You are on page 1of 204

O BLOCO DE NAUTAS

XVI ENCONTRO DE LITERATURA PARA CRIANÇAS


XVI Encontro de Literatura para Crianças

Ficha Técnica:

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna, 45-A
1067-001 Lisboa Codex

Coordenação: Ana Gaiaz


Ilustração: Henrique Cayatte
Design Gráfico: Carlota Flieg

Impressão: SIG - Sociedade Industrial Gráfica, Lda.


Tiragem: 1000 Exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal nº: 225 384/05
Abril 2005
4
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Índice:

Comissários
Violante Florêncio e António Torrado 7

Palavras de Abertura
Prof. Eduardo Marçal Grilo 16

Intervenção de
Sua Excelência o Secretário de Estado da Educação
Dr. Diogo Feyo 19

Palavras sobre as obras premiadas


Henrique Cayatte, Livro Ilustrado 21
Maria Cabral Pacheco de Miranda, Texto Literário 24

Conferência de Abertura
Miguel Sousa Tavares 28

Espectáculo para Crianças: Peregrinação


Paulo Lages 37

Inevitáveis Clássicos
Maria João Seixas 43
José Pedro Serra 46
Mário Avelar 52

Livros Clássicos com Viagens


Violante Florêncio 61
Glória Bastos 63
5
XVI Encontro de Literatura para Crianças

José Carlos Seabra Pereira 71


Alice Vieira 80

Viajantes Intranquilos:
Homenagem a Hans Christian Andersen
Marta Martins 88
Diogo Dória 89
Leonor Riscado 97
Rui Marques Veloso 108

Modernos Nautas
António Torrado 120
Luísa Ducla Soares 123
Pedro Rosa Mendes 133
Francisco Pacheco 140

Clássicos: Inevitáveis?
Debate: 151
Paula Moura Pinheiro
Ana Maria Magalhães
Marta Martins
Olga Pombo
José Pedro Serra
Miguel Che
Ondjaki

Sessão de Encerramento
Isabel Marques da Costa 186
Ana Sousa Dias 190
Prof. Eduardo Marçal Grilo 194
Ilustrarte 200
6
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Violante Florêncio
António Torrado

Comissários do XVI Encontro de Literatura


para crianças

Percursos de um Encontro

“Nesta frescura tal desembarcaram


Já das naus os segundos Argonautas”

Camões, Lusíadas, Canto IX, 64

Nautas, argonautas, cosmonautas e até cibernautas, todos eles testemu-


nham a humana vontade de projectar a sombra para além do casulo origi-
nal. As emoções e surpresas da travessia por mundos reais ou fantásticos
sempre desafiaram a incredulidade dos que não ousaram, mas que entre-
vêem na narração dos aventureiros uma multiplicação e prolongamento de
hipóteses do próprio ser e destino. Deste trânsito entre nómadas e seden-
tários também se faz a literatura que, numa interpretação extrema, é sem-
pre literatura de viagens.

Quem conta vai um passo à frente de quem lê. Guiado por quem detém a
rota do percurso, cada leitor sabe que o itinerário não consente derivações
nem atalhos. E a viagem prossegue.

No vasto repertório da Literatura para crianças e jovens, que comporta quer


as obras que deliberadamente para elas foram escritas quer as que os mais
jovens leitores chamaram a si, num interessante fenómeno de apropriação
que enriqueceu o género, as narrativas de viagem ocupam lugar de des-
taque. De Ulisses a Simbad, de Gulliver ao Capitão Nemo, de Tom Sawyer
a Nils Holgerssen, os heróis incansáveis ou viajam até ao centro da Terra ou
atravessam o espaço, o tempo e os espelhos, porque não há limites para
a imaginação, quando se tem um público ávido e sempre renovado, que,
tanto quanto desejamos, vai continuar a descobrir pela vida fora os tesou-
ros que as bibliotecas não escondem.

7
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Ao mencionarmos os clássicos, os livros de suporte de uma cultura, de-


veríamos também, na continuação da lista, incluir títulos essenciais como o
“Principezinho”, “Alice no País das Maravilhas”, “Pinóquio” e tantos outros,
fundadores do gosto pela leitura. Ou não deveríamos? Nestes Encontros de
Literatura para Crianças é bom que as perguntas se soltem, num saudável
intercâmbio de inquietações. Para isso é que os Encontros servem.

Quando, em 1992, Sophia de Mello Breyner recebeu o Grande Prémio Ca-


louste Gulbenkian da Literatura para Crianças, todos os que a este género
prioritariamente se dedicam sentiram que esta atribuição mais os respon-
sabilizava, porque o Prémio estava a contemplar, enfim, uma escritora que
pela totalidade da sua obra luminosa pertencia já à plêiade dos clássicos
da língua portuguesa. E a responsabilidade não esmoreceu com o seu de-
saparecimento.

Também aqui lembramos Natércia Rocha, escritora, bibliotecária e investi-


gadora da História da Literatura para crianças, de quem os mais assíduos
frequentadores dos Encontros recordarão o dinamismo e o entusiasmo com
que participava na sua organização e a energia comunicativa que imprimia
às suas sempre fundamentadas intervenções.

Vai comemorar-se, em 2005, o duplo centenário do nascimento da Hans


Chistian Andersen, também ele um infatigável viajante. De uma visita a Por-
tugal, no ano de 1866, deu testemunho em livro, que ainda serve de roteiro
a muitos dinamarqueses que nos visitam. Para além das impressões colhi-
das no bloco-de-notas de viajante, outras impressões ou influências a sua
extensa produção de contista deixou na nossa Literatura.

Andersen, escrevendo com a simplicidade de um contador de histórias,


“como um pequeno pensamento que entrasse desprevenidamente no co-
ração”, provou que, no plano do imaginário, não há insignificantes e que
todas as viagens, até a de um soldadinho de chumbo, podem ser tema nar-
rativo e motivo de deslumbramento.

8
XVI Encontro de Literatura para Crianças

9
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Diogo Feyo, Eduardo Mar-
çal Grilo e Manuel Carmelo Rosa

Eduardo Marçal Grilo

10
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Entrega do Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens:
Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Jorge Araújo, André Letria,
António Mota, Diogo Feyo, Eduardo Marçal Grilo e Manuel Carmelo Rosa

Vencedores do Grande Prémio de Literatura para Crianças e Jovens: Jorge Araújo


(modalidade Texto Literário), André Letria (modalidade Livro Ilustrado, autor da
ilustração), António Mota (modalidade Livro Ilustrado, autor do texto) e Manuel
Carmelo Rosa 11
XVI Encontro de Literatura para Crianças

António Mota e André Letria

Conferência de Abertura:
Miguel Sousa Tavares

12
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Exposição de Homenagem a Hans Christian Andersen no hall da zona dos Con-
gressos: Diogo Feyo e Eduardo Marçal Grilo

Obras cedidas pelo Museu do Brinquedo na Exposição de Homenagem a Hans


Christian Andersen

13
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Peregrinação - espectáculo de Paulo Lages, com cenografia e participação cé-


nica de Pedro Leitão

Peregrinação - espectáculo de Paulo Lages, com cenografia e participação cé-


nica de Pedro Leitão

14
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Público infantil durante a Sessão para Crianças

15
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Prof. Eduardo Marçal Grilo

Palavras de Abertura

Senhor Secretário de Estado


Caros Participantes
Minhas Senhoras e Senhores

Permitam-me em primeiro lugar que cumprimente o Senhor Secretário


de Estado que aqui representa a Senhora Ministra da Educação que não
quis deixar de se associar à realização deste Encontro de Literatura para
Crianças que este ano organizamos pela décima sexta vez integrado com
a Cerimónia de entrega do Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para
Crianças e Jovens.
A Fundação Gulbenkian orgulha-se da organização deste evento e eu, em
nome do Conselho de Administração e do Seu Presidente Doutor Emílio Rui
Vilar, quero dar as boas vindas a todos os que hoje e nos próximos dias nos
dão o gosto e a honra de participar neste encontro por onde vão passar inú-
meros escritores, professores, especialistas e técnicos que dedicam a sua
actividade no todo ou em parte a esta relevante área cultural da literatura
para crianças e jovens.
Para todos os que nos dão a satisfação e o privilégio de poder contar com
a sua presença nos diferentes painéis que integram este encontro, vai o
nosso agradecimento muito especial e muito reconhecido.Sem eles não
poderia a Fundação organizar mais este encontro que seguramente vai
constituir, como os anteriores, um marco na história do nosso contributo
para o enriquecimento do debate sobre a questão central do livro, da leitura
e do gosto de ler e aprender por parte das nossas crianças e dos nossos
adolescentes.

Meus Caros Amigos e minhas Caras Amigas


Este XVI Encontro que foi organizado sob o título genérico de “O Bloco de
Nautas” , tem como tema central a viagem e procura ligar a viagem aos
clássicos da literatura o que permite expressar e sublinhar a importância
que deve ser atribuída à literatura e ao estudo dos clássicos na educação
e na formação das crianças seja em meio escolar, seja no ambiente mais
restrito do núcleo familiar e do círculo cultural que deve envolver a criança
no seu quotidiano.
O Encontro é ao mesmo tempo uma homenagem a Hans Christian Ander-
sen cujo bicentenário do nascimento se comemora no próximo ano. Hans
16
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Christian Andersen é uma personagem única, considerada por muitos
como o Pai da Literatura Infantil, mas autor igualmente de diversas obras
que registam as aventuras e impressões do autor acerca das viagens que
realizou, entre as quais se encontra aquela que fez a Portugal e que deu
origem ao livro “Visit to Portugal”.
Poderão aliás ver um exemplar deste livro, pertencente à Biblioteca Nacio-
nal, que está patente na exposição apresentada no Hall dos Congressos.
Aproveito para agradecer à Biblioteca Nacional e ao seu Director, não ape-
nas a cedência deste livro de Hans Christian Andersen, mas também toda
a colaboração que nos quiseram prestar na organização desta exposição
bibliográfica onde figuram obras do autor ou adaptações publicadas ao
longo dos anos por diversas editoras.
Da Exposição fazem parte igualmente peças que nos foram cedidas pelo
Museu do Brinquedo e que marcam aquele mundo imaginário criado por
Hans Christian Andersen que é preenchido por soldadinhos de chumbo e
bonecas de porcelana que povoam o lado encantatório e fascinante das
crianças que têm o privilégio de conhecer as histórias e os personagens
imortalizados por este escritor. Hans Christian Andersen foi também can-
tor, actor e bailarino, mas foi sobretudo alguém que dedicou grande parte
da sua vida a criar histórias e contos inesquecíveis dedicados às crianças,
como são a Pequena Sereia, o Fato Novo do Rei, o Patinho Feio, a Princesa
e a Ervilha, a Menina dos Fósforos, o Rouxinol ou as Flores da Pequena
Ida.
O nosso Encontro vai-se desenrolar ao longo de hoje e dos próximos
dois dias iniciando-se depois desta Sessão de Abertura com a entrega do
Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens este ano
atribuído na modalidade de livro ilustrado a António Mota autor do texto e
André Letria ilustrador com a obra “Se eu fosse Magrinho” e na modalidade
de texto literário a Jorge Araújo com a obra “Capitão Hussi”. Aos premiados
quero em nome do Conselho de Administração e em meu nome pessoal
apresentar as nossas felicitações e dizer-lhes do gosto que é para nós vê-
-los receber um prémio a que estão ligados tantos prestigiados autores de
livros para crianças e jovens.
A Fundação com este prémio pretende sobretudo criar incentivos aos au-
tores e de igual modo contribuir para a divulgação da literatura infantil, uma
vez que é nas idades mais precoces que se desenvolve e cria o hábito da
leitura, o gosto de ler e o interesse pelos saberes e pelo conhecimento.
As novas tecnologias têm hoje uma importância muito grande, mas nalguns
casos até excessiva, dado que não raras vezes o livro parece ser relegado
para uma prioridade secundária no contexto dos instrumentos de apren-
dizagem colocados à disposição de quem está no meio escolar.
O livro é e continuará a ser um instrumento privilegiado não apenas de
17
XVI Encontro de Literatura para Crianças

aprendizagem na escola, mas sobretudo como um dos mais eficazes pila-


res de uma cultura e de uma forma de estar e ser, assentes no estudo, na
reflexão, na análise e no conhecimento rigoroso do mundo que nos rodeia.
Bem sei que outros meios nomeadamente a televisão são bem mais fáceis
e atraentes do que o livro, mas enquanto que este cultiva a exigência, a
atenção, a disciplina e o esforço, a primeira permeia o superficial, o eféme-
ro, o espectacular e por vezes mesmo a imbecilidade e o fortuito.
Duas últimas notas antes de terminar. A primeira para agradecer a todos
os que estiveram envolvidos na preparação e realização deste encontro
nomeadamente os Drs. Violante Florêncio e António Torrado que são os
comissários deste Encontro, e o Henrique Cayatte que concebeu a imagem
gráfica do Encontro e que foi vencedor do prémio ilustração da edição an-
terior.
Agradecimentos são devidos também aos ilustradores Manuela Bacelar,
António Modesto, João Caetano e André Letria, bem como aos organiza-
dores da mostra da Exposição ILUSTRARTE que está patente no Hall dos
Congressos e onde estão expostos alguns trabalhos elaborados a partir de
temas Andersianos.
Agradecimentos à gráfica António Coelho Dias que é igualmente patrocina-
dora deste Encontro.
A última palavra vai para duas homenagens que são devidas a duas grandes
figuras da cultura portuguesa que dedicaram grande parte das suas vidas à
Literatura destinada aos mais novos e às crianças em particular. Refiro-me a
Natércia Rocha e a Sophia Mello Bryner que nos deixaram recentemente.
Natércia Rocha esteve muito ligada à Fundação Gulbenkian tendo estado
na organização dos primeiros Encontros para crianças e tendo além disso
feito parte da nossa Comissão de Leitura Infantil na qualidade de consul-
tora do Serviço que ao tempo era responsável pelas Bibliotecas e Apoio à
Leitura.
Sophia Mello Bryner considerada a maior poetisa portuguesa do século
XX deixou-nos uma obra imensa que a torna uma escritora imortal. Como
dizia Inês Pedrosa num texto muito bonito publicado recentemente “Sobre
Sophia não se pode dizer nada que não morra diante de um só verso dela,
num sítio tão frágil como o mundo”.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,


Antes de dar a palavra ao Senhor Secretário de Estado gostaria de desejar
a todos um Encontro em que o debate seja vivo e interessante para quem
decidiu usar o seu tempo marcando presença na Fundação ao longo destes
três dias que vai durar o Encontro.
A todos desejo um bom trabalho. Nós ficamos a aguardar pelas mensagens
que nos quiserem transmitir no final deste Encontro.
18
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Intervenção de
Sua Excelência o Secretário
de Estado da Educação

Dr. Diogo Feyo

Senhor Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian,


Senhor Professor Marçal Grilo,
Senhora e Senhores Administradores da Fundação,
Senhora Dra. Manuela Eanes,
Senhoras e Senhores participantes no XVI Encontro de Literatura para
Crianças:

Começo por agradecer o convite que a Fundação Calouste Gulbenkian me


fez para estar, hoje, aqui, no XVI Encontro de Literatura para Crianças, e não
posso, nem quero deixar de salientar o importante papel que a Fundação
tem tido, ao longo dos anos, muitos anos, na promoção e desenvolvimento
do gosto e dos hábitos de leitura, no nosso país.

Hoje todos estamos de acordo quanto ao facto de a leitura ser essencial


para o desenvolvimento pessoal e social de cada um, pois é através da lei-
tura que nos apropriamos do conhecimento e temos acesso à informação.
É, enfim, por via da leitura que nos apetrechamos para a vida.

Todavia, é recorrente a queixa de que as nossas crianças não lêem. De


facto, sempre que se analisam as causas do nosso enorme insucesso esco-
lar, a falta de hábitos de leitura aparece como um dos factores concorrentes
para esse fracasso.

Todos estamos, pois, de acordo em que é fundamental e urgente desen-


volver esses hábitos e criar o gosto pela leitura. E é desde muito cedo que
estes hábitos e este gosto se criam e se constituem como uma necessi-
dade para a vida.

A Escola tem, aqui, como não podia deixar de ser, uma responsabilidade
acrescida. Em contexto de aprendizagem, os alunos lêem para aprender. É
também necessário incentivar neles o prazer de ler.
19
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Consciente da importância da aprendizagem da leitura, do papel funda-


mental da escola neste campo e da necessidade de apoiar os docentes
nesta tarefa, o Ministério da Educação aposta numa estratégia de fomento
do gosto pela leitura, através do lançamento de um plano de desenvolvi-
mento da leitura, a nível nacional, através da inclusão de tempos lectivos,
logo no primeiro ciclo, dedicados à leitura, em que a leitura seja vista, não
como um processo imposto, dentro da escola, mas como um espaço lúdico
em que os estudantes vão ganhando o gosto por ler.

Por isso mesmo, nós teremos em relação a esta matéria uma visão prag-
mática, em que seja possível oferecer à classe docente um vasto leque de
possibilidades, pedagógicas e didácticas, de exploração de textos, com
criatividade e com base em diversas estratégias. São essas mesmas estra-
tégias que contamos, até ao final do presente ano lectivo, poder apresentar
e pôr à discussão na sociedade.

É preciso que se entenda, de uma forma muito clara que o Portugal desen-
volvido terá de ter na sua génese a educação e a formação dos seus ci-
dadãos, e que é necessário, em relação a essa educação, fazer um aposta
em opções que sejam um investimento muito claro no plano familiar e es-
colar.

Por essa razão, pretendemos, com este plano, acompanhar as escolas,


acompanhar os Encarregados de Educação e, assim, as famílias e, evi-
dentemente, acompanhar os alunos.

O Ministério da Educação assume este desafio de acordo com um princípio


de maior colaboração com todas as instituições que compõem a nossa
sociedade civil e, evidentemente, a Fundação Calouste Gulbenkian, terá,
com toda a certeza, um papel muito importante a desempenhar e prestará
um auxílio que tem sido habitual e que é, essencialmente, um auxílio para
bem de Portugal.

Terminaria, agradecendo mais uma vez o convite que me foi feito, dizendo
que a presença do Ministério da Educação demonstra o empenho que te-
mos em relação a estas matérias.

Desejo que os trabalhos decorram da melhor das formas.

Muito obrigado.

20
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Henrique Cayatte

Palavras sobre a obra premiada


na modalidade: livro ilustrado

Queria agradecer à Fundação Calouste Gulbenkian esta oportunidade e dar


os meus parabéns a todos os premiados.

Deve ser uma graça terem-me pedido para vir falar sobre um livro que se
chama Se eu fosse muito magrinho!

Estive neste júri, fruto de uma organização bem montada, que, quando nos
dá o prémio leva-nos ao júri daí a dois anos e, depois, a este papel que
estou agora aqui a desempenhar. Portanto, André, prepara-te! Tens dois
anos!

É-me muito difícil e muito fácil falar do André. Difícil porque estou demasia-
damente próximo; e fácil porque a qualidade do trabalho do André é invul-
gar, aqui ou em qualquer sítio do mundo, como, de resto, já foi notado nos
Estados Unidos num prémio que ele recebeu por uma ilustração para uma
capa do Mil Folhas.

O David Hockney dizia que um artista quando executa o seu trabalho tem
muito pouco a explicar e eu tenho uma enorme dificuldade em explicar,
não só o meu trabalho, como os trabalhos dos meus colegas, sobretudo
daqueles que eu admiro muito.

O André começou a ilustrar com dezanove anos e já tem no seu currículo os


mais importantes prémios de ilustração deste país. Pertence à mais jovem
geração dos ilustradores portugueses.

Devo dizer-vos que aquilo que se passou em Portugal nos últimos anos, no
que à ilustração diz respeito, é apaixonante! É apaixonante ver o nascimento
de um conjunto de ilustradores de enorme talento e de enorme qualidade,
que sobrevivem num panorama editorial complexo, com índices de leitura
baixíssimos, e sobrevivem continuando a não misturar as dificuldades que
têm no exercício da sua profissão, com o momento em que têm de executar

21
XVI Encontro de Literatura para Crianças

o seu trabalho, em que têm de mostrar e caracterizar as suas ideias.

Lembro-me de, há vinte e cinco anos, uma pessoa, que está aqui na sala
e de quem eu gosto muito, chamada António Torrado, ter dito, numa carta
que me escreveu (nós não nos conhecíamos): Henrique, quando chegar
a Portugal (eu não estava em Portugal nessa altura) venha falar comigo!
Mostre-me o seu trabalho. Quero desde já dizer-lhe que ninguém vive da
ilustração em Portugal.

E, vinte e cinco anos depois, a situação é rigorosamente a mesma!

Estamos num quadro de acesso a bens culturais, como sabemos, depri-


midíssimo e estamos numa situação em que a opção, como o Professor
Marçal Grilo disse, pelo efémero, pelo fugaz do écran, pela total transforma-
ção da relação entre a palavra e o texto, (que poderia ser uma coisa interes-
sante e é interessante quando se trata de objectos didácticos, pedagogica-
mente bem construídos, mas que, infelizmente não acontece na maior parte
dos casos), representa o máximo da ocupação do tempo que os nossos
jovens hoje têm.

E, portanto, o papel do André é de uma enorme responsabilidade porque ele


vai ensinar as crianças, que vão ser homens e mulheres amanhã, a apren-
derem a ler imagens. Numa altura em que a palavra escrita tem tendência
para se desmaterializar, ganhar contornos de oralidade, e, o mais preo-
cupante, tem tendência para se perder. E é por isso que nós hoje temos
situações críticas neste país que convém não esconder, se lhes queremos
dar uma volta e melhorá-las.

O André, com o seu trabalho de ilustração, transmite uma ideia de verdade


e tem transmitido às crianças nas dezenas de livros que tem ilustrado (algu-
mas das ilustrações estão expostas lá fora) com uma enorme competência,
na forma como ocupa a mancha, como dialoga com o texto, não gritando,
não ofuscando a palavra.

Há uma maneira muito autêntica de o André trabalhar as ilustrações e de as


pintar - porque estamos aqui na presença de um pintor. Estamos em pre-
sença de um pintor que opta por imprimir as suas pinturas e tentar levá-las
ao maior número de pessoas possível em vez de as guardar em casa ou de
as expor, para uma minoria, numa galeria.

O que dizer mais do André? Ele é pai de um Rodrigo. Há informações segu-


22
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ras de que, um dia, o Rodrigo escreverá, perpetuando pois esta cadeia.

É cenógrafo. É muito interessante perceber como é que o trabalho de um


ilustrador pode ser transposto, embora com uma qualidade completamente
diferente, para uma cenografia. Os cenógrafos costumam dizer que se pinta
de dia para se ver à noite, que se pinta na horizontal para se ver na vertical
e que se pinta ao perto para se ver ao longe.

Sob esse ponto de vista, o André, enquanto ilustrador tem o seu trabalho
mais próximo, a maneira como ele o executa está mais próxima da maneira
como as crianças o vão ver.

Há uns meses na Ilustrarte no Barreiro, (para quem não sabe é a mais fan-
tástica realização de ilustração que este país tem, a par das iniciativas da
Bedeteca, onde de resto, o André também colabora), havia uma exposição
de ilustrações do André que contavam uma história sem texto. Eram ima-
gens panorâmicas, que, até pela sua escala de concepção, nos levavam
a viajar dentro das próprias imagens; portanto, se eu fosse magrinho se
calhar talvez conseguisse entrar numa das tuas ilustrações!

Parabéns!

23
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Maria Cabral Pacheco de Miranda

Palavras sobre a obra premiada


na modalidade: texto literário

Encarregou-me o Júri de apresentar a obra vencedora do Grande Prémio


Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens, na modalidade “Texto
Literário”, o livro Comandante Hussi, do autor Jorge Araújo, nascido na
ilha de S. Vicente, Cabo Verde, a quem vivamente felicito, englobando nesta
homenagem a editora Quetzal, responsável pela sua publicação, em 2003.

Este prémio pretende distinguir a originalidade e a qualidade estética e


literária de uma obra publicada nos últimos dois anos, e a sua adequação a
um público infantil ou juvenil.

É uma história em que se cruzam vários géneros: saída da mão de um


jornalista de profissão tem muito de reportagem, na medida em que nos
confronta com factos da vida real que o autor parece conhecer muito de
perto - neste caso a realidade é a da guerra civil num qualquer país afri-
cano de língua oficial portuguesa, possivelmente a Guiné-Bissau. Mas é
também uma ficção com uma certa dose de fantasia e aventura, uma luta
entre o Bem e o Mal à maneira dos contos tradicionais e, como eles, aca-
bando com um final feliz e uma viagem iniciática em que uma criança se
torna prematuramente adulta à força de percorrer um caminho semeado de
dificuldades e obstáculos. Em pano de fundo, não falta até uma romântica
história de amor (de amor e morte, como todas as histórias verdadeira-
mente românticas...).

Estruturada em curtíssimos capítulos que pontuam os sucessivos episó-


dios, esta novela é escrita numa linguagem clara e acessível, mas cuidada,
com diálogos curtos e incisivos e descrições vivas e expressivas que levam
o leitor a situar-se facilmente dentro da atmosfera narrativa.

Para começar, o herói da história é um miúdo com o qual o jovem leitor


rapidamente se identifica: com cerca de 12 anos, Hussi vive com a família
na margem de um rio seco, em Porto de Batuquinhos, um dos inúmeros
bairros de lata que pululam em volta de uma qualquer cidade africana.

24
XVI Encontro de Literatura para Crianças
O dia-a-dia de Hussi é semelhante ao de outras crianças africanas da sua
idade e decorre pacificamente entre as idas à escola e à catequese, a par-
ticipação nas tarefas domésticas, os treinos para os grandes desafios do
Batuque Futebol Clube e, acima de tudo, os passeios na companhia da sua
fiel bicicleta, uma bicicleta decrépita e mágica com a qual trava infindáveis
diálogos.

O seu quotidiano sem história é subitamente interrompido por uma guerra


civil. Mais uma, de tão banal que se tornou, mas que vai transtornar com-
pletamente a vida da família Sissé, e de mais uns milhares de homens,
mulheres e crianças.

Esta brusca passagem da banalidade do dia-a-dia para a banalidade da


guerra vai ser vivida por Hussi como um ritual iniciático, transformando-
-lhe as coordenadas habituais de tempo e de espaço e provocando nele
um amadurecimento precoce. A partir do instante em que a guerra entra
na sua vida, a partir do momento “em que foi obrigado a deixar para trás a
sua bicicleta”, tudo passa a ser diferente: não só deixa para trás a infância,
ao ser obrigado a tomar o lugar do pai e a responsabilizar-se por toda a
sua família, como a entrada no mundo dos adultos se faz da maneira mais
violenta: pois este menino, oferecendo-se como “correio” dos revoltosos,
vai também defrontar-se, como um soldado, com toda a barbaridade da
guerra.

Assim, o autor faz desfilar perante nós a absoluta irracionalidade da guerra,


utilizando um ponto de vista muito visual, diria mesmo cinematográfico:
“ruas desertas cobertas de cadáveres, casas abandonadas vestidas de
medo. Uma sandália adormecida para sempre no lençol do rio. Um boné
esquecido na atrapalhação da fuga”.

É todo um mundo de caos e destruição que nos é dado através de peque-


nos detalhes, que indiciam uma observação próxima e objectiva de alguém
que conhece por dentro esta dura realidade.

Por outro lado, também são desmontados aos olhos do jovem leitor, (feliz-
mente muito afastado deste tipo de regimes políticos), alguns dos mecanis-
mos da tirania, embora de uma forma simplificada e até caricatural. Nas
várias cenas em que assistimos aos caprichos de um ditador que decide
da paz e da guerra, da vida e da morte dos súbditos, como uma criança
prepotente e cruel, a própria violência é temperada por uma aguda ironia e

25
XVI Encontro de Literatura para Crianças

um humor distanciador. Reparemos, a título de exemplo nesta cena para-


digmática do mecanismo a que me referí:

“Os generais nunca sabiam se o comandante falava a sério ou a brincar


quando se referia ao pintor do regime. O que sabiam é que ele nunca mais
voltaria a pintar – o presidente tinha mandado arrancar-lhe os olhos com
um alicate por não gostar da maneira como pintou o seu nariz no último
quadro.
– Pensas que sou algum rinoceronte – foram as últimas palavras que o pin-
tor ouviu da última vez que viu a luz do dia.
O pintor do regime até costumava ser generoso na maneira como retratava
o todo poderoso líder. Era, aliás, graças aos sucessivos retoques de ge-
nerosidade que conseguia adiar a morte. Mas não podia exagerar e foi para
dar algum realismo ao seu último quadro que optou pelo meio termo – en-
tre as narinas do comandante Trovão e de Michael Jackon escolheu as do
rinoceronte. Foi o seu único pecado: esquecer que o comandante Trovão se
achava com pinta de estrela de cinema.”

A caracterização física e psicológica dos personagens é efectuada por um


processo “cumulativo” que, sobretudo quando aplicado aos personagens
ou situações negativas, resulta num efeito de excesso que dá às situações
mais dramáticas um tom de comicidade a que os jovens são particular-
mente sensíveis.

Por exemplo: “O professor Bambara era uma criatura minúscula, roliça, ócu-
los de lentes espessas que nem fundo de garrafa, colar de conchas à volta
do pescoço, barba de três dias, o corpo forrado por uma densa floresta de
pêlos por desbravar. Parecia uma almôndega peluda que rolava pelo soalho
ao sabor das ordens do comandante Trovão”.

Os próprios nomes dos personagens denotam a sua situação no eixo do


Bem ou no do Mal. Assim, de um lado temos o comandante Trovão, e os
seus sequazes: o Major Katinga, o professor Bambara, o coronel Bufo...
enquanto do outro, além de Hussi e seu pai, o bravo combatente Abdelei,
encontramos o valente Comandante Raio de Sol e ainda Capacete de Ferro
ou Rambo das Facas,...

Também, como nos velhos contos, esta novela acaba com a vitória dos
bons e a aniquilação dos maus, o reconhecimento da coragem de Hussi,
que é promovido a “Comandante” e o seu regresso à vida normal.

26
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Regresso tão mais desejado quanto é uma recuperação de tudo o que,
durante este intervalo, parecia definitivamente perdido: o pai, a mãe, os
irmãos, os amigos e até, nas páginas finais, a sua velha e mágica bicicleta.

Esta história tão séria mas, ao mesmo tempo, divertida, mostra-nos que
vale a pena ser corajoso, que vale a pena lutar pela justiça, que vale a pena
acreditar, com muita força, nos nossos sonhos.

Então, com Hussi, enrolemos à volta do pescoço o cachecol do Barcelona,


ajustemos os pedais com a sola das sandálias e sintamo-nos de novo donos
do mundo...

Não queria terminar sem uma palavra para as pequenas aguarelas de Pedro
Sousa Pereira. Embora a ilustração não esteja aqui em foco, estes simples
esquissos contribuem para ir “desdramatizando” os lados mais escuros da
narrativa, acentuando o humor e o optimismo subjacentes a este magnífico
texto.

27
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Miguel Sousa Tavares

A Viagem

Estou, há mais de um ano, a tentar escrever um livro de literatura infantil


cujo tema é uma viagem no espaço de dois cosmonautas. Não digo qual é
a essência da história – porque o segredo é a alma do negócio – mas posso
revelar que, através dessa viagem dos dois cosmonautas pelo espaço, eu
tento tornar acessível e apetecível aos leitores infantis aquilo que, para mim,
são os 3 elementos essenciais de uma viagem:
- a partida
- a descoberta e o encontro
- o regresso

De facto, o que é verdadeiramente essencial numa viagem? O desejo de


partir, a vertigem da descoberta, a alegria do encontro e, depois, a ob-
sessão do regresso. Não encontramos nenhum grande viajante que não
tenha experimentado todos estes sentimentos, sucessivamente. Alguns
atardaram-se mais do que outros, uns foram mais persistentes, quiseram
ir mais além, roçaram os limites e o ponto de não regresso. Mas todos eles
desesperavam por partir, por encontrar e por voltar.

Uma viagem é sempre, assim e antes de mais nada, uma questão connosco
próprios. Podemos viajar em solitário, a dois, a quatro, até em pequeno gru-
po. Mas as únicas viagens que contam, que marcam e que vivem connos-
co para sempre, são aquelas para as quais nos preparámos mentalmente,
aquelas que começam por ser interiores, antes de serem exteriores.

As viagens que verdadeiramente me marcaram são aquelas que continua-


ram depois do regresso – aquelas que, passe o pleonasmo, continuam a
viajar comigo constantemente. E essas, não têm que ver tanto com o mo-
numento que visitei, com o restaurante onde comi ou com a paisagem que
vi: têm que ver, sobretudo, com o estado de espírito em que me encontrava
nessas ocasiões, nas sensações que experimentei, os desejos que tinha, o
cansaço ou a calma, o calor do sol no corpo, a paz de espírito e o desejo de
ir mais além, ou a tentação de ficar ali para sempre.

Dou um exemplo: uma das melhores recordações de viagem que tenho foi
28
XVI Encontro de Literatura para Crianças
uma noite passada no Sahara marroquino, quando eu e um amigo meu, que
é um companheiro de viagem exemplar, nos tivemos de recolher de uma
tempestade de areia, num abrigo de ocasião – uma espécie de acampa-
mento berbere permanente, onde os viajantes de passagem são servidos
do que houver na panela, dormem em tendas colectivas e, se tiverem sorte,
até podem tomar um duche frio. Como, nesse fim de dia, a tempestade
crescia descontrolada, tivemos de passar sem o duche, comemos rapidam-
ente uma tagine de borrego – pobre de carne, mas maravilhosa de sabor – e
recolhemos a uma tenda com uns doze colchões dispostos na areia e onde
éramos os únicos hóspedes. Avisadamente, esse meu amigo foi-se deitar
num dos colchões do fundo, longe da abertura da tenda, por onde a areia
já começava a entrar em golfadas sucessivas. Uma tempestade de areia é
um espectáculo cósmico que me fascina e me aterroriza, ao mesmo tempo.
E, nessa ocasião, des-prezando os sensatos conselhos do meu compa-
nheiro de viagem, tendo triunfado o fascínio sobre o terror, fui-me deitar
exactamente junto à entrada da tenda, no primeiro colchão. Durante cerca
de uma hora, até ser vencido pelo sono e pelo cansaço, fiquei ali, petrificado
de espanto, a ouvir aquele ruído ensurdecedor, a assistir àquela tremenda
batalha entre o céu, a noite e o vento, e obviamente submerso debaixo de
nuvens de areia. Por incrível que possa parecer, adormeci assim, embalado
por aquele caos apocalíptico e acordei, como seria de esperar, coberto de
areia, entranhado de areia em tudo o que era centímetro quadrado de rou-
pa, de orifício ou de pele. Mas foi inesquecível; foi uma das melhores noites
da minha vida. Tão inesquecível e tão importante que ainda hoje, às vezes,
quando deitado no conforto do meu colchão ortopédico, a cabeça em al-
mofadas de penas e um silêncio adequado, apesar de tudo não consigo
adormecer, acontece-me pensar que estou nessa tenda no deserto de Mar-
rocos, debaixo da tempestade de areia e, então, adormeço em paz: assim
concluí que a insónia é um luxo urbano-depressivo.

