You are on page 1of 21
O CORPO FEMININO COMO LUGAR DE VIOLENCIA Resumo O objetivo deste artigo é examinar as formas de violéncia entre os géneros que incidem sobre o corpo das mulheres, desmistifi idealizagdes existentes a respeito. Nesse sentido, sao focalizadas as modalidades de violéncia fisica, assim como aquelas mais -ando sutis que buscam aprisionar as mulheres em papéis que Ihes impegam o exercicio da plena cidadania. A atuacio das mulheres fazendo frente a essas formas de violéncia, garantindo-lhes sua realiza¢io como sujeitos de sua propria historia, ¢ também focalizada Palavras-ch: Corpo das mulheres; formas de violénci: relagdes de género. e Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 Rachel Soihet* Abstract The purpose of this article is to examine forms of violence in gender relations that affect the women’s body, so as to demystify any idealizations regarding this issue. Thus, the article focuses on forms of physical violence, such as those subtler ones that seek fo imprison women in roles that inhibit full citizenship. The article also approaches the attitude of women facing those forms of violence — this kind of attitude makes it possible for them to accomplish their role as subjects of their own history Key-words Women's body; forms of violence; gender relations. 269 Exaltado como expressio de beleza, inspirador do desejo. fonte de prazer, de vida por meio da maternidade, simbolo da nagdo republicana, 0 corpo feminino, na Franga pos- revoluciondria como no Brasil, é também lugar de violéncia — quer a violéncia fisica, espancamentos, estupros, ctc., tao bem conhecida. quer aquelas outras formas de violéncia sutis, engenhosas, entre as quais a chamada violéncia simb6lica, que igualmente conuibuem para a manutencao de desigualdades. E é sobre este outro lado que desnuda a idealizagio das mulheres e de seu corpo, trazendo & tona a violéncia nas relages entre géneros, que pretendo aqui me debrugar, privilegiando os perfodos compreendidos entre fins do século XIX e os anos 1930, iniciando-me naquele entre fins dos anos 1960 ¢ 1980. Tais perfodos se justificam por marcarem os limites temporais aproximados da primeira e segunda vaga de movimentagao mais acentuada de mulheres por participagao na sociedade em varios Ambitos, do que decorreu um clima de crucial tensio no relacionamento entre os generos. Uma das dimensdes dessa tensao pode ser avaliada pelo tom céustico, irnico, escarnece- as mulheres que dor, presente em variados discursos, verbais ¢ pictoricos, com relagao enveredavam pela rcivindicagao de direitos, 0 que nos fornece indicagdes da questao entre os segmentos médios, pois tais mulheres é que predominavam nesses movimentos. Entre os populares, detecta-se uma tensiio similar, presente na reagio masculina as iniciativas femininas de participacao em esferas consideradas masculinas, como na assungdo de com- portamentos € atitudes consideradas inadequadas. Agregam-se, dessa forma. clementos que possibilitam estabelecer uma melhor articulacdo cntre género, classe, etnia, sem des- cuidar do contexto mais amplo. Nesie tiltimo caso, embora também buscando informagdes em periddicos ¢ escritos literdrios, a consulta a processos criminais ¢ 0 noticiério policial dos jornais do momento focalizado afigura-se fundamental, pois tais fontes constituem materiais privilegiados para uma aproximagdo com o cotidiano de homens € mulheres dos segmentos populares, espe- cificamente, tendo em vista perscrutar as suas contradigdes de género, j4 que, de outra forma, a existéncia desses sujeitos caracterizava-sc pcla invisibilidade, sendo parcamente tepresentados em outra documentago. Quanto aos jornais, revelam-se imprescindiveis para que se avalie como tais conflitos eram noticiados. Possibilitam analisar 0 discurso utilizado, segundo valores que deviam disseminar-se por toda a sociedade, iluminando os comportamentos desejaveis a homens e mulheres. Aanilise dos referidos processos revela que as contradigdes de g¢nero atravessam a ques- to da classe social. embora apresentem especificidades decorrentes das diversidades culturais. De qualquer forma, a violéncia fisica se constituiria numa realidade presente em todas as clas- ses sociais, Em obra da década de 1980, momento préximo & scgunda vaga do movimento feminista, cientistas sociais, referindo-se aos Estados Unidos, chegam a afirmar que: 270 Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 A classe média nao somente apresenta a mesma tendéncia que outras classes de se envolver em agressbes fisicas como também tem feito isso freqiientemente. Se existe alguma diferen- ga, esta reside no fato de a classe média ter maior propensio 2 agressio fisica do que as classes mais pobres.' Ante a contradigao de tais assergGes com as estatfsticas policiai pobres cometem um maior ntimero de agressGes. respondem que “as alteragdes entre 4veis de se tornar uma questio de policia”. s que comungam de tais conclusdes, assim como que mostram que os os pobres sao simplesmente mais pro E seguem-se intimeras reter€ncias a estud acitagdes de personagens famosos denunciados por espancarem suas csposas e/ou compa- nheiras. ados, partem em niimero muito mais elevado dos homens contra as mulheres, no gue apresento resultados diversos daqueles de Sidney Chalhoub. Afirma o historiador, em seu estudo classico sobre a classe trabalhadora no Rio de Janeiro. que nos setores pobres da populagao urbana “a violéncia do homem por quest6es de amor se exerce com muito mais freqiiéncia contra outros homens do que con- tra as mulheres”. E, assim, concordo com a_ historiadora Magali G. Engel, que chega a conchusGes proximas as minhas sobre tal questéo? Ainda, no mesmo estudo, Sidney Chalhoub, discorrendo acerca das manifestagbes de violéncia entre os segmentos populares no Rio de Janeiro do infcio do século, argumenta que o homem pobre, por suas condigécs de vida, longe estava de poder assumir o papel de mantenedor, previsto pela idcologia dominante, como também o papel de dominador, tipi- As agressdes, nos processos por mim pesqu co desses padres. Este, porém, sofria a influéncia dos referidos padres ¢. na medida em gue sua pritica de vida revelava uma situagao bem diversa, no que se refere & resistencia de sua companheira a seus laivos de tirania, este era acometido de inseguranga, contribuin- do para que partisse para uma solugao de fora. A violéncia surgia, assim, de sua incapaci- dade de exercer um poder irrestrito sobre a mulher. sendo antes uma demonstragao de fraqueza e impoténcia do que forga € poder. Tal explicagao se completaria a partir do fato, centre outros. de que tais homens, desprovidos de poder e de autoridade no espago piblico — no trabalho e na politica, seriam assegurados pelo sistema vigente de possuf-los no espago privado, ou seja, na casa ¢ sobre a famflia. Nesse sentido, qualquer ameaca a esse poder ¢ autoridade Ihes provocava forte reagao, pois perdiam os substitutos compensat6rios para sua falta de poder no espago mais amplo.? Confirmando tal pressuposto, mulheres que respondiam aos seus parceiros ou se recu- savam a fazer algum servigo doméstico estavam entre o rol das vitimas; algumas vezes, deixavam de faz¢-lo por csquecimento e. outras vezes, como forma de reagir a insatisfagao com 0 companhciro. Assim, o paraguaio Gregério Valdez considerou justo ferir com uma Proj. Historia, Sao Paulo, (25), dez, 2002 271 faca sua amésia, a também paraguaia Maria Salomé Gomes, ante 0 fato de esta nfo ter atendido ao seu pedido de engomar sua camisa, pois precisava dela para viajar. Aproveitou cusando-a “de nao cum- para langar suspeitas sobre 0 comportamento de Maria Salomé, prir 0 prometido por ter ido vadiar...”, Por sua vez, a vitima diz que “ha muito nao queria ter relagdes com o réu, pois este nj contrério, era ela quem o supria de dinheiro”, Tudo parece indicar que Maria Salomé nao z que jaestava saturada da rela © concorria para sua subsisténcia, que, muito pelo preparou a camisa como uma forma de rebeldia, uma v sentindo-se cxplorada pelo amasio Além disso, verifica-se que ambos apéiam suas justificativas buscando demonstrar a inadequagdo do companheiro aos papéis de género estabelecidos. Gregorio acentua 0 no atendimento, por Maria Salomé, de uma tarefa que Ihe competia: a responsabilidade de cuidar da roupa do companheiro, além de criticar seu comportamento leviano, visto na época como improprio para uma mulher. A vitima, por sua vez, justifica seu descaso, dian- te do nao cumprimento por Gregério do seu papel de provedor, até mesmo pela inver: nesse particular: ela € que o sustentava.