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ing O ave a Fenamens k ona DAATIEUES, Anelaes Capitulo 1 UM POSITIVISMO SUPERIOR © pensamento de Edmund Husserl (1859-1938) sem diivida no usurpou a reputagio de dificuldade criada sobre ele. Fildsofo escrupuloso, por demais escrupuloso, Husserl sem cessar retornou 6s resultados de um labor infatigével. Escrevendo muito, publi- cando pouco, a tarefa imensa que se propusera no Ihe parecia, jamais estar sendo esbocada ¢, portanto, sempre a ser retomada fem sua inteireza, como se a filosofia jamais pudesse sair de seu comeco. “Se a idade de Matusalém me fosse concebida, quase que ousaria entrever a possibilidade de vir ainda a ser fil6sofo!”, escteve sobre si préprio aos 70 anos. Talvez a filosofia no seja, com efeito, senio a busca de seu fundamento, do “terreno absolu- to” sobre 0 qual ela poderia enfim “seriamente”” comecar. 1Nao seguiremos em detalhe o andamento sinuoso que conduz “Husserl em direcdo a esse comeco. Esbogaremos apenas as gran- des etapas através das quais veremos nascer 0 que se tomaré, além de Husserl e sob formas imprevistas, 0 movimento fenome- nolégico. HUSSERL E A NECESSIDADE DE UM RECOMEGO Se desde as suas origens a filosofia ainda no comecou se- riamente, no pode ser por falta de tentativas, pois ela j& tem, a0 1. *Postace mes ide directrices (“Posicio te minhas iin diretizes") era Rene iaphysigue et de morale, 1851, p-397. s (© QUE § A FENOMENOLOGIA? nascer Husserl, uma longa tradigéo. Mas é verdade que ela sem cessar se recolocou em questo © que hé uma secreta esperanca do fil6sofo, 20 recapitular a tradicéo que o engendrou, de ser 0 filésofo definitivo ou, se é possivel dizé-lo, a0 mesmo tempo o primeiro © 0 ultimo. Sem divida, ele no comegaré no sentido préprio do termo, mas ele tem 0 recurso de recomear a tarefa que seus predecessores haviam empreendido mal. Trabalho de Stsfo? Husserl atravessaré efetivamente uma crise de ceticismo pouco antes de 1907, época das Cinco ligées sobre a fenomenologia, mas cle a superaré. Mesmo se a conjuntura € mé no mundo da cultura € precisamente porque o é, & urgente fundar a “filosofia verdadeira”’ (O sentimento de uma crise Pode-se dizer que toda a vida filos6fica de Husserl, da Filo- sofia da Aritmética (1891) &s conferencias sobre a Crise das ciéncias européias (1935), dominada pelo sentimento de uma crise da cultura. #, portanto, possfvel afirmar com Merleau-Ponty que a fenomenologia nasceu de uma crise e sem diivida também que essa crise € ainda a nossa. ““A fenomenologia se apresentou desde 0 seu infcio como uma tentativa para resolver um problema ‘que nfo € 0 de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo 0 mundo, ele se coloca ainda hoje. © esforgo filosdfico de Husserl €, com efeito, destinado em seu espftito a resolver simultanes- mente uma crise da filosofia, uma crise das ciéncias do homem e ‘uma crise das ciéncias pura e simplesmente, da qual ainda nio safmos?”. — (Os dez sitimos anos do século XIX, perfodo dos primeiros trabalhos de Husserl, se caracterizam na Alemanha pela derrocada dos grandes sistemas filos6ficos tradicionais. Hegel, que ilumina- vva todo o pensamento alemdo quarenta ands antes, voltou & som tbra © a influéncia de Schopenhauer entra em declinio. Sem dvi- ‘da, pensadores poderosos como Marx, Freud ¢ Nietzsche esto a patel Maton ce drm phn, Com pl UM POSITIVISMO SUPERIOR 5 produzir, mas nao interessam ainda senio cfrculos restritos ¢ 86 ‘espontarso verdadeiramente no século seguinte. Fa Ciéncia que ‘doravante preenche 0 espago deix@il0 vazio pela flosofia especu- lativa e, sobre o seu fundamento, © positivismo, para o qual 0 co- nhecimento objetivo parece estar definitivamente 20 abrigo das consirucoes subjetivas da metafisic®- ‘No domfnio das ciéncias, duas dentre elas so particularmente notiveis: gs mateméticas ea psicolosis. as, afastando- te cada ver mais dos dados da infuicéo, procuram construc siste- ‘mas formais que permitiriam unificar numa iversas disci: pilinas, realizando assim6 velho sono dos Pitagéricos. Essas in- Yestigagdes, que conduzirio G. Cantor constimicio da teoria dos conjuntos, s20 conhecidas do jovem Husserl, que se formou ‘jas matemticas sob a direcfo de Weierstrass e prepara uma tese sobre 0 célculo das variagdes. Quanto a psicologia, ela busca, def scordo com a tendéncia positivist® €m voga, constituir-se como] ciéncia exata conforme o modelo 4as ciéncias da natureza, elimi- nando assim 0s aspectos subjetiV0s €, portanto, aparentemente io cientificos, que o uso da introspeccio comporta, Mas, a partir de 1880, a bela Seguranga do pensamento posi- tivista comeca a ser abalada, pois Cada vez mais os fundamentos e o alcance da ciéncia tomam-se objeto de interrogacso: terio.as ue ela descobre uma validez Universal? Qual € 0 sentido de sua_objetividade? Nao serao elas 5 be den penderio do psiquismo, cujas leis 8 psicologia por sua vez desco- bre? A essas questées, 0s tiltimos ramos do pensamento kantiano «,; ‘ou neokantismos, tentam responder concebendo um “sujeito pus" ro” que asseguraria a objetividade ea coeréneia dos diferentes Tomitios do conhecimento objev0- Mas outras questoes come- “Gai também a se colocar: O que dizer do sujeito concreto, em sua Vida psfquica imediata ¢ em set engajimento historico, que o ‘isamento objetivo nfo conseg¥® explicar? A esse respeito, 