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Magia Jeje na Bahia: A Invaséo do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785° RESUMO Este artigo discute um documento que relata a repressdo a um terreiro de calundu em 1785 em Cachoeira, cidade do Recéncavo baiano. Extrainde elementos contidos neste documento, 0 autor analisa aspectos da trajetéria da religido negra ¢ da Iégica da repressdolresisténcia, vinculando o episddic » um quadro histdrico espectfico e a um quadro simbélico maior. Jodo José Reis Universidade Federal da Bahia ABSTRACT This article discusses document which recounts the repression of a calundu cult in 1785 in Cachoeira, a town im the Recon- cavo of Bahia. Based on information in the document, the author analyses aspects of the historical course of black religion and of the logic of repressioniresistence, relating” the episode to a specific historical context, and to a larger symbolic one. O estudo das religides afrobrasileiras sempre foi uma das dreas mais dinamicas de nossa antropologia. Bem mais acanhados tém sido os resultados no campo da historiografia. “Ainda conhecemos muito pouco”,! comenta Katia Mattoso, Um grande problema é a escassez e a natureza das fontes, A clandestinidade a que as prdticas religiosas africanas foram empurradas ¢ a propria natureza secreta de muitos dos seus rituais reduziram sua visibilidade e, portanto, seu registro sob, digamos, condigdes normais de existéncia. Durante a escraviddo, ¢ mesmo apés, as expressdes religiosas negras foram descritas por escrivaos de polfcia que narravam invasdes de terreiros ou derrotas de revoltas, por autoridades eclesidsticas e civis Ppreocupadas em combater a “feitigaria” ¢ a subversdo dos costumes, por Este artigo faz parte de um projeto mais amplo sobre resistéicia escrava financiado pelo CNPq. Quero agradecer 2 Paulo Farias, do Center of West African Stwdies/Universidade de Birmingham pela leitura cuidadosa deste texto, pelas criticas € sugestées bibliografic 1 Katia Mattoso, Etre esclave au Brésil, Paris, Hachette, 1979, p. 166, viajantes estrangeiros dvidos pelo exdtico. Por isso, as informagGes trazem. sempre distorgdes e preconceitos marcantes. Entretanto, a recusa ao uso de fontes desse tipo tornaria quase imposstvel estudar inimeros aspectos da hist6ria das camadas populares, especialmente daqueles setores quase absolutamente 4 margem da cultura escrita. Obviamente era esse 0 caso dos escravos ¢ libertos africanos no Brasil escravista, com poucas excec6es”. Uma estratégia de investigagdes da histéria mais remota das religides afrobrasileiras seria talvez 0 uso (sem abuso) das tradicées orais. Que eu saiba, isso nunca foi tentado sistematicamente para 0 periodo escravista, mas talvez a tarefa niio seja impossivel. Na auséncia de hist6rias orais, os estudos antropolégicos podem em parte e por ora tapar alguns buracos. Desde pelo menos Nina Rodrigues ¢ Manoel Querino, na passagem do século XIX ao XX, foram feitas entrevistas a membros de terreiros que podem servir para reconstituir muitos aspectos da histéria das religides afrobrasileiras sob a escravidio. No Rio de Janeiro, sob um prisma mais jornalistico, Jodo do Rio, mais ou menos na mesma época daqueles autores baianos, também conversou com pais e maes de santo ¢ mestres malés que langaram alguma luz sobre a religiosidade do negro sob a escravidao. A. vantagem desses estudiosos, uma vantagem que j4 nao temos, é terem vivido numa época 0 proxima do fim da era escravista no Brasil. Daf muitas de suas informagécs, embora nem todas, poderem ser lidas “para tris”. Mas nao muito para tras, vez que uma das caracteristicas essenciais da cultura escrava foi exatamente sua maleabilidade, sua capacidade de mudanga ¢ adaptagdo, sua constante reinvencao das tradigGes. E isto no caso da Bahia ¢ outros centros do escravismo foi ainda mais forte em virude das constantes novas levas de escravos de grupos étnicos muitas vezes diversos das levas anteriores, que 2 A Literatura de viajantes, to rica em outros aspectos da escravidio, decepciona no que diz respeito a religilio excrava, Mary Karasch, que fez um minuncioso Ievantamento dessas fontes, lamenta esse stiléncio ou 2 superficialidade das informagdes, em seu excelente liveo, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, Princeton, Princeton U. Press, 1987, Cap. 9. A mesma falta € observada para Bahia mo cuidadoso estudo de Moema Parente Auge, Visitantes estrangeiros na Bahia Oitocentista, Sig Paulo, Cultrix/MEC, 1980, pp. 207-209. Entre os documentot que os negros, embora nio redigissem de punho rio, mandavarn lavrar espontancamente estéo os testamentos de libertos ¢ as petigdes (Ver Maria Inés de Oliveira, O liberi, 0 seu mundo @ os outros, Si0 Paulo, Corrupio, 1988; Katia Mattoso, “Testamentos de escravor libertos na Bahia do século XIX", Publicagdes do Ceniro de Estudos Baianos, N° 85 {1979}). Coisa excepcional foi o j& famoso tratado dos escravos do engenho Santana, em Uhéus, publicado pela primeira vez por Stuart B. Schwartz, “Resistance and Accommodation in 18th Century Brazil", Hispanic American Historical Review, Vol. 57, N® 1 (Fevereiro, 1977), pp. 69-81. Hé também os documentos excritos em frabe dos malés, Evidentemente nfo se descarta que tais excogées continuem 2 aparecer. 58 imprimiam novas diregées ao desenvolvimento da cultura afrobrasileira. Mesmo aceitando que muito do passado foi mantido nas tradigées orais, ritos € mitos dos terreiros deste século, inclusive os ainda vivos, sempre perdurar4 muita cuivida sobre a adequacao do método de leitura para tris. Mas talvez seja preferivel o risco da ousadia da dtivida do que a divida de no arriscar?. Da mesma forma € problemdtico inferir-se a Teligiosidade negra no Brasil escravista a partir das informagées etnograficas da Africa de tempos mais recentes. Tanto quanto as religides afrobrasileiras, as religi6es africanas transformaram-se ao longo dos séculos de escravismo ¢ colonialismo. Consider4-las no século XX africano como se fossem em tudo semelhantes Aquelas do século XVIII baiano é absurdo. Assim, um dos critérios de andlise deve ser 0 de aceitar que as aproximagdes s4o sempre tentativas, sfo adivi- nhagdes, mesmo se bem informadas. Pois, provalmente, o permanente e continuo na religiosidade africana ¢ da didspora talvez sejam apenas certas concepcdes bdsicas a respeito da relagdo de e entre forgas humanas e espiri- tuais face a fenémenos corriqueiros ou extraordindrios da vida individual ow coletiva, certos procedimentos rituais, 0 uso de um conjunto de objetos ¢ simbolos de determinada espécie e, claro, um pantedo minimo de divindades prdprias de determinadas dreas culturais. Enfim, 0 que se Pode sugerir € inferir seriam estruturas simbélicas ¢ rituais comuns, nao detalhes*. Neste artigo eu discutirei um texto que relata a repress4o a um terreiro de calundu em 1785 em Cachoeira, cidade de Recéncavo baiano®. Trata-se de 3 Raimundo, Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, Sio Paulo, Cis. Ed. Nacional, 1932 © Q animismo fetichista dos negros baianos, Rio de Jancio, Civilizagéo Brasileira, 1935; Manoel Querino, Castumes africanos no Brasil, Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 1938; Joio do Rio, As religides do Rio, Rio de Janciro, Nova Aguilar, 1976, Vivaldo Costa Lima, A familig-de-santo not candomblés jeje-nagés da Bahia, Salvador, Autor, 1977, p. 121 lamenta que Nina nio tenha feito hist6rie oral de pove de santo que: entrevistou. Por outro lado, hi pouco mais de dez anos, ele lembraria “a consciéncia histérice de muitos descendenter de africanos que conhecem bem suas origens étnicas ponto de serem capazes de discorrer... sobre a situaco politica e geogréficn da terra de seus antepassados ao tempo da escravidio” (ibid, p. 21). ” 4 Ver a esse respeito Richard Price © Sidney Mintz, An Anthropological Approach to the African Past, Philadelphia, Institute for the Study of Human Issues, 1976 € a revisio de Monica Schuler, “Afro-American Slave Culture”, Historical ReflectionsiReflexions Historiques, Vol.6, N* 1 (Verdo, 1979), pp.. 121-137 © varios “Comentarios”, pp. 138-155. 