* Alias cerem o papel de provedores, em meio a cultura dominante que Ihes prescrevia tal papel. transcorriam uma série de dramas. Este é 0 caso de Maria da Silva. que atirou de forma fatal em scu companheiro, 0 portugués Manoel José Vieira, apés este té-la agredido.* demonstrando as tensdes derivadas das dificuldades dos homens pobres excr- Maria relata ter vivido maritalmente com Manoel, tendo com ele constantes briga: que “cle no cumpria com os deveres de bom companheiro”, Dessa unio, resultou um filho com a idade, 4 época, de sete meses; como a grande maioria das mulheres de sua ia desse fato, “confiou classe social, Maria trabalhava numa casa de famflia. Em decorrént de acordo com 0 falecido a criag%o c amamentagao desta crianga a uma senhora de sua amizade”. Continuando o seu relato, afirma que Manoel nao auxiliava a ela declarante na despesa com essa crianga; que hoje as 7 horas & vinte minutos mais ou menos deixou seu servigo e foi procurar o falecido a tim de que ele desse algum dinheiro para a compra de leite para a referida crianca, chegando em casa pediu a ele esse dinheiro, ele respondeu que ndo daria nem um vintém, desesperada porque soube que seu filhinho nem leite tina tomado hoje, allerou com o falecido que procurou bater nela declarante, chegando mesmo a atraci-la. Igualmente, Antonia Josepha Maria da Conceigao, negra, cingiienta anos, cozinheira, em 20 de outubro de 1904 teve forte discussdo com seu amisio, 0 chacareiro portugués Antonio Fernandes, 67 anos. Mais uma vez, a razio do confronto foi o fato de Antonia Josepha ter-Ihe pedido dinhciro para pagar o aluguel da casa. Antonio reagiu agressivamente, 272 Proj, Historia, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 jogando-lhe uma botina que atingiu sua cabega, Antonia levantou-se, em seguida, com destino a rua’ Também, aqui, o homem ¢ instado pela companheira ao cumprimento de suas obrigagdes familiares, no caso, 0 pagamento do aluguel da casa, fato que por si s6 & capaz de provocar, por parte deste, uma forte reagao. Acresce-se a isto, como No processo visto anteriormente, a impossibilidade real, por dificuldades econdmicas, de atender a tal compromisso, 0 que dé margem a violenta reagao de Antonio Fernandes. Uma outra situagao de contendas domésticas envolve Minelvina Francisca de Souza. 53 anos, que se recusou a acompanhar seu marido, Antnio de Azeredo Coutinho, ao rancho que ele estava construindo, assim como ao seu pedido para sentar-se ao seu lado.” Foi o suficiente para que este Ihe desse uma facada, A vitima comegou a gritar, pedindo socorro 0s Vizinhos, que imediatamente a ajudaram, evitando 0 pior. Reagio diferente teve Thereza Margarida de Jesus. que se esqueceu de pregar os botWes na camisa do marido.* Quando este Ihe exigiu a camisa ¢ reparou que estava sem os botes, muniu-se de um bambu e feriu-a A vitima nao reagiu e, em depoimento, atirmou que nao sabia como o ferimento havia aconteci- do, pois estava muito perturbada, dizendo acreditar que foi de algum tombo que levou. Esse & um dos casos em que ocorre uma cumplicidade de sua parte com relagdo ao seu marido. Tal atitude pode ser devida ao fato de Thereza_partilhar das concepgdes machistas predomi- nantes na sociedade, que circulavam entre as diversas classes sociais, 0 que nao exclui a predominancia de uma certa simetria nas relagdes entre os homens e as mulheres da classe trabalhadora, em razao de suas especificidades materiais ¢ culturais? Tais casos de agressdes relacionadas a questocs domésticas foram recorrentes nos processos analisados, demonstrando que, nos momentos de conflitos, reproduziam-se ex- pectativas tipicas da sociedade patriarcal. As mulheres deveriam se submeter aos homens, executando os scrvigos exigidos e, caso nao fossem atendidos, estes se sentiam no direito de agredi-las. No entanto, observa-se que apenas uma minoria de mulheres nao reagia. chegando algumas a defenderem seus companheiros em julgamento, como foi visto em um tinico caso acima relatado. A maioria delas reagia de maneiras diversas: muitas grita- vam, solicitavam ajuda dos vizinhos ¢ outras tantas se atracavam com o agressor. tentando dissipar-Ihe as forgas. Um exemplo dessa atitude de nao sujeigao é a de Henriqueta Maria da Conceigao, que longe estava de se enquadrar no modelo tradicional prescrito para a mulher. Natural do Rio de Janeiro, com dezoito anos, casada, a 17 de agosto de 1896 achou por bem pernoitar na o. demonstrando clevado senso profissional, ja irios. Ao retornar a sua casa onde trabalhava. Tomou esta decis que ali estava tendo lugar um baile e s casa, foi agredida por scu marido, que afirmou nao ser verdade o motivo alegado. Henri- osa de seus direitos, reagiu A agressio, e ambos ficaram machucados."” US ervigos foram neces queta, porém, do Paulo, (25). dez. 2002 273 Proj. Historia, Seu marido, inconformado com sua atitude, providenciou sua prisio, sendo Henrique- ta levada para a Casa de Detengao, onde ficou, ilegalmente, até 6 de outubro, quando foi impetrado habeas corpus em seu favor. Por sua vez, seu marido teria passado oito dias na Santa Casa de Misericérdia, de onde saiu completamente restabelecido, chegando a ir duas vezes 4 Casa de Detengao, onde afirmou a H presa por mais cinco anos”, o que demonstra enriqueta “que por seu gosto ela ficava sua intolerdncia ante a reagdo de sua mulher. Esta, por sua vez, € castigada pelas atitudes tomadas, em que demonstra discordancia com relago As limitagbes que se pretendia impor ao seu sexo. Valorizou Henriqueta sua atividade profissional, que, na mulher, ao contrario do homem, deveria sempre se manter num plano abaixo daquela correspondente as fungSes de esposa ¢ mae. Também ousou reagir & atitude de prepoténcia de seu companheiro, fato condendvel num tema que legitimava a subordinagao feminina Imagem igualmente da prepoténcia machista € a atitude do lustrador Horacio de Sou- za Castro, que, chegando A sua rua. aproximadamente &s oito horas da noite. deparou-se com sua amasia Leopoldina. Sob o pretexto de que esta safra sem seu consentimento € aquela hora “deu-Ihe algumas tamancadas ¢ a empurrou para que fosse para casa”. Leopol- dina, porém, sentiu-se profundamente ofendida e, ao passarem por um lugar escuro, feria Hordcio no peito com uma faca, 0 que 0 fez ter uma vertigem, aproveitando-se Leopoldina para desaparecer de cena.” A recusa das esposas € companheiras a entreter relagdes sexuais cra também razio para conflitos, acompanhados de investidas contra o corpo das mulheres, Alguns cx- maridos ou companheiros exigiam manter tal relacionamento, mesmo apés a separagao, e, jonava ante a recusa das mulheres, a desavenga se instalava. Tal estado de coisas oc: situagdes de tensiio que se desencadeavam de forma critica ¢ até mesmo fatal. Ernestina Maria de Jesus, solteir: convivéncia com Custédio Gongalves Paes, de 22 anos, abandonou-o, Posteriormente, ao recusar a sua proposta de voltarem a manter relagdes sexuais, recebeu uma facada, fale- cendo de infecgao generalizada. Outras que resistiram a propostas desta natureza ao consi- , vinte anos, constitui-se num exemplo. Nao mais suportando a derarem 6 carater ruim do relacionamento, mesmo sem chegar a tio trégico fim, nao deixa- ram de arriscar suas vidas. Tal ¢ 0 caso de Benedita Maria da Conceigao, que levou cinco tiros de scu amasio Jodo Antonio dos Santos; a italiana Carmélia, casada com Francisco Bruno, estava a estender roupas quando foi por cle agredida com navalha; também Agueda Maria da Conccigao, amasia de Jotio da Costa Viana, teve 0 pescogo por ele golpeado com navalha ao se recusar a ter relagdes, revoltada com os espancamentos a que era submetida.'