0 sujeito puro dos neokantianos parece bem absirato © “‘exangue”, segundo o termo de Dilthey. Bste tiltimo, com efeito, pensa que & preciso voltar a0 “sentimento da Vida”, mais fundamental que os dados da cincia; tendéncia que Compartilham W. James nos Es- tados Unidos e Bergson na Frans@, que analisam a “‘corrente de cconsciéncia” ou 0s “dads imedistos da consciéncia”. a 0 © QUE & A FENOMENOLUGIA? Husserl, que jamais sacrificou as mateméticas suas preocu- pagGes filoséficas, abandona em 1884 0 posto de assistente de Weiertrass que acabava de obter e decide consagrar-se & solui0 desses. problemas. Nessa época, entra em contato com Franz {Brentano que, em sua Psicologia do ponto de vista emplrico, [pope um novo método de conhecimento do psiquismo. A gran- de contiibuigo de Brentano consisie de infcio em distinguir fun- damentalmente os fendmenos psfquicos, que comportam uma in ‘encionalidade, a visada de umn objeto, dos fen6menos fisicos, em seguida, em afirmar que esses fendmenos podem ser percebidos € que © modo de percepedo original que deles temos constitu o seu conhecimento fundamental. De onde a f6rmula: “Ninguém pode. verdadeiramente duvidar que o estado ps{quico que em si mesmo percebe nio existe © nio existe tal como o percebe”, fémmula que * Husserl nao esquecera. is af, com efeito, uma posigdo estratégica fre, jé que a descrigéo do fentmeno tal como ele & obedece 8s exigéncias do positivismo reinante, que exclui todo coahecimento que nfo ve- tha da experiéncia e permite, por outro lado, aceder a0 concreto © a vida que a cigncia tinha tendéncia a esquecer. A exploragio do campo de consciéncia © dos modes de relacio a0 objeto, que a ‘escola de Brentano persegue com Stumpf ¢ von Meinong, delimi- ta 0 que se tomaré o campo de andlse da fenomenologia de Hus- serl, Mas essa escola fica na descriglo dos fenémenos pstquicos, € nfo respande as questées fundamertais que Husserl se coloca podersi um conceit Iégico ou matitico, como um mmero, se Teduzir & operagio mental que o constitu, por exemplo B nutne- testo? Es leno edu iso, alo sro esto da opera | ‘mental mais que uma simples descrigio do psiquismo? Um ultra- passamento da psicologia descrtiva de Brentano\e verifica ne- cessirio e é este ultrapassamento que Husserl realizaré sob 0 n0- me de fenomenologia. ‘Um duplo escotho: o empirismo ¢ a filosofia especulativa © contato com Brentano teri pelo menos despertado Husserl para as insuficiéncias das ciéncias humanas ou “‘ciéncias mo- UM POSITIVISMO SUPERIOR n ais”, tais como elas se desenvolvem sob scus olhos por volta dos anos 1900. © que-ele-censura a essas ciéncias © notadamente & (08 seus métodos das ciéncias da natureza Psicologia, 6 ter tomado, © aplicé-los sem discernir que seu objetivo € diferente. Essa crft- G38 se encontra em Dilthey, cujas [déias concernentes a uma psicologia descritiva ¢ analftica (1894) Husserl leu. Ao passo que ‘a natureza 56 6 acessfvel indiretamente, a partir dos fatos esparsos ccuja unidade ¢ coeréncia no sio jamais senio hipotéticas, a vida psiquica € a0 contrério um dado imediato que nio exige nenhuma reconstrugo, mas somente uma descri¢do. Donde a famosa dis- ‘inc proposta por Dilthey: “Nao existe um conjunto coerente da natureza nas cigncias fisicas e naturais senfo gracas aos racioctnios que completam os dados da experiéneia gracas a uma combinagio de hipsteses; nas ciéncias morais, a0 con- trério, 0 conjunto da vida psfquica constitui por toda Pere un dado pmo © fandecenin. Na elon ‘mos a natureca, compreendemos a vida pstquica”. Se nesse ponto a critica de Husser! encontra-se com a de Dil- they, no 6 que ele procure depreciar os resultados que puderam obter as cincias experimentais (e notadamente a psicologia expe- imental). Mas essas ciéncias no determinaram exatamente seu objeto ¢ niio sabem,-pois, a. que se roferem 65 Fesiltados obtidos. Pensamos aqui nas palavras de Binet que, & questo: “O que € a inteligencia?” respondia: “A inteligéncia 6 o que os meus testes medem”. Como admitir que se possa calcular sobre a sensacio, a percepglo, a meméria et, sem ter previamenteelucidado 0 que quer dizer sensacio, percepeio, meméria? Se a psicolos tempordnea quer sera ciéncia dos fenorsenos pafquicds,€ preciso ela possa descrever € ses fendmenos com um ri- sot conceptual. preciso qu cl adapte a si pti aravés de ‘um trabalho metédico, os conceitos rigorosos necessér 3, W, Dilthey, “Idéea” om Le monde de Tespri, tra, Remy, Pais, Avice. 1947, 149.150. 44, E-Hlused, La phdosophie conme science rigoureuse (A flosfa como cites derigor, tend. Q. Lane, Pats, P.O, 1985, p.77. { 2 (© QUE BA FENOMENOLOGIA? © que Husserl quer sobretudo rejeitar € o\naturalismo) ciéncias que, ndo tendo destacado a especificidade de se objeto € tratando-o como se se tratasse de um objeto fisico, confundem a descoberta das causas exteriores de um fendmeno coma naiireza. ‘BrOptia deste fendmeno. As conseqigncias de tal aitude slo gra- Ves: seré dito, por exemplo, que uma afirmagio, que cré ter razbes, € determinada na realidade por causas que 0 psicélogo ou © socidlogo podem explicar. Mas amplamente, que os principios ditetores do conhecimento nfo sio senfo a resultante de leis biol6gicas, psicoldgicas ou sociolégicas. Essa tendéncia, que Husserl combate sob 0 nome de psicologismo, tem por resultado, mminar a base dessas préprias ciéncias, j4 