Viajar é também um acto de liberdade. Porque viajar é conhecer e todo o


conhecimento é uma condição de liberdade. Viajar é descobrir o outro – os
seus costumes, as suas tradições, o seu país, a sua paisagem, os seus
sonhos e as suas ilusões. Viajar é ver as coisas em perspectiva – nós e os
outros, o nosso mundo e o dos outros. É compreender, apreender, aceitar
as diferenças. Por isso, a viagem é o maior antídoto, também, contra a ig-
norância e contra a auto-suficiência, de onde nascem todos os fanatismos
e todas as intolerâncias.

Eu cubro a cabeça numa sinagoga, descalço-me numa mesquita, não


porque tenha passado a acreditar em Deuses ou Religiões alheias e que me
29
XVI Encontro de Literatura para Crianças

são estranhas, mas porque isso faz parte do contrato ético entre o viajante
e os seus hospedeiros. O mundo seria infinitamente melhor – não tenho
dúvidas – se fosse governado por antigos viajantes ou, ao menos, por diri-
gentes que tivessem viajado. O mundo seria infinitamente mais seguro se,
por exemplo, quando chegou ao poder, Bush conhecesse mais qualquer
coisa para além do México, do Texas e de Paris. Porque o viajante não tem
leis, nem credos universais. Ele sabe que o mundo é demasiado vasto para
a nossa capacidade de compreensão, que o mundo é demasiado diferente
e complexo para ser reduzido a verdades pretensamente universais. Por
isso, o verdadeiro viajante não parte com ideias-feitas nem sai de casa com
o catálogo dos locais a visitar nem a programação detalhada da viagem.
Como eu gosto de dizer, quando se viaja, não se procura, encontra-se. Ou,
dito por outras palavras que já usei algures, não se encontra o que se pro-
cura, mas o que se encontra.

Nos tempos que correm ( e vocês que me estão a ouvir devem estar a
pensar nisso mesmo), é difícil, todavia, distinguir um viajante de um turista.
Durante dez anos, à frente da Revista “Grande Reportagem”, que inaugurou
em Portugal uma secção editorial de viagem, eu tentei – subtilmente umas
vezes, irritadamente outras – explicar aos leitores a diferença entre uma
e outra coisa. Porque, na altura, eu sempre vi o turismo de massas como
a morte da viagem, a antítese da viagem. No meu conceito romântico e,
talvez elitista, de viagem ela deve conter necessariamente uma dose q.b.
de solidão, de desconforto e de desnorte. Exactamente, o oposto do tu-
rismo organizado, que é mais fácil, mais seguro, mais barato e onde, acima
de tudo, o que valoriza a viagem é o “convívio” e não a solidão. Hoje, sei
que esta é uma causa perdida. O turismo de massas tem aspectos sociais
que não são neglicenciáveis. As excursões de grupo, fazendo baixar os
preços, abriram um horizonte novo a milhões de pessoas que, de outra
forma, nunca teriam viajado. De acordo com a regra democrática essencial,
o direito da maioria triunfa sobre o da minoria. E não há nada a dizer, não há
razão para protestos. Apenas um leve reparo: acho que os programas das
agências de viagens deviam deixar mais tempo livre para os seus clientes
descobrirem os países por si próprios, em lugar de terem a papinha toda
feita e programada ao minuto: pequeno-almoço no hotel às 9:00h, saída
em autopulmann para visita às Pirâmides de Gizé, às 10:00h, com pos-
sibilidade de passeio a cavalo à roda das pirâmides, partida para Luxor às
12:00h, com paragem para almoço no Oásis de Nefrit, no Hotel 4 estrelas
Ramsés II, chegada a Luxor às 17:00h e visita ao templo de Hatshepsut e
ao túmulo de Tutankhamon, alojamento no navio-cruzeiro Song of Nile, 4
estrelas, com jantar a bordo e espectáculo de danças tradicionais com par-
30
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ticipação dos hóspedes, possibilidade de fotografias com escravo núbio,
rainha egípcia, sacerdote de Thebos, Pharaó e serpente, etc., etc. obrigado
por ter viajado connosco... E também acho que as agências deviam dei-
xar de fora dos seus programas as chamadas “visitas obrigatórias” e que
quantidade dos seus clientes dispensariam de bom grado, com vantagem
para eles e para os outros – os visitantes que o são por vontade própria e
não por compra prévia de um programa.

Apesar de tudo, apesar de conceder que não é possível lutar contra a inevi-
tabilidade das coisas e que, portanto o turismo de massas vai, aos poucos,
matando a liberdade dos viajantes – quanto mais não seja porque, bem
vistas as coisas, o mundo também não é assim tão vasto que nele caibam,
simultaneamente, a multidão e a solidão – há outra forma, mesmo assim,
outra filosofia, outra atitude e, sobretudo, uma memória de viagem que de-
vemos preservar e incentivar.

E porque – ao que fui informado – este é um Encontro sobre literatura infan-


til e a plateia será maioritariamente composta por professores e educadores
infantis – eu permito-me, uma vez mais, chamar a atenção para o que uma
viagem, o relato de uma viagem, o despertar do fascínio pelas viagens,
pode ter de formativo para o espírito de uma criança.
Recapitulo e acrescento:
- uma viagem dá-nos a conhecer a nós próprios e, muitas vezes, o limite de
nós próprios;
- dá-nos a conhecer o mundo e os outros, ensinando-nos a entender e a
respeitar as diferenças;
- desperta o sentido de descoberta, a vontade de conhecimento, de en-
contro – em contraste com o mundo fechado, virtual e cativo da televisão,
dos jogos de computador e da comunicação humana hertziana, que é hoje,
tristemente, o mundo dos nossos filhos;
- a viagem ensina-nos a ser responsáveis, solidários, desenrascados, livres
e auto-suficientes;
- enfim, a literatura de viagem ensina-nos que o mundo conhecido foi des-
coberto por quem se aventurou a descobri-lo, por quem trocou o conforto,
a segurança e a crença de que o centro do mundo somos nós e o nosso
lugar, pela curiosidade de ver o que havia para além e pelo prazer de dar
testemunho da descoberta. Muito mais do que os conquistadores, muito
mais do que os dirigentes, muito mais do que os profetas e os pregadores,
o mundo que temos foi-nos trazido e dado a descobrir e a desfrutar pelos
viajantes.
Se eu fosse professor de crianças – e desculpem meter a foice em seara
31
XVI Encontro de Literatura para Crianças

alheia – há quatro livros, pelo menos, cuja leitura eu imporia, nem que fosse
a chicote, aos meus alunos:
- A Ilha do Tesouro
- As Viagens de Gulliver
- Robinson Crusoe
- Moby Dick.
Poderia não lhes ensinar mais nada, mas na idade da reforma, ninguém
seria capaz de dizer que eu não teria tentado. Que não teria tentado abrir
um horizonte hoje tão fechado. Abri-lo à ideia fascinante da viagem. E, para
quem, porventura, entendesse – como eu entendo – que a literatura de
viagens é, não apenas uma maneira de viajar em espírito, mas também, e
talvez, a mais completa, a mais humana e a mais pedagógica das literatu-
ras, não faltam, felizmente livros e autores de referência – daqueles sobre os
quais poderíamos dizer que ninguém deveria morrer sem os ter lido.

Nem todos os grandes viajantes foram escritores, porque a ideia de que a


viagem deveria, naturalmente, ser completada pelo seu relato escrito, fun-
cionando como testemunho para os outros, surgiu tardiamente na história.
De facto, só do século XVIII em diante é que vamos encontrar os grandes,
os clássicos escritores de viagem que são simultaneamente viajantes e es-
critores – umas vezes escritores porque viajantes, outras vezes o inverso
– escritores que viajavam para escrever, como Mark Twain.

Assim os primeiros grandes viajantes não escrevem, têm, quando muito,


quem escreva por eles – como Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Co-
lombo, Fernão de Magalhães. Mas há excepções prematuras, como Marco
Polo, que viveu 24 anos na China, em pleno século XIII e que escreveu após
regressar a Veneza; Ibn Batuta, o grande viajante árabe, nascido em 1377;
Leão, o Africano, de seu verdadeiro nome Al-Hasson Mohamed Al-Fassi,
que, depois de ter sido levado como cativo para a corte do Papa Leão X,
escreveu, em 1550, a sua famosa História e Descrição de África e das Coi-
sas Notáveis que aí existem; ou, entre nós, Fernão Mendes Pinto, com a
sua “Peregrinação”, ou Duarte Pacheco Pereira, com o Esmeraldo de Situ
Orbis.

Mas, como disse, a grande literatura de viagens pode-se estabelecer, como


género, a partir do século XVIII e, com especial ênfase, no século XIX e
princípios do século XX. E pode-se estabelecer, a benefício de ordem, por
zonas geográficas:

Temos a Ásia, cujo percursor é James Cook, descobridor da Nova Zelândia


32
XVI Encontro de Literatura para Crianças
e Robert-Louis Stevenson, que começou por viajar de canoa, na Bélgica e
de burro, em França, acabando por morrer em Samoa, em 1894. Temos,
a seguir, o inglês Peter Flemming, que viajou e escreveu sobre o Brasil, a
China e a Mongólia ou, mais tarde, o austríaco Heinrich Harrer, alpinista nos
Himalaias, feito prisioneiro pelos ingleses durante a 2ª Guerra mundial que
daí escapou e chegou ao Tibete. Foi o primeiro ocidental no Tibete, desde
os jesuítas portugueses, 200 anos antes; viveu lá 5 anos e acabou como
tutor do actual Dalai Lama. Temos, ainda na Ásia, os clássicos Graham
Greene e Somerset Maugham.

Temos a África, o continente por excelência dos escritores-viajantes, a


começar por Charles Darwin que nos deu o “Relato da Viagem do Beagle”,
em 1831 e que foi uma viagem para mapear a costa sul africana.
Os grandes sertanistas, os portugueses Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo,
Silva Porto, Roberto Ivens, e o quarteto inglês dos famosos membros da
National Geographic Society: John Spike, David Livingstone, Henry Mor-
ton Stanley e, o mais fascinante deles, em minha opinião, Richard Burton
– tudo gente da segunda metade do século XIX, do tempo da Conferência
de Berlim, quando o direito de posse em África deixou de ser baseado na
descoberta para passar a ser na ocupação, no conhecimento.

Depois, temos o Próximo Oriente, com viajantes como a escritora inglesa


Evelyn Waugh, que entre 1928 e 37 não tinha nem morada fixa nem bens
que não coubessem numa carreta de mão; ou a extraordinária Gertrude
Bell, viajante, escritora, alpinista, arqueóloga e membro dos Serviços Se-
cretos Ingleses, que viajou entre 1899 e 1920 pelo Oriente Próximo, criando
tal fama que houve um chefe árabe que exclamou uma vez, a propósito de
ela: “Se isto são as mulheres deles, por Alá, como serão os homens?”; e
temos ainda Lawrence Durrell com o seu O Quarteto de Alexandria.

Temos a seguir, os malucos do deserto:


Rimbaud, que foi traficante de armas em Aden. Thomas Edward Lawrence,
que escreveu aquilo que Churchill considerava o mais importante livro da
literatura inglesa do sec. XX: “Os sete pilares da sabedoria”. Theodore
Monod, com o seu “Viajantes do deserto”. Isabelle Eberhardt, que era uma
louca e se vestia de chefe árabe para andar misturada com eles.
Wilfred Thesiger, o maior viajante do deserto, que atravessou o chamado
“quarto vazio” no deserto arábico em 46/47 e, no ano seguinte, fez uma
viagem ainda mais extraordinária: a travessia das areias ocidentais, onde
ele relata, com simplicidade e como se fosse a coisa mais banal do mundo,
o que era estar 16 dias, dia após dia, sem encontrar água.
33
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Todos estes estiveram no deserto arábico, no Sahara que, apesar de tudo,


é o deserto dos desertos. O principal terá sido Charles de Foulcaud, o Père
Foulcaud, que era um aristocrata francês, que se juntou ao exército e, de-
pois foi padre e que, além do mais, era um extraordinário desenhador e
navegador. Há um livro dele, de 1885, de desenhos, lindíssimo, chamado
“Esquisses sahariennes”, com legendas. Foi o primeiro homem a fazer um
dicionário de tarki/francês (tarki é a língua dos tuaregues). Foi misteriosa-
mente assassinado pelos tuaregues, de quem era amigo.

Nas Américas, temos o nosso Pedro Teixeira, que fez o relato da descida do
rio Amazonas para o Rei Português; o alemão Alexander de Humbold, que
esteve, em 1800, a viajar pela amazónia e pela América Central e do Sul; o
inglês naturalista Charles Watterton, que viajou pela Guiana no princípio do
século XIX e, já nossos contemporâneos, Chatwin e Luís Sepúlveda, que
viajaram pela Patagónia.

Na América do Norte, temos, entre muitos, o clássico Kerouac (mais pela


literatura do que pela viagem) e, para acabar, temos os grandes viajantes
escritores dos extremos da Terra:
Charles Willdes, o primeiro na Antártida. E os homens dos Pólos: Schack-
letton, Scott, Edmund Hillary (Everest e Pólo Sul) e Richard Byrd que so-
brevoou o Pólo Norte, em 1926, e lá hibernou.

E eis uma lista que, por muito que vos possa ter parecido aborrecida, eu
fiz questão de citar – porque eles são, verdadeiramente, os indispensáveis
–ao falar de viagens e de literatura de viagens, são autêntico Património da
Humanidade. Ao ler os seus livros ou relatos de viagem, um leitor desco-
nhecedor ou desatento poderá ser levado a pensar que eles viveram coisas
extraordinárias, num mundo deslumbrante, que hoje já não existe. E, em
parte é verdade. Só que a outra parte, que muitas vezes não é evidente
por si, é o tremendo esforço físico e psíquico, os sacrifícios inenarráveis
que penaram, a obstinação, a coragem e a loucura de que tiveram de dar
mostras para levar a cabo as suas viagens. Quando, por exemplo, lemos
na escrita depurada, quase humilde, de Wilfred Thesiger, a sua descrição
da travessia das Areias Ocidentais do Deserto Arábico, não conseguimos
imaginar o que significa andar 16 dias sem encontrar água, sabendo que
a vida está suspensa de dois acontecimentos: encontrar o próximo poço
naquela imensidão vazia e que o poço não esteja seco. E, todavia, nesses
dias em que se jogava a sua própria vida, Thesiger foi capaz de escrever
páginas exaltantes sobre a grandiosidade do que via e sentia e de tirar
34
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fotografias de uma beleza quase irreal. Também essa obstinação, esse es-
forço até ao limite dos nossos próprios limites, essa extrema capacidade de
sobrevivência e de lucidez simultaneamente, essa vontade de chegar lá ao
fundo, voltar e dar testemunho, são um exemplo, um paradigma de com-
portamento, nas sociedades confortáveis em que hoje vivemos e em que
a população de uma aldeia que passe um dia sem água aparece à noite,
revoltada no telejornal.

Recordo aqui dois casos extremos de viajantes no limite de si mesmos.


Sir Francis Chichester, o primeiro circunavegador solitário, que, ao passar
no Cabo Horn, de noite, sozinho e debaixo de uma tempestade desabrida,
fez tudo o que podia fazer: ficou apenas com a vela davante, tirou o azi-
mute, fixou o piloto-automático e, não tendo mais condições para se man-
ter na coberta do navio e convencido de que não conseguiria atravessar o
Horn e morreria nessa noite, foi para o convés, escreveu uma maravilhosa
carta de despedida à mulher, abriu uma garrafa de vinho tinto e deitou-se
tranquilamente a ler e à espera da morte... que afinal não veio – felizmente
para nós que pudemos ler o seu extraordinário relato da travessia do Cabo
Horn em solitário. O segundo caso passa-se com o Almirante Richard Byrd,
de que atrás falei, o primeiro homem a sobrevoar o Pólo Norte e também o
primeiro a decidir hibernar lá, sozinho, durante mais de 40 dias, numa ca-
bana rudimentar, ligado apenas por rádio à base mais próxima. Sem nunca
revelar que estava no extremo limite da sua fraqueza, Byrd foi salvo justa-
mente pelo seu interlocutor da rádio, que percebeu pela sua voz que ele
estava à beira de se deixar ir. Quando foi resgatado, Byrd – que era já um
perso-nagem célebre – respondeu, quando lhe pediram um primeiro co-
mentário sobre a sua experiência de náufrago solitário e voluntário no Pólo
Norte: “Deixei lá o que me restava de juventude e de presunção”.

Esta é, foi sempre uma das minhas frases-guia, ao longo das incomparavel-
mente menores viagens que tive a sorte de viver.
Deixar em viagem o que nos resta de juventude é a maneira mais certa de
continuar a viajar para sempre – em espírito, se já não fisicamente. Deixar
em viagem o que nos resta de presunção é sinal claro de que não des-
perdiçámos o privilégio de viajar, de que não falhámos o encontro.
Quem verdadeiramente viaja, procura-se. Encontra-se. Vive e está vivo. Até
à última das viagens, até à viagem final, a única que não depende da nossa
vontade, todas as outras fazem de nós pessoas livres e mais ricas.

Só quem teve um dia a oportunidade, o privilégio, a coragem, a audácia e


a juventude de viajar assim, poderá mais tarde, tendo vivido e sobrevivido,
35
XVI Encontro de Literatura para Crianças

escrever qualquer coisa como este excerto final do livro de João Teixeira
de Vasconcelos, de Amarante, irmão do poeta Teixeira de Pascoaes, que
foi o maior caçador de elefantes de África. O livro chama-se: África vivida
– Memórias de um caçador de elefantes. João Teixeira de Vasconcelos par-
tiu com 20 e poucos anos, em 1914, para Angola; daí andou pelo Zaire e
pelo norte de Angola, ao longo de mais de 20 anos, tendo morto mais de
100 elefantes. Isto dito hoje, parece politicamente incorrecto, mas quem ler
o livro vai ver que não havia aqui nada de fácil. Cito:
Hoje, a meio caminho da vida, com meio mundo andado, desde a Holanda
aos confins do continente africano; tendo destruído tanta caça, experimen-
tado todos os climas, gozado todas as paisagens; não me palpitando mais
novidades pela terra e não podendo ter nas mãos a Lua que, de longe,
vejo rolar no espaço, o meu maior desejo seria ver-me novamente naquela
idade, naquela força em que fracas eram as feras e pequenina a África para
o poder extraordinário dum sonho, em tenros anos. Doutro modo, o que
resulta da minha vida é apenas um homem vincado, pilado pelo sol tropical,
quase palha pela força de tanto a trilhar nas calorentas planícies, arrumado
ao canto duma lareira nortenha, martirizando-se no impossível de viver.

“O impossível de viver”. O impossível de viver naturalmente, normalmente.


Eis uma frase que só um grande viajante poderia ter escrito.

Hoje, com todo o mundo calcorreado, já nenhum de nós poderá aspirar a


semelhante vida. Mas podemos – devemos! – lê-los, ensiná-los, dá-los a ler
aos que hoje se martirizam no impossível de sonhar.

36
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Paulo Lages

Peregrinação

As aventuras de Fernão Mendes Pinto nos mares e terras do Oriente,


contadas às crianças num espectáculo de Paulo Lages, com cenogra-
fia e participação cénica de Pedro Leitão

Distinguem-se os viajantes dos demais que viajam, dizem, pelo sentido da


viagem, mais do que pelo remoto ou exótico destino dela. É ao encontro do
Outro em outro lugar que vão, disponíveis para o relacionamento, dispostos
à aceitação das diferenças, prontos para a partilha de experiências.

Em “Peregrinação”, Fernão Mendes Pinto, viajante da fortuna, escreve di-


reito por linhas tortas, dando-nos a perceber o Outro, fazendo-nos reco-
nhecer a sua identidade e, tantas vezes, forçando-nos a render à sua supe-
rioridade moral, através de uma narrativa pejada de violências e crueldades,
cometidas à sombra de uma divina Providência, que, todavia, não dorme e,
por isso, além do socorro, também providencia o castigo, pelo pecado da
hostilidade cega, origem do confronto brutal.

Ao escolher encenar “Peregrinação” e dela fazer um espectáculo para


crianças, impunha-se não desvirtuar esse sentido da viagem, que, por via
satírica, embora, ela promove.

Apresentámo-la como “as aventuras de Fernão Mendes Pinto nos mares e


terras do Oriente” e fizemos as crianças participarem...tomando-as, as mais
das vezes, como piratas muçulmanos e gentios, atribuímos-lhes o papel do
Outro – do suposto inimigo, do estranho, do estrangeiro, do diferente, que
é, afinal, um igual.

Ao identificarmos as crianças como “inimigos da nação portuguesa”, entre


elas localizámos o corsário-mor, Coja Acém, em cuja busca se desenrola
toda uma primeira parte da peça; e, já na segunda parte, seguindo em de-
manda de Calempluy, a ilha de ouro, na plateia descobrimos o estranho
povo dos gigauhós (sic) – gente, concluímos, com cabeça, tronco e mem-
bros.... como os demais!

37
XVI Encontro de Literatura para Crianças

As duas partes referidas traçam um único sulco na esteira vasta e luminosa


da “Peregrinação”, como disse Aquilino Ribeiro, em cuja adaptação primei-
ro a lemos: o das aventuras com António de Faria. Nisso, não fomos mais
longe do que alguns outros, e do que o próprio Aquilino, quando destinaram
a mesma obra à infância.

Fizemos, no entanto, seguir aquelas aventuras de um epílogo, que desfaz


em so-nho os episódios vividos. O sonho de um pobre rapaz, leitor com-
pulsivo de “Peregrinação” (único livro que possui, de resto...), que anda de
feira em feira com o seu severo pai, a vender fazendas.

De noite, no quarto de Próspero, que assim se chama, por ironia, o rapaz,


eles são, respectivamente, Fernão Mendes Pinto e o capitão António de
Faria, a cama é um barco, e os lamés dourados, o ouro de Calempluy. De
dia, são como que as personagens trazidas ao tempo de hoje. Porque há
résteas da noite no dia, do sonho na vida, da ficção na realidade. Fernão,
mentes?

38
XVI Encontro de Literatura para Crianças

39
XVI Encontro de Literatura para Crianças

José Pedro Serra, Maria João Seixas e Mário Avelar

Alice Vieira, Glória Bastos, Violante Florêncio e José Carlos Seabra Pereira

40
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Diogo Dória, Rui Marques Veloso, Marta Martins e Leonor Riscado

Francisco Pacheco, Pedro Rosa Mendes, António Torrado e Luísa Ducla Soares

41
XVI Encontro de Literatura para Crianças

António Torrado e Matilde Rosa Araújo

Público na Sala 1

42
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Maria João Seixas

Presidente da mesa

Começo por agradecer à Fundação Gulbenkian esta magnífica iniciativa


dos Encontros de Literatura para Crianças e aos responsáveis pelo Serviço
de Educação e Bolsas.

Obrigada pela vossa presença e, maior coragem que vir ouvir os clássicos e
a inevitabilidade dos clássicos, é virem ouvir-me a mim como moderadora,
que normalmente não dou muito tempo para falar a quem foi convidado
para falar. Mas eu prometi aos meus queridos amigos da Gulbenkian por-
tar-me bem, e vou resistir porque me apetecia imenso dizer muitas mais
coisas, mas a seu tempo ...

Ora bem, tenho de começar!

Reparem bem neste imperativo categórico e moral, com o Professor José


Pedro Serra a olhar-me de lado, porque, além de grande amigo, vem de
longe este despique.

O Professor José Pedro Serra, licenciado em Filosofia, meu colega portan-


to, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorado, andou
também pelas áreas da Teologia. Tem uma dedicação quase exclusiva ao
universo antigo, estes primeiros irmãos que nos deixaram vestígios, justa-
mente, a proximidade com os nossos amigos clássicos.

Saúdo a Fundação Gulbenkian pelo título dado a esta manhã por ser na afir-
mativa. Muitas vezes interrogo-me: serão os clássicos inevitáveis? Gostei
muito deste lado assumidamente afirmativo de que o são. Professor, antes
de me alongar mais como gostaria, agradeço a sua presença. O Professor
Mário Avelar lá terá de esperar que a hora da contemporaneidade chegue,
mas vamos ouvir o Professor José Pedro Serra e, de seguida, ouviremos o
Prof. Mário Avelar.

Agradeço muito ao Professor José Pedro Serra, ao Professor Mário Avelar


a participação.

43
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Há bocado, ouvindo o Professor Mário Avelar falar sobre a alegoria da


prudência de Titiano, lembrei-me do elogio da paciência.

Eu era muito impaciente em miúda e, um dia, o meu pai - era sempre ele
- chamou-me e com um ar muito sério disse-me assim: - Vou ler para ti uma
página de um autor português, criador de artes plásticas e literárias, que se
chama Almada Negreiros. Não sabia de todo quem era!

E o Almada tem um conto que, se não me engano, se chama O Homem que


sabia demais, onde se insere esta história que eu vos deixo para terdes a
paciência que vos faltará com certeza, para encarar os vossos alunos e, so-
bretudo, para não deixar matizar diminutivamente o entusiasmo com que,
de certeza, praticais a vossa nobilíssima profissão.

Então era assim: Havia um convento, perto de uma aldeia, e os monges


do convento acharam que a sala do refeitório deveria ser pintada. Foram à
aldeia e convidaram o pintor mais prestigiado. O pintor chegou um dia com
uma escada, uma lata de tinta, uns pincéis, que colocou num cantinho, fa-
lou com o abade, o monge superior daquele convento, que o levou à sala e
lhe disse que aquela era a sala que ele devia pintar. O pintor ouviu, aceitou
a encomenda e saiu. No dia seguinte, os monges esperaram por ele e nada!
Dois dias depois, nada! Uma semana depois, nada!
Até que o monge cozinheiro regressou ao convento e disse: - vi o pintor
no mercado da aldeia! Estava a olhar com muita atenção para a banca dos
legumes e das frutas.
- E disseste-lhe alguma coisa?
- Não, não o quis interromper.
- Andaste bem!
Mais uma semana, nada do pintor aparecer! Sempre a escada, a lata de
tinta e os pincéis. Passados dez dias sobre essa primeira semana, há outro
monge, o monge que se ocupava de ir colher as ervas das margens de um
rio próximo, chegou ao mosteiro e diz: - Vi o pintor. Estava sentado numa
pedra a olhar com muita atenção para as águas do rio, para os peixes e para
as árvores.
- E disseste-lhe que estamos à sua espera?
- Não, não quis interromper a atenção com que ele estava.
Até que um dia, o pintor, com muita serenidade, chega ao mosteiro, pega
na escada, na lata de tinta, nos pin-céis e ninguém lhe disse nada sobre
aquele atraso de meses. Vai para o refeitório e começa a pintar os legumes,
os frutos, as árvores, as águas do rio, os peixes.

44
XVI Encontro de Literatura para Crianças
E o meu pai terminava, de resto como o Almada: - grande sabedoria teve o
monge superior deste mosteiro por ter a paciência amorosa de dar tempo
ao pintor que, por seu lado, grande sabedoria mostrou por não se precipitar
sobre a invenção de um motivo, respeitar, justamente, a qualidade da enco-
menda e fazê-la habitar com a sua experiência mais amorosa.

E o encontro do meu pai comigo nesse dia terminou assim: - E tu, o é que
querias ser nesta história? - O pintor ou algum dos monges?

Até hoje trago comigo esta questão! Não lhe sei dar resposta.

45
XVI Encontro de Literatura para Crianças

José Pedro Serra

Inevitáveis Clássicos

Desconfio dos professores que não se sobressaltam com o saber de que


são mensageiros, desconfio dos educadores que vêem a educação como
um processo mecânico de resultados previsíveis e seguros, desconfio das
abundantes certezas sem a bordadura das dúvidas. Desconfio porque o
tempo me vai ensinando que na aprendizagem há um poético fulgor que
se desvela e acontece, qualquer coisa de irredutível à explicação, algo in-
domável, algo epicamente solitário, seja na árvore tantas vezes olhada mas
apenas na graça daquele momento realmente vista, seja no pensador tan-
tas vezes lido, mas redescoberto à luz daquela hora rara, seja no espanto
pelas sempre renovadas feições do amor, da alegria, do sofrimento. Re-
conhecer e aceitar a primazia e a autoridade desse pessoal, insubstituível
e íntimo núcleo, semente a partir da qual a inalienável aventura de cada um
se vai esculpindo, significa respeitar o outro, e o exercício desse respeito
e a possibilidade dessa aventura têm um precioso nome: liberdade. Liber-
dade é também poder fazer e poder dizer, mas, antes disso, como condição
de possibilidade de um agir e de um dizer livres, é conceder que a vida
vá amadurecendo em cada um, sem atropelo de tempos ou imposição de
visões, de acordo com o que cada um vai vendo e descobrindo. E todos sa-
bemos que há sempre muito a descobrir e que o descoberto continuamente
se transfigura em cousa nova. Por isto me oponho aos docentes que, des-
virtuando o sentido do termo, procuram e ambicionam na sua docência a
docilidade dos discentes. O mestre, porém, sabe que não é tanto na docili-
dade mas no respeito autêntico e insubmisso que a docência frutifica.

Procuram estas palavras sintetizar o princípio fundador da acção educa-


tiva. Ter-me-ei expressado mal, muito mal, todavia, se, no relevo dado à
inviolabilidade da autonomia pessoal na apropriação de um qualquer saber,
deixei no ar a sugestão de uma abstenção, de um afastamento pretensa-
mente liberal e tolerante dos educadores enquanto educam. Ao contrário,
justamente porque é impossível a alguém fazer por outro o seu caminho,
porque é solitária e de cada um a barca da sua viagem, é decisivo anunciar
os mares das ilhas afortunadas, dar a ver os grandes enigmas, relembrar
o destino e o pensamento de homens de eleição, procurar em comum o
sentido da vida como pescadores de pérolas, derramar perfumes raros e
46
XVI Encontro de Literatura para Crianças
requintados que o olfacto aprenda a distinguir, silenciar o ruído para que
se oiça o marulhar de vozes secretas e distantes, rasgar horizontes largos
para que o gesto não definhe pela tacanhez do espaço, enfim, dar a amar
as coisas amáveis. Dar a amar ainda que o amor só frutifique na atenção e
no cuidado de cada um para com o seu horto.

O traço mais imediatamente perceptível nesta dádiva traduz-se na exigên-


cia de escolhas, com os riscos que lhe são inerentes. Peneirar, seleccionar,
hierarquizar é a tarefa incontornável de quem educa. Poderemos fazê-lo
consciente, deliberada e intencionalmente, convictos da nossa demanda,
ou podemos fazê-lo cega e inconscientemente, arrastados por modas e
ao sabor das circunstâncias, movidos por ambições estéreis, sucessos
efémeros, satisfações fáceis. Educar, porém, é sempre hierarquizar, arris-
carmo-nos num juízo valorativo que impõe diferenças e distinções. Per-
cebe-se assim facilmente quão activo é o múnus do educador, quão dis-
tante está de uma permissiva passividade, que confunde o que é distinto,
que se abstém de avaliar o que se apresenta com valor diferente. Dar a
ver, dar a amar, constitui celebradamente uma vocação, que não se con-
cilia, nem com indiferença, nem com esquecimento, nem com demissão.
Professores, escritores, pais, educadores têm a enorme responsabilidade,
não apenas técnico-profissional ou paternal, mas ético-política, ou melhor,
humana, de dar a ver e de dar a amar. Esquecê-lo ou escamoteá-lo é grave
lacuna e irresponsável demissão.

Dar a ver, dar a ouvir, dar a amar. Mas qual o propósito último desta dádiva?
Que finalidade é essa que nos convoca, que norteia o gesto e modela a pala-
vra? Que fim é esse que pelo desejo que desperta vai orientando a viagem?
O que está em causa é uma primordial ideia acerca do homem, do que lhe
é próprio, do que lhe convém. Sei bem que o estatuto da criança enquanto
criança possui uma dignidade e exige um respeito inquestionáveis, facto
aliás proclamado nos “Direitos da Criança”, mas em última análise está a
grandeza possível do homem que na criança se anuncia, promessa que
poderá ser prematuramente mutilada, ou atentamente cuidada. No sorriso
da criança está a alvorada do sorriso do homem maduro, no gesto infantil
está, embora envolta nas misteriosas vestes do tempo, a semente de um
agir futuro. Como na enigmática pergunta da Esfinge, o que está em causa
é sempre o homem, quem ele é no perfil que para ele desejamos; o que
está em causa é sempre a promessa de nós próprios que mais à frente por
nós espera. Por isso é a educação obra de cultura. Termo de origem latina,
a cultura remete-nos para o verbo colo, colis, colere, colui, cultum, que
significa “habitar”, “estar em”. Se seguirmos o trilho sugerido pela etimolo-
47
XVI Encontro de Literatura para Crianças

gia, a cultura designa o trabalho daquele que, habitando uma terra, a torna
ubérrima. A cultura supõe, então, como condição do seu próprio aparecer,
uma terra potencialmente fértil e os cuidados necessários à transformação
da aridez em fertilidade. No espírito, como no campo, a cultura designa o
processo transfigurador, a mudança qualitativa, metamorfose daquele que,
pelo exercício do cultivo, aspira a uma compreensão mais profunda, mais
larga, mais plena da realidade. E a infância é um vasto campo de promes-
sas várias, de férteis e imensas possibilidades; a inteligência do agricultor
está na sábia adequação às estações e na mestria do cultivo cujo objectivo
é actualizar essa potência, tornar ubérrimo o campo potencialmente fértil.
A causa final da cultura é o homem e o desenho que dele queremos traçar.
Educar é, pois, construir, formar, mas de acordo com uma forma, isto é, com
um princípio, com uma ideia que regula e orienta o processo. O contrário é
comprometer a liberdade e submergir sob a avalanche das circunstâncias.

Se assim é, se a tensão entre a criança que está e o homem que poderá


vir a estar é o cerne do processo educativo, então qual o princípio que nos
orienta? Sob que ideia de homem nos colocamos? Qual o desenho do hu-
mano que nos obriga à lealdade? Em suma, que homem temos em vista
quando educamos? A dificuldade da pergunta deixa-me perplexo, emba-
raçado. Afinal que homem quero eu formar? À complexidade iniludível da
natureza da pergunta, junta-se ainda a turbulência do momento concreto
que vivemos. Não foram denunciados como ilusórios alguns pilares sobre
os quais assentava a nossa cultura? Não se fala há muito de uma difusa
crise de valores, sem que desse diagnóstico se infira nem a possibilidade
de restauração dos mesmos, nem a benevolência de novos valores? Não
é um facto o imenso poder dos media que, regidos muitas vezes por du-
vidosos critérios de popularidade e sucesso, parece fazer ruir outros mais
cuidados e nobres propósitos? Não nos colocou o avanço científico e tec-
nológico no limiar de novas fronteiras, antes inimagináveis, e que nos obri-
gam a repensar os limites do humano? No seio desta turbulência, como
dizer o homem que queremos para amanhã? Nem que prolongássemos o
tempo de reflexão a pergunta seria inteiramente respondível; mas não nos
sintamos derrotados, não desistamos agora; é já muito termos feito a per-
gunta. Ainda que o desenho permaneça incompleto, é certamente possível
ensaiar um esboço, salientar algum traço que determine o perfil, ainda que
incompleto, desse homem que buscamos. Por mim, gostaria que o homem
não perdesse e até agudizasse a consciência da dimensão histórica da sua
existência. Esta é uma luta que tomo para mim.