? 274 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25). dez. 2002 Em indmeras situagies. os acusados, sem apresentar provas, langavam mao da suspei- ta de adultério, justificando sua atitude com o argumento da “legitima defesa da honra”.!? E esta € a justificativa de que langa mao o militar Lourengo Ferreira Chaves para 0 assas- sinato de sua esposa, Josepha Maria Juliana, a 9 de fevereiro de 1896. Em seu depoimento, Lourengo afirma que Josepha teria dito que preferia morrer a acompanhé-lo no seu retorno para o Piauf, para onde ele estava sendo transferido. Ao lado disso, porém, acrescenta que matou sua mulher com uma faca “porque a mesma 0 desrespeitava, andava de amores com. um cabo do mesmo batalhao”’ O adendo deu margem para que a defesa unisse os dois argumentos, alegando que, apos dezenove anos de convivio harmdnico, Lourengo foi transferido para a Capital Federal “Aqui chegados, comegou a desconfiar de algumas atitudes de sua mulher, que ‘até o aconselhava a desertar’, sempre no intuito de fugir 4 viagem novamente determinada para * Unia, desta forma, duas questdcs-chave, tendo em vista representar a vitima US o Piaui. com forte conotagao negativa, j4 que ela insuflava seu marido a descumprir ordens di superiores, faltando com os deveres para com a patria, a0 mesmo tempo em que incorria no adultério, suprema imperfei¢ao moral para uma mulher. O “ciime”, mesclado a uma resposta brusca, era igualmente fonte de problemas. Eo que se constata dessa matéria veiculada pelo O Paiz, acerca do “entrevero” entre Jélio Teixeira Garcia e sua amante, Quitéria Maria da Conceigao. Ao chegar As onze horas da noite e avisté-la sentada & porta, Jtilio apertou o passo € a interpelou sobre o que ali fazia. Quitéria ergueu-se arrebatadamente e sem dar palavras entrou. Teixeira fé-la parar brusca- mente, mas a rapariga, com um safando, escapou-lhe e virou-lhe as costas. Teixeira, cheio de c6lera, apossou-se de um punhal cravou-o no dorso de sua amisia, que caiu, soltando um grito de dor. O criminoso embrenhou-se nas matas existentes e desapareccu, favoreci- do pela escuridao. J4 numa outra sitmacao, o simples fato de a esposa Tilia comecar a irabalhar numa fabrica de tecidos encheu 0 marido de suspeitas infundadas. Acreditou que cla havia se enamorado do mestre da fabrica e, como resultado, feriu-a mortalmente com duas facadas, alvejando-a em seguida com dois tiros de garrucha no préprio leito conjugal."6 Um aspecto evidente que emerge da documentagZo ¢ a iniciativa das mulheres de se livrar de uma situag@o que as oprimia, algumas ao preco de sua propria vida, Assim, em que pese a ameaca que pairava sobre elas, o abandono do lar por essas mulheres, alegando a situagdo desagradavel que enfrentavam no cotidiano. é significativo na amostragem. Os esposos/companheiros. inconformados de serem rejeitados, apelavam para a agressao. Algumas encontraram a morte, como Justina Cardoso de Meneses e Souza, casada ha cerca de sete anos com 0 alfercs Joao Batista Pires de Almeida. Descontente com as des- confiangas do marido ¢ com as questdes que daf decorriam, Justina decidiu abandoné-lo, 0 Proj. Hisidria, Sao Paulo, (25), dez. 2002 275 que fez por duas vezes sucessivas. Terminando por descobrir o local em que Justina se encontrava, Jodo a obrigava a retornar. Da segunda vez, este termina por assassind-la, alegando desconfiar de seu comportamento.'” Nao escapou de drama similar Eleonora de Carvalho de Mello Machado, filha do Dr. Carlos de Carvalho, ex-ministro do Interior, casada com 0 deputado Irineu Machado. O fato mereceu ampla repercusstio, devido a situagao social elevada dos personagens, fato raro nas colunas policiais. Também Eleono- ra, cansada dos desmandos de dele se separar. O resultado foi a tentativa de assassinato, por este, levada a efeito a 3 de julho de 1900, que alegou, como era de praxe nessas ocasides, sentir-se ultrajado em sua honra ante as dentincias de que sua esposa 0 trafa.!* Diante disso, informava agir sob forte perturbagao dos sentidos. Como ocorria na maioria das situagoes dessa natureza, 0 réu foi absolvido em primeira instancia.” A violéncia masculina, como resultado da rejeigao, manifesta-se também entre aque- Jes que ndo mantinham nenhum vinculo, Tal aconteceu com Maria Luiza da Conceigao, solteira, 25 anos, que recebeu dois golpes de faca no pescogo por parte de Manoel Joaquim do Sacramento, por ter recusado sua proposta de casamento. E Maria Luiza explica sua decisdio “por néio ser do seu gosto f2z8-lo com Manoel”, demonsirando sua firmeza em garantir sua escolha, ao assumir to significative compromisso.* Situagao idéntica viveu Isabel Rodrigues de $4, com dezessete anos, que no tinha a menor atragHo por Pedro José dos Santos, de quem recebia corte insistente. Como resultado, estando a passear com pes- soas de sua familia, dele recebeu tiros de espingarda?! Apesar de tudo, muitas nao se intimidaram, buscando reconstruir suas vidas, tentando eu marido que praticamente abandonara o lar, resolveu novos relacionamentos, o que fica nitido na declaracdo da italiana Maria Bossio, casada com seu conterraneo José Rita, que a feriu com varios tiros de rev6lver: “que este nao Ihe dava bom tratamento € a atirava ao desprezo”. Diante deste quadro, abandonou-o ¢ foi e com um patricio, morar com uma amiga, mas que “a partir de entao ela declarante uniu-s vivendo muito bem”? Os casos de suspeita de infidelidade aparecem, igualmente, como causa de crimes passionais ocorridos no Rio de Janeiro, no periodo estudado (1873 a 1902). O militar Lourengo Ferreira Chaves, casado, suspeitando estar sendo traido, acreditou obter a con- firmagio de suas suspeitas quando a vitima recusou-se a acompanhé-lo numa viagem. Alucinado, esfaqueou a mulher até a morte. Disse em julgamento que se fez réu involunta- a de sua honra. Era uma argumentagao riamente, convencido de que assim agiu em defes comum na época, ¢ que inocentava os acusados de crimes contra suas mulheres. Acredita- va-se que alguns homens agrediam mulheres impulsionados por “sentimentos repentinos” ¢ inexplicaveis; as vitimas poderiam ser parentes, conhecidas ou desconhecidas. Em todos 276 Proj. Hist6via, Sdo Paulo. (25). dez. 2002 os casos, foram solicitados exames de sanidade mental, e alguns dos acusados foram encaminhados para 0 hospicio; outros, cujos laudos confirmavam sua sanidade, voltaram & sociedade, absolvidos dos crimes que cometeram. Olivia Antonia Teodora Barbosa, a 26 de julho de 1900, também foi vitima de varios tiros de revélver, dados por seu ex-amasio, Antonio Francisco Barbosa, do Primeiro Bata- Ihio de Infantaria da Brigada Policial. Ao confessar seu crime. Antonio apela para a legi- tima defesa da honra, alegando ter encontrado Olivia acompanhada de um praga com ela quem mantinha relagdes. As testemunhas. porém, mesmo as masculinas, revelam que 0 casal ja estava separado, ¢ 0 tal praca nao foi visto por ninguém, Outros casos de idémtico ior se repetem.”