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TRABALHO DE CAMPO, RECIPROCIDADE E ELABORACAO DE TEXTOS ETNOGRAFICOS 0.caso de Maurice Leenhardt ‘Maurice Leenhardt teria concordado com 0 missionério evangé- lico Lorimer Fison, das ilhas Fiji, que comentou com Codsingron:! “Quando um europeu vive dois ou trés anos entre os selvagens, ele estd totalmente convencido de que sabe tudo sobre eles; quando fica dex anos, ou quase, entre ees, se for um homem observador, ele vai achar que sabe muito pouco ¢ ai sim ele esté comesando a apren- des” (Codrington, 1972, p. vi). Leenhardr, ele mesmo um missi nario evangélico na Nova Caled6nia por um quarto de século, ¢ depois antropélogo vinculado & academia e pesquisador de campo, {eve muitas ocasi6es de confirmar o ponto de Fison um ponto que ainda desafia a prética emnografica. Diferentemente de varios outros missiondrios que chegaram a saber muita coisa sobre os “selvagens”, Leenharde era capaz de ex- pressar sua longa experiéncia de campo com 0 rigor analitico € © modo sistematico de exposi¢éo associados & antropologia acadé- mica. Como primeiro presidente da Société des Océanistes ¢ chefe da sesio Pacifico do Musée de I'Homme, como detentor de uma ca- deira influente na Ecole Pratique des Hautes Erudes (cadeira esta por longo tempo ocupada por Marcel Mauss ¢, apés Leenhardt, por Claude Lévi-Straus’), 0 antigo missionério desempenhou um papel- -chave na cardia organizagio da etnografia cientifica na Franca. Na Universidade de Paris das décadas de 1930 ¢ 1940, Leenharde representava uma corrente singular de experiencia. Ele havia sido 208 2 experiéneia etnogrifics um missionério procestante bem-sucedido, ainda que nao conven- ional, no sudeste da Melanésia, e havia também viajado extensa- mente pela Africa, na regio subsaariana. Seu trabalho evangélico era teoricamente sofisticado. Ele introduziu pioneiramente modernas ‘écnicas etnolinguisticas de traducio da Biblia e fez um estudo com- parativo cuidadoso da psicologia e da sociologia da conversio reli- giosa. Durante seus anos na Nova Caledénia, de 1902 a 1926, como observador cientificamente orientado, reuniu um conjunto conside- ravel de textos eenogréficos, em sua maioria transcrigées verndculas, da linguagem ritual. Como professor em Paris (1932-1953), Leenharde evitow as abordagens mais amplase sintéticas de umm Mauss ou de um Lévy-Bruhl. Permaneceu préximo a0 campo que conhecia intima- mente: a Nova Caledinia, especialmente a area de lingua houailou (Ajig). Em suas aulas, 0 missiondrio de volta do campo praticava lum método de escrupulosa anilise semAntica do ritual eda linguagem cotidiana, guiando cuidadosamente os alunos pelos complexos sentidos ¢ interconexées situacionais de uma lingua que ele com- preendia profundamente. Com efeito, ele tentava comunicar uma cexperiéncia verndcula: nas palavras de Michel Leitis, seu primeiroalu- no, “tinha-se a impressio de estar na presenga de um verdadeiro mela- nésio”? A aura do veterano nao era diminuida pelo fato de se saber que cle nao gozava das boas gracas do governo colonial da Nova Caledénia nem de sua propria organizacio missiondria. Parece que cle tinha sido algo como um “indigénaphile’, um agicador pré-nativos cujo pensamento sobre politica eevangelizacio havia sido considerado “avangado demais” por seus colegas.* “Mauss, que disse, sobre Leenharet, que “este pastor e antigo profes- sor de tcologia protestante era mais livre de quaisquer preconceitos e preocupacées em seus fimosos estudos sobre povos da Oceania do que qualquer outro etnégrafo ou socidlogo de seu tempo” (Gurvicch, 1955, p. 107), rapidamente entregou a ele metade de sua atividade docente na Hautes Etudes e assegurou sua sucessio no posto. Mas se Leenharde era apreciado (embora nem sempre compreendido) or seus contemporineos, ele foi quase totalmente esquecido por seus sucessores. Suas ideias pouco usuais sobre fenomenologia reli- giosa efetivamente submergiram na onda estruturalisa