que relativizam seu pro: prio fundamento: que crédito, por exemplo, conceder 20 psic6l ‘go que pretende explicar pela psicologia os princfpios da légica,} ‘quando ele proprio se utiliza desses princfpios para trazer a expli-' cago deles? Husserd nfio tem dificuldade em mostrar que as ma- temdticas ou 2 l6gica, cujas leis tém uma exatidio absoluta e po- dem ser conhecidas a priori, isto é, sem recurso & experiencia, sfo imedutiveis as ciencia empfricas cujas leis sfo ainda impreci- ‘sas € no podem jamais ser definitivamente asseguradas por de- penderem elas de uma experiéncia sempre imperfeita, (© que constitui o interesse das ciéncias humanas ~a saber, 0 fato que estudam as atividades do homem e notadamente esta ati- vidade privilegiada que € 0 conhecimento — constitui também sua fraqueza quando essas atividades sio reduzidas a simples fen6- ‘menos naturais: neste caso elas aniquilam nfo somente seus pro- prios pressupostos, mas também os de toda outra forma de conhe~ \cimento, quer se trate da filosofia ou da ciéncia. | Isso nao significa, todavia, que se deva voltar as concepedes filos6ficas do pasado. Pois, tendo safdo jé inteiramente armadas ‘como Minerva da cabeca de seu criador, essas filosofias “prontas © acabadas” vio por seu turno reunir-se a “outras semelhantes Minervas no museu trangiilo da Hist6ria®”. Se, com efeito, a 16 gica e com ela a atividade de pensamento devem ser salvas do ce- ticismo ao qual as entrega a reducdo empirista, ndo € para Ihes permitir tecer ainda outros sistemas filosGficos que, 2 sua manei- hy p55 UM POSITIVISMO SUPERIOR 3 1a, fariam tanta violencia & realidade como pode Ihe fazer um mau uso das ciéncias empfticas. ‘© caminho de Husserl busca e que comandaré até em suas dil- timas obras a sua concepcio da fenomenologia € uma via média entre esses dois escolhos: como pensar segundo a sua natureza em cada uma de suas nuangas — e portanto, sem jamais ultra- passé-los — os dados da experigncia em sua totalidade? Todo 0 fenmeno € nada mais que 0 fenmeno, se poderia dizer. © postu- Jado que funda tal empresa € que o fendmeno esté penetrado.no. amento, de logos € que por sua vez o logos se expe € 96 s. 1no fénémeno. Apenas sob essa condigéo € possfvel uma fe- nomenologia. Mas se 0 fendmeno nilo € nada de construfdo, se € portanto acessfvel, a todos, 0 pensamento racional, 0 logos, deve sé-lo também 3 Husserl acaba entio por conceber uma filosofia nova que realizaria enfim 0 sonho de toda filosofia: tomar-se uma cigncia rigorosa. A realizagio de tal projeto supée que, em vez de se prender as tradigGes filosoficas divergentes que lhe transmitem indefinidamente seu desacordo, o pensamento filos6fico retore as suas origens dando-se como ponto de partida, no mais as opi niGes dos fildsofos, mas & pripria realidade: “Nao convém que-a| impalsio_filosGtica surja das filosofias, mas das.coisas © dos pro ‘blemas®”. Assim, a filosofia, nascendo sobre o solo de uma expe- ‘riéncia comum, poderiap¢ enfin comecar verdadeiramente como lum assunto que diz respeito a todos, em vez de ser, como 0 so ainda as “vis6es do mundo”, a expressio acabada, mas apenas singular e, portanto contestével, de uma individualidade genial. RECOMECO E “RETORNO AS COISAS MESMAS” Entre 0 discurso especulativo da Metafisica ¢ 0 raciocfnio das ciéncias positivas deve, pois, existir uma terceira via, aquela que antes de todo raciocfaio, 10s colocaria no mesmo plano da reali- dade ou, como diz Husserl, das “coisas mesmas”. Essa via jé foi téntada por Descartes que busca para sua filosofia um fundamento 6. Id p 124 1“ 0 QUE f A FENOMENOLOGIA? inabalvel, que €, como todos sabem, o “eu penso”, com o qual se dé inseparavelmente 0 “eu sou”. Fis af 0 que Husserl chama “uma intuicéo originéria”. Infelizmente Descartes procede de tal maneira que todas as outras intuigdes se dao a ele como duvido- sas e ele tem que recorrer a Deus para garantir sua verdade. Mas no serd isso entio chocar-se contra um dos escolhos a evitar, ‘ voltar & especulacio metafisica que cumpre definitivamente banit da filosofia? i De fato, 0 discurso filoséfico deve sempre permanecer em ‘contato com a intuico se no quiser se dissolver em especulagées varias. Esse retomo incessante & intuico originsria, “fonte de di- reito para o conhecimento”, Husserl 0 chama 0 prinefpio dos princtpios. “Significagées que nio fossem vivificadas sendo por intuig6es longingiias € imprecisas, inauténticas — se € que isso acontece através de intuigdes quaisquer — nao poderiam nos satis fazer. NOs queremos voltar ds coisas mesmas””. ‘Mas nem por isso quer isto dizer que seja preciso se limitar &s impressdes sensiveis, 0 que seria afundar-se num ceticismo do ti- po de Hume. Pois, se € verdade que os fendmenos se dio a por intermédio dos sentidos, eles se do sempre como dotados de_} lum sentido ou de uma “‘esséncia”. Fis por que, para além dos da>~ dos dos sentidos, a intuicéo seré uma intuigéo da esséncia ou do sentido. A intuigao das esséncias , como dissemos, um postulado da fenomenologia que (1 x fenémeno seja lastrado de pensamento, que seja logos 20 mesmo tempo que fendneno. Néo se pode pois conceber 0 fendmeno cl oa tmia Cortina airs da qual se ‘abrigaria s “coisas em ai”. Hegel je dizia que atrés i a ver’. Falar de uma viséo das esséncias nao significaré pois devotar-se a uma contemplagéo mistica que pemnitiria