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be Identidade e diferenga: uma introdug¢ao tedrica e conceitual Kathryn Woodward ! Introdugao : Oescritor € radialista Michael Ignatieff contaa seguinte hist6ria, a qual se passa no contexto de um pais dilacerado pela guerra, a antiga lugoslavia: ‘So quatro Foras da manha. Estou no posto de comando da milicia sé:via local, em uma casa de fazenda abandona- da, a250 meiros da linha de frente croata... nio na Bésnia, ras nas zonss de guerra da Grofcia central. O mundo nio est mais olsando, mas toda noite as milicias eroatas © sérvias trocam tirose, is vezes, pesados ataques de bazuca. Esta € uma guerra de cidade pequena. Todo mundo co- nhece todo mundo: eles foram, todos, Xescola juntos; antes da guerra, alguns deles trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda noite, eles se comu- nicam pelo ridio “faixa do cidadio” e trocam insultos tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar s» matar uns aos outros. Estou falando com soldados sérvios —reservistas cansados, de meia-idade, que preferiam estar em casa, na cama. Estou tentando compreender por que vizinhos comecam a se matar uns aos outros. Digo, primeiramente, que nfo consigo distinguir entre sérvios croatas. “O que faz voce: pensarem que sio diferentes? ‘Ohomem com quem estou falando pega um mago de ef ros do bolso de sua jaqueta edqui. “V8 isto? Sio cigarros sérvios. Do otro lado, eles fumam cigarros croatas.” “Mas eles sio, ambos, cigarros, certo?” “Vocés estrangeiros nfo entendem nada” - ele dé de ‘ombros e comeca a limpar a metralhadora Zastovo. Mas a pergunta que eu fiz incomoda-o, de forma que, alguns minutos mais tarde, ele joga a arma no banco ao lado e diz: “Otha, a coisa € assim. Aqueles croatas pensam que sio melhores que nds. Eles pensam que sio europeus finos e tudo o mais. Vou Ihe dizer uma coisa. Somos todos lixo dos Baleds” (Ignatieff, 1994, p. 1-2) Trata-se de uma histéria sobre a guerra e 0 conflito, desenrolada em um cenfrio de turbuléncia social e politica Trata-se também de uma histéria sobre identidades. Nesse cendrio mostram-se duas identidades diferentes, depen- dentes de duas posigdes nacionais separadas, a dos sérvios eados croatas, que sio vistos, aqui, como dois povos claramen- teidentificéveis, aos quais os homens envolvidos supostamente pertencem — pelo menos é assim que eles se véem. Essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbélicos pelos quais elas sio representadas. [a representagéo atua simbolicamente para classificar 0 mundo e nossas relagdes no seu interior(Hall, 1997a). Como se poderia utilizar a idéia de represéntagao para analisar a forma comoas identidades sio construfdasnesse caso? Exami- nemos outra vez a historia de Ignatieff.|O que é visto como sendo a mesma coisa e 0 que é visto como sendo diferente nasff duas identidades — a dos sérvios ¢ a dos croatas? Quem é incluido e quem 6 exclufdo? Para quem esté disponivel a identidade nacional sérvia enfatizada nessa hist6ria?, | ‘Trata-se de povos que tém em comum cingiienta anos de unidade politica e econémica, vividos sob o regime de Tito, na nagio-estado da Iugoslavia. Eles partilham o local e diversos aspectos da cultura em suas vidas cotidianas. Mas © argumento do miliciano sérvio é de que os sérvios e os croatas sao totalmente diferentes, até mesmo nos cigarros que famam. A prinefpio, parece nao existir qualquer coisa em comum entre sérvios e croatas, mas em poucos minutos ohomem esté dizendo a Ignatieff que sua maior queixa contra seus inimigos & que os croatas se pensam como sendo melho- res que 0s sérvios, embora, na verdade, “sejam os mesmos": segundo ele, nao ha nenhuma diferenca entre os dois 2 Essa hist6ria mostra que a identidade é relacional. A ntidade sérvia depende, para existr, de algo fora dela: a “Nf saber de outra identidade (eroscia), de uma identidade que ela Q nifo & que difere da identi ia, mas que, entretanto, dade s forece as condigées para que ela exista. A identidade sérvia se distingue por aqulo que ela nao é. Ser um sérvio é ser um “nao-croata’ A identidade 6, assim, marcada pela diferenga. Essa marcagio da diferenga nfo deixa de ter seus pro- blemas. Por um lado, a assergio da diferenca entre sérvios e croatas envolve a negagio de que nio existem quaisquer similaridades entre os dois grupos. O sérvio nega aquilo que ele percebe como sendo a pretensa superioridade ou van- tagem dos croatas, os quais so, todos, reunidos sob 0 guar- da-chuva da identidade nacional croata, constituindo-os, assim, como estrankos € como “outros”. A diferenga é sus- tentada pela excluséo: se voce € sérvio, vocé néio pode ser ‘eroata, e vice-versa. Por outro lado, essa afirmagéo da dife- renga 6 problematica também para o soldado sérvio, No nivel pessoal, ele esti certo de que os croatas nao so melhores que 0s sérvios; na verdade, ele diz que eles so a mesma coisa. Ignatieff observa que essa “mesmidade” é o produto da expe- rigncia vivida e das coisas da vida cotidiana que os sézvios e os croatas tém em comum. Essa disjungio entre a unidade da > } identidade nacional (que enfatiza 0 coletivo “nés somos todos ( sérvios”) ¢ a vida cotidiana cria confusio para o soldado que parece se contradize: ao afirmar uma grande diferenga entre_| 0s sérvios © 08 croatas ¢, 0 mesmo tempo, uma grande simila- ridadle — “somos todos lixo dos Bales” _Aidentidade 6 marcada por meio de simbolos; por exem- plo, . pelos préprios cigarros que sao fumades em cada lado. oO C Existe uma associacio entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa. O cigarro funciona, assim, neste caso, como um significante importante da diferenca e da identidade e, além disso, como um significante que é, com freqiiéncia, associado com a masculinidade cangio dos Rolling Stones, “Satisfaction”: pode ser um homem porque que eu (tal como na “Bem, ele nao nio fuma os mesmos cigarros [Well he can't be a man ‘cause he doesn't smoke the same cigarettes as me). © homem da milicia sérvia é expl- cito quanto a essa referéncia, mas menos direto quanto a outros significantes da identidade, tais como as associa. gbes com a sofisticacdo da cultura européia (ele fala de “europeus finos”), da qual so, ambos, sérvios e croatas, excluidos, e a inferioridade da cultura balcdnica que & implicitamente, sugerida como sendo sua antitese. estabelece uma outra oposi¢io, Isso pela qual aquilo que a cultura baleanica tem em comum é colocado em contras. te com a cultura de outras partes da Europa. Assim, a. construcao da identidade é tanto simb6lica quanto social. “para alirmar as diferentes identidactes tem causas onseqiiéncias materiais: neste exemplo isso é visivel no conflito entre os grupos em guerra e na turbuléncia e na e desgraca social e econémica que a guerra traz. C_ desgrag que a gi Observe a freqtiéncia com que a identidade nacional é mareada pelo genero. No nosso exemplo, as identidades hacionais produzidas so masculinas e estéo ligadas a con. cepedes militaristas de masculinidade. fazem parte desse cenério, As mulheres néo embora existam, obviamente, outras posigoes nacionais e étnicas que acomodam as mu. theres. Os homens tendem a construir posigdes-de-sujeito para as mulheres tomando a si préprios como ponto de referéncia. A tinica mengio a mulheres, neste caso, é as “garotas” que eles “namoravam”, ou melhor, que foram “namoradas” no passado, antes do surgimento do conflito. 10 CO} identidadeé As mulheres sao os significantes de uma identidade mascu- lina partilhada, mas agora fragmentada e reconstruida, for mando identidades nacionais distintas, opostas. Neste mo- mento hist6rico especffico, as diferencas entre os homens so maiores que quaisquer similaridades, uma vez que o foco esti colocado nas identidades nacionais em conflito. A cada pela diferenga rece que aliu- “) mas diferengas —neste 08 étnicos = si ZomorTmais importantes que outras, especialmente em luga-~ Tes particulares e em momentos particulares vistas. Em outras palavras, a afirmagao das identidades nacio- nais 6 historicamente especifica. Embora se possa remontar as rafzes das identidades nacionais em jogo na antiga Iugos- lavia & histéria das comunidades que existiam no interior daquele territ6rio, o conflito entre elas surge em um mo- mento particular. Nesse sentido, a emergéncia dessas dife- rentes identidades é hist6rica; ela esté localizada em um ponto especifico no tempo. Uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicagdes ¢ por meio do apelo a antecedents histéricos. Os sérvios, os bésnios os croatas tentam reafirmar suas identidades, supostamente perdidas, buseando-as no passado, embora, ao fazé-lo, eles possam estar realmente produzindo novas identidades. Por exemplo, os sérviosressuscitaram e redescobriram acultura sérvia dos guerreiros ¢ dos contadores de histérias - os Guslars da Idade Média ~ como um elemento significativo de sua hist6ria, reforgando, por esse meio, suas atuais afir- mag6es de identidade. Como escreve Ignatieff em outro local, “os senhores da guerra sio importantissimos nos Bal- cas; diz-se aos estrang nossa histéria..” e vinte minutos mais tarde ainda estamos ouvindo hist6rias sobre o rei Lazar, os turcos e a batalha de Kosovo” (Ignatieff, 1993, p. 240). A reprodugdo desse pas- sado, nesse ponto, sugere, entretanto, um momento de cris eiros: ‘voces tém que compreender e nfo, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido e fixo na construgao da identidade sérvia. Aquilo que parece ser simplesmente um argumento sobre o passado e a reafir- magio de uma verdade hist6rica pode nos dizer mais sobre a nova posigéo-de-sujeito do guerreiro do século XX que est tentando defender e afirmar o sentimento de separagio ede distingao de sua identidade nacional no presente do que sobre aquele suposto passado. Assim, essa redescoberta do passado é parte do processo de construedo da identidade. que esta ocorrendo neste exato momento e que, a0 que parece, é caracterizado por conflito, contestagio e uma possivel crise Esta discussao da identidade nacional na antiga lugos- livia levanta questées que podem ser formuladas de forma mais ampla, para fundamentar uma discussio mais geral sobre a identidade e a diferenga: Por que estamos examinando a questio da identidade neste exato momento? Existe mesmo uma crise da identi- dade? Caso a resposta seja afirmativa: por que isso ocorre? — Por que as pessoas investem em posigées de identida- de? Como se pode explicar esse investimento? a base da discussio sobre essas questdes esté a tensio entre perspectivas essencialistas e perspectivas ndo-essen- cialistas sobre identidade. Uma definigio essencialista da identidade “sérvia” sugeriria que existe um conjunto crista- lino, auténtico, de caracteristicas que todos os sérvios par- tilham e quenao se altera ao longo do tempo. Uma definigao nio-essencialista focalizaria as diferengas, assim como as caracteristicas comuns ou partilhadas, tanto entre os pr6- prios sérvios quanto entre os sérvios e outros grupos étnicos, ‘Uma definic&o nao essencialista prestaria atencdo também as formas pelas quais a definigao daquilo que significa ser um “sérvio” tém mudado ao longo dos séculos. Ao afirmar a primazia de uma identidade — por exemplo, a do sérvio — 12 parece necessério nio apenas colocé-la em oposigao a uma Biitraidentidade que , entio, desvalorizada, mas também eivindicar alguma identidade sérvia “verdadeira’, auténti- fa, que teria permanecido igual ao longo do tempo. Mas Giso 0 que ocorre? A identidade é fixa? Podemos encon- trar uma “verdadeira” identidade? Seja invocando algo que seria inerente 3 pessoa, seja buscando sua “auténti- a fonte na hist6ria, a afirmagio da identidade envolve necessariamente o apelo a alguma qualidade essencial? Existem alternatives, quando se trata de identidade e de diferenca, 2 oposicéo binéria “perspectivas essencialistas ssencialistas”? versus perspectivas nio- Para tratar dessas questdes precisamos de explicagses que possam esclarecer os conceitos centrais envolvidos nessa discussio, bem como de um quadro tedrico que possa nos dar uma compreensio mais ampla dos processos que esto envolvidos na construgio da identidade. Embora es- teja centrada na questio da identidade nacional, a discussio de Michael Ignatieff ilustra diversos dos principais aspec- tos da identidade e da diferenea em geral e sugere como po- demos tratar algumas das quest6es analisadas neste capitulo: 1. Precisamos de conceitualizacées. Para compreender- ‘mos como a identidade funciona, precisamos conceitualiza- Tae dividi-la em sues diferentes dimensées. 2. Com freqiiéneia, a identidade envolve reivindicagées essencialistas sobre quem pertence e quem nao pertence a um determinado grupo identitirio, nas quais a identidade é vista como fixa e imutivel. 3. Algumas vezes essas reivindicagbes esto baseadas na natureza; por exemplo, em algumas versdes da identidade tnica, na “raga” e nas relagdes de parentesco. Mais fre- qiientemente, entretanto, essas reivindicagées esto basea- das em alguma versio essencialista da hist6ria e do passado, 13 OV na qual a hist6ria 6 construfda ou representada como uma verdade imutavel. ( 4:Aidentidade é, na verdade, relacional, e a diferenca ) & estabelecida por uma marcagéio simbélica relativamente a outras identidades (na afirmagio das identidades nacionais, } por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a | diferenca podem incluir um uniforme, uma bandeira nacio- nal ou mesmo os cigarros que séo fumados) Le ~_— 5. A identidade esté vinculada também a condigées — sociais © materiais 1 grupo é simbolicamente mar- cado como o inimigo ou como tabu, isso tera efeitos reais porque 0 grupo ser socialmente exclufdo e teri desvan- tagens materiais. Por exemplo, 0 cigarro marca distingdes que esto presentes também nas relagées sociais entre sérvios e croatas. 6. O social e 0 simbélico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles 6 necessario para a constru- fo e a manutengao das identidades. A marcagio simbélica € 0 meio pelo qual damos sentido a priticas e a relagdes sociais, definindo, por exemplo, quem é exclufdo e quem é incluido. & por meio da diferenciagao social que essas classificagdes da diferenca sao “vividas” nas relagées sociais. 7.A conceitualizacao da identidade envolve o exame dos sistemas classificatdrios que mostram como as relagées s0- ciais sao organizadas e divididas; por exemplo, ela é dividida em ao menos dois grupos em oposigio - “nés e cles” “sérvios e croatas”. 8, Algumas diferencas silo marcadas, mas nesse proce algumas diferengas podem ser obscurecidas; por exemplo, a afirmagio da identidade nacional pode omitir diferencas de classe e diferencas de género. so 9, As identidades nao sio unificadas, Pode haver contra- digées no seu interior que tém que ser negociadas; por 4 i" exemplo, o miliciano sérvio parece estar envolvido em uma dificil negociagio ao dizer que 0s sérvios e os croatas sio os mesmos e, ao mesmo tempo, fundamentalmente diferentes Pode haver discrepancias entre o nivel coletivo o nivel individual, tais como as que podem surgir entre as deman- das coletivas da identidade nacional sérviae as experiéncias que os sérvios partilham com os croatas. cotidiana 10. Precisamos, ainda, explicar por que as pessoas assu- mem suas posigées de identidade e se identifica com elas. Por que as pessoas investem nas posigdes que os discursos daidentidade lhes oferecem? O nivel psiquico também deve fazer parte da explicagéo; trata-se de uma dimensio que, juntamente com a simbdlica e a social, 6 necessaria para ‘uma completa conceitualizagio da identidade. Todos esses elementos contribuem para explicar como as identidades sao formadas e mantidas. 4. Por que 0 conceito de identidade é importante? Uma das discusses centrais sobre a identidade concen- tra-se na tensio entre o essencialismo e 0 nao-essencialis- mo. O essencialismo pode fundamentar suas afirmagdes tanto na hist6ria quanto na biologia; por exemplo, certos movimentos politicos podem buscar alguma certeza na afir- magio da identidade apelando seja a “verdade” fixa de um passado partilhado seja a “verdades” biolégicas. O corpo é um dos locais envolvidos no estabelecimento das fronteiras que definem quem nés somos, servindo de fundamento para a identidade — por exemplo, para a identidade sexual. £ necessério, entretanto, reivindicar uma base biol6gica para aidentidade sexual? A maternidade 6 outro exemplo no qual a identidade parece estar biologicamente fundamentada. Por outro lado, os movimentos étnicos ou religiosos ou nacionalistas freqiientemente reivindicam uma cultura ou uma hist6ria comum como o fundamento de sua identidade. 18 O essencialismo assume, assim, diferentes formas, como se demonstrou na discussio sobre a antiga Iugoslivia, E pos- sivel afirmar a identidade 6tnica ou nacional sem reivindicar uma hist6ria que possa ser recuperada para servir de base para uma identidade fixa? Que alternativas existem a estra- tégia de basear a identidade na certeza essencialista? Seré que as identidades sio fluidas e mutantes? Vé-las como fluidas e mutantes € compativel com a sustentagao de um projeto politico? Essas questoes ilustram as tensbes que existem entre as concepgdes construcionistas e as concep- es essencialistas de identidade. Para justificar por que estamos analisando 0 conceito de identidade, precisamos examinar a forma como a identidade se insere no “circuito da cultura’ bem como a forma como a identidade e a diferenga se relacionam com a discussao sobre a representagio (Hall, 1997). Para compreender o que faz da identidade um conceito téo central, precisamos examinar as preocupagées contempordineas com questdes de identidade em diferentes niveis. Na arena global, por exemplo, existem reocupagGes com as identidades nacionais com as identida., des étnicas; em um contexto mais “local”, existem preocupa- Ses com a identidade pessoal como, por exemplo, com as relagées pessoais e com appolitica sexual. Hé uma discussio que sugere que, nas iiltimas décadas, esto ocorrendo mudangas no campo da identidade - mudangas que chegam ao ponto de produzir uma “crise da identidade”, Em quemedida o que est acontecendo hoje no mundo sustenta 0 argumento de que existe uma crise de identidade e o que significa fazer uma tal afirmagio? Isso implica examinar a forma como as identidacles sio formadas € 05 processos que esti0at Envolvidos. Implica também perguntar em que medidaas identidades sfo Tas ou, de forma alternativa, fluidas e cambiantes, Comecaremos a discussao com o lugar da identidade no “circuito da cultura’. 16 LI. Identidade ¢ representacao Por que estamos examinandoaidentidade ea diferenca? ‘Ao examinar sistemas de representagio, é necessdrio anali- ‘ar a relacéo entre cultura e significado (Hall, 1997). S6 podemos compreender 0s significados envolvidos nesses Sistemas se tivermos alguma idéia sobre quais posig6es-de- sujeito eles produzem e como nés, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. Aqui, estaremos tratando de um outro momento do “circuito da cultura”: aquele em ‘que 0 faco se desloca dos sistemas de representagio para as identidades produadas por aqueles sistemas. QA representagio inclui as priticas de significagio ¢ os sistemas simbdlicos por meio dos quais os significados sao pproduzidos, posicionando-nos como sujeito. E por meio dos significados produzidos pelas representagées que damos sentido 2 nossa experiéncia e Aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbdlicos tornam pos- sivel aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. Arepresentacio, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas ¢ os sistemas simblicos nos quzis ela se baseia fornecem possiveis res- postas as questées: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos ¢ os sistemas de repre- sentacio constroem os lugares a partir dos quais os indivi duos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar Por exemplo, a narrativa das telenovelas ¢ a semidtica da publicidade ajudam a construir certas identidades de géne- ro (Gledhill, 1997; Nixon, 1997). Em momentos particula- res, as promogées de marketing podem construir novas identidades como, por exemplo, o “novo homem das déca- das de 1980 e de 1390, identidades das quais podemos nos apropriar e que podemos reconstruir para nosso uso. A midia nos diz. comodevemos ocupar uma posi¢io-de-sujeito particular ~ 0 adolescente “esperto”, 0 trabalhador em as- censao ou a mae sensivel. Os aniincios s6 serio “eficazes” no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para 0 consumidores e se fornecerem imagens com 0s quais eles possam se identificar. E claro, pois, que a produgio de significados e a produgio das identidades que sio posicionadas nos (€ pelos) sistemas de representagao esto estreitamente vinculadas. O deslocamento, aqui, para uma énfase na identidade 6 um deslocamento de énfase - um deslocamento que muda o foco: da repre- sentagao para as identidades. Q Kenfase na repre papel fagio,¢ o papel-chave da cultura na Snfase na represen /rodugio dos significados que permeiam todas as relagées \\Wixon, 1997). Esse conc: ( Ye sociais levam, assim, au preocupagio com aidentificagao_ to, que descreve o processo pelo qual nos identificamos com os outros, seja pela auséncia de uma consciéncia da diferenga ou da separagao, seja como resultado de supostas similaridades, tem sua origem na psicanilise. A identificagéo é um conceito central na com- preensio que a crianga tem, na fase edipiana, de sua propria situagio como um sujeito sexuado, O conceito de identificagao tem sido retomado, nos Estudos Culturais, mais especifica- mente na teoria do cinema, para explicar a forte ativagao de desejos inconscientes relativamente a pessoas ou a imagens, fazendo com que seja possivel nos vermos na imagem ou na personagem apresentada na tela. Diferentes significados sio produzidos por diferentes sistemas simbélicos, mas esses significados sao contestados e cambiantes. / Pode-se levantar questées sobre 0 poder da repre- sentagio e sobre como e por que alguns significados so preferidos relativamente a outros. Todas as praticas de sig- nificagao que produzem significados envolvem relagdes de poder, incluindo o poder para defini quem é inclufdo e quem é excluido. A cultura molda a identidade ao dar sentido & experiéncia e ao tornar possivel optar, entre as varias iden- P : tidades possi ‘man da Sony (Du G: eis, por um modo eve isle eminilidade loira e distante ou a da mascu- a Be = ¢ sofisticada dos aniincios do Walk- ( y, Hall et alii, 1997). Somos constran- 3g, entretanto, nao apenas pela gama de possibilidades ‘cultura oferece, isto 6, pela variedade de repre: Kentacées simbdlicas, mas também pelas relagies socias. {Como argamenta Jonathan Rutherford, “a identidade marca o encontro de nosso passado com Ses cis, cultural eecondmiea nas quaisvivemos nas com as relagdes econdmicas e politicas de subordinagio ‘e dominacdo” (Rutherford, 1990, p. 19-20) ecem novas formas de se dar 7 Os sistemas simb6licos for Aentido & experiéncia das divisbes e desigualdades sociais e 40s meios pelos quais alguns grupos sio excluidos e estig- izados. As identidades sao contestadas. Este capitulo “omegou com um exemplo de identidades fortemente con- testadas, A discussio sobre identidades sugere a emergén- fia de novas posig5es e de novas identidades, produzidas, micas e sociais cam~ jpor exemplo, em circunstincias econ Diantes. As mudangas mencionadas anteriormente e enfati- zadas no exemplo da antiga Iugoslévia sugerem que pode Thaver uma crise deidentidade? Que mudangas podem estar Scorrendo nos niveis global, local e pessoal, que possam Gustificar 0 uso da palavra “crise”? 2, Existe uma crise de identidade? ‘Quase todo mundo fala agora sobre “identidade”. 4 iden- tidade sé se torna um pooblene: quando esti — apt quando algo que se supde ser fxo, coerente e estivel 6 deslocado pela experiéncia da divida e da incerteza (Mer- ex, 1990, p. 4) “Identidade” © “crise de identidade” so palavras e idéias bastante utilizadas atualmente e parecem ser vistas 19 por socidlogos ¢ teéricos como caracteristicas das socieda. des contemporiineas ou da modernidade tardia. J4 mostra- mos 0 exemplo de uma rea no mundo, a antiga Iugoslévia, na qual se observa o ressurgimento de identidades étnicas nacionais em conflito, fazendo com que as identidades existentes entrassem em colapso. Nesta seco, examinare- mos uma série de diferentes contextos nos quais que sobre identidade e crise d Examinaremos, assim, a globalizagio e os processos associa- dos com mudangas globais, incluindo questées sobre hist6- ria, mudanga social e movimentos politicos. Alguns autores recentes argumentam que as “crises de identidade” sao caracteristicas da modernidade tardia e que sua centralidade atual s6 faz sentido quando vistas no con- texto das transformagées globais que tém sido definidas como caracteristicas da vida contemporinea (Giddens, 1990). Kevin Robins, por exemplo, argumenta que o fend- meno da globalizacéo envolve uma extraordinaria transfor- magio. Segundo ele, as velhas estruturas dos estados e das comunidades nacionais entraram em colapso, cedendo Iu- gara.uma crescente “transnacionalizagio da vida econdmica cultural” (Robins, 1997). A globalizagéo envolve uma interagéo entre fatores econdmicos e culturais, causando mudangas nos padrées de produgio e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas. Essas novas identidades, caricaturalmente simbolizadas, as vezes, pelos jovens que comem hambiirgueres do McDonald's e que andam pela rua de Walkman, formam um grupo de “consumidores globais” que podem ser en- contrados em qualquer lugar do mundo e que mal se distin- guementre si, O desenvolvimento global do capitalismo nao 6, obviamente, novo, mas o que caracteriza sua fase mais recente 6 a convergéncia de culturas e estilos de vida nas sociedades que, ao redor do mundo, sio expostas ao seu impacto (Robins, 1991). 