dos anos 1950 trabalho de campo, recprociadee elborago de eros etngtices 209 € 1960; seus relatos emogrificos singulares ¢, de virias maneiras, cexemplares, permanecem em grande parte ignorados. © livro mais conhecido de Leenharde, Do Kamo: la personne et Je mythe dans le monde mélanésien (1947), apareceu em lingua inglesa em 1979, Este registro de uma série de palestras dadas por ele no College de France é um bom exemplo do tilkimo estilo de Leenhardt de reflexao etnoldgica, Nao oferece, entretanto, muito mais do que ‘uma simples ideia da extensa documentagio sobre a qual esti baseada. Anteriormente a Do Kamo, Leenhardt escrevera uma sequéncia de «inco livros académicos sobre a Nova Caleddnia: quatro grandes vo- umes na séie de publicacoes do Instcutd’Ethnologie e um panorama getal, Gens de la Grande Terre (1937). © presente artigo se bascari nessa produio anterior, até Do Kamo, enfatizando a primeira fase documental da carreira de Leenharde. Lancando mao de documentos particulars, ele delineard as condigées nas quais sua etnografia foi rea- lizada, sublinhando a natureza coletiva e dialégica do empreendi- mento. A experiéncia de pesquisa de Leenharde, a de um etndgrafo- -missiondio, foi, sem diivida, no ortodoxa, de um ponto de vista académico, Alguns dos pontos fortes ¢ fracos de seus métodos serio indicados abaixo. O exemplo incomum, embora longe de set 0 Xinico, de um missiondrio seriamente comprometido com a vetnografia pode lancar uma luz. comparativa sobre as priticas convencionais do trabalho de campo. F ird ao encontro, em todo caso, de uma tendén- «ia ainda recente ~ melhor exemplificada em vitios artigos recentes de Rodney Needham — de avaliar sem preconceito a contribuigio cien- tifiea dos misionérios # (© missionério vai aos confins da terra para converter os pagios, 0 cexndgrafo, para estudé-los. O cientista social, visto do ponto de vista do missionério, se importa bem pouco com o povo que ele inves- tiga, Ele € um homem sem deus, um relativista moral, e, comu- mente, alguém que estd ce passagem. O ernégrafo tem opiniées mais duras sobre 0 missionsrio, que para cle tem a mente estreita, é etno- «éntrico ¢ inescrupuloso 20 fomentar 0 caos cultural em beneficio de questiondveis mudangas religiosas. As opini6es conflicantes sio tio verdadeitas quanto a maioria dos esteredtipos. Elas no so muito Gites para entender uma pessoa como Leenhardt, com quem devernos 210 2 experitncia etnagrifica ser cuidadosos para nao pensi-lo como um missionério-que-virou- -antropélogo. Nunca ocorreu a ele separar nitidamente as duas voca- es (embora cle frequentemente evitasse misturar 0s dois diferentes tipos de discurso). Sua cegueira para o que é normalmente consi- derado uma contradigao de papeis © objetivos nio estava isenta de ‘Vantagens, como veremos. Para avaliar a contribuigao de Leenhardl, seré necessério tratar © trabalho de campo como um trabalho coletivo, colocando assim fem questéo certos pressupostos sobre a escrita etnogrifica. Em par- ticular, 0s conceitos de descrigao, interpretagio ¢ autoria demons- ‘tram ser inadequados para os processos em jogo. Um dos informantes de Leenhardt foi o chele regional (grand chef) da étea houailou, Mindia Négja, Em 1914, 0 missiondrio escre- veu a0 pai descrevendo o progresso de sua pesquisa sobre 0 paren- tesco local: [Nas iltimas trés semanas tenho tencado saber mais de Mindia so- bre sua familia, mas ele resiste. Toda sexta ira tenho passado uma longa manha com ele na casa do nata Neouco (0 pastor melanésio). A primeira vez foi diffeil conseguir relaxi-lo, Ele me explica que nds brancos somos burros demais para entender seu parentesco, ends, os ‘issiondtios, preocupados demais com suas almas para nos inter sarmos por suas obscuras relagées de sangue. Fu capaz de lev-to, ‘com poucas perguncas, ao centro do tema, Na segunda sexta-feira, cle havia escrito uma pequena folha de papel, que troue consigo, api me fazer esperar uma hora. Nesta ima ver ele