a alguns iniciados ver 0 que 0 comum dos mortais 80 17, Recherches lolgues (vestiges Iigcas. Tomo 2,1 parte, Trad. H. Elie. UF 1961, p-8 "A Ch Paenamdnolage de Fest. Trad Mippolyte, avis, Auber, 197, p. 140. UM POSITIVISMO SUPERIOR 1 ve, mas ao contrétio, essaltar que o sentido de wm fendmeno lhe, ee pode ser percebido, dé alguma maneira, por (an ‘Tradicionalmente, a esséncia responde & questo: 0 que é 0 que £? Esta questio pode ser colocada a propésito de qualquer fendmeno e, se néo a colocamos, é porque jé estamos assegurados de sua esséncia ou porque ao menos acreditamos estar. Néo exis- te, com efeito, nenhum fen6meno do qual possamos dizer que ele nio 6 nada, pois o que nfo € nada ndo €, Se todo fendmeno tem uma esséncia, o que se traduziré pela possiblidade de designé-lo, inomed-lo, isso significa que nfo se pode reduzi-lo A sua vnica dimensio de fato, ao simples fato que ele tenha se produzido. ‘Riravés de um fato é sempre visado um sentido. Husserl gosta de evocar a esse respeite o exemplo da “IX Sinfonia’. Esta pode se ‘taduzir pelas impressdes que experiment a0 escutar este ou aquele concerto, pela escritura desta ou daquela partitura, pela atividade do regente de orquestra ou dos miisicos, etc. Em cada caso poderei dizer que se trata da “IX Sinfonia” e, contudo, esta nfo se reduz a nenhum desses casos, se bem que ela possa a cada vez se dar neles inteiramente. A esséncia da “IX Sinfonia” per- sistiria mesmo se as partituras, orquestras € ouvintes viessem a esaparecer para sempre. Ela persistria, nfo como uma realidade, ‘como um fato, mas como ima pura passibilidade, Nao obstante, 6 essa pura possibilidade que me permite distingui-la de imediato de toda outra sinfonia, mesmo se 0 disco no qual eu a escuto esté riscado ou se a orquestra ruim, Da mesma maneira, um menino ‘rabalhando sem compasso diré que a forma vagamente oval que tragou em seu cademo € um cfroulo. Vemos em que a intuiglo da, een iting ces fo lao dosent} do ideal que atribuimos ao fato mateialmente peroebido © quell ~ | ite Tdenitfic-lo. Sea esséacia permite identificar um fendmeno, ¢ porque ela sempre idéntica asi. prépria, po importando as circunstancias ‘contingentes de sua mealizacio. Por numerosos que sejam os tem- os e 0s lugares em que se fala do trfingulo, por numerosas que sejam as inscrigdes de tringulos sobre os quadro-negros de todas a5 escolas do mundo} € sempre do mesmo tringulo que se. tata. Esta identidade da esséncia Consig® propria, portanto esta impos- 6 0 QUE # A FENOMENOLOGIA? sibilidade de ser outra coisa que o que 6, se traduz por seu carter necessidade que se opbe A “‘facticidade”, isto é, a0 cardter de ‘de sua manifestacio. Ademais, se cada esséncia € sinica em seu género, pode-se conceber uma infinidade de essén- cas novas das quais cada qual seré irredutfvel & outras. © que ‘nos conduz a perguntar: mas de que entio hi esséncias? ‘Sem divida, hé uma esséncia de cada objeto que percebemos: Arvore, mesa, casa, etc. ¢ das qualidades que atribuimos a estes, objetos: verde, rug0so, confortével, etc. Mas se a esséncia nfo é a coisa ou a qualidade, se ela € somente o ser da coisa ou da quali- dade, isto €, um_puro_possivel_para cuja definigio a existéncia ‘Ao entra em conta, poderd haver tantas esséncias quantas signifi- cagées nosso. espirito é capar-de produzir; isto 6, tantas quantos bjetos nossa percepcao, nossa meméria, nossa imaginacio, nosso pensamento podem se dar. Independentes da experiéncia sensivel, ‘muito embora se diiido através dela, as essncias constituem, ‘mo que a armadura inteligivel do ser, tendo sua estrutura e suas| ‘Tis ‘proprias. Flas so a racionalidade imanente do ser, 0 sentido a priori 00 qual deve entrar todo mundo real ou poss{vel ¢ fora do qual nada pode se produzir, jf que a idéia mesma de producio ou de acontecimento € uma esséncia ¢ cai, pois, nessa estrutura a priori do pensivel. Ser4, pois, uma primeira tarefa da fenomenologia elucidar es- se “puro rein das esséncias”, segundo os diversos dominios ou “egies” que elas permitem pensar independentemente da pr6- pria existéncia dessas regiGes: seja a regio “natureza”, compre- endendo os fenémenos reais ou possiveis de que traiam as cién- cias da natureza; a regido “esptrto”, compreendendo os fendme- hos que tratam as ciéncias humanas; a regiéo “consciéncia”, compreendendo todos os atos de consciéncia sem os quais, como teremos a dizer, nenhum acesso nos seria dado &s outras regies. Mas previamente —e € essa a tarefa A qual se dedica Husserl nas Investigacées ldgicas — seré eluci cia das formas pu- ras do pensamento, as categorias I6gicas ¢ gramaticais que nos permitem pensar um “objeto em geal” € que so, pois, a con- dicio de inteligibilidade das outras regises. Essas categorias for- mais podem, com efeito, ser elas também objeto de uma intuicdo {que Husserl chama “intuig&o categorial”. | UM POSITIVISMO SUPERIOR ” FE posstvel assim alcancar uma compreensio a priori do ser, portanto uma compreensio independente da experiéncia efetiva, sem por isso abandonar a intuiglo, 6 que a intuicdo das esséncias intuigdo de possibilidades puras. E a0 mesmo tempo possfvel ter tum conhecimento a priori dos diferentes dominios aos qusis se aplicam as ciéncias experimentais, portanto saber de antemiio 0 ‘que & 0 objeto de que VBo tratar. Pode-se assim conceber que elas sejam precedidas