20 idade se tornaram centr: alecore reafirmar algumas identidades nacionais €locais Tevar ao surgimento de novas posicGes de identidade ‘As mudancas na economia global tém produzido uma o das demandas ao redor do mundo. Isso ocorre nao s em termos de bens e servigos, mas também de sreados de trabalho. Reine dos trabalhadores nao 6, famente, nova, mas a globalizagio esté estreitamente aaceleragio da migracao. Motivadas pela neces- de econdmica, zs pessoas tém se espalhado pelo globo, forma que “a migracio internacional é parte de uma o transnacisnal que esta remodelando as socieda- ‘a politica ao redor do globo” (Castles e Miller, 1993, |. A migragio tem impactos tanto sobre o pais de origem into sobre o pais de destino. Por exemplo, como resultado ‘proceso de imigragio, muitas cidades européias apre- ‘exemplos de comunidades e culturas diversificadas. , na Gri-Bretanha, muitos desses exemplos, in- ‘comunidades asidticas em Bradford e Leicester, € s de Londres, ‘ais como Brixton, ou em St. Paul's, em tol. A migracéo produz identidades plurais, mas tam- identidades contestadas, em um processo que é carac- do por grandes desigualdades. A migragéo é um 0 caracteristico da desigualdade em termos de de- nvolvimento. Nesse processo, o fator de “expulsiio” dos 0 fator de “atracao” das dades p6s-industriais e tecnologicamente avangadas. movimento global do capital é geralmente muito mais equea mobilidede do trabalho. “\ au CTO AAGLG Lissa dispersio das pessoas a0 redor do globo produz identidades que siio moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas também desestabilizado. ras] O conceito de didspora (Paul Gilroy, 1997) 6 um dos coficeitos que nos permite compreender algumas dessas identidades — identidades que nao tém uma “patria” e que nao podem ser simplesmente atribuidas a uma tinica fonte, ‘A nogéo de “identidade em crise” também serve para analisar a desestabilizagao que se seguiu ao colapso da ex- Unio Soviética e do bloco comunista do Leste Europeu, causando aafirmagio de novas ¢ renovadas identidades étnicas ea busca por identidades supostamente perdidas. O colapso do comunismo, em 1989, na Europa do Leste e na ex-Unitio Soviética, teve importantes repercussdes no campo das lutas e dos compromissos politicos. O comunismo simplesmente def xava de existir como um ponto de referéncia na definicéo de posigdes politics. Para preencher esse vazio, tém ressurgido’ na Europa Oriental e na ex-Uniao Soviética formas antigas de identificagio étnica, religiosa e nacional. Jana Europa pés-colonial e nos Estados Unidos, tanto ‘os povos que foram colonizados quanto aqueles que os colonizaram tém respondido a diversidade do multicul- turalismo por meio de uma busca renovada de certezas | étnicas. Seja por meio de movimentos religiosos,seja por | meio do exclusivismo cultural, alguns grupos étnicos tém | reagido A sua marginalizagio no interior das sociedades “hospedeiras” pelo apelo a uma enérgica reafirmagio de suas identidades de origem. Essas contestagées esto liga das, em alguns pafses, a afliagbes religiosas, tais como o islamismo na Europa e nos Estados Unidos e 0 catolicisma romano e o protestantismo na Irlanda do Norte. Por outro Jado, os grupos dominantes nessas sociedades também estio «em busca de antigas certezas étnieas — hi, por exemplo, no Le Sethu homulunn & 22 OM IV Iho Unido, uma nostalgia por uma “inglesidade” mais cultu- Thomogénea e, nos Estados Unidos, um movimento Mem retomo aos “velbos bons valores da fama americana [No Reino Unido, os movimentos nacionalistas tém Iuta- afirmar sua identidade por meio da reivindicagao B eva propria lingua, como, por exemplo, no caso do Plaid mu, no Pais de Gales. Ao mesmo tempo que hi a reafir- fo de uma nova “identidade européia”, por meio do fencimento a Unido Européia, travam-se lutas pelo re- Ghecimento de identidades étnicas no interior dos antigos -nagio, tais como a antiga Tlugoslavia. Para lidar com fentagao do presente, algumas comunidades buscam ara um pasado perdido, “ordenado... por lendas ens, por hist6rias de eras de ouro, antigas tradigées, fatos herdicos e destinos dramaticos localizados em pprometidas, cheias de paisagens e locais sagrados...” niels, 1993, p. 5) 1 passado ¢ o presente exercem um importante papel ‘eventos. A contestagao no presente busca justificagao tia criagdo de novas — ¢ futuras — identidades nai indo origens, mitologias e fronteiras do passado. Os is conilitos estio, com freqtiéncia, concentrados nessas feiras, nas quais a identidade nacional é questionada e ifestada. A desesperada produgio de uma cultura sérvia fieada e homoginea, por exemplo, leva & busca de uma Atidade nacional que corresponda a um local que seja sbido como 0 territério ¢ a “terra natal” dos sérvios. JO que se possa argumentar que nao existe nenhuma fidade fixa, sérvia ou croata, que remonte a Idade i (Malcolm, 1994) ¢ que poderia ser agora ressuscita- 4S pessoas envolvidas nesse processo comportam-se Mo se ela existisse e expressam um desejo pela restaura- a unidade dessa comunidade imaginada. Benedict erson (1983) utiliza essa expressao para desenvolver 0 23 argumento de que a identidade nacional é inteiramente dependente da idéia que fazemos dela, Uma vez que nio seria possivel conhecer todas aquelas pessoas que partilham de nossa identidade nacional, devemos ter uma idéia parti- Ihada sobre aquilo que a constitui. A diferenga entre as di- versas identidades nacionais reside, portanto, nas diferentes formas pelas quais elas so imaginadas No mundo contemporaneo, essas “comunidades imagi- nadas” estio sendo contestadas e reconstituidas, A idéia de uma identidade européia, por exemplo, defendida por par- tidos politicos de extrema direita, surgiu, recentemente, como uma reagio A suposta ameaca do “Outro”. Esse “Ou- tro” muito freqtientemente se refere a trabalhadores da Africa do Norte (Marrocos, Tunfsia e Argélia), os quais sio representados como uma ameaga cuja origem estaria no seu suposto fundamentalismo islamico. Essa atitude é, cada vez mais, encontrada nas politicas oficiais de imigragao da Uniao Européia (King, 1995). Podemos vé-la como a proje- gao de uma nova forma daquilo que Edward Said (1978) chamou de “orientalismo” ~a tendéncia da cultura ocidental a produzir um conjunto de pressupostos e representagdes sobre 0 “Oriente” que 0 constréi como uma fonte de fascinagao e perigo, como exético e, ao mesmo tempo, amea- cador. Said argumenta que as representagdes sobre o Orien- te produzem um saber ocidental sobre ele — um fato que diz mais sobre os medos e as ansiedades ocidentais do que sobre a vida no Oriente e na Africa do Norte. As atuais construgGes do Oriente tém se concentrado num suposto fundamentalismo islamico, o qual é construido - “demoni- zado” seria o termo mais apropriado — como a principal e nova ameaga as tradigdes liberais, As mudangas ¢ transformagées globais nas estruturas politicas ¢ econémicas no mundo contemporiineo colocam em relevo as questoes de identidade e as lutas pela afirma- “meio da reivindi fo emanutencio ds identidades nacionais étnicas, Mes- Bee que o passado que as identidades atuais reconstroem ja, sempre, apenas imaginado, ele proporciona alguma Kertera em um clima que € de mudanga, fluidez.e crescente feertera. As identidades em conflito estio localizadas no fnterior de mudangas sociais, politicas e econdmicas, mu- ancas para as quais elas contribuem. As identidades que fo construidas pela cultura sio contestadas sob formas ‘eulares no mundo contemporéneo ~ num mundo que Sepode chamar de p6s-colonial. Este é um perfodo hist6rico ‘caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas fe pelaproducio de novas formas de posicionamento. O que_ ‘€/importante para nossos propdsitos aqui é reconhecer que 4 luta ea contestacio estio concentradas na construgao altural de identidades, tratando-se de um fenémeno que “estf ocorrendo em uma variedade de diferentes cont Enquanto, nos anos 70 e 80, a luta politica era descrita e teorizada em termos de ideologias em conflito, ela se carac- teriza agora, mais provavelmente, pela competigio e pelo conflito entre as diferentes identidades, o que tende a re- forcar o argumento de que existe uma crise de identidade no mundo contemporineo. 2.1, Historias aracteri- 5 conflitos nacionais e étnicos parecem ser zados por tentativas de recuperar € reescrever a hist6ria, ‘como vimos no exemplo da antiga Iugoslavia. A afirmacdo politica das identicades exige alguma forma de autentica- a0, Muito freqiientemente, essa autenticagio é feita por cago da hist6ria do grupo cultural em quest » estara concentrada nas questdes impli- cadas nesse processo. Pode-se perguntar, primeiramente: existe uma verdade historica tinica que possa ser recupera- da? Pensemos sobre o pasado que a indéstria que explora ‘uma suposta heranga inglesa reproduz por meio da venda de mansdes que representariam uma hist6ria passada au- tenticamente inglesa. Pensemos também nas representa- des que a midia faz desse presumido ¢ auténtico passado como, por exemplo, nos filmes baseados nos romances de Jane Austen. Hi um passado inglés auténtico e tinico que possa ser utilizado para sustentar ¢ definir a “inglesidade” como sendo a identidade do final do século XX? A “indis- tria” da heranga parece apresentar apenas uma e tinica versio. Em segundo lugar, qual é a histéria que pesa - a hist6ria de quem? Pode haver diferentes hist6rias. Se exis- tem diferentes versdes do passado, como nés negociamos entre elas? Uma das versdes do pasado é aquela que mostra a Gra-Bretanha como um poder imperial, como um poder que exclui as experiéncias e as historias daqueles povos que a Gra-Bretanha colonizou. Uma histéria alternativa ques- tionaria essa descrigéo, mostrando a diversidade desses grupos étnicos ¢ a pluralidade dessas culturas. Tendo em vista essa pluralidade de posigées, qual heranga histérica teria validade? Ou seriamos levados a uma posigao relativis- ta, na qual todas as diferentes verses teriam uma validade igual, mas separada? Ao celebrar a diferenga, entretanto, nao haveria o risco de obscurecer a comum opressio eco- némica na qual esses grupos estio profundamente envolvi- dos? S.P Mohanty utiliza a oposigio entre “historia” e hhist6rias” para argumentar que a celebracao da diferenga poderia levar a ignorar a natureza estrutural da opressio: A pluralidade , pois, um ideal politico tanto quanto um slogan metodol6gico. Mas hi uma questio ineémoda que precisa ser resolvida, Como podemos negociar entre mi- nha histéria e a sua? Como seria possivel para nés recupe. rar aquilo que temos em comum, no o mito humanista dos atributos humanos que partilharfamos e que suposta- mente nos distinguiriam dos animais, mas, de forma mais nportante, a intersecgio de nossos vi vitios presentes, as inevitavets relagdes entre significado os passadlos e nossos 26 partilhados € significados contestadlos, entre valores € recursos materiais? E preciso afirmar nossas densas pecu- liaridades, nossas diferencas vividas e imaginadas. Mas podemos nos permitir deixar de examinar a questio de como nossas diferencas estio entrelagadas e, na verdade, hierarquicamente organizadas? Podemos nés, em outras palavras, realmente nos permitir ter histériasinteiramente diferentes, podemos nos conceber como vivendo~e tendo vivido ~ em espagos inteiramente heterogéneos e separa- dos? (Mohanty, 1989, p. 13). /‘4s histérias sio realmente contestadas e isso ocorre, Zobretudo, na luta politica pelo reconhecimento das identi ies Em seu ensaio “Identidade cultural e didspora” / (1990), Stuart Hall examina diferentes concepgées de iden- tidade cultural, procurando analisar o processo pelo qual se busca autenticar uma determinada identidade por meio da descoberta de um passado supostamente comum. \0 afirmar ume determinada identidade, podemos bus- car legitimé-la po: referéncia a um suposto e auténtico passado ~ possivelmente um passado glorioso, mas, de qual- quer forma, um pasado que parece “real” — que poderia validar a identidade que reivindicamos. Ao expressar de mandas pela identidade no presente, os movimentos naciona- listas, seja na antiga Uniio Soviética seja na Europa Oriental, ou ainda na Escécia ou no Pafs de Gales, buscam a validagéo do passado em termos de territ6rio, cultura e local. Stuart Hall analisa o conceito de “identidade cultural”, utilizando 0 exem- plo das identidades da didspora negra, baseando-se, empi- ricamente, na representagio cinematografica. Nesse ensaio, Hall toma como seu ponto de partida a questo de quem e o que nds representamos quando fala- mos. Ele argumenia que o sujeito fala, sempre, a partir de uma posigiio hist6rica e cultural especifica. Hall afirma que ha duas formas diferentes de se pensar identidade cultural A primeira reflete a perspectiva jé discutida neste capitulo, na qual uma determinada comunidade busca recuperar a “verdade” sobre seu passado na “unicidade” de un e de uma cultura partilhadas que poderiam, entio, ser re- presentadas, por exemplo, em uma forma cultural como filme, para reforcar e reafirmar a identidade — no caso da inddstria da heranga, a “inglesidade”; no exemplo de Hall, a “caribenhidade”. A segunda concepgio de identidade cultural 6 aquela que a vé como “uma questo tanto de “tornar-se’ quanto de ‘ser™. Isso nfo significa negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que, a0 rei- vindicé-la, n6s a reconstruimos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformaco. Esse pasado é parte de uma “co- munidade imaginada”, uma comunidade de sujei- tos que se apresentam como sendo “nés”. Hall argumenta em favor do reconhecimento da identidade, mas nfo de uma identidade que esteja fixada na rigidez da oposicao binaria, tal como as dicotomigs “nés/eles”, ou “sérvios/croatas”, no exemplo de Ignatieff Ele sugere que, embora seja construf- do por meio da diferenca, o significado nao é fixo, e utiliza, para explicar isso, 0 conceit de, différance de Jacques Derrida. Segundo esse autor, o significado é sempre diferido ou adiado; ele nao é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento. A posigio de Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ao ver a identidade ‘como uma questio de “tomar-se”, aqueles que reivindicam a identidade nao se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de posicionar a si préprios e de reconstruir ¢ transformar as identidades hist6ricas, ‘erdadas de um suposto passaclo comum. historia Gam is 2, Mudangas sociais_) Nio estio ocorrendo mudangas apenas nas escalas glo- bal e nacional e na arena politica. A formagio da identidade ocorre também nos niveis “local” e pessoal. As mudangas glo- 28 pais na economia como, por exemplo, as transformagées nos padrdes de produgao e de consumo ¢ 0 deslocamento do investimento das indistrias de manufatura para o setor de servigos tém um impacto local. Mudangas na estrutura de classe social constituem uma caracteristica dessas mudan- gas globaiselocais. ot J.-L orca, ‘Ascrises globais da identidade tém aver com aquilo.que Emesto Laclau chamou de deslocamento. As sociedades modernas, ele argumenta, nao tém qualquer nticleo ou cen- tro determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, uma pluralidade de centros. Houve um deslocamento dos centros. Pode-se argumentar que um dos centros que foi deslocado é 0 da classe social, nao a classe como uma simples fungio da organizagio econémica e dos processos de produgao, mas z classe como um determinante de todas as outras relacées sociais: aclasse como a categoria “mestra”, que é como elaé descrita nas anélises marxistas da estrutura social. Laclau argumenta que nao existe mais uma tinica forca, determinante ¢ totalizante, tal como a classe no para- digma marxista, que molde todas as relagGes sociais, mas, em vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere nio somente que a luta de classes no é inevitével, mas que nio € mais possfvel argumentar que a emancipagio social esteja nas maos de uma tinica classe. Laclau argumenta que isso tem implicagées positivas porque esse deslocamento indica que ha muitos e diferentes lugares a partir dos quais novas identidades podem emergir e a partir dos quais novos sujeitos podem se expressar (Laclau, 1990, p. 40). As vanta- gens desse deslocamento da classe social podem ser ilustra- das pela relativa diminui¢go da importincia das afiliagdes baseadas na classe, tais como os sindicatos operiirios € 0 surgimento de outras arenas de conflito social, tais como as baseadas no género, na “raca”, na etnia ou na sexualidade. 29 Os individuos vivem no interior de um grande niimero de diferentes instituigées, que constituem aquilo que Pierre Bourdieu chama de “campos sociais”, tais camo as familias, 0 grupos de colegas, as instituigées educacionais, os grupos de trabalho ou partidos politicos. Nos participamos dessas instituigbes ou “campos sociais”, exercendo graus variados de escolhaeautonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaco ¢ um lugar, bem como ‘um conjunto de recursos simbélicos. Por exemplo, a casa é © espaco no qual muitas pessoas vivem suas identidades familiares. A casa 6 também um dos lugares nos quais somos espectadores das representagées pelas quais a midia produz determinados tipos de identidades ~ por exemplo, por meio da narrativa das telenovelas, dos antincios e das técnicas de venda. Embora possamos nos ver, seguindo 0 senso comum, como sendoa “mesma pessoa” em todos os nossos diferentes encontros e interagées, nio é dificil perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos ¢ em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos exercendo (Hall, 1997). Diferentes con- textos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Consideremos as diferentes “identida- des” envolvidas em diferentes ocasides, tais como participar de uma entrevista de emprego ou de uma reuniio de pais na escola, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um centro comercial. Em todas essas situagées, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nos somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas di- ferentes expectativas e restrigGes sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes situagées, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. Em um certo sentido, somos posicionados — ¢ também po- sicionamos a nés mesmos ~ de acordo com os “campos s0- ciais” nos quais estamos atuando. 30 Existe, em suma, na vida moderna, uma diversidade de posigBes que nos estio disponiveis -posigGes que podemos Peapar ou nao. Parece dificil separar algumas dessas iden- tidades e estabelecer fronteiras entre clas. Algumas dessas identidades podem, na verdade, ter mudado ao longo do tempo. As formas como representamos a nés m ‘como mulheres, como homens, como pais, como pessoas trabalhadoras—témmudado radicalmente nos diltimos anos ‘Como individuos, podemos passar por experiéncias de frag mentagio nas nossas relagdes pessoais € no nosso trabalho. Essas experiéncias sfo vividas no contexto de mudancas sociais e hist6ricas, tais como mudangas no mercado de trabalho e nos padres de emprego. As identidades e as Jealdades politicas também tém sofrido mudangas: lealda- des tradicionais, beseadas na classe social, cedem lugar & concepcao de escolha de “estilos de vida” e & emergéncia da “politica de identidade”. A etnia e a “raga”, o género, a sexualidade, a idade, a incapacidade fisica, a justiga social e as preocupacées ecolégicas produzem novas formas de identificagio. As relagées familiares também tém mudado, especialmente como impacto das mudangas na estrutura do ‘emprego. Tem havido mudancas também nas priticas de trabalho e na produgio e consumo de bens e servigos. E igualmente notével a emergéncia de novos padrdes de vida doméstica, o que é indicado pelo crescente ntimero de lares chefiados por pais solteiros ou por mies solteiras bem como pelas taxas elevadas de divéreio. As identidades sexuais também esto mudando, tornando-se mais questionadas e ambiguas, sugerindo mudangas e fragmentagdes que po- dem ser descritas em termos de uma crise de identidade, esmos — A complexidade da vida moderna exige que assumamos ferentes identidades, mas essas diferentes identidades podem estar em conflito. Podemos viver, em nossas vidas pessoais, tensGes entre nossas diferentes identidades quan- 3 do aquilo que é exigido por uma identidade interfere egy as exigéncias de uma outra. Um exemplo 6 0 confit tente entre nossa identidade como pai ou mae e nossa tidade como assalariado/a. As demandas de uma interfape com as demandas da outra e, com freqtiéncia, se cont zem, Para ser um “bom pai” ou uma “boa mae”, devemg estar disponiveis para nossos filhos, satisfazendo suas neees sidades, mas nosso empregador também pode exigit noseg total comprometimento. A necessidade de ir a uma reunj de paisna escola do filho ou da filha pode entrar em contfitg com a exigéncia de nosso empregador para que traball mos até mais tarde. Gontexto ou campo cultural tem seus controles ¢ bivas, bem como seu “imaginério”; isto €, suas de prazer € realizacao. Como sugere Lorde, os Osc sobre heterossexualidade e os discursos racis- Pra algumas familias 0 acesso a esse “imaginério frelacio entre o social eo simbélico. F: possivel sjalmente excluidos da forma que Lorde descreve eos simbolicamente marcados como diferentes? social é simbolicamente marcada, As identida- diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais ifs elas sfo vividas quanto nos sistemas simbélicos os quais damos sentido a nossas pr6prias posicdes. disso € 0 surgimento dos chamados “novos fentos sociais”, os quais tem se concentrado em lutas Outros conflitos surgem das tensées entre as expectati vvas e as normas sociais. Por exemplo, espera-se que as mag. - sejam heterossexuais. Identidades diferentes podem se mo da identidade. Eles tém se caracterizado por construidas como “estranhas” ou “desviantes”. Audre Lo gm o apagamento das fronteiras entre o pessoal ¢ © escreve: “Como uma mie ~ feminista socialista, lésbie spara adaptar o slogan ferninista. negra, de 49 anos —de duas eriancas, incluindo um mening e como membro de um casal inter-racial, com muita free novos movimentos sociais”: o pessoal é politico giiéncia vejo-me como pertencendo a um grupo definida) facordo com Jeffrey Weeks, tem havido um como estranho, desviante ou inferior ou simplesmente er rado” (1992, p. 47). Pode parecer que algumas dessas idens tidades se refiram principalmente a aspectos pessoas da vida, tal como a sexualidade, Entretanto, a forma como igPnero, da palitica lésbica e gay, do ambientalismo e da vivemos nossas identidades sexuais ¢ mediada pelos sige politica do HIV ¢ da AIDS (Weeks, 1994, p. 4). nificados culturais sobre a sexualidade que sao produzi= “novos movimentos sociais” emergiram no Oci- dos por meio de sistemas dominantes de representagao, anos 60 €, especialmente, apés 1968, com a Independentemente de como Lorde decida afirmar sua estudantil, o ativismo pacifista e antibélico e as identidade, por exemplo como mie, sua escolha é cons= direitos civis. Eles desafiaram o establishment e trangida pelos discursos dominantes sobre a heterossexuse arquias burocriticas, questionando principalmen- lidade e pela hostilidade freqiientemente vivida por mies oliticas “revisionistas” e “estalinistas” do bloco sovié- lésbicas. Lorde cita uma gama de diferentes contextos nog &s limitagSes da politica liberal ocidental. As lealda- quais sua identidade é construida ou negociada - seria liticas tradicionais, baseadas na classe social, foram melhor dizer “suas identidades’ finadas por movimentos que atravessam as divisbes lativ repensar da politica, sob o impacto dos novos movi- Mentos sociais e da politica de identidade da geragio Dpassada, com suas lutas em torno da raga e da etnia, do 33 de classe e se dirigiam as identidades particulares de sustentadores. Por exemplo, o feminismo se dirigia egna ficamente as mulheres, 0 movimento dos direitos civis q negros as pessoas negras e a politica sexual s peg lésbicas e gays. A politica de identidade era o que defy esses movimentos sociais, mareados por uma preoeup profunda pela identidade: o que ela significa, og o uma espécie de Imente a todas elas, com histories (Jeffreys, 1985), Hos essencialistas da politica de identidade po- los pelas visbes de algumas: ‘das participantes mnentos do Movimento pela Paz, de Greenham feipantes daquela campanha contra os misseis i Gemavam representar as caracteristicas essen Mmininas da preocupagao com o outro mae ‘essa posigiio como um “confor- pessoas que parteacem a um determinado grand Par te ternal que fazpartedaconstrucio do oumarginalizado. Essa identidade torna-se, assim, Pi da mulher, um principio que o feminism fator importante de mobilizacao politica. Essa politi Mionar” (Delmar, 1986, p. 12). De forma similar, envolve a celebragio da singularidade cultural de y Sativa de questionar as afirmagées de que a determinado grupo, bem como a anilise de sua opress F, & i = lado a a Stefi fualidade 6 anormal ou imoral, tem-se apel especie, Pde-seaplar a dentidde,entretani, ded Te comquceslentiadage formas bastante diferentes. vente determinada. Por um lado, a celebrago da singularidade do gr que é a base da solidariedade politica, pode se traduzir é afirmagdes essencialistas. Por exemplo, tomando comob aidentidade eas qualidades singulares das mulheres, a fo lado, alguns dos “novos movimentos sociais”, © movimento das mulheres, tém adotado uma fao-essencialista com respeito 3 identidade. Eles tém gue as identidades sfo fluidas, que elas nao sto fixas, que chs nao estio presas a diferencas que jentes e valeriam para todas as épocas (Weeks, membros dos “novos movimentos sociais” tém do o direito de construir e assumia responsabilida- ‘Préprias identidades. Por exemplo, as mulheres Tutado pelo reconhecimento de sua prépria @ luta no interior do movimento feminista, resistin- |, 20s pressurostos de um movimento de mulheres (na categoria unificada de “mulher” que, implicita- nelui apenas as mulheres brancas (Aziz, 1992). ratismo relativamente aos homens. Existem, obviaments diferentes formas de compreender e definir essa “sir camente dadas da identidade como, por exemplo, a magio de que o papel biolégico das mulheres como mies torna inerentemente mais altruistas e pacificas. Ou pode basear em apelos & historia quando, por exemplo, as m res buscam estabelecer uma historia exclusiva das m res, reivindicando, nos paises de fala inglesa, uma “he tory” (Daly, 1979), que os homens teriam reprimido, Iss : : implicaria, segundo esse argumento, a existéncia de um ins elementos desses movimentos tém questionado, cultura exclusiva das mulheres — haveria, a0 longo da hist6 ente, duas concepgdes que pressupéem 0 caré- via, algo fixo e imutvel na posigio das mulheres que eb primeira estt besenia'na Glasto uM 35 OF 1 Mery gry te Essa concepgao baseia-se na anilise que Marx fez da relagao entre base e superestrutura, na qual as relagées sociais sio vistas como determinadas pela base material da sociedade, argumentando-se, assim, que as posigdes de género podem ser “deduzidas” das posigdes de classe social. Embora essa andlise tenha 0 apelo de uma relativa simplicidade e da énfase na importincia dos fatores econdmicos materiais como determinantes centrais das posigles sociais, as mu- dangas sociais recentes colocam essa visio em questio. Mudangas econdmicas tais como 0 declinio das indtstrias de manufatura pesada e as transformagées na estrutura do mercado de trabalho abalam a propria definigéo de classe operria, a qual, tradicionalmente, supée operérios mascu: Jinos, industriais e de tempo integral. As identidades basea- das na “raga”, no género, na sexnalidade e na incapacidade fisica, por exemplo, atravessam o pertencimento de classe. O reconhecimento da complexidade das divis6es sociais pela politica de identidade, na qual a “raca’”, a etnia e o gé- nero so centrais, tem chamado a atencao para outras divi- s6es sociais, sugerindo que nao é mais suficiente argumen- tar que as identidades podem ser deduzidas da posicéo de classe (especialmente quando essa propria posigio de classe esta mudando) ou que as formas pelas quais elas séo repre- sentadas tém pouco impacto sobre sua definigéo. Como ar- gumenta Kobena Mercer: “Em termos politicos, as identi- dades esto em crise porque as estruturas tradicionais de per- tencimento, baseadas nas relagées de classe, no partido e na nagio-estado tém sido questionadas” (Mercer, 1992, p. 424). A politica de identidade tem a ver com o recrutamento de sujeitos por meio do processo de formacao de identidades. Esse proceso se da tanto pelo apelo as identidades hege- ral ménicas ~ 0 consumidor soberano, 0 cidadio patristico — sténcia dos “novos movimentos sociais”, a0 quanto pela re! colocar em jogo identidades que nao tém sido reconhecidas, 36 que tém sido mantidas “fora da hist6ria” (Rowbotham, 1973) ou que tém ocupado espacos ds margens da sociedade. segundo desifio de alguns dos “novos movimentos sociais” tem consistido em questionar o essencialismo da ide tidade e sua fixider como algo “natural”, isto é como uma categoria biolégica. A politica de identidade nao “é uma luta entre sujeitos naturzis; é uma luta em favor da prépria expres- sio da identidade, na qual permanecem abertas as possibilida- des para valores politicos que podem validar tanto a diversidade quanto a solidariedade” (Weeks, 1994, p. 12). Weeks argumenta que uma das principais contribuigées da politica de identidade tem sido a de construir uma politica da diferenca que subve-te a estabilidade das categorias biol6gicas ea construgio de oposigdes bindrias. Ele argumenta que os “novos movimentos sociais” historicizaram a experiéncia, enfatizando as diferencas entre grupos marginalizados como uma alternativa a “universalidade” da opressio. Isso ilustra duas verses do essencialismo identititio. A primeira findamen‘aa identidade na “verdade” da tradigao e nas raizes da histéria, fazendo um apelo a “realidade” de um passado possivelmente reprimido e obscurecido, no qual a identidade proclamada no presente é revelada como um produto da historia. A segunda esté relacionada a uma categoria “natural”, fixa, na qual a “verdade” esta enraizada na biologia. Cada uma dessas versdes envolve uma crenga na existéncia e na busca de uma identidade verdadeira. essencialismo pode, assim, ser biolégico e natural, ou hist6- rico e cultural. De qualquer modo, 0 que eles tém em comum é uma concep¢io unificada de identidade. 