5 Arquivo Publico do Estado da Bahia, Segfo Judicifria, Cackoeira, Devassas, 1785, mago 1624. Foi Patricia Aufederheide quem me chamou a atencio para este documento, que ela comenta sumariamente em sua excelente tese, “Order and Violence: Social Deviance and Social Control in Brazil, 1780-1840", Tese do PhD, U. de Minnesota, 1976, p. 164. A transcrigéo integral deste documento 59 um documento da repressdo, fonte tipica em que se inscrevew a histéria da religido afro no Brasil. Nao pretendo me afastar muito dele. O que tentarei fazer é apenas extrair elementos que possam ajudar a entender a trajetéria da religido negra ¢ a légica da repressdo/resisténcia, vinculando 0 episédio a um quadro histérico especifico ¢ a um quadro simbélico maior. Apesar de achar importante, infelizmente nao pude fazer qualquer investigagZo suplementar em arquivos ¢ tradi¢des orais cachoeirenses. Por outro lado, minhas referén- cias & etnografia da Africa est¥io longe de serem exaustivas ¢ as sugest6es nela inspiradas so definitivamente provisdrias. Este artigo é um resultado parcial de pesquisas que venho realizando nos arquivos baianos sobre resis- téncia negra sob a escravidao, ¢ em particular a relac&o religifio africana/sociedade escravista. Em sua importante obra As Religides Africanas no Brasil, Roger Bas- tide fez um mapeamento das informagOes relativas 4 era colonial/escravista. Utiliza a literatura hist6rica, antropoldgica, viajantes ¢ cronistas j4 publi- cados, Sobretudo em seu capitulo a respeite das “sobrevivéncias africanas”, ele discute o culto aos mortos, magia ¢ ceriménias religiosas entre os escravos. Encontrou pouco, mas langou as bases de um estudo mais siste- miatico da formagao inicial das religides afrobrasileiras. Na Bahia, 0 antropélogo Renato da Silveira também se interessou em analisar as noticias mais antigas a respeito dos candomblés baianos em seus trabalhos sobre a formag’o de uma identidade afrobaiana. Num ambito mais especifico, o estudo da familia de santo, Costa Lima conseguiu estabelecer drvores genealégicas obtidas das tradigdes orais de importantes candomblés. Tanto ele, como outros antropdlogos, tormaram conhecida a histéria do terreiro da Casa Brdnca fundado na primeira metade do século XIX. Por outro lado, muitos autores estudaram o isl4 negro baiano, particularmente em conexZo com a revolta de 18358, ‘Desses autores “baianos”, certamente quem mais enfrentou a poeira dos arquivos foi Pierre Verger. Salvo engano, foi ele quem primeiro observou a novidade do termo candomblé num documento de 1826. Antes dessa data, em encontra-se ma parte “Documentagio/Documents” deste némero da Revista Brasileira de Histéria, © Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, Sio Paulo, Pioneira/USP, 1971, Vol. I, Cap. 6; Vivaldo Costa Lima, A familia-de-santo; Renato da Silveira, “Pragmatismo © milagres de f€ no Extremo Ocidente™, in J. Reis (org.), Escravidéo « invencdo da liberdade (Sio Paulo, Brasiliense, 1988) ¢ “La force et Ix douceur de Ia force: structure ct dinamisme afro-brésilien A Salvador de Bahia”, Tese de Doutorado, cole Pratique des Hautes Fiudes en Sciences Sociales, 1986. Fago um blanco da historiografia sobre of malés baianot em “Interpretagées sobre » revolta dos malés", in Reis (org.), Excraviddo e invencéo da liberdade. 60. todo o Brasil, o termo mais comum para as praticas religiosas coletivas de origem africana parece ter sido calundu, uma expressdo angolana. Outro temo recorrente é batuque, mas aqui rituais religiosos e divertimentos secu- lares se confundem. O antropélogo Luiz Mott identificou uma manifestagio religiosa em Minas Gerais (1747) denominada acotundé ou “‘danga de tunda”. Era liderada por africanas de origem courd, provavelmente um subgrupo iorubé da regido de Lagos, Nigéria. O documento analisado por Mott € 0 mais detalhado relato que conhego de rituais de origem africana, ou “sineréticos”, no periodo colonial. Foi encontrado no Arquivo da Torre do ‘Tombo, Lisboa, ¢ faz parte dos manuscritos da Inquisigo. No mesmo artigo em que analisa 0 acotundé, Mott lista varios outros casos de africanos acusados junto ao Santo Oficio de feitigaria, superstigdes e outras praticas niio ortodoxas em Minas Gerais’. O potencial das fontes inquisitoriais para 0 estudo das religides afro no Brasil € magnificamente demonstrado pelo trabalho de Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Este livro ¢ provavelmente a _ discussdo mais abrangente ¢ bem documentada da religiosidade popular, nao 86 africana mas também a de tradi¢Zo européia e indigena, no Brasil colonial. A autora segue de perto, no caso africano, muitas das pistas deixadas por Bastide, mas discorda em um ponto fundamental, que € o de ver a religio popular negra como “vivéncias” coloniais e nado “sobrevivéncias” africanas. Além disso, sua perspectiva é original: a idéia da circulag&o de crencas € praticas religiosas no interior do sistema colonial, a metr6pole incluida. O catolicismo popular marcado por tradigdes magicas e pagds, conviveu bem ¢ freqiientemente convergiu com as tradi¢6es africanas e indigenas. Bastide j4 havia observado que “o colonizador (branco) era supersticioso também”, mas. nao vai fundo na quest4o porque tem uma opinido basicamente negativa da relagao do branco com a religido negra. O Diabo e a Terra de Santa Cruz revela um manancial rico ¢ fascinante de informagées até agora desco- nhecidas. Muita coisa nova ¢ acrescentada a histéria dos calundus coloniais. ‘86 h4 a se lamentar que a autora ndo tenha com a bibliografia das religides, étnicas na Africa e de sua adaptaco no Brasil a mesma familiaridade que tem com a historiografia da religiosidade popular na Europa’. ‘Mello ¢ Souza encontrou que em Minas Gerais 0 “calundu parece ter se generalizado mais cedo”. Com efeito, dos nove casos de acusago de calundu levados a ateng4o do Santo Oficio entre 1725 € 1750, todos dizem respeito’& 7 Pierre Verger, Noticias da Bahia - 1850, Salvador, Cortupio, 1981, p. 227; Luiz Mott, “Acotundé: raizes setecentistas do sincretismo religioso afro- brasileiro”, Anais do Museu Paulista (0 prelo). § Laura de Mello e Souza, O Diabo ¢ a Terra de Sania Cruz, Sio Paulo, Letras, 1986; citagao de Bastide, Ar religides africanas, p. 188. 6 regidio das Minas, Ela nota a nio representatividade baiana, “a Bahia sendo, hoje, a terra do candomblé”, Como a autora sugere, € possfvel que num centro de to grande opuléncia como Minas, a Igreja e as autoridades civis cuidassem melhor de proteger a ortodoxia religiosa®. Embora poucas, hé referéncias a calundus na Bahia desde pelo menos 0 século XVI. Eis um conhecido trecho de Gregério de Mattos: Que de quilombos que tenho Com mestres superlatives, Nos quais se ensina de noite Os calundus e feitigos Em 1685, a parda Clara Garces, vitiva, foi denunciada por ter em casa um “culto de criatura ou de pau de barro” em torno do qual vivia “curando.a todos que a sua casa vinham doentes, usando de calundus ¢ bonifrates”. E em 1738, o prior dos beneditinos da Bahia comenta que os escravos “retinem-se em sociedades para fazer seus calundus”. Um carmelita, frei Luis de Nazaré, ele prdéprio exorcista, na década de 1740 recomendaya em Salvador que escravos trazidos a cle fossem se tratar em calundus pois os “deménios africanos™ ndo faziam parte de sua especialidade. O episédio de 1785 provavelmente inscreve-se numa tradig&o calundureira baiana!©, O documento aqui analisado é uma devassa, um inquérito policial, em que um grupo de pessoas é acusado de praticas de batuque, feitigaria ¢ superstic¢Ses. A data, 1785, é sugestiva do ponto de vista da historia da perseguigao religiosa no Brasil colénia. Mott sugere que j4 em meados do século XVIII a Igreja foi negligente na repressdo a um terreiro mineiro. Outros historiadores da Inquisi¢’o parecem concordar que o Ultimo quartel do século XVIII viu um afrouxamento em relagdo as praticas da religiao popular. David Higgs escreve: “A Inquisi¢3o no final do século XVII evitou perseguir as ceriménias religiosas decididamente no ortodoxas dos escravos recém-chegados da Africa ou os vestigios de crengas indigenas que subsistiam”. A preocupagdo quase exclusiva scriam os desvios religiosos dos brancos educados que passavam a ser seriamente considerados como subversdo politica contra a hegemonia metropolitana. Laura Mello ¢ Souza sugere que a partir da década de 1760 h4 mais tolerfincia em relagio aos 9 Thid, p. 264, 269, 385. 