e acompanhadas em seu trabalho por ciéncias de cesséncias ou “cincias eidéticas”. A anilise intencional Mas dizer que, através da experiéncia sensfvel, nés alcanca- mos a intuigo da esséncia © que esta condiciona o sentido do sensfvel no € novo. Platio jé chamava eidos esse género de in- camas e muitas mesas, as “i apenas duas: uma para a cama, uma para a mesa®””. Permanece, entio, a questio de saber se ¢ preciso situar essas idéias, como faz Plato, num mundo inteligtvel do qual o mundo sensfvel nfo setia senio um derivado. Ora, pensa Husserl, no seria manter-se fiel ao princfpio da ‘volta 2s coisas mesmas” imaginar um lugar celeste onde as idéias teriam sua residéncia. Seria, ainda uma vez, cair na especulagao metafisica. Onde elas entio poderio residic? Muito simplesmente na consciéncia, jf que € como vivéncias de consciéncia que elas se dio a n6s. Mas entio surge uma nova dificuldade: se elas esto. na conscigncia, nds vamos reduzi-las a simples fenémenos psfquicos, ‘wibueérios por sua vez da psicologia e recairemos nesse psicolo- {ismo que Husserl tio vigorosamente refutou, Cumpre, pois, que. ‘acessfveis somenie na consciéncia, Has Gué elas niio se Confiindim jamais com os fendmenos dé Cousciéncia que.compe- ‘tem 2 psicologia. E aqui que Musser! Vai tecorrer & nolo funda- 9, Repabia, 595. 18 (© QUE E A FENOMENOLOGIA? mental de intencionalidade da qual j6 se servia Brentano, que @ tomara ele proprio & flosofia medieval. © princfpio da intencionalidade € que a consciéncia 6 sempre “consciéncia de alguma coisa”, Gue ela s6 € consciéncia estando, izigida a um objeto (sentido de intentio). Por sua vez, 0 objeto 36 pode ser definido em sua relacéo A conscincia, ele € sempre objeto-para-um-sujeito. Poderemos, pois, falar, seguindo Brenta- ‘no, dé uta existéncia intencional do objeto na consciéncia. Isto rio. quer dizer que 0 objeto esté contida.na sonsciéacia como que Sentro de uma caivay HAS que s6 tem seu sentido de objeto para ‘uma conscigncia, que sua esséncia € sempre o termo de.uma Vise da de significagio ¢ que sem essa visada 1ido se poderia falar dE objeto, nem portanto de uma esséacia de objeto. Dito de outra maneira, a questio “O que & 0 que é?”, que Visa 0 sentido obje- tivo ou esséucia, remete por sua vez A questio: “O que se quer dizer?”, disigida 4 consciéncia. Isso significa que as essencias ndo tém existéncia alguma fora do ato de consciéncia que as visa j do modo sob o qual ela os apreende na intuico. Eis por que @ Fenomenologia, em vez de ser contemplacio de um universo esté- tivo de esséncias eternas, vai se tomar a andlise do dinamismo do esptrito que dé 20s objetos do mundo seu sentido. Deste sentido, ppode-se dizer que a0 mesmo tempo ele depend da liberdade do espltito, que poderia no produzi-lo © no obstante ultrapassa a contingéneia dos atos de conscigncia por sua universalidade © sua necessidade. ‘Assim, 5e retomarmos um exemplo caro a Husserl, diremos gue 08 seres mateméticas nfo tm existBncia alguma fora das ope- rag6es do matemético que os conduz, mas que sua existéncia tam ppouco se confunde com a dessas operag6es. Para dizer a verdade, cles nio tm nenhuma existéncia, nem na consciéncia nem fora; seu modo de existéncia depende do modo sob o qual a conscién- cia os visa, lhes d& um sentido, no caso, como puras idealidades ccuja natureza 6 de serem construfdas pelo espfrito, se bem que o ‘espfito nfo possa construir nBo importa 0 que, jé que ele deve se dobrar a regras universais e necessérias. Mas, se perguntaré, 0 que dizer dos objetos da percep sensivel? Retomemos para este fim um exemplo concreto que Hiusser! propée: “Nosso olhar, suponhamos, volta-se com um sen- OEE ew UM POSITIVISMO SUPERIOR » timento de prazer para uma macieira em flor num jardim!®...”, Pa- ra 0 senso comum, tal percepgio consiste de infcio em colocar a existéncia da macieira no jardim, depois em colocar em relagio a essa macieira real a consciéncia do sujeito pensante, 0 que produ- ird na consciéneia uma macieira representada correspondente & macieira real. Conseqiiéncia: haveriam duas macieiras, uma no Jardim e outra na consciéncia. Mas surge a dificuldade: como po- «dem essas duas macieiras constituirem apenas uma s6? Serd preci- 0, com Platio, imaginar uma terceira macieira que permita con- ceber a identidade das duas outras e assim no infinito? 1E que assim nao atingimos a esséncia mesma da percepcio da | macieira, Se recorremmos, a0 contréio, & andlise intencional, nio ‘partiremos da macieira em si da qual nada sabemos, nem da pre- tensa macieira representada, da qual nio sabemos mais que da ‘outra. Partiremos das “‘coisas mesmas”, isto 6, da macieira en- quanto percebida, do ato de percepcio ‘da macieira no jardim que ‘€-a vivencia original a partirda_qual chegamos a conceber uma ‘macieira ou uma macieira representada.. Se 0 objeto € sempre objeto-pera-uma consciéncia, ele nfo serd-jamais objero.em si, mas Objéto-percebido ou objeto-pensa- “Wo, rememorado, imaginado, etc. A andlise intencional vai nos ‘obrigar assim a conceber a relacéo entre a consciéncia € 0 objeto sob uma forma que poderé parecer estranha a0 senso comum. Consciéncia e objeto nfo sio, com efeito, duas entidades separa- das na natureza que se trataria, em seguida, de por em relagto, ‘Couscacia € sempre “SonseiGncia de alguma coisa” seo dbeto € sempre “objeto para a consciéncia”, 6 inconcebfvel que possa- mos sair dessa correlaglo, j& que, fora dela, no haveria nem consciéncia nem objeto. Assim se encontra delimitado 0 campo de andlise da fenomenologia: cla deve clucidar a esséacia dessa cor ‘na qual no somente aparsce fal ou qual objeto, mas se._ ‘stende o mundo inteiro. Como essa andlise recobre toda a esfera dinamica do espfrito, do nous, Husserl batizarf com © nome de 10, ldfesdrecaices pour une phénoménlogie (las drenizs para va fen ‘menoio gia), ta P. Ricoet, Pass, Gallimard, 1950. 