* Os casos a seguir, tinicos analisados em que as mulheres foram acusadas, exemplifi- cam situagbes de mulheres saturadas, reagindo a tais citimes infundados. Margarida Maria da Conceigao, amasiada com Paulo Luis, arremessou-lhe um prato de louga, ap6s ter sido esbofeteada por estar conversando no portdo, com sua vizinha.* Este desconfiara que as duas estavam tramando algo, chamou-a para dentro ¢ a esbofeteou, Maria Domingues Alves, por sua vez agrediu 0 amasio Raimundo dos Santos com uma faca, apés algumas se como estava vestida e espancou-a discussdes; 0 amésio no queria que a mulher sai porque se recusara a mudar de roupas. Enfurecida, armou-se de uma faca ¢ feriu o amiasio.> Nos dois casos. as acusadas foram absolvidas. Apesar de a infidelidade por parte da mulher configurar-se como um grave crime e ser penalizada com a morte, pois o seu assassinato cra reconhecido, na pratica, como uma varias mulheres se arriscaram ¢ viveram forma de o homem vingar a sua honra ofendida outros amores. Imameros so os exemplos dessa natureza. Maria Ignécia Garret ¢ 0 portei- ro da Praga do Mercado estavam casados hé quinze anos. Estando gravida, espancada pelo marido, Maria Igndcia chegou a perder a crianga, 0 que nao a impediu de enfrentar sua firia, sendo surpreendida em flagrante delito no quarto de Antonio Vidal. Ja Maria de Jesus era amésia de José de Souza Passos, com quem residia na casa de comodos & Rua Conselheiro Bento Lisboa, n. 109. Avisado por vizinhos, surpreendeu-a com o portugués, dono de uma loja de ferragens. Apesar dos golpes que recebera, Maria de Jesus conseguiu escapar ¢ saiu em busca de socorro” A espanhola Graciana Garcia decidiu abandonar seu marido, o também espanhol Pe- dro Salamanca, que, encontrando-a num botequim conversando alegremente com Antonio de Almeida, irrompeu contra a mulher, criticando seu procedimento. Segundo o jornal, “Graciana longe de se considerar humilde respondeu com um riso de mofa as queixas proferidas por seu marido. Desesperado o pobre marido langou méo de uma [aca e vibrou Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 277 na mulher dois golpes”. Tais palavras deixam entrever 0 imagindrio da época com relagao ao comportamento feminino, que deveria ser, antes de tudo, submisso, 0 que nao impossi- em essa regras® . bilitava, porém, que as mulheres desafias Com esses dados, cabe perguntar se existem diferengas significativas nas relagdes de género entre populares ¢ elementos dos demais segmentos. Torna-se relevante, de inicio, acentuar 0 cardter complexo e contraditério da questao. Os populares nao constituem um bloco univoco, A heterogeneidade impera em todos os segmentos da sociedade. Além disso, néo vivem isolados; o fendmeno da interpenetragao cultural € uma realidade por todos reconhecida, ou seja, influncias reciprocas ocorrem entre os diversos grupos da sociedade, Essas trocas ocorrem no apenas entre dominantes e dominados, de cima para baixo, ¢ vice-versa, como também no sentido horizontal, entre grupos pertencentes a clas- ses sociais idénticas, mas apresentando diferengas de cor, religiio, geragao, etc.” Assumindo-se uma outra vertente, aquela de Roger Chartier que sugere a nogao de apropriagao, tal circulagao de valores, padrdes de comportamento, etc. também se apre- senta, j4 que so enfatizadas as praticas que se apropriam de forma diversa dos materiais que circulam numa determinada sociedade, dando lugar aos usos diferenciados € opostos dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias.” Um outro aspecto a considerar é aquele da documentagao, bastante diversa com rela- cio aos segmentos dominantes ¢ populares no que tange ao exame da questo. ou seja. das formas de reagao masculina ante as iniciativas femininas de uma participagao mais ampla, no ambito piblico como privado. Numa avaliacao apressada. considerar-se-ia que 0 “citime” seria o principal mével de conflitos enue homens e mulheres das camadas popu- lares, citime que se manifestaria, no caso de homens, entre outros, ao serem abandonados, ao verem sua ex-companheiras ou esposas com outra companhia masculina ou ao terem recusadas suas propostas de relacionamento sexual.” Na verdade, um tal comportamento expressa muito mais o corpo da mulher como um objeto de sua propriedade. E esta nao é uma crenga especifica aos homens pobres; também no caso das camadas mais favorecidas, os mesmos condicio- namentos culturais estao presentes. Assim, uma das explicagées é de que, na medida em que é dado ao homem o direito de extravasar sua agressividade “natural” sobre os objetos de sua propriedade, e sendo o corpo da mulher considerado uma propriedade sua, este se constitui em local proprio de extravasamento da agressividade masculina.* Cabe voltar a lembrar, neste particular, que a violéncia fisica nao ocorre apenas onde predominam as condigdes precarias de exist@ncia, desemprego e desagregagao das relages sociais e fami- liares, Ela também se manifesta, e muito, onde estado presentes os padroes tradicionais do comportamento. As relages violentas, portanto, nao se constituem em apandgio dos popu- a pretensao de considerarem 278 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 lares, apresentando-se, igualmente, nos segmentos médios e elevados. Entretanto, estes dispGem de recursos que impedem, na grande maioria dos casos, que a questo se torne do conhecimento da policia e do publico, em geral. Quanto 4 circulagdo das mulheres pobres pelos diversos espagos, nas ruas € pracas, esta Ihes era vital, j4 que precisavam trabalhar ¢, na maioria das situagdes, manter a familia. Assim, era mais dificil para os homens controlarem-nas.” As condigdes concretas de exis- téncia dessas mulheres, com base no exercicio do trabalho, partilhando com seus compa- nheiros a Juta para a sobrevivéncia, contribuem para 0 desenvolvimento de um forte senti- 80 mento de auto-respeito. 0 que thes possibilita reivindicar uma relagao mais igualitéi contrario dos esteredtipos vigentes acerca da relagao homenvmulher, que previam sua subordinagao e aceitagao passiva dos percalgos provenientes da vida em comum. Para a compreensio de tal atitude, torna-se relevante informar que, no periodo abor- dado, observa-se um excedente de populagdio masculina em relagdo a feminina, o que pode ser verificado pela consulta aos censos realizados na época e que alcanga sua maior dife- renga, naquele de 1906. Tal diferenga dever-se-ia, principalmente. 3 entrada de imigrantes estrangeiros que no traziam suas familias, além de muitos serem soliciros. De acordo com Chathoub, essa diferenga quantitaliva entre os dois sexos favorecia as mulheres, que eram, assim, altamente disputadas pelos homens ¢ tinham condigdes de reivindicar maior sime- ¢, mediante a leitura dos processos, que alguns ria na relagdo. Assim mesmo, observa- homens pretenderam obter uma atitude de obediéncia de suas companheiras, bem como controlar os seus movimentos, reagindo ao encontrarem-nas em horarios ¢ locais que con- sidcravam inadequados. Reafirma-se, portanto, a circulago desses valores, embora dife- rengas s¢ apresentem. Muito do idealizado dificilmente se concretizava. Ao contrario dos esteredtipos acerca da submissao feminina, as mulheres vitimadas rebelaram-se contra os maus tratos de seus companheiros, precipitando solugdes extremas, considerando-se, em sua maioria, merecedoras de direitos iguais aos dos homens com que conviviam. A violéncia, porém, nao se resume a atos de agressio fisica, decorrendo igualmente de uma normatizagao na cultura, da discriminagdo e da submissao feminina. As teorias cons- stauradas por homens, estabelecendo um duplo discurso, do homem sobre o homem e do homem sobre a mulher, restritivas da liberdade e da autonomia feminina, que convertem uma relacao de diferenga numa hierarquia de desigualdade, configuram uma forma de violéncia e, nesse caso, insere-se também a violéncia simbélica. Importa ressal- tar que, 0 fato de se reconhecer nesse particular a incidéncia da violéncia simb6lica sobre as mulheres — 0 que supde a adesiio dos dominados as categorias que embasam sua domi- nagiio ~ ajuda a compreender como a relago de dominagao, que 6 uma relagao hist6rica, cultural e lingiiisticamente construfda, é sempre afirmada como uma diferenga de ordem natural, radical. irredutivel, universal. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 279 Os pressupostos acerca da inferioridade feminina, presentes no discurso da Igreja Catélica, paradoxalmente, sao reafirmados pelo Iluminismo, legitimando-se a exclusio das mulheres da cidadania politica e civil com a Revolugio Francesa, apesar do papel relevante que cstas desempenharam no movimento. Tais teorias ganham forga durante o século XIX, adquirindo 0 respaldo da citncia, o fdolo do momento, A medicina social assegura constitufrem-se como caracteristicas femininas, por razGes bioldgicas, a fragili- dade, 0 recato. o predominio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinagdo da sexualidade & vocagdio maternal. Em oposicao, o homem conjugava, & sua forga fisica, uma natureza autoritdria, empreendedora, racional, bem como uma scxualidade sem se ressaltam a menor inte- Além disso, aquelas caracteristicas femininas, das quais |, Médico italiano e nome con- freios. ligéncia ¢ a sensibilidade sexual, levavam Cesare Lombros ceituado da criminologia em fins do século XIX, a justificar que as leis contra 0 adultério s6 atingissem a mulher, cuja natureza nao a predispunha para esse tipo de transgressio. As dotadas de erotismo intenso ¢ forte inteligéncia cram despidas do sentimento de materni- dade, caracterfstica inata da mulher normal. sendo extremamente perigosas. Constitufam- se nas criminosas natas, nas prostitutas ¢ nas loucas, que deveriam ser afastadas do convi- vio social." Com a consolidagiio da burguesia no poder, firma-se, no século XIX, a diviséo de dio entre os géneros: o masculino na papéis ¢ uma rigida separacdo das esferas de atuat 6rbita publica ¢ o feminino no Ambito privado. Essa situagao se configura com mais énfase entre os segmentos mais clevados, jé que as mulheres pobres por sua condigio social encial, obrigadas, elas mesmas, arealizarem suas continuam a ter arua como espago pri compras, como também ao exercicio do trabalho extradoméstico, além de se encarregarem de imimeras atribuigGes que lhes proporcionavam maior independéncia — 0 que nao impe~ dia, porém, a presenga de contradigdcs entre os géneros ¢ a incorporagao desses saberes. Ademais, a incorporagio da dominagdo ndo exclui a presenga de variagGes e manipula- oes, por parte dos dominados, 0 que significa que a aceitago, pela maioria das mulheres, de determinados canones nao significa, apenas, vergar-se a uma submissao alienante, mas. igual- mente, construir um recurso que Ihes permita deslocar ou subverter a relagdio de dominagao. Compreende, dessa forma, uma tética que mobiliza para seus proprios fins uma representa- cao imposta— accita, mas desviada contra a ordem que a produziu. Assim, definir os poderes femininos permitidos por uma situagao de sujeigdo e de inferioridade significa entendé-los como uma reapropriagdo e um desvio dos instrumentos simbélicos que instituem a domina- ¢4o masculina, contra o seu proprio dominador.” Além dessa resist@ncia cotidiana, sobretudo a partir da segunda metade do século, transformagoes que se apresentam nos mais diversos Ambitos, aliadas as insatisfagdes de 280 Proj. Historia, Sdo Paulo. (25). dez. 2002 muitas mulheres inconformadas com sua excluso do terreno puiblico, contribuem na emer- géncia de movimentos feministas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, tendo em vista & modificagdo desse quadro. Criando uma imprensa propria, organizando associa- gOes, quer aquelas que se limitavam a uma postura liberal, quer as que vinculavam suas propostas a instauragao do socialismo, lutam as mulheres pelo reconhecimento de seus direitos. incursionando, algumas, pelo terreno da sexualidade. No inicio do século XX. uma primeira geragdo de médicas sugerc As demais a liberagdo do medo e da ignorancia do seu corpo. Nao foi tranqiiila a receptividade dessas manifestagGes. A reagdo se sentir nao 86 por parte dos governantes. reprimindo tais movimentos, como da propria socieda- de, particularmente da parcela masculina ¢ de no poucas mulheres.* No Brasil, idénticas iniciativas se fizeram sentir. Desde 0 primeiro protesto de Nisia Floresta, na década de 1830, mani forga as insatis mininas. Constitui-se aqui, igualmente, uma imprensa feminina, cujo primeiro periédico, O Jornal das Senhoras, data de 1852. Algumas mais moderadas nas suas reivindicagbes enfatizavam a importincia da educagao da mulher, lembrando o scu papel de mae ou invo- *, Outras mais incisivas defendiam-na como recurso para o alcance da independéncia ccondmica, também acentuando a relevancia dos direitos civis ¢ politicos; algumas delas chegavam a defender 0 divércio.” Ja no século XX, despontam nomes como Maria Lacerda de Moura, pioncira em muitos Ambitos, também no que tange ao questionamento da organizagao familiar c da moralidade existente, postulando a liberdade sexual. Outras organizam-se em associagoes. destacando-se a atuagao de Bertha Lutz. Suas reivindicagdes deram lugar a fortes resistén- cias, negando-se por toda a Primeira Republica, entre outros, reconhecer as mulheres o direito ao voto. Autoridades, politicos em geral, juristas, negaram-se a considerar positiva- mente suas pretensdes, respaldando-se na ciéncia da época, que legitimava, alegando ra- stam-se cada vez com mais ges fe- cando uma “questio de requinte espiritua zoes bioldgicas, tal desigualdade entre homens ¢ mulheres. Por meio de pegas teatrais, de literatura, de crénicas ¢ através de diversas matérias na imprensa — jornais e periédicos — também se observa oposig&o ao seu atendimento, chegando alguns a ridicularizar as mili- tantes, representando-as como miasculinizadas. feias, despeitadas ¢ até mesmo amorais, no so. Nao eram poucos os homens comuns que endossa- que conseguiam grande repercus vam cssas opinides, mediante depoimentos € cartas aos jornais. Ao longo do tempo, as feministas foram objeto de grosseiras caricaturas em crénicas e charges, nas quais se buscava passar a mensagem do terror e do grotesco que representa- ) de mulheres em esferas consideradas proprias dos homens. Uma das ria a participaga conseqiiéncias seria a desordem familiar: as mulheres passariam todo 0 dia no escritério Proj. Histéria, Sao Paulo, (25), dez. 2002 281 ou em assembléias, vendo-se os maridos envolvidos nos cuidados com os filhos, atividade para a qual nfo apresentariam nenhuma habilidade; daf decorreria uma péssima qualidade da alimentagao, 0 nao cumprimento de hordrios, 0 caos doméstico... Repetem-se velhos esterestipos acerca da importancia de serem respeitados os dife- , concepgao presente na religiao, atualizada e sofis- rentes atributos dos homens e mulher: ticada pelos filésofos iluministas ¢ utilizada pela ciéncia. Em 1930, na Folha da Noite, 0 autor, que ndo se identificou, procurou explorar a suposta masculinizagao das mulheres que reivindicavam direitos, um dos esterestipos que hes era mais atribufdo. Informa que essas esquisitas “senhoras que estao levantando pelo mundo todo 0 clamor pela conquista dos ‘direitos da mulher’, no se deveriam chamar ‘feministas’. Dever-se iam chamar ‘mas- culinistas’”, Isto porque essas ousadas pioneiras vestiami-se como homens. Segundo