2.4, Sumario da secao 2 Nossa discussio apresentou visdes diferentes e fre- qiientemente contraditérias sobre a identidade. Por um lado, aidentidade é vista como tendo algum niicleo essencial que distinguiria um grupo de outro. Por outro, a identidade & vista como confingente; isto é, como o produto de un tersecgio de diferentes componentes, de discursos politicos e culturais e de historias particulares. A identidade contin- gente coloca problemas para os movimentos sociais em termos de projetos politicos, especialmente ao afirmar a solidariedade daqueles que pertencem aquele movimento especifico, Para nos contrapor as nega¢des sociais dominan- tes de uma determinada identidade, podemos desejar re- cuar, por exemplo, as aparentes certezas do passado, a fim de afirmar a forga de uma identidade coerente e unificada. ‘Como vimos no caso das identidades nacionais e étnicas, & tentador ~ em um mundo cada vez mais fragmentado e em resposta ao colapso de um conjunto determinado de certe- zas — afirmar novas verdades fundamentais e apelar a raizes anteriormente negadas. Assim, em uma politica de identi- dade, o projeto politico deve certamente ser reforgado por algum apelo a solidariedade daqueles que “pertencem” a um grupo oprimido ou marginalizado. A biologia fornece uma das fontes dessa solidariedade; a busca universal, trans- hist6rica, de raizes e lagos culturais fornece uma outra. As identidades séo produzidas em momentos particula- res fo tempo. Na discussao sobre mudangas globais, iden tidades nacionais ¢ étnicas ressurgentes ¢ renegociadas e sobre 0s desafios dos “novos movimentos sociais” ¢ das novas definigdes das identidades pessoais e sexuais, sugeri que as identidades so contingentes, emergindo em mo- mentos hist6ricos particulares. Alguns elementos dos “no- vos movimentos sociais” questionam algumas das ten- déncias a fixagdo das identidades da “raga”, da classe, do género e da sexualidade, subvertendo certezas biolégicas, enquanto outros afirmam a primazia de certas caraiterfsti- cas consideradas essenciais, 38 YP “Argumentei, nesta seco, que a identidade importa por- ue existe uma crise da identidade, globalmente, localmen- 3 pessoalmente e politicamente. Os processos histéricos tidades esto entrando em colapso e novas identidades estio sendo forjadas, muitas vezes por meio da luta e da contes- tacio politica. As dimens6es politicas da identidade tais como se expressam, por exemplo, nos conflitos nacionais e tnicos € no crescimento dos “novos movimentos sociais”, estio fortemente baseadas na construgio da diferenga Como vimos no exemplo de Ignatieff, no infcio deste capitulo, as identidades sao fortemente questionadas. Tam- ém vimos que, muito freqtientemente, elas esto baseadas em uma dicotomia do tipo “nés_¢ eles”. A marcagéio da fe ial no processo de construgio das posigdes identidade. A ciferenga € reproduzida por meio de sistemas Simbélicos (envolvendo até mesmo os cigarros fumados pelos lados em conflito, no exemplo de Ignatiefl). ‘Aantropéloga Mary Douglas argumenta que a mareacéo da diferenga a base da cultura porque as coisas —e as pessoas fmham sentido por meio da atribuicao-dediferentes posigdes em um sistema classificatério (Hall, 1997). Isso nos levaa proxima questio deste capitulo: por meio de quais processos os significados so produzidos e de que forma a diferenca é marcads em relagio a identidade? 3, Como a diferenga é marcada em relagao a iden- tidade? 3.1. Sistemas classifcat6rios As identidades sio fabricadas por meio da marcagéo da diferenca. Essa marcagio da diferenga ocorre tanto por meio de sistemas simbélicos de representagio quanto por meio de formas de exclusio social. A identidade, pois, ndo é 0 39 oposto da diferenga: a identidade depende da diferenca. Nas relagies sociais, essas formas de diferenga—a simbdlica e a social - so estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatérios. Um sistema classificat6rio aplica um prinefpio de diferenga a uma populagao de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas caracteristicas) em ao menos dois grupos opostos - nés/eles (por exemplo, servos ¢ croatas); eu/outro. Na argumentacio do socidlogo francés Emile Durkheim, é por meio da organizacio e ordenagio das coisas de acordo ‘com sistemas classificat6rios que o significado é produzido, Os sistemas de classificagio dao ordem a vida social, sendo afirmados nas falas e nos rituais. De acordo com oargumen- to de Durkheim, em As formas elementares da vida religic sa, “sem simbolos, os sentimentos sociais teriam uma existéncia apenas precéria” (Durkheim, 1954/1912, citado em Alexander, 1990). Utilizando a religiio como um modelo de como os processos simbélicos funcionam, ele mostrou que as relagdes sociais so produzidas e reproduzidas por meio de rituais & simbolos, os quais classificam as coisas em dois grupos: as sagradas ¢ as profanas. Nao existe nada inerentemente ou essencialmente “sagrado” nas coisas. Os artefatos ¢ idéias so sagrados apenas porque sio simbolizados © repre- sentados como tais. Ele sugeriu que as representagdes que se encontram nas religiGes “primitivas” ~ tais como os fetiches, as miscaras, os objetos rituais ¢ 0s totémicos—eram considerados sagrados porque corporificavam as normas € 0s valores da sociedade, contribuindo, assim, para unificé-la culturalmente. Segundo Durkheim, se quisermos com- preender os significados partilhados que caracterizam os diferentes aspectos da vida social, temos que examinar como eles sio classificados simbolicamente. Assim, o pio que comido em casa é visto simplesmente como um elemento da vida cotidiana, mas, quando especialmente preparado 40 partido na mesa da comunhao, toma-se sagrado, podendo simbolizar 0 corpo de Cristo. A vida social em geral, argu. mentava Durkheim, é estruturada por essas tensdes entre 0 sagrado € o profano e & por meio de rituais como, por exemplo, as reunides coletivas dos movimentos religiosos ou as refeigdes em comum, que o sentido 6 produzido. E nesses momentos que idéias e valores so cognitivamente apropriados pelos individuos A religio algo ‘eminentemente social. As representagdes religiosas sio representagées coletivas que expressam rea- Indades eoletivas; os rts slo uma manera de agit que ocorre quando os grupos se retinem, sendo destinados a estimular, manter ou recriar certos estados mentais nesses grupos (Durkheim, citado em Bocock e Thompson, 1985, p42) O sagrado, aquilo que “colocado & parte”, é definido marcado como diferente em relagio ao profano. Na verdade, 0 sagrado esti em oposigao ao profiano, excluindo-o inteiramente, As formas pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a diferenca sio cruciais para compreender as identidades. A diferenga é aquilo que separa uma identidade da outra, esta- belecendo distingées, freqiientemente na forma de oposigées, como vimos no exemplo da Bésnia, no qual as identidades so construfdas por meio de uma clara oposicao entre “nés” e “eles”. A marcagio da diferenca 6, assim, o componente-chave em qualquer sistema de classificagio. a Cada cultura tem suas préprias e distintivas formas de classificar o mundo E pela construgao de sistemas classifi- cat6rios que a cultura nos propicia os meios pelos quais podemos dar sentido a0 mundo social e construir significa- dos. Hi, entre os membros de uma sociedade, um certo grau de consenso sobre como classificar as coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de signifi- cagio sao, na verdade, o que se entende por “cultura”: 4 a.cultura, no sentido dos valores piblicos, padronizados, de uma comunidade, serve de intermediagdo para a expe- riéneia dos individuos. Ela fornece, anteefpadamente, al ‘gumas categorias basicas, um padrio positivo, pelo qual as idéias ¢ 0s valores sio higienicamente ordenados. E, so- bretudo, ela tem autoridade, uma vez que cada um 6 induzido a concordar por causa da concordéincia dos ou- tros (Douglas, 1966, p, 38-9). O trabalho da antropéloga social Mary Douglas desen- volve o argumento durkheimiano de que a cultura, na forma do ritual, do simbolo e da classificagio, é central A producao do significado ¢ da reproducio das relagées sociais (Du gay, Hall et alii, 1997; Hall, 1997b). Para Douglas, esses rituais se estendem a todos os aspectos da vida cotidiana: a prepa- ragio de alimentos, alimpeza, o desfazer-se de coisas — tudo, desde a fala até a comida. No restante desta secio, vamos explorar um pouco mais a centralidade da classificagio pa- raacultura ea significagio, utilizando o exemplo cotidia- no da comida. O antrop6logo social francés Claude Lévi-Strauss pro- p6s-se a desenvolver esse aspecto do trabalho de Durkheim e utilizou o exemplo da comida para ilustrar esse processo. A cozinha estabelece uma identidade entre nés — como seres humanos (isto 6, nossa cultura) — e nossa comida (isto 6, a natureza). A cozinha é 0 meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha é também uma linguagem por meio da qual “falamos” sobre nés préprios e sobre nossos lugares no mundb. Talvez possamos adaptara frase de Descar- tes e dizer “como, logo existo”. Como organismos biol6gicos, precisamos de comida para sobreviver na natureza, mas nossa sobrevivéncia como seres humanos depende do uso das cate- Zorias sociais que surgem das classificagées culturais que utilizamos para dar sentido & natureza, Aquilo que comemos pode nos dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual vivemos. A comida é um 2 meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmagées sobre si prOprias. Ela também pode sugerir mudangas ao longo do tempo bem como entre culturas. Podemos pensar na enor- me variedade de ingredientes que estio hoje dispontveis nos supermercados e também na diversidade étnica dos restaurantes nas grandes cidades do mundo e mesmo em pequenas cidades — bares que servem tapas espanholas e restaurantes tailardeses e indianos so apenas alguns dos exemplos que podem ser citados, Para Lévi-Strauss, é tam- bém a forma como organizamos a comida que importa — 0 que conta como prato principal, como sobremesa ete.; 0 que € cozido ou o que é cru. O consumo de alimentos pode indicar quio ricas ou cosmopolitas as pessoas so, bem como sua posigio religiosa e étnica. O consumo de alimentos tem uma dimensio politica. As pessoas podem se recusar a comer os produtos de pafses particulares, em um boicote que expresse a desaprovacio das politicas daquele pafs: os produtos da Africa do Sul antes do fim do apartheid: os alimentos da Franga, em protesto pelos testes nucleares franceses no Pacffico. Certas identidades podem se definir apenas com base no fato de que as pessoas em questio comem alimentos organicos ou de que so vegetarianas. As fronteiras que estabelecem 0 que é comestivel podem estar mudando e as préticas alimentares si, cada vez mais, cons- trufdas de acordo com critérios politicos, morais ou ecolé- gicos. O consumo de alimentos tem também uma conexio material: as pessoas s6 podem comer aquilo que elas poderh comprar ou que est disponivel em uma sociedad particu- lar. A andlise das préticas de alimentagéo e dos rituais associados com 0 consumo de alimentos sugere que, ao "Na menos em alguma medida, “ verdade, se consideramos as coisas que, por uma razo ou outra, nés ndo comemos, talvez.a afirmagio mais exata seja ade que “nés somos 0 que nfo co ses cultirais-fordamentais contra 0 consumo de certos yemos”. Existem proibi- 48 alimentos. Ex mestivel eo iste também uma divisio bésica entre 0 co. Mio-comestivel que vai além das distingées faire 0 nutritivo eo venenoso. Isso pode assumir diferentes formas como, por exemplo,a proibigio de bebidas alcodlicas ¢ de carne de porco pelos mugulmanos ou a proibigao de alimentos nio-kosher pelos judeus. Mas, em todos os casos a proibigao distingue as identidades daqueles que estig incluidos em um sistema particular de crengas daqueles que estio fora dele. Constroem-se oposigées entre vegetariasios © carnfvoros, entre consumidores de alimentos integyais ¢ consumidores de alimentos considerados pouco saudaveis Naanilise de Lévi-Strauss, a comida 6 nao apenas “boa Para comer”, mas também “boa para pensar”. Com isso, ole quer dizer que a comida é portadora de significados simbé, Hicos e pode atuar como significante. Para Lévi-Strauss, 0 ato de cozinhar representa a tfpica transfor magio da natu- reza em cultura. Com base nesse argumento, ele analisou as estruturas subjacentes dos mitos e dos sistemas de eren. S argumentando que eles se expressam por meio daquilo ue ele chama de “triangulo culinsrio". Todo alimenta. ar. Sumenta ele, pode ser dividido de acordo com este esquema classificat6rio (Figura 1): Figura. 1:0 tritnguloculingvio de Lévi-Strauss (forma prima) (Rote: ba seado em Leach, 1974, p. 30}. “4 Lévi-Strauss argumenta que, da mesma forma que ne- iedade humana deixa de ter uma lingua, nenhu- Bee dade humana tampouco deixa de ter uma cozinha BB cicuns metos para se transiormar slimento eru em. BES ccetish aliments oonids 6 squaledl neato ena Se icscmalla por mmeima cnlfarals, O wimieato poste Lév-Straus identifi os diferentes procesos de cox meno que dastam ess trasforaghes, ASA een vole expos drt chamas (que €o agente de conver Zo), sem amediacio de qualquer aparato cultural ov doar ou Oe. fea pti amare. Gomer exycioa gua, reduz o Slee ccuxtanr udersped date Aecomposigio do apodrecimento natural e exige algum tipo de recipiente A defumagio nic exige mediagio cultural. Ela envolve a adicao prolongada de ax, mas no de Agua. O alimento assado 6 0 alimento festivo preparado para celebragées, enquanto 0 alimente cozido & mais uiizado no consumo cotidiano € pode ser dado as criancas, aos doentes e aos velhos. O esquema de Lévi-Strauss pode parecer complica do ¢ até mesmo um pouco forcado. Entretanto, em termos gerais, as anélises estruturalistas de Lévi-Strauss tém sido extremamente influentes, ¢ este exemplo 6 itil para chamar a atengdo para a importancia cultural do alimento: “Sto as convencies da sociedade que decretam 0 que é alimento © que nio é, € que tipo de alimento deve ser comido em quais ocasides” (Leach, 1974, p. 32). E o papel do alimento na construgio de identidades ¢ a mediagio da cultura na transformagio do natural que ¢ importante nesse desvio que fizemos pelos caminkos da cozinha Oo 6 sua andlise de como a cultura classifica 0s alimentos et comestfveis e naio-comestiveis. E por meio dessa distingao ‘0 aspecto importante da teorizacio de Lévi-Strauss n p € de outras diferengas que a ordem social 6 produzida e mantida. Como argumenta Mary Douglas Separar, purificar, demarear e punir transgressdes tém como sua principal fungio impor algum tipo de sistema a uma experiéncia inerentemente desordenada. F ape- nas exagerando a diferenga entre o que esti dentro e 0 ue estd fora, acima e abaixo, homem e mulher, a favor contra, que se cria a aparéncia de alguma ordem (Dou- slas, 1966, p. 4), - Isso sugere que a ordem social 6 mantida por meio de ‘oposigdes bindrias, tais como a 1 divisao entre “locais” (nsi- ders) e “forasteiros” (outsiders}-A produgio de categorias pelas quais os individuos que transgridem sio relegados ao status de “forasteiros”, de acordo com o sistema social vi- gente, garante um certo controle social. A classificagaio simbélica esté, assim, intimamente relacionada 4 ordem social. Por exemplo, o criminoso 6 um “forasteiro” cuja transgressio o exclui da sociedade convencional, produzin- do uma identidade que, por estar associada com a transgres- sio da lei, é vinculada ao perigo, sendo separada e marginalizada. A produgio da identidade do “forasteiro” seg torn refering & lanai fate dal Como foi sugerido no exemplo das identidades nacionais, uma identidade é sempre produzida em relagao aumaoutra, Douglas sugere, utilizando 0 exemplo dos dias da sema- na, que nés sé podemos saber o significado de uma palavra por meio de sua relago com uma outra. Nossa compreensio dos conceitos depende de nossa capacida- de de vé-los como fazendo parte de uma seqiiéncia. Aplicar esses conceitos a vida social pritica, ou organizar a vida cotidiana de acordo com esses princfpios de clas- sificagao e de diferenca, envolve, muito freqientemente, um comportamento social repetido ou ritualizado, isto é, um conjunto de préticas simbélicas partilhadas: 46 habitante do Tocal”.” (Os dias da semana, com sua seqiiéncia regular, seus nomes, sua singularidade, além de seu valor pritico na identifi- cago das civisées do tempo, tém, cada um deles, um significado que faz parte de um padrao. Cada dia tem seu proprio significado e se existem habitos que marcam a identidade de um dia particular, essas observancias regu- lares tém o efeito do ritual. domingo nao é apenas um dia de descanso. Fo dia que vem antes da segunda-feira. Em um certo sentido, nfio podemos experimentar aterca- feira se por alguma razio nao tivermos formalmente nota- do que passamos pela segunda-feira. Passar por uma parte do padrio éum ato necessério para se estar consciente da préxima parte (Douglas, 1966, p. 64). Douglas utiliza o exemplo da poluigao e, em particular, de nossa percepeaosobre o que conta como “sujo”, Segundo ela, nossas concepgées sobre “sujeira” sio “compostas de duuas coisas: cuidado com a higiene e respeito pelas conven- goes” (ibid., p. 7). Ela argumenta que a sujeira ofende a ordem, mas que nio existe nada que se possa chamar de sujeira absoluta, A sujeira é “matéria fora de lugar". Nao vemos nada de errado-Gonr-w terra que encontramos no jardim, mas ela “néo esté no lugar certo” quando a encon- tramos no tapete da sala. Nossos esforgos para retirar a sujeira nfo sio movimentos simplesmente negativos, mas tentativas positivas para organizar o ambiente — para excluir a matéria que esteja fora de lugar e purificar, assim, 0 ambiente. Ela argumenta ainda que “uma reflexio sobre a sujeira envolve uma reflexo sobre a relagio entre ordem e desordem, o sere onio-ser, 0 formado eo in-formado, a vida ea morte” (ibid, p. 5). Assim, as categorias do limpo e do nao-limpo, tal como as distingdes entre “forasteiros” ¢ “lo- ) ais”, so produtos de sistemas culturais de classifica cujo objetivo é a criagio da ordem Poderfamos afirmar, talvez, que esses te6ricos tendem a exagerar o papel do simbélico as custas do material. Afinal, ao considerar os alimentos que as pessoas comem e aqueles que elas evitam, 6 também importante tratar das restrigbes materiais. Hé alimentos que vocé gostaria de comer, mas pode nao ter o dinheiro para comprélos. Historicamente, a escolha dos alimentos tem se desenvolvido no contexto de sua escassez ou de sua superabundancia relativas. Nossa escolha dos alimentos ~ quando temos alguma escolha — desenvolve-se também em contextos econdmicos particula- res. Embora essas restrigdes econémicas € materiais possam ser muito importantes, elas nfo enfraquecem necessaria- mente 0 argumento sobre a centralidade dos sistemas sim- Délicos ou classificatérios. O “gosto” nao é simplesmente determinado pela disponibilidade ou nio de recursos mate- riais. Os fatores econémicos sozinhos ~ sem a cultura — nfo sao determinantes. Mary Douglas argument que, no inte- ior de umrsdciedade com as mesmas restrigdes econdmi- cas, cada casa “desenvolve um padrio regular de horérios de alimentacao, de bebida e comida para as criangas, de bebidae comida para os homens, de comida festiva e comida cotidiana” (1982, p. 85). Seja 14 qual for o nivel relativo de pobreza ou riqueza, a bebida atua como um marcador de género da “identidade pessoal e das fronteiras da incl e daexclusao” (ibid.). Existem proibigoes que impedem que as mulheres tomem “bebidas fortes”, mas os homens da mesma classe e do mesmo grupo de rendimento sio julgados, em contextos particulares (Douglas cita os homens que trabalham nos portos, mas seria possivel pensar em muitos outros exem- plos), “de acordo com a maneira correta ou errada como eles carregam sua bebida” (Douglas, 1987, p. 8). do, Os sistemas de alimentacao esto, assim, sujeitos as classificagdes do processo de ordenagao simbélica bem como as distingdes de género, idade e classe. Existem, obvia- mente, diferengas de classe social em nosso gosto pela co- mida. Como argumenta Pierre Bourdieu (1984), certos ali- ‘mentos so associados com as mulheres ou com os homens, 48 de acordo com a classe social. O peixe é percebido como impr6prio para os homens da classe operaria, sendo visto como “comida leve”, mais apropriada para as criangas e os invélidos, Recentes campanhas promocionais da indtis- tria de carne bovina britanica, planejadas para conter qualquer tendéncia ao vegetarianismo, parece confirmar isso, ao sugerir que somente os fracos comem vegetais peixes ("Homens verdadeiros comem carne”; “Os ho- mens precisam de carne”). As ansiedades sobre os riscos do consumo de came bovina britinica, desde a crise da “vaca louca’, podem, entretanto, prejudicar esse tipo de campanha. Bourdieu argumenta que o corpo se desen- volve por mei na inter-relagao entre a localizagio de classe do individuo eo gosto: O gosto e definida pelas formas pelas.quais os individuos se apropriam de escothas e preferdncias que sio 0 produto de restrigdes materials e daquilo que ele chama de habitus. Esta seco analisou algumas das formas pelas quais as culturas fornecem sistemas classificatérios, estabelecendo fronteiras simbélicas entre o que esti inclufdo e o que esti excluido, definindo, assim, o que constitu’ uma pratica cultu- ralmente aceita ou nao. Essa classificagio ocorre, como vimos, por meio da marcagiioda diferenca entre categorias. Examina remos, na préxima segio, a importancia particular da diferenca na construgio de significados e, portanto, de identidades. 3.2. A diferenca Ao analisar comoas identidades so construfdas, sugeri qué elas sio Tormadkas relativamente a outras identidades,. relativamente av-“forasteiro” ow ad “outro”, isto, relativa- “menté a0 qué nao é. Essa construgao aparece, mais comu- “mente, sob a forma de oposigées bindrias. A teoria lin- siifstica saussureana sustenta que as oposi¢des bindrias —a forma mais extrema de marcar a diferenca — sao essenciais 49 para a produgio do significado (Hall, 19974), Esta segio analisard a questio da diferenga, especialmente a sua pro- ducao por meio de oposigées bindrias. Essa concepeao de diferenga é fundamental para se compreender 0 processo de construgio cultural das identidades, tendo sido adotada por muitos dos “novos movimentos sociais” anteriormente discutidos JA diferenga pode ser construfda negativamente por meio da exclusio ou da marginalizacéo daquelas /pessoas que so definidas como “outros” ou forasteiros. Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversida- [ de, heterogencidade e hibridismo, sendo vista como enri- quecedora: é 0 caso dos movimentos sociais que buscam resgatar as identidades sexuais dos constrangimentos da norma e celebrar a diferenga (afirmando, por exemplo, que “sou feliz.em ser gay”) —a, ‘ x ‘Uma caracteristica comum a maioria dos sistemas de pensamento parece ser, portanto, um compromisso com os dualismos pelos quais a diferenga se expressa em termos de oposigées cristalinas ~ natureza/cultura, corpo/mente, pai- XGo/razo. As autoras e os autores que criticam a oposicéo bindria argumentam, entretanto, que os termos em oposigéo recebem uma importincia diferencial, de forma que um dos elementos da dicotomia é sempre mais valorizado ou mais forte que o outro. Assim, Derrida argumenta qi entre os dois termos de tima oposicio binari desequilibrio necessario de poder entre-eles. Uma das mais freqiientes ¢ dominantes dicotomias 6, como vimos no exemplo de Lévi-Strauss, a que existe entre natureza e cultura. A escritora feminista francesa Hélene Cisous adota 0 argumento de Derrida sobre a distribuigao desigual de poder entre os dois termos de uma oposi¢&o bindria, mas concentra-se nas divisées de género e argu- menta que essa oposigio de poder também é a base das divisées sociais, especialmente daquela que existe entre homens e mulheres: pensamento sempre funcionou por oposigio. Fala/Escrita Alto/Baixo. Isso significa (Cixous, 1 alguma coisa? p. 90). Cixous argumenta que nio se trata apenas do fato de que o pensamento é construido em termos de oposigées biné- rias, mas que nesses dualismos um dos termos é sempre cultura em’ to” e “baixo”; que pos de atividade associamos com “alta cultura”? Opera, balé, teatro? Que atividades sio identificadas, de forma estereotipada, como sendo de “baixa cultura”? Telenovelas, mésica popular? Esse é um terreno polémico e uma dicotomia bastante questigndvel nos Estudos Culturais, mas 0 argumento con- siste em enfatizar que os dois membros dessas divisdes no recebem peso igual, em particular, que essas divisbes esto relacionadas com o género. Cixous dé outros exemplos de oposig6es bindrias, per- guntando de que formaelas esto relacionadas como género especialmente com a posigéo das mulheres no dualismo em questio: Onde estd ela? Atividade/passividade, Sol/Lua, Cultura/Natureza, Dia/Noite, Pai/Mae, Cabega/coragai Inteligivel/sensivel, Homem/Mulher (ibid., p. 90) Cixous sugere que as mulheres estio associadas com g natureza e nfo com a cultura, com 0 “coragio” ¢ as emoggeg € nfo com a “cabega” e a racionalidade. A tendéncia pang classificar 0 mundo em uma oposigao entre principios mag. culinos e femininos, identificada por Cixous, esta de acordg com as anilises estruturalistas baseadas em Saussure, ag quais véem 0 contraste como um principio da estrutura lingitistica (Hall, 1997a). Mas, enquanto para Saussure essag oposigées binarias estio ligadas a légica subjacente de toda, linguagem e de todo pensamento, para Cixous a forca psf- quica dessa duradoura estrutura de pensamento deriva de uma rede hist6rica de determinagées culturais. Quiio inevitiveis sio essas oposigdes? Sao elas parte da Togica de pensamento e da linguagem como Saussure e estruturalistas tais como Lévi-Strauss parecem sugerit? Ou sio elas impostas 2 cultura, como parte do processo de exclusio? Estao essas dicotomias organizadas para desvalo- rizar um dos elementos? Tal como feministas como, por exemplo, Simone de Beauvoir ¢, mais recentemente, Luce Irigaray, tém argumentado, é por meio desses dualismos que as mulheres so construidas como “outras”, de forma que as mulheres so apenas aquilo que os homens no sio, como ‘corre na teoria psicanalitica lacaniana, Podem as mulheres ser diferentes dos homens sem serem opostas a eles? Irigaray utiliza o exemplo da sexualidade para argumentar que as mulheres e os homens tém sexualidades diferentes mas nfo opostas (Irigaray, 1985). Entretanto, a identificagao das mu- Iheres com a natureza ¢ dos homens com a cultura tem um lugar bem estabelecido na teoria antropolégic Henrietta Moore sugere que a antropologia tem sido importante para desestabilizar categorias unitarias tais comoade “mulher”, especialmente por causa de sua énfase na diversidade intercultural. As desigualdades tém sido tratadas, na antropologia, a partir de duas perspectivas. Em 52 tem-se argumentado que a desigualdade de Ei eae a tendéncia a identificar as mulheres com esta es ynens coma cultura (aoposi¢éo fundamen- Tez © OF vi-Strauss toma como base da vida social). ela due go centra-se nas estruturas sociais: aqui as Beaunds Posie ficadas com a arena privada da casa e heres St vessoais € os homens com a arena piblica do relagoe!, produgao e da politica. A evidéncia antropol6- cnteanto, que a dvisio entre natureza & % universal. O questionamento que Moore faz a Te cxtek a palms, ou Gps cols GH io entre mulheres e homens, possibiita anali- om * capecificidades da diferenca. ey sta segto discutin as oposigdes binérias, um elemento va ida lingistica saussureana adotada pelo estrutura- essen vi-Strauss. Ela também tratou das eriticas desses di cos como, por exemplo, a de Derrida. O questiona- dante Dertida fez das oposigdes binarias sugere que a ier ijcotomia é um dos meios pelos quais significado Piixado. £ p dessas deotomias que o pensament, peasants 2 ier We poder exitentee. Deride aa relagbes de poder existentes. Derrida jection as visbes estruturalistas-de-Sassure.e Lévi- wretie, sugerindo que o significado esta presente como um “trago”; ércio. fea mostra, a relagio entce significado e significante nao é algo fixo, O significado é produzido por meio de um proceso de diferimento ou adiamento, o qual Derrida chama de diffé- rance. O que parece determinado é, pois, naverdade, fluido ¢ inseguro, sem nenhum ponto de fechamento. O trabalho de Derrida sugere umaalternativa ao fechamento ea rigidez das oposiges bins. Em ws de Diden o gue existe 6 nting@ncia_O significado est sujeito ao deslizamer a eerin ie critica, mas enfatizando, diferente- de Derrida, as relagbes de poder ligadas ao género. mente ody 3.3. Sumério da segdo 3 Os sistemas classificat6rios por meio dos quais o signi ficado é produzido dependem de sistemas sociais e simbé- licos. As percepgGes a compreensio da mais material das necessidades so construidas por meio de sistemas simbé- licos, os quais distinguem 0 sagrado do profano, o limpo do sujo € 0 cru do cozido. Os sistemas classificatérios sao, assim, construidos, sempre, em torno da diferenca e das formas pelas quais as diferengas so marcadas. Nossa dis- cussdo procurou teorizar as formas pelas quais os sistemas simbélicos e sociais atuam para produzir identidades, isto 6, para produzir posigSes que podem ser assumidas, enfati- zando as dimensGes sociais e simbilicas da identidade. Esta seco buscou demonstrar que a diferenca é marcada em relagdo a identidade. Analisamos também 0 pensamento que se baseia em oposigdes bindrias tais como natureza/cul- tura e sexo/género. Mostramos que os termos que formam esses dualismos recebem, na verdade, pesos desiguais, es-_ tando estreitamente vinculados a relagées de poder. Esta segao também buscou questionar a perspectiva de que adotar uma posigio politica e defender ou reivindicar uma posigao de identidade necessariamente envolve um apelo & autenticidade e a verdade enraizadas na biologia. Discuti- mos também as possiveis alternativas a esse essencialismo, argumentando em favor de um reconhecimento da posicio- nalidade e de uma politica de localizagao que, como argu- menta Henrietta Moore, inclui diferengas de “raga”, classe, sexualidade, etnia e religiao entre as mulheres. A diferena é marcada por representagées simbilica que atribuem significado as relagées sociais, mas a explora- gio da diferenga nao nos diz por que as pessoas investem nas posigdes que elas investem nem por que existe esse investimento pessoal na identidade. Descrevemos alguns dos processos envolvidos na construgdo das posigdes de identidade, mas nio explicamos por que as pessoas assumem essas identidades. Voltamo-nos agora para a tiltima grande questio deste capitulo. 