Quando falo da dimensão histórica do nosso existir, não me refiro estrita-


48
XVI Encontro de Literatura para Crianças
mente à especificidade do saber histórico, nem à convicção de que o tem-
po envolve as nossas obras. Refiro-me, sim, à partilha de um destino, à
comunhão de uma demanda, ainda que expressa de múltiplas e variadís-
simas formas. Da arte rupestre à mais vanguardista arte abstracta, no mito
como na literatura, na ciência como na religião, o que se mostra e dá sinal
é a dor de uma fractura ontológica, uma primordial aspiração a algo mais.
É esta aspiração, este ansioso desejo de ser, a que a morte outorga uma
trágica autenticidade, que nos une a todos, mortos e vivos, e faz dessa via-
gem começada há milhares de anos ainda a nossa viagem. Foi na forja dos
antigos gestos que nos tornámos quem somos, é na colheita de antigas
palavras que forjamos o nosso próprio e original dizer. E a consciência disto
transfigura a compreensão do homem, do mundo e da vida.

Esta demorada aspiração a ser, nunca inteiramente cumprida, embora


tenha ab ouo marcado o ritmo da nossa já ancestral demanda, ganhou,
na Grécia antiga, um nome de que somos herdeiros e do qual nos não
podemos separar: filosofia. Philo-sophia, palavra que fala grego, designa
não tanto um saber, mas uma atitude, não tanto uma posse, mas uma de-
manda, não um seguro repouso, mas uma inquieta tensão. Ao longo do
tempo, e certamente pela riqueza inesgotável do termo, a filosofia assumiu
diversos contornos e muitos foram os que dela tiveram um determinado en-
tendimento. Na sua matriz, porém, está a marca indelével de um desejo, de
um amor a alguma coisa que não se possui, mas para o qual amorosamente
se tende, em direcção à qual se viaja. A filosofia nasce de um exílio, de
um radical afastamento, fragmentado exílio da Unidade, do Absoluto, disso
que se torna presente pela ausência, ausência que nos move e desperta o
desejo. Este primordial e original exílio funda a nossa vocação e delimita o
horizonte no qual se inscreve a nossa acção, a nossa cultura, obra con-
tinuamente orvalhada pela brisa de uma ontológica saudade. No épico ou
no trágico, no cómico ou no satírico, no estremecimento da visão da morte
ou na heróica celebração da finitude, no sorriso irónico ou no riso trocista
é sempre de uma perda, de uma dorida perda que se trata. Sem ela, fonte
das mais puras alegrias e das mais nobres tristezas, não seríamos quem
somos, nem posso mesmo imaginar quem seríamos. Sombra mortal que
aspira à imortalidade, inacabado fragmento que sonha a unidade, gesto
estendido à outra margem, voz atirada aos céus, esta é a nossa chancela e
o sopro modelador do nosso reino. O desejo do Bem, do Belo, da Verdade,
ou a dilacerada afirmação da ausência deles – o que constitui, de resto,
uma expressão avessa de um mesmo desejo – ilumina a intencionalidade
última do nosso estar e do nosso agir e delimita o horizonte da partilha de
uma história e de um destino comuns. E que magnífica é a cumplicidade,
49
XVI Encontro de Literatura para Crianças

porque nada nos é inteiramente estranho, e que magnífica é a variedade do


já feito, do já dito, do já vivido, quando se olha para trás ainda que com a
mão colocada no futuro. Se somos hoje sensíveis, e bem, ao longo tempo
de formação da Terra até que a árvore frondosa se constitua, se somos hoje
sensíveis, e bem, à pegada do dinossauro, vestígio de um animal que nesta
terra se moveu, como não o ser relativamente às marcas deixadas na alma
pelos outros semelhantes a nós que nos antecederam? Estas constituem
parte da nossa seiva mais profunda, mais rica, mais criativa. Receber o
testemunho, acrescentá-lo com a nossa obra, transmiti-lo àqueles que nos
seguem, isso é a tradição e a tradição é a memória expressiva da nossa
ansiosa incandescência. Quão ingénuo é o entendimento da tradição como
algo ancilosado, morto e carcomido, petrificado.

Regressemos, então, à natureza da dádiva dos pais, dos professores, dos


educadores. Dar a ver, dar a ouvir, dar a amar, continuando uma demanda
essencial, intentando descobrir mais, ser mais livre, ser mais. E podem os
clássicos ainda ajudar-nos a continuar a viagem? Têm ainda alguma coisa
a dizer-nos? Continuam, como fachos de luz intensa, a iluminar-nos o cami-
nho, ou são apenas resíduos fumegantes de uma memória velha e gasta,
que apenas por inércia se apresenta? A resposta é para mim evidente, mas
as indecisões que nos atravessam obrigam a tornar mais evidente a evidên-
cia. Não vejo, de resto, em que pode ser prejudicial tornar dito e pensado o
que passa por uma inclinação imediata.

Aflorando apenas as dificuldades implícitas no termo, “clássico” é o au-


tor ou a obra que integra a matéria de estudo da classe, da escola. Mas
como a escola exige e merece o melhor, clássico só é aquele ou aquilo
que de uma forma ou de outra atinge um valor supremo na hierarquia im-
plícita a qualquer magistério. Não pode por isso ser retirado ao clássico a
aura de uma especial significação, da revelação de um especial sentido,
condição da sua excelência. São clássicos porque são da classe e porque
têm classe. Em sentido estrito, pela influência que exerceram sobretudo no
Renascimento – embora ainda a continuem a exercer – clássicas são as
obras de alguns dos autores greco-latinos compreendidos entre a aurora da
civilização grega e a queda do império romano. O passar dos anos, porém,
fez aumentar o património dos clássicos, acrescentando aos nomes da an-
tiguidade outros nomes que, pela projecção que tiveram nos vindouros, se
tornaram igualmente clássicos. Tocamos aqui um dos aspectos importantes
no reconhecimento de um clássico: a resistência ao tempo, o trespassar os
séculos. Deve aliás acrescentar-se que esta emprestada imortalidade ar-
rancada à trituração do tempo, nem sempre é correctamente entendida e é
50
XVI Encontro de Literatura para Crianças
frequentemente motivo de uma desfigurada apreciação que lhes degrada as
feições, outorgando um peso e uma rigidez que de modo nenhum convêm
aos clássicos. Sob a capa de um postiço apreço, podem os clássicos ser
objecto de uma idolatria, de uma ilusória e distorcida veneração que ape-
nas os empobrece e afasta. Nem a aceitação leviana, nem o louvor acrítico
explicam a resistência à passagem do tempo. Para que uma obra vença os
séculos é necessário que, de uma forma ou de outra, tenha tocado as mais
subtis cordas da alma humana, experiência cuja ressonância quebra os li-
mites da hora, das circunstâncias, das modas. Os clássicos fundam modos
primeiros e originais de inteligir a realidade e por isso se impõem para além
de particularismos privados e subjectivos. É esse dizer de um fundo matri-
cial, que se não deixa enredar nas malhas da moda, que importa descobrir e
atentamente escutar. Quanta arrogância seria evitada se soubéssemos ler e
escutar as vozes antigas esculpidas nas mãos do tempo. A Ilíada, a Eneida,
Os Lusíadas são clássicos porque ao arquitectarem o épico me devolvem
generosamente a possibilidade do meu agir heróico; se são clássicos os
sonetos de Camões, são-no porque melhor dizem o que julgo sentir e o que
posso sentir; se Ésquilo e Séneca e Shakespeare são clássicos é porque,
tornando-me mais autêntico, me colocam na senda do trágico, dimensão
sem a qual a vida é logro e embuste. Devo, aliás, confessar, nesse desenho
sempre um pouco inventado que fazemos de nós próprios, que talvez ne-
nhum livro me tenha formado tão determinantemente quanto a Ilíada. Foi
à sombra desses heróis gregos e troianos que aprendi, reconheci em mim
que a consciência da nossa condição de mortais reclama de nós um gesto
largo e nobre, como se as divindades da morte, que sobre nós rondam aos
milhares, em lugar de definhar ou petrificar o nosso gesto, nos convocas-
sem para a glória de um destino heróico. É claro que é já outro o modo de
entender a glória; mas, no que se sente e no que se pensa, no que com
outro se descobre, a possibilidade de um destino glorioso que dê corpo à
nossa vocação épica é um tesouro guardado no jardim que trago sempre
comigo.

São muitos os riscos de nos afastarmos dos clássicos, mas, para mim, o
maior risco é perdermos a incandescência da nossa histórica demanda,
consagrado louvor à nossa imperfeição. É por isso que o desprezo pelos
clássicos representa uma amnésia mutiladora, um empobrecimento dos
sentidos, um depauperamento da linguagem. E se o tema deste colóquio
é a viagem, aprendamos com os clássicos a alegria e a aventura do viajar,
metafórica prefiguração dessa outra aventura que exige, como os gregos
a imaginavam, saída armada da cabeça de Zeus, uma inteligência forte e
heróica, como forte e heróico deve ser o modo como se pensa e se vive.
51
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Mário Avelar

Os inevitáveis clássicos...
nossos contemporâneos

No passado mês de Junho a Academia das Ciências realizou uma sessão


de homenagem a Manuel Alegre. Numa breve troca de palavras já no final
da cerimónia confidenciei-lhe que tinha duas primeiras edições de livros
seus. Tal nada teria de especial não fossem estas de O Canto e as Armas
e Praça da Canção. Lembro que algo inocentemente, e sem saber quão
acertadas eram as minhas palavras, numa aula no meu então 5º ano de
Português (actual 9º do segundo ciclo do ensino básico), após uma divisão
de orações de Os Lusíadas, disse à minha professora que deveríamos ler
também poetas como Manuel Alegre que, apesar de jovens, eram já funda-
mentais na nossa literatura. De facto, estes e outros livros de poetas reve-
lados nos anos sessenta acompanharam a minha adolescência num misto
de revolta endógena a essa fase da vida que na altura se estendia ao clima
político e cultural dominante. Pertenço à última geração que cresceu lendo
versos na então instrução primária, que os continuou a ler no então liceu,
no meu caso recorrendo a vozes silenciadas colhidas em circuitos clandes-
tinos, e que, desde então, não deixou de a ler, e de ser, também por ela,
formado. Por isso mesmo não deixo de sentir perplexidade ao constatar a
sua tão proclamada balcanização na formação dos jovens.

A sua leitura e partilha acabou por se transformar em algo de central na


minha vida, embora com uma desfocagem face a esses já algo distantes
dias. De facto, desde há mais de vinte anos que o meu percurso académico
se tem vindo a centrar, não na literatura portuguesa, mas sim nas literaturas
americana e inglesa dos séculos XIX e XX, embora com um enfoque parti-
cular na primeira. Entre vários géneros possíveis, a poesia tem sido objecto
privilegiado desse meu percurso: na minha dissertação de Mestrado traba-
lhei os dois últimos livros de poemas de Herman Melville, na minha tese de
Doutoramento, o conjunto da poesia de Sylvia Plath, e, na minha lição das
provas de Agregação, a dimensão visual na poesia de Walt Whitman. Sem-
pre me interessou tentar desvendar a forma como o discurso poético que,
temporalmente, se encontrava próximo de mim, acolhia as alterações de um
real em constante e acelerada mutação. Tomei, porventura, como minhas as
palavras de Whitman em “Canto de mim mesmo”, que reproduzo de acordo
52
XVI Encontro de Literatura para Crianças
com a versão de José Agostinho Baptista: “Nunca houve mais princípio do
que agora, / Nem mais juventude ou velhice do que agora, / E nunca haverá
mais perfeição do que agora, / Nem mais Céu ou Inferno do que agora.”
(Whitman, 1992: 13) Quando me refiro à actualidade, não me refiro, porém,
a um segmento circunscrito ao instante presente; refiro-me, sim, ao espaço
mais dilatado de um paradigma iniciado em meados do século XIX e que se
prolongará, eventualmente, até hoje. Refiro-me a um paradigma marcado
pela abrangente reformulação do conceito de representação, e associado
à ênfase na mudança de ritmos quotidianos, na ace-leração do tempo, a
qual decorrerá da crescente importância dos meios de transporte (caminho
de ferro, automóvel, avião) e da emergente indústria dos media; na pas-
sagem, enfim, de uma sociedade arcaica rural para uma sociedade urbana
moderna. Não posso, por isso, deixar de lembrar o impacte que essa alte-
ração teve nas inovações de Turner. Mas lembro também como Cézanne
levou mais longe essas inovações, reformulando o conceito de perspectiva
e de mimesis, e abrindo caminho para as múltiplas rupturas na pintura dos
primeiros anos do século XX. Lembro a determinante viragem imposta por
Schonberg; a assimilação pelo texto musical de registos culturais distintos
realizada por Charles Ives em Três Lugares da Nova Inglaterra; ou os data-
dos e patuscos instrumentos criados pelos futuristas de modo a captar e
reproduzir as sonoridades da cidade industrial. Na sequência do legado
freudiano, lembro as rupturas face ao conceito de narração oitocentista,
realizadas, nas primeiras décadas do século XX, por Joyce em Ulysses,
por Faulkner em The Sound and Fury, ou por Virginia Woolf em The Waves.
Lembro, obviamente, o cinema, e, em particular, o pathos conseguido pela
montagem em Eisenstein. Lembro a polifonia dramática com a qual Eliot
propôs uma nova abordagem do lirismo. Lembro a consagração da fotogra-
fia como forma de expressão artística. A catalogação poderia prosseguir.

Num brevíssimo parêntesis, chamo a vossa atenção para uma forma de ex-
pressão artística que se consagrou a partir dos anos oitenta do século XX, e
que pode e deve ser explorada pedagogicamente, o video-clip. Lembro que
algumas das sátiras mais demolidoras a um certo tipo de media sensaciona-
listas, prenunciados e denunciados no século XIX por Oscar Wilde em “The
Soul of Man Under Socialism” surgem no video-clip de Peter Gabriel, The
Barry Williams Show (a pornografia dos reality shows) e no video-clip dos
REM, A Bad Day (neste caso, a logorreia da informação nos noticiários).

Depois deste parêntesis, proponho-vos que centremos a nossa atenção


em dois aspectos: em primeiro lugar, na radical mudança a nível de repre-
sentação que, generalizadamente, entre finais do século XIX e princípios
53
XVI Encontro de Literatura para Crianças

do século XX se opera nas diferentes formas de expressão artística; em


segundo lugar, na hospitalidade com que essas diferentes formas de ex-
pressão acolhem as inovações exógenas. Permitam-me que ilustre este úl-
timo aspecto através de T. S. Eliot, um poeta americano que viria a adquirir
a nacionalidade inglesa. Tanto em “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”,
de acordo com a versão portuguesa de João Almeida Flor, como em “Terra
Devastada”, segundo a versão portuguesa de Gualter Cunha, Eliot assimila
a estratégia cinematográfica da montagem e da elipse para contrapor dra-
maticamente fragmentos textuais com origens diversas. O facto de estes
fragmentos de linguagem terem origens distintas, cria uma justaposição
de texturas, tal como na arte dada, simultaneamente exibindo uma polifo-
nia de sentidos, tensões, e expectativas, obviamente evocadora da arte da
música. Esta interacção entre a literatura (a poesia em particular), e outras
formas de expressão artística, esta intertextualidade, se quisermos recor-
rer a um termo bastante disseminado tanto no actual jargão crítico como
no pedagógico, sustenta os momentos maiores da poesia oitocentista e
novecentista anglo-americana. Alguns breves exemplos: Wordsworth es-
creve uma elegia tomando como impulso um quadro de George Beaumont;
Keats reflecte sobre a perenidade da poesia e da arte tendo como impulso
a observação de um vaso grego com o qual se cruza no British Museum;
Shelley aborda a efemeridade do poder temporal através das ruínas de uma
estátua encontrada no deserto; Whitman concebe o livro da sua vida numa
constante revisão da sua identidade através das fotografias que inclui nas
sucessivas reedições e que espelham tanto a degenerescência do corpo
como um irónico jogo com o leitor; Melville reconhece nos monumentos
da Grécia Antiga os vestígios de um sentido que a América do seu tempo
não lhe oferece; Williams descobre em Breughel o estoicismo que de algum
modo lhe permite revisitar a fundação setecentista da nacionalidade ameri-
cana; Frank O’Hara assimila a estética dada na sua poesia, enquanto Ash-
bery realiza, inicialmente, algo de idêntico através do surrealismo, para mais
tarde ir descobrir no minimalismo musical uma perturbadora experiência de
leitura; Sylvia Plath toma De Chirico como leit-motiv para um reencontro
com os seus freudianos fantasmas. A lista poderia prosseguir por muito
mais tempo, tão fértil e intensa é a tradição desse diálogo entre a poesia e
outras artes tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra.

Outro aspecto deve ser mencionado: quando, em 1981, estudei pela primei-
ra vez a poesia de Melville, não foi apenas a Antiguidade Clássica que ali
se insinuou, já que esta poesia iluminava caminhos onde se antecipavam
os cenários dramáticos do poeta de Alexandria Constantino Kavafys e do
nosso Jorge de Sena. Recorde-se que Sena transpôs essa tradição para
54
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Portugal através desses momentos maiores da nossa poesia do século XX
que são Metamorfoses e Arte da Música, não deixan- do de a recordar no
posfácio a eles destinado, e no seu livro A Literatura Inglesa. A geração
que lhe sucedeu, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre,
Joaquim Manuel Magalhães, prolongá-la-ia em novas direcções. Importa,
no entanto, acentuar que esse diálogo não se limita a uma reprodução do
objecto artístico pela linguagem poética. Como referi através do exemplo
da assimilação da música minimal por Ashbery, esse diálogo pode significar
uma reformulação do próprio conceito de leitura. Em muitos dos exemplos
acima mencionados, o poema descreve obras de arte presentes ou imagi-
nadas, de acordo com as diferentes estratégias ekphrásticas que têm como
momento fundador o chamado episódio do “escudo de Aquiles”, narrado
por Homero na Ilíada. Surgem, todavia, interiorizações mais subtis como
aquela que William Carlos Williams leva a cabo em vários poemas que ante-
cedem a sua, já referida, abordagem sistemática de Brueghel; por exemplo,
a pluralidade de perspectivas consagrada pelo cubismo é transposta para a
poesia, por Williams, através de um jogo sintáctico com a quebra de verso
que permite a coexistência semântica de uma pluralidade de sentidos, ou
.... de perspectivas.

Igualmente no plano ensaístico, os poetas americanos e os poetas ingleses


têm, desde há muito, vindo a desenvolver reflexões em torno de outras
formas de expressão artística. Não elaboro nenhum catálogo destas re-
flexões já que ele seria extensíssimo e poderia, até, simular um mero sno-
bismo académico. Cito, por isso, apenas o ensaio de Ezra Pound, sobre
o escultor Henry Gaudier Brezeska, e o de Ted Hughes, sobre o escultor
Leonard Baskin. Embora subordinadas a agendas pessoais distintas, tanto
num caso como noutro a reflexão em torno de uma forma de expressão
artística exógena permite aos poetas reflectir, inviamente, sobre aquelas
que consideram ser as suas próprias estratégias do momento; isto é, a
interacção dinâmica entre as diferentes artes no vorticismo, para Pound,
e a vitalidade do mito num espaço de dissolução das metanarrativas, para
Hughes. Estes são apenas alguns exemplos de possibilidades de leitura
(não mencionei os diálogos com os blues e com o jazz, os quais, por si só,
poderiam constituir espaço para inúmeras e apaixonantes reflexões e des-
cobertas; no caso português lembro a recente e impressionante Antologia
de poesia de língua portuguesa onde o jazz é convocado, a qual foi compi-
lada por José Duarte e Ricardo António Alves, e intitulada Poezz)... possibi-
lidades de leitura, portanto, que ilustram a riqueza tanto daquelas tradições
literárias como da reflexão crítica e teórica indissociáveis da criação poé-
tica, uma reflexão que, num fecundo diálogo, invade novos territórios para,
55
XVI Encontro de Literatura para Crianças

no retorno, permitir que o discurso poético seja por eles contaminado. Veja-
-se, no caso português, os ensaios sobre pintura de João Miguel Fernandes
Jorge que poderão permitir desvendar, obliquamente, linhas de leitura para
a sua poesia.

Tanto na poesia americana como na poesia inglesa, a análise de um texto


poético contemporâno pressupõe, portanto, nos seus momentos maiores,
um olhar atento para as diferentes vanguardas estéticas; o poema revela-
-se, afinal, enquanto espaço de queda de inovações várias que perturbam
a sintaxe, evocam possibilidades de sentido, ou reproduzem estratégias
visuais (perspectiva, cor, tonalidades, polifonias, ritmos...). Para a leitura do
poema não importa apenas reconhecer uma sintaxe ou a articulação com
tradições rítmicas e prosódicas que nos são estranhas (o pentâmetro jâm-
bico, por exemplo, não é de fácil percepção a um leitor português). Importa,
também, estar atento à música que se vai fazendo (desde a mais erudita, à
pop, passando pelas fusões várias; recorde-se o exemplo que dei há pouco
de John Ashbery), a uma “qualquer” exposição de pintura, fotografia ou
escultura, ao filme que escapa às convenções de leitura a que nos habituá-
mos; às artes que emergem, como o já referido video-clip; importa estar
atentos a todos estes aspectos, pois, em qualquer momento, podemos ser
surpreendidos por um poema que exibe subtis diálogos com outras formas
de expressão artística.

A leitura de um poema pressupõe, deste modo, atenção à novidade, dis-


ponibilidade intelectual e capacidade para desvendar essa inovação e para
saber distingui-la da mera reprodução ou do artifício. Ler significa, portanto,
saber distinguir, saber escolher. Poder-se-á considerar que este pressupos-
to implica algo que o discurso dominante tem vindo a questionar, cultura e
gosto; no entanto, a modernidade exige a sua recuperação e a sua refor-
mulação, não de acordo com a caduca dicotomia “Alta Cultura” vs “Cultura
Popular”, mas sim num vasto campo de interpenetrações e consequentes
perturbações estéticas. Qual pesquisa arqueológica, a exploração do texto
passará, assim, por diferentes níveis de leitura; pela superação de suces-
sivas camadas até ao contacto com um nível de profundidade. Este é um
aspecto relevante para quem faz do seu quotidiano um constante encontro
com os mais jovens. Estarão eles na posse dos instrumentos que lhes pos-
sibilitem penetrar nesse imenso espaço de diálogos tantas vezes insinua-
dos apenas? Obviamente que não. Tão pouco estarão muitos daqueles que
com eles trabalham. Tal não significa, porém, que não se possam conceber
estratégias de convocação do texto que lhes permitam tomar consciência
desses níveis vários de leitura. Aponto apenas dois exemplos de disser-
56
XVI Encontro de Literatura para Crianças
tações de Mestrado por mim orientadas, uma que recorreu ao hipertexto
para explorar a leitura e a escrita do texto poético, destinada a alunos do
secundário de inglês, e outra que recorreu a textos poéticos relacionados
com a pintura, destinada a alunos do terceiro ciclo do ensino básico de
inglês. Ambas foram testadas com sucesso. Ao referir sucesso tenho em
conta, também, a receptividade dos alunos, entre os quais se encontravam
casos de dificuldade a nível da aprendizagem.

A leitura implica, portanto, expandir conhecimentos e distinguir. A alternativa


passará pela absorção passiva de todo e qualquer objecto, aquilo que será
o oposto da cidadania que se deseja, e que poderemos designar síndrome
de Zelig. Recordar-se-ão, porventura, da personagem do filme homónimo
criada por Woody Allen. Esta personagem percorre o século XX, passando
pelas mais variadas situações culturais ou políticas, da emergência do jazz
ao nazismo. Qual camaleão, Zelig assume a identidade dominante em to-
dos os ambientes com os quais, ao longo da vida, vai contactando; por
exemplo: fica negro entre músicos de uma banda de jazz, transforma-se
num judeu hortodoxo no seio de uma comunidade judaica, veste a farda
SS durante um comício nazi. Allan Bloom, num livro que causou consi-
derável polémica nos Estados Unidos, The Closing of the American Mind,
e que em português obteve a insólita designação A Cultura Inculta, reco-
nheceu em Zelig a postura politicamente correcta incapaz de assumir uma
posição crítica face a um determinado objecto, devido ao receio de poder
ser acusada de discriminação. Importa regressar a esta questão um pouco
mais adiante. Dever-se-á, todavia, desde já assumir que a nossa identidade
passa pelo encontro com e pelo reco-nhecimento de outras identidades.
Só se as soubermos descodificar, poderemos avaliar qual a sua relevância.
E para o fazer, refiro-me ainda e sempre ao texto poético, devemos saber
desvendar os tais nexos intertextuais. E será apenas a isto que estamos
obrigados? Se o que está aqui em causa é o aqui e agora, aquilo que se
escreve hoje, motivado pelas inquietações do presente e das exigências de
superação face a quem se antecipou nas inovações da escrita, não deve ra-
surar a importância do passado. Vejamos: então, se estou a ler algo escrito
por alguém que não se encontra distante de mim no tempo, para que me
interessará, afinal, ler aqueles que parecem estar demasiado longe de mim?
Valerá a pena lê-los? O que é que eles me podem transmitir de verdadei-
ramente significativo? Lembremos, de novo, o exemplo de Jorge de Sena.
Quando há uns anos atrás, no âmbito de um trabalho que me tem vindo a
ocupar (um livro sobre a Literatura e as Artes), analisei com mais atenção a
tradição ekphrástica em Metamorfoses, constatei que Sena explorava todas
as vertentes que esta estratégia de enunciação conhecera na Antiguidade
57
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Clássica, as quais, obviamente, não importa aqui desenvolver. Ao falar aos


seus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, ao pôr Camões a dirigir-se aos
seus contemporâneos, ao reflectir sobre a nave de Alcobaça, Sena am-
pliava as suas reflexões através das possibilidades de enunciação espe-
cíficas que determinados subgéneros poéticos clássicos lhe transmitiam.
De igual modo, William Carlos Williams reflecte inviamente sobre a América
do seu tempo através, por exemplo, do quadro de Breughel que ironica-
mente retoma a narrativa mítica da queda de Ícaro; através dele, Williams
elabora acerca da actualidade e das virtualidades da moral estoica. Para ler
Williams, um poeta contemporâneo, devemos, portanto, em primeiro lugar,
conhecer as tradições prosódicas face às quais ele pretende inovar poeti-
camente, para assim prosseguir a tradição épica whitmaniana; em segundo
lugar, devemos ter noções mínimas acerca da obra de Breughel; em terceiro
lugar, devemos considerar os princípios estóicos; e, em quarto e último
lugar, devemos estar conscientes das narrativas míticas clássicas. Ou seja,
para ler um poeta de hoje devemos forçosamente regressar ao passado
cultural da nossa civilização grego-romana e judaico-cristã.

Além disso, quando falo, por exemplo, de Sena, Williams ou Ted Hughes, es-
tou, afinal, a falar de clássicos meus contemporâneos, isto é, falo daqueles
cujas identidades se destacam das que os antecederam, e, por isso mes-
mo, superaram já a efemeridade e resistirão à erosão do tempo; daqueles
que, de acordo com a expressão de Sena, “especularam emocionalmente
em verso”, e me transmitiram algo que me permite reflectir esteticamente.
Saber distinguir o trigo do joio, percepcionar onde a novidade se insinua,
onde a inovação se distingue da reprodução, é, portanto, o desafio que se
me coloca enquanto investigador e docente de literatura contemporânea.
Mas, porque sou também professor, qual será o testemunho que trans-
mito aos meus alunos? Creio que este testemunho é, fundamentalmente,
intelectual e ético.

Testemunho intelectual porque a leitura dos textos que me têm acompanha-


do ao longo dos anos e daqueles que virei entretanto a descobrir, revelam
uma perturbação face à solenidade dos cânones e uma urbanidade que
obriga à hospitalidade face ao diferente, ao diálogo para além das fronteiras
da “minha aldeia” (como ilustra o exemplo do percurso de Melville para
Sena e Cavafis). Uma urbanidade que permite superar o provincanismo.

Testemunho ético porque ele se afigura enquanto apelo à responsabilidade


pessoal e à liberdade. Recordando o já mencionado poema de Sena, “Não
sei meus filhos que mundo será o vosso,” confesso que não quero que os
58
XVI Encontro de Literatura para Crianças
meus filhos trilhem os meus caminhos; prefiro acreditar que eles desco-
brirão os seus próprios caminhos, experimentarão inevitáveis decepções
e, por fim, serão felizes e livres. Recordo algo que Kierkegaard escreveu
algures: o difícil não é deter alguém com quem nos cruzamos na rua, agar-
rando-o pelo braço e obrigando-o a ouvir aquilo que lhe queremos dizer; o
que é difícil é cruzarmo-nos com alguém, transmitir o que temos para lhe
dizer, sem interromper nem o seu percurso nem o nosso. Ou, como es-
creveu Whitman em “Canto de mim mesmo”, que uma vez mais reproduzo
de acordo com a versão de José Agostinho Baptista: “Não terás coisas
em segunda ou terceira mão, nem verás pelos olhos dos mortos, nem te
alimentarás dos espectros nos livros,/ Nem através dos meus olhos verás,
nem de mim terás as coisas, / Escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás.”
(Whitman, 1992: 11)

Na minha perspectiva, educar não significa orientar normativamente mas


sim... fornecer instrumentos que permitam disponibilidade intelectual e a
consequente escolha inteligente e livre de caminhos; que permitam des-
vendar o que de fascinante nos rodeia, distinguindo-o da banalidade in-
telectual e estética; é nesse sentido que tanto o testemunho intelectual
como o testemunho ético são essenciais. No limite o que se pretende,
encontra-se sintetizado num belo e perturbante quadro de Ticciano, Uma
Alegoria da Prudência. Nele o pintor reproduz três rostos humanos, o de
um homem em plena maturidade que nos olha de frente, o de um velho de
perfil, à sua direita, e o de um jovem, também de perfil, à sua esquerda; sob
cada um deles encontram-se, respectivamente, um leão, uma raposa e um
cão. Independentemente de outras leituras possíveis que passam, também,
pela representação de uma narrativa familiar (o velho seria o próprio pin-
tor, o homem, o seu filho e colaborador Orazio, e o jovem, o primo Marco
Vecellio), gosto de reconhecer nestes rostos e no diálogo que os diferentes
animais com que eles estabelecem os versos do Eclesiastes, não invali-
dado, aliás, pela inscrição existente no quadro: “Do passado, o homem do
presente age com prudência para não pôr em perigo o futuro.” Perdoar-me-
-ão que os transcreva a partir da versão da Bíblia protestante inglesa do Rei
Jaime mas a minha formação anglo-saxónica e a minha memória soissante
huitard tardia assim mo exige: “For every reason there is a season and a
time for every purpose under the heaven.” Este quadro evoca a sabedoria
do Eclesiastes que nos leva a reflectir sobre a necessidade de viver o pre-
sente sabendo aceitar a passagem do tempo; algo que eu associo ao facto
de saber descobrir os sinais de mudança que nele se insinuam. A sabedoria
deverá constituir, também, um objectivo a atingir por aquelas e aqueles a
quem nos dirigimos; a sabedoria tão rasurada nos discursos que sistemati-
59
XVI Encontro de Literatura para Crianças

camente nos reiteram competências como se estas fossem fins em si e não


meros instrumentos para atingir algo mais.

Afinal, o verdadeiro objectivo da nossa profissão pode ser reconhecido


numa frase proferida por um grande actor americano, James Stewart, acer-
ca do seu percurso profissional: “Se tivermos personalidade, se tivermos
sorte, se Deus nos ajudar, damos às pessoas pequenos pedaços de tempo
que elas não esquecem.” Espero que os “pequenos pedaços de tempo”
que há mais de vinte anos tenho vindo a partilhar com os meus alunos e
orientandos, lhes tenha permitido desvendar mais intensamente a realidade
que os cerca, permitindo-lhes, assim, serem mais livres.

60
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Violante Florêncio

Presidente da Mesa

Começarei por agradecer o convite feito pela Fundação Gulbenkian para


estar nesta mesa. É sempre uma honra poder colaborar com a Fundação.
Queria agradecer a vossa presença e a presença dos três elementos que
estão aqui hoje para nos falarem de alguns dos nossos clássicos escritos
para crianças em Portugal.

Vamos abordar ao longo da sessão alguns autores mas, antes de mais,


como é normal, vamos tentar conhecer um pouco, se é que ainda não co-
nhecemos, os convidados que estão na mesa.

Começo pela Professora Doutora Glória Bastos. É para mim um prazer es-
pecial apresentar a Glória, de quem fui colega, já lá vão uns aninhos. A
Glória trabalha na Universidade Aberta e já na altura do seu mestrado em
Cultura e Literatura Portuguesas trabalhou na obra de Virgínia de Castro
Almeida, uma das autoras que se irá abordar nesta sessão. Além disso,
penso que é com particular prazer e quase orgulho meu, os colegas têm
sempre estas manias de ter algum orgulho no que os seus amigos fazem,
que informo que a Glória fez uma tese de doutoramento sobre literatura
dramática, cujo título é “A construção do social e do individual na literatura
dramática para crianças em Portugal”. Desenvolve também muitas activi-
dades relacionadas com a leitura, com a divulgação e dinamização do livro
e tem muito trabalho de formação efectuado nessa área.

O Professor José Carlos Seabra Pereira é professor da Faculdade de Letras


da Universidade de Coimbra. Tem vários estudos publicados e, porque são
muitos, eu vou seleccionar apenas aqueles que tive o prazer de estudar
afincadamente: Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Do fim
do século ao tempo do Orpheu. Tem vindo a trabalhar um leque enorme
de autores como, por exemplo, Cesário Verde, Camilo Pessanha, António
Nobre, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa, Sá Carneiro, João de Barros,
Jaime Cortesão, Aquilino e também Ana de Castro Osório, que, aliás, será
o autor que irá abordar.

Tenho agora o privilégio de apresentar a Alice Vieira, porque, se os ingleses


61
XVI Encontro de Literatura para Crianças

têm o seu Carroll com a sua Alice, nós temos a nossa Alice, ponto final. Te-
nho que lembrar que a nossa Alice, para além de ser a nossa Alice, também
é jornalista e penso que é meritório dizê-lo. A obra de Alice Vieira é conhe-
cida de todos os presentes. É uma obra feita com um cuidado especial para
um público mais pequeno e para um público maiorzinho. Muita gente, nesta
sala, terá acompanhado já não a Alice, mas as Alices da Alice, as Rosas,
as Paulinas, a Ana Marta; além disso, recordo sempre um trabalho, que, a
mim, me agrada particularmente, que são as suas recriações para o público
infantil, nomeadamente, os recontos dos contos tradicionais portugueses.