ele. masculinizaram-se no traje, que descreveu ‘As sufragistas inglesas vistas de repente, ou de longe, sio figuras ambignas. A gente custa a saber, se a heteréclita criatura de chapelinbo de palha. punhos e colarinho duros, gravatinha borboleta, jaqueta igual aos paletés do sexo barbado, sapatos rasos ete, deve ser chamada “miss”, “misteres” ou “mister”? Em seguida, detém-se no aspecto fisico: “os modos incisivos, os gestos secos, a voz roufenha, acrescente-se a circunstancia dos cabelos cortados ¢ a moda dos homens raspa- rem barba e bigode, e reconhecemos natural 0 equivoco, naturalissima a confusio”. Esse intr6ito, em que se deformava o corpo das militantes a fim de se thes atribuir tragos mascu- linos, acompanhados de extrema feitira, justificava-se para atacar aquele que era 0 objeti- ‘yo visto como subversor da ordem social: masculinizadas no tipo, querem masculinizar-se nos direitos, Blas propunham a igualdade politica e juridica dos dois sexos. ¢ esta claro que ~ propugnariam também a equiparacdo proliferante. Os mesmos encargos, 0s mes- mos deveres, para marido e mulher. E af vinha um outro perigo ha muito temido nessas mudangas: “de muito marido sabemos que j4 serve de ama-seca aos filhos, enquanto a esposa trabalha nas repartigdes puiblicas ou alhures, em tudo, enfim, onde havia homens antigamente (...)”. Arecorréncia de tal discurso torna-se uma constante, buscando mesmo apontar para uma iminente catdstrofe, o fim da humanidade com um inevitavel deboche... a nao ser que o Senhor enviasse & terra “um miseravel Addo com disposigao para servir como escravo a tantas rainhas (...)”. E também recorrente a preocupago em acentuar o cardter imprescindivel da beleza para as mulheres, A auséncia desse atributo representa um pesado Onus, ja que. infalivel- objeto de grosseiras caricaturas: mente, sero rejeitadas pelos homens. E as feministas 282 Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 em que se acentuava 0 tra¢o, deformando-se-lhes 0 corpo, buscando representé-las como. espécimes de extrema feitira. Busca-se, assim, incutir que as mulheres que se decidem a luta pelo reconhecimento de direitos ¢ disseminam suas idéias fazem-no apenas por frus- tragdo. Ou seja. nao sendo privilegiadas com a beleza, vendo-se relegadas & triste situagdio de vieille fille" , vista 4 época como extremamente humilhante para as mulheres, buscam vinganga por meio do questionamento de sua condi¢ao. Numa dessas caricaturas, intitulada “Miss Alma (Tipo Feminista)” vé-se uma mulher extremamente magra, feia, sapatos masculinos, chapeuzinho, portando um livro, conju- gando a imagem estereotipada de soltcirona e a de intelectual, que, como ja foi exposto, nao representava um signo feminino positivo.? Na outra, observa-se uma mulher mais velha, gorda, ar arrogante, apresentando as mesmas caracteristicas: feitira, masculinidade € 0 indefectivel livro. sendo alocada, muito a propésito, na sega Sapatos. Esse pensamento, apresentado de forma picaresca, manifestara-se com toda forca nos médicos da virada do século e parecia manter crédito nos anos 1930. A inteligéncia, o interesse profissional, o desejo de participagio na estera piblica, longe estavam de ser um trago peculiar 4s mulheres. As dotadas de forte inteligéncia, caracteristica masculina, eram incapazes da abnegacao, da paciéncia, do altruismo que caracterizam a maternidade, fun- go feminina primordial ¢ garantia da sobrevivéncia da espécie humana, que tais articulis tas buscam reafirmar como ameagada. A critica nao se limitava aos homens. A revista feminina Unica, publicagao mensal contendo matérias sobre literatura, arte, elegancia e sociologia. dirigida por uma mulher, incorre igualmente na questdo — em que pese contar com diversificada colaboragao de mulheres significativas na época, como a poetisa Cecilia Meircles, ¢ até de militantes do movimento feminista. Nesse sentido. noticia a invasao dos prados de corridas e quartei- rdes elegantes londrinos por mulheres apaches de porte masculo ¢ muito bem vestidas, pertencentes a um bando de nome bizarro, “bando dos quarenta elefantes”, Tais “criaturas, dedicam-se ao roubo nos grandes estabelecimentos, & violac&o das fechaduras, & chanta- gem € até ao assalto A mao armada (...) resultado dos direitos equiparados da mulher” Alias, também aqui cabe lembrar Lombroso, que menciona 0 fato de muitas mulheres honestas estarem incorrendo no delito, devido ao seu acesso a instrugao elevada. Segundo ele. na medida em que estas encontram dificuldades de atuagao profissional, diante da manutengao dos preconceitos nesse campo, muitas acabam reduzidas & miséria, Outros- sim, “tendo perdido ou quase a esperanga de encontrar um diltimo recurso no casamento (pela habitual repugnncia do homem vulgar pela mulher instruida) nao Ihe resta senfio o Assim, mais uma vez, a ciéncia mescla-se com 0 suicidio. o delito ou a prostituigao senso comum, corroborando 0 perigo para as mulheres de uma escolha daquela espécie. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 283 Apesar de todo esse bombardeio, as feministas tiveram suas reivindicagGes concreti- zadas na Constituigao de 1934. Nela foram incorporadas muitas das sugestdes de Bertha Lutz. como membro da Comissao que claborou o anteprojeto. Por meio delas, constata-se que a referida lider revela interesse marcante pelos aspectos basicos da sociedade brasilei- ra, a0 Mesmo tempo em que se preocupa em propiciar 4s mulheres condigdes de se integrar nos varios planos da vida nacional ¢ internacional. Bertha Lutz foi a candidata indicada para representar 0 movimento feminista na Camara Legislativa Federal, passando a inte- gré-la em 1936, ao falecer 0 deputado titular, destacando-se por sua intensa e proficua atuagio.“ Enfim, nao ha como concordar com a afirmagio de que a luta pelos direitos politicos tenha se constitufdo numa luta ingloria, limitada as “reivindicagbes formais do liberalismo burgués”, reduzindo-se esta conquista a uma concessao “quando assim interessou aclasse dominante, em seu confronto com as massas urbanas que ameagavam o equilibrio do jogo politico liberal”. Uma posigdo desta natureza desdenha as Iutas empreendidas por varias geragdes de mulheres j4 preocupadas com a questao. E, particularmente, quanto a Bertha, importa ressaltar sua ago num momento decisivo, marcando uma ruptura, em meio aos preconceitos nos mais diversos Ambitos, a comegar pelo Congreso, nas paginas da im- prensa, nos teatros, etc. Afinal, penetrar na esfera publica era um velho anscio por longo tempo vedado as mulheres; significava uma conquista, possibilitando-lhes, segundo Hannah Arendt, assumir sua plena condigao humana pela ago politica, da qual por longo tempo permaneceram violentamente excluidas. Escaparam, porém, aos ideais feministas do momento, varios dos fatores que impediriam plenamente tal liberagao, alguns apenas visfveis a partir da década de 1970.