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A insercéo compulséria do Brasil na modernidade da Belle Epoque: maquinismo, lazer e urbanizacao pe ee Maria Inés Borges M. Pinto" No final do séeulo pasado e inci des- | te, as elites dominantes brasileiras Iutavam pela modernizacao da nagio, Essa modern zagio enquadrava-se na expansdo do capita- | lismo.em escala global. Os icones e represen- tagdes da modernidade incidiam na configu- | ago da sociedade brasileira da época e se | ligavam a construcao de uma ordem triunfante de progresso no Pais. Naquele momento, a nogaio de progresso encontrava-se identificada com os padres e modelos civilizat6rios pos- | tos pela industrializago e pelo desenvolvi mento tecnolégico da “Segunda Revolugio | Industrial”, que grassavam nas nagdes euro- péias © nos Estados Unidos Enters brasileira, ratava-se da cons trugo do progresso da nagiio sob a égide do | regime republicano e da hegemonia das cli- {es cafeeiras, daquilo que Nicolau Sevcenko | nomeou "a insergio compulséria do Brasil na modemidade da Belle Epoque". Como bem observa esse Professor do Departamento de Hiséria da USP que se notava na atuagao dos primeiros presidentes civis e paulistas, bem como de seu ctrculo politico-administrativo, era 0 evidente esforca para forjar um Estado-nagado moderno no Brasil, éficaz diante das novas vieissitudes histéricas como seus modelos europe.” Além do mais, pode-se assinalar que, “(on) a Revolugéo Técnico-Cien- tifica instituiu um encadeamento entre as novas teenologias e, por conta da escalada na atividade produtiva, enormes movimentagoes populacionais, especialmente voltadas para a concentragdo nas reas urbanas que polarizam 0 processo. E 0 que desencadeia 0 Jfenmeno da metropolizagao na sua ‘magnitude contemporanea.”? 104 REVISTA DE HISTOR. N*8— VITOR EDUFES- Eric Hobsbawm também observa que havia, naquele momento, um modelo referencial geral para as instituigdes e as tmuturas adequadas a um pais que queria ser Visto como avangado e moderne. Segundo esse historiador: “...) 9 modelo de nage Estado lberal-constituctonal ndo estava con- nade ao mundo desenvaivido”, anna ver que seus padrdes € modelos inscitucionais eram adotados por toca a parte’ { No Brasil, as efites cafeeiras esforgavam- Se em afastar as especificidades consideradas arcaicas diante desses modelos das socieda- des europeias e sincronizar o Pafs ao avangar da civilizagio moderna. O processo de urba- nizagiio da cidade de Sdo Paulo encaixava-se esse esforgo de modernizagio da sociedade brasileira. No final do século XIX e inicio do XX, Sho Pavlo foi marcade por profundes transformagées que visevam dotar o ambien te citading de uma infra-estrutura modemi- | zada, semethante A das grandes metrépoies ue se erguiam em terras européias ou norte- americanas, O fenémeno da metropolizacdo das ci- dades modernas intensifica-se no final do Século passado em concomitincia com a in- Gustrializagio, Acentuava-se o titmo febril das | transformagdes do modo de vida dos habitan- tes dos centros urbanos ao: Tedor do globo ter- restre. As vésperas do século XX, estavam se desenvolvendo aceleradamente as numerosas: aplicagdes priticas das descobertas cientifi- cas de conhecimento scumulads durante o século XIX, que se espathavam pelo murido em sua incorporagdo maciga aos processos Prociutivos das fabricas, gerando uma formi- davel massa de processos industriais revolu- | | | } | | | | iondrios e produtos tecnol6gicos inovadores, A intensifieagao da industrializagin des~ dobrava-se numa escalada vertiginosa e con~ Centrada que se baseava na utilizagto “de haves poenciais enérgeticos, como a eletri- idlade ¢ os derivados de petréteo, dando as- sim origem a novos campos de expioracéio indlustriat, como os altos fornos, as indiistris 4s quimicas, novos ramos metalirgicos, como os do aluminio, do niquel, do cobre e dos agos especiais, além dos desenvolvimentas nas Greas da microbiologia, bacteriologia e da bioguimica, com efeitos dramdticos sobre a producao e conservagda de alimentos, ou na farmacologia, medicina, higiene e profilavia, com wn impacto decisive sobre o conmole de rnoléstias, a natalidade e 0 prolongamento de vida,” Esses processos produtivos do modemo sistema de fibrica, bem como os requintes fecrtolégicos de seus maquinismos, tomnaram- Se as vedetes das grandes Exposigges Univer- sais da Belle Epoque, cujas mostras marca~ Tam o cendrio quer das cidades curopéias, tais como Paris, Londres ou Viena, quer das ci- dades do continente americano, tais como Saint-Louis, Filadélfia ou Chicago, maravi- Thando as multidées estupefatas diante do fulgor do universo da produgdo e da cirevla- $0 das mercadorias. Os expositores os vi- sitantes dessas Exposigées Universais podi- am ser contados, crescentemente, a0s milhia- fes e aos mithSes. Em Londres, em (851, 13.937 expositores exibiam suas maravithas aos 6,0 milhées de visitantes; na Filadéltia, em 1876, 60.000 expositores montaram o espetdculo das