Ora os autores que aqui vão ser abordados, sempre na perspectiva de se-
rem, por um lado, clássicos, que escreveram livros que já são um suporte
de toda a nossa literatura para a infância, mas também porque contêm nar-
rativas de viagens vão ser, e por esta ordem, Virgínia de Castro e Almeida
e Raul Brandão, Ana de Castro Osório e, finalmente, Adolfo Simões Müller,
que a Alice apresentará.

Quero agrdecer as intervenções dos nossos convidados e, para terminar


gostava de vos dar uma definção ampla de “clássico” da autoria de Ítalo
Calvino: “clássicos são os livros que constituem uma riqueza para quem os
leu e amou”.

Mesmo que não nos recordemos de todos os livros que lemos, o mais im-
portante é irmo-nos educando sucessivamente a seleccionar estética e eti-
camente aquilo que vamos lendo. É por isso que julgo tão importante que,
mesmo que um livro pareça menos apetecível do ponto de vista do que se
passa hoje, que quem tem a responsabilidade de educar, ou seja peneirar,
seleccionar, hierarquizar, tem mesmo de separar o que não tem uma lingua-
gem que valha a pena. Quantas mais propostas vierem, melhor, e foi isso
que tentámos fazer aqui: trazer algumas dessas propostas, a hierarquiza-
ção agora é vossa!

62
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Glória Bastos

Livros clássicos com viagens

“Toda a viagem é aprendizagem, seja qual for o seu propósito consciente.


Quem não aprendeu não viajou: deslocou-se apenas”, afirma o professor
Stephen Reckert1 no seu esboço de uma tipologia da viagem na literatura.

Esta é, na verdade, uma ideia central em diversas obras portuguesas para


crianças, dos princípios do século XX. Encontramos aí o topus da viagem
como aprendizagem e como descrição do mundo, numa travessia que, mais
do que dar a conhecer um determinado espaço geográfico, vai configurar
visões do mundo e opções de conhecimento, patentes na construção tex-
tual. O convite que agora faço é para que partamos hoje, também nós,
numa descoberta de alguns desses “clássicos com viagens”.

Os comentários que vou fazer centram-se em dois textos escritos por per-
sonalidades bastante distintas, e publicados nos princípios do século XX,
mas em tempos históricos marcados igualmente por diferentes vivências.
São esses livros, por ordem de publicação, Céu aberto, de Virgínia de Cas-
tro e Almeida, publicado em 1907 (tenho aqui a 7.ª edição, de 1958) e Por-
tugal pequenino, de Maria Angelina e Raul Brandão, publicado em 1930.

Em relação a estas duas obras esclareço, desde já, que a viagem actua a
dois níveis, que correm em paralelo. Por um lado, a deslocação subjacente
à viagem é pretexto para a transmissão de informações, sendo um motor
de conhecimento e aprendizagem sobre o mundo. A erudição constitui um
dos motores centrais da narrativa – sobretudo em Céu aberto –, mesmo
se aqui e ali é atenuada por situações mais consentâneas com o universo
infantil, no qual o lúdico desempenha um papel assinalável. Mas a viagem
será, sobretudo, um movimento essencial de indagação e de construção da
identidade das personagens infantis que protagonizam estas histórias.

Embora se possa identificar esse paralelismo ao nível da “estrutura pro-


funda” dos textos, os dois níveis que mencionei concretizam-se de forma
bastante distinta e assumem pesos igualmente diferenciados no livro de
1 “O signo da viagem”, in Stephen Reckert e Y. K. Centeno (org.), A viagem (entre o real e o imaginário),
Lisboa: Arcádia, 1983, p. 20.
63
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Virgínia de Casto e Almeida e no de Maria Angelina e Raul Brandão.

Vejamos então agora como se vão operacionalizar nas histórias.

Céu aberto narra-nos a viagem empreendida por uma família burguesa, do


princípio do século XX, constituída pelos pais, Dinis e Maria, um filho e uma
filha, Rodrigo e Rita, aos quais se juntam o excêntrico primo Jeremias e
o sobrinho órfão, João. Estas personagens irão, naturalmente, cruzar-se
com outras durante a travessia. A primeira parte da viagem é de barco, de
Lisboa a Génova, e daqui seguem de comboio, passando por Pisa, Roma,
Nápoles, Veneza e Milão.

O didactismo, a urgência de transmitir conhecimentos, apresenta-se como


a característica mais relevante da narrativa. Deparamos a cada passo –
quase que a cada página – com um discurso explicativo/educativo, numa
espécie de ostentação de um saber enciclopédico sobre o mundo. Esse
discurso surge, curiosamente, quase sempre envolto numa situação per-
tencendo tipicamente ao universo infantil: o contar histórias. Na verdade,
grande parte dos segmentos mais relevantes desses episódios resulta de
um pedido das figuras infantis, dirigido aos adultos, para que estes clari-
fiquem ou expliquem determinado aspecto, assumindo assim o papel de
contadores de histórias perante as crianças-ouvintes. Neste contexto, refi-
ra-se que o verbo “contar” constitui um dos elementos lexicais nucleares da
narrativa (assim como o termo “história”). As formas clássicas de introdução
da narração de histórias vão surgir, naturalmente, associadas a este facto:
“Era uma vez um homem chamado Papin.” (p. 99); “Há 500 anos governava
em Portugal um grande rei que se chamava D. João I. Havia nesse tempo
um costume muito bonito” (p. 114); “O que eu vou contar passou-se num
tempo muito mais antigo” (p. 150); “Era uma vez um país que podia ser dos
mais ricos e fortes se os seus habitantes fossem unidos” ( p 166) – segue-se
depois a história da unificação da Itália e da figura de Garibaldi que é intro-
duzida nos seguintes termos: “Vivia naquele tempo um italiano que fazia o
espanto de todo o mundo” (p. 172); etc.

Esta característica de Céu aberto é facilitada pelo facto de estarmos pe-


rante uma narrativa que recorre à forma dialogada – princípio que vem do
século XIX e, mais distante ainda, da República, de Platão, que justifica o
valor do diálogo como o tipo de discurso mais agradável e acessível ao
leitor. Evidentemente que o privilégio dado à forma dialogada acarreta de-
terminados resultados, com destaque para o relativo apagamento da figura
do narrador em benefício da voz das personagens.
64
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Refira-se ainda que esta característica constitui, em termos da construção
textual, um dos traços que mais diferenciam esta obra do livro de Raul
Brandão e Maria Angelina, onde o diálogo é pouco relevante, com a clara
primazia para a voz e para as longas reflexões do narrador, depositário pri-
vilegiado do saber sobre o mundo.

Em Céu aberto, a mensagem do saber é veiculada, como não poderia


deixar de ser, pelos adultos. Mas não qualquer adulto. Dos quatro adultos
que assumem posição de destaque só dois, efectivamente, cumprem os
requisitos para assumir o discurso explicativo-educativo. Trata-se de Dinis,
o pai, e do sr. Novais, que conhecem durante a viagem, no navio. Ficam de
fora, Maria, a mãe, e o primo Jeremias. A caracterização que é feita des-
tas quatro personagens elucida quanto aos traços considerados desejáveis
para a função magistral que lhes é conferida. Dinis e o Sr. Novais estabe-
lecem facilmente uma relação empática com as crianças, sendo o segundo
um “velho de lunetas e grandes barbas brancas”; em relação a Maria, talvez
o seu ponto fraco esteja no facto de ser ainda “muito jovem”, no que se
refere ao primo Jeremias, este é apresentado como um excêntrico pouco
sociável.

Esse discurso educativo é relativamente amplo, versando assuntos muito


diversos, e cumprindo assim as intenções formativas que a autora escla-
rece no prefácio. Geografia, História, Arte, Biologia são alguns dos tópicos
que vão sendo sucessivamente abordados, em segmentos textuais que
seguem sempre a mesma estrutura:

1. observação/referência a um elemento desconhecido


2. pedido das crianças para que se conte a sua “História”
3. satisfação do pedido pelo adulto

Vejamos um exemplo, entre muitos, deste tipo de ocorrência:

“O Sr. Novais – Vamos para a terra de Galileu! […]


Rita – Quem é Galileu?
O Sr. Novais – Era um grande homem, um grande sábio que viveu há trezen-
tos anos.” (p. 176-177)

Há, diríamos, uma espécie de contrato informativo que é repetidamente


posto em cena, conduzindo as personagens – e, não podemos esquecer,
os leitores visados – de uma posição de menos-saber para mais-saber.
Verifica-se quase que uma fobia ao “vazio informativo”, tal a quantidade e a
65
XVI Encontro de Literatura para Crianças

frequência de situações que têm como objectivo mais imediato preencher


as lacunas de conhecimento dos jovens protagonistas. Aliás, no prefácio
esclarece-se bem que se pretende aproveitar a atenção das crianças – a
sua natural curiosidade – para lhes “incutir conhecimentos úteis”.

A esta permanente atenção à “lição das coisas”, que configura um pro-


cesso cognitivo de conhecimento do mundo, associa-se, como se referiu
no início, um outro percurso – o da maturação psicológica. Nesta acep-
ção, a viagem/deslocação num espaço físico determinado (Lisboa – Milão)
assume-se ainda como viagem/percurso iniciático, projectando no futuro
a continuidade desse trajecto, concretamente ao avançar-se com dados
referentes a situações que as personagens irão enfrentar posteriormente
(e que a obra seguinte de Virgínia de Castro e Almeida, Em pleno azul, irá
retratar).

Assistimos, pois, a um movimento na procura da mudança, pretendendo-


-se desenvolver igualmente um projecto de preparação das crianças para
a vida, um movimento em direcção à sua maturidade. No início do livro os
dois rapazes são apenas uns “homenzinhos” (p. 27), e o intuito da viagem
é que se tornem “gente” (p. 27), deixando de agir como uns “cãezinhos”
andando cegamente atrás dos adultos (ideia repetida nas págs. 32 e 264).
Crescimento psicológico e autonomia são as duas ideias-chave sublinha-
das pela narrativa.

E quais são os vectores dessa maturação em relação às três personagens


crianças? Rodrigo, caracterizado por um certo auto-centramento (egoísmo),
vai aprender progressivamente o caminho da solidariedade; João, marcado
por um certo excesso na expressão dos sentimentos, vai aprender o va-
lor do saber (prometendo ser mais estudioso). A encenação de uma certa
oposição nas atitudes destas duas personagens tem como intuito valorizar
um certo modo de estar social, caracterizado por uma relativa contenção
nas atitudes – procura do ponto de equilíbrio entre a atitude solipsista do
primeiro e a preocupação extrema do segundo -, dando-se primazia à ideia
do senso comum, segundo a qual, “no meio é que está a virtude”. Em rela-
ção a Rita, é menos evidente a sua evolução, apontando-se para a im-
portância da autonomia e da bondade.

São estes os valores morais que se destacam, predominando uma lição


“social” que visa a reprodução dos modelos adultos em presença, sobre-
tudo na figura dos pais: Dinis – homem trabalhador, habituado a estudar,
alegre e bom; Maria – senhora bonita, expressão de bondade e doçura.
66
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Partimos então desta ideia de viagem como aprendizagem de si para visi-
tarmos o livro de Maria Angelina e Raul Brandão. Essa é uma vertente cen-
tral no livro Portugal pequenino. É evidente que a deslocação através de
um espaço geográfico – neste caso o espaço, como está anunciado no
título, é o território português, e não direi de Norte a Sul do país, como se
costuma dizer, porque aqui o percurso empreendido não é esse, ficando
mais correcto referir do litoral para o interior do país – constitui um núcleo
importante na obra – e não pretendo tirar mérito a essa componente.

A este respeito, ou seja, no que se refere ao percurso geográfico, podemos


identificar duas partes na obra. Seguindo a edição da Vega (1985), que tem
173 páginas, mais ou menos a meio do livro – concretamente na p. 83 – te-
mos uma espécie de momento síntese que sumaria o espaço já percorrido
pelas personagens: “Viram tudo, o Algarve que é um pomar cultivado com
esmero, e a costa, a mais recortada e piscosa de Portugal, com as suas
praias esplêndidas, a água que às vezes parece caldo azul e ao pé dos
areais as armações do atum, o peixe que com a sardinha dá mais dinheiro
em Portugal. Voaram ao acaso. Voltaram para o norte e meses depois, em
cima do banco da sardinha, deixaram-se vogar sobre as águas até ao sul.
Descobriram os cabos formidáveis entrando pelo mar dentro, o Mondego
ao pé da Figueira, o dramático carvoeiro ao pé de Peniche, e as suas rochas
figurando castelos, onde o mar brame se descanso, o da Roca, varanda
da serra de Sintra sobre o mar, o Raso e o Espichel, o de Sines e o de S.
Vicente com a ponta de Sagres…
Que linda terra!”

Esta síntese conclui a parte do livro em que a matriz de Os Pescadores está


presente. A partir daqui a viagem segue para as terras do interior – interior
algarvio, Alentejo e Ribatejo, e sobrevoa-se Lisboa.

Mas o que, de forma evidente, sobressai neste texto é a sua dimensão pro-
fundamente reflexiva, que vai estabelecer uma aliança forte com o percurso
de maturação da personagem central – o Ruço de Má Pêlo. Se em Céu
aberto, como se apontou, tínhamos o domínio do diálogo, revelando uma
estrutura textual mais constante, aqui o diálogo é menos marcante, alter-
nando com o registo narrativo e reflexivo, apontando para uma escrita frag-
mentada, característica, aliás, de outras obras em prosa de Raul Brandão.

A narrativa, no tempo passado e na terceira pessoa, das peripécias vividas


pelo Ruço de Má Pêlo e pela sua companheira, a Pisca, entretece-se com
uma voz – poderia também dizer uma consciência – que, na primeira pes-
67
XVI Encontro de Literatura para Crianças

soa, traz até ao presente a realidade observada. Uma realidade em que,


mais do que o espaço geográfico, interessa sobretudo pelas figuras que
o habitam – figuras humanas, mas também os animais, numa intensa sim-
biose cósmica que atravessa todo o livro. Vejam-se, como exemplos em-
blemáticos, os episódios sobre as andorinhas (p. 38), os pardais (p. 127), ou
sobre o homem do Douro (p. 60).

O que essencialmente se verifica neste texto, por contraste com Céu aberto,
em que a realidade é objecto de uma leitura fundamentada num registo de
inscrição pragmática, é que o processo contemplativo/reflexivo ocupa um
lugar determinante – e que encontrará alguma similitude na personagem do
primo Jeremias, o excêntrico contemplativo da outra obra. Podemos neste
sentido afirmar que, enquanto no livro Céu aberto predomina um discurso
de tipo didáctico-magistral, em Portugal pequenino salienta-se a matriz
descritiva-reflexiva.

Mas esse aspecto concretiza-se aqui segundo um processo activo, e a força


da dimensão onírica que caracteriza a narrativa, ao mesmo tempo que de-
compõe a realidade – nomeadamente através das sucessivas metamorfo-
ses por que passam as personagens centrais – afirma-se como um caminho
profundo e alternativo de conhecimento. É neste sentido que a viagem pela
realidade telúrica, e que dá a conhecer os recursos naturais e humanos de
Portugal – desde a fauna, com especial detalhe para algumas espécies ani-
mais, e a flora, às actividades humanas – se associa a uma outra viagem, a
viagem interior.

Esta viagem interior surge construída de acordo com o paradigma ascen-


sional – com alguns percalços pelo meio – que conduz no final, simbolica-
mente, à redenção da personagem central. Acontece que o Ruço de Má
Pêlo, conhecido pelas maldades que faz aos animais, é condenado pela
Bruxa das Portelas a vaguear sem destino, sendo transformado sucessi-
vamente em diferentes elementos da natureza: saltão – penedo do Marão
– gota de água (chuva) – gaivota – cegonha – pardal – rã – grilo – e, final-
mente, andorinha.

Com o finalizar do sonho – pois tudo não passará afinal de um sonho – o


Ruço de Má Pêlo regressa ao seu espaço familiar, mas entretanto operou-
-se uma transformação: a viagem/sonho permitiu-lhe descobrir o verda-
deiro sentido da vida e da força da amizade. Uma amizade que fez com que
a Pisca partilhasse do mesmo fadário, mesmo sem ser obrigada a fazê-lo.
Esta é a figura mais madura, capaz da “transferência objectal dos seus afec-
68
XVI Encontro de Literatura para Crianças
tos”, como observa com perspicácia Maria João Reynaud2. Mas o mesmo
não acontece com o Ruço, cuja atitude solipsista faz com que esteja cen-
trado apenas em si, permanecendo sem “alma”. Como dirá a Pisca, “Ele
não sabe nada, não conhece ninguém, nem a mim. Com quem viveu sem-
pre, me conhece. É um corpo sem alma” (p. 166). E é para conquistar essa
alma, ou seja, a capacidade de compreender, de dialogar e de sentir com
o outro, que a viagem tem de realizar-se. Esse momento acontece quando
a Pisca, transformada, como ele, em andorinha, desfalece esgotada com
o frio. Perante a iminência da sua morte, o pensamento do Ruço dirige-se
finalmente para a companheira: “Meu Deus, salvai-a a ela!”.

Tal como na Maravilhosa viagem de Nils Holgersson (1907), de Selma


Langerloff, obra com a qual este livro é tantas vezes comparado, temos
a metamorfose como processo de redenção da figura humana. A viagem
iniciática é percurso de expiação e de aprendizagem, proporcionando o
crescimento psicológico dos dois protagonistas, simbolizando, desta ma-
neira, a passagem da infância à adolescência. É desta forma também te-
matizado o “problema existencial da dor do crescimento e a conflitualidade
subjacente aos sentimentos mais íntimos”3. Em contacto com a natureza,
sobretudo na convivência com os bichos, cuja linguagem passam a com-
preender, a vida vai-se-lhes descobrindo. E vai-se descobrindo também a
capacidade de sonhar, sendo o “sonho” uma das palavras nucleares desta
obra, que se corporiza, por exemplo, numa expressão e numa figura par-
ticularmente feliz, a do “lavrador dos Sonhos”, espécie de S. Francisco, que
prega os valores éticos e o sentido mais profundo da vida.

Por comparação com as restantes duas obras mencionadas, esta dimen-


são ética e de reflexão social é efectivamente mais densa e assume novos
contornos em Portugal pequenino. Há uma vertente social que aqui aparece
destacada e há sobretudo uma profunda reflexão sobre o homem e a sua
condição, num registo algumas vezes amargo, que tem levado a diversas
considerações sobre o leitor visado. Esse discurso é, em certas ocasiões,
colocado na boca dos animais, com diversos monólogos – do boi, do lobo,
do cavalo – e discussões que dão conta dos paradoxos que rodeiam o
comportamento humano:

“- Nós temos medo dele porque está de pé e fala-nos, e sentimos que é


grande, que é todo poderoso, o amo que nos dá de comer. - Mas é um
2 “Raul Brandão: ficção e infância”, in Revista da Faculdade de Letras «Línguas e Literaturas», Porto,
XII, 1995, p. 233-243.
3 Idem.
69
XVI Encontro de Literatura para Crianças

bicho esquisito. É um bicho que às vezes faz coisas incompreensíveis. –


atalhou o burro …” (p. 43)

Estes e muitos outros momentos revelam, ao mesmo tempo, a harmonia do


mundo e a sua extrema complexidade, desvendando o valor da solidarie-
dade e da fraternidade entre os seres vivos – valor que finalmente o Ruço
de Má Pêlo irá por si descobrir, numa derradeira metamorfose interior.

Sendo um livro nem sempre compreendido e com frequência questionado


na sua condição de livro para crianças, terminaria esta intervenção com
as palavras de uma autora que, na época, terá compreendido melhor o
alcance desta viagem. Ana de Castro Osório, que será também evocada
nesta mesa, afirma num artigo publicado na Seara Nova (n.º 204, 13-3-
1930): “Sim, é um bom livro para crianças, porque é um livro que as ensina
a pensar, que lhes dá a visão interior, que lhes alarga o sentimento e as
debruça na vida com a sensibilidade das pequenas coisas e alargamento
das grandes.”

70
XVI Encontro de Literatura para Crianças
José Carlos Seabra Pereira

Livros clássicos com viagens

Em primeiro lugar, quero agradecer, na pessoa da Dr.ª Violante Florêncio,


o convite dos organizadores do congresso para participar neste painel, e
dizer do meu gosto em estar acompanhado, como estou, nesta mesa.

De certo modo, sou hóspede nesta matéria da literatura infantil, embora


não seja a primeira vez que sou chamado a pronunciar-me sobre produções
literárias para a infância e, sobretudo, compreendo, que no caso de Ana de
Castro Osório me tenha sentido com alguma responsabilidade no esforço
que vários estudiosos têm feito para não a deixar cair no mais que injusto
esquecimento.

Ana de Castro Osório é de uma família originária da Beira Alta e mesmo


aqueles que nunca leram nenhum livro ou nenhum texto dela mas se in-
teressam pela vida literária portuguesa e contemporânea, já se encontra-
ram com ela, desde logo pelas ligações biográficas, e de consequências
literárias importantes, a Camilo Pessanha. É irmã de um dos principais
poetas do fim do século XIX, Alberto Osório de Castro, que, além de ex-
celente poeta simbolista e decadentista nas suas primícias, tem para nós o
valor de ser o amigo dilecto de Camilo Pessanha, em Coimbra e nos anos
que se seguiram. É mãe de dois elementos muito importantes para a cul-
tura portuguesa da primeira metade do século XX, embora escritores com
orientações ideológicas diferentes, João de Castro Osório e José Osório
de Oliveira. Finalmente, um dos nomes principais da poesia portuguesa da
segunda metade do século XX vem ainda dessa família: António Osório,
ainda em plena criação.

Ana de Castro Osório ultimamente tem sido recordada porque foi possível
chegar a documentos epistolográficos e outros que vieram confirmar ter
havido uma ligação afectiva muito forte de Camilo Pessanha a Ana de Cas-
tro Osório, digamos mesmo um anseio amoroso que teria desejado con-
sumar-se em ligação conjugal, não fora a decisão moral de Ana de Castro
Osório a ter inviabilizado. Esse malogro de uma relação amorosa conjugal
com Ana de Castro Osório foi um dos factores determinantes, para, não só

71
XVI Encontro de Literatura para Crianças

o afastamento para Macau, mas também do desenraizamento de Pessanha


em relação a Portugal metropolitano.

Ana de Castro Osório veio viver cedo para Setúbal e fez uma trajectória
muito diversa, mesmo do ponto de vista literário, do seu irmão Alberto
Osório de Castro. Primeiro, opta por escrever sempre em prosa, em nar-
rativa, o que levanta, por vezes, alguns problemas em relação à fronteira
de ficcionalidade e à narrativa não ficcional. Sobretudo torna-se uma figura
muito interessante do ponto de vista cívico-cultural, porque tem uma inter-
venção cívica muito importante mas que reveste sempre uma feição cul-
tural, e tem uma feição cultural que nunca abdica da sua valência interven-
tiva. Começa com essa intervenção cívico-cultural ainda no final do século
XIX e, já no final da sua vida, já nos anos 30 do século XX, mantém uma
actividade bastante intensa, mais notória por partir de uma mulher. Essa
intervenção tem, pelo menos, uma tripla feição: uma claramnete política,
através da imprensa, do livro, da palestra, de teor emancipalista, uma luta
pela emancipação, quer da emancipação de classes desfavorecidas, não
apenas economicamente, mas sócio-culturalmente, quer da emancipação,
em particular, da mulher. A intervenção de teor emancipalista não abdica
naturalmente da sua componente crítica, que conduz a uma finalidade mais
pedagógica do que subversiva, e o estilo, a forma de conteúdo dos seus
textos nunca é panfletária Ela evita a ênfase declamatória, os estereótipos
estilísticos de grande eloquência.

A orientação ideológica dela é claramente republicana e dentro desse campo


republicano, (que ela partilhava, aliás, com o marido, um poeta secundário,
Paulino de Oliveira, que, em tempos, David Mourão-Ferreira quis também
arrancar do esquecimento e que eu contemplei também na minha tese de
doutoramento em Coimbra) distingue-se por uma luta particular em favor,
por um lado, da condição feminina, por outro lado, da educação, uma cren-
ça muito própria dessa geração e que vem na sequência do que foi a aposta
dos grupos minoritários no campo intelectual português que tentaram uma
introdução da modernidade de matriz iluminista e depois, em particular,
com a geração de 70.

Uma obra onde isso se reflete é Às Mulheres Portuguesas, mas eu referiria,


de preferência, um outro livro que já faz a transição para a faceta da criadora
literária, A Grande Aliança, que recolhe uma série de conferências feitas no
Brasil no início dos anos 20. Aí ficam muito claros certos traços ideológicos
que hoje se esquecem quando pensamos na oposição dessa altura entre o
campo republicano/jacobino e o campo monárquico/tradicionalista. Estou
72
XVI Encontro de Literatura para Crianças
a referir-me a dois aspectos; mas um muito importante que poderá tomar a
forma de nacionalismo, uma ideia de origem romântica, o espírito do povo,
a alma lusíada que se corporizava na pátria, em termos históricos, e na má-
tria, em termos de território para a viagem.

Por outro lado, um certo idealismo de convivência que acontece na obra de


intervenção cívico-cultural da Ana de Castro Osório. Ana de Castro Osório
tem convicções muito nítidas, espírito crítico acentuado nessa luta pelos
ideais da emancipação republicana, mas, ao mesmo tempo, um grande
espírito de concórdia intelectual.

Como criadora literária, há uma faceta que desabrocha com mais força na
obra de Ana de Castro Osório, que é a criação de ficção narrativa para
adultos e não para a infância. Cultiva o conto, a novela, o romance podendo
ser incluída num tipo de escritor que abunda nessa viragem do século XIX
para o século XX, que assimila a técnica realista do romance de espaço,
do romance de costumes, mas cuja mundividência, em termos da sua
expressão literária, parece já claramente impregnada de uma tonalidade
neo-romântica. Um neo-romantismo progressista, no caso dela e de outros
escritores, e isso transparece menos no primeiro livro, que é um livro de
contos, chamado Infelizes, mas muito fortemente nos romances seguintes,
sobretudo no romance Ambições, depois Quatro Novelas, e finalmente no
romance cujo título exprime, de forma emblemática, a componente utópica
desta literatura, O Mundo Novo.

Qualquer passo do romance Ambições, por exemplo, mostra como ela pro-
jecta, nesse caso, num contexto da Beira Alta, tão tradicional, essa con-
cepção de um mundo de nova harmonia social, de nova justiça económica,
etc., promovida através da educação e da cultura. Claro que, por vezes,
com algumas tintas de humanitarismo que hoje nos pode parecer demasia-
do datado, mas sem nunca descambar para neo-compromissos demasiado
fáceis com o chamado neo-franciscanismo dessa altura.

Por exemplo, a questão da relação com os pobres é muito diversa dos


escritores neo-românticos tradicionalistas que adoptam essa feição neo-
-franciscana: o tópico da recusa da esmola, a esmola como um processo,
ao mesmo tempo, vexante para quem recebe e aviltante para quem dá; a
relação de promoção com o que há de melhor na humanidade dos pobres
através do processo de consciencialização, etc., são claramente a matriz
iluminista que aí prevalece.

73
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Em Ana de Castro Osório, a criação literária e a acção dela em favor de uma


literatura para a infância que não se restringe à criação de textos próprios
originais, não se compreende, sem se conhecer minimamente essas duas
outras facetas que estive a referir. E, provavelmente, o caminho de regresso
também se pode fazer: quem lê os livros dela para crianças, começa a fazer
um flashback, um efeito de retorno, e dizer “afinal ainda não li bem os outros
livros, os outros romances” porque há uma retrojecção de novas luzes de-
pois de se lerem os livros dela para a infância. Nessa actividade é que ela,
a partir de certa altura, se notabiliza mais.

Estou convencido que Ana de Castro Osório, no início do século XX, ainda
acreditava que ia ser uma escritora de ficção para adultos, embora, mais
tarde, a imagem que se foi fixando no campo literário português foi mais de
uma escritora, por um lado, emancipalista, e, por outro lado, de literatura
infantil. O seu trabalho em prol da literatura para a infância começa por volta
de 1897, de forma mais notória em termos de efeito no espaço público.
E, desde esse momento, há um título, que ela vai buscar a João de Deus,
simbólico de todo um património que ela quer fazer-se, ao mesmo tempo,
herdeira e mediadora – é Para as Crianças. Para as Crianças vai aparecer
como título de colecções, de folhetos ou de livros, como título de empreen-
dimentos editoriais, mas também como subtítulo dos seus textos, dos seus
livros, etc. Ela vai trabalhar em vários planos: traduzindo, seleccionando
e adaptando textos de grandes clássicos estrangeiros, Andersen, Grimm,
etc...

Outro plano, que é até agora o único que mereceu um estudo condigno,
(é uma excelente tese de mestrado aqui da Universidade Nova, de Fátima
Oliveira de Medeiros), é a compilação de contos tradicionais portugueses,
através de informantes vivos, que ela chamava “os narradores das lindas
histórias”, e que a levou a contactar com Leite de Vasconcelos, e a escrever,
versões adaptadas ou, pelo menos, largamente inspiradas nesses contos
tradicionais portugueses. Ela faz uma espécie de reconto, seleccionando
aqueles que lhe pareciam melhores para serem, eu agora retomo o título,
Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa.

Essas histórias são maravilhosas em sentido duplo: maravilhosas por se-


rem encantadoras, com um grande potencial de sedução, mas maravilho-
sas também porque contêm um elemento de maravilhoso. Para além disso,
organiza sucessivas colecções de livros, com textos dela ou textos de ou-
tros autores; tem jornais, nalguns casos especificamente dedicados só a
textos para crianças; procura difundir a importância da literatura para crian-
74
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ças na imprensa, através de palestras, e depois, naturalmente, tem os seus
próprios contos originais.

Cito só os títulos mais importantes: Alma Infantil, de 1899, Os Animais, em


1903, A Princesa Muda, Os nossos amigos, já em 22, de parceria com o seu
marido. Escreve menos para o teatro, mas há pelo menos duas peças que
têm algum sucesso: a comédia Lili, em 1903, e O Sermão do Padre Cura,
em 1907. A propósito deste teatro infantil, queria só fazer um ressalto para
os textos de narrativa. Nas suas narrativas o diálogo tem sempre um papel
importante e isso mostrs que ela não tinha dificuldade em ir para a ficção
dramática em vez da ficção narrativa.

Mas é efectivamente na ficção narrativa que ela nos deixa um legado mais
forte. Os desígnios programáticos enquanto criadora de ficção narrativa
para crianças são simples, são clássicos, e pretendem nas palavras dela,
instruir, divertindo ou educar alegrando as crianças. Muitas vezes, indirecta-
mente, ao pronunciar-se de uma forma empática sobre outro escritor, trans-
mite o que é o seu pensamento sobre os objectivos e a axiologia estética
da literatura para a infância. Os seus textos de ficção narrativa têm a sua in-
tertextualidade propiciatória: os contos tradicionais portugueses, com essa
exigência, esse vector ideológico muito presente na cultura do seu tempo
que era a preocupação com a identidade nacional. Essa identidade nacio-
nal estaria, digamos assim, adulterada na cultura ou na incultura de certos
meios urbanos, mas estaria ainda preservada nas fontes da cultura popu-
lar. Mas é nítido para quem lê esses textos que essa matriz se cruza com
outra, que é a matriz da modernidade iluminista e os contos de fadas, por
exemplo do iluminismo francês, transparecem muito no substrato da ficção
narrativa de Ana de Castro Osório.

O colóquio é sobre a viagem e como há viagem em muitos dos seus contos


dispersos e há viagem desde logo no subtítulo Viagens aventurosas de Felí-
cio e Felizarda, primeiro ao Pólo Norte e depois ao Brasil.

Mas, a viagem pode aparecer, tal como para outros escritores, dum ponto
de vista, estrutural em textos que parecem não estar focados para a viagem.
É precisamente o que a Dr.ª Fátima Ribeiro de Medeiros conclui depois do
seu estudo de um corpus seleccionado de setenta das suas Histórias Mara-
vilhosas da Tradição Popular Portuguesa, que estão organizados como se,
ao mesmo tempo, fossem um mapa e uma espécie de roteiro e esse roteiro
é um roteiro por formas, por espaços, por lugares, mas, mais do que isso, é
um roteiro por condições de vida, formas de visão do mundo, modelos de
75
XVI Encontro de Literatura para Crianças

relacionamento interpessoal, etc. Na verdade, há quase sempre uma figura


que conduz a narrativa e conduz essa viagem, que mais do que física, é
muitas vezes uma viagem mental e imaginativa. O que é interessante, é que
a finalidade ideológica de Ana de Castro Osório é provocar na sociedade
portuguesa e, sobretudo, na sua suposta elite intelectual, uma viagem que
era também de reforma mental e moral. Essa viagem assenta naturalmente
na crença de que o desenvolvimento orientado da imaginação infantil tem
um papel imprescindível no processo educativo; por isso, ela achava que
podia falar de tudo para essas crianças.

O caso mais típico, e que geralmente até vem omitido nas suas tábuas
bibliográficas, é o livrinho de noventa e nove páginas - “Como Portugal foi
chamado à guerra: história para crianças” - que ela escreveu para crianças
entre os oito e os dez anos quando Portugal entrou na Primeira Grande
Guerra. Isto mostra bem que ela achava que as questões, também cívicas,
que faziam parte do devir histórico da nação, deviam ser também transmi-
tidas, de forma especificamente ade-quada, à imaginação e à inteligência
sensível das crianças.

Chegámos mesmo às viagens, e aqui o que eu acho mais interessante é


isto: ela procurou sempre que as suas narrativas para crianças entrassem
no sistema educativo e assumissem a forma de livros de leituras, propostos
às comissões próprias do Ministério da Instrução para aprovação oficial e
consegue-o, mesmo antes da implantação da República, com o livro, muito
alentado, A minha Pátria, num território comum ao liberalismo constitucio-
nal e à propaganda republicana. E como é que se fala da minha pátria num
texto de leituras sucessivas? É sempre uma narrativa semi-ficcionalizada,
em que há, uma personagem de óptica privilegiada, que conduz o jogo e a
viagem – um pouco entre Gil Vicente e Brecht - uma espécie de represen-
tador que vai encenando e vai mantendo, ao mesmo tempo, a distância,
porque muitas vezes o que acontece é que essa personagem está a dia-
logar com uma ou mais crianças a que a ligam laços ou de dever sócio-
profissional ou, quase sempre, de família. E, quando a criança vai reagir
num determinado sentido, essa persona-gem encarrega-se de ir avivando
o espírito crítico dele e de ir desmontando o que seria qualquer panaceia,
demasiada idealização ou qualquer cedência aos estereótipos da educa-
ção tradicional. É o que acontece com Viagens Aventurosas de Felício e
Felizarda, que, ao contrário de Pátria, não foram aprovadas como livros
oficiais antes da implantação da República e vieram a sê-lo mais tarde, já
nos inícios dos anos 20.

76
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Mais engraçado é que estes livros trazem, a abrir, uma espécie de parecer
do relator da comissão e nota-se logo que o relator da comissão, e porven-
tura a comissão, viu nisto apenas o capital informativo, mas não o contrato
informativo sob forma de narrativa ficcional para crianças. Efectivamente há
aqui dados de aprendizagem de geografia física e, sobretudo, de geografia
humana, mas não é isso o mais importante; há o papel formativo de de-
senvolvimento da sensibilidade ou da inteligência sensível, a partir de uma
crença muito forte no papel da ciência, das luzes, da razão, mas também de
numa educação da afectividade, que se tornasse fonte de energias.