*° Nos anos 60, em meio a prosperidade do pés-guerra, mas também em plena Guerra Fria, reage parte significativa da juventude contra a repressio € 0 controle ostensivo de que se considerava refém. A desilusdo com os valores do mundo capitalista, mas também com 0 “socialismo real”, era a marca para a qual, especialmente no Ocidente, muito contri- buiram as idéias de Herbert Marcuse, cujas obras, entre elas Eros ¢ civilizagdo, tornaram- se emblemilicas, Assim, toma vulto a marcha em prol de um mundo novo, de uma utopia que, iniciada nos Estados Unidos, posteriormente estourou com mais intensidade em ou- tras partes do mundo, como a Franga ¢ a Alemanha, mas que também na América Latina e na porgdo socialista esteve presente. E 0 sonho libertario que se busca, por meio de uma nova concepgao de politica e de cultura que concilie justiga social ¢ liberdade, arte e vida. Em suma, emerge a célebre rebeliao contracultural dos anos 60, propondo uma série de mudangas no plano da criacdo literaria, artistica, do comportamento individual e da atua- Jo politica, descendente em linha direta da beat generation dos anos 50 com Jack Kerouac, 284 Sao Paulo. (25), dez. 2002 Allen Ginsberg e William Burroughs a frente. Na esteira dessa rebeliao, uma outra emerge, arebelido das mulheres. Assim, irrompe uma nova vaga feminista nos Estados Unidos ena Europa, que também se manifestou vivamente no Brasil, momento em que o pais via-se acossado pela ditadura militar que assumiu 0 poder, apés 0 golpe de 1964, Dentre as varias modalidades de luta contra 0 regime, destacou-se 0 empenho de alguns em manifestar resisténcia e inconformismo, por meio da ridicularizagao, no que se destacou 0 tabléide O Pasquim, com publicagao quinzenal, naqueles “anos de chumbo”. Paradoxalmente, porém, essa mordacidade voltou-se também contra as mulheres que se decidiram pela luta por direitos e/ou que no seu cotidiano assumiam atitudes consideradas quilo que se pretendia proprio a feminilidade c as relagdes estabelecidas inadequad entre os géneros. Estas, por sua vez, lembrando reflexdes de Virginia Woolf, denunciavam como mistificagdo a separaco entre 0 piiblico e o privado, entre o pessoal € 0 politico. insistindo sobre 0 cardter estrutural da dominagao, expresso nas relagdes da vida cotidia- na, dominagao cujo cardter sistemético apresentava-se obscurecido, como se fosse produ- to de situagGes pessoais.*” Articuladas a esse clamor, estavam as manifestagdes contrarias & permanéncia de padroes patriarcais na organizagao da familia, além das exigéncias que reforcavam esterestipos para as mulheres, como maternidade compuls6ria, modelos de beleza. delicadeza, etc. Dispostas a derrubar tabus, como os da virgindade obrigatéria para mulheres solteiras, buscavam a plena assungao de seu corpo em sua sexualidade. Em contraposigao, nas pdginas do citado jornal, ridicularizam-se as militantes, utili- zando-se 0s rotulos usuais de “masculinizadas, feias, despeitadas”, no que conseguiam grande ressonancia. E as velhas piad: apresentam-se. Uma entrevista com Tonia Carrero é acompanhada do subtitulo: “Beleza e inteligéncia sio dois ingredientes que, salvo rarfssimas excegdes, exigimos para as mulheres entrevistadas pel’O Pasquim”. Uma caricatura de Fortuna mostra um casal que, em vez de brindar prazerosamente, prefe- re disputar uma queda de bra¢o, numa atitude competitiva, Também fazem entrevistas com mulheres intelectuais perguntando acerca do que pensavam sobre 0 feminismo. Em boa parte delas, 6 manifestado horror ao movimento. Foi exemplar a entrevista realizada por O Pasquim em 22 de abril de 1971 com a feminista americana Betty Friedan, quando de sua visita ao Brasil, e os desdobramentos provocados por sua suposta feitira. Ante a afir- magio de Paulo Francis acerca do excessivo individualismo e da preocupagdo obsessiva de certas feministas americanas com problemas sexuais, Friedan sustenta uma posigao s reatualizada contraria a respeito: Minha definigao da mulher, primeiro como uma pessoa, significa que eu devo me sentir responsdvel, como americana, e preocupada, como americana, com a repressao tanto dentro de meu préprio pais como fora, no Camboja, Vietnam, etc., no sentido de que esse pafs, 0 Proj. Hist6ria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 285 meu, esté se tornando um poder do mal no mundo, Eu devo ter uma voz, nio 86 no que afeta meu corpo como o aborto, efc., mas também no que diz respeito & guerra ou a paz, o problema das cidades, a opressio dos negros - pois todos esses problemas estao relacionados. Mas e se eu ndo tiver essa voz? Como tantas mulheres que nao se libertaram. Entao, a energia, a raiva irdo alimentar e ser usadas pelos fascistas. Mais adiante, & provocag’o de Millér Fernandes de que 0 movimento das mulheres nao teria um objetivo, Friedan replica, reiterando sua vinculagao com 0 todo. © movimento da mulher é apenas uma parte do todo de uma grande revolugao humana que esta acontecendo no meu pais. No atual estégio dessa revolugao a mulher é uma paste muito portante, mas ela nao é um fim em si mesmo. £ uma parte integrante da contracultura. (...) Em todo lugar, tenho falado dessa questo de libertago, nao s6 da mulher mas também do homem.. Mas o que ela falou pouco importou, dado que 0 que o proprio Mill6r, posteriormente. em 22 de fevereiro de 1972, frisa o seu “orgulho de ser considerado porco chauvinista, j4 que quem assim 0 julgou foi Betty Friedan em pessoa” e. mais uma vez, 0 argumento consiste em investir contra um atributo corporal da mulher, pois. segundo o articulista citado, “ela em pessoa € muito mal apessoada’”’. A primeira vista, esta maneira burlesca de apresentar as mulheres empenhadas na luta por direitos nao guardaria maiores conseqiiéncias, visando apenas divertir o piblico leitor. Na verdade, porém, percebe-se um aspecto perverso nessas insinuagdes, 0 que me faz enquadré-las numa das modalidades de violencia contr: ragiio da comicidade na abordagem de suas reivindic em voga acerca das feministas, como “viragos”, pesadas como elefantes, perigosas, feias. Tais imagens se contrapdem ao ideal feminino, constantemente reatualizado em torno de beleza, meiguice, delicadez: forma de violéncia, 0 que nfo poucas vezes leva a mulheres — isto porque a reite- cOes tende a difundir uma imagem aciéncia, resignacio, constituindo-se, igualmente, em uma mulheres a rejeitar sua insergao no feminismo e até a combaté-lo. Observe-se, af, 0 empenho em envolver o corpo feminino nesse processo, buscando valorizar e aprisionar as mulheres com base apenas em compor- tamentos ¢ padroes de beleza pré-determinados. A imprensa desempenhou importante papel n as reivindicagdes femininas c, por outras, mais numerosas, reificando os papéis e os limi- tes relativos A atuagdo das mulheres na sociedade. O que fica evidente é que algo aparen- ssa luta, por vezes abrindo espago para temente inofensivo, como a zombaria, 0 deboche, configura-se como modalidades de vio~ léncia, buscando inocular representagdes no intuito de conservar o status quo, mediante ridicularizaciio de movimentos em prol de mudangas com relagdo aos papéis excreidos por 286 Proj, Histéria, Sdo Paulo. (25). dez, 2002 mulheres € homens na sociedade. Neste tiltimo caso, tal modalidade de violéncia parecia procurar atingir mais de perto as mulheres dos segmentos médios envolvidas com os mo- vimentos feministas, 0 que nao impedia sua influéncia sobre aquelas dos segmentos popu- lares, Além disso, a violéncia ffsica era mais visfvel no que tange aos populares, 0 que no significa que nao ocorria entre os demais segmentos, que contavam com recursos para evitar que tais situagdes. em geral. viessem a piblico. Nesse sentido, violéncia fisica e violéncia simbGlica, esta tiltima também se fazendo sentir no corpo das mulheres, revelam- se faces da mesma moeda, armas voltadas para impedir o pleno crescimento dos sujeitos sociais — na situago em pauta, mulheres de todas as classes e cores. O alvo. porém, revelou-se inalcangavel pelo que nos é dado constatar, pois, apesar de toda a carga de violéncia empregada a fim de inocular comportamentos e imagens do feminino vistas como ideais, as mulheres atuai ca, quer naquelas mais sutis que visavam aprision: Lutaram, assim, para garantir sua plena cidadania, assegurando sua realizacio como sujei- am, superando os obstéculos, quer nas situagdes de agressio fisi- -las, segundo a vontade e a aco alheias tos de sua propria existéncia. Recebido em junho/2002; aprovado em julho/2002 Notas *Professora do Programa de Pés-Graduagdo em Historia da UFF. Cabe ressaltar a atuagio das bolsistas do CNPq, Miriam Helena Pereira Salomé (1998-2000) ¢ Erika Bastos Arantes (2000-2001), da Faperj (1998-1999) e, posteriormente, Pibic/CnPq (1999-2000). Andréia Mello Lac no apenas ajudou na coleta de dados, como na discusso desenvolvida, contribuindo efetivamente para a realizagdo deste trabalho. "STARK, R. e MCEVOY III, J. Psychology Today. Apud LANGLEY, R. e LEVY, R. C. Mulheres espancadas: fendmeno invisivel. Trad. Claudio Gomes Carina. 