mercadorias para 9,9 milhdes; Em Paris, no ano 1900, 83.000 expositores FEVSTADEHSTORIA-N'a-\VTORIA EDUFES - 1S SOVESTRENNOO 105, apresentavam seus produtos para 48,1 mi- Indes de pessoas; em Sto Francisco, em 1915, em meio & conflagragio da I Grande Guerra, 18,9 milhdes de visitantes foram conhecer as novidades dos 30,000 expositores que ali exi- biam as maravilhas safdas das entranhas do mundo fabril$ As fungdes das cidades, nas mais dife- rentes regides do mundo, estavam se ampli- ando e se especializando dentro de uma com- plexa escala de divisto internacional do tra- balho. Ao redor do globo, formava-se uma rede de cidades que passavam a funcionar cada vez mais quer como centros produtores do sistema capitalista em expansio quer como amplos mercadios de consumo de bens e ser- vigos. O aumento da populagio em escala | ‘mundial, a intensificagdo da escala do pro- | ccesso de industrializago, os desenvolvimen- tos tecnoldgicos aplicagdes priticas do co- nhecimento cientifico, os vertiginosos proces- sos de urhanizagiio, o aumento do volume das migragées internacionais, acabaram por am- pliar o mercado de massa, que até entdo esti- vera mais ou menos restrito 2 alimentagdo ¢ 40 vestudrio, ou seja, diversificaram um mer- ceado que até entdo atinha-se a satisfagio das necessidades bésicas de sobrevivencia, alte- | rando, drasticamente, 0 modo de vida das | sociedades por toda a parte’. A expansio do sistema capitalista ¢ 0 avango das aplicagdes tecnolégicas das des- cobertas cientificas evidenciavam-se na for- | mago de um admirdvel mundo novo, que entrelagava as esferas da economia, da politi- | ca, das sociabilidades e das manifestagdes culturais, bem como 0 movimentar continuo e desenfreado de vastos contingentes populacionais. Surgiam pressdes continuas que tendiam para o crescimento do produto e da demanda no interior da formagdo do siste~ ma econdmico capitalista. Essas presses abriram caminho para o desdobramento es- pacial do sistema capitalista pelo mundo, Tais fendmenos conjugados estavam modificando © cotidiano de milhdes pessoas que viviam em cidades, Eles modificaram os ritmos so- ciais ¢ as temporalidades que perpassavam 0 viver das populages urbanas por toda a par- te, pois “wma tecnologia revoluciondria ¢ 0 imperialismo concorreram para a criagao de uma série de produtos e servicos novos para omercado de massa ~ dos fogdes a gas, que se multiplicaram nas cozinhas da classe ope- réria britinica no decorrer desse periodo, & bicicleta, ao cinema ea modesta banana, cujo consumo era praticamente desconhecido an- tes de 1880.7 Em terras brasileiras, o desdobramento do sistema capitalista atingiu de chofre as bases politicas e sociais do Império brasileiro, pois a “dotagiio do pats de uma infra-estrutura téenica mais aperfeicoada, representada pela instalagdo de grandes troncos ferrovidrios, a ‘methoria dos portos do Rio de Janeiro e San- tos, juntamente com o crescimento da deman- da européia de matérias-primas, dew impul- So vertiginoso no comércio externo brasilei- 0, aumentando grandemente as suas impor- tages, pagas com os recursos agricolas em pleno fasttgio do café, cacau e borracha, Os transportes ficeis e 0 crescimento econdmi- co propiciaram uma verdadeira avalanche de colonos europeus ao pats. A sociedade senho- rial do Império, letérgica e entravada, mal Ode resistir & avidez de riquezas e progres- 106 EVISTA DEHESTOFRA NPs VITOR EDUFES 1 SEMESTAE O89 so infinitos prometida pela nova ordem in- ternacional; cedeu lugar d jovem Repiblica que, ato continuo, se langou & vertigem do Encilhamento e dos empréstimos externos.”* ‘A ascensio das novas elites ao poder com, ‘0 advento da Reptiblica e a desmobilizagao de enormes contingentes de ex-escravos apés a Aboligao, bem como o imenso fluxo de pes- soas que chegavam no bojo da imigragio es- trangeira para o Pais, alteraram os quadros hi- erdrquicos e de valores da nagio brasileira. Naquele momento, consolidavam-se as pri- ticas de trabalho assalariado e da constitui- do de um mercado mais diversificado e di- namico no Brasil’. A nagao brasileira, em sua serotio compulséria na Belle Epoque, pas- sava por amplos processos de transformagées multidimensionais, que desestabilizavam os pardmetros da sociedade ¢ da cultura tradici- onais até entio vigentes™. Tratava-se de um momento em que as novas elites no poder adotavam as premissas que guiavam a confi- guragdo da ordem mundial como bases para a construgao de um Estado-Nagiio moderno: no Brasil (0s “projetos” ambicionados por essas eli- tes para a construgdo de uma identidade naci- ‘onal moderna obtinham inspiragdo tanto nas correntes cientificistas que grassavam no con- tinente europeu, tais como o darwinismo soci al, o positivismo francés ou, ainda, omonismo alemio" como, também, sobretudo, na imen- sa visibilidade do pujante desenvolvimento econdmico e teenolégico das sociedades bur- ‘guesas européias. © encantamento das mara- vilhas mecdinicas das sociedades industriais