estavaesperan- do por mim na casa do mats, nha ecto quai pagina grandes A situagio € familiar. Verios uma resisténcia inicial do informante, (5 atrasos frustrantes, as questes-chave, ¢, finalmente, com sorte, 0 estabelecimento de uma cerca dose de confianca e interesse mituo. ‘Mindia Néa colocou problemas particulares como uma fonte de informagio exnogrifica, uma vez que suas relagées familiares eram fatos de importancia politica imediata Hi, sem diivida, uma dimensio polit Notas Robert Henry Codrington, missiondrio e ecnégrafo inglés, que, antes de Maurice Leenhardt, rabalhou na Mclanésia. (N. do ©.) ‘Comunicagio pessoal: 0 retrao de Leenhardt € derivado de Letis ede ou- ‘ros estudantes que ainda vivems ver também as reminiscéncias de Poirier (1955) e Routhier (1955) > Para um relato completo da carreita cle Leenhardt, ver Clifford (1982b). Sobre suas atividades polticas, ver Guiart (1955; 1959; 197). + Needham (1968; 1972, p. 23-24). Ver, também, sobre as relages entre Imissionarios e etndgrafos, Burridge (1978) e Hughes (1978). > Leenhard a seus pais, 29 jan, 1914, carta manuscrta, (Todo material nao publicado, salvo quando indicado, esti em posse de R. H. Leenharde, rue Claude Bernard, 59, Paris) © A pritica missiondria de Leenhardt era significativamente influenciada pelo trabalho de seu corpo pastoral. Os natas eram nativos das ihas Lealdade cuja mensagem evangélica ~ seguindo padrées tradicionais de ‘roca entre as ilhas ~ precedia a chegada de Leenhardt em uma década (Clifford, 1982b, parte 1; Guiare, 1955). * Sobre a ‘palavrs" de Mindia, ver Leenharde (1979, p. 114-118, 137) ® Carta de Leenhardea seus pais, 29 jan. 1914, citada anteriormente. > Leenharde a seus pais, 31 out, 1903, carta manuscrta "Esta atitude permeia suas carta; ver também Leenhardt (1938). Leenharde a seus pais, 6 nov, 1915, carta manuscrita, Leenhardt a Jeanne Leenhards, 15 jul. 1918; 17 ago. 1918; cartas ma- ruseritas, citadas em Clifford (1982, p. 263-269). "A “cextualizagio”, uma precondicéo para a interpretagio, € um processo pelo qual o comportamento, as crengas, a tradigio oral, a ages rituas, trabalho de campo, eipractadee eaboraio de textos enopticas 297 tc no esrias, vém a ser “fixadas” (como algo com um significado), “auconomizadas"(separadas de uma especificaintengéo auroral), tornadas “relevances” (para um mundo contextual) e “aberas® (para inerpretacio © comportamento assim transformado por um piblica competente) se torna susctivel & “lecura’, um processo que no depende mais de interlocugéo com um sujito presente. Estes termos sio propostos por Ricoeur (1971). Retirado das notas comadas num curso, em 1935-1936, arquivos de ‘Mauss, Musée de Homme, gentilmente fornecidas por C. Rugaior ° Esta definigio dos ués volumes como um todo, centrados no Documents, baseada na propria descrigéo de Leenhardt contida num extenso curri- ‘ulm vitae, feivo por volta de 1950. ™ Geertz (1973, cap. 1). Na pégina 19, Geertz discute a eenograia como 4 “inscrigio” do discurso social, os meios pelos quais(seguindo Ricoeus) lum evento se corna um significado interpretivel. Mas se, como Geertz indica em sua famosa andlise da briga de galos bainesa (especialmente nna pagina 450), a cultura é sempre jé interpretada, pode-se extrpolar aque ela € também sempre jd inscrea, (Uma ocasito ritual é um “texto”? Como a expresso “literatura oral” chega a significar alguma coisa?) [Nestes casos, etnografia menos um processo de insrigio, a passagem, de algum evento oral essencial para a textualidade, do que um procedi- ‘mento de transrigio, de “escrever sobre" Uma importante excegio é Casagrande (1960), embora sca significati- vo que esses retratos tenham encontrado lugar numa edigio separada, “popular, eno dentro das etnografas que cles tomnaram possveis. Ver também Liberty (1978), que contém um retrato de vos informantes antropol6gicos, e Fontana (1975), na introdugio a uma reedigio de Pima Indians, de Russell, que discute 0 oculco coautor dolivro, indo papago José Lewis. A recente discussdo de Rabinow (1977), emborafornea uma excelente visio das relagées etndgrafo-informante como consttutivas da cexnografia,nio foge inteiramente da convengio que ela critica, ade com partimentalizar tis reflexées. Um livro que vai mais alm ao questionar implicicamentea “autoridade” € Conversations with Ogovemméli (Griaule, 1965). Para um excelente exemplo recente de um trabalho abertamente de coautoria, ver Majnep e Bulmer (1977). 