rios e lagos da bacia hidrográfica,
impõe-se o grande desafio da cooperação multilateral para alcançar a gestão adequada da
água neste âmbito.

Em algumas regiões do mundo onde a água é escassa esta cooperação multilateral é uma
necessidade vital. Entretanto, a cooperação multilateral não pode tomar a feição de
tradicionais acordos e tratados assinados em reuniões internacionais que em geral não têm
conseqüência prática. Como exemplo de um desses acordos, pode-se citar a Convenção das
Nações Unidas sobre a Lei de usos não-navegáveis de rios internacionais que levou 27 anos
para sua aprovação pela Assembléia Geral em 1997. Hoje, passados 12 anos somente 16
países ratificaram a Convenção que não foi implementada. A prática indica que os países
adotam uma postura de cooperação não em função de uma ética de cooperação, mas e
principalmente, em função de benefícios advindos da cooperação. Talvez, por isso persistam
ainda impasses em bacias de rios transfronteiriços no oriente - médio onde se costuma dizer
que as guerras do futuro não serão pelo petróleo e sim pela água. Ao contrário, como será
mostrado mais adiante, a história de sucesso em cooperação na bacia do Prata baseia-se em
desenvolvimento de infra-estrutura hidráulica compartilhada entre os países da bacia.

A bacia do Prata desenvolve-se por uma extensão de 3,1 milhões de km2 sendo compartilhada
por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai (Figura 1). Com uma população aproximada
de 100 milhões de habitantes as atividades econômicas nesta bacia são responsáveis por 70%
do PIB destes 5 países. A água é um elemento crucial neste resultado uma vez que nada menos
que 75 hidroelétricas de grande porte encontram-se localizadas em rios da bacia. Destaca-se a
maior hidroelétrica do mundo em geração de energia, Itaipu no rio Paraná, com potencia
instalada de 12.600 MW chega a produzir 92 TWh de energia por ano (95% da demanda por
energia elétrica no Paraguai e 24% no Brasil).

1
Artigo apresentado à Revista América Latina 2009 – Memorial da América Latina
2
Professor Titular da Escola Politécnica da USP, Vice-Presidente do World Water Council e Diretor da
Agencia Nacional de Águas - ANA
Além do uso hidrelétrico, outros importantes usos da água estão presentes nesta bacia. Desde
longa data a navegação é um dos usos mais tradicionais com seus 3.442 km de extensão. Esta
hidrovia está associada à própria história dos países que dela se servem. A decisão dos

Figura 1 – A Bacia do Rio da Prata e o Aqüífero Guarani

governos dos cinco países ribeirinhos de coordenar ações com vistas a aprimorar a eficiência, a
segurança e a confiabilidade da navegação nos rios Paraguai e Paraná data de 1987, quando o
desenvolvimento do sistema fluvial formado pelos rios Paraguai e Paraná foi declarado de
interesse prioritário pelos cinco países signatários do Tratado da Bacia do Prata, em vigor
desde agosto de 1970, que estabelece o enquadramento político-diplomático para a
integração física da Bacia do Prata. A irrigação é utilizada em todos os 5 países que
compartilham a bacia sendo muito importante na sub-bacia do Uruguai onde a irrigação de
arroz no Rio Grande do Sul ocupa posição privilegiada com mais de 1 milhão de ha irrigados no
sistema de inundação. Na Argentina cerca de 90% da pesca continental se desenvolve na bacia
utilizando-se de 40 portos. Da mesma forma uma importante atividade econômica é o turismo
fluvial e ambiental. No Brasil a pesca continental representou cerca de 24,8 % da produção
pesqueira brasileira, com parte significativa dentro da bacia do rio da Prata.