as premissas ideolégicas que guiavam essas sociedades perpassavam as imaginages dos contempordneos. As capitais de diversos Es- tados brasileiros espelhavam esse desejo de ‘modernidade em seus projetos de reformulagio urbana, cujos reflexos incidiriam sobre as con- figuragdes de suas paisagens urbanas, jd bem entrado 0 século XX. Na virada do século, a cidade de Sao Paulo vivia um momento crucial de transfor- magées. A cidade experimentava modifica- Ges que tendiam a transformar sua Feigao colonial em uma cidade que comportava 0s valores da modernidade e da civilizagdo que predominavam nas sociedades burguesas eu- ropéias ¢ nos Estados Unidos. A paisagem ur- bana de Sao Paulo redefinia-se de modo ca6- fico e desordenado, As primeiras intervengées de aformoseamento dos espagos piiblicos da cidade de $0 Paulo ocorriam desde a déca- dade 70 do século passado, momento em que a cidade passou a centralizar a economia paulista, consolidando-se como uma cidade em que se focavam as atividades financeiras e politicas da Provincia ¢ atraindo os cafei- cultores do interior, que nela vinham se fixar, buscando uma melhoria em seus negécios € ascensio na escala social.” Nessa reformulacdo da paisagem urbana, seguia-se 0 modelo de reformulagdo de Paris do Segundo Império, cujo estilo podia ser vis- to nos primeiros palacetes dos fazendeiros do café, que diferiam dos sobrados de taipa que até ento dominavam a cidade oitocentista. Os integrantes antigos das elites, que residi- am nas ruas centrais, foram progressivamen- te abandonando o centro da cidade, povoado por uma vizinhanga heterogénea, composta de negros e mestigos, que sobreviviam de suas agéncias improvisadas. Procuravam se insta- EVSTADEHSTORA -N'8- VITO>V EDUFES —1°SEMESTRENTSS9 107 lar nas ruas recém-abertas dos novos bairros elegantes, tais como Campos Elisios ou Higien6polis, onde, em seus palacetes, podi- am conviver numa vizinhanga formada qua- se que exclusivamente por seus pares, Simul- tancamente, acentuavam-se as condiges pre- iirias das habitagdes populares, quer nas an- tigas construgdes de taipae tijolos da area cen- tral, quer nos casebres que surgiam nos bair- Tos ¢ arrabaldes localizados ao longo das vias férreas, bem como sobre as terras alagadigas que cercavam a rea urbanizada a leste, a0 norte ¢ a sudeste da rea urbana."? ‘Como ocorria na cidade do Rio de Janei- ro, as elites paulistanas “se empenhavam em reduzir a complexa realidade social brasilei- ra, singularizada nas mazelas herdadas do colonialismo e da escravidao, ao ajustamen- to em conformidade com padroes abstratos de gestiio social hauridos de modelos euro- peus ou norte-americanos. Fossem esses os modelos da misséo civilicadora das culturas da Europa do Norte, do urbanismo cientfi co, da opinido publica esclarecida e Participativa ou da crenca resignada na in- falibilidade do progresso. Era como se a ins- tauragdo do novo regime implicasse pelo ‘mesmo ato no cancelamento de toda a heran- a do passado histérico do pats ¢ pela mera reforma institucional ele tivesse fixado um nexo co-extensivo com a cultura e a socieda- de das poténcias indusirializadas."™ Acelerava-se a transformagao da paisa gem de uma cidade de So Paulo que se es- tava configurando em mais um paleo da agressiva “cruzada saneadora” empreendida pelas elites republicanas em nome da mo- dernizagio da nago brasileira. Como assi- nala o historiador Paulo César Garcez, Marins, ao tratar das reformas arquitet6nicas do espago urbano da cidade de Sao Paulo, a construgio de “novos bairros residenciais elegantes, adequados aos preceitos sanité- rios, pldsticos e comportamentais gerados no cotidiano burgués das cidades européias conseguitt forjar em Sao Paulo uma man- cha continua de vizinhangas homogéneas. Excluiu-se a proximidade dos menos favo- recidos, desestimulando-se seu transito pi blico nas ruas dos bairros de elite. Uma ampla faixa que cercou o centro paulistano de oeste € sudoeste livrou-se da intersegao de bairros ou habitagdes populares, (...) A | dvea ceniral, considerada ndo civilizada, também foi atingida pelas demoligdes excludentes(...) As reformas implementadas ao longo da primeira década do século XX nas gestdes consecutivas do conselheiro Antonio da Prado, integrante das mais in- fluente famélia paulistana de entéo, promo- veram a construedo de grandes edificios oficiais, consolidando-se a pontuagio dos espacos piiblicos por edificios monumentais iniciada jé na primeira década republica- na.""8 Podia-se notar, na paisagem citadina, os contornos da configuragdio de uma vida ci lizada e moderna sintonizada com os valores civilizados que grassavam no continente eu- Topeu, bem como as hierarquias que se confi guravam na sociedade da época. Como retra- tao memorialista Jorge Americano, em suas recordagdes da Sao Paulo do comego do sé culo, quando menciona os concertos realiza- dos na cidade, ao comecar-se a mtisica no | Jardim do Palécio, o Presidente de Sio Pau- 108 REVISTA