306. 2» © QUE E A FENOMENOLOGIA? nidese a atividade da conscitncia e com 0 nome de néema 0 obje- ‘6 Constitufdo por essa atividadé, esiendendo-se que Se trata do mesmo campo de andlise no qual a consciéncia aparece como se projetando para fora de si prdpria em direcdo a seu objeto € 0 ob- Jeto como se referindo sempre aos atos da consciéneia: “No sujei- to hf mais que o sujeito, entendamos: mais que a cogitatio ou! néese; hi o objeto mesmo enquanto visado, o cogitanum enquanto| 6 puramente para o sujito, isto €, constituido por sua referéncial 40 fhuxo subjetivo da viveneial”, Se, com efeito, a correlacio sujeito-objeto 86 se dé na in- tuigio originéria da vivencia (Erlebnis) de consciéncia, o estudo dessa correlacio consistié numa andlise descritiva do campo de consciéncia, 0 que conduziré Husserl a definir a fenomenologia como “a ciéncia descritiva das essencias da consciéncia e de seus atos”. Mas ndo se trata mais aqui de uma psicologia descritva tal como a praticava Brentano, pois a consciéncia contém muito mais ue a si prépria: nela percebemos a esséncia daquilo que ela nio 6,0 sentido mesmo do mundo em direcio ao qual ela nfo cessa de “explodic” (éclater), como dird Sartre. © que, entSo, vem a ser, para voltarmos 20 nosso exemplo, a macieira em si e sua miniatura representada? Como ninguém ja- ais soube 0 que fossem, seria melhor nflo levé-las em conta ou, como diz: Husser, “‘reduzi-las”. A REDUCAO FENOMENOLOGICA E SEU RESIDUO_ £ assim que a andlise intencional conduz, & redugiio fenome- nolégica ou colofacio entre parenteses da realidade tal como a concebe © senso comum, isto é, como existindo em si, indepen- dentemente de todo ato de consciéncia. ‘Uma mudanea de atitude Essa concepcéo do senso comum, Huser! a denomina atitude natural. A atitude natural, que é tanto a do cientista como a do a en rcices, op ct. Comentisio de P. Ricoour, 300. UM POSITIVISMO SUPERIOR a homem na rua, consiste em pensar que 0 sujeito est4 no mundo como em algo que 0 contém ou como uma coisa entre outras coi- sas, perdido sobre uma terra, sob um céu, entre objetos e outros seres vivos ou conscientes e, até mesmo entre idéias, que encon- trou “jé af” independentemente de si préprio. Em conseqiéncia ele considera a vida psfquica como uma realidade do mundo entre outras ¢, para ele, a psicologia nio € para a consciéncia senso 0 {gue a astronomia é para as estrelas: cada qual estuda um fragmen- to da mesma realidade, uma regio diferente do mesmo mundo. Quanto a0 que pode constituir a unidade dessas regiGes dfspares do mundo, € um enigma que ele no percebe. Nao seré, contudo,, © enigma que Pascal enunciava: “Pelo espaco, o universo me compreende © me traga como um ponto; pelo pensamento, eu 0 ‘compreendo!2”"? a Ora, a anflise intencional conduz, nés 0 vimos, a distinguir entre sujeito © objeto ou consciéncia e mundo, uma correlacio mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua tradugdo em in- teriorexterior, i6 que & no proprio interior da correlago que se ‘opera a separago entre interior e exterior. Mas o acesso a essa dimensio primordial s6 € possfvel sé a conscincia efetua uma verdadeira conversio, isto 6, se ela suspende sua crenga na reali- dade do mundo exterior para se colocar, ela mesma, como cons ‘dora de seu sentido. Fsté af uma nova atitude que Husserl cha- . taré atte fenomenoldgica. 7% consciéncia nio 6 fais, conseqientemente, uma parte do mundo, mas 0 lugar de seu desdobramento no campo original da intencionalidade. Isto significa que © mundo no em primeiro lugar ¢ em si mesmo o que explicam as Bilosofias especulativas ou as citncias da natureza, que casas explicagGes sio posteriores & abertura do campo primordial, mas sim que ele 6 em primeiro lu- gar 0 que aparece & consciéncia e a ela se dé na evidéncia irre cusével de sua vivéncia. O mundo nfo 6 assim nada mals que aque ele para a consciéncia: “O mundo, na atitude fenomenol6- gica, nao € uma existéncia, mas um simples fenémeno!2”’. 12, Pens, Fragments 348 eit Brush 13, E, Husted), Midttionscartésiennes (Media es cartestana), Trad. Pfeifer Lévinas, Pais, Vein, 1953, p27. iéncia transcendental, condicHo de apasic&o desse mundo e doa- {x 2 © QUE £ A FENOMENOLOGIA? Esta posicao do mundo como fenémeno, isto é, como s6 ten- do sentido em sua manifestacio na vivéencia, esté na linha reta da atitude de Descartes, que era também, a sua maneira, uma re- ducio. Para Husserl, assim como para Descartes, 0 eu penso 6 & primeira certeza a partir da qual devem ser obtidas as outras cer- tezas. Mas 0 erro de Descartes € ter concebido 0 eu do cogito como uma alma-substincia, por conseguinte como uma coisa (res) independente, da qual restava saber como poderia entrar em re- lacdo &s outras coisas, colocadas por definico como exteriores. Mas isso era recair entZo na atitade natural que