10 Mattos spud Renato Mendonga, A influéncia africana no portugués do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 4* ed., 1973, p. 124. O caso Clara Garces em Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisigéo de Lisboa. Cadernos do Nefando, 13. Agradego a meu colega Luiz Mott « gentileza de colocar 4 minha disposigzo suas anotagdes do ANTT sobre a Bahia. Bastide, As religides africanas, p. 184 sobre o prior beneditino; Mello ¢ Souza, 0 Diabo, pp. 180-182, 262-263 sobre Frei Luis. rusticos coloniais, mas n4o distingue entre brancos, pretos ou indios. Segundo ela, as autoridades eclesidsticas substituiriam a repressdo pelo preconceito de superioridade, reconhecendo “‘o fosso que separava a religido das elites ¢ a das camadas populares”), Mas se as autoridades metropolitanas recuavam da repressao a religiosidade popular, na colénia o zelo pela ortodoxia parecia ndo haver desaparecido. E em Cachoeira, em 1785, ele no foi exercido pela autoridade eclesidstica. Foi uma devassa civil. Na verdadc, os crimes de feitigaria podiam ser investigados tanto por autoridades religiosas como civis, mesmo. que 0 processo acabasse na Inquisic¢ao. No caso em exame, 0 Juiz de Fora Marcellino da Silva Pereira desencadeou a devassa. Por outro lado, nada no documento indica que o resultado tenha sido enviado 4 Inquisigao em Portugal. A absoluta auséncia de representante da Igreja no processo talvez indique que o brago secular do Estado estava agindo totalmente sozinho ¢ por sua conta na defesa da ortodoxia religiosa. Um Juiz de Fora da colonia talvez pudesse ver com mais clareza que um inquisidor da metrépole a ameaga que 0 calundu representava a paz social. Nada é dito explicitamente no documento, mas religiao negra ¢ resisténcia (inclusive revoltas) cram freqiientemente. vistas em combinagao pelas autoridades ¢ senhores de escravos. E interes- sante que Muchembled também encontrou uma relacdo entre as revoltas populares ¢ a caga as bruxas na Franca dos séculos XVI ¢ XVII!2. Cachoeira est4 localizada no Recéncavo Baiano, as margens do rio Paraguacu, navegdvel até sua foz na Baia de Todos os Santos, o que permite comunicagao direta por barco com Salvador (ver mapa e fig.). Era o segundo. porto mais importante da Bahia. Fstava no coragao da regio dos engenhos, embora sua principal produgao fosse o furno. A historiadora Catherine Lugar escreve: “O municipio, com seu terreno montanhoso ¢€ solo arenoso, produzia o fino fumo desejado para ¢x) para a Europa. O comércio do fumo dominava a cidade. Armazéns e de processamento alinhavam- se frente ao rio que ficava mais ativo no dpice da estacio de embarque do fumo, de janeiro a marco”. A maior parte da producao, no entanto, um fumo. de pior qualidade, era utilizada como moeda no trafico de escravos; sobretudo: no Golfo de Benin, de onde vinha nessa época a maioria dos africanos da Bahia. Muitos escravos reexportados para a regido das Minas Gerais através da Bahia passavam por Cachoeira, que estava na rota desse trafico 11 Mon, “Acotundé”; David Higgs, “The Inquisition in Brazil in the 1790's", Comunicagio a0 Seminario Late Colonial Brazil, U. de Toronto, 1986; Mello e Souza, O Diabo, p. 323-324. 12 Jogo Reis, “Nas malhas do poder escravista: a invasio do candomblé do Acct na Bahia, 1829", Religido © Sociedade, Vol. 13. N° 3 (1986), pp. 108-127; Robert Muchembled, Culture populaire et culture des élites (XVé ~ XVIIE siécles), Paris, Flammarion, 1978, pp. 293-296. a Figura 8a -O Recéncayo Baiano Figura 8b CACHOEIRA EM 1792 Fonte: Catherine Lugar, “The Portuguese Tobacco Trade and Tobacco Growers of Bahia in the Late Colonial Period”, in D. Alden ¢ W. Dean (orgs.), Essays Concerning the Socioeconomic History of Brazil and Portuguese India Gainsville, U. of Florida Press, 1977), p. 58. © original esta na Biblioteca Publica de Nova York, Arents Collection. interno. A cidade era, sob varios aspectos, um pélo importante da imensa empresa escravista colonial!3, 13 Catherine Lugar, “The Portuguese Tobacco Trade and Tobaceo Growers of Bahia in the Late Colonial Period”, in D. Alden © W. Dean (orgs.), Essays Concerning the Sociceconomic History of Brazil and Portuguese India 65 Durante a segunda metade do século XVIII, a regiao experimentava um surto de prosperidade. As reformas pombalinas, especialmente a criagdo das mesas de inspedo de produtos exportados, melhoraram 0 comércio com a Europa, embora beneficiassem principalmente os comerciantes da metrpole. “© yolume de reexportagao de fumo, via Lisboa, chegou no século XVIII a uma média anual mdxima de 215.221 arrobas em 1785-89”), exatamente quando ocorre 0 ataque ao calundu do Pasto. Mas a produgao dinamizou-se principalmente com o aquecimento do tréfico de escravos em fungao da expansio da economia acucareira, que também ressurgia nesse momento, apés mais de meio século de dificuldades. Apesar do mercado para 0 fumo baiano se expandir na Europa, 0 consumo africano foi o principal responsivel pela expansio de sua produgo no final do século XVIII. Cachoeira era o segundo niicleo populacional da Bahia. Em 1775 seu centro urbano tinha 986 casas, talvez cerca de 4.000 habitantes; em 1804, 1.180 casas, cerca de 5,000 habitantes. Esta é apenas uma estimativa. No infcio do século XIX, Spix e Martius calcularam uma populagao de 10.000 para a vila, um c4lculo provavelmente exagerado. Schwartz sugere que em 1819 a regido de Cachoeira, quer dizer, a vila € seu termo, possufa cerca de 69.000 habitantes, dos quais 30.000 eram provavelmente escravos distribuidos entre 34 engenhos, intimeras plantagdes de fume, agricultura de subsisténcia ¢ o micleo urbano. Mas quando, em 1826, a camara local peticiona para transformar a vila em cidade, ¢la contaria apenas 6.000 habitantes na vila ¢ 60.000 em todo o termo; a povoacao de Sao Félix, na margem oposta do rio, teria apenas 2.000 pessoas. J4 que os vereadores se esforgavam para impressionar, suas contas nao devem ter subestimado 0 niimero de habitantes de entdo. Assim, 40 anos antes, cm 1785, ¢ provavel que Cachoeira nfo passasse mesmo de uma vila de 3.600 a 4.000 pessoas, se projetarmos os nimeros de 1826 a uma taxa anual de créscimento de 1 por cento, Entretanto, af nfo estio inclufdas as centenas de pessoas que Gainsville,, U. of Florida Press, 1977), p. 59 © passim; Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia 1550-1835, Cambridge, Cambridge U. Press 1985, p. 83, 93; Charles Boxer, The Golden Age of Brazil, Berkeley © Los Angeles, U. of Califomia Press, 1962, p. 228; Piesre Verger, Fluxo e refluxo, Sto Paulo, Cormupio, 1987, Cap. I ¢ O fumo da Bahia ¢ 0 trdfica’ de escravos do Golfo de Benin. Salvador, U. Federal da Bahia, 1966. 14 jugar, “The Portuguese Tobacco Trade”, p. 48, 15 Jbid. Sobre a expanséo da economia acucareira, Schwartz, Sugar Plantations, Cap. 15; Katia Mattoso, “Os precos da Bahia de 1750 a 1830", Colloques Internationaux du C. R. N.S. Histoire Quantitative du Brésil (Paris, 1971), pp. 167-182; F. ©. W. Morton, “The Conservative Revolution of Independence: Fconomy, Society and Politics in Bahia, 1790-1840", Tese de PhD, U. de Oxford, 1974, Cap. 1. 66 percorriam suas ruas todos os dias vindas de fora para tomar os barcos rumo a Salvador, tratar de negdcios, comprar ¢ vender, pois Cachoeira era porto e niicleo comercial. Pelo menos dez vezes menor do que Salvador, a vila do Rec6ncavo tinha, condensada, uma intensa vida pe, No dia 16 de fevereiro, portanto, em plena estago de embarque do fumo, entre 11 horas ¢ meia-noite, os ventendrios Manoel Ferreira Morais e Serafim dos Anjos Pacheco faziam ronda com outros oficiais de justica na rua do Pasto, Aparentemente j4 haviam recebido deniincia de que ali, numa casa de morada de africanos, se faziam cerimOnias de calundu. Mas tudo era siléncio quando 14 chegaram. Um dos membros da ronda deixa escapar em ‘seu depoimento que a porta da casa fora arrombada, assim como:as portas de trés quartos onde estavam recolhidos Sebastiao, Thereza, Francisco, Anna, Antonio ¢ Marcella. Um dos dois tiltimos homens citados, na verdade, fora banhando-se numa gamela na cozinha. A casa tinha sido alugada pelo africano “mina”, José Pereira, forro, a um outro africano, Jodo do Espirito Santo, por dez tost6es (1 mil réis), Este Uiltimo teria sublocado um dos quartos da casa a Sebastido, um dos presos, Por 400 réis. Jo’io s6 € mencionado por seu senhorio (Testemunha 2), no aparece como testemunha nem é acusado junto com os outros, Tais arranjos de moradia eram tipicos da escravidao urbana. Salvador cra assim!7. Aparentemente, os devassados formavam trés casais, cada um ocupando um quarto da casa, 0 que se pode depreender dos testemunhos: “achou em uma camarinha deitada uma negra, em outra, outra negra com um negro