2 ed. Sao Paulo, Hucitec, 1980, p. 74. *CHALHOUB, S. Trabalho, lar ¢ botequim. O cotidiano dos trabathadores no Rio de Janeiro da Belle Fpoque. Sio Paulo, Brasiliense, 1986; ENGEL, M. G. Paixio, crime e relagdes de género (Rio de Janeiro, 1890-1930). Topoi: Revista de Histéria, Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 155, 2000. *CHAUI, M. RepressGo sexual. Sao Paulo, Brasiliense, 1984, p. 79. *Processo n. 576, caixa 63, 1883. Primeiro ‘Tribunal do Jiri. Arquivo do Museu do Palacio da Justiga de Nitersi *Processo Maria da Silva, mago 168. Arquivo do Primeiro Tribunal do Jiri, 19.4.1917, *Processo Antonia Josepha Maria da Conevigo, n. 1085, mago 894, GA. Arquivo Nacional, 20.10.1904. *Processo n. 491, caixa $4, Rio de Janeiro, 1877. Esse ¢ a maioria dos demais processos citados so do Primeiro Tribunal do Jii *Processo n. 428, caixa 49. Rio de Janciro, 1874. Proj. Histéria, Sado Paulo, (25), dez, 2002 287 *CHALHOUB. op. cit., 1986, p. 164. 1 Proceso Henriqueta Maria da Conezigio, n, 9830, eaixa 1903, GF, Arquivo Nacional, 3.10.1896. up, rocesso Leopoldina Maria Constanga, n, 1102, eaixa 779, GA. Arquivo Nacional, 24.10.1908, mbém encontrei tr@s ocorréneias em que homens vizinhos, conhecidos da familia, invadiram a casa de mulheres ¢, encontrando-as sozinhas, pretenderam estupri-las. Ante a reago das mesmas, agrediram-nas. De acordo com o Cédigo Penal de 1890, apenas a infidelidade feminina era penalizada por adultério. © homem s6 era considerado adailtero no caso de possuir concubina teéida € mantetida, © homem, em verdade, tinha plena liberdade de exercer sua sexualidade, desde que ndo ameagasse o patriménio familiar. 14 a infideli- dade feminina era, via de regra, punida com a morte, sob 0 argumento de que o assassino se achava “em estado de completa privagio de sentidos e de inteligéncia” no ato de cometer 0 crime, ante 0 fato de (er vilipendiado a sua honra. Na prética, reconhecia-se ao homem 0 diteito de dispor da vida das mull + Processo Lourengo Ferreira Chaves, n. 60, caixa 7, de 9.2.1896. SChime e sangue, O Patz, 7 de margo de 1899. 10 Paiz, 6 de janeiro de 1922. "Jornal do Brasil, 10 de margo de 1900. 'Jomal do Brasil, 3 de margo de 1900. ™ Jomal do Brasil, 4 de setembro de 1900. © Processo Manoel Joaquim do Sacramento, n. 513, caixa 56, de 2.8.1879, "10 Paiz, 2 de margo de 1899. ® Processo José Rita, n. 63, caixa 07, de 22.11.1896. Jugénia Bezerra, também alegando maus tratos, deixou o companheiro, o militar Marinoni Ramos de Souza, que “a maltratava ¢ the deva bordoadas”. Bncontrando-a, Marinoni, fingindo que Ihe daria um beijo ¢ um abrago, deu-lhe um golpe de navalha. Tiambém Clementina Correa de Oliveira, empregada doméstica, dirigia-se para seu trabalho, & Praia do Flamengo, quando encontrou seu marido ~ de quem se separ devido a maus tratos ~, 0 qual disparou trés tiros que nao a atingiram, Enfim, mais quatro situagdes similares foram encontradas. ahd dois meses, % Processo mimero 485, caixa 54, Rio de Jancito, 1878, 25 Proceso mimero 568, caixa 62, Rio de Jancito, 1882, 20 Paiz, 6 de janeiro de 1899, 2 Paiz, 3 de margo de 1899. = Paiz, 16 de margo de 1899. 20 conceito de “citcularidade cultural” pauta-se nas posigdes de BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de Frangois Rabelais. Trad. Yara F. Vieira. Sio Paulo, Hucitee; Brasilia, Fditora da Universidade de Brasilia, 1987: e GINZBURG, C. O queijo e os vermes: 0 conceito ¢ as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisi¢do, Sio Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 16-17. % CHARTIER, R. “Textos, impresses, leituras”, In: A histéria cultural: entre praticas e representagées. Lisboa, Difel; Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 134. 51 Refiro-me aos homens, ja que, dos 43 processas examinados, apenas dois tm as mulheres como acusadas. 288 Proj. Historia, Sdo Paulo, (25). dez. 2002 © ALBANO, C. e MONTEIRO, P. “Anatomia da violSncia”: MADEL, R. (org.). In. O lugar da mulher. Rio de Janeiro, Graal, 1982, pp. 110-111. “Outros processos revelam brigas entre os casais por uma situagdo de desemprego masculine. “ CHARTIER, R. Diferengas entre os sexos ¢ dominagio simbilica (nota eritica). Cademos Pagit, Campinas, Niicleo de Estudos de Género/Unicamp, v. 4, pp. 40-44, 1995. Segundo Roger Chartier, inspirado em Norbert Elias e Pierre Bourdieu, afirma gue © avango do processo de civilizagdo, entre os séculos XVI e XVIIL, corres- ponderia « um recuo da violéneia bruts, substituindo-se os enfrentamentos corporais por Iutas sitbélicas Nesse periodo, a construgao da identidade feminina se pautaria na interiorizagao, pelas mulheres, das nor nunciadas pelos discursos masculinos, fato correspondente « uma violencia simbolica. Ainds de acordo com Chartier, um objeto maior da histéria das mulheres, neste momento, consiste no estudo dos discursos & das ‘cariam garantir © consentimento feminino as representa- priticas, manifestos em registtos nniltiplas, gue ln jes e dos espagos, a inferioridade juridica, a goes dominantes da difereni divisto das atribui inculcagao escolar dos papé da esfera piiblica, ete entte os se cl socials, a ex “LOMBROSO, C. ¢ FERRERO, G. La femme criminelle et la prostituée, Paris, V. Alcan, 1896, *PERROT, M. Os exclufdos da historia, So Paulo, Paz © Terra, 1988, p. 200, “ CHARTIER. op. cit., 1995, Outros historiadores também descartam a visio de uma ago unilateral do poder sobre os dominados passives ¢ impotentes. Como frisa Certeau, torna-se necessirio desvendar as sutilezas engendradas criativamente pelos dominados, tendo em vista reagir 4 opressao que sobre eles incide, Thompson, embora néo estabelega as mulheres como objeto especitico, dedica especial atengio As manifestagdes cotidianas de resisténcia dos subalternos. A nogio de resisténcia torna-se, dessa forma, fundamental nas abordagens sobr as mulheres, ¢ intimeras historiadoras tm se bascadlo nesse referencial no esforgo de reconstrugao da atuagao feminina. CERTEAU, M. de. Artes de fazer: a invencdo do cotidiano, Petropolis, Vozes, 1994, p. 41; THOMPSON. E. P. Tradicién, revuelta y conseiencia de clase: estudios sobre la erisis de la sociedad prein- dustrial. Barcelona, Critica, 1979, p. 51 KAPPELI. A-M. “Escenarias del Feminismo”. In; DUBY, G. ¢ PERROT, M. Historia de las mujeres en Occidente, El Siglo XIX. Madri, Taurus, 1993, p. 513, 4 4. *Habner, J. E. A mulher brasileira e suas lutas sociais « poltticas: 1850- 1937. Sao Paulo, Brasiliense, 1981 pp. ” Folha da Noite, 21 de setembro de 1930, “Vieille fille”, expresso francesa com que se denominava pejorativamente a mulher celibatiria, PEDERNEIRAS, R. “Almas deste mundo”. In: Album cenas da vida carioca, 1926 agens. Unica: Revista Feminina, outubro 1925 * Feminismo e suas desvant “SOIHET, R. A ped: Luz, Revista Brasileira de Educagdo. Campinas, Autores Associados, ¥. 5, set ia da conquists do espago ptiblico pelas mulheres e a militéncia feminists de Bertha fout.Jnov./de2.,. p. 105, 2000. 4°]dem, ibidem. p. 116. “'VARIKAS, E. O pessoal ¢ politico: desventuras de uma promessa subversiva, Tempo - Revista do Departa- mento de Histéria da UFF, Rio de Janeito, Relume Dumaré, v. 3, n. 2, p. 66, jun. 1997, Proj. Histéria, Sdo Paulo, {25}. dez, 2002 289

You might also like