descrevemos. Gracas & intencionalidade, 0 resultado da reducio fenomenol6gi- ca difere totalmente do resultado da david cartesiana: 0 que resta a0 termo da reducio, seu “residuo”, nao € 560 eu penso, mas a’ conexio ou correlacdo eniie 0 eu penso e seu objeto de pensa-~ ‘mento, n80 0 ego cogito, mas 0 ego cogito cogitauun. Assim, aps a reducSo fenomenolgica, 0 mundo nfo se tomou, como para Descartes, duvidoso; ele permanece tal como era, conser- ‘vando seus valores e suas significagSes antigas. Mas essea valores © essas significacdes ~ e entre elas seu sentido de existéncia — so “fenomenalizados”, isto é, desembaracados da atitude ingenua ‘que nos levava a colocé-1os como sendo “‘em si” e assim acarre- tava essas especulagSes metafisicas que estorvam um conheci- ‘mento rigoroso. Referida a vivencia da consciéncia, inconcebtvel sem essa vivencia, a questo de seu ser nio pode mais se disso- ciar da questo da origem do sentido que se enraiza na vivencia de consciéncia, na qual encontramos entio, segundo a férmul ‘que Husserl retoma de Empédocles, 08 rhizomata panton, as ral- zes de todas as coisas. A fenomenologia constitutiva A tarefa efetiva da fenomenologia seré, pois, analisar as vivéneias intencionais da consciéncia para perceber como af se produz 0 sentido dos fendmenos, o sentido, desse fenémeno global que se chama mundo, Trate-se, para empregar uma metéfora aproximativa, de distender o tecido da consciéacia do mundo UM POSITIVISMO SUPERIOR 2 para fazer aparecer os seus fios, que so de uma extraordinéria complexidade e de uma aranea fineza. Tao finos que.no apare- Gam na atitude natural, 2 qual se conteittava em conceber a.cons-_ “Gencia como contida no mundy—caso.do realismo ingénuo —a ‘iwonos que concebesse 0 mundo como contido na consciéncia - “KK tulo de indicacio sumdria, evoquemos a anélise de um fendmeno como a percepeao de uma érvore, digamos, a macieira de que se tratou. A constatacfo paradoxal de Husserl, mas que decorre do prinefpio da intencionalidade, € que a estrutura dessa vivéncia comporta elementos reais, que podemos pois encontrar af € de elementos inreais, que no encontraremos af. Um primeiro clemento real serfa abertura da consciéncia para 0 objeto, no ca- 50 1 persapedio (da arvore), mas que poderia ser um de outro mo- do: imaginagio, ideaglo, lembranga, et. Essa abertara € concebi- da for HusseAl como ui raio (Strahl) que parte do lado-sujeito da consciéncia para se dirigir para seu lado-objeto, com 0 risco aligs de ndo ser “preenchido”, de s6 atingir 0 vazio, caso, por exem- plo, a drvore que eu esperava perceber tenha desaparecido, Um outro componente real seré a matéria (Iylé), isto 6, a seqiiéncia das sensagées de pardo, verde, rigoso, etc. que se compéem em {forma que perceberei como pardo do tronco, verde da folhagem, ‘ec. Mas do lado-objeto da consciéncia, isso que Husserl chama seu néema ou correlato, vou descobrir um elemento “real” pois, com efeito, a frvore, cujos componentes de ser-percebido estio todos na consciéneia, nao esté ela propria na consciéncia. O pré- prio da estrutura intencional ou noético-noemdtica, € precisamen- te de fazer-me descobrir na consciéncia ou no sujeito ¢ somente at, pois no poderia encontré-lo alhures, um objeto que 0 sujeito nio pode evidentemente conter. Onde, pois, esté o objeto, onde, pois, esth a drvore? Essas questées $6 se colocam porque 180 abandonamos a atitude natural ¢ porque ainda concebemos uma frvore que existiria em si, seja fora da consciéncia, seja dentro dela a titulo de representagio, independentemente da atividade perceptiva da consciéncia. ‘Na realidade, a &cvore percebida nfo existe sendo enquanto percebida, isto 6, como pélo siniético dessa atividade perceptiva caja estrutura isolamos. A devore nio € outra coisa send a uni- 2 © QUE £ A FENOMENOLOGIA? dade ideal de todos esses “momentos senstveis” que sio 0 rigo- 50, 0 pardo, 0 verde, todos esses “esbogos” que se modificam & medida que me aproximo da érvore ou ando em volta dela, que se encadciam ¢ convergem na certeza que af no jardim hé uma &rvo- re, Esta certeza ou “crenca’, como diré Husserl, nio é uma qua- lidade da érvore, mas um carter do “‘ndema’” da percepgéo. A realidade, a exterioridade, a existéncia do objeto percebido € 0 seu préprio caréter de objeto dependem das estruturas da cons- cigncia intencional, estruturas gracas as quais a consciéncia ingé- ‘nua vé 0 objeto como o vé — portanto aqui como real, exterior, ‘existente — mas sem saber que € gracas a essas estruturas que ela ové assim. © fato que 0 objeto e finalmente o proprio mundo dependam assim dessas estruturas conduziré Husserl a dizer que eles si0 constiuddos. A fenomenologia se tomars, conseqientemente 0} estado da constituicdo do mundo na consciéncia ou fenomenolo- sia constitutive. Constituir no quer dizer criar, no sentido em! {que Deus criou o'mundo, mas remontar pela intuigdo até a origem ina consciéncia do sentido de tudo qué é, origem absoluta j4 que enhuma outra origem que tenha um sentido pode anteceder a Gcigem do sentide: ““E preciso aprender a unit conceitos que es- {amos habituados & opor: a fenomenologia € uma filosofia da in- uigéo criadora. A visio intelectual cria realmente seu objeto, ‘ilo 0 simulacro, a e6pia, a imagem do objeto, mas 0 préprio ob- Jeto. E a evidéncia, essa forma acabada da intencionalidade, que 6 constituidoral4”, Vé-se assim também o alcance da fenomenologia, que néo 6 somente, & maneira kantiana, uma critica do conhecimento, mas como 0 declarava. E. Fink mum artigo célebre, “uma interrogacio sobre a origem do mundo, um projeto visando tornar o mundo compreensfvel a partir dos diltimos fundamentos de seu ser, em todas suas determinagées reais ¢ ideais'5”. Assim a fenomenolo- gia abarca tudo que abarcam as metaffsicas tradicionais, mas sem 14, 0. Berger, Le copto dant ls pllaophie de Huser. Paris, Aubze, 941, p. 100. 