DEHISTORA-N'8- VITORIA:EDUFES- 1°SEMESTRE/1999 lo, Rodrigues Alves, surgia& janela e recebia personalidades ilustres que iam cumprimenté- | To, ais como o general Glicério ou o dr. Ben- 10 Bueno, recém-formado em Direito, que fora Secretirio do Interior, to jovem, e ji numa | posigdo brilhante'®, Essa era a oportunidade, | por exceléncia, para os figurées da elite se | distinguirem no meio do “povaréu’ e se apro- | ximarem do presidente Rodrigues Alves, en- quanto este, a janela, correspondia aos cum- | primentos dos que estavam sentados nos ban- | cos do jardim ou passeando durante a execu- | do do concerto. Uma vez ou outra, quando | niio apareciam politicos, Rodrigues Alves mandava um servente convidar um amigo, com certeza um grande proprietadrio, que ali estivesse, para prosear. Além do mais, mui- tas pessoas compareciam a esses concertos para ter a oportunidade de cumprimentar Rodrigues Alves, acalentando a esperanca de um convite do Presidente do Estado para adentrar 0 Palacio e acompanhar 0 concerto ao seu lado, Esses eram sinais de prestigio e poder que permeavam a vida na cidade cos- mopolita’”, Contudo, esse convivio social era muito ‘mais matizado e muito menos harmonioso do que essas reminiscéncias de Jorge America no podem fazer crer. O cronista Nuto Santana descreveu a configuragdo do mov ‘mento da vida urbana na década de 10 deste século, deixando-nos entrever, em suas re- miniscéncias, entremeadas aos deveres de seu oficio, algumas das formas de sociabilidade presentes cidade de Sao Paulo, que entao pas- | saya pelas reformas modernizantes do Prefeito | Anténio Prado. Naquele momento, em Sdo._| Paulo, existiam 400.000 almas. Havia locais, na rua Quinze de Novembro que eram ponto de encontro das “rodas literdtias”, como 0 Schortz, onde se comentavam as noticias, as modas, os boatos oriundos da Europa, entre 605 goles dos chopes gelados e a fumaga dos cigarros. Ali, em meio ao vozerio de merea- do e bar, marcado pela algaravia das discus- s6es, por entre a balbtirdia dos gargons aos brados, que atendiam aos pedidos no saliio atulhado de mesinhas, discorria-se sobre os mais variados assuntos que corriam pelo mundo e se formavam as “opinides ptiblicas” sobre diversos temas, que iam da esfera da politica até as minticias dos estilos literdrios e nuances das letras. Contudo, préximo desse local, também, na rea central de Sao Paulo, ficava 0 Café América, na rua do Tesouro, onde se reunia “o populacho”. Nele, fregueses “em manga de camisa”, “carregadores, motorneiros” e “pretalhGes” suarentos, bebiam largos goles de café e cachaga, sempre em tremenda “al- gazarra”talvez, em sua pausa de algum tra- balho ou a busca de algum expediente para sua sobrevivéncia difria. © mesmo oco1 nos estabelecimentos similares que podiam set vistos no largo do “Piques”.'* Conforme as anotagdes de Nuto Sant’Anna, a freqiién- cia dos diversos pontos de encontro da cida- de era estritamente delimitada pelas hierar- quias sociais: Todos (cafés ¢ confeitarias) tinfian tal ou qual preferéncia de grupos sociais. Os Casteldes, em frente @ Brasserie, que subsiste, era um bar da rua Sao Bento, na Praga Antonio Prado, que toda gente REVISTA DEHISTORIA -N°8 VITOR EDUFES —1° SEMESTRE/T999. 109 timbrava em chamar ainda pela antiga denominacao de largo do Rosdrio. Ficava exatamente no terreno ora devoluio, ou antes, em construcdo. A sua fregiténcia era fina e mista, fazendo parte dela 0 pessoal feminino de alto bordo. Nele ndo punham 0 pé as familias Estas fregitentavam a Brasserie, 0 Progredior, & Rua Direita. Eram, no género, as principais confeitarias da época. Coisa de luxo, sem na realidade nem de longe ser." Todavia essa fonte indica que, naquele ‘momento, a popullago paulistana procurava se ‘modernizar, em concomitdncia com a expan- iio do modo de vida das sociedades européias or toda a parte, A vida elegante e despreocu- pada de uma cidade cosmopolita deveria ppermear o cotidiano da cidade. Nesse sentido, as “fotografias animadas” do cinematégrafo também vinham se juntar ao ambiente inter nacionalizado que se expandia no solo da ci- dade de Sio Paulo, O cinema chegava 2 cida- de em concomitancia ao seu espraiar-se mun- dial, Na crescente cosmopolitizagaio da infra- estrutura urbana, os aparelhos inventados para dar Vida e movimento para as fotogratfias che gavam junto com os modismos, as novidades, as noticias € os boatos oriundos das nagdes “mais civilizadas”. No ano 1895, momento em que nascia o cinematégrafo em terras européias, 0 Correio Paulistano anunciava, a thulo de curiosida- de, a presenga dos maquinismos relacionados as imagens em movimento no solo da cidade de Sio Paulo. Tratava-se de aparelhos que nao atingiam o grau de reproduiibilidade técnica das imagens tao perfeita quanto a do cinematégrafo dos Lumiére, mas que, entre- tanto, tal com este, apresentavam um conjun- to de desenvolvimento de solugdes técnicas para a captacdo e reprodugilo de imagens em movimento”: Exhibigdes Electricas “Recebemos convites para assistiras cexhibigdes dos apparelhos electricos de Edison, 0 phonographo ¢ 0 Kinetoscopio, que o st. Frederico Figner acaba de trazer a S, Paulo. Esses dois modernos e curiosos inventos acham-se na Paulicéia, ‘onde jé estio funcionando. Para ver o kinetoscopio e ouvir 0 phonographo apenas se paga a ‘queintia de mil réis.”