4. Por que investimos nas identidades? 4.1. Identidade e subjetividade Os termos “identidade” e “subjetividade” sio, as vezes, utilizados de forma intercambiavel. Existe, na verdade, uma consideravel sobreposigao entre os dois. “Subjetividade” sugere a compreensao que temos sobre o nosso eu. Ostermo envvolve 0s pensamentos e as emogSes conscientes e incons- cientes que constituem nossas concepgées sobre “quem nés somos”. A subjetividade envolve nossos sentimentos € pen- samentos mais pessoais. Entretanto, nés vivemos nossa sub- jetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dio significedo & experiéncia que temos de nés mesmos eno qual nés adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjurtos de significados construidos pelos discursos, eles s6 podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos sio, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles prdprios, assumi-lo como individuos que, dessa forma, se posicionam a si préprios. As posigbes que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. A subjetividade inclui as dimensdes inconscientes do eu, o que implica a existéncia de contradi- Bes, como vimos no exemplo das tentativas do soldado sérvio para reconciliar sua experiéncia cotidiana com as mudangas politicas. A subjetividade pode ser tanto racional quanto irracional. Podemos ser - ou gostarfamos de ser — pessoas de cabeca fria, agentes racionais, mas estamos su- jeitos a forcas que estao além de nosso controle. O conceito de subjetividade permite uma exploragio dos sentimentos que estio envolvidos no processo de produgio da identida- de € do investimento pessoal que fazemos em posicdes especificas de identidade, Ele nos permite explicar as razieg pelas quais nés nos apegamos a identidades particulares, A fim de explorar um pouco mais algumas das idéias sobre subjetividade e identidade, gostaria de analisar um oema que é parte de uma série sobre a questio da adogaa de criangas. A poeta negra Jackie Kay, ela propria adotada, explora seus préprios sentimentos sobre a questo da ado. 40, em uma série de poemas intitulada Documentos de adogao (1991), utilizando uma série de diferentes “vores” (por exemplo, a voz da mie natural e a da mie adotiva). Esse poema esti escrito na voz da primeira pessoa de uma mulher que quer adotar um bebé e expressa seus sentimens tos relativamente aos discursos da maternidade, os quais so aqui apresentados como parte de pressupostos culturais partilhados, em particular sobre 0 que se espera de uma “boa mae”. Inicialmente, Jackie Kay descreve sua experién- cia ao se inscrever em varias instituigées de adogao, em suas tentativas para adotar uma crianga: A primeira instituigio a que fai niio queria nos colocar na sua lista xo moriivamos suficientemente préximos nem freqientivamos qualquer igreja {amas nos ealamos sobre o fato de que éramos comunistas), A segunda nos disse que nossa renda nio era suficiente- mente alta, A terceira gostou de nés ‘mas tinham uma lista de espera de cinco anos. Passei seis meses tentando nio olhar para balangos nem para carrinhos de bebé, para no pensar que essa crianga que eu queria poderia ter agora cinco anos, A quarta instituigio estava com as vagas esgotadas. A sexta disse sim, mas, de novo, nao havia nenhum bebé. Quando eu jé estava na porta, iu disse olha a gente nio liga pra cor. E foi assim que, de repente, a espera acabou. 56 poema continua, descrevendo a visita que a institui- 4o de adlogii fez & casa da futura mae adotiva e as prepa- Secoes que a mie — branca — faz a fim de se apresentar ~ sua casa - sob o Angulo mais favordvel possivel, consid rando-se suas ansiedades sobre nfo ser vista como o tipo certo de mie: Achei que tinha escondido tudo, «que nfo tinha detxado a vista nada que pudesse me denunciar. Botei Marx, Engels, Lenin (nenhum Trotsky) no armirio da cozinha ~ ela nao ia conferir os panos de prato, isso era certo. Os exemplares do Diario Operério Eu botei embaizo da almofada do soft, a pomba da paz eu tirei do banheiro. Tirei da cozinha Um péster de Paul Robeson que dizia: déem-Ihe seu passaporte. Deixei uma piha de Burn, meus contos policiais eas Obras Completas de Shelley Ela chegon as 11:30 exatamente. Servi-the café nes minhas novas xfcaras de louga hingara e tolamente rezet pra ela nfo perguntar de onde vinham. Francamente, esse bebé esti me subindo a cabe la eruza as pernas no so! Ougo na minha eabega o rutdo do Diario Operdvio embaixo dela Bem, diz ela, voe8 tem uma casa interessante. Ela vé minhas scbrancelhas se erguerem. iferente, acrescenta ela. Droga, eu tinha gastado toda a manha tentando fazer com que parecesse uma casa comum, ‘uma casa adoravel para o bebé SS Ela abotoa seu casaco toda sorrisos. Fico pensando: agora vamos para o four da casa Mas assim que chegamos ao tiltimo canto © olho dela cai em cima ao mesmo t jesmo tempo que o meu de uma fileira de vinte distintivos pela paz mundial, Claro como uma foice e um martelo na pa Ah, diz ela, voo8 & contra armas rn Azar, seja 0 que Deus quiser. Com bebé ou set Sim, eu digo Sim. Sim, sim, sim. cae Gostaria que esse bebe vivesse em um mun Gost a clo sem perign Ah! Seus olhos se acendem. fambém sou a favor da paz, diz ela, € se senta pra mais uma xicara de café (Kay, 1991, p. 14-16). ___ Em casos de adogio, tornamo-nos agudamente cons- cientes sobre 0 que constitui identidades maternais ou Paternais socialmente aceitaveis. Existe, aqui, um reconhe- cimento claro sobre a existéncia de uma identidade mater- nal, Que sentimentos essa miie/poeta traz para esses discursos sobre matemidade? Que posigdo de identidade ela quer assumir? Que outras identidades estio envolvidas? Quais sio as identidades que estio, aqui, em conilito? Como sio elas negociadas? Quais sio as contradigées entre a subjetividade e a identidade, apresentadas no poema? O poema de Kay indica algumas das formas pelas quais as identidades sociais sao construfdas bem como as formas pelas quais nés as negociamos. Este poema ilustra as dife. rentes identidades, mas, de forma crucial, uma delas em Particular, que a mae/poeta reconhece como tendo predo. minancia cultural: a da “boa” mie, da mae “normal. ten uma ressondncia particularmente forte nesse caso. Trata-se de uma identidade que ela parece assumir, embora ela este, ja consciente de que esti em conflito com outras identida. 38 des, especialmente suz identidade politica, associada, nesse faso, com suas preferéncias politicas de esquerda. A futura nae vivencia um conflito psiquico, mas hé um final feliz. 0 cifismo parece, afinal, ser algo aceitivel nesse caso. Dar um final feliz ao poemapode ser apenas uma licenga poética, mas também sugere que encontrar uma identidade pode s um meio de resolver um conflito psiquico e uma expresso de satistaggio do desejo — se é que essa resolucao é possivel © poema também indica as formas pelas quais as identida- des mudam ao longo do tempo. Isso 6 mostrado por um simbolo historicamente especffico, o jornal comunista O Diério Operdrio, que também representa tudo que pode ser indesejavel em possiveis pais e mies adotivos. Entretanto, ha também a sugestdo de que os tempos estio mudando, tornando aceitavel que a identidade mater- nal possa incluir uma posi¢o politica ~ neste caso, uma posicio pacifista. Trata-se de uma identidade maternal na qual o sujeito (a mfe/poeta) pode fazer um investimento e com a qual ela pode se comprometer. Embora ela repre- sente, perante a inspetora de adog&o, um papel que ela vé como necessério para a simulagio de uma identidade ma- ternal aceitével, ela nio é interpelada por essa posigao-de- sujeito, mas por uma posiglo que se conforma com sua posicéo politica. “Interpelagao” € 0 termo utilizado por Louis Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos—ao se reconkecerem como tais: “sim, esse sou eu” so recrutados para ocupar certas posigdes-de-sujeito. Esse processo se dé no nivel do inconsciente ¢ é uma forma de descrever como os individuos acabam por adotar posi- ‘gdes-de-sujeito particulares. E uma forma de incorporar a dimensio psicanalitica, a qual nfo se limita a descrever sistemas de significado, mas tenta explicar por que posigdes particulares sio assumidas. Os fatores sociais podem expli- car uma construgéo particular de maternidade, especial- 59 mente a de “boa mie”, neste momento hist6rico, mas néo explicam qual o investimento que os individuos fazem em posicdes particulares e os apegos que eles desenvolvem por essas posighes. 4.2, Dimensoes psicanaliticas Althusser desenvolveu sua teoria da subjetividade no contexto de um paradigma marxista que buscava trazer algumas das contribuigdes da psicandlise e da lingtiistica estrutural para o materialismo marxista. Q trabalho de Al thusser foi extremamente importante para a revisto do modelo marxista baseado nas nog6es de base e de superes- trutura. Nesse modelo, a base é definida como a fundagao material, econémica, da sociedade. De acordo com essa perspectiva, essa base econdmica determina as relagdes sociais, as instituigées politicas e as formagGes ideol6gicas. Althusser também reformulou 0 conceito de ideologia i cialmente elaborado por Marx. Em seu ensaio sobre “a ideologia e os aparelhos ideol6gicos de Estado”, Althusser (1971) enfatiza o papel da ideologia na reprodugao das relagdes sociais, destacando os rituais e as praticas institue cionais envolvidos nesse processo. Ele concebe as ideolo- gias como sistemas de representagio, fazendo uma complexa anilise de como os processos ideolégicos funcio- nam € de como os sujeitos so recrutados pelas ideologias, mostrando que a subjetividade pode ser explicada em ter= mos de estruturas e pritticas sociais e simbélicas. Para AE thusser, o sujeito nfo éa mesma coisa que a pessoa humana, mas uma categoria simbolicamente construfda: “A ideold= gia... ‘Tecruta’ sujeitos entre os individuos... ou ‘transforma 605 individuos em sujeitos (..) por esta operagio muito pre cisaa chamei de interpelagio” (1971, p. 146). Esse process®. de interpelagio nomeia e, ao mesmo tempo, posicionall sujeito que é, assim, reconhecido e produzido por meio dé 60 pniticas e processos simbélicos. Ocupar uma posic¢ao-de-si jeito determinada como, por exemplo, a de cidadao patrié- tico, nfo é uma questio simplesmente de escolha pessoal consciente; somos, na verdade, recrutados para aquela po- sigfo ao reconhecé-la por meio de um sistema de repre- sentacio. O investimento que nela fazemos 6, igualmente, um elemento central nesse processo. A teoria marxista enfatiza 0 papel do substrato material, das relagdes de produgio e da aio coletiva, especialmente da solidariedade de classe, na formagio das identidades sociais, em vez da autonomia individual ou da autodetermi- nacio. Os fatores materiais ndo podem, entretanto, explicar totalmente 0 investimento que os sujeitos fazem em posigées de identidade. Teorizagées pés-marxistas como, por exem- plo, oensaio de Althusser, enfatizam os sistemas simb6licos, sugerindo que os sujeitos so também recrutados e produ- zidos nao apenas no nivel do consciente, mas também no nivel do inconsciente. Para desenvolver sua teoria da subje- tividade, Althusser baseou-se na versio da psicandlise freu- diana feiea por Lacan. ~ a O que distingue a teoria da psicandlise de Freud ¢ a teorizacio posterior de Lacan de outras teorias psicolégicas €0 lugar que elas concedem ao conceito de inconsciente. O inconsciente, de acordo com a psicandlise, é formado de fortes desejos, freqiientemente insatisfeitos, que surgem da intervencao do pai na relagdo entre o filho ow a filha e sua mile. Ele est enraizadc em desejos insatisfeitos, em desejos que foram reprimidos, de forma que o contetido do incons- Giente torna-se censurado pela mente consciente, pasando @scr-he inacessfvel. Entretanto, esses desejos reprimidos acabam encontrando alguma forma de expresso como, por €xemplo, por meio de sonhos e enganos (lapsos freudianos) Dinconsciente pode ser, assim, conhecido, embora nio por jim acesso direto, A tarefa do psicanalista consiste em des- a WW i} cobrir suas verdades e ler sua linguagem. O inconsciente é oreposit6rio dos desejos reprimidos, no obedecendo as leis da mente consciente: ele tem uma energia independente e segue uma l6gica propria. Como argumenta Lacan (1977), ele é estruturado como uma linguagem. Ao dar primazia a essa concep¢io do inconsciente, Lacan caracteriza-se como um seguidor de Freud, mas faz uma radical reformulac das teorias freudianas, a0 enfatizar 0 simbélico e a lingua- gem no desenvolvimento da identidade. A “descoberta” do inconsciente, de uma dimensio psf- quica que funciona de acordo com suas préprias leis e com uma légica muito diferente da l6gica do pensamento cons- ciente do sujeito racional, tem tido um consideravel impac- to sobre as teorias da identidade e da subjetividade. A idéia de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as demandas das forgas sociais, tais como elas se expressam naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada para explicar comportamentos aparentemente irracionais © investimento que 0s sujeitos podem ter em agdes que podem ser vistas como inaceitveis por outros, talvez até mesmo pelo eu consciente do sujeito. Podemos estar muito bem informados sobre um determinado dominio da vida social mas mesmo assim acabamos nos comportando contra nossos melhores interesses. Apaixonamo-nos pelas pessoas erradas, gastamos dinheiro que nao temos, deixamos de nos andidatar_ a empregos que poderiamos conseguir e nos candidatamos para empregos para os quais nfo temas qual- uer chance. Chegamos até mesmo ao ponto de realizar ages que podem ameacar nossas vidas apenas para afirmar uma determinada identidade. Sentimos emogdes ambiva- lentes ~ raiva para com as pessoas que amamos e, algumas vezes, desejo por pessoas que nos oprimem, A psicandlise freudiaria fornece um meio de vincular comportamentos aparentemente irracionais como esses A repressio e a ne- 2 cessidades © desejos inconscientes. Em vez de um todo unificado, a psique compreende o inconsciente (0 id); 0 supereu, que age como uma “consciéneia’, representando as restrig6es sociais; ¢ 0 ego, que tenta fazer alguma conci- liagao entre os dois primeiros. Ela est, assim, em um estado constante de conflito « luxo. A experiéncia que temos dela pode ser vivida como dividida ou fragmentada. A teoria psicanalitica lacaniana amplia a anélise que Freud fez dos conflitos inconscientes que atuam no interior do assim chamado sujeito soberano. A énfase que Lacan coloca na linguagem como um sistema de significagao é, neste caso, um elemento central. Ele privilegia o significan- te como aquele elemento que determina o curso do desen- volvimento do sujeite e a diregio de seu desejo. A iden- tidade é moldada e orientada externamente, como um efeito. do significante e da srticulagio do-desejo. Para Lacan, 0 sujeito humano unificado 6 sempre um mito. O sentimento de identidade de ums crianca surge da internalizagao das visGes exteriores que ela tem de si prdpria. Isso ocorre, sobretudo, no perfodo que Lacan chamou de “fase do espe- Iho”. Essa fase vem depois da “fase imaginéria’, que 6 anterior & entrada na linguagem e na ordem simbélica, quando a crianga ainda nao tem nenhuma consciéncia de si propria como separad e distinta da mae. Nessa fase inicial, © infante 6 uma mistura de fantasias de amor e édio, con- centrando-se no corpo da mie. O infcio da formacio da identidade ocorre quando 0 infante se dé conta de que é separado da mie. A entrada na linguagem é, assim, o resul- tado de uma divisio findamental no sujeito (Lacan, 197), quando a unio primitiva da crianga com a mie é rompida. Acrianga reconhece sua imagem refletida, identifica-se com ela e torna-se conscierte de que 6 um ser separado de sua mae. A crianga, que nessa fase infantil é um conjunto mal- coordenado de impulsos, constréi um eu baseado no seu reflexo em um verdadeiro espelho ou no espelho dos olhos de outros. Quando olhamos para o espelho vemos uma iluséo de unidade. A fase do espelho de Lacan representa a primeira compreensio da subjetividade: 6 quando acrianga se torna consciente da mae como um objeto distinto de si mesma. De acordo com Lacan, 0 Primeiro encontro com o processo de construgio de um “eu”, por meio da visio do reflexo de um eu corporificado, de um eu que tem fronteiras, prepara, assim, a cena para todas as identificagdes futuras, O infante chega aalgum sentimento do “eu’” apenas quando sncontra 0 “eu” relletido por algo fora de si proprio, pelo outro: a partir do lugar do“outro”. Mas ele sente a si mesmo como S¢°0 “eu”, 0 sentimento do eu, fosse produzido — por uma identidade unificada—a partir de seu proprio interior Dessa forma, argumenta Lacan, a subjetividade é divi dida e iluséria. Por depender, para sua unidade, de algo fora de si mesma, a identidade surge a partir de uma Ita, isto. 6, de um desejo pelo retorno da unidadé com amie ‘que era Barte da primeira infincia, mas que sé pode ser iluséria, uma fantasia, dado que a separagio real jé ocorreu _O sujeito ainda anseia pelo eu unitirio e pela unidade com a mie da fase imaginéria, e esse anseio, esse desejo, produza tendén- cia para se identificar com figuras poderosas e significativas fora de si préprio. Existe, assim, um continuo proceso de identificagao, no qual buscamos criar alguma compreensio sobre n6s préprios por meio de sistemas simbélicos e nos identificar com as formas pelas quais somos vistos por ou- tros. Tendo, inicialmente, adotado uma identidade a partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com aquilo qué queremos ser, mas aquilo que queremos ser esta sepa- rad0 do_eu,de-forma_que o eu esté permanentemente io dividido no seu proprio int E nessa fase edipiana da entrada na linguagem e nos sistemas simbélicos que o mundo de fantasia da crianga, que 64 inclui a si propria e amie, 6 rompido pela entrada do pai ou daquilo que Lacan chama de “a lei do pai”. O pai representa uma intromissio externa; o pai representa o tabu contra 0 incesto, o qual profbe. fantasia que a crianga tem de se casar com a me bem como a vontade da mie em ter a crianga como 0 objeto de seu desejo. O pai separa a crianga de suas fantasias, enquanto o desejo da mie é reprimido para 0 inconsciente, Esse é 0 momento em que o inconsciente é criado. A medida que a crianga entra na linguagem e na lei do pai, ela se torna capaz, ao mesmo tempo, de assumir uma identidade de género, j4 que este é 0 momento em que a crianga reconhece a diferenga sexual. Assim que esse mun- do do imaginério e do desejo pré-edipiano pela mie é deixado de lado, é a linguagem e o simbélico que passam a fornecer alguma compensagio, ao proporcionar pontos de apoios lingiifsticos ros quais se torna possivel ancorar a identidade, O pai ~ ou o pai simbélico, simbolizado pelo phallus ~ representaa diferenga sexual. O phallus 6, assim, o significante primeiro porque é aquele que primeiro intro- duz a diferenga (isto 6, a diferenca sexual) no universo simbélico da crianga, o que Ihe dé um poder que é, entre- tanto, “falso”, porque, como argumenta Lacan, 0 phallus apenas parece ter poder e valor por causa do peso positivo da masculinidade no dualismo masculino/feminino, Mesmo que 0 poder do phallus seja uma “piada”, como afirma Lacan, a crianga é obrigada a reconhecé-lo como um signi- ficante tanto do poder quanto da diferenga, Outros tipos de diferenga so construfdos de acordo com a analogia da di- ferenga sexual — isto é, um termo (0 masculino) 6 privilegia- do em relagio a outro (0 feminino). Isso também significa que, para Lacan, a entrada das garotas na linguagem se faz de forma muito diferente da dos garotos. As garotas sio posicionadas negativamente—como “faltantes”. Mesmo que o poder do phallus sejailus6rio, os garotos entram na ordem simbélica positivamente valorizados e como sujeitos dese- 65 jantes. As garotas tém a posigao negativa, passiva— sio sim- plesmente “desejadas” O trabalho de Lacan é importante sobretudo por causa de sua énfase no simb6lico e nos sistemas representacionais, pelo destaque dado a diferenca e por sua teorizacao do con- Céito do inconsciente. Ele enfatiza a construcao da identi. dade de género do sujeito, ou seja, a construcio simbélica da diferenga e da identidade sexuada. O “fracasso” desse processo de construcéo da identidade e a fragmentacéo da subjetividade tornam possfvel a mudanga pessoal. Como conseqiiéncia, a teoria lacaniana de formagio da subjetivi- dade pode ser incorporada ao conjunto de teorias que questionam a idéia de que existe um sujeito fixo, unificado, As teorias psicanaliticas de Freud e de Lacan tém sido bastante questionadas, sobretudo por feministas que assi- nalam as limitagées de uma perspectiva sobre a produgio daidentidade de género que afirma o privilegiamento mas- culino no interior da ordem simbélica, na qual o phallus 6 0 significante-chave do processo de significagao. Apesar das afirmagées em contrario de Lacan, 0 phallus corresponde ao pénis, na medida em que significa a “lei do pai” e nao da mie. Ele realmente argumenta que as mulheres entram na ordem simbélica de forma negativa — isto é, como “nio-ho- mens” e nao como “mulheres”. Mesmo que 0 sujeito unifi- cado tenha sido abalado pela teoria psicanalitica, parece também verdade que as mulheres nao sio, nunca, plena- mente aceitas ou inclufdas como sujeitos falantes. O que é importante, aqui, é a subversio que as teorias psicanaliticas fazem do eu unificado, bem como a énfase que colocam no papel dos sistemas culturais e representacionais no processo de construgao da identidade. E importante também a pos- sibilidade que elas oferecem de se analisar o papel tanto dos desejos conscientes quanto dos inconscientes nos processos de identificagio. O conceito de inconsciente aponta para 66 uma outra dimensio da identidade, sugerindo um outro quadro te6rico para se analisar algumas das razdes pelas uais investimos em posigées de identidade Conclusaéo Este capitulo apresentou alguns dos importantes con- ceitos relacionados & questio da identidade e da diferenca, desenvolvendo, assim, um quadro de referéneia para sta andlise. Discutimos as razdes pelas quais 6 importante tratar dessa questio ¢ analisamos de que forma ela surge nesse ponto do “circuito” da produgao cultural. Analisamos, além disso, os processos envolviclos na producio de significados por meio de sistemas representacionais, em sua conexio com 0 posicionamento dos sujeitos e com a construgao de identidades no interior de sistemas simbélicos, A identidade tem se destacado como uma questio cen- tral nas discusses contempordineas, no contexto das recons. trugées globais das identidades nacionais ¢ étnicas e da emergéncia do: ‘a dos “novos movimentos sociais”, os quais esto Preocupaclos com a reafirmacio das identidades pessoais ¢ culturais. Esses processos colocam em questio uma série de certezas tradicionais, dando forca no argumento de que existe uma crise da identidade nas sociedades contempora- neas(A discussio da extensio na qual as identidades sio contestadas no mundo contempoidneo nos levou a uma andlise da importincia da diferenga e das oposigdes na construgio de posigées de identidade., “5 A diferenca é um elemento central dos sistemas classi- ficat6rios por meio dos quais os significados so produzidos Examinamos as andlises estr uturalistas de Lévi-Strauss ede Mary Douglas, ao discutir os processos de marcacdo da dlferenga e da construgio do “forasteiro” e do “outro”, efe. tuados por meio de sistemas culturais. Os sistemas sociais simbélicos produzem as estruturas classificat6rias que dio um certo sentido ¢ uma certa ordem a vida social ¢ as distingdes fundamentais — entre nés ¢ eles, entre o fora e 0 dentro, entre o sagrado e o profano, entre o masculino e 0 feminino que esto no centro dos sistemas de significagaio da cultura. Entretanto, esses sistemas classificat6rios nao podem explicar, sozinhos, o grau de investimento pessoal que os individuos tém nas identidades que assumem. A discussio das teorias psicanaliticas sugeriui que, embora as dimensGes sociais e simbdlicas da identidade sejam impor- tantes para compreender como as posigdes de identidade séo produzidas, € necessério estender essa andlise, buscan- do compreender aqueles processos que asseguram o inves- timento do sujeito em uma identidade. [> Notas 1. A autora refere-se ao esquema representado na Figura 2, desenvolvide por Paul du Gay, Stuart Hall, Linda Janes, Hugh Mackay e Keith Negus (1997). De scordo com as explicagses da autora deste ensalo em sua introdugio ao live de onde ele foi extraido, identity and difference, “no estudo cultural do Walkman ‘como um artefato cultural, Paul du Gay e seus colegas argumentam que, para s¢ obter uma plena compreensio de um texto ou artefato cultural, énecessério analisar os processos de representacio, identidade, producéo, consumo regu. lacfo. Como se trata de um circuit, 6 possfvel comegar em qualquer ponto, nao se trata de um proceso linear, seqGencial. Cada momento do eireuto est ‘também inextricavelmente ligado a cada um das outros, mas, no esquema, eles ‘apatecem como separados para que possamos nos concentrar em momentos ‘specticos. A representagio refere-se a sistemas simbélicos (textos ou imagens visas, por exemplo)tais como os envolvides na publicidad de um produto ‘como o Walkman. E'sses sistemas produzem sigificados sobre o tipo de pessoa {que utiliza um tal artefato, isto 6, produxzem identidades que lhe esto associa ds, Essas identidades e oartefato com o qual elas sio associadas io produzi- das, tanto téenica quanto culturalmente, para atingir os consumidores que ‘comprario o produto com o qual eles ~ é iso, a0 menos, © que os proclutos {esperam — se identificarso. Um artefato cultural, tal como o Walkman, tem um eleito sobre a regulagio da vida socal, por meio das formas pelas quais ele 6 representado, sobre as identidades com ele associadas e sobre a aticulagdo de sua produgio e de seu consumo” (N. do"T). 