deitado, fa outra, outra negra com outro negro também deitados, e na cozinha um crioulo sapateiro tomando banho dentro em uma gamela” (T14, iLe.,Testemunha n® 14). Este da cozinha, entretanto, nao era crioulo, como veremos. Todos os presos eram africanos. No documento de formago de culpa, 0 escrivao informa: “Sebastido, ¢ Antonio, ¢ Francisco, ¢ Thereza e Anna, todos jejes”. (Nao sabemos por que Marcella, jeje, ndlo foi processada: 16 Logar, “The Portuguese Tobacco Trade”, p. 59 dé o niimero de casas (fogos) em 1775 © 1804, que cu multipliquei por 4 para estimar a populacéo. A cstimativa de 4 pessoas por fogo se baseia na médi do tamanho da familia nuclear encontrada por Katia Mattoso, Familia ¢ sociedade na Bahia no século XIX, Sto Paulo, Corrupio, 1988, p. 75. A cifra de Spix & Menius é citsda por Patricia Aufederheide, “Upright Citizens in Criminal Records: Investigations in Cachoeira and Geremoabo, Brazil, 1780-1836", The Americas, Vol. 38, N? 2 (Out, 1981), p. 177. Schwantz, Sugar Plantations, pp. 439-440. A petiggo de 1826 em Arquivo. Nacional, Oficios dos Presidentes de Provincia para o Miristro do Império, U59, 332, Vol. I, fl. Tv. 7 Soto Reis, Rebelido escrava no Brasil: A histéria do levante dos malés ((835). Sio Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 216-232. o7 alguém a teria protegido?). Um més depois, no encerramento da devassa, ele sabia mais, pelo menos sobre os homens: “Sebastido de Guerra, Francisco Rodrigues Leite ¢ Antonio Amorim, todos forros, o primeiro de nado Dagomé, o segundo Marri, terceiro Tapa, e as pretas Thereza ¢ Anna”. Os homens ganham sobrenomes ¢ suas origens étnicas s4o especificadas, as mulheres, além de serem listadas em tiltimo lugar, sé trazem os nomes préprios precedidos de “pretas”, o que indica origem africana j4 que o negro nascido no Brasil era “crioulo”. Foi José Pereira, o africano dono da casa, quem esclareceu a origem dos presos, inclusive a das mulheres: Thereza era forra de origem marti; Anna, escrava jeje; e Marcella, forra também jeje. Assim temos, entre os seis africanos, um daomé, um tapa, dois marris ¢ dois jejes. Que significa essa combinagao0? Havia uma légica na cabeca do escrivao quando registrou, no inicio de sua tarefa, “todos jejes*. Essa era a designagao geralmente dada aos escravos importados da regido do antigo Daomé, atual Reptblica Popular do Benin, na costa ocidental da Africa. Séo os povos Aja-Ewé. “Jeje” tem sido freqiientemente. associado estritamente a ewé, mas seu campo semantico ainda ndo foi definitivamente estabclecido. Ha sugestdes de que o étimo teria origem na expressio djeji, que significa “estrangeiro” na lingua fon bem como, ¢ sobretuda, na iorub4. Neste caso poderfamos imaginar tanto os iorubés como os fons chamando de “estrangeiros” a seus cativos que, vendidos no trafico atlantico, terminaram por transportar para a Bahia essa designac4o. Isso nao explica, no entanto, porque nem todos os cativos estrangeiros desses povos foram identificados como jeje deste lado do Atlantico, mas s6 os que vinham da regido do antiga Daomé. E mesmo estes podiam ser reconhecidos entre os préprios africanos por suas filiagdes étnicas especificas, como os marris. Observe-se que 0 africano “mina” que definiu as etnias dos presos falou de tapa, daomé, marri e jeje. A excegio de tapa, 0 terme “jeje” cobriria todos os outros na definigao colonial escravista, mas aquele africano falava de jeje como um grupo singular. Mas que grupo? E por que teria 0 nome desse grupo vindo a significar todos os escravos da regido daomeana? S6 uma pesquisa especifica sobre o tema poderia tentar responder essa questo. A tese de Nina, que associa 0 termo estritamente a0s ewés, € incorreta porque no Brasil jeje significava mais do ue ewé, mas talvez represente uma explicagdo para a origem do termo em si is. 18 Vivaldo Costa Lima, “O conceito de Nacio nos candomblés da Bahia", Afro- Asia, N® 12 (1976), pp. 72-73. Verger deriva jeje de Aja. Numa comunicacio pessoal Paulo Farias sugere: “Acho provivel que o etndmio ‘jeje’ se tenha formado por convergéncia de conceitos e consondncias de origens diferentes € de diferentes natarezas, ‘ewe’ tendo um deles junto com vérios outros, Outra gente (além dos ewés, ou até mais do que os ewes), que fosse aj¢ji do pomto de visia de outros que falassem iorubé (fossem ou nfo estes ltimos iorubés ‘da 68 Outros termos éinicos que aparecem no documento so de mais fécil solugao. “Daomé”, a na¢So de Scbastido, indicava provavelmente sua origem Fon, a etnia hegemdnica do poderoso reino do Daomé; “marri” ou “marré” refere-se aos Marri (grafado Mahi na maior parte da literatura internacional), que habitam o norte do Daomé. Os “tapas” se encontravam mais afastados da Area de influéncia daomeana, ¢ jé na regio que ao longo do século XVII Passou ao controle da mais poderosa forga politica da Africa Ocidental no periodo, o império ioruba de Oyo. “Tapa” era na verdade o termo iorubé para os Nupe, um reino tribut4rio a nordeste da terra dos iorubds. impéric dominado pelos Fon envolveu-se profundamente, sobretudo a partir da segunda metade do século XVII, no tréfico transatlantico de escra- vos através dos portos de Ouidah (Ajuda), Porto Novo, Grand Popo ¢ outros. A produgao da mercadoria humana, “envolvia uma combinagdo de cativos de guerra, incursdes de captura em pequena escala, punig%o judical e a venda de pessoas em tempos de dificuldades”!9, Habitando o norte, freqiientemente atacados por Daomé, os marris representavam, na expressdo de Akinjogbin, “a slave raiding ground” (“campo de caga a escravo", numa tradugao aproximada), Segundo Cornevin, cles cram conhecidos “pelo valor das defesas naturais” ¢ “a valentia de seus guerreiros”. Em represdlia ao Daomé, permitiram muitas vezes 0 uso de seu territ6rio como passagem para as forcas de Oyo ¢ em 1730 e 1731 os Oyo-iorubés ¢ os marris aliaram-se na guerra contra o Daomé. A partir de 1748 e até o final do século o Daomé se transformou em estado tributério de Oyo. No final da década de 1780, foi a vez. dos marris serem formalmente submetidos pelos iorubds, apds sangrenta resisténcia. Os “jejes” do calundu de Cachoeira podem ter sido vitimas de qualquer um dos intimeros conflitos da regio. Segundo os céllculos de Man- ning, na década de 1780, 0 trafico foi respons4vel por um despovoamento anual de 3,6 por cento entre os Aja, ou seja, os povos da Area de influéncia daomeana. O Brasil foi o maior importador desses escravos*®, gema”), pode € deve ter sido chamada de jeje". Em Rebelido escrava, passim, eu erradamente associo jeje a ewe apenas. Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison, U. of Wisconsin Press, 1969, pp. 183-190, coments os jemas. da terminologia étnica do tréfico. 9 Patrick Manning, Slavery, Colonialism and Economic Growth in Dahomey, 1640-1960, Cambridge, Cambridge U. Press. 1982, p. 37. 20 Robert Comevin, La République Populaire du Benin dés origines Dahoméennes 4 nos jours, Paris, Maisonneuve & Larose, 1981, p. 139; L A.Akinjogbin, Dahomey and its Neighbors, 1708-1818, Cambridge, Cambridge U. Press. 1967, p. 81, 93; Manning, Siavery, Colonialism, 27-50; sobre relagoes entre Mahi © © império de Oyo, Robin Law, The Oyo Empire, ¢. 1600- ¢. 