Esta série de narrativas são narrativas de uma viagem imaginada de quem?


De dois bonifrates, de dois bonecos, que a senhora,a personagem nar-
rador, a mestra e condutora da viagem, está a fazer para, em vez de dar
esmola a uma velhinha lá qualquer de Mangualde, dar-lhe meios de ela se
sentir útil e colaborar com ela numa actividade que ela tinha. São esses
dois bonecos que vão fazer a viagem. O arranque desta narrativa é idêntico
ao do romance para adultos de que há bocado falei ao início do romance
Ambições.

E embora ancorado nos aspectos paisagísticos, sociológicos típicos da


Beira Alta no final do século dezanove, não tem aqui a armadilha do pitores-
co, o engodo do pitoresco fácil, nem nenhuma panaceia rústico-patriarcal.
É uma sociedade pobre, em geral, de miséria, de injustiça, de ignorância,
etc., mas tudo isso aparece pelo meio das festas e das lides quotidianas.

Logo no início, quando eles chegam ao barco, há logo, por um lado, a


paisagem de Lisboa, a despedida, os largos horizontes, mas também o
fenómeno da emigração. No porão, da terceira classe, estão os trabalha-
dores portugueses que vão emigrar nas piores condições, que não podem
subir aos outros andares do barco e a lição começa logo aí porque o Felício
olha para aquilo: Olha que pitoresco! Que típico! São diferentes! E apanha
logo uma primeira lição, a pedagogia de que eles não são nenhum elemento
folclórico, no sentido pejorativo do termo.

Permitia-me dizer-vos que no final das Viagens Aventurosas de Felício e


Felizarda ao Pólo Norte, em duas páginas só encontra-se, uma teoria de
ficção de mundos possíveis, que depois resvala para a sequência de uma
ideia que vinha do romantismo: a primazia da criatividade do espírito en-
quanto sujeito. Mas daí passo para a vibração empática entre ser humano
e universo físico e também a ideia, que vinha desde a ciência romântica da
alma do mundo, de um universo animado, do espírito objectivando-se na
77
XVI Encontro de Literatura para Crianças

natureza, segundo Shelley, depois os grandes poetas românticos alemães


e, finalmente, uma espécie de mise en abyme em termos de géneros, pois
esta ficção narrativa para crianças vai debruçar-se ou usar como argumen-
to, o modelo dos contos de fadas:
o pequenito, que tinha partido a perna, “cheguei, que bem que acabei a
viagem, cheguei a imaginar que ficassem despedaçados nalgum icebergue
ou se afogassem no mar tormentoso e fossem engolidos por alguma baleia,
o Felício e a Felizarda. Não ficaria muito farta com o jantar, em todo o caso
como elas só se alimentam de moluscos e pequenos peixes não devem ser
muito exigentes!
Correram tantos perigos, disse rindo, podiam bem ter ficado no mais peque-
no deles!
Oh! Os nossos pequenos amigos são imortais! Nada os vence! Não conhe-
cem o medo nem a dor!
- Sabe minha mãe - disse o Pedrinho com ar grave - apesar de saber que
os dois amigos são bonifrates de trapos e feitos pela viúva Teresa e vestidos
pela mãezinha, cheguei o outro dia a estar aflito a recear pela sua existência
no meio de tantas aventuras como se realmente vivessem!
- E vivem, Pedrinho!
Não, já te disse que, de facto, existem, que têm a realidade que nós lhe da-
mos. São animados pela nossa própria alma!
- Se assim fosse, não havia nada que se pudesse considerar inerte, coisa
que não se pudesse fazer viver!
- E não há Pedrinho, a morte não existe! A morte é a transformação da ma-
téria. (a ciência jacobina a funcionar.)
A morte é a transformação da matéria e não há coisa alguma que não tenha
alma própria, que não fale, que não viva de facto, que não subsista através
do espaço.
- Mas eu, mãezinha, nunca ouvi as pedras falar, nem as árvores, nem mesmo
os animais, só o papagaio da tia Isabel, e esse diz sempre a mesma coisa
que lhe ensinaram, chegando até a irritar pela sua estupidez!
- Diz-me uma coisa Pedrinho, os contos de fadas que tanto te entretinham,
ainda há poucos anos, hão-de te agradar sempre, tenho a certeza, pois es-
ses contos que hoje tanto prendem a atenção da Marianinha, se não fosse
o entusiasmo de os poder ler não chegaria a ser uma boa estudante. Nun-
ca conheceste um génio maravilhoso, uma fada ou qualquer encanto que
desse aos mortais a faculdade de compreender a linguagem dos animais e
das coisas? Quantas vezes aparecem nos contos boas fadas que dão aos
seus afilhados essa faculdade. E até lunetas mágicas que fazem ver tudo
quanto se passa à distância ou perto e ler o pensamento alheio.
- Mas isso, mãe, são contos de fadas!
78
XVI Encontro de Literatura para Crianças
- Pedrinho, não sejas incrédulo!
Na vida há duas fadas maravilhosas que nos dão ouvidos para compreender-
mos todas as vozes da natureza e nos abrem os olhos da alma para vermos
as maravilhas que nos rodeiam!
E não poderei eu conhecer essas duas senhoras?” – e agora aqui é que
podia parecer uma via de escapismo e de evasão vai reverter outra vez à
questão da instrução de matriz iluminista.
- Pode sim porque uma nasceu contigo, é a Inteligência (com letra grande já
se vê) que nos dá a compreensão de todas as coisas, a única superioridade
do ser humano, a outra é a Ciência, que enche a nossa alma de luz para tudo
vermos e explicarmos. Com uma sentimos, com a outra certificamos, uma
sem a outra pouco valor têm, são objectos ocos, só de aparência.
- E sendo sábio podem ouvir-se os animais e as árvores?
- Ouvimos, mas não é com os ouvidos. Sentimos e vemos, mas não é com
os olhos. Compreendemos o que dizem, mas não é com as palavras.
Tu nunca estiveste à beira de um regato, etc, etc!”

Sem aquele génio encantatório do verbo de Raul Brandão acho que Ana de
Castro Osório sabia muito bem levar a água ao seu moinho!

79
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Alice Vieira

Livros clássicos com viagens

Boa tarde.

Queria agradecer o convite para vir cá falar do Adolfo Simões Müller.

Por razões várias já não estou nestes Encontros há uns dois ou três anos e
também me é muito agradável voltar a esta casa. De qualquer modo é-me
ainda um bocadinho difícil estar aqui na Gulbenkian e nestes Encontros e
não encontrar a Natércia Rocha, ali sentada, ela zangava-se connosco, ela
rezingava, mas ela era, realmente, a alma destes Encontros e esteve na
sua organização desde o início. Neste momento deve estar aborrecida por
qualquer coisa que a gente já disse aqui! O pior é que agora, infelizmente,
não pode replicar!

Depois, queria dizer que fiquei muito contente por ter ficado para último
lugar porque assim já tiveram oportunidade de ouvir duas excelentes con-
ferências, já ganharam a tarde, e já não esperam que eu diga grandes coi-
sas.

Adolfo Simões Müller, que é de todos estes clássicos que nós estamos a
falar aqui esta tarde, o único que alguns de nós, conheceram vivo, é um bo-
cadinho diferente dos outros. E, no meu caso, eu tive realmente o privilégio
de ser amiga dele, de ter contactado muito com ele, sobretudo na última
década da sua vida. Vá se lá saber porquê ele adoptou-me, e passei coisas
muito divertidas com ele, entre as quais uma ida a um programa de tele-
visão, em directo, em que o apresentador passou todo o programa a fazer-
-lhe perguntas pensando que estava a entrevistar um bailarino reformado.
Só realmente uma pessoa com grande capacidade de mudar o texto, de
mudar as respostas como o Adolfo Simões Müller, é que aguentaria aquele
tempo todo sem se rir. Foram realmente umas coisas divertidas.

Quando aqui há uns meses, o meu amigo António Torrado me convidou


para vir aqui falar disse-me: Olha, podes ir falar sobre o Adolfo Simões
Müller? Eu disse: Posso! Não sabia de mais nada! Depois comecei a receber

80
XVI Encontro de Literatura para Crianças
informação aqui da Gulbenkian, esclarecendo que este Encontro tinha a ver
com a viagem. Eu pensei: Bom, como é que eu vou enfiar o Adolfo Simões
Müller na viagem? Depois pensei que a viagem é um assunto muito amplo.
Está ali a Maria Augusta Seabra Dinis que, em 1984, fez aqui uma brilhante
dissertação sobre um rol imenso de viagens, possíveis e imaginárias. Como
Adolfo Simões Müller escreveu muito e escreveu sobre tantos assuntos,
escreveu também, evidentemente, sobre viagens.

Tenho muita pena que a obra do Adolfo Simões Müller esteja praticamente
esgotada, ou não esteja nas livrarias, ou ninguém conheça, ou ninguém
saiba onde é que ela está.

Na releitura dos livros do Adolfo Simões Müller, fiz uma divisão de viagens,


entre as viagens da vida das pessoas, as viagens que se fazem através da
memória, e as viagens, através de montes e vales. A viagem da vida das
pessoas, que é sempre a mais aventurosa que se pode contar, foi tratada
pelo Adolfo Simões Müller de forma extremamente importante na colecção
que fez de biografias. A colecção chamava-se Gente Grande para Gente
Pequena. E foram editados, não sei se por imposição do editor, só seis livros!
Para aquela colecção de biografias, (ele depois viria a escrever mais biogra-
fias noutra colecção), ele escolheu seis possíveis biografados. A primeira a
sair foi A Pedra Mágica e a Princesinha Doente, que tem a ver com a vida
da Madame Curie, depois seguiram-se O Homem das Mil Invenções, que
relata a vida de Thomas Edison; O Capitão da Morte, sobre o Capitão Scott;
O Piloto e o Fantasma, sobre Wagner; O Grande Almirante das Estrelas do
Sul, sobre Gago Coutinho e Sacadura Cabral e a viagem ao Brasil e Trinca
Fortes, sobre Camões. Só Camões e Gago Coutinho, foram os portugueses
escolhidos para esta colecção. Depois, como já afirmei, continua noutro
tipo de colecção com a história da Florence Nightingale.

Quando eu digo que é muito importante é porque uma das falhas que eu
encontro na literatura que as nossas crianças e os nossos jovens lêem é
exactamente essa: não há biografias, eles não sabem das vidas, não sabem
das histórias, não sabem o que aconteceu. E as pessoas depois espantam-
-se muito quando há feriados, comemorações importantes, e vão para a
rua, de microfone em punho, perguntar às crianças sobre o que é que se
está a comemorar. Claro que eles não sabem! Como é que hão-de saber!
Ninguém nasce ensinado! Nós já não estamos nos anos 40, e teria de ser
feita de outra maneira, mas acho que faz muita falta uma colecção que fale
de histórias que tenham a ver com a nossa história.

81
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Outra viagem possível, através da memória, que ele também fez muito – e já
hoje se falou de outros autores que o fizeram – é a viagem ao mundo fasci-
nante das histórias tradicionais, do maravilhoso, das lendas, das histórias
populares. Nesse caso, ele tem muitas recolhas de lendas, de fábulas, de
histórias e tem um livro que se chama O Príncipe Imaginário e outros Con-
tos Tradicionais Portugueses, onde começa por dizer que não se destina
só a um público infantil, mas tanto quanto possível, a toda a gente. Nós
sabemos que a literatura popular não era exclusivamente para um público
infantil. Daí que estas histórias, sejam, muitas vezes, intercaladas por no-
tas, explicações, que não são já aquele tipo de intervenções muitas vezes
pedagógicas, que ele dava nos textos que escreveu. Estas explicações são
dirigidas a um público adulto e por isso não se fazem dentro do próprio
texto, mas em rodapé.

E Müller salienta muito, nessas recolhas que vai fazendo, a importância


fundamental dos contadores de histórias, do tempo em que havia tempo
para estar à lareira a ouvi-los e, realmente, há muitos autores, muitos es-
critores que ele, neste livro, vai evocando que, de uma maneira ou doutra,
devem o seu amor pela escrita ou a sua paixão pela escrita a velhas pes-
soas que lhes contavam histórias. Fala, por exemplo, da personagem da
ama, que vamos encontrar desde Menina e Moça de Bernardim Ribeiro ao
Guerra Junqueiro, ao Fernando Pessoa de vez em quando; a mulata Rosa
de Lima; a tia Brísida que se encontra mencionada pelo Almeida Garrett; a
velhinha de cabelos de marfim que o Tomás Ribeiro evoca; a velha Carlota;
o embarcadiço Arrabalde e a costureira Mesticosa, de que fala o António
Nobre, como personagens que sempre lhes contaram histórias. Fala na avó
do António Sardinha, mas todas as avós, acho eu, contam histórias aos
netos! E sem ser aos netos, há sempre aquela tendência das avós para con-
tarem histórias! Também nessa época, as avós eram as transmissoras das
histórias de tradição popular. Não esquecendo uma importantíssima, que
era a velha Doroteia, que terá contado aos irmãos Grimm mais de metade
das histórias que eles depois viriam a relatar.

No caso do Simões Müller ele também teve a sua contadora de histórias


que era a velha Sérgia. A Sérgia era uma velhota que não era propriamente
uma empregada da casa; era mãe de uma empregada da casa. A velha
Sérgia contava-lhe histórias, pô-lo em contacto com outras realidades, com
outras magias e, posteriormente, a menina Letícia que era uma empregada
do Colégio Figueiredo, em Campo de Ourique, onde ele estudou, e a quem
depois terá pago essas histórias, escrevendo-lhe quadras, que foram as
suas primeiras quadras, quando tinha para aí seis ou sete anos. As primeiras
82
XVI Encontro de Literatura para Crianças
quadras de amor foram para a menina Letícia, que lhe tinha contado muitas
histórias no Colégio Figueiredo! Nessas histórias nós podemos, realmente,
viajar, por esses longos serões das espaçosas noites de Inverno, pelo mur-
múrio das vozes junto à lareira, pelas xácaras e romances de princesas e
cavaleiros, pelas bruxas e lobisomens, pragas e feitiços.

E é também, evidentemente, uma viagem pelas palavras! Esta era outra


questão que eu gostaria de abordar, muito ligeiramente: a questão do vo-
cabulário. Agora está um bocadinho na moda dizer-se que não se devem
escrever palavras que os meninos não conhecem porque, já é tão com-
plicado, e se eles encontram no texto uma palavra que não conhecem?...
Eu acho que isto é um grande disparate! Para já, porque não é a palavra
ser complicada, ou não; é, realmente, se a palavra se integra ali, se o texto
tem qualidade ou não tem. É evidente que há palavras de todos os dias,
que, num texto para crianças, até podem ser muito más porque não têm
qualidade nenhuma! É extremamente enriquecedor que as crianças, desde
muito pequeninas, ouçam histórias sem as pessoas se preocuparem se elas
entendem ou não entendem as palavras todas.

Eu levei a minha infância toda sem saber o que eram timbales e charame-
las que vinham atrás dos reis, mas não havia história nenhuma, que fosse
história a sério se não tivesse timbales e charamelas. Era fatal! E, pelo meio,
chegavam os bufarinheiros! Também não sabia o que eram os bufarinheiros
mas que tinham de entrar em todas as histórias, isso tinham!

Há este enriquecimento de vocabulário, que também faz parte da magia,


que também faz parte do maravilhoso. Reduzir a história a um fiozinho só
de palavras é, muitas vezes, um crime. O som, as lengalengas e as rimas e
a toada, tudo isso é importante! Muitas vezes é esse som que leva as crian-
ças, que as atrai à leitura!

Também aqui nestas Histórias Maravilhosas e nestas histórias em que a


criança é levada a outro mundo, que não aquele em que ela vive, há outro
tipo de linguagem para além da linguagem funcional: passa-me um copo,
dá-me a água, escovaste os dentes? Nestas histórias também encontra-
mos uma linguagem rica!

É verdade que em Adolfo Simões Müller ainda se encontra muito, como


foi aqui referido em relação a outros escritores anteriores, a preocupação
pedagógica. Os livros, numa época em que a escola não era o que é hoje,
funcionavam como, digamos, a extensão da escola: a escola não ensinava
83
XVI Encontro de Literatura para Crianças

tudo, a escola ensinava pouco. Se calhar, havia muito menos tempo de au-
las, e era preciso que os livros dessem alguma cultura às crianças, dessem
mais sabedoria para as crianças serem cidadãos de corpo inteiro, cidadãos
que pudessem depois trabalhar.

Temos também livros muito mais dirigidos às viagens: de 1962, Através do


continente misterioso, de 71, Uma primeira volta ao mundo, e já nos anos
80, o que eu considero ser o melhor da obra dele neste campo, que são dois
livros sobre o percurso dos rios, um livro sobre o Tejo, Tejo – rio universal,
e sobre o Douro, Douro – rio das mil aventuras. No Douro, ele diz mesmo
que é uma viagem pelo curso do grande rio, desde a sua nascente, em
Espanha, e depois de mil curvas e mil saltos, de muita dor e muita alegria,
os pauliteiros de Miranda, as broas de Avintes, as regueifas de Valongo, o
Douro chega, finalmente, ao mar. Mas não são apenas os pauliteiros, as
broas, as regueifas nesta viagem pelo Douro. Aqui entra um rol imenso de
personagens. Nesta viagem entra, por exemplo, o Cid, o Campeador, D.
Afonso Henriques, o Magriço e mais os seus onze companheiros, a Defen-
sora de Miranda nas invasões francesas, as aventuras de Camilo Castelo
Branco, até chegar a uma figura interessantíssima que é a figura do Arrais
Napoleão Loureiro. O Arrais Napoleão Loureiro foi o que fez, em 1971, a
última viagem de um barco rabelo no Douro. Era uma viagem simbólica,
porque, nessa altura, os barcos rabelos já não funcionavam muito, mas
aquela foi considerada a última viagem de um barco rabelo levado pelo
Arrais Napoleão Loureiro, que sempre tinha vivido disso. Há uma história
magnífica neste livro - que é já no fim da viagem - quando o Arrais olha para
o rio já sem os barcos rabelos, e murmura, com enorme desprezo, para as
pessoas que estavam ao pé dele: Agora, meus senhores, o rio Douro já não
é macho! E, realmente, aquilo já não era o que ele tinha conhecido, já não
era macho!

Para lá das pessoas, o livro tem também de incluir os monumentos, as ba-


talhas, as inundações, as desgraças, os filhos mais conhecidos que tinham
nascido por aquelas margens. É um rio, como diz o Adolfo Simões Müller,
que tem muito que contar como todos os rios, e é um livro que é pratica-
mente um manual, pois temos ali a geografia, a história, a imaginação e te-
mos a criatividade; está tudo ali, e é um livro pequeno. Este, creio eu, ainda
se pode encontrar!

Para além disto, e não tendo já muito a ver com o tema da viagem, o
Adolfo Simões Müller também adaptou muitas obras clássicas. Era também
uma altura em que se adaptava muito as obras clássicas. Havia adaptações
84
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que tornavam os livros quase autónomos do original, quase livros diferen-
tes como, por exemplo, toda a série das Mulherzinhas, da Louise Alcott,
transformados pela Maria Paula de Azevedo. Eu só muito mais tarde é que
percebi que aquilo que eu tinha lido, O Colégio da Ameixoeira, Os Rapazes
da Maria João, que aquilo era as Mulherzinhas e todos os outros livros da
Louise Alcott.

O Adolfo Simões Müller adaptou Os Lusíadas; a Peregrinação; A Morga-


dinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor do Júlio Dinis; As Viagens
de Gulliver; do Dickens adaptou O Natal do Avarento; As Mil e uma noites
adaptou em banda desenhada e adaptou Miguel Strogoff, que teria fatal-
mente de adaptar, porque Miguel Strogoff, um exemplar lindíssimo do livro
do Júlio Verne, foi a prenda que o pai lhe deu quando fez a quarta classe
e ficou distinto. Era no tempo em que os meninos faziam a quarta classe,
ficavam distintos e no tempo em que os meninos gostavam muito que lhes
dessem livros! Para ele foi um dia inesquecível, por todas essas razões!

Mas, para lá disto tudo, uma das grandes viagens que podemos fazer com
Adolfo Simões Müller é através da imprensa, e aí ele é muito importante
também. O Adolfo Simões Müller foi extremamente importante através dos
jornais que criou. Em 1935, fundou o jornal O Papagaio e é responsável pelo
jornal até 1941, quando sai para ir fundar O Diabrete, sem interrupção. Em
1952, nasce O Cavaleiro Andante, que deve ter marcado toda uma geração,
que tem hoje a minha idade. Custava em 1952 dezoito tostões; não era
barato! Tinha uma periodicidade semanal e aguentou-se dez anos. Também
em todos estes jornais houve sempre uma grande preocupação dele (que
já se notava também, evidentemente, na ilustração dos livros) de chamar
grandes nomes das artes plásticas, grandes nomes da ilustração para os
jornais, para as revistas e também para a ilustração dos livros. Das artes
plásticas, colaboraram, por exemplo, e também evidentemente no caso
dos jornais, Reinaldo Ferreira, a Maria Archer, Virgínia de Lopes Mendonça,
a Etelvina Lopes de Almeida, a Esther de Lemos, a Maria Lamas o Fernando
Bento, o Stuart Carvalhais, o José Rui, o Vítor Péon, o José Garcês. Acho
que todos os nomes, e eu apenas referi alguns, que tinham peso naquela
época estão representados n’ O Cavaleiro Andante e já estavam n’ O Papa-
gaio.

Hoje nós reparamos que se há coisa que falte no nosso quotidiano para
crianças e para jovens é um jornal, é uma revista. Os adultos também já
não lêem jornais mas se, realmente, houvesse alguma coisa que levasse
as crianças a habituarem-se a ler uma revista, a habituarem-se a ter o seu
85
XVI Encontro de Literatura para Crianças

jornal, como naquela época havia ...

Eu lembro-me de toda a excitação com que nós esperávamos O Cavaleiro


Andante e era uma época em que não havia só isso. Estou a falar destes
só porque estou a falar do Adolfo Simões Müller, mas era uma época em
que havia um outro tipo de revistas, e esperava-se por essas revistas. Havia
uma revista da Mocidade Portuguesa, que nunca me esqueço porque tinha
um título engraçadíssimo, chamava-se O Camarada. Tenho vagamente a
ideia qu’ O Camarada entrava lá em casa porque as pessoas não liam e não
sabiam de onde é que vinha O Camarada, mas uma coisa daquele tipo não
devia ser má! E, realmente, eu sempre assinei O Camarada!

Lembro-me, por exemplo, que passei uns tempos da minha infância na


Serra da Estrela, nas Penhas da Saúde, (que era, naquela altura, um de-
serto), e lembro-me da alegria que era no dia em que chegava O Cavaleiro
Andante. O Cavaleiro Andante, a dada altura, teve um suplemento, que era
mais pequenino, enfiava-se lá dentro. Nesse suplemento d’ O Cavaleiro An-
dante apareceu uma vez uma carta de uma criancinha que tinha para aí
nove anos, a dizer que gostava muito de ler O Cavaleiro Andante e que,
algum dia, ainda havia de escrever histórias. Era eu!

Não sei como é que aquilo foi parar ao Pagem! Se me lembro deste episó-
dio é porque o Adolfo Simões Müller uma vez me ofereceu esse Pagem, e
disse-me: está a ver isto? Estava lá eu realmente e até lá estava a fotogra-
fia!

Outra coisa porque nós devemos estar eternamente gratos ao Adolfo


Simões Müller é o facto de ter sido por sua influência, que o Tintim, o meu
colega de jornalismo, veio parar a Portugal e que as suas aventuras foram
publicadas. As personagens tinham nome em português mas realmente o
Tintim apareceu aqui pelas mãos do Adolfo Simões Müller. O Adolfo Simões
Müller era amigo do Hergé, o autor do Tintim, que era belga. O Hergé, (isto
em 42, 41, durante a guerra), tinha um irmão que estava preso na Alemanha.
Os direitos de autor que o Simões Müller pagava ao Hergé, em Portugal,
eram transformados em géneros e eram enviados daqui para o campo de
concentração onde estava o irmão, porque o Hergé, estando na Bélgica
ocupada, não podia fazer isso. Todos os direitos de autor daqueles primei-
ros anos foram sempre transformados em conservas, em pacotes para o
campo onde ele estava e daí ter ficado sempre uma relação de amizade
muito forte entre Hergé e Simões Müller.

86
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Ora bem, eu acho que o fundamental, como dizia Alexandre Herculano, a
melhor homenagem que se pode fazer a um escritor é ler os seus livros.
Neste caso, seria poder fazer com que estes clássicos estivessem aces-
síveis, que as crianças e os jovens tivessem a possibilidade de ler, não
digo todos, evidentemente; mas esta série de biografias porque são um
tipo de biografias que não se limitam a contar a história; Müller junta sempre
qualquer coisa de inventado, de criativo, de insólito.

Lembro-me, por exemplo, n’A Pedra Mágica e n’A Princesinha Doente, que
é a história da Madame Curie, que uma das coisas que me ficou sempre
daquela história não foi a invenção da Madame Curie, mas, para a crian-
ça que eu era, o mais importante daquilo tudo eram duas imagens que ele
dava extremamente fortes: uma era a Madame Curie, que, quando foi estu-
dar era tão pobrezinha e tinha tanto frio que, para se aquecer, punha uma
cadeira em cima da cama e em cima dela. Nunca percebi como é que uma
cadeira podia fazer calor! E fartava-me de ler aquilo! Outra é Madame Cu-
rie, já tão importante, com aquelas descobertas todas, no dia que coincidiu
com a grande descoberta do rádio, estava muito preocupada porque a filha,
pequenina, tinha-lhe caído o primeiro dente e chorava muito! Essas coi-
sas a mim tocavam-me muito porque como nunca ninguém ligava à minha
queda de dentes, eu achava que uma mãe, que tinha descober-to uma
coisa tão importante, e ainda se preocupava com a filha que lhe tinha caído
um dente, que estava cheia de dores, devia ser uma mãe extraordinária!
Do livro da Madame Curie, do Adolfo Simões Müller, são essas coisas que
eu me lembro! Claro, pelo meio deve estar a história toda, penso eu! Mas,
aquilo que fica é outra coisa, e em todos os livros dele desta co-lecção há
sempre outra coisa! No caso do Trinca Fortes, por exemplo, a história com
a Dinamene é a coisa mais importante do livro, como é evidente! Muito mais
importante do que Os Lusíadas!

No fundo, é a arte de chegar ao leitor mais jovem, contando o que se quer


mas dando-lhe assim estes rebuçadinhos; e o Adolfo Simões Müller fazia-o
muito bem. Em todos os livros, ele tenta sempre captar os leitores, que é,
no fundo, aquilo que todos nós queremos! Por isso, se deste Encontro, se
destas conversas sair uma ideia qualquer de reeditarem estes clássicos,
não falo só no caso do Adolfo Simões Müller, ficaria muito feliz.

Eu faço cursos de escrita criativa e muitas vezes quero livros destes e é


muito difícil encontrá-los. Acho que isso já era uma boa conclusão para
estes Encontros e para o esforço de todos que os organizam e que estão
aqui.
87
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Marta Martins

Moderadora

Muito bom dia. Chamo-me Marta Martins. Sou a moderadora desta mesa. À
minha direita estão o actor Diogo Dória e o Professor Rui Veloso, da Escola
Superior de Educação de Coimbra, e, à minha esquerda, está a professora
Leonor Riscado, também da Escola Superior de Educação de Coimbra.

Vamos ter duas intervenções sobre Andersen. A primeira vai ser da Dr.ª
Leonor Riscado, a seguir haverá a leitura de um texto pelo actor Diogo
Dória, faremos um intervalo e depois será a altura da intervenção do Dr. Rui
Veloso. Seguidamente haverá um debate sobre a intervenção da primeira
parte, conjuntamente com a intervenção da segunda parte.

Passo então a apresentar a Dr.ª Leonor Riscado. É professora adjunta de


nomeação definitiva da Escola Superior de Educação de Coimbra, onde
lecciona Literatura para a Infância. Licenciou-se em Línguas e Literaturas
Modernas, variante de Português/Francês, na Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Coimbra, de que foi docente durante vários anos. Aqui con-
cluiu o mestrado em Literatura Portuguesa, com uma tese sobre a Narrativa
Quinhentista. Tem participado em congressos em Portugal e no estrangeiro,
cuja temática se liga à sua especialização: literatura em geral, e literatura
infantil em particular. Colaborou como formadora em projectos europeus,
Língua e Erasmus, e, em Portugal, no FOCO, formação contínua de pro-
fessores. É autora de artigos sobre literatura para a infância e para a ju-
ventude. Colaboradora permanente da revista “Malas Artes”, é membro da
Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil (Secção
Portuguesa do IBBY). É investigadora no âmbito da criação literária para
crianças.

Que melhor complemento poderíamos desejar neste momento do que as-


sistirmos às palavras do próprio Andersen na boca do actor Diogo Dória.

88
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A Sombra
de Hans Christian Andersen

Nos países tropicais o sol queima de uma forma terrível. Aí, as pessoas
põem-se trigueiras como o cajueiro e, nos países mais quentes, escuras como os
negros. Vindo do seu país frio, chegara um sábio a uma destas regiões quentes,
que julgava poder ali passear como na sua terra; mas cedo se persuadiu do con-
trário. Viu-se obrigado, como qualquer pessoa razoável, a fechar-se, durante o dia,
em casa; parecia adormecida ou abandonada. De manhã à noite, o sol brilhava por
entre as casas altas, ao longo da pequena rua onde ele morava. Na verdade, era
insuportável.
O sábio dos países frios, que era ainda jovem, julgava-se uma fornalha ar-
dente; emagrecia cada vez mais; a sua sombra estreitava-se consideravelmente. O
sol prejudicava-o. Na verdade, ele só se reanimava depois do poente.
Que prazer, então! Assim que, no quarto, se acendia uma vela, a Sombra
estendia-se por toda a parede e até no tecto se estirava o mais possível, para recu-
perar as forças.
O sábio, por seu lado, ia até à varanda, para lá se deitar e, à medida que as
estrelas apareciam no céu admirável, sentia-se reviver, a pouco e pouco. Em breve
surgia gente em todas as varandas da rua, pois até as pessoas da cor do cajueiro
precisam de ar! Como tudo se animava então! Os sapateiros, os alfaiates, todos se
espalhavam pela rua. Viam-se ali mesas, cadeiras e milhares de luzes. Um falava,
outro cantava; passeava-se; rodavam as carruagens; passavam burros fazendo soar
as campainhas; era deitado à terra um morto, ao som de cantos sacros; os garotos
atiravam petardos; os sinos das igrejas repicavam; numa palavra, a rua estava bas-
tante animada.
Só uma casa, aquela que estava situada em frente da do sábio, é que não
dava sinal de vida. Todavia, morava lá alguém, pois, na varanda, desabrochavam
flores admiráveis, o que necessariamente indicava que alguém as regava. À noite,
também se abria a porta, mas, lá dentro, de onde saía uma música suave, estava
escuro. O sábio achava aquela música incomparável, mas isso talvez fosse produto
da sua imaginação, pois ele, com satisfação considerava tudo incomparável nos
países quentes, se o sol não brilhasse ali sempre. O proprietário da casa em que
morava disse-lhe que ignorava em absoluto o nome e a condição do locatário
daquela casa, e, quanto à música, declarou-a horrivelmente enfadonha.
«É alguém que estuda continuamente o mesmo trecho sem o conseguir
aprender - disse ele. - Que perseverança!»
Uma noite, o sábio despertou e julgou ver um clarão estranho na varanda
da casa vizinha; todas as fIores brilhavam como chamas e, no meio delas, estava
de pé uma rapariga alta, esbelta e encantadora, que brilhava tanto como as flores.
Esta luz intensa feriu os olhos do nosso homem, que se levantou de chofre e foi
afastar a cortina da janela, para observar a casa em frente; mas tudo desaparecera.
Apenas estava entreaberta a porta que dava para a varanda, continuando a ouvir-
89
XVI Encontro de Literatura para Crianças

-se a música. Forçosamente havia bruxedo ali dentro. Quem habitava ali? Por onde
seria a entrada? O rés-da-chão era todo constituído por lojas; em nenhuma parte se
via corredor nem escada que conduzisse aos andares superiores.
Uma noite, estava o sábio sentado na varanda e, por detrás dele, no quarto,
brilhava uma vela; era, pois, muito natural que a sua sombra se desenhasse na
parede do vizinho. Ela destacava-se entre as fIores e repetia todos os movimentos
do sábio.
«Creio que a única coisa que ali vive, em frente, é a minha sombra: como
ela se instala elegantemente entre as flores, junto à porta entreaberta! Devia ser
bastante fina para entrar, ver o que se passa e vir-mo contar.»
- Vamos! - gritou ele, por gracejo. - Ao menos, mostra que serves para al-
guma coisa. Entra!
E fez com a cabeça um sinal à Sombra, e a Sombra repetiu o sinal.
- Vai! Mas não fiques lá muito tempo.
A estas palavras o sábio levantou-se e a Sombra fez o mesmo que ele.
Voltou-se e a Sombra voltou-se igualmente. Mas alguém que tivesse prestado aten-
ção teria visto que a Sombra entrava, pela porta entreaberta, em casa do vizinho, no
momento em que o sábio, por sua vez, entrava no seu quarto, correndo atrás de si
o cortinado.
No dia seguinte, quando saiu, para ir tomar o seu café e ler os jornais, es-
tando ao sol, exclamou, de repente:
- Que é isto? Onde está a minha sombra? Terá ela, realmente, partido on-
tem à noite e ainda não terá vindo? É excessivamente aborrecido!
Grande era a sua contrariedade, não por a Sombra ter desaparecido, mas
porque ele conhecia, como toda a gente nos países frios, a história de um homem
sem sombra, e, se um dia, quando regressasse, contasse a sua própria história,
acusá-lo-iam de plagiário, acusação que de nenhum modo merecia. Resolveu, pois,
não falar nisso a ninguém. E fez bem.
À noite, voltou à varanda, depois de ter colocado a luz bem por detrás dele,
com o fim de fazer voltar a sua sombra; mas foi em vão que se estendeu, se enco-
lheu e repetiu a mesma palavra: «Vem! vem!» A sombra não apareceu.
Esta separação atormentou-o muito; mas, nos países quentes, tudo cresce
depressa, e, ao fim de oito dias, notou, com grande prazer, que das suas pernas,
enquanto passeava ao sol, saía uma nova sombra. Provavelmente ficara lá a raiz da
antiga. Ao fim de três semanas, tinha uma sombra decente, que, em viagem para
os países do Norte, cresceu de tal forma, que o nosso sábio até se contentaria com
metade.
De regresso ao seu país, escreveu vários livros sobre o que o mundo tem
de verdadeiro, de belo e de bom, e, assim, muitos anos se passaram.
Um dia, estava ele sentado no seu quarto, quando alguém bateu à porta.
- Entre! - disse.
Mas ninguém entrou. Foi abrir e viu um homem muito alto e muito magro,
correctamente vestido e com ar distinto.