68 / S, \, [arto faeniatl [note] moot i (907 2, Refere-se ao grupode mulheres que organizou, emagosto-setembro de 1981, uma demonstragio de protesto contra a decisio da OTAN (Organizagio do Tratado do Atlintico Norte) de armazenar misseis nucleares na base aérea estadunidense de Greenhan Common, na Inglaterra. Ap6s ter eaminhedo cerca de 50 quildmetros, desde Cardiff, no Pafs de Gales, até a base de Greenham Commom, situada em Bekshire, Inglaterra, 0 grupo de mulheres acampou _Préximo 20 portio principal da base (N. do). Figura 2—O clreulto da cultura, segundo Paul de Gay Referéncias bibliograficas ALEXANDER, J. (org,). Durkheimian Sociology: cultural studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1990 ALTHUSSER, L. For Marx. Harmondsworth: Penguin, 1969 —.Lenin and Philosophy, and other Essays. Londres: Left Books, 1971. ANDERSON, B. Imagined Communities: reflections on the ori- m. Londres: Verso, 1983, gins spread of nationali: AZIZ, R. Feminism and the challenge of racism: deviance or difference, in: CROWLEY, H. & HIMMELWEIT, S. (orgs.) Knowing Women. Cambridge: Polity/The Open University 1992. BOCOCK, R. & THOMPSON, K. (orgs ). Religion and Ideology, Manchester: Manchester University Press/The Open Univer sity, 1985, BOURDIEU, P. Distinction: a social taste. 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A produgao social da identidade e da diferenca Tomaz Tadeu da Silva ‘As quest6es do multiculturalismo e da diferenga torna- ram-se, nos tiltimos anos, centrais na teoria educacional crf. tica e até mesmo nas pedagogias oficiais. Mesmo que trata das de forma marginal, como “temas transversais”, essas questdes so reconhecidas, inclusive pelo oficialismo, como legitimas questées de conhecimento. O que causa estranhi zanessas discuss6es 6 entretanto, a auséncia de uma teoria da identidade ¢ da diferenga. Em geral, o chamado “multiculturalismo” ap6ia-se em uum vago e benevolente apelo & tolerancia e ao respeito para com a diversidade e adiferenga. E particularmente proble- mitica, nessas perspectivas, a idéia de diversidade, Parece dificil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existéncia da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a critica politica da identidade e da diferenca. Na perspectiva da diversidade, a diferenga e a identidade tendem a ser naturalizadas, crista- lizadas, essencializadas, S40 tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posigao. Em geral, a posicao socialmente aceita e pedagogicamente re- comendada é de respeito e tolerdncia para com a diversida- de ea diferenca. Mas sera que as questées da identidade e da diferenca se esgotam nessa posigao liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia critica e questionadora? Nao deverfamos, antes de mais nada, teruma teoria sobreaproductio ¢ da diferenga? Quais as inplrggtee paces en a tos como diferenca, identidade, diversidade, alterideeo © que esté em jogo na identidade? Como se configs nio na diversidade, mas na diferenca, conecbide cans processo, um pedagogia e um curriculo que nao s sti ‘assem _a_celebrar a identidade e con i oe Duseisem problemas at fp eee HS Su las? E para questoes con Bruscasse atizé-las? EE para questdes como essa qué Sé Volta 0 presente ensaio, : Identidade e diferen: i é Mons 1ea: aquilo que é e aquilo que Em uma primeira ay a : ' aproximacio, parece ser fécil definir identidade”. A identidade é simplesmente we 2 A idl aquilo que se é: ‘sou brasileiro”, “sou negro”, rial, “sou tbr ‘sou heterossexual”, “sou jo- vem, “sou homem’. A identidade assim onectida on ser uma positividade (“aquilo que sou’), uma caracteristic, independente, um “fato” autonomo. Nessa perspectiva, « identidade s6 tem como referéncia a sipreptaralsé eo, auto-suficiente. i la parece ms zl Na mesma linha de raciocinio, t ambém a diferenca 6 concebid como ume entdade Anas, nes t ependen 2 copceb ventid jpenas, nes- a c ss. ‘em oposigio Xidentidade, a diferenga é aq quilo que ooo Gola 6 italiana”, “ela € branca’ “eta homosse- la ela € velh: 4 aa ate i wel €mulher”. Da mesina Torma que a Com ania terenee & nesta Derspectva, concebida auto-referenciada, como algo que remete a si pr6 nou le asi propria. A diferenca, tal como a identidade, simplesmente exisne _ 2ficil compreender, entretanto, que identidade e dife 7 Us estdo em uma relacdo de estreita dependéncia, A for- ima afirmativa Como expressamos a identidade tende a es- ler essa relagéo. Quando digo “sou brasileiro” parece ” que estou fazendo referéncia a uma identidade que se es- gota em si mesma, “Sou brasileiro” - ponto. Entretanto, eu saiffrmagio porque existem outros setes Emum mundo imaginério s6 preciso humanos que ndo sao br totalmente homogéneo, no qual todas as pessoas partilhas- sem a mesma identidade, as afirmag6es de identidade nao fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocon com nossa identidade de “humanos”. E apenas em circun! tancias muito raras ¢ especiais que precisamos afirmar que “somos humanos”. @firmagao “sou brasileiro”, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de “negagoes”, de expressdes negativas de identidade, de diferencas. Por tras da afirmagio “sou brasi- leiro” deve-ser ler: “nao sou argentino”, “nao sou chinés”, ma cadeia, neste “nfo sou japonés” e assim por diante, ni caso, quase intermindvel. Admitamos: ficaria muito compli- cado pronunciar todas essas frases negativas cada vez que eu quisesse fazer uma declaracio sobre minha identidade. A gramitica nos permite a simplificagao de simplesmente dizer “sou brasileiro”. Como ocorre em outros casos, a gra- matica ajuda, mas também esconde. Da mesma forma, as afirmagdes sobre diferenga s6 fa- zem sentido se compreendidas em sua relagéo com as afir- mages sobre a identidade, Dizer que “ela 6 chinesa’ significa dizer que “ela nao é argentina’, “ela no 6 japonesa” etc., incluindo a afirmagio de que “ela nao é brasileira’, isto é, que ela nfo 6 0 que eu sou. As afirmagdes sobre diferenca também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declaragées negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade depende da diferenca, a diferenca depende da identidade. tidade e diferenga S20, pols, INSEpARVES._ ~ Em geral, consideramos a diferenga como um produto derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referéncia, 60 ponto original relativamente ao qual se define i a diferenga. Isto reflete a tendéneia mos como sendo a norma pel ‘mos aquilo que ni a tomar aquilo que so. la qual descrevemos ou ava ’o somos. Por sua vez, ni venho tentando desenvolver, identid, vistas como mutuamente det radic lia- a perspectiva que lade ¢ diferenca sig terminadas. Numa visio maig al, entretanto, seria possfvel dizer que, contrariamenta & primeira perspectiva, 6 a diferenca que vem em primeiro lugar. Para isso seria preciso considerar a diferenca vn pFOCESSO mesmo pelo qual tanto diferenca (compreendida, aqui, como resultado) so produ- zidas. Na rigem estariaa diferenga=compreendida, agore, como atau processo de diferenciagao. Em cisamente essa ~wogio_que esti naa i conceituagio lingiiistica de diferenga, como veremos adiante. vac = a identidade quanto a saa \dentidade e diferenga: criaturas da linguagem Além de serem interdependentes, identidadee Sa partilham uma importante caracteristica: elas sao o resul- tado de atos de criagéo lingiifstica. Dizer que so 0 resultado de atos de criagdo significa dizer que nio sao “elementos” Sstejam simplesmente af, A espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas_ A identids Aiferenca tém que ser ativamente prodai as, Elas no sio C¥iaturas do mundo natural ou de um mundo transcenden- fal, mas do mundo cultural e social. Somos nés que as fa- >ricamos, no contexto de relagées cultur identidade e a diferenca so cr riage: diferen- no so esséncias, ‘ais € sociais. A socials e culturais Dizer, por sua vez, que identidade e diferenga sio 0 aIaultado de atos de eriagko lingistica significa dizer que ¢las so criadas por meio de ato os de linguagem. Isto parece Uma obviedade. Mas como tendemos a tomé-k das, como las como da- fatos da vide a", com freqiéncia esquecemos que 6 ~poreo”, "nao é ea diferenga tém que ser n : Hees x de ie que intiutis 0 iden Per ronga como tais. A definigio da ientidde brs, a meemplo, 6 oresultado da criagio de varadose comple Por os lingiisticos que a definem como sendo dife xosal entidades nacionais. : outras ident es sao Cam to gti dential dfn etn itasa.certas propriedades que caracterizama ina emgeral Po 1c, segundo o lingiista sufgo Ferding aerate — Imente, um sistem le Saussuré a linguagem a ce sta idéia quan- ja haviamos encontrado esta i e diferengas. Nos ja ha Ada = oe da identidade e da diferenca me cles a 's6 tém sentido no interior de uma cadeia de dife io ser isto” e “no ser a ifs (“ser isto” significa 0 lingifstica (“se fica“ eats cio re ilo ser mais aquilo”e assim por diante). aquil i: Deacordo com Saussure, os eleneean — - 4 — do té er valor absoluto, Iingua nao tém qualquer mnstituem uma ling pe valor absolute nfo favem sentido se consideradosisoladamente. Se as ai de um signo, se ecto material de u grafico on font Afico “vaca”, por exemplo, ou Afi onét inal gréfico “vaca”, p co ou fonético (0 s cep, ou as valent fonéca). no hénele nada int ser seu equiva lena Intec qu meta Aquela coisa que reconhecemos ema send vaca ele poderia, de forma igualmente ar oi remetor am outro objeto como, por exemplo, uma face. Ble sé cael , cadeia infinita yu adquire valor —ou sentido numa cada i fda le ce ie é e sii erentes del a 1 fonéticas que sao dife areas gréficas ou foné f = tt tmetmo ecnrre se eonsideramds 0 significado que 61 at mesmo ocorre Jeram ado que coma um determinado sign isto & se consderamos seu aspecto conceitual. O conceito de “vaca” s6 ee este i conceitos que néo sho “vaca” Tal como ¢ infinita de conceit no sf f Bl essa es como conceit “sou brasileiro", «pala va Sie imma maneira conveniente ¢ abroviada de dizer“ ja maneira conveniente © abrevi eat FFVOFE, Thdo é casa” e assim por diante. outras palay fo pas mm sis “tife- outras palavras, a Timgua nao passa dew rengas. Reencontramos, aqui, em cont ents om aidéia de diferenga como produto, a nogio de diferenga como a ope- ragio ou 0 proceso bisico de funcionamento da ling acio OL ors a nto da lingua e, or extensio, de instituigGes culturais e sociais como a ider tidade;por-exemplo;— ae os n- Mas a linguagem vacila... A identidade ¢ a diferenga nio podem ser compreend das, pais. Tora dor stemas do signfeagio nos quatre = sentido. Nao sao Seres da natureza, mas da Shine dos sistemas simbelicos que a compéerm. Dizer ts0 Tio significa, entretanto, dizer que elas séotleterminadas, de uma vez por todas, pelos sistemas discursivose simb6l- que Thes dio definigio. Ocorre que a lingu: entendida aqui de forma mais geral como sistema de significagio, 6, ela prépria, uma estruturainstivel. & pre. cisamente isso que te6ricos pés-estruturalistas como Jae. ques Derrida vém tentando dize: ined Wi guagem vacila, Ou, nas palavras do lingilista Edwar Sap todas as gramaticas vazami (1921), Essa indeterminagio fatal da linguagem decorre d caracteristica fundamental do signo. O signo 6 mom Ei uma marca, um trago que esti no lugar de uma outra coisa, a qual pode ser um objeto conereto (0 objeto “yato”), um conceit ligado a um objeto conereto(o conceito de “gato”) a coisa ovo conceit, Na linguagem filosien de Derrida, poderiamos dizer que o signo nao é i » ° uma presenga, ou seja, coisa ou 0 conceito nao esto presentes no signo. . Mas a naturez . seins natureza da linguagem 6 tal que no podemos deixar de ter a ilusao de ver. =~ deixar de tera lusio de vero signo como uma presenca, isto 6, de ver no signo a presenca do referente (a “coisa) ou do eito. Ea isso que Derrida chama de “metafisica da pre- sega’ Essa “ilusio” é necesséria para que o signo funcione omo tal: afinal, o signo est no lugar de alguma outra coisa. Embora nunca plenamente realizada, a promessa da pre- senga 6 parte integrante da idéia de signo. Em outras palavras, podemos dizer, com Derrida, queaplena presenga {da “coisa”, do conceito) no signo ¢ indefinidamente adiada. E também a impossbilidade dessa presenga que obriga 0 signo a depender de um processo de diferenciagio, de diferenga, como vimos anteriormente. Derrida acrescenta ‘isso, entretanto, a idéia de trago: 0 signo carrega sempre no apenas o traco daquilo que ele substitu, mas também 6 trago daquilo que ele nao é, ou seja, precisamente da diferenca. Isso significa que nenhum signo pode ser sim- plesmente reduzido a si mesmo, ou seja, 4 identidade. Se quisermos retomar 9 exemplo da identidade e da diferenga cultural, a declaragéo de identidade “sou brasileiro”, ou seja, a identidade brasileira, carrega, contém em si mesma, 0 traco do outro, da diferenca ~ “no sou italiano”, “nio sou chinés” etc. A mesmidade (ow a identidade) porta sempre 0 traco da outridade (ou da diferenga) ‘© exemplo da consulta ao diciondrio talvez ajude a compreender melhor as questées da presencae da diferenga ‘em Derrida. Quando consultamos uma palavra no dicioné- rio, o diciondrio nos fomece uma definigao ou um sindnimo daquela palavra. Em nenhum dos casos, 0 dicionério nos apresenta a “coisa” mesma ou 0 “conceito” mesmo. A defi- nicéo do diciondrio simplesmente nos remete para outras palavras, ou seja, para outros signos. A presenca da “coisa” Fresma ou do conceito “mesmo” é indefinidamente adiada: ela 56 existe como trago de uma presenga que nunca se concretiza. Além disso, na impossibilidade da presenga, um determinado signo s6 € o que é porque ele nio é um outro, nem aquele outro etc., ou seja, sua ‘existéncia é martada unicamente pela diferenga que sobrevive em cada signo como trago, como fantasma e assombragio, se podemos assim 7m dizer: Bm suma, 0 signo 6 caracterizado pelo diferimento ou adiamento (da presenga)e pela diferenca (relativamentes outros signos), duas caracteristicas que Derrida sintetion an conceita de différanci ‘Toda essa conver sa sobre presenca, adiamento e difer renga serve para mostrar que se é verdade que somos, de certa forma, governados pela estruturada linguagem, nas Rodemos dizer, por outro lado, que se trate exataments de uma estrutura muito segura. Somos dependentes sect ie caso, de uma estrutura que balanca. O adiamento in. definido do significado e sua dependéncia de uma ope- racio de diferenca significa que 0 processo de signifi S40 ¢ fundamentalmente indeterminado, sempre ince ¢ yacilante. Ansiamos pela presenga ~ do significado, da referente (a coisa & qual a linguagem se refere). Mas aa medida em que nao pode, nunca, nos forever essa desejade Presenca, a linguagem é caracterizada pela indeterminagao € pela instabilidade. Essa caracterfstica da linguagem tem conseqiiéncias importantes para a questio da diferenca e da identidads culturais. Na medida em que sio definidas, e ae das, em parte, por meio da linguagem, a identidade e ai diferenga nao podem deixar de sermareadas, também, pelaindete inagioe pela instabilidade. Voltemos, uma vez mais, ao nosso exemplo da ‘dentidade brasileira. A identidade “ser brasileie’ sac Pode, como vimos, ser compreendida fora de um processo de produgio simbolica discursiva, em que 0 “ser bresilon ro" nfo tem nenhum referente natural ou fito, nfo é unt absoluto que exista anteriormente a linguagem e fora dela Ela s6 tem sentido em relagio com uma eadeia de significa- io formada por outras identidades nacionais que, por sua Vez lampouco sio fixas, naturais ou predeterminadas, Em. Suma, a identidade ¢ a diferenca sio tio indeterminadas ¢ ‘eis quanto a linguagem da qual dependem. Aidentidade e a diferenga: o poder de definir Jasabemos queaidentidade ea diferencasioo a de um processo de produgio simbélica e discursiva pn. cesso de adiamento e diferenciacao linguisticos por dnd qual elas sio produzidas esti longe, entretanto, i étrico.A identidade, tal como adiferenga, éumarelagio calancen sua definigéo — discursiva e lingiiis- \jeita a vetores de farga, a relacées de poder. Elasnio sao simplesmente definidas; elas so impo: fas Xa nao convivem harmoniosamente, Iado a Tado, em um camp sem hierarquias; elas so disputadas. Nao se trata, entretanto, apenas do fato de que a defini- cdo da identidade eda diferenca seja objeto de disputa ie i i ite situados relativamente ao 108 sociais assimetricament d 0 a Na disputa pela identidade est4 envolvida uma dis- pata mals ampla por outros recursos simbélicos e 4 Besoctadas As i iagao da a sodiodade,5 sirmagin da dentate dx onupeioe diferenga traduzem o des stint temente tocag epee coco ‘aos bens sociais. A identidade e a diferenga = estreita conexio com relagées de poder. O poder ale identidade e de marcar a diferenca nio pode ser separa das rlagbes mais amplas de poder Aidentidade e a dife- rénga nfio sfo, nunca, inocentes,_ 7 Podemos dizer que onde existe diferenciacio ous be fe 4 prese © eren- ca — af est presente o poder. A difere1 identidade e diferenga— af est4 pr er. diferen- ciacdo é 0 processo central pelo qual a identidade e a di ferenga sao produzidas. H4, entretanto, uma série de se processos que traduzem essa diferenciagio ou paceman guardam uma estreita relacio. So outras tantas marcas da guardam uma estreita rel i ir (“estes pertencem, aque- senga do poder: incluir/excluir estes p = Tes n8o"}, demarear fronteiras Cals” € “eles") aassifca "5 "pros "; “desenvolvidos e prin (“bons e maus”; “puros € impuros’; “desenvol P analison detalhadamente esse processo. Para ele, as sposicdes binarias ndo expressam uma simples divisio spemundo em dias elasses simétricas: em uma oposicio ti dria, um dos termos 6 sempre privileg ado, recebendo um valor positive, enquanto 0 outro recebe uma carga Native, “Nos” e “eles”, por exemplo, constitul uma }_normalizar (“nés somos normais; eles sfio anormais”). A afirmagio da identidads e a marcagdo da diferenca implicam, sempre, as operagées de incluir de exclun ol Como vimos, dizer “o que somos” significa também dizer ~ “o que no somos”. A identidade ea diferenca se traduzem, assim, em declarages sobre quem pertence e sobre quem nio pertence, sobre quem esta incluido e quem esti exelut do, Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, si. nifica fazer distingdes entre 0 que fica dentro ¢ o que fiea fora. A identidade esta sempre ligada a uma forte separacay entre “nés” e “eles”. Essa demarcagio de fronteiras, exes separacao e distingao, supdem e, ao mesmo tempo, afirmam =~ ¢reafirmam relagdes de poder: “Nés” ¢ “eles” nio so, neste caso, simples distingdes gramaticais. Os pronomes “nds” ¢ “eles” nao s4o, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posigées-de-sujeito fortemente marcadas por relagdes de poder um sativa. “N6s’ avn & ‘en tos cio binaria: nao é preciso dizer qual termo é, pica oposigai ui, privilegiado. As relagdes de identidade e diferenga aqui, privilegia dade e diferensa gudenam-se, todas, em torno de oposigées binarias: m estionar a identidade ea diferenca como relacies “significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam 7 ~ + _Fixar uma determinada identidade somonnerea § formas privilegiadas de hierarquizacio das id = aie e das dferengas. A normalizagto é um dos processos mais | sutis pelos quais o Poder se manifesta no ae Pe da Sent dade € da diferengs Normalizar signifies eleger — arbitra riamente—umaidertidade especifica como o pardn | rtagao so qual x outa identiades sioavalidase hierar | quizadas. Normalizar significa atibuir a essa esthide todas as caracerstias positvas possiveis, em relagio as quais as outras identidades s6 podem preven iatorm | nogativa, A identidade normal é “natural”, desejvel, mica | ae da identidade normal é tal que sic an ee & vistacomo ta identidade, mas simplesmentecomoa iden- tidade. Paradoxalmente, so as outras identidades Dividir 0 mundo social entre “nés” ¢ “eles” significa classificar. O proceso de classificacio & central na vida Social. Ele pode ser entendido como um ato de significagiio elo qual dividimos e ordenamos omundo social em grupos, om classes. A identidade e a diferenga esto estreitamente relacionadas as formas pelas quais a sociedade produz ¢ utiliza classificagdes, As classificacées sio sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. Isto as classes nas adade em que impera a su- - —- como tais. Numa sociedade em que imp duais o mundo social ¢ dividido nao sio simples agrupamen- | marcadas como tais. sremplo, “ser branco” nfo é conside- tos simétrcos, Dividir e clssifcarsignifen, ness ome, | Ree ee esa nancmeingmer também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar sig- | rado uma identid a nifica também deter o privilégio de atribuir diferentes v nado pela hegemonia cultural estadunidense, “étnica’ lores aos grupos assim clasificados, ses, Ea sexualidade miisica ou a comida dos outros paises. : a wan ante cdo enon (", nfo a heterossexual. A e é “sexualizada”, nao a hete fi | homossexual que ¢ “sexu ——— stem eo sa a r - fe forca homogeneizadora da identidade normal é di ni se estruitura em torno de oposigées bindrias, isto 6, em torno ap hone ores de duas classes polarizadas. O filésofo francés Jacques Der. | a la qui lino/feminino, branco/negro, iepacomana™ Q culino/feminino, bra Namedida em que é uma operagio de diferenciagio, de produgao de diferenca, o anormal é inteiramente constitu-" tivo do normal. Assim como a definigio da identidade de- pende da diferenca, a definigéo do normal depende da de- finigéo do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definicao e da constituigo do “dentro”. A definigao daquilo que é considerado aceitivel, desejével, natural 6 inteiramente dependente da definigio daquilo que é consi- derado abjeto, rejeitével, antinatural. A identidade hegemo- nica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existéncia ela no faria sentido. Como sabemos desde o inicio, a diferenga é parte ativa da formagio da identidade. Fixando a identidade processo de produgio da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, esto aqueles processos que ten- dema fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os proces- sos que tendem a subverté-la e a desestabilizé-la. & um proceso semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos e lingiifsticos nos quais se sustenta a produgao da identidade. Tal como a linguagem, a tendéncia da iden- tidade é para a fixagio. Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade esta sempre escapando. A fixagio uma tendéncia e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. A teoria cultural e social pés-estruturalista tem percor- rido os diversos territérios da identidade para tentar descre- ver tanto os processos que tentam fixé-la quanto aqueles que impedem sua fixagio. Tém sido analisadas, assim, as identi- dades nacionais, as identidades de género, as identidades sexuais, as identidades raciais ¢ étnicas. Emboraestejam em funcionamento, nessas diversas dimensées da identidade cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obede- cem a dindmicas diferentes. Assim, por exemplo, enquanto © recurso a biologia é evidente na dinfmica da identidade oy de género (quando se justifica a dominagao masculina por meio de argumentos diol6gicos, por exemplo), ele é menos utilizado nas tentativas de estabelecimento das identidades nacionais, onde so mais comuns essencialismos culturais. No caso das identidades nacionais, é extremamente co- mum, por exemplo, o apelo a mitos fundadores. As identi- dades nacionais funcionam, em grande parte, por meio daquilo que Benedith Anderson chamou de “comunidades imaginadas”. Na medida em que nao existe nenhuma “co- munidade natural” em torno da qual se possam reunir as pessoas que constituem um determinado agrupamento na- cional, ela precisa ser inventada, imaginada. F necessério criar lagos imagindrios que permitam “ligar” pessoas que, sem eles, seriam simplesmente individuos isolados, sem nenhum “sentimento” de terem qualquer coisa em comum, A lingua tem sido um dos elementos centrais desse processo — a hist6ria da imposigao das nagdes modernas coincide, em grande parte, com a histéria da imposigéo de uma Kingua nacional (nica e comum. Juntamente com a lingua, é central a construgio de simbolos nacionais: hinos, bandeiras, brasdes. Entre esses simbolos, destacam-se os chamados “mitos fundadores”. Fundamentalmente, um mi- to fundador remetea um momento crucial do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral her6i- co, épico, monumental, em geral iniciado ou executado por alguma figura “providencial”, inaugurou as bases de ‘uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os fatos assim narrados so “verdadeiros” ou no; 0 que im- porta é que a narrativa fundadora funciona para dar & identidade nacional a liga sentimental ¢ afetiva que The garante uma certa estabilidade e fixagio, sem as quais ela nao teria a mesma ¢ necessaria eficdcia. Os mitos fundadores que tendem a fixar as identidades mnais so, assim, um exemplo importante de essencia- 85 lismo cultural. Embora aparentemente baseadas em argu. mentos biol6gicos, as tentativas de fixagio da identidade que apelam para a natureza nao sio menos culturais. Basear a inferiorizacio das mulheres ou de certos grupos “raciais” ou 6tnicos nalguma suposta caracteristica natural ou biolégica nio 6 simplesmente um erro “cientifico”, mas a demonstragao da imposigao de uma elogiiente grade cultural sobre uma nature- za que, em si mesma, é ~ culturalmente falando — silenciosa AAs chamadas interpretagdes biolégicas so, antes de serem biolégicas, interpretagées, isto é, elas nao sio mais do que a imposigio de uma matriz de significagéo sobre uma matéria que, sem elas, nao tem qualquer significado. Todos os essen- cialismos sao, assim, culturais. Todos os essencialismos nas- cem do movimento de fixagio que earacteriza o proceso de producio da identidade e da diferenca. Subvertendo e complicando a identidade Mais interessantes, entretanto, sio os movimentos que conspiram para complicar e subverter a identidade. A teoria cultural contempordinea tem destacado alguns desses mov mentos. Alias, as metéforas utilizadas para descrevé-los recorrem, quase todas, & prépria idéia de movimento, de viagem, de deslocamento: diéspora, cruzamento de frontei- ras, nomadismo. A figura doflaneur, descrita por Baudelaire e retomada por Benjamin, é constantemente citada como exemplar de identidade mével. Embora de forma indireta, as metéforas da hibridizagao, da miscigenacio, do sincretis- mo e do travestismo também aludem a alguma mobilidade entre os diferentes territ6rios da identidade. As metéforas que buscam enfitizar 08 processos que compli- cam e subvertem a identidade querem enfatizar ~ em con- traste com o processo que tenta fixé-las—aquilo que trabalha para contrapor-se & tendéncia a essencializé-las. De acordo ‘com essas perspectivas, esses processos niio sio simples- 86 mente te6ricos; eles so parte integral da dindmiea da pro- dugio da identidade e da diferenga ~ © hibridismo, por exemplo, tem sido analisado, sobre~ tudo, em relagio com o proceso de produgao das identida- des nacionais, raciais e étnicas. Na perspectiva da teoria cul- tural contemporinea,o hibridismo —a mistura, a conjungio, 0 intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes ‘etnias, ente diferentes ragas — coloca em xeque aqueles pro- cessos que tendem aconceber as identidades como fundamen- talmente separadas, civididas, segregadas. Q_processo de hi- pridizacéo confinde a suposta pureza e insolubilidade dos grupos que se retinem sob as diferentes identidades nacionais. racials ou @tnicas.