™4 Ademais, logo 0 aparelho francés che- garia ds terras brasileiras. Se as primeiras exi- bigdes das imagens em movimento por ele projetadas j4 podiam ser apreciadas no Rio de Janeiro em 1896, poucos meses apés 0 sucesso de suas primeiras exibigdes na Eu- ropa, 0 cinematégrafo, tal como tinha ocor- tido em relagao a eletrificagaio e aos bondes clétricos*, ndo tardaria a chegar a So Pau- Jo, Conforme assinala Ernani da Silva Bru- no, 0 cinematégrafo chegow a cidade nos primérdios do século XX, estabelecendo-se, simultaneamente, nas 4reas do Arouche e do nicleo central da cidade, Na primeira déca- da do século XX, quando os bondes elétri- cos da Light jé percorriam as ruas da cidade 110 REVISTA DEHISTOTRA™-NP—-VITGRVEDUFES —-SEMESTFE/IG29 de Sio Paulo desde o ano de 1901, 0 cinemat6grafo fazia sua estréia no solo da cidade, tornando-se mais um elemento a compor a configuracdo da modernidade na cotidiana e demandando novas atitudes € comportamentos sociais, pois, na ladeira de Si Joao, j4 funcionavam o Bijou ¢ 0 Mignon e, no Arouche, 0 High Life™. | Essas primeiras instalagdes de cinemat6grafos eram feitas em barracées de zinco improvisados, onde eram postos os pe- rigosos aparelhos projetores, providos de “ar- cos voltaicos”, que implicavam o risco de inc€ndios* e cujos efeitos sobre a tela de | pano braneo deviam ser constantemente combatidos com esguichos d’agua pelos organizadores dos espeticulos®, Além do mais, também as confeitarias de luxo ofere- ciam sessdes cinematogréficas gratuitas aos seus clientes’. No ano 1907, anunciava-se a presenga do cinemat6grafo em suas primei- ras exibigdes na cidade de Sio Paulo: | Empreza Cinematographica “No vasto saliio da “Rotisserie Sportman” encetou hontem esta. | empresaa série de espectaculos, que | pretende dar nesta capital | © apparetho, importado por | distinctos mogos da nossa socie- dade, 6, realmente, 0 mais perfeito que se tem exhibido entre nés, quer pelanitidez das vistas apresentadas, ‘que pela escolha das mesmas. | © bem organizado programma agradou francamente & numerosa | assistencia, No haviana sala um s6 lugar vago, | 0 que faz crer no mais franco successo da empresa." Depois de passados alguns dias, voltava- se aanunciar mais uma nova exibigao do ma- ravilhoso aparelho em Sao Paulo, desta vez um espetculo de gala, que teria, como pla- téia convidada, as mais eminentes personali- dades da sociedade paulistana, da imprensa citadina e altas autoridades do Estado: ‘A Empreza Cinematographica Paulista, que se acha installada no salio nobre da Sportman” dard, amanhi, as 8 € meia da noite, um espectaculo de gala offerecido ao governo do Estado e & imprensa paulista. De nossa parte agradecemos a gentileza captivante da importante cempreza, que nos distingui.com um delicado cartéo-convite.” Com efeito, o cinematégrafo viera para ficar. Poucos meses depois, em dezembro daquele mesmo de 1907, a presenga do novo aparelho era assinalada, também pelo Correio Paulisiano, como um fato corriqueiro da pai- sagem paulistana, enfim, como um novo ele- mento moderno na cidade cosmopolita, no- vidade que ja estava plenamente integrada vida cotidiana dos paulistanos: A calmaria “Hontem S, Paulo teve um dia feroz. de calor e calmaria. A chuva cahida pela manhii encheu FREVSTADE HSTORIA N= VITGRUA:EDUFES- 1°SEMESTRE/1909 iit de humidade 0 ambiente e depois veio um calorie abafadigo, terrivel, chamando para a rua, para os Jardins, toda a gente que poude andar Sob os platanos, os lindos platanos da Praca da Reptiblica, havia grupos de mogas em costumes claros. Os bondes desciam repletos para a (ad. No Viaducto um espesso magote olha estarrecido os quadros do ‘cinematographo. Mas o calor era implaccivel e a calmaria mais pesada immobitizava a fronde das arvores."* Dessa maneira, a populago paulistana logo se inteirou da novidade. Se as primeiras exibigées ocorreram em barracées de zinco improvisados em salas de exibigtio ou, ainda, em feiras e quermesses a0 ar livre, como na Europa", como se pode inferir por essa noti- cia do Correio Paulistano, que relata as suas exibigdes em espagos abertos, uma vez que cla se reporta & visio “estarrecida” do “es- peso magote” de espectadores que aprecia- vam 0 cinematégrafo no espaco piblico Via- duto do Ché, aliés, um dos simbolos da pu- janga da cidade desde seu aparecimento em 1892, logo haveria muitos outros locais de exibi¢ao espalhados pela cidade, ainda que, inicialmente, esses espacos também nao fos- sem permanentes. Em suas reminiseéneias de infancia, © memorialista Jorge Americano retratou da se- guinte maneira os comegos do cinemat6grafo © de suas exibigdes