90
XVI Encontro de Literatura para Crianças
- A quem tenho a honra de falar? - perguntou o sábio.
- Já calculava que o senhor não me reconheceria - respondeu o homem,
delicadamente. - Vê? É que eu fiz-me corpo; tenho carne e uso fato. Não reconhece
a sua antiga sombra? O senhor julgou que eu nunca mais voltasse. Tive muita sorte,
depois que o deixei; estou rico e tenho, por conseguinte, meios para me resgatar.
E fez tilintar um molho de berloques ligados à pesada corrente de ouro do
relógio, enquanto os seus dedos, cobertos de brilhantes, lançavam mil chispas.
- Ainda não estou em mim! - disse o sábio. – Que significa isto?
- Realmente, é extraordinário, mas o senhor mesmo não é também um
homem extraordinário? E eu, sabe-o muito bem, segui, desde a infância, os seus
exemplos. Achando-me amadurecido para fazer sozinho o meu caminho na vida, o
senhor lançou-me nela, e eu colhi perfeito êxito. Senti desejo de o ver antes da sua
morte e, ao mesmo tempo, visitar a minha pátria. O senhor bem sabe, ama-se sem-
pre a pátria. Como sei que o senhor tem outra sombra, cumpre-me perguntar-lhe
agora se devo alguma coisa a ela ou ao senhor. Faça favor de dizer.
- És então tu, realmente! - respondeu o sábio. É extraordinário! Nunca pen-
sei que a minha antiga sombra me voltasse sob a forma de um homem.
- Diga o que devo - redarguiu a Sombra. - Não gosto de dívidas.
- De que dívidas falas tu? Crê que me sinto feliz com a tua sorte. Senta-te,
velho amigo, e conta-me tudo o que se passou. Que vias tu em casa do vizinho, no
país quente?
- Contar-Iho-ei, mas com uma condição: é que jamais dirá a ninguém, daqui
da cidade, que eu fui a sua sombra. Tenciono casar-me; os meus meios permitem-
-me sustentar família e até mais do que isso.
- Fica tranquilo! Não direi a ninguém quem tu és. Aqui tens a minha mão,
prometo-te. Um homem é um homem e uma palavra…
- E uma palavra é uma sombra.
Ditas estas palavras, a sombra sentou-se e, ou fosse por orgulho ou para
aprender, colocou os pés calçados de botas de verniz sobre o braço da nova som-
bra, que repousava aos pés do dono como um cão de água. Esta conservava-se
muito quieta para ouvir, tão impaciente estava por saber como poderia libertar-se e
tornar-se senhora de si própria.
- Veja se adivinha quem morava no quarto do vizinho! começou a primeira
Sombra. - Era um ente encantador, era a Poesia. Permaneci lá três semanas, e este
tempo valeu para mim três mil anos. Li todos os poemas possíveis, conheço-os
perfeitamente. Através deles vi tudo e tudo sei.
- A Poesia! - exclamou o sábio. - Sim, é verdade; não era, mais que um
eremita no meio das grandes cidades. Vi-a por um instante, mas o sono pesava-me
sobre os olhos. Brilhava na varanda como uma aurora boreal. Vamos! Continua.
Uma vez passada a porta entreaberta...
- Encontrei-me na antecâmara; estava um pouco escuro, mas distingui na
minha frente uma fila imensa de quartos, cujas portas se encontravam abertas de
par em par. Fazia-se luz a pouco e pouco e, sem as precauções que tomei, teria sido

91
XVI Encontro de Literatura para Crianças

fulminado pelos raios, antes de chegar junto da donzela.


- Mas, afinal que vias tu? - perguntou o sábio.
- Eu via tudo, como lhe disse há pouco. Não é por orgulho, evidentemente;
mas, como homem livre e com os meus conhecimentos, sem falar da minha posição
e da minha fortuna, desejo que não me trate por tu.
- Peço-lhe perdão; é um hábito antigo. Tem toda a razão, isso não acon-
tecerá mais. Enfim, que via o senhor?
- Tudo! Eu vi tudo e sei tudo.
- Que aspecto ofereciam as salas interiores? Pareciam-se com a fresca
floresta, com uma santa igreja ou com o céu estrelado?
- Pareciam-se com tudo isso. É verdade que eu não as atravessei; mas, da
antecâmara, vi tudo.
- Mas, enfim, os deuses da antiguidade passavam por essas salas? Os anti-
gos heróis combatiam lá? Porventura encantadoras crianças brincavam e contavam
aí os seus sonhos?
- Repito-lhe mais uma vez que vi tudo. Entrando ali, o senhor não se con-
verteria em homem, mas eu converti-me. Aprendi ali a conhecer a minha verda-
deira natureza, os meus talentos e o meu parentesco com a poesia. Quando eu
ainda estava consigo, nunca reflectia nisso; mas o senhor deve recordar-se como
eu aumentava sempre ao nascer e ao pôr do Sol. Ao luar, eu parecia quase mais
distinto que o senhor mesmo; somente, não compreendia então a minha verda-
deira natureza; foi na antecâmara para onde me enviou, que aprendi a conhecê-la.
Estava amadurecido no momento que me lançou no mundo, mas o senhor partiu,
de repente, deixando-me quase nu. Depressa me envergonhei ao encontrar-me em
tal estado; precisava de vestuário, de botas, de todo esse verniz que faz o homem.
Escondi-me, digo-lhe sem receio, persuadido de que o senhor não o publicará,
debaixo das saias de uma confeiteira que ignorava o meu valor. Só à noite é que eu
saía para percorrer as ruas, ao luar. Subia e descia ao longo das paredes, olhando,
pelas grandes janelas para dentro dos salões, e, pelas clarabóias, para as mansar-
das. Eu vi por onde ninguém podia ver e o que ninguém podia nem devia ver. Para
lhe dizer a verdade, este mundo é muito vil; e, se não fosse este preconceito de que
um homem significa alguma coisa, eu não me preocuparia em o ser. Vi coisas inima-
gináveis entre as mulheres, entre os homens, entre os pais e as crianças encanta-
doras. Vi o que ninguém havia de saber, mas o que todos anseiam por saber - o mal
do próximo. Se tivesse escrito um jornal, devorá-lo-iam; mas antes queria escrever
às próprias pessoas, e em todas as cidades onde eu passava, desencadeava-se um
terror inaudito. Temiam-me e amavam-me. Os professores fizeram-me professor, os
alfaiates deram-me fatos; tenho-os em grande quantidade; o director da Casa da
Moeda cunhava-me belas moedas; as mulheres achavam-me gentil. Foi assim que
me tornei no que sou. E agora apresento-lhe os meus respeitos. Eis o meu cartão;
moro do lado do sol e, em tempo de chuva, encontrar-me-á sempre em casa.
Ditas estas palavras, a Sombra saiu.
- É na verdade, um caso muito notável - murmurou o sábio.

92
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Exactamente um ano depois, voltou a Sombra.
- Como está? - perguntou ela.
- Escrevi acerca da verdade, da beleza e da bondade, mas ninguém deu
atenção a tudo isso. Estou desesperado.
- Faz mal; olhe para mim; eu engordo, e é o que é preciso. O senhor não
conhece o mundo. Aconselho-o a fazer uma viagem; e, melhor ainda, como ten-
ciono fazer uma este Verão, dar-me-á muito prazer se me quiser acompanhar, na
qualidade de sombra. E eu pago a viagem.
- O senhor vai longe de mais.
- Isso é conforme. Pode estar certo de que a viagem lhe fará bem. Seja a
minha sombra, não tem nenhuma despesa a fazer.
- É de mais! - disse o sábio.
- O mundo é assim e será sempre assim - redarguiu a Sombra, indo-se
embora.
O sábio sentia-se cada vez pior, à força de aborrecimentos e desgostos.
O que ele dizia da verdade, da beleza e da bondade, produzia na maior parte dos
homens o mesmo efeito que as rosas numa vaca.
- Você parece uma sombra - disseram-lhe uma vez, e isso fê-lo estreme-
cer.
- O senhor precisa de tomar banhos - aconselhou-lhe a Sombra, que o
tinha voltado a ver -, é o único remédio. Irei consigo, pois a minha barba não cresce
convenientemente, e isto é doença. É preciso ter barba. Eu pago a viagem; o senhor
fará a descrição e isso entreter-me-á pelo caminho. Seja razoável. Aceite a minha.
oferta, viajaremos como antigos camaradas.
Puseram-se a caminho. A Sombra tornara-se o amo, e o amo convertera-
se na sombra. Por toda a parte eles se seguiam um ao outro, sempre em contacto,
pela frente ou por trás, conforme a posição do Sol. A Sombra sabia sempre ocupar
o conveniente lugar do amo, e o sábio não se formalizava com isso. Estava com boa
disposição e um dia disse à Sombra:
- Visto que somos companheiros de viagem e que temos crescido juntos,
tratemo-nos por tu, é mais íntimo.
- O senhor fala com franqueza - disse a Sombra, ou, antes, o verdadeiro
amo -, eu também lhe vou falar com franqueza. Na qualidade de sábio, o senhor
deve saber quão estranha é a Natureza. Há pessoas que não podem tocar um bo-
cado de papel pardo sem se sentirem mal; outras tremem quando ouvem esfregar
um prego numa vidraça; quanto a mim, sinto a mesma sensação quando ouço
tratarem-me por tu: afigura-se-me que isso me deita por terra, como no tempo em
que eu era a sua sombra. Bem vê que isto em mim não é orgulho, mas sentimento.
Não posso deixar-me tratar por tu, mas tratá-Io-ei a si: será metade do que deseja.
A partir desse momento, a Sombra tratou por tu o seu antigo amo.
«Esta é forte! - pensou este. - Eu trato-o por senhor e ele trata-me por tu.»
Não obstante, resignou-se.
Chegados aos banhos, encontraram uma grande quantidade de es-

93
XVI Encontro de Literatura para Crianças

trangeiros; entre outros, uma formosa princesa. que, afectada de um sinal inquieta-
dor, via claro de mais.
Com esta qualidade, distinguiu a Sombra entre todas as outras pessoas.
«Ele veio aqui para fazer crescer a barba, segundo dizem; mas a verdadeira causa
da sua viagem é que não tem sombra nenhuma.»
Cheia de curiosidade, estabeleceu, durante um passeio, conversação com aquele
estrangeiro. Na sua qualidade de princesa, não necessitava de fazer muitos rodeios
e, por isso, lhe disse:
- A sua doença é não produzir sombra.
- Vossa Alteza Real acha-se felizmente muito melhor - respondeu a Sombra.
- Sofria de ver demasiado claro, mas agora está curada, pois não vê que tenho uma
sombra, e até uma sombra extraordinária? Vê a pessoa que me segue continua-
mente? Não é uma sombra vulgar. Do mesmo modo que, às vezes, se dá por libré
aos criados um tecido mais fino que aquele próprio que se usa, assim eu adornei a
minha sombra como um homem. Até lhe dei uma sombra. Por muito caro que isso
me custe, eu gosto de ter coisas que os outros não têm.
«O quê! - pensou a princesa. - Estarei realmente curada? É verdade que a
água, na época em que vivemos, possui uma virtude singular, e estes banhos têm
grande reputação. No entanto, não os deixarei ainda; divirto-me aqui muito e este
rapaz agrada-me. Oxalá que a barba lhe não cresça, porque, então, vai-se em-
bora!»
À noite, a princesa dançou com a Sombra no grande salão de baile. Ela era
muito ágil, mas o seu cavalheiro ainda o era mais; nunca encontrara um como ele.
Disse-lhe o nome do seu país, que ele conhecia muito bem, pois tinha olhado para
ele através das janelas do comboio. Ele contou mesmo à princesa certas coisas,
que a surpreenderam bastante. Decerto, era o homem mais instruído do mundo!
Ela testemunhou-lhe, pouco a pouco, toda a sua estima e, quando mais uma vez
dançaram, traiu o seu amor por olhares que pareciam atravessá-lo. Não obstante,
como erá rapariga sensata, disse para consigo: «Ele é instruído, está bem; dança
perfeitamente, ainda está bem; mas possui acaso conhecimentos profundos? É
isso que há de mais importante; vou examiná-lo um pouco a este respeito.»
E começou a interrogá-lo sobre coisas de tal modo difíceis, que ela própria não
seria capaz de responder. A sombra fez uma careta.
- Então, não sabe responder? - interrogou a princesa.
- Eu sabia tudo isso na minha infância - respondeu a Sombra - e estou
certo de que a minha sombra, que vedes ali, em frente da porta, lhe responderia
facilmente.
- A sua sombra! Seria muito de admirar.
- Não estou bem certo disso, mas julgo que sim, visto que ela me seguiu e
escutou durante tantos anos. Somente, Vossa Alteza Real permitir-me-á que chame
a sua atenção para um facto muito particular: esta sombra está de tal forma or-
gulhosa de permanecer junto a um homem, que para a encontrar de bom humor,
condição necessária para responder bem, é preciso tratá-la absolutamente como

94
XVI Encontro de Literatura para Crianças
se fosse uma pessoa.
- Estou de acordo - disse a princesa.
E aproximou-se do sábio para lhe falar do Sol, da Lua, do homem sob todos
os aspectos. Ele respondia-lhe convenientemente e com muito espírito.
«Que homem tão distinto - pensou ela - para ter uma sombra tão sábia!
Seria uma benção para o meu povo, se eu o escolhesse para esposo.»
E a princesa e a Sombra depressa ajustaram o casamento; mas ninguém o
devia saber antes de a princesa ter regressado ao seu reino.
- Ninguém! Nem mesmo a minha sombra - disse a Sombra, que tinha razões
para isso.
Logo que eles chegaram ao país da princesa, a Sombra disse ao sábio:
- Escuta, meu amigo: sou feliz e poderoso até ao máximo, e vou agora dar-
-te uma prova particular da minha benevolência. Habitarás o meu palácio, tomarás
lugar a meu lado na carruagem real e receberás cem mil escudos por ano. No
entanto, ponho uma condição para isso: é que te deixes qualificar de sombra por
toda a gente. Nunca dirás que foste um homem, e, uma vez por ano, quando eu me
mostrar ao povo na varanda iluminada pelo sol, deitar-te-ás a meus pés como uma
sombra. Está assente que eu despose a princesa e a boda efectua-se esta noite.
- Não, é de mais! - exclamou o sábio. Nunca consentirei nisso; vou desen-
ganar a princesa e todo o país. Quero dizer a verdade: sou um homem, e tu, tu não
és mais do que uma sombra vestida.
- Ninguém te acreditará: sê razoável, ou chamo a guarda.
- Vou já ter com a princesa.
- Mas eu chegarei em primeiro lugar e mandar-te-ei prender.
E a Sombra chamou a guarda, que já obedecia ao noivo da princesa, e o
sábio foi levado.
- Tu estás a tremer! - disse a princesa, quando voltou a ver a Sombra. - Que
há? Tem cuidado, não adoeças no dia da tua boda.
- Acabo de assistir a uma cena cruel: a minha sombra enlouqueceu. Ima-
gina que se lhe meteu na cabeça que é um homem, e que eu sou a sua sombra.
- É horrível! Espero que a tenham fechado.
- Sem dúvida; receio que nunca mais se restabeleça.
- Pobre sombra! - disse a princesa. - É bem infeliz. Talvez fosse um bene-
fício tirar-lhe o pouco de vida que lhe resta. Sim, pensando bem, julgo necessário
acabar com ela em segredo.
- É uma resolução medonha – respondeu a Sombra, fingindo que suspirava.
– Perco um servidor fiel.
“Que nobre carácter!” – pensou a princesa.
À noite, toda a cidade esteve iluminada, e dispararam-se salvas de arti-
lharia; por toda a parte se ouvia músicas e cantares. A princesa e a Sombra mostra-
ram-se à varanda, e o povo, ébrio de alegria, aclamou-os três vezes.
O sábio não viu nada, não ouviu nada, porque o tinham matado.

95
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Depois da intervenção da Professora Leonor Riscado, vamos assistir à in-


tervenção do Professor Rui Veloso, que nos vai dar continuidade a este
tema – “Viajantes Intranquilos – homenagem a Hans Christian Andersen”.

O Professor Rui Veloso começou a sua actividade docente em 1967, no


Liceu de Chaves. É mestre em Literatura Portuguesa Contemporânea, na
especialidade de literatura infantil e professor adjunto na Escola Superior de
Educação de Coimbra, a cujos órgãos de gestão pertenceu durante nove
anos. Mantém uma actividade científica e pedagógica intensa, traduzida na
docência e supervisão de estágios, na publicação de artigos em revistas
nacionais e internacionais, na concretização de acções para professores,
na colaboração com outras instituições de ensino superior e com o Minis-
tério da Cultura, na intervenção em projectos europeus, na participação em
congressos e realização de conferências em Portugal e no estrangeiro. Em
1993 é admitido como membro efectivo no IRSCL, que é uma associação
internacional de investigação em literatura infantil e é co-fundador da As-
sociação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil, na Secção
Portuguesa do IBBY e do Teatrão, teatro para a infância de Coimbra.

Ora, um grande obrigada ao Professor Rui Veloso por nos ter trazido, aqui,
a pretexto da obra de Andersen, tantas outras vozes de autores, que nós,
gostosamente, homenageamos.

Creio que quem está sentado lá atrás, não tem visibilidade suficiente para
perceber que muitas das referências que foram feitas se situam em escri-
tores do nosso tempo que, felizmente, se encontram entre nós, aqui nesta
sala, na fila da frente.

É sobretudo a eles que nós, hoje, homenageamos a partir deste regresso à


obra de Andersen.

96
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Leonor Riscado

Hans Christian Andersen


da Dinamarca para o Mundo

Hans Christian Andersen nasceu a 2 de Abril de 1805, em Odense, na ilha


de Fiónia, de uma família muito pobre. Quase sempre assim começam as
inúmeras biografias do escritor dinamarquês, nada fazendo pois prever que
sessenta e dois anos mais tarde - corria já o ano de 1867 - se visse cidadão
honorário da cidade onde nascera, rodeado da admiração dos concidadãos,
do brilho das luzes e dos discursos com que o acolhiam e festejavam1.

Filho de um sapateiro, Hans Andersen, que ganhava a vida a consertar sa-


patos, não fazendo sequer parte da Corporação dos Sapateiros, ele tinha
no pai um homem amargurado por não ter podido seguir os estudos para os
quais se sentia dotado2. A mãe de Andersen, Anne-Marie Andersdatter, sete
ou oito anos mais velha que o marido, com quem casara dois meses antes
de Hans Christian nascer, já tinha uma filha de outro homem; a avó por parte
da mãe estivera presa depois de ter dado à luz o terceiro filho ilegítimo. Dos
avós paternos, registam-se a mitomania da avó que insistia no parentesco
com a nobreza alemã, por via de uma hipotética antepassada, e a loucura
do avô cujas extravagâncias provocavam o escárnio geral. Da recordação
deste avô herdou Andersen o medo de também ele vir a ficar demente pois
tinha nítida consciência, como escreveu posteriormente, que era da sua
carne e do seu sangue3; em relação à meia-irmã, prostituta, teve sempre re-
ceio que ela lhe aparecesse para o atormentar, o que de facto veio a acon-
tecer, provocando-lhe grande embaraço4. A pobreza do então jovem casal
1 Sobre a vida e obra de Hans Christian Andersen registem-se, em Portugal, de Adolfo Simões Müller,
o primeiro volume da colecção para a infância e juventude, “Histórias de Sempre”, O Contador de
Histórias – o conto de fadas da vida de Andersen e as suas mais belas histórias, Lisboa, Figuei-
rinhas, 1982 e, de Silva Duarte, o estudo Andersen e a sua Obra, Lisboa, Livros Horizonte, 1995. Para
além destes dois títulos recordem-se, também, de Maria Isabel de Mendonça Soares, Hans Christian
Andersen Vida e Obra, Lisboa, Ministério da Educação e Cultura, 1974 e a Homenagem a Hans Chris-
tian Andersen no Aniversário da Sua Morte 4 de Agosto de 1989, Sintra, (org.) Câmara Municipal de
Sintra, 1989. Além desses, encontra-se na tradução de Ana de Castro Osório e Lisa Tilberg, A princesa
e a ervilha e outros contos, Lisboa, Vega, 1993, um capítulo da responsabilidade daquela pedagoga
sobre a vida de Andersen, intitulado “A mais linda história do livro”, a pp. 87-95.
2 A propósito do meio social desfavorecido que rodeou a infância de Andersen e da sua posterior ascen-

são, veja-se o esclarecedor Prefácio de Marc Auchet a Andersen, Contes, (Préface, Notes et Traduction
Nouvelle par Marc Auchet), Paris, Classiques de Poche, 2003.
3 Estes e outros receios de Andersen aparecem referidos por Naomi Lewis, na sua Introdução a Hans

Andersen’s Fairy Tales – a Selection, (Translated from the Danish by L. W. Kingsland and an Introdu-
ction by Naomi Lewis), Oxford-New York, Oxford University Press, 1998, p. X.
4 Idem, Ibidem, p. X.

97
XVI Encontro de Literatura para Crianças

– em 1805, o pai de Andersen tem apenas vinte e dois anos – é tanta que
a cama foi improvisada com a madeira do catafalco da igreja onde estivera
exposto o ataúde de um nobre5 o que levou, algum tempo depois, a criança
a interrogar-se sobre o que seriam uns pedaços de pano preto que pendiam
do leito6. E numa descrição do ambiente e da casa da infância, recorda An-
dersen, mais tarde - No algeroz, entre a nossa casa e a do vizinho, tinham
posto uma calha cheia de terra, onde cresciam magnificamente cebolinhas
e salsa: e a isto se reduzia a horta da minha mãe7. A própria infância da mãe
lhe causa dor, quando sabe que, obrigada pelos pais a pedir esmola, ela
chorava e se escondia debaixo da ponte, sem ousar voltar para casa – Com
a minha imaginação de criança conseguia ver tão bem esta cena que só de
pensar nela as lágrimas corriam-me8. As carências materiais eram de tal or-
dem que o facto de, no dia da Confirmação, ter tido o primeiro par de botas
novas feitas pelo pai lhe provocou tamanha alegria que quase lhe desviou a
atenção da cerimónia religiosa e isso provoca-lhe um remorso que o leva a
confessar: A minha devoção foi perturbada. Dava-me conta disso e estava
torturado porque os meus pensamentos iam tanto para os meus sapatos
como para o bom Deus9 ; para complicar mais a situação, vinham-lhe tam-
bém, provavelmente, à memória uns sapatos de baile, vermelhos, com os
quais esse mesmo pai falhara a prova de admissão no castelo vizinho que
buscava um sapateiro10 e, entre a realidade presente e a experiência pas-
sada, o seu espírito devoto entretinha-se a deambular, sempre, por outras
paragens. Com o pai terá aprendido a imaginar e talvez esta sua tendência
para a imaginação e o inconformismo lhe tenha salvo a infância e o futuro
porque, a par dela, terá recebido como carga genética paterna a tendên-
cia para a melancolia, a hipersensibilidade e a instabilidade emocional. Em
contrapartida, a mãe ter-lhe-á incutido, lado a lado com uma enorme dose
de superstição e uma religiosidade ingénua, a capacidade de sobreviver
através das agruras da vida11. A partir desta polifacetada herança, Hans
Christian Andersen vai criar, para si próprio e transmitir aos outros, a ideia
jamais desmentida de que a sua vida foi um “belo conto”12 e de que o bom
Deus dispõe tudo pelo melhor. Assim, também a Providência protege os
eleitos mas, para isso, eles devem demonstrar merecê-lo13. A impressão
5 Estas e outras informações sobre a vida de Andersen e as suas memórias da infância surgem em Car-
men Bravo-Villasante, na sua História da Literatura Infantil Universal, vol. I, Lisboa, Vega, 1977.
6 Adolfo Simões Muller, op. cit., p.23.
7 Carmen Bravo-Villasante, op. cit., p.54.
8 Idem, Ibidem, p.55.
9 A citação é extraída do Prefácio de Alain Faudemay a Andersen – Contes choisis, Paris, Gallimard,

2001, p. 25.
10 Esta é a hipótese avançada por Adolfo Simões Muller, op. cit., pp. 30-32.
11 Alguns destes aspectos são referidos na Introdução já citada de Naomi Lewis, a pp. X e XI.
12 O texto consultado encontra-se em Project Gutenberg’s The True Story of My Life, by Hans Christian

Andersen, na página www.gutenberg.net


13 Carmen Bravo-Villasante, op. cit., p.56.
98
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que ele apresenta sobre a sua infância é, apesar de todas as adversidades,
a de uma infância feliz e esse sentimento de felicidade infantil também
nunca foi negado. É, contudo normal que estes condicionalismos da ju-
ventude tenham levado à sua omnipresente admiração e simpatia pelos
pobres e desfavorecidos14, em detrimento dos poderosos, excepto quando
estes manifestam benevolência e humanidade. Na sua ingenuidade, de-
certo conservou na memória as profecias da vidente que predissera à mãe
o reconhecimento mundial para aquele filho, em louvor do qual Odense se
iluminaria e, juntamente com a recordação de alguns contos narrados ou
lidos pelo pai, fácil se lhe tornou imaginar que, depois de algumas duras
provas, a glória chegaria.

Para atingir a celebridade, Andersen parte, em 1819, com catorze anos e


magras bagagens, em direcção a Copenhaga. Um desejo incomensurável
de se tornar célebre a qualquer preço fá-lo passar fome, submeter-se ao
ridículo15 e ocupar-se de ínfimas e variadas tarefas menores que o aproxi-
massem do mundo do Teatro Real pois o seu grande anseio era ser actor.
Esta predisposição vem-lhe dos tempos de criança, quando depois de ter
visto uma peça de Holberg, se deliciou a escrever peças para os bonecos
com que, juntamente com o pai – entretanto falecido em 1816 – ensaiava as
suas representações. A vida em Copenhaga mostrou-se difícil e mais não
conseguiu do que desempenhar papéis insignificantes em uma ou outra
peça, até que conseguiu a protecção de um amigo que o adoptou para
sempre, Jonas Collin, membro da comissão do Teatro Real. Uma vez con-
fiado ao director da Escola Latina de Slagelse, o reitor Simon Meisling, onde
ficará até 1827, Andersen vai encetar os cinco anos mais sombrios da sua
existência devido à dureza e tirania do mestre de quem só se liberta defini-
tivamente quando é admitido na Universidade, em 1828, então já com 23
anos.

Algumas tentativas literárias foram surgindo e a narrativa de viagens, Via-


gem a pé do Canal de Holmen à Ponta Leste de Amager, de 1829, influen-
ciada por Hoffman e Heine, teve boa recepção por parte da crítica.

O seu primeiro desgosto de amor surge com a irmã de um colega estu-


dante, Riborg Voigt, que conheceu numa viagem de vários meses à Jut-
14 Sobre a vida, obra e filosofia de Hans Christian Andersen, veja-se Marc Soriano, Guide de Littérature
pour la Jeunesse, Paris, Flamarion, 1975, “Hans Christian Andersen”, pp. 42-46.
15 Entre as suas primeiras tentativas desastradas para entrar para o Teatro conta-se a da entrevista com

Madame Schall diante de quem H. C. Andersen cantou e dançou de tal forma empolgado que ela o
julgou louco. A este propósito e, também, a propósito da sua difícil escalada para a fama, veja-se Silva
Duarte, op. cit., “Uma Biografia”.
99
XVI Encontro de Literatura para Crianças

lândia e à Fiónia, em 1830. O compromisso de Riborg com outro jovem,


fará com que a atracção – que parece ter sido partilhada – não tenha tido
resultados práticos e eles só se verão doze anos mais tarde, ela já casada
e com filhos. De uma sensibilidade feminina, marcado pelo desgosto da
rejeição, Andersen foge e empreende a sua primeira viagem ao estrangeiro;
as viagens que, para ele, paradoxalmente, eram imprescindíveis como a
Vida - “Viajar é Viver!” - e lhe causavam terrores e fobias16 , serviram, tam-
bém, decerto, para o afastar de outros desgostos de amor provocados por
Sofia Orsted, Louise Collin, filha do seu protector Jonas Collin, ou a cantora
sueca Jenny Lind; até ao fim da sua vida, para além da Alemanha, fará
mais de trinta viagens que o levarão a França, à Suiça, à Itália, onde se
demora por Roma e Nápoles, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Escócia, Suécia,
Noruega, Turquia, Espanha e Portugal que dá origem ao relato Uma visita
em Portugal em 186617. Em 1835, Andersen completa, na Dinamarca, O
Improvisador, romance iniciado em Roma, que lhe abrirá definitivamente as
portas do sucesso e o consagrará como escritor de importância europeia.
Mas serão os Contos para crianças deste mesmo ano que farão comentar
ao físico Orsted que se «O Improvisador» o tinha tornado famoso, os contos
fá-lo-iam imortal18, numa notável prefiguração do valor da sua obra con-
tística, e em total desacordo com as agoirentas palavras da crítica, para
quem tinham muitos pontos fracos, além de serem deploráveis do ponto de
vista moral19 . É também Orsted quem, referindo-se ao conjunto dos contos
de Andersen, afirma que eles agradaram, em primeiro lugar pelo seu roman-
tismo, e depois pela sua sensibilidade e humor20 .

Até ao dia da sua morte, a 4 de Agosto, em Copenhaga, Hans Christian


Andersen escreveu mais contos e histórias, num total de 156 títulos21, afas-
tando-se, progressivamente, dos temas populares e das histórias ouvidas
em criança, para desenvolver um estilo, cada vez mais, pessoal e único, em
que as suas vivências afloram constantemente, em que o contador-actor
cria tantas máscaras que, através delas, se desvela e desnuda de forma
bem mais integral do que nos seus diários, protegido aqui pelo véu da fan-
16 Refere Silva Duarte, em Andersen e a sua Obra, que ele transportava sempre na bagagem uma longa
corda para se poder salvar caso houvesse algum incêndio.
17 Esta viagem a Portugal surgiu do convite feito por Jorge O’ Neill; este, bem como seu irmão, José

O’ Neill, filhos do Cônsul de Portugal na Dinamarca, travaram conhecimento com Andersen, em casa
do Almirante Wulff, em Copenhaga, nos tempos de juventude. A edição portuguesa mais recente desta
obra é traduzida directamente do dinamarquês, tem prefácio e notas de Silva Duarte, e foi publicada
pela Gailivro, em 2003.
18 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra, p. 15.
19 Idem, ibidem.
20 Marc Soriano, op. cit., p.43.
21 Veja-se The Hans Christian Andersen Center www.andersen.sdu.dk onde surge a listagem dos títulos

dos contos em dinamarquês assim como se indicam as suas traduções.


100
XVI Encontro de Literatura para Crianças
tasia. Não precisou de se contentar com o fugaz papel de figurante da ju-
ventude pois ganhou, para si e para a eternidade, o estatuto de estrela que
tanto perseguiu, e quando, já na velhice, vem a descobrir, através de uma
fotografia, que afinal se tornara respeitável e digno, quase belo, isso enche-
-o de uma alegria infantil22. Ao ver-se transfigurado nesse retrato tardio
talvez tenha podido entender até que ponto também ele transfigurara tudo
o que escrevera através da magia que resulta do simples milagre do amor,
dessa ternura radiosa a que se pode chamar a inteligência do coração23;
talvez tenha então, também, visto como a sua aspiração de ser um escritor
de todos os tempos se concretizara, ele que tivera a intuição de que a in-
genuidade fora apenas um elemento dos contos mas o verdadeiro sal fora o
humor. A forma como contava, a oralidade que imprimia ao discurso, a viva-
cidade que dele se desprendia, os comentários cúmplices e coniventes, a
musicalidade e o ritmo encantavam crianças e adultos, que compreendiam
os contos dentro da medida das suas capacidades24. Hoje em dia, as mais
de cem línguas em que os contos de Andersen se encontram traduzidos
revelam o interesse que, ao longo dos tempos, eles despertaram, mas as
diferentes versões - sobretudo as traduções indirectas em larga escala - fa-
zem também pensar em que medida o acesso à genuinidade de Andersen
está, na maior parte dos casos, vedada aos seus leitores25.

As fontes de inspiração foi-as acumulando ao longo da vida, desde o fol-


clore nórdico, às narrativas d’As Mil e Uma Noites e da Bíblia, passando por
Anacreonte e Bocaccio, Hoffman, Heine, Chamisso e Walter Scott; vivendo
na junção de dois mundos – o velho e o novo – Hans Christian Andersen
sentiu-se atraído por alguns episódios históricos do passado da Dinamarca
bem como pela novidade e pelo progresso científico e daí a influência de
Orsted26; mas a maior e mais produtiva fonte de inspiração foi a sua vida
e a vida dos seres que o rodeavam. A sua fé cristã, que o levava a encarar
a morte como iluminação, libertação e continuidade da vida, e Deus como
um bom pai, acompanhou-o, em maior ou menor grau, ao longo da vida.
Uma parte da infância, com a sua ingenuidade e a sua capacidade de en-
22 Marc Soriano, op. cit., p.43.
23 Idem, Ibidem.
24 Relembramos o caso da leitura, por Andersen, d’ «O rouxinol», na casa do jurista berlinense Savigny,

referido por Alain Faudemay em Andersen – Contes choisis. Face às reacções sisudas da assistência,
o autor teve a estranha impressão que eles não compreenderam a história.
25 Em Portugal, existem traduções directas do dinamarquês, por Silva Duarte; consultaram-se Contos

de Andersen, Lisboa, Portugália, 3ªed., 1970; Hans Christian Andersen - Contos para Adultos, Bar-
celos, Civilização, 1979; Os cisnes selvagens e outros contos, Lisboa, Estampa, 2ª ed., 2003; Contos,
Lisboa, Estampa, 3ª ed., 2001. Para além destes, foi também possível aceder à tradução do dinamar-
quês, já indicada, de Ana de Castro Osório e Lisa Tilberg, A princesa e a ervilha e outros contos,
Lisboa, Vega, 1993.
26 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra.

101
XVI Encontro de Literatura para Crianças

tendimento superior das coisas permaneceu sempre nele mas toda a sua
existência foi marcada pela errância e pela solidão, pela procura de um lar
que nunca teve, e nunca conseguiu ou não quis construir; oriundo de uma
sociedade que extremava as classes sociais, marcou-o sempre o estigma
das suas origens e, mesmo quando reconhecido e admirado entre os ricos
e poderosos do Mundo do seu tempo, apesar de uma satisfação evidente,
certo desconforto permanecia nesse espírito hipersensível e orgulhoso.

O conto foi, para Andersen, não só forma de exorcizar as origens, elevando-


-se acima da sua condição, como também de se elevar acima dos pode-
rosos pela imortalidade do seu génio. De acordo com Isabelle Jan, duas
palavras resumem simultaneamente o seu génio e o seu destino: ele foi o
narrador e foi o viajante27. Na obra anderseniana, a oralidade precede e so-
brepõe-se à escrita, e em toda ela perpassa a interrogação sobre a natureza
do conto e o papel do contador que não se limita a subjazer à narrativa,
antes está lá presente sob várias formas. Para além disso, o narrador parte,
com frequência, à procura do conto, porque ele se esconde em todo o lado
e é preciso saber escutar e tocar as coisas pois aí reside a inspiração; não
basta ver de longe, é necessário aproximar-se e entrar uma vez que tudo
tem uma história de vida para contar.