1836, Oxford, Oxford U. Press, 1977, passim; sobre Daomé e Oyo no século XVIII ver também A.J. Asiwaju ¢ Robin Law, “From the Volta to the Niger, c. 1600-1800", 69 Entre esses grupos éinicos (a excegao dos tapas, 0 que j4 sugere uma interessante alianga) predominava a religiao dos vodus, divindades que mais tarde sc incorporariam a muitos de nossos candomblés. Um terreiro invadido pela policia em 1829 em Salvador cra também dedicado a0 culto dos vodus. Na Bahia de Edison Carneiro havia trés casas exclusivamente jejes - inclusive uma “jeje-marrim” — que, segundo ele, “tém resguardado galhar- damente a pureza do culto g¢ge”*!, A mais famosa, o Bogun, ainda existe. ‘Como se formou 0 ealundu jeje do Pasto de Cachocira? Seu lider, 0 voduné, era Sebastidio de Guerra, 0 mais idoso entre os presos, segundo um depoimento “um negro mais velho de rosto grande” (T14). Ele foi o mais citado pelas testemunhas, que com freqiiéncia falaram de “Sebastido e os outros”, Na noite da invas4o, dormia na camarinha onde foram encontrados ‘08 objetos rituais do calundu, Ele alugou a casa ¢ foi a Jacuipe, povoacao ao norte de Cachoeira (ver mapa), buscar os outros, provavelmente vodunsi (membros do culto) que:o assistiam nos trabalhos privados ¢ nas cerimOnias piblicas moendo ervas, sacrificando, tocando, cantando, dangando, Sebastiio 4 havia sido vitima de repressdo religiosa em Jacufpe, pois de 14 viera ‘corrido de um missiondrio que o acusara de feitigaria (T2). O missiondrio certamente notou o sucesso do sacerdote africano. O pardo Manoel de Miranda Abreu, numa viagem a Jacufpe, soube do crioulo José Maria que “o preto Sebastiao, € outro de pequena estamra que esto presos tiraram muito dinhciro cm Jacuipe em fazerem curas de feitigos” (T16). E tudo que sabemos de sua vida antes de chegar a Cachoeira. Ele viera como escravo para o Brasil e € possfvel que suas préticas mégicas o tenham ajudado a ganhar dinheiro suficiente para comprar carta de alforria. Isso pode ter sido incomum, mas foi 0 que aconteceu, por exemplo, com o negro adivinhador José Zacarias, da vizinha freguesia de Rio Fundo, alguns anos depois (1798): cle atendia “muita gente vil ¢ pobre e também de probidade” de quem recebia “gvultadas pagas que com elas tem extinto sua miséria e cativeiro">2, Homem de prestfgio, Sebastiao estava prestes a repetir scu sucesso em Cachoeira quando foi preso. O oficial de seleiro Theodozio de Araijo Silva, branco, 40 anos, morava com a familia ao lado de Sebastiaio. Pelo que conta, 0 seleiro era um homem observador: “Se ajuntavam bastantes negros ¢ negras aos quais no conhece, que todos armavam uma danga dentro da dita in IB. Ajayi e M. Crowder (orgs.), History of West Africa, (Harlow, Longman, 3%. ed,, 1985), Vol. T, pp. 412-464. 21 Reis, “Nas malhas do poder escravista”, Edison Cameiro, “Candomblés da Bahia”, Publicacdes do Muse« do Estado da Bahia, N° 8 (1948), 50. 22 ANTT, Inquisigdo de Lisboa, Cadernos do Promotor (1797-1802), N° 134, 0. 6, Agradeco a Luiz Mot também esta referéncis. Sobre adivinhagio no candomblé, ver recente livro de Julio Braga, 0 Jogo de Buzios, Sio Paulo, Brasiliense, 1988. 10 casa € cantavam lingua de jeje, ¢ tocavam o instrumento de um ferrinho, e em lugar de tabaque na boca de um pote tocavam ¢ era piiblico que a dita danga era de calundus” (TS). Vérias outras testemunhas (T4, T6, T7, T10) declararam ser “piiblico ¢ notério” que ali se “dangavam calundus”, Encretan- to; o depoimento de Theodazio é ocular e de um conhecedor. Ele sabia distinguir entre um atabaque e um pote, ¢ entre uma danga qualquer de negros e danca de calundu, e até em que lingua seus vizinhos cantavam. Com certeza aquele no era 0 tinico calundu que vira na vida. Cachoeira provavel- mente tinha outros. Este parece no t¢-lo incomodado por algum tempo, Uma outra testemunha disse, talvez exageradamente, que “todas as noites faziam batuques” (T11). Que no fossem todas as noites, mas o calundu de Sebastiao era um centro cerimonial ativo ¢ para proteger sua existéncia é possivel que ele tenha entrado em acordo com os vizinhos, como Theodozio. Ou talvez este fosse daqueles brancos que acreditavam em “superstiga0”, temia os poderes do “feiticeiro” Sebastido ¢ o deixava em paz. Duas regras bdsicas de sobrevivéncia da religido afrobrasileira nos tempos da repress4o eram a alianga com Pessoas mais privilegiadas e a discrigao, Vimos que Gregério de Mattos vira “mestres superlativos” em calundus seiscentistas ¢ José Zacarias adivinhava para “gente de probidade”. ‘Theodozio era um simples seleiro, mas cidadao respeitavel. E verdade que se tomou testemunha de acusagdo na devassa contra os vizinhos, mas, mesmo que tenha sido ele o autor da demincia, 0 que ndo parece, € evidente que permitiu por algum tempo muita coisa religiosamente heterodoxa acontecer na casa ao lado, Observe-se, alids, que seu depoimento nao tem o tom de queixa. Por outro lado, uma passagem dele talvez revele a regra da discrigdo: © toque sobre a boca de um pote faz bem menos barulho do que uni atabaque. Nao consegui identificar qualquer instrumento de percussdo na etnografia daomeana que se assemelhasse.a este, exceto talvez 0 Zin-li, uma jarra usada para acompanhar cerimOnias funebres, tocada com um al Teria Theodozio visto um ritual de morte? Ou seria o toque no pote uma 23 Maximilicn Quénum, Au Pays des Fons: us et coulumes du Dahomey, Paris, Maisonneuve & Larose, 3¢ ed., 1983, pp. 158-159: “Le Zin-Ii et une jarre de grés sur Iaguelle on tamboorine avec un éventail de cuir” (p. 159). Mas foi o antropSlogo baiano Julio Braga, uma autoridade em candomblé e em stnotanatologia, quem primeiro me sugeriu essa possibilidade. Note-se, porém, que 0 abano nio é mencionado em 1785, Nunes Pereira, A Casa das Minas, Petrépolis, Vozes, 2* ed., 1979, pp. 169-170 descreve uma ceriménia finebre num terreiro jeje ne Maranhdo da qual faziam parte o que ele chama de “ferrinhos” (og4) © um pote sobre cuja boca uma participante “vibrava um chinelo”. Agradego a Paulo Farias por me haver chamado a atencio para este referéncia, observando a “analogia funcional/simbélica” entre o chinelo maranhense € @ abano de couro daomeano (Comunicagio pessoal). 7 adaptagao cachoeirense? Talvez uma pratica de transi¢ao até que 0 calundu ganhasse mais aceitaciio e pudesse aumentar 0 volume? Ou apenas indigéncia material de seus membros, um arranjo tempordrio até que pudessem comprar um atabaque de verdade, de preferéncia sagrado na Africa? Nunca vamos saber. A regra da discrigao acompanhou o candomblé ao século XX e a substituigdo do atabaque por outros instrumentos de percussdo foi comum: “Durante alguns anos, recentemente, em vista da proibi¢4o policial contra os. atabaques, a orquestra dos candomblés contava principalmente com estas cabacas, outrora chamadas piano-de-cuia ou aqué”, conta Cameiro na década de 1940, Ele acrescenta que os membros de terreiros nessa ocasiao escondiam com cuidado seus atabaques para ¢evitar 0 seu confisco pela policia. Essa adaptacao ritual a um ambiente repressivo provavelmente tinha uma longa histéria, O atabaque muitas vezes foi visto ndo sé como instrumento de rituais religiosos ou de acompanhamento de inocentes batuques, mas como instrumento de revolta. Nina Rodrigues ouviu de um informante: “Nao h4 clarim mais capaz de provocar a excitagdio guerreira nos campos de batalha, me dizia elle, do que um pequeno batuque africano que, no seu dizer, desempenhou papel tio saliente nas sedigdes dos escravos deste estado, que acabaram por prohibir a sua importag4o”. Manoel Querino identifica esse atabaque de guerra como 0 batd-céid, que provavelmente € o mesmo bata referido por Verger como o tambor de Xangé, usado na Africa mas extinto no Brasil24, Em 1785 o ciclo de revoltas ainda nao havia comegado, mas 0 carter politico do bater de atabaques provavelmente jA entrara nas conside- ragdes das autoridades ¢ senhores de escravos. Isso obrigava os participantes de calundus da época a serem ainda mais cuidadosos. O outro instramento mencionado, os “ferrinhos”, pode ser um agogo (em forma de campanula dypla) ou o gan (campanula simples a que Nunes Pereira se refere como ogd, que ndo deve ser confundido com o titulo de cargos do nosso moderno candomblé), ambos instrumentos discretos por natureza. Que a casa invadida era um centro cerimonial, nao € 36 percebido através da descrigao de pessoas envolvidas em cAnticos, dangas ¢ misicas em homenagem aos deuses da Africa. Outros objetos de culto foram encontrados pelos policiais. Ha trés descrig6es mais ou menos detalhadas, ¢ que se complementam, do conjunto de objetos rituais. Uma delas ¢ feita pelo negociante: Manoel de 24 Cameiro, “Candomblé da Bahia", pp. 67, 68-69 © Nina Rodrigues, O animismo fetichista, p. 112; Manoel Querino, Costumes africans no Brasil, p. 107; Pierre Verger, Notes sur les cultes des Orisas et Vodoun @ Bahia et a Vancienne Cote des Esclaves en Afrique, Memoire de I'IFAN, N*51, Dacar, IFAN, 1957, p. 22. 