Subjacente a esta bacia hidrográfica encontra-se o aqüífero Guarani com seus quase 1,1
milhões de km2 esse reservatório de proporções gigantescas de água subterrânea é formado
por derrames de basalto ocorridos nos Períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo Inferior (entre
200 e 132 milhões de anos). É constituído pelos sedimentos arenosos da Formação Pirambóia
na Base (Formação Buena Vista na Argentina e Uruguai) e arenitos Botucatu no topo
(Missiones no Paraguai, Tacuarembó no Uruguai e na Argentina). Compartilhado por Brasil
(68%), Argentina (21%), Paraguai (8%) e Uruguai (3%), este aqüífero é confinado em quase
toda sua extensão e representa uma reserva estratégica de água de boa qualidade para
abastecimento doméstico e industrial. Considerando-se uma espessura média aqüífera de 250
metros e porosidade efetiva de 15%, estima-se que as reservas permanentes do aqüífero (água
acumulada ao longo do tempo) sejam da ordem de 45.000 Km³ (DAEE, 2009).

Entretanto, cuidados importantes devem exercidos em função da fragilidade de suas áreas de


recarga. Em função da complexidade de reversão de processos de poluição em aqüíferos desta
natureza, o uso do solo na região de recarga (principalmente no Estado de São Paulo, Mato
Grosso do Sul e Paraguai) deve ser preservado da utilização de agrotóxicos e excesso de
fertilizantes. A disposição de resíduos sólidos domésticos e industriais nessas regiões deve
seguir a melhor técnica de impermeabilização para evitar que o chorume (líquido gerado no
aterro sanitário) percole e atinja desta maneira o aqüífero.

A gestão de recursos hídricos no âmbito desta grande bacia hidrográfica se dá internamente


aos países que dela fazem parte. O Brasil desde 1997 dispõe de uma legislação de recursos
hídricos muito moderna que impõe como unidade de gestão a bacia hidrográfica. Entretanto, a
nossa constituição federal inclui entre os bens dos estados os rios que nele fluem e atribui à
União aqueles cursos d’água que servem de fronteira entre estados ou que fluem através de
dois ou mais estados. A natureza federativa de nosso país garante aos estados autonomia para
gerir seus rios e lagos. Assim, apesar de não haver nenhum acordo específico para a gestão de
bacias hidrográficas entre os países, o Brasil, em função de sua legislação dá um primeiro
passo na direção de um potencial acordo transfronteiriço de gestão desta bacia do Prata.

Entretanto apesar desta evolução no sistema de gestão brasileiro, nele ainda persiste a
dissociação da gestão de água superficial da água subterrânea. Apesar do ciclo hidrológico não
reconhecer diferenças entre água superficial e subterrânea (é a mesma água fluindo com
velocidades diferentes), não se tem noticia de um sistema de gestão que incorpore estes dois
domínios da água. No Brasil, por exemplo, não existe água subterrânea de domínio da União.
Mesmo um aqüífero da importância do Guarani, que se estende por 7 estados da federação,
tem sua administração autônoma em cada parcela estadual.

Mesmo não havendo acordo específico para gestão de águas, diversos acordos multilaterais
relacionados com o uso dos rios desta bacia já foram assinados desde o século 19. Destaca-se
a Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre Brasil e Argentina de 1856; o acordo sobre
e o Rio Jaguarão de 1926 entre Brasil e Uruguai,o acordo tripartite de 1979 entre Brasil,
Argentina e Paraguai sobre a usina hidrelétrica de Itaipu e a utilização das águas do Rio Paraná.
Este último foi necessário em função de um acordo anterior entre Brasil e Paraguai em 1973
para construção da hidrelétrica de Itaipu. As oportunidades de diálogo intenso à partir destes
acordos foi que levou à uma sólida aliança política e à iniciativa de integração que levaram ao
processo de criação do MERCOSUL.

Nota-se assim que água desempenha um papel importantíssimo nesta região da América do
Sul. De um lado possibilitando o desenvolvimento econômico e social dos países através da
infra-estrutura hidráulica para energia, produção de alimentos e navegação. De outro, os
acordos para o desenvolvimento destes recursos hídricos tornou possível uma aproximação
maior que desaguou na aproximação política e na união maior de seus povos.

Referências

Wolf, A.; Natharius, J.; Danielson, J.; Ward, B and Pender, J. International River Basins of the
World, International Journal of Water Resources Development, Vol. 15 No. 4, Dez
1999.

DAEE 2009 www.daeeararaquara.com.br/guarani.htm

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