Os temas dos seus contos28 desenvolvem-se à volta do núcleo constituído


pelo narrador, pelas personagens - humanas, animais ou objectos - e pelas
paisagens - externas ou internas - numa atmosfera de quase permanente
realismo, em que o sonho, por norma, não invade a vida real. Vamos en-
contrar, de 1835 a 1872, temas populares - expurgados e redimensionados
- mas, sobretudo, temas originais, com o cunho, ora humorístico, ora grave
de vários desdobramentos de um Andersen quase omnipresente, enver-
gando, muitas vezes, as vestes das personagens, vivendo por transferência
ou simpatia, até mesmo envelhecendo e recordando, num eterno retorno,
fazendo sempre ouvir a sua voz, particularmente nos contos “O Sapo”
(1866) e “O Patinho Feio” (1843).

“As Flores da Idinha” (1835) esboçam, desde cedo, uma performance de


Andersen enquanto jovem; o contraponto entre o pensamento animista
da infância, representado pela simbiose entre Idinha e o estudante, que
acreditam na “vida” das flores, e a razão dos adultos (o professor de Botâni-
27 A propósito de Andersen e dos seus contos destaca-se, pela originalidade de perspectivas, o capítulo
“Andersen ou la Réalité”, de Isabelle Jean, in La Littérature Enfantine, Paris, Les Éditions Ouvrières,
5ème édition, 1985, pp. 57-67.
28 As citações dos contos que, a partir de agora, se transcrevem foram retiradas das traduções portu-

guesas anteriormente indicadas


102
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ca e o Conselheiro de Chancelaria), que não compreendem o que consi-
deram estúpida fantasia, será recorrente nos seus contos; assim, também,
a simpatia manifestada pelo narrador perante aquele estudante que recorta
figuras divertidas e engraçadas: ora um homem que estava pendurado numa
forca e segurava um coração na mão, pois era um «ladrão de corações», ora
uma velha bruxa que cavalgava uma vassoura e tinha o marido no nariz. O
mesmo contraponto entre a imaginação positiva e a razão castradora surge
em “Dança, Dança, Minha Bonequinha!” (1871); as personagens são, uma
outra vez, o estudante e a criança que se opõem ao adulto – neste caso
a tia. Ameliazinha tinha tão só três anos mas gostava muito do estudante
que dava lições aos irmãos, porque era divertido e lhe ensinara uma can-
ção que ele próprio compusera e que achava excelente, uma canção que
ela e as suas bonecas entendiam; apenas a Tia Melle discordava porque,
tendo passado para além da ombreira da infância - nas palavras do narrador
- decerto perdera o entendimento. Em “Olavinho Fecha-os-Olhos” (1842),
o avô de Hialmar agradece a Olavinho Fecha-os-Olhos - personagem de
contornos andersenianos - as histórias que conta ao neto mas pede-lhe
também, como adulto, que não lhe baralhe as ideias; Hielmar, contudo, in-
diferente aos receios do avô, anseia pelas outras histórias que Olavinho tem
para contar. A clivagem entre o universo adulto e o universo infantil, a partir
das suas distintas formas de percepcionar o mundo, encontra no narrador
anderseniano e nas suas personagens – ali, o estudante, aqui Olavinho Fe-
cha-os-Olhos, ambos alter-egos do contador – o fiel de uma balança que
pende, invariavelmente, para o lado da infância e da sua inteligência do
coração.

O tema da morte, que desponta já em “As Flores da Idinha”, abre a porta


para a ideia da perenidade e da renovação, pois as flores, uma vez mortas e
enterradas, florirão no Verão e tornar-se-ão mais bonitas. Essa morte física
revela-se, muitas vezes, - na perspectiva anderseniana - como uma luz ou
um fogo que assegura a continuidade, a eternidade e o renovo, que é ele-
vação e não queda. É o que acontece no conto “O Linho” (1848) - quando
todo o papel se incendiou e no mesmo momento foi todo uma labareda (...)
foi tão alto no ar, como nunca o linho conseguira erguer a sua florzinha azul
e brilhou como nunca o pano de linho conseguira brilhar. Outras vezes, a
morte transporta consigo, em muitos casos, a ideia da resignação cristã e
da crença de uma vida feliz no Céu, como prémio do sofrimento na terra.
Assim se passa com a “A Rapariguinha dos Fósforos” (1845), provável refe-
rência à infância miserável da mãe de Andersen. A rapariguinha dos fósfo-
ros e a sua avó voaram em esplendor e júbilo, tão alto, tão alto! E não havia
aí nenhum frio, nenhuma fome, nenhum medo... estavam com Deus! Mas
103
XVI Encontro de Literatura para Crianças

as pessoas que a viram na rua, morta pelo frio, e a encontraram sorridente,


com os seus fósforos queimados, jamais souberam em que esplendor ela
com a velha avó tinham entrado no júbilo do Ano Novo! Esta percepção
cristã da vida e da morte pode conduzir ao sentimento de culpa, ao remorso
e consequente arrependimento. São disso exemplos os contos “Os Sapa-
tos Vermelhos” (1845) e “Ana Isabel” (1859). O percurso de expurgação dos
pecados mostra-se longo e doloroso em ambos os casos; a luta e o sofri-
mento constituem portagem necessária para transpor a ponte que separa
o Mal do Bem e a Infelicidade da Felicidade. Depois de ter expiado o seu
pecado de orgulho na terra, Karen alcança a paz no céu, e o coração ficou
tão cheio de luz de sol, de paz e de alegria que rebentou. A alma voou na
luz do sol para Deus e ninguém houve aí que lhe perguntasse pelos sapatos
vermelhos. Ana Isabel sente que tem de se penitenciar pelo facto de não
ter amado suficientemente o filho e, por isso, ver-se-á obrigada a travar um
duro combate com a sua consciência pesada a fim de recuperar a alma do
filho e a sua própria. E ela chega, enfim, à “casa de Deus” - Quando o Sol se
pôs completamente, já a alma de Ana Isabel se encontrava lá no alto, onde
não há nenhum temor, quando se lutou bem. E bem lutara Ana Isabel até ao
fim. É este comentário apreciativo do narrador que sublinha quanto é mais
importante o arrependimento e a penitência do que o pecado, uma vez que
este pode, com trabalho humano, dissolver-se na absolvição divina.

A identificação dos defeitos da sociedade desempenha um papel impor-


tante nos contos de Andersen e ele não se exime a uma revelação que
decorre, em grande parte, da sua experiência de vida; colocada no meio
de dois lugares e de dois meios sociais incompatíveis, não raras vezes,
a personagem anderseniana (tal como o próprio autor) fica separada de
todos para sempre, carente de afectos, de reconhecimento, marcada pela
solidão. Assim aconteceu com Ana Isabel que deixou o filho para ser ama
de uma criança a quem criou - o doce filho do conde - e que, anos volvidos,
já nem a lembrava sequer. Olhou-a, mas não disse uma palavra. Não a re-
conheceu. Esta separação entre o mundo dos ricos e o mundo dos pobres
surge também, de forma mais subtil, através do distanciamento provocado
pela interposição entre as personagens de objectos que as impedem de
tocar o outro ou pela própria distância que lhes permite verem-se, apenas
ao longe (referimo-nos às situações vividas pela Rapariguinha dos Fósfo-
ros” e pel’ ”O Firme Soldado de Chumbo” (1838). A dicotomia dos mundos
aparece plasmada num conto trágico, com fortes contornos biográficos,
que representa uma belíssima homenagem de Andersen à mãe - trata-se de
“Não Prestava Para Nada!” (1853), conto em que a senhora, dirigindo-se à
lavadeira, diz: Respeito os pobres (...) Perante Deus podem vir a ocupar um
104
XVI Encontro de Literatura para Crianças
lugar mais alto do que muitos ricos, mas, na terra, não se pode ir por cami-
nhos tortuosos quando se quer avançar ou voltar-se-á a carruagem (...).Essa
mesma realidade enforma-a, contudo, em humor para, simultaneamente,
desvelar e exorcizar o mal que a diferença causa e lhe causa; paradigmáti-
cos a esse nível são os contos “Tudo no Seu Devido Lugar” (1853) e “O
Jardineiro e o Senhor” (1871). No primeiro, um dos barõezinhos olha para
o retrato dos antepassados e comenta: - Mas não são verdadeiramente da
nossa família! (...) Ele era negociante de meias e ela moça de gansos. Não
eram como o papá e a mamã! Partindo do princípio de que “a verdade sai
da boca das criancinhas”, a criancinha em questão veicula a ideia, decerto
bem arreigada na sua mente, de que a nobreza de espírito e de carácter
são letra morta diante da riqueza e do prestígio social. Em “O Jardineiro e
o Senhor” a oposição mostra-se, desde logo, no título; Larsen, o jardineiro,
era um artista que - qual Andersen - encontra e mostra a beleza das coisas
onde ela deve ser procurada e não onde ela está exposta mas o dono do
solar e de Larsen apenas via, nos seus dotes, motivo de orgulho para si
próprio. As falas reproduzidas - Tudo o que Larsen faz - declarou Sua Se-
nhoria - é apregoado a todos os ventos. É um homem com sorte! Quase me
sinto orgulhoso de o ter ao meu serviço! - levam-nos a sentir, de forma mais
intensa, a ironia amarga que se desprende das palavras com que o nar-
rador aprecia o seu carácter e desmistifica os seus sentimentos - não era
orgulho o que sentia! Sabia que era o senhor, que o podia despedir, o que
não fazia, é claro, por ser boa pessoa; e nesta classe há muito boas pes-
soas, o que é também uma sorte para todos os Larsens. (Tal como Larsen,
também Andersen sabia o que era servir senhores que não sabem apreciar
os talentos que lhes passam ao lado). Ganha então outro sentido o brevís-
simo final - Pois é esta a história do jardineiro e do senhor! O apelo directo
do narrador ao ouvinte-leitor que fecha a história insinua uma cumplicidade,
uma simpatia indisfarçável do narrador pela personagem, que neste caso
passa a assumir-se como representante de toda uma classe desfavorecida
à nascença, logo desprezada ao longo da vida. Larsen/Anderse é uma per-
sonagem comovente pela ingenuidade e, simultaneamente, pela força de
vontade com que se entrega à busca da perfeição. Comovente, de uma
outra forma, se revela o conto “Filho de Porteiro” (1866). O narrador esta-
belece, logo no início do texto, a oposição social entre os intervenientes
- A família do general vivia no primeiro andar, a do porteiro na cave. Havia
uma grande distância entre as duas famílias, todo um andar e a posição
social. Os pais queriam, para Emiliazinha, um príncipe, mas um príncipe
verdadeiro; só o Génio de Jorge, as suas capacidades para a Arte, o seu
empenho, o ser arquitecto, os seus planos para a imortalidade não demo-
viam o general e a mulher mas... Jorge prosperou, veio a ser conselheiro de
105
XVI Encontro de Literatura para Crianças

estado e Emília veio, naturalmente, a ser a mulher do conselheiro de estado.


(Tal como Jorge, Andersen era humilde, tal como ele teve o Génio e a força
para atingir a imortalidade na Arte, só não obteve o Amor e apenas este
pormenor os separa)

O amor entre homem e mulher, nos contos de Andersen, pauta-se, regra


geral, pelo desacerto no bater dos corações, deixando o jovem, afectiva
e efectivamente exilado. Amor silencioso, viagem, sofrimento e libertação
pelo sono da morte são alguns dos ingredientes do belíssimo conto “Sob
o Salgueiro” (1853), que constituem, segundo o próprio Andersen, um par
de folhas da história da sua própria vida. (Tratar-se-ia, neste caso, do amor
infeliz pela cantora sueca, Jenny Lind). Em “Namorados” (1843), já o desen-
contro amoroso surgia como tema, terminando a história com o reencontro,
anos passados, do pião e da bola, prováveis representantes de Andersen e
de Riborg Voigt - e o pião não falou mais do seu antigo amor. Esvanece-se,
quando a namorada permanece cinco anos numa goteira a encharcar-se,
sim, já não se a conhece, quando se volta a encontrá-la no barril do lixo.

Tema recorrente é o da afinidade entre os objectos e os homens, que resulta


do pensamento animista de Andersen. O destino dos objectos é, também
ele, o reflexo desapiedado do destino humano na terra. Recordem-se, a
esse propósito, “A Agulha de Passajar” (1845) e “O Bule” (1864), escrito, se-
gundo Andersen, em Toledo, mas tendo muito mais de si próprio do que de
Toledo. A agulha, presumida e arrogante ao longo da vida, acaba na valeta
para todo o sempre; o bule, outrora tão orgulhoso que, reconhecendo em-
bora os seus defeitos, nunca falava deles, acaba, sem préstimo e lançado
para o jardim como um caco velho; as diferenças entre eles estão em que o
velho bule tem recordações que ninguém lhe pode tirar enquanto a agulha
nem isso tem; e as recordações são a pedra de toque da existência e do
conto que a perpetua, porque são elas sempre que tecem o conto – mais
ou menos trágico – da vida.

O interesse e a admiração pelo progresso científico nascente que permitirá


estabelecer pontes entre o velho e o novo serve de tema ao conto “A
Grande Serpente do Mar” (1871), metáfora para designar o cabo telegrá-
fico, grande e com o comprimento de milhas que os homens colocavam
no fundo, entre a Europa e a América; este conto permitir-lhe-á, também,
em tom paródico, analisar as reacções de compreensão ou estupefacção
dos peixes perante as invenções lá de cima. Dominados ambos pelo tom
bem-humorado surgem os temas do Teatro e do Teatro de Fantoches em
“A Comadre” (1866) e ”O Homem dos Fantoches” (1851); naquele, através
106
XVI Encontro de Literatura para Crianças
do discurso indirecto livre do narrador, ouve-se o delicioso pensamento
da Comadre que, mesmo doente, não perdia uma comédia – Não podia
decerto imaginar o Reino dos Céus sem que aí devesse haver também um
teatro. Não nos fora, em verdade, prometido, mas era de pensar que os
muitos actores e actrizes notáveis que para lá tinham partido antes, deves-
sem ter a sua esfera de acção continuada. A Arte e a reflexão sobre o Belo
dominam os contos “Psique” (1861) e “Que Bela!” (1859), sendo este último
pautado, em alguns momentos, por um humor construído sobre jogos de
linguagem que facilmente provocam o riso. A Poesia e o Poeta, a Literatura
e o Livro são outros tantos temas basilares de Andersen e através deles, ou
com eles, se realizam longas viagens de reflexão e auto-conhecimento em
“A Tia Dor-de-Dentes” (1872), “A Sombra” (1847), “O Duende em Casa do
Merceeiro” (1853) ou “O Aleijadinho” (1872).

Hans Christian Andersen, o filho do pobre sapateiro de Odense, sempre


sonhou ser actor, célebre e ganhar a imortalidade. Não se limitou, no en-
tanto, a sonhar. Intrépido, lutou durante toda a vida para o conseguir e, se
não homenageou Talma no palco do Teatro Real de Copenhaga, o grão da
sua voz ecoou através das cento e cinquenta e quatro actuações na Arte do
Conto. Elas granjearam-lhe o reconhecimento na Dinamarca e no Mundo.
Deixemo-lo descansar um pouco da longa viagem que tem feito ao longo
destes quase dois séculos. Façamos-lhe, agora, momentaneamente, a von-
tade e atendamos ao seu pedido: Quando vier o tempo de eu próprio com a
história da minha vida ser encadernado numa sepultura, ponde então como
inscrição: «Um bom humor». É a minha história. (“Um Bom Humor”)

107
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Rui Marques Veloso

Trilhos Andersenianos na
Literatura Infantil Portuguesa

Creio ser um facto constatado por todos a clara influência que Hans Chris-
tian Andersen exerceu e continua a exercer na criação literária para crian-
ças. Num outro plano, verificamos que ao longo de várias gerações os seus
contos preencheram o imaginário infantil, constituindo suporte de momen-
tos únicos que são os das histórias contadas pelos pais ou avós aos peque-
nos seres ávidos da descoberta do mundo e dos segredos que ele encerra.
Quem é que nunca se sentiu patinho feio, recusado e agredido pelos outros,
até descobrir um lugar ao sol? Quem é que nunca encontrou, no percurso
apressado para o local de trabalho ou para o espaço de lazer, meninas de
fósforos a pedirem-nos que compremos o pouco que têm para vender a fim
de fugirem à agressão quotidiana e prometida? Quem é que nunca reparou,
ao folhear as revistas da chamada vida social, que há certas princesas com
tamanha sensibilidade que encontram ervilhas incómodas onde se deveria
degustar a seda pura e os veludos mais caros? Quem é que nunca sentiu
asco pela estupidez e vaidade imperiais daqueles que, na sua prepotência,
se julgam, narcisicamente, os mais belos e os mais inteligentes?

Passados dois séculos sobre o nascimento de Andersen, a herança da


obra do autor permanece viva e reitera a verdade que todos sabemos – os
grandes autores superam a barreira do tempo e continuam a dar-nos nos
seus textos a frescura inicial. Em termos formais, a sua escrita é única,
pois cultiva um discurso narrativo dinâmico e envolvido por uma cinemática
que prende o destinatário extratextual, com uma sábia gestão dos ritmos
consentânea com a capacidade de visualização do receptor. No plano dos
conteúdos, a discussão sobre os seus contos não será tão pacífica, em es-
pecial pelo modo como valoriza a Providência divina e a morte como fonte
de Luz e solução para o sofrimento humano. Um aparente pessimismo re-
sultante do facto de em mais de metade dos seus contos o protagonista
morrer para encontrar a paz e o contacto com Deus. Mas será que pode-
mos fazer uma leitura tão redutora? Terá sido esta vertente a dominante na
influência exercida sobre os nossos escritores? Creio que não. É um facto
que em numerosos contos há como que um Bonjour, tristesse, que nos pre-
nuncia uma melancolia que irá acompanhar a narração até a um desenlace
108
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fatal; o herói vai soçobrar perante poderosas forças que se alimentam de
um determinismo que ultrapassa a força e a inteligência humana. Andersen
deixa verter para os contos as marcas de uma infância sofrida que molda-
ram para sempre o seu olhar, mesmo quando a fama e a fortuna passaram
a acompanhá-lo; não esqueçamos que os tempos que se viviam na época
eram de miséria generalizada e de fortíssimos contrastes sociais. Não vejo,
no entanto, na literatura portuguesa, precisamente porque os contextos são
outros e os movimentos estéticos são diferentes e não se confundem com
o romantismo tardio do autor dinamarquês, um seguidismo desta linha cria-
tiva.

Se olharmos a obra de Andersen numa perspectiva pragmática, verificamos


que a arte de contar ali encontrou sede própria. Todos os biógrafos e tes-
temunhos vários focam esta valência como um dos elementos mais impor-
tantes na caracterização da escrita anderseniana. Sobre esta arte tão pe-
culiar, António Torrado afirmava, há vinte anos, em entrevista ao vespertino
A Capital1 que a comunicabilidade do escritor para crianças, a comunicabi-
lidade sem demagogias, deve partir de uma transparência de escrita como
se as palavras não estivessem lá. É uma escrita em voz alta. Dificilmente en-
contraremos em toda a literatura universal destinada ou não às crianças um
autor que tenha conseguido, de forma sublime, associar a criação literária
à eterna arte de contar; saber captar a atenção permanente do leitor como
se de um ouvinte se tratasse. A infância de Andersen povoada de muitas
histórias contadas pelo pai associada às limitações escolares resultantes
de um certo abandono de que foi vítima até conquistar a protecção da
família Collin poderão explicar a especial sensibilidade para as marcas do
código oral. O que se passa na infância fica marcado, de forma indelével,
no espírito do homem. Ora, no primeiro quartel do século XIX os ventos do
Romantismo aliados a uma natural reacção contra a derrotada hegemonia
napoleónica levam a um aprofundamento das raízes culturais e a um forta-
lecimento da identidade cultural do povo dinamarquês; a recolha e a valori-
zação dos contos da tradição popular são uma consequência natural desta
procura. Se pensarmos no percurso de Almeida Garrett, compreendemos
facilmente o caminho percorrido por Andersen – os contos que pontificam
o início da sua carreira são os da tradição oral, de cunho popular, sendo por
si recriados com o génio de quem não esqueceu as suas raízes.

A escolha de somente quatro autores portugueses, cuja obra possa ilus-


trar a influência do génio de H.C.Andersen, assenta na necessidade de fo-

1 “A literatura infantil é uma escrita em voz alta” in A Capital, 28.12.1984

109
XVI Encontro de Literatura para Crianças

calizar a nossa análise num corpus restrito. Matilde Rosa Araújo, Sophia de
Mello Breyner Andresen, Ricardo Alberty e António Torrado são escritores
galardoados com o Grande Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian pelo
conjunto da sua obra; outros houve na lista deste Prémio onde também
poderíamos encontrar pontos de contacto com Andersen. Creio que a in-
fluência deste escritor é de tal maneira vasta que será lícito afirmar que os
bons escritores para crianças, em Portugal e no mundo, têm um quinhão,
grande ou pequeno, de dívida para com ele. Algumas das coordenadas que
nortearam o nosso trabalho de reflexão e pesquisa aplicar-se-ão a outros
escritores contemporâneos ou de um passado mais ou menos longínquo
– de Virgínia de Castro e Almeida a Luísa Dacosta há matéria para estabe-
lecer pontes entre o escritor dinamarquês e a literatura portuguesa.

O traço mais flagrante da obra de Matilde Rosa Araújo é a ternura do olhar;


não encontro em toda a nossa literatura uma autora que tenha compreen-
dido de forma tão profunda e que tenha amado tanto a Criança. Enquanto
alguns que pretendem escrever para o público infantil insistem em discur-
sos piegas e estupidificantes, a autora, honrando a memória de Andersen,
dá-nos nos seus textos a infância autêntica, com as suas dores, as suas
angústias, as suas alegrias e os seus sonhos. Afirmou José António Gomes
que a poética de Matilde se organiza em torno de três grandes temários – a
infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto2 . Concordo
em absoluto com esta análise, embora perspective aqui a poética num sen-
tido mais abrangente, ou seja, uma poética que inclui também a prosa. O
olhar triste que Andersen lança sobre os meninos tristes e sofredores va-
mos encontrá-lo, com igual ou maior intensidade até, na narrativa O Palha-
ço Verde3. Aqui a autora deixa transparecer o quanto a chocou a miséria,
a pobreza, o sofrimento de um espectáculo de circo a que assistiu – tal
como em Andersen, a realidade convive com a ficção, tornando-se por isso
mesmo mais gritante. Um menino que vende moinhos de papel esquece a
sua condição ao partilhar com o palhaço a alegria que ele transmite a todas
as crianças presentes; ao dar-lhe um moinho feito flor mostra a todos os
homens que a pureza do coração de uma criança é a chave de um mundo
melhor. As lágrimas que acompanham a emoção alimentam a convicção de
que a felicidade é possível porque ela é feita de pequenos nadas.

Mas as lágrimas podem ser a imagem visível de muito sofrimento. Nós,


professores, se olharmos os alunos com o coração, veremos o que os olhos
não captam...mas, às vezes, falhamos e isso deixa marcas. Matilde é Pro-
2 Maria José Costa (coord.), Matilde Rosa Araújo, Porto, Livraria Civilização Editora, 1995, pág. 95
3 Matilde Rosa Araújo, O Palhaço Verde, Coimbra, Atlântida Editora, 1976
110
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fessora e a alegria que sempre a acompanhou no exercício da docência
não apaga os momentos em que não viu o sofrimento dos alunos. Peniten-
cia-se por isso, contando-nos as suas histórias. As botas de meu pai4 e A
fita vermelha5 são exemplos paradigmáticos; nestes dois contos a ficção
traduz a realidade vivida – o João e a Aurora foram crianças que sofreram.
O primeiro, ainda com feridas abertas, reconciliou-se com a vida, mas a
segunda partiu sem o sorriso esperado da professora que tanto amava.

Nos contos da nossa grande escritora encontramos como protagonistas


muitas outras crianças que mostram uma infância agredida. São retratos
em sépia onde os contrastes se diluem num claro-escuro, reflectindo a po-
breza, a luta pela vida ou a luz da descoberta do amor e da ternura – e aqui
Andersen e Matilde estão muito próximos. Uma boneca de trapos pode
ser um tesouro ou um casaco novo a esperança de um mundo melhor.
Mas os seus contos dão-nos também uma infância dourada pelos afectos
e pelos laços fortes que ligam a criança ao adulto – a Nina ou a Maria ou a
Joana-Ana. Esta é uma das ideias-chave da obra de Matilde: a teia que, no
quotidiano da criança, se tece pelas mãos de adultos que a olham com o
permanente deslumbramento e alegria convicta de que ali está o Futuro.

A recusa em aceitar o fatalismo da irreversibilidade das situações de sofri-


mento da criança e a permanente crença de que o Amor, traduzido em ges-
tos e actos marcados por uma efectiva ternura, constituem elementos mar-
cantes na escrita de Matilde Rosa Araújo. Em vários contos presentes em
O Sol e o menino dos pés frios, título, por si só, suficientemente sugestivo
do modo de ver a criança, encontramos sempre a consciência de que é
imperioso acreditar nela, dado que encerra em si um capital de esperança
que só uma sociedade cega poderia recusar. Veja-se como no último conto
desta colectânea, intencional e simbolicamente intitulado Menino6 (uma
das palavras recorrentes em Matilde), aquela criança, que ainda não tem
memória no coração, recusa permanecer no chão à espera das esmolas
dos transeuntes que apressadamente atravessam o Terreiro do Paço, para
subir para o ponto mais alto da estátua de D. José e aí contemplar o Poder
e o Mundo; o seu sorriso silencioso soou a um grito profundo que nos deixa
saudavelmente abalados nas nossas certezas e no nosso alheamento às
crianças que sofrem.

O olhar sofrido para a infância está igualmente presente na poesia de Matil-

4Idem, As Botas de meu Pai, Lisboa, Livros Horizonte, 1977


5Idem, O Sol e o Menino dos Pés Frios, Lisboa, Ática, 1972, págs. 31-35
6 Idem, Ibidem, págs. 117-120

111
XVI Encontro de Literatura para Crianças

de Rosa Araújo; recusando a passividade e porque a criança é um ser im-


poluto e, no fundo, consciência de uma sociedade, cria poemas que nos
tocam pelo olhar deslumbrado (veja-se a quadra com que se inicia O Livro
da Tila7 ou o poema Apontamento presente em O Cantar da Tila8), mas
também pela força que emana de uma coragem feita esperança. Quando
escreve Os Direitos da Criança9, desenvolve em dez estrofes dez pre-
missas que nos demonstram o seu comprometimento permanente com a
criança e a sua profunda crença num Futuro que tenha por núcleo uma
infância respeitada e jamais abandonada.

Creio indispensável marcar aqui uma diferença substancial no modo como


a autora conclui os seus textos relativamente a Andersen. A inteligência do
coração, para utilizar uma expressão muito feliz de Marc Soriano10, que
caracteriza os contos do autor dinamarquês, leva-o a cair num flagrante
pessimismo, visível na resignação que perpassa em numerosos contos e
na valorização de uma vida eterna onde a felicidade suprema irá ao en-
contro do protagonista pondo fim ao seu sofrimento terreno. Em Matilde
há uma forte consciência social e a aparente fragilidade dos heróis dos
seus contos transfigura-se numa imensa força; esta provém da resposta
solidária do leitor e da activação da nossa capacidade de lutar pelos mais
desfavorecidos. No olhar da autora não descortinamos qualquer parcela de
conformismo; há, isso sim, um grito surdo de revolta perante as injustiças
do mundo e um apelo à mudança, ao regresso à nossa capacidade de nos
emocionarmos de forma consequente com o sofrimento alheio, especial-
mente quando são as crianças que estão em jogo, sem cruzar os braços
numa aceitação de impotência.

Todos conhecemos a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen e, muitos


de nós, professores, temos sido mediadores no trabalho de recepção que
proporcionamos aos mais novos, em especial quando trabalhamos a leitura
orientada, para que as crianças aprendam a fruir a beleza dos seus textos.
Quando procuramos sinais da presença da estética anderseniana na autora
de A menina do mar, confrontamo-nos com algumas dificuldades, dada
a magia luminosa que individualiza, de forma muito aguda, a sua escrita.
Creio que a força da descrição, marcadamente lírica, representa um dos
pontos de ancoragem desta nossa análise; os espaços, onde decorrem os
acontecimentos que dão substância às suas narrativas, são apresentados

7 Matilde Rosa Araújo, O Livro da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1976, pág. 11
8 Idem, O Cantar da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1973, pág. 29
9 Idem, O Sol Livro, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, págs. 64-65
10 Marc Soriano, Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, Flammarion, 1975, pág. 45

112
XVI Encontro de Literatura para Crianças
com o rigor cromático e dinâmico de um pintor deslumbrado perante a
magia do que vê e do que lhe é permitido imaginar. Afirmou Sophia, no seu
testemunho inserido na antologia De que são feitos os sonhos, que Pro-
curei a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância. (...)
Aliás, nas minhas histórias para crianças quase tudo é escrito a partir dos
lugares da minha infância11. É esta presença de elementos recuperados
dos anos de ouro da infância que se manifesta na descrição da Natureza
como companheira das brincadeiras; as árvores constituem espaço privi-
legiado de um maravilhoso que envolve a criança protagonista e que lhe
oferece a passagem para as aventuras vividas. A autora cria vida, traduzida
em linguagem e sentimentos, nos elementos vegetais e nos animais, ali-
mentando interacções múltiplas com o leitor, o que acentua o protagonismo
das crianças. Florinda, Isabel, a Menina do Mar e o rapaz, seu companheiro,
integram-se na Natureza e dão coerência a toda a construção da narrativa.

Os contos de Andersen apresentam-nos personagens bem caracterizadas


e os espaços demoradamente definidos para que o leitor possa imaginar na
plenitude o cenário onde decorre a acção; é o olhar da criança que é solici-
tado e, por isso, há um flagrante animismo naquilo que poderia parecer es-
tático ou passivo. Digamos que os elementos mágicos concorrem para que
as fronteiras entre o real e a fantasia se diluam. Parecem-me exemplares
as descrições presentes na narrativa A virgem dos gelos12, onde a Suiça
e os Alpes em particular constituem um território de eleição para nos falar
de Rudy. A caracterização desta criança, o seu percurso até à vida adulta e
a derrota face a destino que não consegue evitar encontram no enquadra-
mento de uma natureza agreste mas bela uma unidade que o tornam um
dos mais belos contos do autor dinamarquês. A Escandinávia vai oferecer,
igualmente, planos de rara beleza no enquadramento da longa procura que
Gerda enceta até reencontrar e salvar Kay; também neste conto – A rainha
das neves13 - há um percurso de maturação, já que, no epílogo os dois
amigos são já adultos, ainda que mantenham o espírito da infância nos seus
corações.

Detenhamo-nos nos aspectos focados para compreendermos as pontes


passíveis de serem propostas na leitura conjunta destes dois autores. As
personagens presentes na obra de Sophia para crianças, são, na opinião de
Marta Martins, num estudo notável sobre a autora, personagens “compro-
metidas”, que vivem segundo regras e alianças que estabeleceram com os
11Luísa Ducla Soares (coord.), De que são feitos os sonhos, Porto, Areal, 1985, pág. 19
12Hans Christian Andersen, Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, págs. 105-154
13 Idem, Ibidem, págs. 51-85

113
XVI Encontro de Literatura para Crianças

outros14. É interessante verificar que as crianças que protagonizam grande


parte dos contos de Andersen se apresentam, também, como seres solidá-
rios, prontos para superarem obstáculos que se apresentem na caminhada
da vida; o caso de Gerda, atrás referido, é flagrante, embora possamos
encontrar mais exemplos. Observar a caracterização das personagens per-
mite-nos, nos dois autores em análise, verificar que o comprometimento
resulta de determinadas marcas presentes na sua índole e, mesmo que a
morte venha ao seu encontro, não desfalecem perante a adversidade.

A transfiguração do real encontra na linguagem de ambos os autores uma


subjectividade lírica que persegue a envolvência do leitor no mundo que
lhe é oferecido. Os sentidos são chamados para captarem, dentro das si-
nestesias que os textos oferecem, as múltiplas sensações da vida e dos
espaços. São os sons das tempestades ou dos pássaros, mas também
os cheiros das florestas e das casas antigas, o frio do gelo e da neve, a
policromia tonal do verde das árvores ou da transparência das águas, as
fragrâncias das flores, o brilho da luz ou a aspereza do chão. Mas para lá
de toda a transformação que decorre do tratamento literário do texto, há
uma procura da verdade na essência das coisas – é a pureza da criança
que permite atingi-la.

A descoberta do mundo que a viagem nos oferece – Andersen e Sophia


foram viajantes assumidos – tem em O cavaleiro da Dinamarca15 uma
alegoria extremamente feliz. O cavaleiro parte de uma floresta no norte da
Dinamarca para, anos depois, ali regressar numa noite de Natal. O renas-
cimento que o regresso representa, com toda a sabedoria acumulada pela
descoberta do outro em múltiplas e variegadas paragens, lembra ao leitor
que a nossa dimensão humana exige um olhar lúcido, mas sensível, sobre
o mundo.

Ricardo Alberty pertence a uma geração de ouro que nos anos 60 marcou
a literatura para a infância em termos de qualidade e exigência, recusando
o moralismo fácil e a alienação precoce. Tal como Matilde Rosa Araújo e
Sophia de Mello Breyner Andresen, figuras tutelares desta geração de es-
critores, este autor construiu histórias na percepção de que o destinatário-
-criança merece um profundo respeito na escrita que lhe é destinada, já que
há a noção clara de que tudo o que ela recebe é absorvido e assimilado e,
assim, conto a conto, se vai alimentando a sua imaginação com elemen-
tos potencializadores da criatividade e da liberdade. Embora constate um
14 Marta Martins, Ler Sophia, Porto, Porto Editora, 1995, pág. 86
15 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca, Porto, Figueirinhas, 1964
114
XVI Encontro de Literatura para Crianças
injusto esquecimento dos seus livros, creio que eles não estão datados e a
recepção que poderão ter justificaria novas edições.

Um dos títulos mais conhecidos deste autor é A galinha verde16, um conto


em que o direito à diferença nos surge como valor essencial numa socie-
dade que se quer livre. A galinha assume-se como um exemplo de tra-
balho e responsabilidade, qualidades fundamentais para uma sociedade
estruturada em valores que dignificam o homem e geram desenvolvimento,
marcando de forma muito clara a abjecção do racismo e da maledicência.
A dramatização de largos trechos da narrativa valoriza a dimensão oral do
texto e facilita a adesão da criança. Também Andersen teve de lutar contra
estas iniquidades sociais até ser reconhecido pelas suas qualidades e pelo
seu talento – O patinho feio17, um dos contos mais conhecidos, constitui
uma metáfora do que foi a sua vida e um exemplum para os leitores de to-
dos os tempos.