na cidade de Sao Paulo: “(o.) Rua 15 de Novembro: uma ccampainha na porta e um homem sgritando: ‘Vai comegar! Quinhentos ris para adultos e duzentos réis para ctiangas, com direito a pesca maravilhosa! Vai comegar!" Na ante~ sala havia uns sarrafos cobertos de ano, fingindo um pequeno tanque furado no meio e alguém escondido dentro. A crianga pegava numa vara e anzol, € © homem, li de dentro, depois de ouvir o outro, que gtitava de fora: ‘E menino!", amarrava um macaquinho de arame enrolado em 1a de bordar. Se menina, amarrava uma bonequinha, tambsém de arame e I. Lé dentro, a sala retangular, com cadeiras austriacas. Molhavam 0 ano com esguicho de jardim ¢ comegava: um trem passando a ponte, um batalhdo, uma procissi0, tudo tremendo, tremendo rompendo-sea fitaa todo o momento. Havia cabegas fotografadas mais perto, que tomavam a tela t6da, Cabecas de assistentes retardatirios passavam pela frente eintereeptavam, a projegao fazendo sombra. (.JA0 que se v8, no era cinema permanente, Penso que o exibidor Possufaasfitas, eas exibiade cidade ‘em cidade, Nao parou mais de um més naquele salio pegado a confeitaria Pauticéia, que depois se tomou no bar Progredior, lugar onde cst agora o Banco do Canadé, na | rua 15 de Novembro," 112 REVISTA DE HISTORIA —N'8- VITOR EDLFES— 1° SEMESTRE!T O09 Todavia, logo a novidade se instalaria em locais fixos de exibigéo. Segundo nos in- forma Inimé Simdes, também naquele ano de 1907, estabelecia-se a primeira sala re- gular de exibigdes, que foi a do Bijou-Palace, naesteira da qual apareceriam iniimeros ou- tros locais fixos de exibicao, em especial, aqueles localizados nas ruas do Triangulo, no centro da cidade™. As viagens da imagi- ago ¢ otimismo ingénuo proporcionados pelas cenas mudas dos novos espetéculos invadia acidade, e a novidade das “imagens em movimento” projetava suas luzes sobre ‘© cosmopolitismo de Silo Paulo, empolgan- do as multidées. Naquele momento, o cinema espraiava-se pelo mundo sob a égide da sociedade industri- al e das multiddes adensadas nos centros ur- banos, pois “a apresentagito do movimento em imagens visuais se libertava da sua apresen- tagiio imediata e ao vivo. E, pela primeira vez na histéria, 0 teatro ou 0 espetdculo estavam livres das restrigdes impostas pelo tempo, es- | aco enaturea fisica do abservador,parando. | ‘falar dos timites do palco em relagio ao uso dos efeitos. O movimento da cdmera, a varia: | bicidade de seu foco, 0 espectro ilimitado dos truques fotograficos e, acima de tudo, a possi- bilidade de cortar a tira de celuldide — que registra tudo ~ em pedagos e montd-los ou remonté-los & vontade tormaram-se evidentes ¢ foram imediatamente explorados pelos rea- lizadores, que raramente tinham qualquer in- teresse ou afinidade com as artes de vanguar- da, Até agora, nenhuma arte representa to bem quanto o cinema as exigéncias de um tri- nfo espontdneo de um modemnismo ariistico inteiramente nao tradicional."™. ‘O cinema chegavaa Sao Paulo como uma, nova arte e como uma indtistria, O espraiar- se das salas de exibigiio pela cidade deu-se velozmente em Sao Paulo. Como assinala Ernani da Silva Bruno, sabemos que, em 1912, funcionavam, na regido da érea do ni- cleo central da cidade, pelo menos 3 salas de exibigo, pois ali funcionavam, na rua Sio Joao, o Bijou Theatre; na rua de Sao Bento, 0 Radium; e o Iris Theatre, na rua 15 de No- vembro. Nos anos que se seguiriam, iriam surgir outros cinemas na regidio central da ci- dade e em diversos bairros da cidade.* A penetraco dos espetculos filmicos ¢ a mul- tiplicagio das salas de cinema na cidade fazi- ‘am parte da infra-estrutura moderna que es- tava surgindo na cidade cosmopolita, Essa presenga do cinema em Sao Paulo se configurava entre os ritmos sociais que, entre o trabalho e o lazer, vingavam na cida- de cosmopolita, moldando novas sociabilida- des e formas individuais de comportamento de sua populagao. Zélia Gattai, ao relembrar sua infancia, no perfodo da segunda década deste século, relata-nos que 0 cinema era 0 ponto alto da programag3o semanal de sua familia, ap6s as tarefas estafantes a que esta- vam sujeitas as mulheres depois de longos dias de trabalho doméstic “O cinema representava 0 ponto alto de nossa programagdo semanal. Préximo a nossa casa, iinico do bairro, o Cinema América oferecia, todas as quintas-feiras, uma “soiree das mogas”,cobrando as senhoras e senkoritas apenas meia-entrada, Era nessas noites EVISTA DEHISTORIAN°6- VITORIA:EDUFES— 1° SEMESTRE!TSO9 113 que mamde ia sempre, levando consigo as trésfithas: Wanda, Vera € eu, e também Maria Negra, que a bem dizer era quem mais ia, adorando filmes e artistas, ndo abrindo mao de seu cinema por nada do mundo. Muitas vezes, chegava mesmo a ir sozinha. Os ‘meninos nééo perdiam as matinés de domingo. Papai néo se interessava por cinema, preferia 0 teatro, Speras e operetas.”