7 Almeida Cardoso, branco, 26 anos, que acompanhou a ronda contra 0 calundu e primeiro ultrapassou a porta arrombada do quarto de Scbastidio: “viu ele testemunha em um dos cantos uma flechinha em pé com uma agulha em cima, ¢ da dita flecha desciam duas pontas para baixo, e em cada uma delas um penachinho, e estava bolindo sem coisa em que se. segurasse, e assim que ele testemunha pegou na dita flecha logo ca, digo testemunha quis pegar, antes que Ihe tocasse caiu no chao ambas as pontinhas que saiam da dita flecha com os penachinhos, ¢ por mais diligéncia que fez para armar como estava nao Ihe foi posstvel, e no pé da dita flecha estendidos pelo chio estava meia pataca de prata, e uns cobres ¢ duas moedas de quatro vinténs de prata, e disse mais que as moedas de meia pataca eram duas, ¢ também tinha no ch&o umas cabacinhas com umas pedrinhas, umas folhas muito fedorentas, ¢ um pouco de ungiiento também fedorento” (T14). O escrivao Joaquim José dos Santos, branco, 31 anos, entrou nessa camarinha a0 mesmo tempo que Manoel Cardoso e apenas acrescenta que o dinamico “pauzinho ou flecha teria de comprimento dois palmos e meio pouco mais ou menos” e além de cabacinhas, folhas ¢ 0 ungiiento ele identificou cuias & sementes entre os ingredientes rimais (111), O sumério de culpa repete boa parte dos depoimentos dessas testemunhas, mas também acrescenta impor- tantes informacées: “uma flecha posta a prumo sustentada em si mesma sem arrimo de qualidade alguma posta sobre um papel estendido em terra cercada de uns cobres, uma moeda de meia pataca de cobre e quatro vinténs também de prata que seriam 18 vinténs pouco mais ou menos e na ponta de cima da dita flecha uma agulha espetada e sobre ela um penacho de: penas curtas € espalhadas pelo ch4o outros penachinhos, uns ferrinhos, varias cabacinhas com ingredientes para os seus maleficios, ¢ outros com molhos ¢ algumas ervas c uma garrafa de aguardente e cavando-se na terra apareceram varias mestrias como foram uns ferrinhos, uns bolos de cera da terra cravados de feijao, de arroz e (ileg.)”. Nesta listagem as folhas parecem virar ervas, aparecem uma garrafa de cachaca ¢, mais importante, os “ferrinhos” ¢ outros objetos enterrados. Outras testemunhas fazem descrigdes que acrescentam alguns detalhes: “um pouco de ungiiento muito fedorento” (T8); “uns biizios que tudo disseram 0s oficiais estarem espalhados no chdo, ¢ também viu um saco de folhas, e uma bolceta cheia de um ungilento branco e muito fedorento” (T9). Aqui surgem biizios, um saco que contém as folhas ¢ uma bolceta que guarda 0 ungiiento que tem cor branca. Algumas testemunhas referem-se a esses objetos vagamento como “miudezas”, Por mais imprecisas que sejam essas descrig6es, clas confirmam que a casa de Sebastido tinha as caracteristicas essenciais de um centro cerimonial, que nfo se tratava da morada de um isolado curandeiro, mas um espago onde desenrolava-se um conjunto de praticas religiosas de tradi¢Zo africana. Aqui, B ao contrério do que Mott encontrou em Minas Gerais em meados do século XVIII ¢ também Mello e Souza em varias partes do Brasil colonial, nao vemos tracos de “‘sincretismo” com elementos catdlicos. Os objetos des- critos sio alguns dos elementos ainda hoje usados para diversos fins nos candomblés baianos: ervas, bizios, dinheiro, aguardente, As folhas, por exemplo, s40 especialmente importantes na prepara¢ao de cbés, em ritos de ‘iagdo ¢ limpeza de corpo, na medicina afro, no assentamento de altares de entidades. Um sacerdote do vodu daomeano comentou com Herskovits: “Se vocé soubesse a histéria de todas as folhas da floresta, saberia tudo que ha para saber sobre os deuses do Daomé”?5. © “ungiiento” ¢ folhas fedorentos eram possivelmente comida de santo apodrecida. Infelizmente no temos noticias sobre Sebastio manipulando seu arsenal de objetos rituais. Sabemos, e isso é dito claramente por v4rias testemunhas, que o sacerdote era um poderoso curador de feitigos. O pensamento mégico era um elemento fundamental da religiaio escrava, como é da religido tradicional africana em geral, e mesmo do catolicismo popular. Ele representava um elemento importante das relagdes sociais e de poder na Africa. As pessoas ndo caiam doentes ou sofriam infortiinios sé por obra da natureza, do homem comum ou do destino. Elas eram “enfeitigadas” e haviam especialis- tas que enfeiticavam ¢ os que curavam, muitas vezes ambas as especialidades incorporadas num s6 individuo. Na didspora, sob a escraviddo, nos engenhos ¢ cidades, o feiticeiro era respeitado € temido por companheiros escravos ¢ no raro pelos préprios senhores. Em sociedades onde a assisténcia médica dependia em grande parte do uso de ervas, a vida e a morte de muita gente dependia de curandeiros ¢ curandeiras. O feiticeiro negro combatia sobretudo © grande feiticeiro branco, respons4vel por essa tragédia imensa que era a escravid%0. Muitos escravos atravessavam 0 Adantico imaginando que no porto de chegada thes aguardavam homens terriveis que Ihes comeriam os corpos para se apossarem de suas almas. Em 1823 um grupo de africanos mactias revoltaram-se a bordo de um navio baiano porque “se assim nao fizessem os brancos os comeriam em sua terra”. Numa outra ocasido, em 1827, escravos de um engenho no RecOncavo mataram 0 feitor, acusando-o de praticar feiticaria, inclusive de haver contribuido para a morte recente da senhora, E poss{vel que os escravos tenham encontrado uma desculpa para se 25 Melville Herskovits, Dahomey: An Ancient West African Kingdom, Evaston, Northewesiem U. Press, 1967, Vol. II, p. 195, n. 1. Este livro € ums excelente introdugio i hist6ria © cultura do Daomé © em particular & religifo dos vodus daomeanos. Ver também Pierre Verger, Notes sur les cultes des Orisas et Vodoum (Verger transereve inimeros trechos das impressées dos curopeus que visitaram & regifo na Gpoca do tréfico em Ibid, p. 27 e segs.). Apesar de muito Preconceitvoso, ainda € itil o trabstho de Alfred B. Ellis, The Ewe-Speating Peoples of the Slave Coast, Chicago, Benin Press Lida. 1965 (orig. 1890). 74 vingar de um chefe particularmente severo, mas uma das definigdes de feiticeiro é exatamente a de um fazedor de mal 4 comunidade. Neste caso 0 feitigo virou contra o feitor. Noutro caso, em 1820, outra mulher branca adoecera em Santo Amaro, também Recéncavo, ¢ seu marido acusou alguns negros de enfeiticd-la. Estes witimos aparentemente reagiram, criando tamanha celeuma que © governador Conde da Palma viu-se obrigado a intervir para evitar “transtorno do sossego piiblico”. Nosso Sebastiao parece ter sido um especialista desse universo magico de medos ¢ solugdes que certamente fazia parte do cotidiano dos habitantes de Cachocira, Mas sua competéncia e seu poder nao paravam ai%, Ele era o lider de uma comunidade religiosa em formagdo. Insisto em que seu calundu tinha aquela fungdio mais ampla de um templo onde as telagdes dos homens e mulheres com 0 mundo, 0 cosmos, as poderosas forgas da tradicdo espiritual africana, os ancestrais ¢ vodus renovavam-se periodicamente no drama ritual. Juana ¢ Deoscoredes dos Santos assim se referem a essas comunidades: “Na didspora, 0 espaco geografico que representava a Africa nativa e seus conteridos, foi wansferido para os locais onde foram levantados casas, templos ou quartos em cujos recintos se ‘plantaram’, junto com os elementos ¢ simbolos materiais nos lugares de adoragdo, os poderes dos antepassados ¢ das entidades sobrenaturais que garantiriam, no sé a continuidade da existéncia, mas uma forma de viver”27, O calundu da rua do Pasto estava em formag3o, mas possivelmente jf tinha algo desse significado comunitério maior. Por outro lado, sob as condig6es adversas da escravidao, ¢ provavel que os sacerdotes africanos niio puderam simplesmente “transferir” os contetidos africanos ¢ tiveram que modificar muita coisa. Mas sem diivida, desde seus primeiros passos os calundus ¢ candomblés brasileiros tinham a fung4o de, nas palavras de Costa Lima, “dar a seus participantes um sentido para a vida e um sentimento de seguranga € protecdo contra os sofrimentos de um mundo incerto”. Da 26 Sobre priticas mfgicas entre os daomeanos, Herskovits, Dahomey, Cap. 33 € mais amplamente, John Mbiti, African Religions and Philosophy, Garden City, N. ¥., Anchor Books, 1970. Pars comparar com as Antilhas, ver Gwendolyn M. Hall, Social Control in Slave Plantation Societies, Baltimore, The Johns Hopkins U. Press, 1971, cap. 3; Ozlando Patterson, The Socilogy of Slavery. Ruthford, Fairleigh U. Press, 1969, cap. 7 e Nota 4 deste artigo. Revolta dos mactas em APEBa, Revolias de 1822/23, mago 2845; feitor feiticeiro em Arquivo do Ministério das Relagdes Exteriores da Franca (Quay d°Orsay), Correspondence Politique, Brésil, Vol. 5, fl. 170v; caso de S. Amaro em APEBa, Cartas do Geverno, Livro 173, fl. 28-28v. 27 Juana Elbein e Deoscoredes dos Santor, “Religon y cultura negra”, in M. Moreno Fraginale (org.), Africa en America Latina (Mexico, Siglo XXI/UNESCO, 1977), p. 115. 