-A identidade que se forma por meio do hibridismo nao é mais integralmente nenhuma das identi- dades originais, embora guarde tragos delas. Nao se pode esquecer, entretanto, que a hibridizaga di entre identidades situadas assimetricamente em relagéo ao poder. Os processos de hibridizagio analisados pela teo- ria cultural contempordnea nascem de relagées conflituosas entre diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles estio ligados a hist6rias de ocupagao, colonizagio e destrui- io. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridizagio forcada. O que a teoria cultural ressalta é que, ao confundir a estabilidade e a fixagio da identidade, a hibridizagio, de alguma forma, também afeta o poder. Q “terceiro espago (Bhabha, 1996) que resulta da hibridizagao nio-édetermi- nado, nunca, unilateralmente, pela identidacle hegeménica: ele introduz ummdiferenga que constitui a possibilidade de seu questionamento. — — O hibridismo esté ligado aos movimentos demogréficos que permitem o contato entre diferentes identidades: as dissporas, os deslocamentos ndmades, as viagens, 0s cruza- mentos de fronteiras. Naperspectiva da teoria cultural con- tempordnea, esses movimentos podem ser literais, como na 87 didspora forcada dos povos africanos por meio da escraviza- ‘cao, por exemplo, ou podem ser simplesmente metaforico: “Cruzar fronteiras”, por exemplo, pode significar simples- mente mover-se livremente entre os territ6rios simbélicos de diferentes identidades. “Cruzar fronteiras” significa no respeitar os sinais que demarcam — “attificialmente” - os limites entre os tervitérios das diferentes identidades. Mas € no movimento literal, concreto, de grupos em movimento, por obrigaco ou por op¢éo, ocasionalmente ou constantemente, que a teoria cultural contempordnea vai buscar inspiragio para teorizar sobre os processos que ten- dem a desestabilizar e a subverter a tendéncia da identidade viento processos de hibridizagio, za iginais. Da mesma forma, movimentos MIgratorios ont geral, como os que, nas iltimas décadas, por exemplo, deslocaram grandes contingentes | populacionais das antigas col6nias para as antigas metrépo, Tes, favorecem processos que afetam-tanto as identidades subordinadas quanto as hegeménicas/Finalmente, é a viagem em geral que é tomada como metiifora do cardter necessaria- mente mével da identidade. Embora menos traumética que a dispora ou a migracao forgada, a viagem obriga quem viaja a sentir-se “estrangeiro”, posicionando-o, ainda que temporaria- mente, como o “outro”. A viagem proporcionaaexperiénciado “néi sentir-se em casa” que, na perspectiva da teoria cultural contempordnea, caracteriza, na verdade, toda identidade cul- tural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de forma limitada, as delicias — e as insegurancas — da instabi- lidade e da precariedade da identidade. 88 mam, desestabili-. 4 Se 0 movimento entre fronteiras coloca em evidéncia a instabilidade da identidade, é nas prOprias linhas de fron- teira, nos limiares, nos interstfcios, que sua precariedade se tora mais visivel. Aqui, mais do que a partida ouachegada, écruzar a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que éoacontecimento critico. Neste caso, éa teorizagio cultural contempordnea sobre género e sexualidade que ganha cen- tralidade. Ao chamar a ateng&o para o caréter cultural € construido do génezo e da sexualidade, a teoria feminista e a teoria queer contribuem, de forma decisiva, para o ques- tionamento das oposig6es binérias ~ masculino/feminino, heterossexual/homossexual ~ nas quais se baseia o proceso de fixagao das identidades de género e das identidades sexuais. Appossibilidade de “eruzar fronteiras” e de “estar na fronteita’, de ter uma identidade ambigua, indefinida, 6 uma demonstra- io do caréter “attiicialmente” imposto das identidades fixas. “cruzamento de fronteiras” ¢ 0 cultivo propositado de iden- tidades ambfguas é, entretanto, ao mesmo tempo uma podero- sa estratégia politica de questionamento das operagdes de fixagdo da identidade. A evidente artificialidade da identi- dade das pessoas travestidas e das que se apresentam como drag-queens, por exemplo, denuncia a ~ menos evidente — artificialidade de tedas as identidades. Identidade e diferenga: elas tém que ser representadas Jé sabemos que a identidade e a diferenca estio estrei- tamente ligadas a sistemas de significagio. A identidade 6 ‘um significado — cultural e socialmente atribuido. A teoria cultural recente expressa essa mesma idéia por meio do conceito de representacio. Para a teoria cultural contempo- rinea, a identidade e a diferenca estio estzeitamente asso- ciadaga sistemas de representacao. 89 conceito de representagdo tem uma longa histéria, 0 que Ihe confere uma multiplicidade de significados. Na hist6ria da filosofia ocidental, a idéia de representagio est ligada busca de formas apropriadas de tornar 0 “real” presen- te — de apreendé-lo o mais fielmente possivel por meio de sistemas de significagio. Nessa hist6ria, a representagéo tem-se apresentado em suas duas dimensdes — a representagio exter na, por meio de sistemas de signos como a pintura, por exem- plo, ou a prépria linguagem; e a representagio interna ou mental ~a representagio do “real” na consciéncia. pés-estruturalismo ¢ a chamada “filosofia da diferen- ca” erguem-se, em parte, como uma reagio a idéia clissica de representagao. E precisamente por conceber a lingua~ gem ~ e, por extensiio, todo sistema de significagio - como uma estrutura instavel e indeterminada que o pés: truturalismo questiona a nogao clissica de representacio. Isso nao impediu, entretanto, que tedricos e teéricas ligados sobretudo aos Estudos Culturais como, por exemplo, Stuart Hall, “recuperassem’ o conceito de representagao, desen “Volvendo-o em conexao com uma teorizagio sobre a identi- dade e a diferenca s- lesse contexto, a representagio 6 concebida como um sistema de significagio, mas descartam-se os pressupostos realistas e miméticos associados com sua concepgao filos6- fica classica. Trata-se de uma representagio pés-estruture lista, Isto significa, priméiramente, que bretudo, qu F Gonotagoes mentalistas o1 a sociagao-com uma suposta interioridade psicolégica. No registro pés-estruturalista, arepresentagao 6 concebida uni- camente em sua dimensio de significante, isto é como sistema de signos, como pura marca material. A repre- seiTagao expressa-se por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um do oral. , nunea, repre- me, de um texto, de uma exp: ‘A representagio niio 6, nessa concepga 90 sentagio mental ov interior A representacio 6, aqui, sempre marca ou trago visivel, exterior. Tin segundo lugar, na perspectiva p6s-estruturalista, 0 conceito de representagio incorpora todas as caracteristicas ‘Ie indeterminagao, anbigitidade e instabilidade atribuidas alinguagem. Isto significa questionar quaisquer das preten- ‘es miméticas, especulares ou reflexivas atribuidas & re- presentagio pela perspectiva clissica. Aqui, arepresentagio nfo aloja a presenga do “real” ou do significado. A repre- sentagio néo 6 simplesmente um meio transparente de expressfo de algum suposto referente. Em vez disso, a representagto 6, como qualquer sistema de significacio, uma forma de atribuigéo de sentido, Como tal, a repre- sentago é um sistema lingitistico ¢ cultural: arbitrério, indeterminado e estreitamente ligado a relagdes de poder: E aqui que a representagio se liga 3 identidade ¢ & diferenca. A identidade ¢ a diferenca slo estreitamente dependentes da representacio. E_por meio da repre-_ sentagio, assim compresndids, que a identidade 2 ie renga adquirem serrido: or Tepresentacao que, por assim dizer, a identidade ¢ a diferenga passam a existir: Representar significa, neste caso, dizer: “essa é a identida- de”, “a identidade 6 isso (2B também por meio da representagao que a identidade “Ga diferenca se ligam a sistemas de poder. gest n temo poder de representar tem o poder de definir e determinar aidentidade. E por isso que a repre ‘ocupa um lugar entaga \\_fa5 central na teorizagio contemporinea sobre identidade ‘e nos movimentos sociais ligados & identidade. Questionar aidentidade e a diferenca significa, nesse contexto, questio- ar os sistemas de representa que The supe S Justentagio. No centro da critica da identidade e da dife- renga esti uma critica das suas formas de representacio. ségiens e curti- Nao é dificil perceber as implicagdes peda 9 calares dessas conexdes entre identidade e representacio Apedagogia eo curriculo deveriam ser eapazes de oferecer oportunidades para que as criangas ¢ as/as jovens desen- volvessem capacidades de critica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representaco da iden- tidade e da diferenga, Identidade e diferenga como performatividade Remeter a identidade e a diferenca aos processos dis- cursivos ¢ lingiisticos que as produzem pode significar, entretanto, outra vez, simplesmente fixé-las, se nos limitar- mos a compreender a representacao de uma forma pura- mente descritiva. Seré 0 conceito de performatividade, desenvolvido, neste contexto, sobretudo pela tedrica Judith, Butler (1999), que nos permitiré contonar esse problema, O conceito de performatividade desloca a énfase na identi- dade como descrigo, como aquilo que é — uma énfase que de certs forma, manta pelo conceito de representagio —para a idéia de “tornar-se”, para uma concepgéo da iden- Wad cpermoeimants uncut macio. A formulagio inicial do conceito de “performatividade” deve-sea}.A-Austin (1998). Segundo Austin, contrariamen- ted visio que geralmente se tem, a linguagem nio se limita a proposigées que simplesmente descrevem uma agéo, uma situagio ou um estado de coisas. Assim, se nos pedirem para dar um exemplo de uma proposicio tipica, provavelmente nos sairiamos com algo como “O livro esta sobre a mesa” ‘Trata-se, tipicamente, de uma proposigdo que Austin chama de “constatativa” ou “descritiva”, Ela simplesmente descre- ve uma situagio. Mas a linguagem tem pelo menos uma outra categoria de proposig6es que nao se ajustam a essa definigio: io aquelas proposiges que no se limitam a deserever um estado de coisas, mas que fazem com que alguma coisa wcontega, Ao serem pronunciadas, essas pro- 92 posigdes fazem cor que algo se efetive, se realize. Austin chama a essas proposigdes de “performativas”, Séo exem- plos tipicos de proposicées performativas: “Eu vos declaro marido e mulher”, “Prometo que te pagarei no fim do més”, “Declaro inaugurado este monumento”, Em seu sentido estrito, s6 podem ser consideradas per- formativas aquelas proposigées cuja enunciagio é absoluta- mente necesséria para a consecugiio do resultado que anuin- ciam. Entretanto, muitas sentengas descritivas acabam funcionando como performativas. Assim, por exemplo, uma sentenga como “Joio é pouco inteligente”, embora parega ser simplesmente cescritiva, pode funcionar ~ em um sen- tido mais amplo ~ como performativa, na medida em que sua repetida enuneiagio pode acabar produzindo o “fato” que supostamente apenas deveria descrevé-lo. E precisa- mente a partir desse sentido ampliado de “performativida- de” que-a te6rica Judith Butler analisa a produgéo da iden- tidade coma uma questio de performatividade, — Em geral, ao dizeralgo sobre certas caracteristicas iden- titérias de algum grupo cultural, achamos que e: plesmente descrevendo uma situagio existente, um “fato” do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que di- zemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingiis- ticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforgar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo. Assim, por exemplo, quando utilizamos uma palavra racista como “negrio” para nos referir a uma pessoa negra do sexo masculino, néo estamos simples- mente fazendo uma descrigo sobre a cor de uma pessoa. Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lin- giiistico mais amplo que contribui para reforgar a negativi- dade atribuida a identidade “neg stamos sim- Esse exemplo serve também para ressaltar outro ele- mento importante do aspecto performativo da produgio da 93 identidade. A eficécia produtiva dos enunciados performa. tivos ligados a identidade depende de sua incessante repe- tiggo. Em termos da produgio da identidade, a ocorréncia de uma tnica sentenga desse tipo nio teria nenhum efeito importante. E de sua repetigao e, sobre- tudo, da possibilidade de sua repetigio, que vem a forea que um ato lingiifstico desse tipo tem no proceso de produgao da identidade. & aqui que entra outra nogdo semi6tica importante, uma nogio que foi especialmente ressaltada por Jacques Derrida. Uma caracteristica es- sencial do signo é que ele seja repetivel. Isto quer dizer que quando encontro um signo como “vaca”, eu devo ser capaz de reconhecé-lo como se referindo, de forma relati- vamente estvel, sempre, & mesma coisa, apesar de variagSes “acidentais” — diferengas de caligrafia, por exemplo. Se as palavras ou os signos que utilizamos para nos referir as coisas ou aos conceitos tivessem que ser reinventados, a cada vez e por cada individuo ~ isto 6, se nao fossem re- petiveis — ja nao seriam signos tais como os concebemos. Derrida (1991) estende essa idéia para a escrita, em particular, e, mais geralmente, para a linguagem. Para Der- rida, 0 que caracteriza a escrita é precisamente 0 fato de que, para funcionar como tal, uma mensagem escrita qual- quer precisa ser reconhecivel e legivel na auséncia de quem a escreveu e, na verdade, até mesmo na auséncia de seu suposto destinatério. Mais radicalmente, ela 6 ind pendente até mesmo de quaisquer supos a pessoa que a escrev as intenges que 1 pudesse ter tido no momento em que 0 fez. Tudo isso é sintetizado na formula de que “a escrita 6 repetivel”. Segundo Derrida, isso vale para a lin- guagem em geral. Ele chama essa caracteristica, essa repe- tibilidade da escrita e da linguagem, de “citacionalidade” Nesses termos, o que distingue a linguagem (como uma extensto da escrita) € sua citacionalidade: ela pode ser smpre retirada de um determinado contexto inserida em jam contexto diferente ‘a “citacionalidade” da linguagem que_ se combina com seu ceriter performativo par ie a tr balhar no _processo de produgio da identidade Os ando utilizo a expresso “negrao” para me referir a um homem megro, ndo estou simplesmente manifestando uma opiniso gue tem arigem plena e exclusiva em minba intengio, em mninha consciéncia ou minha mente. Ela nfo é simples txpressio singular ¢ Ginica de minha soberana e livre opi- nifo. Em um certo sentido estou efetuando uma operagso ie “recorte e colagem’. Recorte: retiro a expressio do Contexto social mais amplo em que ela foi tantas vezes cnunciada. Colagem: insiro-ano novo contexto, no contexto fm que ela reaparece sob 0 disfarce de minha exclusiva piniio, como o resultado de minha exclusiva operagio rental. Na verdade, estou apenas “citando”. E essa citagio aque recoloca em agio 9 enunciado performative ae eforga 6 aspecto negativo atribuido a identidade negra de nosso exemplo, Minha frase € apenas mais uma ocorréncia de nse eitagio que tem sua origem em tum sistema mais amplo de operagbes de citagio, de performatividade esfinaimente, de definigéo, produgio e reforgo da identidade cultural Segundo Judith Butler (1999), a mesma repetibilidade que garante defiicia dos atos performativos que reforgumn as identidades existentes pode significar também a possibi- lidade da interrupgio das identidades hegeménicas. A sane fo pode ser interrompida. A repetigio pode ser questionada ssq internupgao-que residem as possibilida exatamente e! econtestada, E1 si 1 ‘los de instauragio de identidades que ndo representem sim plesmente a reprodugio das relagbes de poder existentes de interromper 0 processo de “recorte ¢ ada no processo de “citacionali- essa possibilidade i", de efet uma para colagem’, de efetuar uma p ional dade” que earacteriza os atos performativos que reforca 95 as diferengas instauradas, que torna possivel pensar na pro- dugio de novas e renovadas identidades. Pedagogia como diferenga Se prestarmos, pois, atengio A teorizagdo cultural con- temporanea sobre identidade e diferenca, nao poderemos abordar 0 multiculturalismo em educagao simplesmente como uma questio de tolerancia e respeito para com a diversidade cultural. Por mais edificantes e desejaveis que possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que vejamos a identidade e a diferenga como processos de produgdo social, como processos que envolvem relacdes de poder: Ver a identidade e a diferenga como uma questio de produgio significa tratar as relagdes entre as diferentes culturas nfo como uma questio de consenso, de dislogo ou comunicago, mas como uma questio que envolve, finda- mentalmente, relagées de poder. A identidade e a diferenca nio so entidades preexistentes, que estio af desde sempre ou que passaram a estar a af a partir de algum momento fundador, clas néo sio elementos passivos da cultura, mas tém que ser constantemente criadas e recriadas. A identi- dade e a diferenca tém a ver com a atribuiglo de sentido ao mundo social e com disputa eluta em torno dessa atribuigto. Nessa perspectiva, podlemos fazer uma sfntese, descre- vendo o que a identidade — tudo isso vale, igualmente, para a diferenga ~ndo 6 ¢ 0 que a identidade 6. Primeiramente, a identidade nao é uma esséncia; nao é_ um dado ou um fato — seja da natureza, seja da cultura/A identidade nao 6 fixa, estavel, coerente, unificada, perma nente. A identidade tampouco 6 homogénea, de acabada, identi, transcendental. Por outro lado, milan dizer_que a identidad construgio, um efeito, um ocean nr gr ee berate 7 96 identidade 6 instavel, contraditéria, fragmentada, inconsis- tente, inacabada. A identidade esta ligada a estruturas dis- cursivas ¢ narrativas. A identidade esté ligada a sistemas de representagio. A identidade tem estreitas conexGes com relagées de poder." Como tudo isso se traduziria em termos de curriculo e pedagogia? O outro cultural 6 sempre um problema, pais nentemente em xeque nossa propria identida- io da identidade, da diferenca e do outro é um mo tempo que é um problema pe- m problema sacial porque, em um mundo heterogéneo, 0 encontro com 0 outro, com o estra- nho, conto diferente, é inevitivel. & um problema pedagé- gic e curricular no apenas porque as criangas ¢ os jovens, em uma sociedade at-avessada pela diferenga, forgosamente interagem com 0 outro no prdprio espaco da escola, mas também porque a questo do outro e da diferenca nfo pode deixar de ser matéria de preocupagio pedagégica e curricu- lar. Mesmo quando explicitamente ignorado e reprimido, a volta do outro, do diferente, é inevitavel, explodindo em conflitos, confrontos, hostilidades e até mesmo violéncia. 0 reprimido tende a voltar ~ reforgado e multiplicada, Eo problema é que esse “outro”, numa sociedade em que a identidade toma-se, cada vez mais, difusa e descentrada, expressa-se por mi tro género, 0 outro é a co é a cor diferente, 0 | ‘outro € a outra sextalidade, o outro €a outra raga, o outro 6a outra naCto= Talidade, o outro é o corpo diferente. Uma primeira estratégia pedagégica possivel, que po- deriamos classificar como “liberal”, consistiria em estimular € cultivar os bons sentimentos ¢ a boa vontade para com a chamada “diversidade” cultural. Neste caso, 0 pressuposto bisico 6 o de que a “natureza” humana tem uma variedade de formas legitimas de se expressar culturalmente ¢ todas 7 devem ser respeitadas ou toleradas ~ no exercicio de uma tolerdncia que pode variar desde um sentimento paternalis. tae superior até uma atitude de sofisticagio cosmopolita de convivéncia paraa qual nada que éhumano lheé “estranho”, Pedagogicamente, as criangas os jovens, nas escolas, se. riam estimulados a entrar em contato, sob as mais varia- das formas, com as mais diversas expresses culturais dos diferentes grupos culturais. Para essa perspectiva, a di- versidade cultural é boa e expressa, sob a superficie, nos- sa natureza humana comum. O problema central, aqui, é que esta abordagem simplesmente deixa de questionar as relagbes de poder e os processos de diferenciacio que, antes que tudo, produzem a identidade e a diferenca. Em geral, 0 resultado é a produgio de novas dicotomias, como ado dominante tolerante e do dominado tolerado ou a da identidade hegemdnica mas benevolente e da identidade subalterna mas “respeitada’. Uma segunda estratégia, que poderfamos chamar de “terapéutica’, também aceita, liberalmente, que a diversi- dade é “natural” e boa, mas atribui a rejeigio da diferenca ¢ do outro a distirbios psicol6gicos, Para essa perspectiva, a incapacidade de conviver com a diferenga é fruto de sentimentos de discriminagio, de preconceitos, de crencas distoreidas e de esterestipos, isto é de imagens do outro que sio fundamentalmente erréneas. A estratégia pedagé- gicacorrespondente consistiria em “tratar” psicologicamen- te essas atitudes inadequadas, Como o tratamento pre- conceituoso e discriminatério do outro é um desvio de conduta, a pedagogia e 0 curriculo deveriam proporcionar atividades, exercfcios e processos de conscientizagao que permitissem que as estudantes e os estudantes mudassem suas atitudes. Para essa abordagem, a discriminagio e 0 preconceito sao atitudes psicolégicas inapropriadas e de- vem receber um tratamento que as corrija. Dindmica de 98 grupo, exercicios comporais, dramatizagies sio estratégias et muns nesse tipo de abordagem. Em algum lugar intermediério entre essas duas aborda- gens, situa-se a estratégia talvez mais comumente adotada ia rotina pedagégica e curricular das escolas, que consiste em apresentar aos estudantes ¢ as estudantes uma visio superficial e distante das diferentes culturas. Aqui, 0 outro aparece sob a rubrica do curioso e do exstico. Além de nao Gquestionar as relagbes de poder envolvidas na producto da jdentidade e da diferenca culturais, essa estratégia as refor- ¢a, ao construir 0 outro por meio das categorias do exotismo é da curiosidade. Em geral, a apresentagio do outro, nessas abordagens, é sempte o suficientemente distante, tanto no fespago quanto no tempo, para no apresentar nenhum risco de confronto e dissonancia Finalmente, gostaria de argumentar em favor de uma estratégia pedagégica e curricular de abordagem da identi- dade e da diferenca que levasse em conta precisamente as contribuigées da tecria cultural recente, sobretudo aquela de inspiracio pés-ostruturalista. Nessa abordagem, a peda- gogiaeo curriculo tratariam a identidade ea diferenga como questées de politica. Em seu centro, estaria uma discussio da identidade e da diferenga como produgao. A pergunta crucial a guiar o planejamento de um curriculo e de uma pedagogia da diferenca seria: como a identidade ea diferen- «a sio produzidas? Quais sao os mecanismos e as instituigdes que estio ativamente envolvidos na criagao da identidade e de sua fixagio? Para isso 6 crucial a adogao de uma teoria que descreva ¢ explique o processo de producdo da identidade e da di- ferenca. Uma estratégia que simplesmente admita e reco- hega o fato da diversidade torna-se incapaz de fornecer os instrumentos para questionar precisamente 0s mecanismos ¢ as instituigdes que fixam as pessoas em determinadas 99 identidades culturais e que as separam por meio da diferen. cultural. Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferenga, 6 preciso explicar como ela é ativamente produzida. A diversidade biol6gica pode ser um produto da natureza; 0 mesmo niio se pode dizer da diversidade cultural. A diver- sidade cultural nao é, nunca, um ponto de origem: ela 6, em vez. disso, 0 ponto final de um processo conduzido por operacées de diferenciagao. Uma politica pedagégica e cur. ricular da identidade e da diferenga tem a obrigagao de ir além das benevolentes declaracées de boa vontade para com a diferenga. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria que permita nao simplesmente reconhecer e celebrar a di- ferenga e a identidade, mas questioné-las Por outro lado, os estudantes e as estudantes deveriam ser estimulados, nessa perspectiva, a explorar as possibili- dades de perturbagio, transgressao e subversio das identi- dades existentes. De que modo se pode desestabilizé-las, denunciando seu carter construido ¢ sua artificialidade? Um curriculo e uma pedagogia da diferenga deveriam ser capazes de abrir o campo da identidade para as estratégias que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade em xeque: hibridismo, nomadismo, travestismo, cruzamen- to de fronteiras. Estimular, em matéria de identidade, 0 impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambiguo, em vex do consensual e do assegurado, do conhecido e do assenta- do, Favorecer, enfim, toda experimentago que torne difieil 0 retorno do eu e do nés ao idéntico. Aproximar - aprendendo, aqui, uma ligio da chamada “filosofia da diferenga” ~ a diferenca do miltiplo e nao do diverso. Tal como ocorre na aritmética, o miiltiplo é sempre um proceso, uma operagio, uma agio. A diversidade estitica, € um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é um fluxo, é produtiva. A multiplicidade uma méquina de produzir diferengas — diferencas que sio irredutiveis & identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multipli- 100 s estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversi Gade 6 um dado ~ da natureza ou da cultura. A multiplicidade éum movimento. A diversidade reafirma o idéntico. A multi- plicidade estimulaa diferenga que se recusa.a se fundir com 0 idéntico. Como diz José Luis Pardo: Respeitar a diferenga no pode significar “deixar que © outro seja come eu sou” ou “deixar que o outro seja diferente demim tal comoeu sou diferente (do outro)", mas dear que outro seja como eu no sou, deixar que ele seja esse outro } quendo pode ser en, que en no posso ser, que no pode ser uum (outro) eu; significa deixar que 0 outro sefa diferente deixar ser uma diferenga quenfoseja, emabsoluto, diferenca centre duas identidades, mas diferenca da identidade, deixar ser uma outridade que nfo é outra “relativamente a mim” ou “relativamenté ao mesmo”, mas que é absolutamente dife- rente, sem religio alguma com a identidade ou com a mesmidade (Pardo, 1996, p. 154) Essas poderiam ser as linhas gerais de um curriculo e uma pedagogia da diferenga, de um currfculo € de uma pedagogia que representassem algum questionamento nao apenas 3 identidade, mas também ao poder ao qual ela est estreitamente associada, um curriculo e uma pedagogia da diferenga e da multiplicidade. Em certo sentido, “pedago- gia” significa precisamente “diferenga”: educar significa introduzir a cunha da diferenga em um mundo que sem ela se limitaria a reproduzir 0 mesmo e 0 idéntico, um mundo parado, tim mundo morto. nessa possibilidade de abertura para um outro mundo que podemos pensar na pedagogia como diferenga. Dessa forma, talvez possamos dizer sobre a pedagogia aquilo que Maurice Blanchot (1969, p. 115) disse sobre a fala e a palavra: fazer pedagogia significa “procurar acolher 0 outro como outro e o estrangeiro como estrangeiro; acolher outvem, pois, em sua irredutivel dife- renga, em sua estrangeiridade infinita, uma estrangeiridade tal que apenas uma descontinuidade essencial pode conser- var a afirmagao que lhe é prépn 101 Referéncias bibliograficas AUSTIN, J.L. Como hacer cosas con palabras. Barcelona: Pai- ds, 1998. BHABHA, Homi. O terceiro espaco (entrevista conduzida por Jonathan Rutherford), Revista do Patriménio Hist6rico e Ar- itstico Nacional, 24, 1996: 35-41. 