** Os filmes projetados nas telas de pano branco pelo cinematégrafo imiscuiam-se cada vez mais na vida dos individuos, ritmando as sociabilidades da cidade moderna, hé tempos afeitos as suas exibigdes, bem como as aglo- meragdes de pessoas que eles proporciona- vam. Jorge Americano, ao relatar os namo- ros entre os rapazes e mogas da cidade de Sao Paulo, deixa-nos vislumbrar os ritmos nuances que o flirt entre mogas casadoiras 8 candidatos a namorados adquiriam em face das exibigdes dos filmes, que, tal como um ccronémetro preciso, marcavam os seus encon- tros “fortuitos”, mediados pelos olhares se- (Cada dia mais a Vida cotidiana na cidade de Sao Paulo ligava-se a um cosmopolitismo que era perpassado pelo universo de luzes e movimentos proporcionados pelos maquinis- mos ¢ fios elétricos. Vivia-se em uma socie- dade em que os recursos teenol6gicos imbri- cavam-se com os ajuntamentos das pessoas em solo urbano para promover e sorver os encantamentos proporcionados pelas emo- (es que cercavam os novos padrdes de com- portamento estimulados pela vida modema e Teproduzidos nas telas dos cinemas. Até mes- mo aqueles chegados de terras distantes e que falavam linguas diferentes, mas que estavam acostumados & linguagem filmica devido ao espraiar-se da industria cinematogratica pelo mundo, podiam experimentar sensagdes de ser parte integrante da cidade cosmopolitaem formagéo. As salas de cinema da cidade de ‘So Paulo eram locais onde até um recém- chegado de terras estrangeiras poderia sentir- seem casa, j4 que, mesmo nfo compreenden- do os letreiros que marcavam as passagens dos filmes mudos, 0s ritos que cercavam a exibigtio cinematogréfica e a linguagem das imagens em movimento Ihe eram plenamen- te familiares™, Na cosmopolita cidade que estava emer- gindo nas terras do planalto, multiplicavam- se as salas especializadas de exibicao cine- matogréfica, Espetéculo dirigido para as gran- des massas, sta presenga na cidade de Sio Paulo denotava a modemidade da sociedade paulistana, de modo que viria a instigar cada dia mais 0s escritores e jomalistas da cidade. O escritor Guilherme de Almeida, pouco menos de 13 anos depois de transcorridas aquelas primeiras exibicdes de cinematégrafo em Sio Paulo, na “Rotisserie Sporman”, descrevia a “obessio cinematogriffica” que se apossara do espfrito dos paulistanos, Os en- cantamentos ¢ prodigios do cotidiano da vida moderna de So Paulo se faziam presentes na cidade, O cinema era um Iidimo representan- te da modemnidade em solo paulistano: Tal € a obsessio cinematogrifica. Nio falta por e& quem viva para 0 114 FEVSTADE HSTORA™-N°B- VITOR EDUFES— cinema, banalizado e materializado assim como 0 artoz doce ea marmelada. Nao escasseiam também os que, ndio contentes com isso, vivem para além das telas e das fitas... Cimulo da abstracio, armando-se em lindas cabecinhas cinematégrafos ideais em que se projetam — projegdes de projeySes — reminiscncias de filmes e vidas inteiras de atores ¢ atrizes, mediocres ¢ nulos na generalidade. E nesses cinemas de cinemas, onde hd sempre a meia-luz ¢ a lampada misteriosa de uma idéia central, rompem dramas e paixdes rebentam, como no outro cinema, Hei quem prosseguindo nesse ardor, traga ao peito medalhies com herdicas efigies norte-americanas. E-6 maior de santas bisavozinhas que se foram morrendo no seu quarto, ao pé do sagrado nicho da Senhora das Dores! ~ Existe mais quem traga & cabeceira, em lugar do antigo Santo Antonio, 0 descabelado retrato de George Walsh." cinema estava voltado para a “diver- sfo popular” dentro da ascendente cultura de ‘massa que espelhava as novas formas de vida dos efervescentes centros urbanos. Na cida- de, 0s individuos experimentam o fascinio da mudanga, que encama a experiéncia vital da modemidade na promessa de aventura, de poder, de crescimento, de transformagio, de urbana, acelera-se a experiéneia do tempo, a vida social se intensifica com a circulagao de mercadorias, objetos ¢ principalmente pesso- as. Eo novo espaco da modernidade que ten- de a promover a dissolugdo dos espagos onde estavam enraizados os hébitos e a tradigao. O cinema € 0 espago Isdico que incorpora os novos movimentos das ruas, dos deslocamen- tos répidos, dos sistemas de transportes, da energia, das maquinas, das construgdes de ferros, do trem, do automével, da velocida- de, do sonho.” Com efeito, a diversio das massas ja se tornara uma de suas caracteristicas, desde as suas primeiras projegdes em espagos puibli- os. Aos poucos o cinema vai sendo incorpo- rado ao discurso da cultura dominante e eru- dita, para se tomar, mais adiante, um movi mento integrante dessa cultura. Era a modernidade como uma experiéncia histé- rica especifica da cultura, que procurava li- dar com as transformagées das esferas tecnolégicae econémica, Sua incursio na vida social dos centros urbanos niio deixou de eri- ar polémicas e divergéncias no que diz res- peito ao seu significado bem como a sua fi- nalidade, positiva ou negativa, em diversos setores sociais, desde os educadores até 0 pré- prio meio artistico. De inicio, a preocupagdio maior era a.ca~ pacidade de influéncia do cinema na vida moral das pessoas, 0 que polarizou discus- ses por um bom tempo. Abrem-se novas al- ternativas do que deveria ser uma boa utili- zaco do cinema, reservando-Ihe a funcio de ajudar nos direcionamentos morais e eduea- autonomia de pensamento perante a moral,a_| cionais das pessoas. Em meio a toda essa dis- EVISTADE HSTORIA -N°@- VITOFIA: EDUFES — 1° SEMESTFE/T999 115 cussio, uma outra polémica surge em outro campo, apesar de estar sempre presente mas relegada ao segundo plano diante da questo ‘moral: a discussio da questio estética da nova Jinguagem cinematogréfica, Os anos 20 trazem os primérdios de uma critica cinematogréfica, juntamente com pre- ocupagdes sobre a estética € a teoria sobre o cinema, em revistas especializadas, difundi- das a partir da Franca. O cinema ganha legi- timidade quando passa a ser objeto de aten Ho de eruditos, intelectuais e artistas diver- sos. A publicagao de um maior nimero de revistas sobre cinema, na década de 20, € pa- ralela ao desenvolvimento da critica nos jor- nais e também em revistas nao especializadas. A concepedo de uma lingua- gem critica do cinema surge paralelamente a0 maior desenvolvimento da indistria ci- nematogrifica americana, que passa.a se pre- ‘ocupar com a depuragdo da téenica e, con- seqiientemente, com a boa formago de seus manipuladores, cineastas e técnicos. Para isso, so criados cursos em universidades bem como livros com orientagdes sobre a lin- ‘guagem cinematogréfica. No Brasil, eram oferecidos cursos por correspondéncia baseados nessas publica- ‘ges sobre cinema, ao mesmo tempo que a “eritica’” também comegava a se apropriar das ligdes © modelos ensinados nesses livros. As preocupagées sobre cinema dessas publi- cagdes especializadas so diversas. Muitas vezes, estio presas A questtio moral e dela no conseguem se desvencilhar facilmente, tal como a revista “A Tela” (1919-1921) Outras, como a revista “Paleo e Telas” (1919-1921), conseguem estabelecer uma linguagem critica muito proxima da lingua- gem artistica ao tratar do assunto, Nessa tl- tima, os seus articulistas se auto denomina- vam “criticos de arte”. As duas revistas ™mencionadas sio exemplos representativos de duas tendéncias opostas e nos oferecem © esbo¢o do tipo de critica existente no Bra- sil até o final da década de 20. Assim, por exemplo, a revista modernis- ta Klaxon, que nasce apés a Semana de Arte Moderna de 1922, capta a articulagdo entre a modernidade e o horizonte tecnolégico repre- sentado pelo cinema, Em seu manifest gural, traz como referéncia os nomes de Carlito © Mutt & Jeff. Isto por si s6 mostra a ligagdo que ela estabelece entre as “imagens ‘em movimento” das telas e a arte moderna, mas, em seus textos, a importancia do cine- ‘ma para a constituigaio de uma estética de fato contempordnea ao movimento modemista so- bressai claramente. Em um pardgrafo exclu- sivo para tratar da questiio do modernismo do cinema, a revista anuncia que au Klaxon sabe que 0 cinematographo existe. Pérola White & preferivel a Sara Bernhardt. Sarah €a tragédia, romantismo sentimental e technico. Pérola € raciocinio, instrucgéo, esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século 19. Pérola White = século 20. A cinematographia é a criagéo artistica mais representativa da nossa época. E preciso observar-the aligao.' Assim, entre filmes e sonhos, o cinema 116 REVISTA DE HISTORIA -W"8 - TOMA: EDUFES 1° SEVESTRENT999 | | participava intensamente do espeticulo mo- derno da vida de uma cidade cosmopolita que crescia nas terras do planalto ao sabor dos ritmos ¢ temporalidades da expansio do sistema capitalista, imiscuindo-se nos recan- tos mais intimos do cotidiano de seus habi- tantes. Fruto de um maquinismo que extrapolou os desejos mais Ioucos de exibi- co acalentados pelas Exposigdes Universais do século passado, sintese das aplicagses tecn6logicas da Ciéncia na vida diétia, filha do adensamento populacional de milhares ou milhdes de pessoas que se aglomeravam nas cidades, da extrema fluidez das necessida- des ¢ dos desejos que movimentayam esas massas humanas em meio aos fios elétricos e as luzes féericas das salas de exibigées ci- nematogrificas, bem como dos fluxos que perpassavam a reprodugao de seu cotidiano nacidade, feone inconteste da modernidade ¢ da formagio de um imenso mercado mun- dial de consumo de bens e servigos, a arte © a industria do cinema vieram para ficar. Con- figurava-se, assim, mais uma tradigio da modernidade em terras brasileiras! Sto Paulo saudava a modernidade dando vivas aos seus movimentos acelerados ¢ aos encantamen- tos de seu abraco tentacular! Notas 1 SEVCENKO, Nicola, Literatura como miso tensdes sociaise credo cultural na Primeira Repiblca, 3. ed. So Pato: Edtora Brasilien, 1989. p.47 2 SEVCENKO Nicolau, A copita irradiance: teenica, rims eritas dori. i: SEVCENKO Nicolau (rg). Histéra da vida privada no Brasil Repiilca: da belle

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