228 8 experitncia etnograficn "Ver RH, Leenhardt (1976), que fornece detalhes biogrficose uma lista dos cademos de notas de Boesoou, seus conteidos, e as seg6es correspon- dentes dos Notes dethnologie e Documents néo-calédoniens, de Leenhare " Comunicagio pessoal: sobre a qualidade dos informantes de Leenharde ‘como pesquisadores independences, ver Guiart (1963, Introdugio). ® Ver, paricularmente, Nida ¢ Taber (1969, p. 22-32), que estabelecem principios desenvolvidos por Nida numa carreira de eniome como ls guistaetedtico da tradugio da Biblia. Traducir buscando a “equivaléncia dinémica” requer a confirmagio dessa tradusio a partir da tesposta dos receptores. “[..] uma traducio da Biblia deve nio s6 fornecer informa- s8es que as pessoas possam entender, mas deve apresentar a mensagem de um modo que as pessoas possam sentir sua relevincia (o elemento cexpressiva da comunicacio), ¢ possam entio responder aisso pot meio daagdo (a Fangio imperativa)” (Nida e Taber, 1969, p. 24). (Nida ea lei- torde Do Kamo, de Leenhardt; ver seu Customs and cultures: anthropology for Christian missions (Nova York, 1954)) como editor de The Bible rans- lator, ele publicou uma traducio do artigo de Leenhardt (1951a; 1951b) de 1922 sobre 0 Novo Testamento housilou). Muitas das ideias gerais de Leenharde podem ser encontradas em piginas recentes de Practical ‘anthropology (hoje Misiolog: an international review). Pot cxemplo, wina extensio do principio da “equivaléncia dindmica” para a estrutura das igrejas indigenas (uma perspectiva bem “leenhardsiana’) pode ser vista, «em Krafe (1973, p. 39-58). " J. Guiare, escrevendo assumidamente na tradigéo leenhardtiana de pes- ‘quisa continua na Nova Caledénia, apontou algumas destas questBes em recente polémica, prise de postion “Lethnolague et Vacednien® (1976) % Geertz (1973, p. 9). Em sua discussio sobre a “descrigio densa”, os exem- plos de Geertz dos dados colhidas no campo sio altamente textualizados « sobredererminados interpretativamente. Exatamente como eles foram consttuides como textos, por quem € com quem, em quais condicoes, ‘io é considerado, Uma colegio de brigas de galo se rorna uma briga de galo “ideal”, que € signifcativa porque néo & tipica (ver Boon, 1977, 32-34). ® Ver, porexemplo,o uso da obra de Leenhardt por Tiibaou (1976a; 1976b). ‘uabalho de campo, recprocitadeeeaboragéo de entasetogrfcos 229 ™ Um obsticulo mais étio€a relutincia dos editores em imprimir documen- ‘tos extensos em lingua nativa; 0 tual modelo de uma etnografia altamente focalizada, de 250 piginas,constrange a “aberturs” do texto. Assim, para ‘mencionar 56 um exemplo, o recente trabalho de A. Weines, Womem of sue, men of renown (1976), embora complemente de forma excelente «as monografas de Malinowski sobre Trobriand, nfo parece suscetivel de ser, ncermingvel ecriativamente,reinterpretado, como os trabalhos de seu predecessor, que produziu grandes compéndios como Coral gardens, Os argonautas¢ Sexual life of savages € que era capaz. de incluie em seus trabalhos dados cextuais que ele nio compreendia teoricamente. Para uma excelente discussio desta ede outras questbesafns, ver Beidelman (1979, p. 511-512). ® A problematizacio da autoria ¢ do texto aqui recomendada se tornou, sem diivida, um lugar-comum da moderna critica, especialmente na sua variedade “pés-estruturalisa’. A literatura é extensa; para formulagses sucintas, ver Barthes (1977) e Foucault (1977).

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