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Esti-se ¢efetuando uma completa desconstrugio das perspectivas iden- titdrias em uma variedade de reas disciplinares, todas as quais, de uma forma ou outra, criticam a idéia de uma identidade integral, originéria e unificada. Na filosofia tem-se feito, por exemplo, a critica do sujeito auto-sustentivel que esti no centro da metafisica ocidental pés-cartesiana. No discurso da cxitica feminista e da critica cultural influenciadas pela psica- nilise tém-se destacado os processos inconscientes de forma- do da subjetividade, colocando-se em questio, assim, as concepgées racionalis:as de sujeito. As perspectivas que teori- zamo p6s-modernismo tém celebrado, porsua vez, aexisténcia de um “eu” inevitavelmente performativo. Tem-se delineado, em suma,nocontexto da critica antiessencialista das concep- gbes étnicas, raciais e nacionais da identidade cultural ¢ da “politica da localizagio”, algumas das concepcGes te6ricas mais imaginativas e radicais sobre a questo da subjetivida- de e da identidade. Onde esté, pois, a necessidade de mais uma discussio sobre a “identidade”? Quem precisa dela? Existem duas formas de se responder a essa questo. A primeira consiste em observar a existéncia de algo que distingue a eritica desconstrutiva A qual muitos destes con- 103 ceitos essencialistas tém sido submetidos. Diferent daquelas formas de critica que objetivam superar concei- tos inadequados, substituindo-os por conceitos “mais verdadeiros” ou que aspiram a produgao de um conheci- mento positivo, a perspectiva desconstrutiva coloca certos conceitos-chave “sob rasura”. O sinal de “rasura” (X) indica que eles nao servem mais —néo sio mais “bons para pensar —em sua forma original, nfio-reconstruida. Mas uma vez que eles nao foram dialeticamente superados e que nao existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam subs- titué-los, néo existe nada a fazer sendo continuar a se pensar com eles - embora agora em suas formas destotalizadas ¢ desconstrufdas, nao se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados (Hall, 1995). As duas linhas cruzadas (X) que sinalizam que eles estao cancelados permitem, de forma paradoxal, que eles continuem a ser lidos. Derrida descreve essa abordagem como “pensando no limite”, como “pensando no intervalo”, como uma espé- cie de escrita dupla. “Por meio dessa escrita dupla, precisa- mente estratificada, deslocada e deslocadora, devemos também marcar o intervalo entre a inverso que torna baixo aquilo que eraaltol...eaemergéncia repentina de um novo ‘conceito’ que nio se deixa mais — que jamais se deixou - subsumir pelo regime anterior” (Derrida, 1981, p. 42). A identidade é um desses conceitos que operam “sob rasura’, no intervalo entre a inversio e a emergéncia: uma idéia que no pode ser pensada da forma antiga, mas sem qual certas questdes-chave niio podem ser sequer pensadas Um segundo tipo de resposta exige que observemos onde e em relagio a qual conjunto de problemas emerge a irredutibilidade do conceito de identidade. Penso que a resposta, neste caso, estdem sua centralidade para a questo da agéncia' e da politica. Por “politica” entendo tanto a importincia — no contexto dos movimentos politicos em 104 suas formas modemas — do significante “identidade” e de sua relagéo primordial com uma politica da localizacio, quanto as evidentes dificuldades e instabilidades que tém afetado todas as ‘ormas contemporineas da chamada “politica de identidade”, Ao falar em “agéncia”, néo quero expressar nenhum desejo de retornar a uma nogo niio-m diada ¢ transparente do sujeito como o autor centrado da pritica social, nem tampouco pretendo adotar uma aborda- gem que “coloque o ponto de vista do sujeito na origem de toda historicidade ~ cue, em suma, leve a uma consciéncia transcendental” (Foucault, 1970, p. XIV) Concordo com Foucault quando diz. que 0 que nos falta, neste caso, nao é “uma teoria do sujeito cognoscente”, mas “uma teoria da pritica discursiva’. Acredito, entretanto, que © que este descentramento exige — como a evolucao do trabalho de Foucault claramente mostra — é nao um aban- dono ou abolicéo mas uma reconceptualizagio do “sujeito”. E preciso pensé-lo em sua nova posi¢ao — deslocada ou des- centrada—no interior do paradigma. Parece que é na tentativa derearticulararelacic.entre sujeitos e priticas discursivas que a questi da identidad2—ou melhor, a questo daidentificagao, caso se prefira enfatizar 0 processo de subjetivagio (em vez das priticas discursivas) ea politica de exclusio que essa subjeti- vagio parece implicar— volta a aparecer © conceito de “dentificagio” acaba por ser um dos conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social e cul- tural, quase tio ardiloso - embora preferfvel - quanto o de “jdentidade”. Ele nao nos da, certamente, nenhuma garan- tia contra as dificuldades conceituais que tém assolado 0 iiltimo. Resta-nos buscar compreensées tanto no repertério discursive quanto no psicanalitico, sem nos limitarmos a nenhum deles, Trata-se de um campo semantico demasia- damente complexo para ser deslindado aqui, mas 6 «til es- tabelecer, pelo menos indicativamente, sua relevincia para 105 a tarefa que temos & mio. Na linguagem do senso comum, a identificagao 6 construfda a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de caracteristicas que so parti- Thadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal. & em cima dessa fundagdo que ocorre 0 natural fechamento que forma a base da solidariedade e da fidelidade do grupo em questo. Em contraste com 0 “naturalismo” dessa definigfo, a abordagem discursiva vé a identificagio como uma constru- ‘cao, como um processo nunca completado ~ como algo sem- pre “em processo”. Ela nao é, nunca, completamente deter- minada — no sentido de que se pode, sempre, “ganhé-la” ou “perdé-la”; no sentido de que ela pode ser, sempre, susten- tada ou abandonada. Embora tenha suas condigdes deter- minadas de existéncia, 0 que inclui os recursos materiais ¢ simb6licos exigidos para sustenti-la, a identificagao 6, ao fim a0 cabo, condicional; ela esté, 20 fim e a0 cabo, alojada na contingéncia. Uma vez assegurada, ela néo anularé a dife- renga, A fusio total entre o “mesmo” e o “outro” que ela sugere é, na verdade, uma fantasia de incorporagio (Freud sempre falou dela em termos de “consumir 0 outro”, como veremos em um momento). Aidentificacdo é, pois, um processo de articulacao, uma suturagao, uma sobredeterminagio, e nfo uma subsuncao. Hé sempre “demasiado” ou “muito pouco” — uma sobrede- terminagio ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. Como todas as priticas de significagao, ela esti sujeita a0 “jogo” da différance. Ela obedece a légica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a iden- tificagao opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamentoe amarcaciio de fronteiras nbélicas, a produgio de “efeitos de fronteiras”. Para con- solidar 0 processo, ela requer aquilo que é deixado de fora =o exterior que a constitui 106 O conceito de identificagio herda, comegando com set ‘uso psicanalitico, um rico legado semantico. Freud chama-a de “a mais remota expresso de um laco emocional com outra pessoa” (Freud, 1921/1991). No contexto do complexo de Edipo, 0 conceito toma, entretanto, as figuras do pai e da mie tanto como objetos de amor quanto como objetos de competigao, inserindo, assim, a ambivaléncia no centro mesmo do processo. “A identificagio, na verdade, 6 ambiva- lente desde 0 infcio” (Freud, 1921/1991; p. 134). Em Luto e melancolia, ela ndo 6 aquilo que prende alguém a um objeto que existe, mas aquilo que prende alguém a escolha de um objeto perdido. Trata-se, no primeiro caso, de uma “molda- gem de acordo com o outro”, como uma compensacéo pela perda dos prazeres libidinais do narcisismo primal. Ela esté fundada na fantasia, na projegaoe na idealizagao. Seu objeto tanto pode ser aquele que é odiado quanto aquele que é adorado. Com a mesma freqiiéncia com que ela é transpor- tada de volta ao eu inconsciente, ela “empurrao eu para fora de si mesmo”. Foi em relagio & idéia de identificagéo que Freud desenvolveu a importante distingao entre “ser” € “ter” o outro. Ela se comporta “como um derivado da primeira fase da orgenizacio da libido, da fase oral, em que (0 objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestio, sendo dessa maneira aniquilado como tal” (Freud, 1921/1991: p. 135). “As identificacdes vistas como um todo”, observam Laplanche e Pontalis (1985), “nao so, de forma alguma, um sistema relacional coerente. Coexis- tem no interior de uma agéncia como o superego [supereu], por exemplo, demandas que sio diversas, conflituosas e desordenadas. De forma similar, o ego ideal é composto de identificagdes com idleais culturais que nfo so necessaria- mente harmoniosos” (p. 208). Nao estou sugerindo que todas essas conotagdes devam ser importadas em bloco e sem tradugo 20 nosso pensa- mento sobre a “identidade’; elas sio citadas aqui para indi- 107 car os novos significados que o termo esti agora recebendo, Oconeeito de identidade aqui desenvolvido nio 6, portanto, um conceito essencialista, mas um conceito estratégico @ posicional. Isto 6, de forma diretamente contréria aquilo que parece ser stiacarreira semintica oficial, esta concepgao de identidade ndo assinala aquele niicleo estivel do eu que passa, do inicio ao fim, sem qualquer mudanga, por todas as vicissitudes da historia. Esta concepgio nio tem como refe- réncia aquele segmento do eu que permanece, sempre e ja, “o mesmo”, idéntico a si mesmo ao longo do tempo. Ela tampouco se refere, se pensamos agora na questao da iden- tidade cultural, Aquele “eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros eus ~ mais superficiais ou mais artificialmente impostos - que um povo, com uma historia e uma ancestralidade partilhadas, mantém em co- mum” (Hall, 1990). Ou seja, um eu coletivo capaz de esta- bilizay, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou uma “unidade” imutivel que se sobrepde a todas as outras dife- rengas — supostamente superficiais. Essa concepgao aceita que as identidades nao so nunca unificadas; que elas so, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fra- turadas; que elas nao nfo so, nunca, singulares, mas mul- tiplamente construfdas ao longo de discursos, priticas ¢ posigées que podem se cruzer ou ser antagonicos. As iden- tidades estio sujeitas a uma historicizacio radical, estando constantemente em processo de mudanga e transformacio. Precisamos vincular as discussées sobre identidade a todos aqueles processos e priticas que tém perturbado 0 cariter relativamente “estabelecido” de muitas populagdes e culturas: os processos de globalizagio, os quais, eu argu- mentaria, coincidem com a modernidade (Hall, 1996), ¢ os. processos de migragéo forgada (ou “Tivre") que tém se tor” ‘hado-um fenmeno global do assim chamado mundo p6s-co- lonigl,_As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado hist6rico com o qual elas continua 108 riam a manter uma certa correspondéncia, Elas tém a ver, entretanto, com a questo da utilizagio dos recursos da histéria, da linguagem e da cultura para a produgio néo daquilo que nés somos, mas daquilo no qual nos tornamos. ‘Tem a ver nao tanto com as questdes “quem nés somos” ou “de onde nés viemos”, mas muito mais com as questées “quem nés podemos nos tornar”, “como nés temos sido representados” e “como essa representagio afeta a forma como nés podemos representar a nés préprios”. Elas tém tanto a ver com ainoengdo da tradigao quanto com a prépria tradigdo, a qual elas nos obrigam a ler nio como uma incessante reiteragio mas como “o mesmo que se transfor- ma” (Gilroy, 1994): néioo assim chamado “retorno as raizes”, ‘mas uma negociago com nossas “rotas”.* Elas surgem da narrativizagéo do eu, mas a natureza necessariamente fic~ cional desse processo nao diminui, de forma alguma, sua eficdcia discursiva, material ou politica, mesmo que a sen- sagio de pertencimento, ou seja, a “suturagao 8 histéria” por meio da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no imaginario (assim como no simbélico) e, portanto, sempre, em parte, construfda na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmiético, dentro @ nfo fora do discurso que nés precisamos com- Gionais especificos, no interior de formagbes praticas iscursivas especificas, por estratégias e iniciativas fica Aldém diste, elas emexgern 10 interior do jogo de modalidades especificas de poder e sao, assim, mais 0 pro- Gate darineapig dadibrea eda exohistndly yosg signa de uma unidade idéntica, naturalmente constituida, de uma “{dentidade” em seu significado tradicional — isto 6, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriga, sem diferenciagio interna. E precisamente porque as identidades sio construfdas 109 ‘Acima de tudo, e de forma diretamente contréria aquela pela qual elas sto constantemente invocadas, as identidades Sao construidas por meio da diferenga e nao fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que 6 apenas por meio da relagio com o Outro, da relagio com aquilo que nao é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de > seu exterior constitu- +tic0, que 0 significado “positivo” de qualquer termo.- ¢, assim, sua “identidade” — pode ser construido (Derrida, 1981; Laclau, 1990; Butler, 1993). As identidades podem fancionar, ao longo de toda a sua hist6ria, como pontos de identificagao © apego apenas por ct “su para excluir, para deixar de fora, para tr -ansformar o diferente em “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, a sua “mar- gem; unrexcess0, algo amais. A unidade, ahomogeneidade interna, que o termo “identidade” assume como fundacional nao é uma forma natural, mas uma forma construfda de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que Ihe “falta” — mesmo que esse outro que Ihe falta seja um outro silenciado e inarticulado. L aclu (1990) arguments de forma persuasiva, que “a constituigio de uma identidade social 6 um ato de poder”, ~ ~ pois se uma Tdentidade consegue se afirmar é apenas por meio da repressio daquilo que a ameaga. Derrida mos- trou como a onstituigio de uma identidade esta sempre Daseada no ato de exeluir algo e de estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois pélos resultantes ~ homem/mulher ete. Aquilo que & peculiar a0 segundo termo é assim reduzido ~ em oposigio & essencialidade do primeiro —a fungio de um acidente, Ocorre a mesma coisa com a relagio negro/branco, na qual o branco é, obviamente, equivalente a “ser humana”. “Mulher™ “negro” sio, assim, “marcas” (isto é, termos marcados) em contraste com 0s termos nio-mareados “homem’ e “bran- co” (Lacla, 1990; p. 33) ‘Assim, as “unidades” que as identidades proclamam so, na verdade, construidas no interior do jogo do poder 10 ¢ da exclusao; elas sio 0 resultado no de uma totalidade naturalinevitével ou primordial, mas de um proceso natu- ralizado, sobredeterminado, de “fechamento” (Bhabha, 1994; Hall, 1993). Se as “identidades” s6 podem ser lidas a contrapelo, isto 6,ndo como aquilo que fixa 0 jogo da diferenga em um ponto de origem e estabilidacle, mas como aquilo que é construido na différance ou por meio dela, sendo constantemente de- sestabilizadas por aquilo que deixam de fora, como pode- ‘mos, entio, compreender seu significado e como podemos teorizar sua emergéncia? Avtar Brah (1992, p. 143), em seu importante artigo “Diferenga, diversidade e diferenciagio”, Jevanta uma série de importantes questdes que esses novos modos de conceber a identidade colocam: ‘Apesar de Fanon, éainda necessério trabalhar muito sobre ‘a questio de como o “outro” racializado é constitufdo no dominio psiquico. Como se deve analisar a subjetividade ‘p6s-colonial ein sua relagio com o género ¢ com a raga? O privilegiamento da “diferenga sexual” e da primeira infin ia na psicanilise limita seu valor explicativo para a compreensio das dimens6es psiquicas de fenémenos sociais tais como o racismo? De que forma a “diferenga sexual” ea ordem social se articulam no proceso de formagio do sujeito? Em outras palavras, de que forma se deve teorizar o vinculo entre a realidade social e a realida- de psiquica? (1992, p. 142) © que se segue é uma tentativa de comegar a responder este conjunto critica mas perturbador de questées. Em meus trabalhos recentes sobre este t6pico, fiz uma apropriagao do termo “identidade” que nao é, certamente, partilhada por muitaspessoas e pode ser mal compreendida. Utilizo 0 termo “idertidade” para significar 0 ponto de en- contro, 0 ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos eas priticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os su- ul jeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades sao, pois, pontos de apego temporirio as posigdes-de-sujeito que as priticas discursivas constroem para nés (Hall, 1995). Ela sio o resultado de uma bem-sucedida articulagio ou “ixagio" do sujeito ao fluxo do discurso — aquilo que Stephen Heath, em seu pioneiro ensaio sobre “sutura’, chamou de “uma intersecgao” (1981, p. 106). “ Uma teoria da ideologia deve comegar nao pelo sujeito, mas por uma descri¢io dos efeitos de sutura, por uma descrigio da efetivagio da jungéo do sujeito as estruturas de significagio”. Isto 6, as identida- des si as posigées que 0 sujeito 6 obrigado a assumir, embora “sabendo” (aqui, a linguagem da filosofia da cons- ciéneia acaba por nos trait), sempre, que elas sio repre- sentagGes, que a representac&o 6 sempre construfda ao longo de uma “falta”, ao longo de uma divisio, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas nio podem, nunca, ser ajustadas — idénticas — aos processos de sujeito que sao nelas investidos. Se uma suturagio eficaz do sujeito a uma posicao-de-sujeito exige nao apenas que o sujeito seja “convocado”, mas que © sujeito invista naquela posigéo, entZo a suturagéo tem que ser pensada como uma articulagao e nao como um processo unilateral. Isso, por sua vez, coloca, com toda a forga, a identificago, se néo as identidades, na pauta teérica As referéncias ao termo que descreve 0 “chamamento” do sujeito pelo discurso ~ “interpelagao” ~ nos fazem lem- brar que essa discussio tem uma pré-histéria importante incompleta nos argumentos que foram provocados pelo ensaio de Althusser “Os aparelhos ideolégicos de Estado (1971). Esse ensaio introduziu o conceito de interpelacio ¢ a idéia de que a ideologia tem uma estrutura especular, numa tentativa de evitar 0 economicismo e 0 reducionismo das teorias marxistas clissicas sobre a ideologia, reunindo em um tinico quadro explicativo tanto a fungio materialista 2 daideologia na reprodugio das relagées sociais de produgao (marxismo) quanto a fungao simbdlica da ideologia na cons- tituigéo do sujeito (empréstimo feito a Lacan). Michele Barret deu, recentemente, uma importante contribuigio para essa discussio, a0 demonstrar a “natureza profunda- mente dividida e contradit6ria do argumento que Althusser estava desenvolvendo’. Segundo ela, “havia, naquele en- saio, duas solucées separadas, relativamente ao dificil pro- blema da ideologia, duas solugdes que, desde entio, tm sido atribufdas a dois diferentes pélos” (Barret, 1991, p. 96). Nao obstante, mesmo que nao tivesse sido bem-sucedido, o ensaio sobre os aparelhos ideolégicos de Estado assinalow um momento altamerte importante dessa discussio. Jac~ gueline Rose, por exemplo, argumenta no seu livro Sexua- lity in the field of vision (1986) que “a questio da identidade —a forma como ela é constituida e mantida — é, portanto, a questio central por meio da qual a psicandlise entra no campo politico” Esta [a questiio da identidade] é uma das razées pelas quais a psicandlise laeaniana chegou ~via 0 conceito de ideolo- gia de Althusser e por meio de duas trajet6rias: a do fe- minismo e a da andlise do cinema — a vida intelectual inglesa. O fem:nismo, porque a questiio da forma como os individuos se reconhecem a si préprios como mascu- linos ou femininos e a exigéncia de que eles assim o fagam parece estar em uma relagao extremamente fun- damental com as estruturas de desigualdade e subordi- nagio que o feminismo se propde a mudar. O cinema, porque sua forga como um aparelho ideolégico reside nos mecanismos de identificagio e fantasia sexual dos quais todos nés parecemos participar, mas que, fora do cinema, so admitidos, na maioria das vezes, apenas no diva [do psicanalista]. Se a ideologia é eficaz é porque ela age nos nfveis mais rudimentares da identidade dos impulsos psfquicos (Rose, 1986, p. 5). Entretanto, se néo quisermos ser acusados de abando- nar um reducionisme economicista para cair diretamente 13 em um reducionismo psicanalitico, precisamos acrescentar que se a ideologia é eficaz.¢ porque ela age tanto “nos nfveis rudimentares da identidade e dos impulsos psfquicos” quanto no nivel da formagio e das praticas discursivas que constituem 0 campo social; e que € na articulagio desses campos mutuamente constitutivos, mas nao idénticos, que se situam os problemas conceituais reais. O termo “jdentidade” — que surge precisamente no ponto de in- terseccio entre eles - 6, assim, 0 local da dificuldade. Vale apenaacrescentar que é improvavel que consigamos, algum dia, estabelecer esses dois constituintes [o psfquico e 0 social] como equivalentes — 0 préprio inconsciente age como a barra ou como 0 corte entre eles, 0 que faz do inconsciente “um local de diferimento ou adiamento perpé- tuo da equivaléncia” (Hall, 1995), mas néo é por essa razio que ele deve ser abandonado. Oensaio de Heath (1981) nos faz lembrar que foi Michel Pécheux quem tentou desenvolver uma teoria do discurso de acordo com a perspectiva althusseriana e quem, na verdade, registrou o fosso intransponivel entre a primeira e a segunda metades do ensaio de Althusser, assinalando a “forte auséncia de uma articulagio conceitual entre a ideo- logia e 0 inconsciente” (citado em Heath, 1981, p. 106). Pécheux tentou “descrever o discurso em sua relagéo com os mecanismos pelos quais os sujeitos sio posicionados” (Heath, 1981, p. 101-2), utilizando 0 conceito foucaultiano de formagao discursiva, definida como aquilo que “determ nao que pode e deve ser dito”. Na interpretagao que Heath faz do argumento de Pécheux Os individuos sio constituidos como sujeitos pela forma- io discursiva, processo de sujei¢io no qual faproveitando a idéia do cariter especular da constituigdo da subjeti dade que Althusser tomou emprestada de Lacan] o indi- viduo é identificado como sujeito para a formagio discursiva por meio de uma estrutura de falso reconhect 14 mento® (0 sujeito é, assim, apresentado como sendoafonte Sessile de as tavern ded Se Interpelagio nameia o mecanismo dessa estrutura de flso reconheciments; nomeia, na verdade, o lugar do sujelto no discursivo eno ideolégico — 0 ponto de sua correspon- déncia (1981, p. 101-2). Essa “correspondéncia’, entretanto, continuava inco- modamente néo-resolvida. Embora continuasse a ser usado como uma forma geral de descrever o processo pelo qual 0 sujeito é “chamado a ocupar seu lugar”, 0 conceito de interpelagéo estava sujeito & famosa critica de Hirst. A interpelagio dependi — argumentava Hirst — de um reco- nhecimento no qual, na verdade, se exigia que 0 “sujeito”, tivesse side constituido como tal pelo discurso, tivesse a capacidade de agir como um sujeito. “Esse algo~ que ainda nao é um sujeito deve ja ter as faculdades neces- sérias para realizar 0 reconhecimento que o constituiré como um sujeito” (Hirst, 1979, p. 65). Este argumento mostrou-se muito convincente a muitos dos leitores subse- qiientes de Althusser, levando, na verdade, todo o campo de investigacao a uma interrupgio inesperada. Essacrit ica era certamente impressionante, mas ainter- rupgio, nesse momento, de toda investigagao, mostrou-se prematura. A critica de Hirst foi importante, ao mostrar que todos os mecanismos que constitufam o sujeito pelo discur- so, por meio de uma interpelagio e por meio da estrutur especular do falso reconhecimento, descrita de acordo com a fase lacaniana do espelho, corriam o risco de pressupor um sujeito jé constituido, Entretanto, uma vez que ninguém tinha proposto renunciar a idéia do sujeito como sendo constituido no discurso, como um efeito do discurso, ainda era necessario mostrar por meio de qual mecanismo —e de um mecanismo que no fosse vulneravel & acusacéo de pressupor aquilo que queria explicar — essa constituigéo podia ser efetuada. O problema ficava adiado, mas nio 5 resolvido. Pelo menos algumas das dificuldades pareciam surgir do fato de se aceitar sem muita discussio a proposicio um tanto sensacionalista de Lacan de que tudo qu titutivo do sujeito nfo apenas ocorr sie i ea ugio_da crise edipiana, mas_ocorre num gias ramet ar “clades ocl tardio! A idéia mais complexa de um sujeito-em-processo ficava perdida nessas discutiveis condensagdes e nessas, equivaléncias hipoteticamente alinhadas (sera que o sujeito 6 racializado, nacionalizado ou constitudo como um sujeito empreendedor e liberal tardio também nesse momento [de resolugio da crise edipiana]?) O proprio Hirst parecia pressupor aquilo que Michele Barrett chamou de “Lacan de Althusser”. Entretanto, como diz ele, “o complexo e arriscado proceso de formagao de um adulto humano a partir de um ‘animalzinho' no corres- ponde necessariamente ao proceso descrito pelo mecanis- mo da ideologia de Althusser (..) amenos que a Crianga (... permanega na fase do espelho lacaniana, ou a menos que 1nés forremos o bergo da crianga com pressupostos antropo- légicos” (Hirst, 1979). Sua resposta a isso é um tanto per- functéria. “Nao tenho nenkum problema com as Criangas, € nfo quero declaré-las cogas, surdas ou idiotas, simples- mente para negar que clas possuem as capacidades de sujeitos filosdficos, que elas tém os atributos de sujeitos cognoscentes, independentemente de sua formagio e trei- namento como