75 mesma forma, sugere Verger; “Estas formas de organizagao lhes Proporcionon uma seguranca © uma estabilidade que eles (afticanos ¢ seus descendentes) nem sempre encontraram em nossa civilizag’io”28. O que os invasores da casa do Pasto encontraram no quarto | } ocupado por Sebastido tem todas as caracteristicas de um altar, e os ‘ojetos enterrados possivelmente representam 0 ase ou assen (0 axé nagd) do terreiro, sua fundacdo, talvez 0 local thais sagrado e secreto. Escreve Herskovits: “O que € um vodu’ O nativo traduz o termo pela palavra ‘deus’... mas um vodu é também pensado pelo daomeano come algo que est4 num determinado local, € que um espirito, embora filosoficamente concebide como existindo por toda a parte no espaco, também tem que ter lugares definidos onde possa ser convocado, onde possa ser instrufdo por férmulas magicas apropriadas a ajudar seus Gevotos ¢ de onde ele possa seguir para conseguir as coisas dele desejadas”. Talvez vindos da Africa, os objetos/vodus, enterrados em ceriménias secretas, marcam a inaugura¢ao de uma devogtio. Na Africa; cada vodu ou orix4 (no caso dos iorub4s) tem seu templo préprio. Sabemos que no Brasil, com o tempo, as divindades africanas passaram a ser homenageadas sob um mesmo teto, mas possivelmente ainda no era esse 0 caso do calundu da rua do Pasto. Porém, a que divindade pertencia a casa? Que simbolizava aquela “flecha” ou aquele “pauzinho” decorado com penas? Os ferrinhos e bolos de cera da terra cravado de grdos de arroz e feijao? Nao encontramos nada na etnografia ou na iconografia daomeana que essas questdes definitivamente. O ferro é um elemento de Gu ou Gun (nosso Ogum), deus do ferro e da guerra, “uma das principais forgas de ajuda do homem no mundo”, segundo Herskovits. Mas, pelo menos no Daomé, o altar de Gu € sempre ao ar livre. Sagbat4 ou Saponan, a terra, € também divindade da variola, podia estar representada na cera pontilhada de feijio ¢ arroz 4 semethanga de erupgdes da pele. Segundo Herskovits, “Sagbat4 é uma das trés grandes for¢as que dio magica ao homem. A mégica conhecida pelos sacerdotes de Sagbaté é boa tanto quanto maléfica pois, desde que ¢ um dever especial de Sagbat4 punir os que ofendem aos deuses, e a magica de feiticeiros ¢ fazedores do mal s6 pode ser superada por uma magica mais forte, a mais fone das mAgicas deve estar nas mijos destes sacerdotes”. Talvez. nas maos de Sebastiao em 1785, Ligada a terra e & doenga, essa divindade certamente teria muito que fazer por africanos que viviam sob as duras condigSes materiais da escraviddo. Mas estas so aproximag6es imprecisas. E a“flecha”? Seria algum poderosa talisma doméstico semelhante aos descritos por Herskovitz? Ou seria a representac&o de um vodu? De acordo com Parrinder, “muitos dos templos usam os simbolos dos deuses, nao figuras 28 Costa Lima, A famtli Orisas et Vodoun, p. 20. -sanio, p. 61; Pierre Verger, Notes sur les cultes des 6 antropomérficas: cabecas fechadas, pedras, hastes ow Arvores, potes, machados, serpentes de metal e assim por diante”??. Foi sem duvida a “flecha” o que mais impressionou os invasores do calundu. Em tomo dela, como para aliment4-la e dar forga, encontravam-se aS quartinhas com ervas e porgées, a garrafa de aguardente, moedas ¢ biizios. E ela parecia realmente ser um signo de poder. Para os intrusos, seu ¢stranho movimento representava e provava que ali se concentrava uma forca maléfica, diabélica. Aqui a devassa secular passa a falar a lingua da Inquisig&o. Os objetos rituais que cercavam e sustentavam a flecha, antes descritos quase etnograficamente, so também clasificados ideologicamente: “preparos que dizem ser de feitigaria” (Abertura da devassa); “ingredientes para os seus maleficios” (Sumario de culpa), “preparos para os ditos maleficios” (T1); “coisas supersticiosas 4s quais cle testemunha nunca viu porque as ocultariam dele” (T2); “preparos supersticiosos para a dita feitigaria” (T3); “coisas supersticiosas ¢ preparatdrias para coisas diabélicas” (75); “coisas supersticiosas ¢ de feiticaria” (T6); “miudezas que diziam ser com que faziam as suas feitigarias” (T12). “Superstigdo € simplesmente a religito do outro cara”, como disse Price®”. Era a hora de definir a religio do outro. No esforgo de diabolizagao do calundu o secreto € 0 puiblico desempenham papéis semelhantes. Nin- guém sabia, um chega a dizer que, mesmo como dono da casa, se Ihe escondiam os ingredientes da feiticaria; uns poucos viram estes ingredicntes na ocasido do assalto, mas sé “ouviram dizer”, por ser “publico ¢ notério”, que serviam as praticas de feitigaria de Sebastio ¢ seu grupo. A Idgica da acusagdo. segue estratégias complementares. Os homens que invadem descrevem em detalhes 0 que encontraram, registrando inclusive forma, ta~ manho, cor, cheiro, movimento e distribui¢do espacial. Eles pouco qualit cam, narram principalmente. Um outro conjunto de testemunhas menos “informadas” trata de estabelecer pela repeti¢ao do escAndalo (‘“piblico e notério”) a qualidade maléfica do calundu. Elas pouco viram, no tém muito a contar, sua fungdo € convencer pela multiplicagao de falas acusatérias. Analisando os inquéritos de Cachoeira nessa mesma época, Patricia 29 As vérias passagens desse parSgrafo baseiam-se principalmente em Mott, “Acotundé”, que attola descrigées de altares de Candomblé fcitas por vérios au- tores; Roger Bastide, Le Candomblé de Bahia (Rite Nagé), Paris, Mouton, 1958, Pp. 59 € segs. sobre axé; uma discussio do sentido mais amplo de axé na cosmo- visio iorubd 6 feita por Juana Elbein dos Santos, Os Nagés ¢ a morte, Petrépolis, Vozes, 1976, p. 41 e segs.; Herskovits, Dahomey, p. 105 (citagio sobre: Gun), p. 144 (Sagbats), p. 170-171 (vodu) © p. 135 © segs: Geoffrey Parrinder, West African Religion, London, Epworth, 2 ed., 1961, p. 61 (citagio) © pp. 60-68 sobre templos ¢ allares. Segundo Ellis, The Ewe-Speaking Peoples, p. 52, 0 sim- bolo de “Sapatan” € marcado com manchas vermelhas ¢ brancas - feijée © arroz? Quénum, Au Pays des Fons, p. 71, lembra que “Sakpata” € de origem marri. 30 Richard Price, "Cometério” a Schuler, “Afro-American Slave Culture”, p. 141. 1 Aufderheide lembra que a testerunha “era sclecionada Porque seu depoimento tenderia a refletir conhecimento publico sobre 0 caso”3!. O boato era entio pega chave de acusago. Os dois documentos que abrem a devassa combinam 0s dois discursos — 0 “etnografico” ¢ 0 “ideolégico” -, pois decrever e definir 40 Movimentos que se cruzam ¢ sc confundem na légica da punicao. Em 1785, a prova talvez mais importante que se tentou construir foi o irregular comportamento de um “pauzinho”. Como se prova a obra do Diabo? A existéncia de feitigaria? De maleficium? Além de “feitigaria” e “superstigdo” a definigao técnica de artes diabélicas, “maleficio”, é recorrente na devassa de 1785. Ela se referia ao ato de causar mal as pessoas ou & coletividade atrayés de: meios ocultos, de ervas, rezas, encantagdes, mau olhado, maldig&o*. Com 0 estabelecimento e expansio do terror inquisito- tial, todas as formas de paganismo e prdticas magicas, zemo as inofensivas ¢ até benéficas, foram reduzidas 4 conotagdo de maleficios - Sebastido curava feitigo, mas esse poder era maléfico porque ndo emanava da religiaio hege- ménica. Como Mello ¢ Souza observa, os calundus foram freqiientemente associados aos sabbats, as orgias hidicas, gastronémicas € sexuais dos bru- x0s ¢ bruxas europeus, que cram também entrecortadas de musica e danga?4, As autoridades de 1785 provavelmente ndo necessitavam de uma flecha automotora para enquadrar seus feiticciros, mas numa era de declfnio do in- teresse pela repressdo a praticas religiosas populares, um elemento a mais de maleficio podia tomar 0 caso mais convincente. Os feiticeiros, afinal, eram conhecidos por essa capacidade nao sé de se movimentarem pelas alturas, mas de moverem objetos a distancia. Os invasores detém-se na descric¢fo do estranho fendmeno ¢ insistem em afirmar que nao puderam fazé-lo se repetir. Era claro tatar-se de arte diabdlica cuja ciéncia era estranha para simples cristéos, Cristaos talvez supersticiosos, por outro lado, pois o fenémeno da flecha movente pode nao ter sido registrado com insisténcia apenas para servir A acusago, mas também para contar algo impressionante, nao natural, inexplicdvel mas cabfvel no registro mental dos intrusos. Através da neg: cles se revelavam parte — mesmo se parte avessa —‘do universo simbélico que atacavam. “‘A religido do outro cara” era parccida com a deles. Trinta testemunhas juraram sobre um Livro do Evangelho contra os africanos presos no calundu de Cachoeira. Destas, seis afirmam nada saber sobre 0 caso, muitas sabem por ser “piiblico € notério”, umas poucas Participaram da invas%o ou a testemunharam pessoalmente. Eram pessoas nascidas na Bahia ou vindas de fora, de diversas cores, ocupac6es, idades, 31 Aufderheide, “Upright Citizens”, p. 173. 