15. E, Fink, Die phinomenologsche plilasophie Edmund Husers tn der ge~ senvdrigen Krk, Kaststudien, Ba. XXXVI, Heft 34, p. 339, UM POSITIVISMO SUPERIOR 25 jamais abandonar o solo da experincia, j4 que a referéncia A in- tiglo € permanente, Assim, pode-se falar a seu respeito de um positivismo superior, sendo 0 fenomenslogo, segundo Husserl, o ‘Gnico verdadeiro positivista: “Se por ‘positivismo’ se entende 0 esforgo, abso- Tutamente livre de preconceito, para fundar todas as citncias sobre © que € ‘positive’, isto é, suscetfvel de ser captado de maneira originéria, somos nds que s0- mos os verdadeiros positvistas'6”, Idealisino ou existencialismo? Entretanto, nem tudo esté resolvide coin isso. Se a reducéo fenomenol6gica faz aparecer o mundo como fendmeno se a ge nese de seu sentido € perceptfvel na vivéncia da consciéncia, nem tudo esté dito sobre o sentido dessa vivéncia, sobre o sentido das cestruturas nas quais se constitui o sentido do mundo. O campo da andllise intencional pode, com efeito, ser conside- tado sob dois enfoques diferentes. A primeira caracteriza 0 perfo- do idealista de Husserl que se abre com 0 primeiro tomo das Idéias diretrizes (1913) ¢ culmina nas Meditagdes cartesianas (2928). Nesse perfodo, no curso do qual Husserl seré levado a qualificar a fenomenologia de idealismo transcendental, 0 acento € colocado sobre 0 sujeito a0 qual 6 preciso ligar a consciéncia na ual todo sentido se constitu ‘A redugio fenomenolégica fez, com efeito, aparecer como resfduo, que néo pode ser reduzido, a vivéneia de consciéncia. ‘Mas esta vivéncia € vivida por um sujeito, ao qual se referem os objetos do mundo ¢ de onde vém as significagdes. A andlise da conscincia, voltando-se para seu lado-sujeito ou nottico, se tor- ha entfo anélise da vida do sujeito no qual e para 0 qual se cons- fitul_o sentido do mundo. Esse sujeito, “que se constitui conti- nuamente a si préprio como sendo”, pode ser considerado, A ma- neira Jeibniziana, como uma “ménada”, uma totalidade fechada 16. Lakes drectrices, opis p. 62. % © QUE E A FENOMENOLOGIA? sobre si mesma e da qual nfo poderfamos sair. A fenomenologia se toma assim “‘exegese de si propria’ (Selbstauslegung), cién- cia do Eu ou Egologia. Mas, se perguntaré, de qual eu se trata? Se tal anflise no quer se reduzir a uma simples psicologia, mas conservar a di- mensio absoluta & qual pretende Husser, esse eu nfo pode ser 0 eu pstquico” ou “mndano” que 6, com efeito, com suas vivén- cias concretas particulars, uma regito ou uma parte do mundo. Ele niio pode ser senfio a esséncia geral do Eu, distinguindo-se do eu psiquico como a esséncia de um fenémeno se distingue de suas manifestagSes contingentes. Esse eu, Husserl chamaré Sujet to ou Eu transcendental. Mas, sc este Sujeito transcendental é a esstncia do eu concreto e, portanto, $6 se distingue dele como aquilo que condiciona a “ego-idade"* (Ichheit) do eu concreto, 0 fato que, em sua multiplicidade, as vivéncias que fluem na cons- citncia se referem sempre & mesma fonte, 6 Sbvio que ele nlo po- deria ser acessfvel senfio no eu concreto. “Na reflexio fenome- nolégica eu me distingo, na medida em que jé me compreendi sempre como tal ou qual homem, do Eu enquanto Figo cujos atos de conscitncia séo a fonte ¢ o fundamento da possibilidade de tal J 2mercensiio de si: en me distingo de men Ego transcendental!” ‘Que uma tal distingSo possa trazer dificuldades, é 0 que ressal- | tardo as anslises de Sartre ¢ de Heidegger. ‘Mas um outro enfoque do problema € possfvel. Em seus diti- mos escritos e, como jé foi dito, sob a influéncia de Heidegger, Husserl acentua a0 contrfrio a propria correlagéo consciéncia: ‘mundo, que ser& bastante ffeil de traduzir por ser-no-mundo. Se © verdadeiro resfduo da reducéo fenomenolégica € essa come- lacdo © no 0 Sujeito transcendental ou “‘sujeito puro” que apro- xximava Husserl dos neokantianos, a fenomenclogia poder entio ‘se tomar o estimulo das novas filosofias da existéncia. A primeira evidéncia, 0 terreno absoluto para o qual cumpre voltar no seré mais 0 sujeito, mas 0 préprio mundo tal como a consciéncia 0.vi- ve antes de toda tlaboragio conceptual. Tal séré, notadamente, a interpretagio de Merlean-Ponty: “Voltar as coisas mesmas € vol- 17, L. Lamigrehe, “Huse, Heidegger, Sane. Trois aspects dela phéaoméno- ogi" em Revue de mbuaphysique et de morale, 1964, 0 4, p.375. UM POSTTIVISMO SUPERIOR a lar a esse mundo antes do conhecimento, do qual 0 conbecimento fala sempre € com relago ao qual toda determinacSo cientffica € abstrata, signitiva ¢ dependente, como a geografia com relago & paisagem onde aprendemos pela primeira vez 0 que & uma flores- ta, uma campina ou um rio!®", 18. M. Merteau-Poaty, Phénomnologic de la perception. Preftcio, Pati, Gal- limard, 1945, 00.

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