sujeitos sociais”. O que esti em questio, aqui, é a capacidade de auto-reconhecimento, Mas afirmar 16 que 0 “falso reconkecimento” 6 um atributo puramente cognitivo (ou, pior cinda, “filos6fico”) significa expressar um pressuposto sem qualquer fimdamento. Além disso, 6 pouco provavel que ele aparega na crianga de um s6 golpe, caracterizando um momento claramente marcado por um “antes” e por um “depois”. Parece que os termos da questao foram, aqui, inexplica- velmente, formulados de uma forma um tanto exagerada. Nao precisamos atribuir ao “animalzinho” individual a pos- se de um aparato filos6fico completo para explicar a razio pela qual ele pode ter a capacidade para fazer um “reconhe- cimento falso” de si préprio no reflexo do olhar do outro, que é tudo o de que precisamos para colocar em movimento a passagem entre 0 Imagindrio e o Simbélico, para utilizar 08 termos de Lacan. Afinal, de acordo com Freud, para que se possa estabelecer qualquer relagio com um mundo ex- terno, a catexia basica das zonas de atividade corporal e 0 aparato da sensagio, do prazer e da dor devem estar ja “em ago”, mesmo que em uma forma embrionéria. Existe, j4, uma relagio com uma fonte de prazer (a relagio com a Mae no Imaginério), de forma que deve existir ja algo que é capaz de “reconhecer” o que é prazer. O préprio Lacan observou, em seu ensaio sobre 0 estagio do espelho, que “o filhote do homem, numaidadeem que, porum curto espago de tempo, mas ainda assim por algum tempo, €superado em inteligen—_ ia instrumental petschimpanzé, jareconhece nao obstante “Conn tak surimagenmcrespethon— Além disso, a critica parece estar formulada em uma ogica bindria: “antes/depois”, “ou isto on aquilo”. A fase do espelho no 6 0 comeco de algo, mas a interrupgao—a perda, afalta, a divisio~que iniciao processo que “funda” o sujeito sexualmente diferenciado (e o inconsciente) e isso depende nio apenas da formagio instantanea de alguma capacidade cognitiva interna, mas da ruptura e do deslocamento efetua- 7 dos pela imagem que é refletida pelo olhar do Outro. Para Lacan, entretanto, isso é jé uma fantasia—a propria imagem que localiza a crianga divide sua identidade em duas. Além disso, esse momento s6 tem sentido em relagio com a pre- senga e o olhar confortadores da mae, a qual garante sua realidade para a crianca. Peter Osborne (1995) observa que, em “O campo do Outro”, Lacan (1977b) descreve “um dos pais segurando a crianga diante do espelho”. A crianga langa um olhar em diregio 4 mae, como que buscando confirma- Gio: “ao se agarrar A referéncia daquele que o olha num espelho, 0 sujeito vé aparecer, nio seu ideal do eu, mas seu eu ideal” (p. 257 [242}). Esse argumento, sugere Osborne, “explora a indeterminagio que é inerente & discrepincia entre, por um lado, a temporalidade da caracterizagao—feita por Lacan — do encontro da crianca com sua imagem corpo- ral no espelho como um ‘estagio’ e, por outro, o caréter pontual da apresentago desse encontro como uma cena, cujo ponto dramético esté restrito as relagdes entre apenas dois ‘personagens’: a crianga e sua imagem corporal”. En- tretanto, como diz Osborne, das duas uma: ou isso repre- senta um aeréscimo eritico 20 argumento do “estégio do espelho” (mas, nesse caso, por que 0 argumento nao é desenvolvido?) ou isso introduz uma légica diferente cujas implicagdes nao sio absolutamente discutidas no trabalho subseqtiente de Lacan, A idéia de que nao existe, ali, nada do sujeito, antes do drama edipiano, constitui uma leitura exagerada de Lacan ‘A afirmagéo de que a subjetividade nao esta plenamente constituida até que a crise edipiana tenha sido “resolvida” no supée uma tela em branco, uma tabula rasa, ou uma concepgio do tipo “antes e depois do sujeito”, desencadeada por alguma espécie de coup de thédtre, mesmo que - como Hirst corretamente observou — isso deixe sem solugao a 1s problemitica relagio entre 0 “individuo” ¢ 0 sujeito (0 que o “animalzinho” individual que ainda nio 6 um sujeito?) Pode-se acrescentar que a explicagio de Lacan é apenas uma dentre as muitas teorizagdes sobre a formacio da subjetividade que levam em conta os processos psiquicos inconscientes earelagio com o outro. Além disso, agora que © “dilivio lacaniano” de alguma forma retrocedeu existe mais o forte impulso inicial naquela directo dado pelo texto de Althusser, a discussio se apresenta de uma forma um tanto diferente. Em sua recente e interessante discussao sobre as origens hegelianas do conceito de “reconhecime to” antes referido, Peter Osborne critica Lacan pela “forma pela qual, ao abstrai-la do contexto de suas relagbes com os outros (particularmente, com amie), ele absolutiza arelagio da crianga com sua imagem’, tornando essa relacéo, a0 mesmo tempo, constitutiva da “matriz simbélica de onde emerge um eu primordial”, Ele discute, a partir dessa critica, as possibilidades de diversas outras variantes (Kris- teva, Jessica Benjamin, Laplanche), as quais nfo esto con- finadas ao falso e alienado reconhecimento do drama lacaniano. Esses sio indicadores tteis para nos tirar do impasse no qual, sob os efeitos do “Lacan de Althusser”, essa discussio nos tinha deixado, quando viamos as meadas do psiquico e do discursivo escorregar de nossas méos. Eu argumentaria que Foucault também aborda o impas- se que nos foi deixado pela critica que Hirst faz de Althusser, mas a partir da diregio oposta, por assim dizer. Atacando, de forma enérgica, o “grande mito da interioridade”, e im- pulsionado por sua critica tanto do humanismo quanto da filosofia da consciéacia e por sua leitura negativa da psica- nélise, Foucault também efetua uma radical historicizago da categoria de sueito. O sujeito é produzido “como um efeito” do discurso e no discurs6, no interior de formagoes Gower SLX u9 wo tendo qualquer existéncia pr6- existe tampoucd Henhuma continuidade de uma posigio-de-sujeito para outra ou qualquer identidade trans- cendental entre uma posigao e outra. Na perspectiva de seu trabalho “arqueol6gico” (A histéria da loucura, O nascimen- to daclinica, As palavras e as coisas, A arqueologia do saber), 0s discursos constroem ~ por meio de suas regras de forma- io e de suas “modalidades de enunciagéo” — posicdes-de-su- jeito. Por mais convincentes e originais que sejam esses trabalhos, a critica que Ihes é feita parece, a esse respeito, justificada, Eles dio uma descrico formal da construgao de posigdes-de-sujeito no interior do discurso, revelando mui- topouco, em troca, sobre as raziies pelas quais os individuos ocupam certas posigdes-de-sujeito e nao outras. Ao deixar de analisar como as posigées sociais dos indi- viduos interagem com a construgao de certas posigGes-de-st- jeito discursivas “vazias”, Foucault introduz uma anti- nomia entre as posigdes-de-sujeito € os individuos que as ocupam, Sua arqueologia dé, assim, uma descrigao formal crftica, mas unidimensional, do sujeito do discurso. As po- sigges-de-sujeito discursivas tornam-se categorias a priori, as quais os individuos parecem ocupar de forma nao-pro- blematica (McNay, 1994, p. 76-7) ‘A importante mudanga no trabalho de Foucault, de um método arqueolégico para um método geneal6gico, contri- buiu muitissimo para tornar mais concreto 0 “formalismo” um tanto “vazio” dos trabalhos iniciais. Em especial, 0 poder, que estava ausente da descrigio mais formalista do discurso, 6 agora introduzido, ocupando uma posigao cen- tral. Sao importantes, igualmente, as estimulantes possibi- lidades abertas pela discussfio que Foucault faz do duplo cardter — sujeigio/subjetivacio (assujettisement) — do pro- cesso de formagio do sujeito. Além disso, a centralidade da questo do poder e a idéia de que o proprio discurso é uma 120 formacio regulativa e regulada, a entrada no qual é “deter- minada pelas (¢ constitutiva das) relagdes de poder que permeiam o dominio social” (McNay, 1994, p. 87), trazem a concepgio que Foucault tem da formagio discursiva para mais perto de algumas das clissicas questdes que Althusser tentou discutir por meio do conceito de “ideologia” — sem, obviamente, seu reducionismo de classe, suas conotagdes economicistas e seus vinculos com assergoes de verdade. Persistem, entretanto, na area da teorizagio sobre o sujeito e a identidade, certos problemas. Uma das implica- gbes das novas concepgdes de poder desenvolvidas no tra- balho de Foucault é a radical “desconstrucéo” do corpo - 0 iiltimo residuo ou local de refiigio do “Homem” — sua “reconstrugao” em termos de formagées hist6ricas, genea- logicas © discursivas. Q-carpo 6 c de priticas remoldado pela intersecgao de uma varied: discursivas disciplinares. A tarefa da genealogia, proclama ucault, “é a de expor o corpo totalmente marcado pela hist6ria, bem como a historia que arruina o corpo” (1984, p. 63). Embora possamos aceitar esse argumento, com todas as suas implicacées radicalmente “construcionistas” (0 cor- po torna-se infinitamente maledvel e contingente), nao es- tou certo de que possamos ou devamos ir tio longe a ponto de declarar como Foucault que “nadano homem—nem mes mo seu corpo é suficientemente estivel para servirde hase — ara_o auto-reconhecimento ou para a compreensio de outros homens”. Isso nfo porque n-corpa se constitua em um réferente realnente estivel e verdadeiro para o processo de autocompreensio, mas porque, embora possa se tratar de um “falso reconhecimento”, é precisamente sob essa forma"que 0 corpo tem funcionado como o significante da” condensagiio das subjetividades no individuo e essa fungio nao pode ser descartada apenas porque, como Foucault tio bem mostra, ela nao é “verdadeira = ow eh Além disso, o meu proprio sentimento 6 0 de que, apesar das afirmagées em contririo de Foucault, sua invocacao do corpo como o ponto de aplicagao de uma variedade de pré- ticas disciplinares tende a emprestar A sua teoria da regula cio disciplinar uma espécie de “coneretude deslocada ou mal colocada”, uma materialidade residual, a qual acaba, dessa forma, por agir discursivamente para “resolver” ou aparentar resolver a relacio, indeterminada, entre o sujeito, 0 individuo e 0 corpo. Para dizé-lo de forma direta, essa “materialidade” junta, por meio de uma costura, ou de uma “sutura’, aquelas coisas que a teoria da produgio discursiva de sujeitos, se levada a seus extremos, fraturaria e dispersa- ria de forma irremedidvel. Penso que “o corpo” adquiriu, na investigacéo pés-foucaultiana, um valor totémico, precisa- mente por causa dessa posigo quase magica. & praticamen- te 0 tinico trago que resta, no trabalho de Foucault, de um “significante transcendental’ A critica mais séria tem a ver, entretanto, com 0 proble- ma que Foucault encontra ao teorizar a resistencia na teoria do poder desénvolvida em Vigiar e punir e em A hist6ria da sexualidade. Tem a ver também com a concepgao do sujeito inteiramente autopoliciado que emerge das modalidades disciplinares, confessionais e pastorais de poder discutidas nesses trabalhos, bem como com a 1a austncia de qualquer vidios nas posigées- Pao aiieta easteutex ore esses dis- s. Conceber 0 corpo. submetido, por “alma”, a regimes de verdade normalizadores, € uma ma- neira produtiva de se repensar aassim chamada “materiali-_ wrefa que tem sido produtivan assumida por Nikolas Rose e pela “escola da governamei talidade”, bem como, de uma forma diferente, por Judith Butler, em Bodies that matter, 1993. Mas é dificil deixar de questionar a concepgio do préprio Foucault de que os sujeitos assim construidos sio “corpos déceis” e todas as implicagées que isso acarreta. Nao hé nenhuma teorizacao sobre as razées pelas quais 0s corpos deveriam, sempre ¢ incessantemente, estar a postos, na hora exata~exatamente © ponto do qual a teoria marxista cléssica da ideologia co- megou a se desembaragar e a prépria dificuldade que Al- thusser reintroduzix quando ele, normativamente, definiu a fungéo da ideologia como sendo a de “reproduzir as relagées sociais de produgio”, Além disso, nfo hé nenhuma teorizagio sobre os me nismos psiquicos ou os processos interiores que podem fazer com que essas “interpelacbes” automiiticas sejam pro- duzidas ou, de forma mais importante, que podem fazer com que elas fracassem ou encontrem resistencia ou sejam ne- gociadas. Mesmo considerando o trabalho de Foucault, sem diivida, como estimulante e produtivo, podemos dizer que, nesse caso, ele “pula, muito facilmente, de uma descrigio do poder diseiplinar como uma tendéncia das modernas formas de controle social para uma formulagao do poder disciplinar como uma forga monolitica plenamente instala- da—uma forga que satura todas as relagées sociais. Isso leva uma superestimagao da eficécia do poder disciplinar e a ‘uma compreensio empobrecida do individuo, 0 queimpede Jue Se possa explicar as experigncias que e: no do ‘corpo décil” (MeNay, 1994, p. 104) (Que isso se tornou ébvio para Foucault torna-se eviden- te na nitida e nova mudanga em seu trabalho, representada pelos iiltimos (¢ ineompletos) volumes da assim chamada “Historia da sexualidade” (O uso dos prazeres, 1987; O cuidado de si, 1988, ¢, tanto quanto podemos deduzir, o volume inédito e importantissimo — do ponto de vista da critica que acabamos de revisar ~ sobre “As perversées”) Pois, aqui, sem se efastar muito de seu inspirado trabalho 123 sobre o caréter produtivo do processo de regulagio norma- tiva (nenhum sujeito fora da Lei, como expressa Judith Butler), ele tacitamente reconhece que nao é suficiente que a Lei convoque, discipline, produza e regule, mas que deve haver também a correspondente produgao de uma resposta ~e, portanto, a capacidade e o aparato da subjetividade — por parte do sujeito. Em sua introdugio critica ao livro O uso dos prazeres, Foucault faz uma lista daquelas coisas que, nesse momento, poderiamos esperar de seu trabalho (“a correlagio entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”, em uma cultura particular), mas agora criticamente acrescenta 1s priticas pelas quais os individuos foram levados a pres- tar atengio a eles proprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relagdo que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaido. Em suma, aidéia eraa de pesquisar, nessa genealogia, de que maneira os individuos foram levados a exercer, sobre eles mesmos e sobre os outros, uma hermenéutica do desejo (Foucault, 1987, p. 5 [11)}. Foucault descreve isso — corretamente, em nossa opi nifo — como uma “terceira mudanga, uma mudanga que permitiria analisar aquilo que se chama de “o sujeito”. P: receu-lhe necessério examinar quais sio as formas ¢ as modalidades da relagio com 0 eu pelas quais o individuo se constitui e se reconhece qua sujeito. Foucault, obviamente, nio faria realmente uma coisa to vulgar como a de invocar © termo “identidade”, mas com a “relagio com 0 eu” e a constituigao eo reconhecimento de “si mesmo” qua sujeito, estamos nos aproximando, penso eu, daquele territ6rio que, nos termos anteriormente estabelecidos, pertence, legiti- mamente, a problemitica da identidade. Este nao é o lugar para explorar os muitos e produtivos insights que surgem da andlise que Foucault faz. dos jogos verdade, do trabalho gio e automodelagio e das “tecnologias do eu” envolvidas na constituig&o do sujeito desejante. Nao existe, aqui, cer- tamente, nenhuma conversio, por parte de Foucault, que re-instaure qualque- idéia de “agéncia”, de intengio ou de voli¢ao. Mas ha, aqui, sim sideragio das de liberdade que podem impedir que esse sujeito se torne, para sempre, simplesmente um corpo sexualizado dil. Ha a produgao do eu como um objeto do mundo, as priticas de autoconstitnicao, o reconhecimento ea reflexio, a relagao com a regra, juntamente com a atengdo escrupu- losa & regulacao normativa e com os constrangimentos das regras sem os quais nenhuma “subjetivagio ‘Trata-se de um avango importante, uma vez que, sem es- quecer a existéncia da forca objetivamente disciplinar, Fou- cault acena, pela primeira vez em sua grande obra, & existéncia de alguma paisagem interior do sujeito, de alguns mecanismos interiores de assentimento & regra, 0 que livra essa teorizagio do “behaviorismo” e do objetivismo que ameagam certas partes de Vigiar e punir, A Clica € as praticas doen So, muitas vezes, mais plenamente descritas por Fou- cault, nas suas iltimas obras, como uma “estética da existéncia”, como uma estilizacao deliberada da vida cotidiana. Além disso, as tecnologias af envolvidas aparecem mais sob a forma de praticas de autoprodugao, de modos especificos de conduta, constituindo aquilo que aprendemos a reconhecer, em in- vestigagdes posteriores, como a de Judith Butler, por es plo, como uma espécie de performatividade. ético, dos regimes de auto-regula- a con: produzida. m= O que vemos aqui, pois, na minha opiniao, é Foucault sendo pressionado, pelo escrupuloso rigor de seu proprio pensamento e por meio de uma série de mudangas concei- tuais, efetuadas em diferentes fuses de seu trabalho, a se mover em dirego aoreconhecimento de que ~uma vez que o descentramento do sujeito nio significa a destruigio do constituicéo subjetiva. Nunca foi suficiente— em Marx, em Althusser, em Foucault - ter simplesmente uma teoria de como 0s individuos so convocados a ocupar seus lugares por meio de estruturas discursivas. Foi, sempre, necessério ter também uma teorizagio de como os sujeitos so consti- tufdos. Em seus iltimos trabalhos, Foucault fez um avango considerivel, ao mostrar como isso se da, em conexio com priticas discursivas historicamente especificas, com a auto- regulagao normativa e com tecnologias do eu. A questo que fica é se nés também precisamos, por assim dizer, diminuir © fosso entre os dois dominios, isto 6, se precisamos de uma teoria que descreva quais so os mecanismos pelos quais os individuos considerados como sujeitos se identificam (ou no se identificam) com as “posigdes” para as quais so convocados; que descreva de que forma eles moldam, esti- lizam, produzem e “exercem’” essas posigées; que explique por que eles nao 0 fazem completamente, de uma s6 vez € por todo o tempo, e por que alguns nunca o fazem, ou esto em um processo constante, agonistico, de luta com as regras normativas ou regulativas com as quais se confrontam e pelas quais regulam a simesmos ~ fazendo-lhes resisténcia, negociando-as ou acomodando-as. Em suma, o que fica 6a exigéncia de se pensar essa relagio do sujeito com as forma- Ges discursivas como uma articulacdo (todas as articulagée sio, mais apropriadamente, relagdes “sem qualquer corres- pondéncia necesséria’, isto 6, fundadas naquela contingén- cia que “reativa o hist6rico” [Laclau, 1990, p. 35)) E, portanto, ainda mais fascinante observar que, quando Foucault, finalmente, ndo dé o passo decisivo nessa diregao (no trabalho que foi, entao, tragicamente interrompido), ele 126 late 9 phe aclu NO 4 oui, 3 Prey Se 4 lmpedido, obviamente, de recorrer a ania dad principals fontes de pensamento sobre esse negligenciado aspecto, isto é, a psicandlise; ele & impedido, pela sua propria critica, de ir naquela diregéo, ja que ele via a psicanélise como sendo simplesmente mais uma rede de relagbes disciplinares de poder. 0 que elepreuz, em vezdisso, 6 umafenomenologia discursiva do sujeito (voltando, assim, talvez, a fortes = {ladncias nical, cuja influéncia sobre seu trabalho ele proprio, de alguma forma, subestimou) e uma genealogia das tecnologias do eu. Mas trata-se de uma fenomenologia que corre 0 risco de ser atropelada por uma énfase exagera- dana intencionalidade — precisamente porque ela nfo pode admitir 0 inconsciente. Para o bem ou para o mal, aquela porta ja estava, para ele, fechada, Felizmente, ela nfo permaneceu fechada. Em Gender trouble (1990) e, mais especialmente, em Bodies that matter (1993), Judith Butler analisa, por meio de sua preocupagio com “0s limites discursivos do sexo” e com as politicas do feminismo, as complexas transagGes entre o sujeito, 0 corpo ea identidade, ao reunix, em um tinico quadro analitic concepgées foucaultianas e perspectivas psicanaliticas. Adotando a posigio de que 0 sujeito é discursivamente construido e de quenao existe qualquer sujeito antes ou fora da Lei, Butler desenvolve o argumento de que a categoria do “sexo” é, desde o in‘eio, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatério”. Nesse sentido, pois, o sexo nfo apenas funciona como uma norma, ‘mas é parte de uma pritica regulatéria que produz os corpos que governa, isto 6, toda forga regulatéria manifesta-se com uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir — demarcar, circular, diferenciar - os corpos que controla. O ‘sexo” 6 um construto ideal que é forcosamente materi: lizado através do tempo (Butler, 1993, p. 1[153-4]). terializacio é aqui, repensada como um efeito de poder. A visio de que 0 sujeito é produzido no curso de sua 197 materializagao esté fortemente fundamentada em uma teo- ria performativa da linguagem e do sujeito, mas a performa- tividade 6 despojada de suas associagées com a volic&o, com a escolha e com a intencionalidade, sendo relida (contra algumas das interpretagdes equivocadas de Gender trouble) “nao como oato pelo qual um sujeito traz existénciaaquilo que ela ou ele nomeia, mas, ao invés disso, como aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenémenos que ele regula e constrange” (Butler, 1993, p. 2 [155]. A mudanga decisiva, do ponto de vista do argumento aqui desenvolvido, é, entretanto, a ligagio que Butler faz do ato de “assumir’ um sexo com a questiio da identificagdo ¢ com 0s meios discursivos pelos quais 0 imperativo heteros- sexual possibilita certas identificagées sexuadas e impede ounega outras identificagdes” (Butler, 1993, p.5 [155)). Esse centramento da questéo da identificacio, juntamente com a problemitica do sujeito que “assume um sexo”, abre, no trabalho de Butler, um dialogo critico e reflexivo entre Fo cault © a psicandlise que é extremamente produtivo. E verdade que Butler nao fornece, em seu texto, um meta-ar- gumento teérico plenamente desenvolvido que descreva como as duas perspectivas, ou a relagio entre o discursivo eopsiquico, devem ser “pensadas” de forma conjunta, alé de uma sugestiva indicagio: “Pode sujeitar a psicandlise a uma reelaboragio foucaultiana, mi mo que 0 proprio Foucault tenha recusado essa: possibilida- de*-De qualquer forma, J este texto aceita como ponto de partida aidéia de Foucault oy, deauec poderregulatério produ os sjetos que contol, que o poder néo é simplesmente imposto externamente, ‘mas que funciona como o meio regulatério e normative pelo qual os sujeitos sio formados. O retorno a psicandlise orientado, pois, pela questio de como certas normas regulat6rias formam um sujeito “sexuado”, sob condigdes, que toram impossfvel se distinguir entre a formagio psiquica e a formacao corporal (1993, p. 23) —— 12s A relevancia do argumento de Butler é ainda mais pertinente, entretanto, porque é desenvolvido no contexto da discussio sobre o género e a sexualidade, feita no quadro te6rico do feminismo, remetendo, assim, diretamente, tanto as questdes sobre identidade e sobre politica de identidade quanto as questdes sobre a fungao paradigmstica da dife- renga sexual relativamente aos outros eixos de exclusio, tal como ressaltado no trabalho de Avtar Brah, anteriormente mencionado. Butler apresenta, aqui, 0 convincente argy- mento de que todas as identidades fimncionam por meio da excluso, por meio da costo discursiva de um exterior présentivel ("a produglo de um exterior, de mio de efeitos inteligiveis” [1993, p. 22)), o qual retorna, entio, para complicar e desestabilizar aquelas foraclusdes que nés, prematuramente, chamamos de “identidades”. Ela formula esse argumento, de forma eficaz, em relago A sexualizagao © A racializagio do sujeito ~ um argumento que precisa ser desenvolvido, para que a constituig&o dos sujeitos por meio dos efeitos regulat6rios do discurso racial adquira a impor- tancia até aqui reservada para o género e a sexualidade (embora, obviamente, seu exemplo mais trabalhado seja 0 da produgio dessas formas de abjecio sexual geralmente “normalizadas” como patolégicas ou perversas). Como observou James Souter (1995), “a critica interna que Butler faz da politica de identidade feminista e de suas premissas fundaciorais questiona a adequagio de uma po- Iitica representacional cuja base € a universalidade e a unidade presumiveis de seu sujeito ~ a categoria unificada sob o rétulo de ‘mulheres”. Paradoxalmente, tal como ocor- re com todas as outras identidades, quando séo tratadas, politicamente, de uma maneira fiumdacional, essa identida- de “esta baseada na exclusio das mulheres ‘diferentes’ e no privilegiamento normativo das relagdes heterossexuais como a base de uma politica feminista”. Essa “unidade”, argumenta Souter, 6 uma “unidade ficticia, produzida e constrangida pelas mesmas estruturas de poder por meio das quais a emancipagéo é buscada’. Significativamente, entretanto, como Souter também argumenta, isso ndo leva Butler a argumentar que todas as nogées de identidade deveriam, portanto, ser abandonadas, por serem teorica- mente falhas. Na verdade, ela aceita a estrutura especular da identificagao como sendo uma parte de seu argumento. Mas ela reconhece que um tal argumento sugere, de fato, “os limites necessarios da politica de identidade”: Neste sentido, as identificagbes pertencem ao imaginério; elas sao esforgos fantasmiticos de alinhamento, de lealda- de, de coabitagSes ambiguas e intercorporais. Elas deses- tabilizam 0 eu; elas so a sedimentagio do “nés” na constituigao de qualquer eu; elas constituem a estrutura- gio presente da alteridade, contida na formulaglo mesma do eu. As identificagées nio sao, nunca, plenamente & finalmente feltas; elas sio incessantemente reconstituidas ¢, como tal, estio sujeitas a l6gica volitil da iterabilidade. Elas sia_aguilo que é constantemente arregimentado, consolidado, reduzido, contestado e, ocasionalmente, obri- gado.a capitular (1993, p. 105). O esforgo, agora, para se pensar a questo do cariter distintivo da l6gica pela qual ocorpo racializado eetnicizado 6 constituido discursivamente — por meio do ideal norma vo regulat6rio de um “eurocentrismo compulsivo” (por falta de uma outra palavra) — nao pode ser simplesmente enxer- tado nos argumentos brevemente esquematizados acima Mas eles tém recebido um enorme e original impulso desse enredado e inconcluso argumento, que demonstra, sem qualquer sombra de diivida, que a questio e a teorizacéo da identidade é um tema de consideravel incia politica, que s6 poder avangar quando tanto a nec sessidade quant “a “impossibilidade” da identidade, bem-como a 130 dopsiquico edo discursivo em suaconstituigéo, forem plena ¢ inequivocamente reconhecidlos Notas 2. Jogo de palavras, intraduzive, entre “roots” (rafes) e “routes” i Joe ale 5) € “routes” (rota, cami- ingles, “misrecogniton’, equivalente ao francs “méconnalssance”, trae duzidos, ambos, em geral, na itratura plcanalftea, por “desconhecimento For considerar que o portugués “desconhecimento” rio expressa a idéia de conhecimento” ou “recoahecimento”iusério ou flso que est conta na palavra inglesae na francera, prefer traduzit por falso econheclmento” Referénclas bibliograficas ALTHUSSER, L. Lenin and Philosophy and Other Essays. Lon- dres: New Left Books, 1971. BARRETT, M. The Politics of Truth. Cambridge: Polity, 1991. BHABHA, H. The Other Question, The Location of Cultw Londres: Routledge, 1994 a BRAH, A. Difference, diversity and differentiation, in: DO- NALD, J. & RATTANSI, A. (orgs.). Race, Culture and Diffe- rence, Londres: Sage, 1992: 126-45. BROWN, B. & COUSINS, M. The linguistic fault, Economy and Society, 9(3), 1980. BUTLER, J. Gender Trouble. Londres: Routledge, 1990. —. 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