32 Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic, Harmondsworth, Penguin, 1971, p. 519 e segs. 3 Norman Cohn, Europe's Inner Demons, Frogmore, Paladin, 1976, Cap, 9. 34 Mello © Souza, O Diabo, pp. 259-261, 371-378. Ver excelente descrigio de come os sabbats eram imaginados em Cohn,,Europe’s Inner Demons, pp. 100- 102, que contesta que essas reunides forsem assembléias reais de sociedades secretas (p. 104 € ss). 8 estado civil ¢ grau de instrucdo. Suas idades variavam entre 19 ¢ 65 anos, a maioria na faixa enue 25 e 35. Sete tinham mais de 50 anos. Os nao brancos eram proporcionalmente mais jovens que os brancos. Dos 17 casados, 13 eram brancos (talvez 14. pots hd um cuja cor ndo esté registrada, mas tudo indica ser branca) ¢ dos 12 solteiros, 9 nao brancos. Esse padrao confirma as pesquisas de Mattoso sobre a famflia baiana do século XIX?5. A vantagem dos brancos também reflete-se no indice de analfabetos, apenas 2 entre os 7 que nao sabiam escrever. No entanto, é interessante que dois dos no brancos soubessem pelo menos assinar seus nomes. De todas as 30 testemunhas, apenas 7 nao assinaram scus nomes. Nove cram naturais de Cachoeira, 8 de outras vilas do Rec6ncavo, 3 de Salvador, 2 de cidades de fora da Bahia mas no Brasil, 6 de Portugal e 2 da Africa. A distribuigao ocupacional delas esta representada na tabela 1. TABELAI Ocupagao e Cor/Origem das Testemunhas da Devassa do Calundu de 1785 Cor/Origem Ocupacio Africano Crioulo_Cabra__Pardo__Branco_? Total Artesio 3 1 4 1 9 Arrieiro 1 1 2 Cabelereiro/ Barbeiro, 1 1 1 3 Pescador 1 1 “Viver de “tas” 1 4 2 “Viver de 7 1 1 “Viver de escravos” 1 1 Funciondrios 2 2 Nogociante 1 7 1 @ i Total 2 5 2 4 16 1 30. Se considerarmos cada cor/origem distintamente, os brancos represen- tam indisputével maioria, 0 que sugere justamente 0 embate entre dois mundos. Esse conflito mostra-se mais claro quando se percebe que todas as seis testemunhas envolvidas no cerco ¢ invasdo do calundu cram brancas 35 Mauoso, Familia ¢ sociedade, Cap. 3. np (19, TIO, T14, T15 e T28). Mas se na hora da r os brancos agem isoladamente, na fase do inquérito o leque étnico se mais para envolver sobretudo os afrobaianos. Em sua andlise de devassas comuns, Aufderheide encontrou entre as testemunhas uma pigporgao um Pouco maior de brancos (55,2%) para o periodo 1780-17923 Talvez fosse interessante, numa devassa contra negros feiticeiros, buscar os depoimentos de um bom nimero de nao brancos, a velha tatica para dominar, E bom lembrar que, com freqiiéncia, 4 Yosso us divides anba oe abicanee deen lado eo dos nascidos no Brasil do outro (nao importanto a cor) era maior do que 0 que separava brancos de n&o brancos. Os pardos e até os crioulos, por exemplo, eram muitas vezes vistos pelos africanos como fi¢is aliados dos brancos contra eles, formando 0 quadro de feitores, milicianos ¢ soldados que reprimiam os escravos no cotidiano e nas tentativas de revoltas. Isso ndo significa que as relagdes entre africanos e afrobaianos fossem sempre hostis, pois freqiientemente se juntavam, inclusive para venorarem os deuscs da Africa’’, Em 1785, por sinal dois alferes crioulos depuseram, mas um deles nada declarou e 0 outro apenas disse 0 que ouviu dizerem (T3 ¢ T21). Por outro lado, nao se observa qualquer comportamento mais acintoso do con- fine dos runes brancos visando criminalizar os calundureiros: trés deles ¢ trés no brancos afirmaram nada saber. Dos que descrevem o caso com falas osten- sivecieas meni decnunolg at, de novo trés s4o brancos e trés nao. Alids, um Joan Pparticipou da blitz — branco e capit4o do mato! — tentaria oe as mulheres: “tem ouvide dizer que as ditas negras no usavam de feitigarias nem para elas concorriam™ (T28). Por fim, dos dois africanos que depoem, um, o “mina” dono da casa, compromete seus inquilinos, talvez ‘num esforgo de salvar a pele; 0 outro, um barbeiro jeje (T29), diz nada saber, talvez por solidariedade étnica, Em suma, fora a ostensiva exclusividade branca na invasdo do terreiro, as falas com maior ou menor peso acusatério esta mais ou menos distribufdas entre testemunhas de diversas origens e cores. As ocupag6es das testemunhas refletem um ambiente quase intcira- mente urbano. Sete dos artesfios eram alfaiates, dois dos quais também serviam como alferes. Havia também um seleiro. © vizinho de Sebastiao) ¢ um latoeiro. Apenas um branco entre os artes&os, de novo o seleiro Theodozio. A natureza comercial da vila expressa-se no grande mimero de negociantes, ‘grandes € pequenos, e nos dois arrieros que viviam de “carninhar para as minas”. Ao contrério dos artesdos, os negociantes eram todos brancos, & exceciio de um africano (0 dono da casa), que vivia de “comprar e vender”. Escrivaos, alvgndares de escravos, biscateiros, cabeleireiros, barbei- Tos completam o quadro de ceupagies caracteristicamente urbanas. Apenas um pescador (0 também capitdo do mato) ¢ um homem que vivia de bens 36 qufderheide, “Upright Citizens”, p. 183. 37 Reis, Rebelido escrava, pp. 171-179 ¢ passim; Reis, "Nas malhas do poder escravista”, pp. 118-121. 80 podem ser considerados com um pé fora da cidade, Este viltimo talvez fosse Proprietario rural. Em sua contagem das ocupag6es de testemunhas de devassas feitas em Cachoeira como um todo (a yila e seu termo), Aufderheide encontrou 41 por cento que se ocupavam na lavoura?, Nossas testemunhas sio assim tfpicas somente da vila. Pessoas em geral simples, eticamente variadas, mas quase sempre com ocupagées certas. decentes”, como diria Aufderheide. Gente que fazia parte de categorias sociais imersas numa economia monetaria aquecida pela prospe- ridade da agricultura fumageira, ¢ que podia pagar os servicos cspecializados de um Sebastido, Por isso, ¢ num sentido mais amplo pela maior facilidade de reunido de escravos ¢ gente “de cor” livre ¢ liberta nas cidades, estas se tomaram o ambiente ideal de afirmagao e expansdo da religido afrobrasileira. Q calundu e, mais tarde, o candomblé, provavelmente recrutavam aliados ¢ inimigos nas mesmas fileiras urbanas. Em outras palavras, a mesma facilidade que a policia tinha de reprimir um templo africano na cidade, este tinha de aliciar clientes, amigos e membros. O calundu de Cachoeira certamente nao se localizava no centro da vila - a rua do Pasto ou pasto, como o nome indica, devia ficar no limite entre o urbano ¢ o rural -, mas fazia parte dela. Arthur Ramos escreveu que, perseguidos, os negros, “em zonas afastadas dos centros urbanos, no recéndito de seus terreiros, guardaram a tradicdo africana”. Ele ndo estabelece a ruralidade dos terreiros, ¢ 6 verdade que estes sobreviveram nas pectoris urbanas, entretanto, mais do que “guardada”, a tradic4o africana foi sobretudo exposta socialmente. O- calundu ¢ em seguida o candomblé nao desapareceram exatamente porque. ousaram expor-se ¢ ndo porque se esconderam. Nas cidades 0 toque dos atabaques chegava longe aos ouvidos de seus habitantes*?. A devassa de 1785 tem um grande, um enorme siléncio, Em nenhum momento, durante um més que durou, os seis africanos presos foram cha- mados a depor, pois ndo era esse 0 costume ¢ a lei. Se o resultado do inqué- tito foi posteriormente enviado ao Santo Oficio em Portugal, talvez se possa 14 lero que eles falaram de suas praticas. Mas 6 improvavel que o caso tenha saido de Cachoeira. Seja como for, temos de nos conformar por enquanto com essas referéncias indiretas sobre 0 calundu do Pasto de Cachocira. Elas de qualquer forma nos falam de uma insistente resisténcia dos africanos. a abandonar sua prdticas culturais. Foram pessoas como Sebastiado, que nao sucumbiram 4 perseguig4o, que ao longo de nossa historia mantiveram vi- vas, € sempre renovadas, tradig6es religiosas populares hoje definitivamente parte da personalidade brasileira. 38. Aufdetheide, “Upright Citizens”, p. 183. Arthur Ramos, O negro na civilizagéo brasileira, Rio de Janciro, Casa do Estudante, 1971, p. 105. Bastide, As religies africanas, pp. 74-16, 83 © Mello e Souza, O Diabo, p. 264 observam que os cultos afrobrasileiros beneficaram-se do meio urbano. on

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