O escritor dinamarquês mostrou-nos, em muitas das histórias que nos con-


tou, que os contrastes sociais são duros e as crianças os seres mais vul-
neráveis. Poucos serão os que não conhecem A menina dos fósforos18
– as crianças (e adultos, também) já verteram muitas lágrimas ao ouvir esta
história; infelizmente, ela continua com uma actualidade chocante. O autor
soube tocar as fibras mais íntimas do leitor, ao mostrar-nos a injustiça do
mundo, com a sensibilidade aguda que marca a sua escrita. Vamos encon-
trar em Ricardo Alberty dois contos onde a intertextualidade com a narra-
tiva atrás referida é flagrante; são eles O anjo e Flores de neve, inseridos
na colectânea A terra natal19. Se no primeiro, o corpo do menino, que
pedia esmola como quem espalha flores20, é encontrado morto e hirto de
frio, no segundo, a menina que vendia flores, adormecida na noite de Natal
na soleira de uma porta, é levada por um anjo para um mundo melhor, onde
as flores são todas brancas de neve e não se vendem, onde os homens são
bons e todas as noites são noites de Natal21. Nunca estaremos prepara-
dos para aceitar a morte, sobretudo quando se trata de crianças. Nestes
dois contos, o autor soube utilizar uma linguagem marcadamente poética,
transmitindo-lhes aquela luz que já tínhamos registado nas narrativas de
Andersen, quando a morte é uma mera passagem para uma vida eterna de
perene felicidade.
16 Ricardo Alberty, A Galinha Verde, Lisboa, Ática, 1959, págs. 7-14
17 Hans Christian Andersen, Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, págs. 40-48
18 Idem, Ibidem, págs. 86-88
19 Ricardo Alberty, A Terra Natal, Lisboa, Verbo, 1968
20 Idem, Ibidem, pág. 111
21 Idem, Ibidem, pág. 149

115
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Em Alberty são raros os contos dominados pela tristeza; tal facto deve-se a
uma certa forma de ver o mundo, valorizando a esperança e a felicidade que
as crianças nos dão. A metáfora de um reino, ilocalizável no mapa, com-
posto só por crianças, onde domina uma permanente alegria, concretizou-a
no conto O país dos sorrisos22 – reside aqui uma das ideias-chave da sua
obra para a infância: a percepção de que os valores que poderão purificar
a sociedade estão de forma embrionária na criança e, por isso, ela terá de
ser o motor da mudança. Como? Alimentando-lhe o espírito e a imaginação
com a beleza, com o humor, com a liberdade e com a fraternidade. Uma
forte crença na capacidade de regeneração e na possibilidade de sermos
felizes pela mão das crianças afasta-o da melancolia que perpassa em nu-
merosos contos de Andersen.

No plano discursivo, Ricardo Alberty oferece-nos uma linguagem simples,


popular, metafórica, na senda da qualidade literária do autor de Os cis-
nes selvagens. Encontramos narrativas onde o leitor é interpelado, qual
ouvinte atento às palavras saborosas do contador de histórias, outras onde
a capacidade de explanação do narrador domina o texto. Há textos onde a
prosa poética sobressai, o que nos leva a recordar frequentes momentos de
grande força lírica na escrita de Andersen: A casa feita de sonho23 consti-
tui um exemplo paradigmático do talento de Alberty.

Concluímos a nossa breve análise com um olhar atento sobre o trabalho


de escrita para crianças iniciado há mais de trinta anos por António Tor-
rado. Tal como em Andersen, temos a recolha e valorização do património
tradicional, assim como histórias criadas de raiz sem cedências no plano
da qualidade literária. Num outro plano, lançando mão das novas tecno-
logias de comunicação e informação, Torrado cria um sítio24 onde pode
diariamente apresentar histórias originais destinadas preferencialmente ao
público infantil, qual contador que, rodeado de crianças, não prescinde de
lhes dar uma história cheia de imaginação, num discurso límpido e quente,
abrindo-lhes uma janela para o mundo e mostrando-se pronto a ouvir a
sua opinião, ainda que de forma diferida. É uma nova forma de contar, pio-
neira nos termos em que se desenvolve, que procura ultrapassar a falta
de tempo e de disponibilidade (ou, talvez, de vontade) que pais e profes-
sores manifestam quando se coloca a questão nuclear – a hora do conto.
A possibilidade de ter a voz do contador, ainda que digitalizada, e de im-
primir o texto (associado às boas ilustrações de Cristina Malaquias) é algo
22Idem, O País dos Sorrisos e Outras Histórias, Lisboa, Verbo, 1981
23Idem, Os Quatro Corações do Coração, Lisboa, Afrodite, 1968, págs. 19-22
24 www.historiadodia.pt

116
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que H.C.Andersen, se vivesse hoje, não desdenharia, estou certo, ele que
sempre sonhou com prolongar a sua obra muito para lá da sua morte, pela
garantia de perenidade que a tecnologia oferece. Parece-me ser este um
dos trilhos andersenianos mais estimulantes que o autor da “História do
dia” percorreu.

As Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo25 mostram-


-nos como está ali presente a herança deixada pelo escritor dinamarquês.
Confrontando as histórias recriadas com os registos fixados por Adolfo
Coelho, Teófilo Braga ou José Leite de Vasconcelos, percebemos como,
em termos do discurso narrativo, os textos saem imensamente valorizados
pela naturalidade, pelo ritmo e pelo imenso respeito relativamente às mar-
cas orais da nossa língua. Lê-los é captar os múltiplos registos da voz do
contador, que se disponibiliza para se aproximar do receptor e em plena
comunhão saborearem a musicalidade das palavras. Na senda de Ander-
sen, Torrado consegue transformar um conto oral aparentemente anódino
numa quase epopeia. Em O Menino Grão de Milho26 o autor dá-nos, logo
na introdução, um retrato vivo de uma aldeia portuguesa, na sua dimensão
humana, para contextualizar as vivências daquela criança de tamanho tão
especial; a própria caracterização do protagonista é feita com tal pormenor
e com uma dinâmica que permitem uma visualização quase cinematográ-
fica. Um outro elemento intertextual que me parece marcante consiste na
finalização do conto: o narrador, num reforço de uma aparente verosimi-
lhança que pretende imprimir ao relato dos acontecimentos, refere que as-
sistiu à festa dada para celebrar o regresso do Grão de Milho, participando
activamente no lançamento dos foguetes. Em Andersen, recordemos que
no final de A Polegarzinha o narrador afirma que:

Quanto à andorinha, essa voltou a afastar-se, voando em direcção ao norte,


para a Dinamarca, onde vive o homem que conta histórias de fadas. A an-
dorinha cantou esta história a esse homem, e foi assim que viemos a co-
nhecê-la,27

o que dá uma original forma de certificar a veracidade da narrativa, já que


teria obtido o testemunho directo de uma personagem fundamental no de-
senrolar dos eventos. Torna-se oportuno trazer à colação uma das histórias
mais bonitas que tive o prazer de ouvir no sítio “História do Dia” – A gota
com sede. O final desta história é muito próximo do acima transcrito: diz-

25 António Torrado, Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo, Porto, Civilização, 2002
26 Idem, Ibidem, págs.17-28
27 Hans Christian Andersen, A Polegarzinha, Porto, Civilização, 1992
117
XVI Encontro de Literatura para Crianças

-nos o narrador que aquela gota, que tinha sede de matar a sede a al-
guém,

Soltou-se da folha para a garganta de um passarinho que a engoliu e, logo


de seguida, piou, agradecido. Foi o passarinho, tempos depois, que me
contou esta história.28

Nos outros contos de raiz tradicional manifesta-se igualmente este enorme


prazer de, na recriação, introduzir marcas de oralidade e elementos comple-
mentares que, resultantes de um demorado trabalho criativo, sugerem uma
aparente improvisação, em reforço do aforismo “quem conta um conto,
acrescenta-lhe um ponto”.

À semelhança de Andersen, os contos criados por António Torrado abor-


dam temáticas diversificadas, mas, no seu tratamento, o nosso escritor tem
um percurso próprio que o afasta do seu inspirador. A religiosidade e uma
certa resignação face ao que considera desígnio de Deus, visíveis em parte
significativa dos seus contos, não se encontram em Torrado. Enquanto no
escritor dinamarquês o/a protagonista morre em mais de metade dos con-
tos, a morte não é chamada para as narrativas do autor de Como se faz
cor-de-laranja. Basta ler a sua vasta obra para percebermos quanto é clara
a sua opção. Em resposta a um inquérito publicado na revista Discursos,
o autor propõe que:

para elas (as crianças) carreiremos o que de melhor guardámos para nós
próprios. Afastamos do caminho decepções, tédios, malquerenças, feias
osgas e lobos uivando o sentido trágico da vida. O que, incorrupto e lumi-
noso, sobrar, em embalagens de fantasia, eis a nossa dádiva para o presépio
da vida.29

Estando nós a falar das pontes que podemos descortinar entre estes dois
autores, seria inaceitável não trazer para aqui um título – O pajem não se
cala30 - que tem a particularidade de dar continuação a uma das histórias
de Andersen onde o cómico de situação impera – O fato novo do impera-
dor31. O seu final, aparentemente aberto, permite a António Torrado encon-
trar matéria para lhe dar continuidade, não no sentido de acabar algo que
está incompleto – o conto de Andersen é perfeito – mas de aproveitar como

28 www.historiadodia.pt, 22 de Agosto
29 Inquérito in Discursos, nº8, Outubro 1994, pág. 176
30 António Torrado, O pajem não se cala, Porto, Civilização, 1992
31 O fato Novo do Imperador in Os mais belos contos de Andersen, Porto, Civilização,1992, p. 51-62

118
XVI Encontro de Literatura para Crianças
elemento despoletador o futuro imediato daquela criança que, na sua pure-
za, afirmou que o rei ia nu. Ao escolher como narratário deste novo conto
uma criança que se tinha sentado ao seu lado no jardim, o autor explora sa-
biamente o tom coloquial com que o narrador nos relata os acontecimentos
e constrói um final estruturado no diálogo entre o contador da história e a
criança/ouvinte que manifesta uma opção clara e radical para o desenlace
dos acontecimentos. Todos os mecanismos de cativar a audiência estão
aqui de forma paradigmática, ou seja, estamos perante um bom exemplo
do que é um escritor acumular o talento de bom contador.

Embora considere ser esta arte de contar a dimensão mais flagrante no tri-
lho anderseniano percorrido por António Torrado, a questão temática deve
igualmente ser equacionada já que a imaginação do autor é uma fonte ines-
gotável de histórias construídas a partir do mundo real captado por um olhar
de sensibilidade muito especial; nelas encontramos animais, pequenos ou
grandes, as pessoas, com especial atenção para as crianças, objectos e
até elementos inesperados como sinais de pontuação. Pode-se afirmar, em
síntese, que o nosso autor cria mundos imaginários que nos falam da vida
real. A concisão de grande parte dos seus contos mostra bem o que é ser
simples – burilar a peça, retirando-lhe tudo o que é acessório, aperfeiçoá-la
até chegar a um estádio que possamos considerá-la perfeita; com efeito,
em Torrado a legibilidade nunca foi perturbada por essa filtragem a que
sujeita os seus textos.

A presença de Hans Christian Andersen ao longo destes dois séculos pa-


rece-me inquestionável. A sua obra deu-lhe a eternidade com que sempre
sonhou e a literatura para a infância de hoje mantém para com ele uma
dívida que jamais será paga.

119
XVI Encontro de Literatura para Crianças

António Torrado

Modernos Nautas

Boa tarde a todos.

Vamos começar esta sessão que continua o tema da viagem.

Nós, ao longo destes dias, temos tratado do tema da viagem, no sentido


da rotação e da translação, da viagem que se pode fazer à volta do mundo,
mas também da viagem à roda de nós próprios.

Nesta área em que a viagem é sempre uma travessia passando por nós,
em que toda a viagem é um tempo de conhecimento e de crescimento, ela
pode tomar várias configurações.

Falámos de nautas, falámos provavelmente de astronautas, falaremos tam-


bém de cibernautas e dos viajantes de hoje, aqueles que estão deixando
para o futuro as viagens como se faziam no século XX e já no XXI.

É verdade, já estamos no século XXI!

Vou começar por apresentar a Luísa Ducla Soares, o que, para mim, é muito
difícil porque não tenho distanciamento suficiente para falar da Luísa, já
que fomos colegas, amigos de escola, de universidade, temos a memória
comum dos tempos de luta e luto do período da vida associativa e das suas
vicissitudes.

Mais ou menos ao mesmo tempo teremos começado a escrever e a publi-


car nos mesmos jornais académicos, associativos e universitários.

Também, lá mais para diante, começámos a escrever para crianças, quase


também em simultâneo, visto que foi nas páginas do Diário Popular, mais
propriamente na página infantil dirigida por um senhor muito, muito simpáti-
co, que foi um pouco nosso patrono nessa área, o senhor José de Lemos,
onde quase que alternavam as nossas histórias: uma semana era uma
história da Luísa, outra semana era uma história minha.

120
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A partir daí, sempre acompanhei o percurso da Luísa Ducla Soares, admi-
rando a sua obra e deliciando-me, muito particularmente, com o seu humor,
porque, com este aspecto muito sereno, a Luísa tem um toque muito es-
pecial, uma certa perversidade, no bom sentido, que impregna toda a sua
escrita.

Bem, mas nada melhor do que ouvir a Luísa falar nos novos nautas.

Em relação ao que disse há bocado, eu tenho de emendar, remendar-me


porque eu disse que era do mesmo tempo que a Luísa Ducla Soares, mas
não!

Ela está muito mais avançada em relação a mim, porque eu fiquei no século
XX, na primeira metade, e daqui a bocadinho, quando falar sobre o Francis-
co Pacheco, eu revelarei que continuo a utilizar o suporte antigo de correio,
provavelmente até pombos correio ou garrafas atiradas às ondas!

Pois bem agora vamos ouvir o Pedro Rosa Mendes.

Só queria dar a seguinte nota: há tempos, eu fiz parte de um júri e, nestas


tarefas de júris, há a leitura e há depois o encontro dos jurados para deci-
direm qual o premiado.

Se, na maioria dos casos, nestes encontros há dificuldade de alcançar um


consenso, no caso deste concurso aconteceu que, em cinco minutos, me-
nos do que cinco minutos, tínhamos já decidido e tínhamos a acta feita e
viemos todos embora. Devo isso ao Pedro Rosa Mendes, autor de Baía dos
Tigres, o livro a concurso, e foi com esse livro debaixo do braço que cada
um dos elementos do júri apareceu na reunião.

E foi num instantinho que se resolveu!

Tenho aqui, diante de vós, o Pedro Rosa Mendes e vamos ouvir a sua in-
tervenção.

Agradeço ao Pedro e só queria dizer o seguinte: eu tive um tio viajante.


Não viajou tanto quanto o Pedro, mas viajou o seu quê e, sobretudo, era
muito imaginativo.

E ouvindo agora o Pedro Rosa Mendes, eu estava a pensar: na próxima vez

121
XVI Encontro de Literatura para Crianças

que eu for criança, eu quero ter um tio como o Pedro Rosa Mendes!

E vamos agora descansar um bocadinho: fazer o recreio e estaremos de


volta ao quarto para as cinco, rigorosamente, porque há continuação.

Pois bem, vamos continuar.

Há pouco estava a perguntar a mim próprio, mas como é que eu vim parar
a esta mesa? Sendo eu, provavelmente, dos poucos autores portugueses
que ainda escreve à mão: escreve, reescreve, emenda, sempre a partir do
manuscrito.

Mas, de facto, uma das razões, senão a principal, porque eu aqui estarei é,
por um lado, gostar de estar entre amigos e, por outro, porque também vou
apresentar o Francisco Pacheco, que é o responsável, ele sim o respon-
sável, daquele sítio chamado www.historiadodia.pt .

Desse sítio eu só posso ser chamado à responsabilidade pela história do


dia, até com acento (eu quando escrevo, escrevo com acento).

Mas o www ponto e depois o pt é da responsabilidade do Francisco Pa-


checo.

E vou dar-lhe a palavra desde já.

Agradeço redobradamente a intervenção do Francisco Pacheco.

E, agora, gostava que se estabelecesse o diálogo aqui nesta sala, que fizes-
sem perguntas à mesa, porque senão começo a fazer perguntas à sala!

122
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Luísa Ducla Soares

Os Novos Nautas

Trabalho na Biblioteca Nacional, vivo rodeada de 3 milhões de obras ma-


nuscritas, impressas e, desde há alguns anos, tenho, sete horas por dia,
um computador à minha frente que me liga a uma incomensurável rede de
informação.

Se, antigamente, considerava impensável viver sem livros, hoje afigura-se-


-me também impensável dispensar as múltiplas potencialidades que a in-
formática proporciona.

Já não escrevo prosa sem recorrer ao processamento de texto, substituí a


generalidade da correspondência por e-mails, pesquiso na internet, dou en-
trevistas em chats. Trabalho, divirto-me, arranjo e cultivo amizades através
do pequeno écran.

Ah, como é fantástico carregar num botão mágico que nos leva a viajar
no novo tapete voador! Tendo por companheiro um rato, posso partir a
qualquer hora, para qualquer destino. Num abrir e fechar de olhos dou a
volta ao mundo, aterro na Austrália, nos Estados Unidos, no Iraque, na sel-
va amazónica. Haverá maior magia?

Nunca me passa pela cabeça a ideia de que, embarcando nessa aventura,


me afasto da realidade, das pessoas de carne e osso. Pelo contrário. A rea-
lidade, muitas realidades se me revelam e são seres humanos e não robôs
que comigo comunicam, dedilhando teclados com a mesma naturalidade
com que conversam ou pegam numa caneta.

À nossa volta vão ruindo as paredes tradicionais que nos separam dos
outros, as contingências da distância, do estatuto social, da idade, das dis-
ponibilidades económicas, da timidez. Parece que tudo se torna possível,
que somos finalmente cidadãos da mesma aldeia global.

Os jovens e a internet

Nada me admira que os pais, os professores, os bibliotecários se entusias-


123
XVI Encontro de Literatura para Crianças

mem e, simultaneamente, estremeçam com a atracção que os computado-


res exercem sobre os mais novos.
http://www.leme.pt/criancas
Quem hoje entrar num centro de recursos multimédia vê-se frequentemente
confrontado com a seguinte cena: jovens acotovelando-se junto dos pou-
cos computadores existentes, esquecendo os livros que esperam, perfila-
dos e abandonados, que um professor exija a sua leitura.
Que pretendem os alunos? Utilizar os computadores para passarem tra-
balhos a limpo porque muitos docentes já se recusam a decifrar caligrafias?
Não necessariamente.

A pesquisa

A grande aventura é ser um homem aranha capaz de se mover na teia gi-


gantesca que dá a volta ao mundo.
Rapidamente aprendem a dominar as técnicas de navegação e lá vão eles
singrando, com ou sem destino, numa ânsia de descoberta. Seguem rotas
imprevisíveis, embatem em escolhos, desviam-se, deixam-se encantar pelo
canto das sereias, aportam a ilhas miríficas, inesperadas. Vivem no com-
putador a sua odisseia.
Será a internet um local seguro e dimensionado para os mais novos?
Existem inúmeros sites direccionados especificamente para crianças e
adolescentes, aliando vertentes culturais e lúdicas. São maioritariamente
em língua inglesa e os de língua portuguesa depressa nos revelam que
foram, quase sempre, produzidos no Brasil ou traduzidos automaticamente,
de forma desastrosa.
Há sites para todas as idades, a partir dos 2-3 anos, exigindo estes natural-
mente o acompanhamento de adultos.
De entre todos, gostaria de destacar A História do Dia, com contos diários de
António Torrado, que irá ser abordado numa das comunicações seguintes.
http://www.historiadodia.pt/pt/index.aspx

Várias instituições nacionais se têm empenhado em chegar aos mais novos


pela net. Eu própria colaborei num site, o da Presidência da República, que
faculta uma visita guiada ao palácio de Belém, nos apresenta um presidente
próximo, que já foi menino, permitindo que lhe escrevamos directamente.
Inclui jogos sobre a Presidência da República, o 5 de Outubro, o 25 de Abril.
E apresenta histórias, em determinadas datas.
http://www.presidenciarepublica.pt/pt/main.html

Após algumas viagens, os nautas anotam as páginas preferidas, seleccio-


124
XVI Encontro de Literatura para Crianças
nando-as como favoritas, guardando os respectivos endereços para con-
sultas frequentes.
Gostaria de saber quais as páginas e conteúdos preferidos dos nossos jo-
vens utilizadores mas nos estudos que realizei referentes a dados portugue-
ses não encontrei essa informação.
Não nos iludamos, convencendo-nos de que as crianças se limitam aos
sites que lhes são dedicados. A sua curiosidade é insaciável e a internet
faculta, incentiva inclusivamente o acesso a matérias consideradas tabus,
como a pornografia.
Não é apenas necessário que os técnicos que apoiam os mais novos nos
centros de recursos lhes ensinem as manobras necessárias à navegação
na net, abandonando-os depois numa aventura solitária de descoberta.
Se a experimentação, o autodidatismo são importantes, necessário tam-
bém se me afigura que os jovens disponham de uma lista seleccionada de
endereços adequados às diversas idades e interesses elaborada por adul-
tos responsáveis. Ela funcionará como um mapa de boas enseadas onde
lançar âncora.
Em casa, quando há um único computador, é habitual instalá-lo no quarto
do filho (segundo as estatísticas a que tive acesso, os rapazes mantêm a
primazia). Não seria preferível colocá-lo na sala comum para que os pais
se familiarizassem com a informática e, de certo modo, partilhassem as
viagens infantis?
O problema da censura a conteúdos, que neste momento abala especial-
mente as bibliotecas americanas, é polémico. Entre o moralismo exacerba-
do, castrador e a total liberdade de acesso a páginas que incitam à violên-
cia, ao racismo, ao exibicionismo sexual há que estabelecer um equilíbrio.

O correio electrónico

O e-mail constitui um dos programas preferidos dos jovens. Hoje é possível


escrever para o Japão e receber, cinco minutos depois, a resposta. Quem
tem paciência para esperar vários dias? As cartas passaram, com razão,
a serem designadas como correio caracol . Os postais estáticos em papel
foram substituídos por postais electrónicos, muitas vezes animados, acom-
panhados de música à escolha. Gratuitos, contemplam todas as temáticas
e celebrações.
http://web.alice.pt

Este tipo de correspondência contribui largamente para a comunicação e


sociabilidade entre jovens, para a criação e manutenção de laços de rela-
cionamento pessoal e institucional.
125
XVI Encontro de Literatura para Crianças

São muitas as escolas que se correspondem com congéneres nacionais


e estrangeiras, ao longo do ano. Segui o exemplo da Escola EB 2,3 de
Arouca, noticiado através do seu jornal, O Caminho. Manteve com um colé-
gio de Zamora assíduos contactos, que culminaram com a visita de alunos
portugueses a Espanha e vice-versa.
São evidentes as vantagens destes intercâmbios.

Chats (Internet Relay Chat)

Se os e-mails são, apesar de tudo, pouco mais que correio super expresso,
o IRC ou chat, como desejarmos chamar-lhe é, de facto, uma conversa, por
escrito, em tempo real, com número indeterminado de participantes. Pode
associar imagem, recorrendo a uma câmara.
Há numerosos canais de chats dirigidos aos jovens, alguns sem temáti-
ca específica, outros orientados de acordo com os interesses dos partici-
pantes: sobre desportos, música, ambiente, animais, amizade, etc.
Tendo entrado em diversos, concluí que em geral se limitam a típicas con-
versas entre conhecidos ou pessoas que pela primeira vez se encontram.
O facto de os intervenientes utilizarem nomes fantasiosos fomenta a de-
sejável desinibição dos menos afoitos mas permite, em contrapartida, que
indivíduos suspeitos se intrometam para fins pouco recomendáveis, ligados
por, exemplo, à pedofilia.
Exigindo um rápido dedilhar no teclado, conduzem a algo que se aproxima
da estenografia, com a utilização sistemática de abreviaturas, símbolos,
que, para um não iniciado, podem constituir uma linguagem cifrada.
Já existe inclusivamente em português um dicionário da internet e do
telemóvel de autoria de Jovana Benedito.
http://www.centroatl.pt/titulos/solucoes/dicionario-net-telemovel.php3
http://bvi.clix.pt/aprender/icons_emocao.html

Uma conversa cara a cara, vive também da expressão fisionómica que


acompanha as palavras. Para a substituir criaram-se os smileys que, por
sinais gráficos, apresentam o sorriso, a perplexidade, a irritação, todos os
estados de alma. É possível mandar beijos, abraços, chorar, deitar a língua
de fora, dizer adeus com a ajuda destes ícones.
http://es.bestgraph.com/gifs/s_grands-1.html

Até, sem palavras, se pode oferecer uma rosa.


@»--;--

O IRC pode atingir potencialidades muito mais amplas quando transforma-


126
XVI Encontro de Literatura para Crianças
do em meio de debate ou de criatividade colectiva. Gostaria de apresentar
a experiência de alguns em que participei, organizados pela Associação de
Professores de Português.
O 1º consistiu numa entrevista, na qualidade de escritora, com diversas es-
colas do 1º ciclo, que tinham assim oportunidade de falar com alguém que
conheciam das páginas dos livros.
http://www.app.pt/nte/luisads.htm

O último suscitou a escrita colectiva de uma história que iniciei. Intitulei-a


A Menina do Capuchinho Vermelho no Século XXI para que a personagem
central fosse conhecida de todos. Confesso que estava receosa do resul-
tado. A certa altura pareceu-me que cada escola puxava a história no seu
sentido e que ela iria esfrangalhar-se. Afinal tudo se compôs e acabou por
ter sentido.

Foruns de discussão e newsletters

Para jovens curiosos, participativos há foruns de discussão em que são


abordados temas sobre os quais é possível emitir opiniões. Alguns surgem
em jornais escolares, outros em sites para jovens e não só.
http://www.nonio.uminho.pt/Netescrit@2/forum.htm
é dirigido a alunos do 1º ciclo.
http://www.cunsp.web.pt
encontra-se aberto a todos, independentemente da faixa etária.

Listas de endereços seleccionados permitem o envio de informação e con-


tacto entre os que nelas se inscreveram. Eventualmente contam com a co-
laboração de especialistas nas matérias abordadas: cientistas, informáti-
cos, escritores, músicos, etc.
Se nalguns países são numerosos os foruns abertos à infância, entre nós
são raridade, começando a ter expressão apenas no final da adolescência,
pelo que não me irei alongar sobre eles.

Blogs

Estão actualmente muito em voga pois tornaram-se tribuna de figuras


mediáticas.
Mas existem também blogs de crianças e adolescentes.
http://abcdosmiudos.blogspot.com

São frequentemente a versão informática dos diários. Diários que, em vez


127
XVI Encontro de Literatura para Crianças

de se fecharem à chave, se publicitam. Verdadeiros ou falseados? Assina-


dos pelo autor ou recorrendo a pseudónimo? Como sabê-lo?

Quem escreve, mesmo para a gaveta, pensa em geral num destinatário


mesmo imaginário ou desconhecido. Escrever um diário corta a solidão de
quem não tem interlocutores próximos com quem compartilhar a intimi-
dade.
Transcrevo uma página que me parece deveras interessante:
“Os blogs/sites dão-nos mais carinho e orgulho que certas pessoas”
A autora envia aos leitores um abraço virtual:
“Estás a receber o meu abraço virtual. Por favor segue as instruções
abaixo:
Coloca a mão direita no teu ombro esquerdo e a tua mão esquerda no teu
ombro direito... Agora aperta com toda a força!”
http://arco-iris.weglog.com.pt
Há blogs nitidamente intimistas, outros compartilhados por um grupo de
amigos, outros que revelam uma grande cumplicidade familiar, como o da
Diana, miúda de 11 anos, que tem estado nos tops da popularidade.
http://diana.blogs.sapo.pt/
Alguns apresentam inquestionável qualidade literária.

Páginas e jornais escolares

Várias escolas se têm empenhado na criação de páginas próprias, algumas


muito rudimentares, outras envolvendo e animando a comunidade escolar
que aí se vê representada.
Há as que se limitam a apresentar a fotografia do edifício escolar, riscos e
rabiscos de crianças, um endereço electrónico a par com as que incluem
múltipla informação, jornais on-line deveras elaborados que pressupõem
um apoio informático profissional, um clube de jornalismo na escola, um
enorme empenhamento de professores e alunos.
Percorrendo uma relativamente ampla lista de sites, verifica-se que muitos
deixaram de ser acessíveis ou suspenderam a publicação.
O da Escola Secundária Sebastião da Gama, de Setúbal destacou-se como
o mais interessante, num estudo abrangendo 500, seguido do da escola
Emídio Navarro de Viseu.
A imagem da sua página inicial poderá não prenunciar todas as potenciali-
dades que oferece e vos aconselho a explorar.
http://www.prof200.pt:9999/users/essg/escola/default.asp

O jornal Público tem organizado concursos de jornais escolares em que têm


128
XVI Encontro de Literatura para Crianças
participado numerosos periódicos online, concursos que têm funcionado
como importante estímulo a projectos jornalísticos.
Algumas destas publicações têm especificidades próprias. A Páginas Tan-
tas, da Escola José Saramago, de Mafra, apresenta ampla bibliografia so-
bre o patrono e alberga um Centro de Estudos Saramaguianos.
http://paginastantas.org/Saramago/memorial.htm
A Palmatória da escola Pedro da Fonseca de Proença-a-Nova, que mantém
um Clube da Floresta, remete-nos para essa problemática.
http://apalmatoria.no.sapo.pt
Os Pequenos Mirandeses de Miranda do Douro apresentam textos na lín-
gua local.
http://www.eb2-miranda-douro-rcts.pt/50/mirandes.htm
Outros pretendem ultrapassar a comunidade de alunos e professores, es-
tando abertos a pessoal não docente e encarregados de educação. É o
caso do Colégio Teresiano, que inclui um fórum de participação alargada.

O estudo

Os pais compram, muitas vezes com sacrifício, computadores para os fi-


lhos, esperando investir na sua educação. Pagam a ligação à internet, con-
victos de que assim terão acesso a uma parafernália de informação impres-
cindível para trabalhos escolares, aprendizagem de línguas estrangeiras e
alargamento de horizontes.
A internet fornece, de facto, livros on-line, textos, imagens sobre matéria
curricular e extracurricular, alberga dicionários, enciclopédias, abre as por-
tas de bibliotecas, museus, permite conhecer, não as sete mas as mil e uma
maravilhas do mundo. Sugiro-vos uma visita ao Oceanário de Lisboa.
http: www.oceanario.pt

O governo português lançou os projectos Minerva e Nónio, apostando na


internet na escola. O acesso generalizado à informática deverá conduzir à
democratização da cultura, à aquisição de uma formação capaz de criar
cidadãos dotados de competências e hábitos que lhes permitam a integra-
ção numa sociedade infodependente. As escolas e bibliotecas vão sendo
informatizadas. Com algumas excepções. Ainda há pouco perguntei ao di-
rector de uma biblioteca do interior por que não me escrevia por e-mail e
ele respondeu-me que a biblioteca que dirigia ainda não tinha ligação à
internet.
Infelizmente nem sempre o empenhamento e formação de docentes ou téc-
nicos de bibliotecas acompanham as necessidades neste campo.
Os professores mais velhos rejeitam muitas vezes os avanços tecnológi-
129
XVI Encontro de Literatura para Crianças

cos. Limitam-se a indicar a bibliografia clássica, de livros que conhecem,


desleixando a oportunidade de conquistarem adeptos se completassem
as consultas com sites da internet. Alguns são apoios importantes, como o
que vou apresentar, direccionado para a astronomia:
http://www.minerva.uevora.pt

Aquilo que apenas se ouve facilmente se esquece, o que se lê mais perdura,


o que se aprende activamente fica gravado na memória. A busca na internet
obriga a um envolvimento pessoal, a um trabalho de selecção que a leitura
linear de um livro não implica.
Muitos docentes rotineiros receiam ver-se ultrapassados. Eles e a suas bi-
bliotecas estão a deixar de ser as únicas fontes de sapiência. Como podem
competir com o hipertexto enriquecido com fotografias, vídeos, música,
inúmeras potencialidades interactivas?
Em vez de rejeitarem a inovação, seria preferível procurarem nela uma co-
laboradora na difícil tarefa de ensinar jovens muitas vezes desmotivados.
Só conhecendo a internet poderão, além disso, ajudar os estudantes a dis-
tinguir o trigo do joio, seleccionando sites de qualidade, que se encontram
dispersos entre muitos de autoridade duvidosa ou de extrema superficiali-
dade. Grandes casas editoriais como a Texto ou a Porto Editora vêm apos-
tando nesta vertente, dirigindo-se a docentes e discentes dos vários níveis
de escolaridade.
www.universal.pt/scripts/site/intro/exe
www.junior.te.pt/servlets/Bairro?P=sabias&ID=1256

Jogos

São indubitavelmente os jogos a principal atracção dos jovens. Quase to-


dos os jogos tradicionais foram adaptados informaticamente e numerosos
outros surgiram, aproveitando as potencialidades informáticas.
Há os que procuram ter um substracto didáctico relacionado com a língua,
a ciência, a cultura geral. Outros, especificamente infantis, baseiam-se nas
figuras dos desenhos animados, das histórias aos quadradinhos, da Bar-
bie.
Os mais procurados por rapazes são os que estimulam a adrenalina, recor-
rendo a provas de velocidade, com percursos cheios de obstáculos que é
necessário vencer. Muitos recorrem a lutas em que as forças do bem e do
mal se confrontam, encarnando tanto arquétipos tradicionais como o prín-
cipe e o dragão como figuras actuais ou de ficção científica.
Se muitos destes passatempos podem ser considerados como exercícios
de perícia, rapidez de reflexos que não envolvem o apelo à violência, outros
130
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fazem-no indubitavelmente.
Os sites de jogos são geralmente descobertos, ao acaso, pelas crianças
que os dão a conhecer aos amigos. Algumas páginas, através de links,
remetem-nas para outras congéneres.
www.jogos10.com

Não seria também vantajoso que adultos responsáveis facultassem aos


mais novos endereços adequados?
É muito comum este entretenimento converter-se em hábito, em mania,
em vício. Em casos extremos poderá ocasionar problemas de saúde, até
ataques epilépticos, em garotos para tal predispostos, mas mais frequen-
temente conduz ao desinteresse por actividades físicas, à obesidade, ao
corte com a vida social.
Mas, podemos interrogar-nos, não se tornarão as crianças obcecadas de-
vido à falta de alternativas gratificantes?

Ler na internet

Embora a internet albergue muitos textos publicados em livros, ou em tudo


semelhantes aos que nos habituámos a ler em suporte de papel, a verdade
é que a linguagem, a estrutura dos textos especificamente concebidos para
leitura no pequeno écran obedecem a características específicas.
A linguagem é geralmente muito acessível, a frase breve, a linearidade do
discurso perde-se nas ligações que frequentemente somos convidados a
accionar, clicando com o rato, em cima duma palavra.
O leitor torna-se agente activo da leitura, escolhendo, a seu belo prazer a
possibilidade de enveredar por caminhos laterais. Este tipo de sequência
aproxima-se do fluir da consciência, da oralidade em que, a qualquer mo-
mento, um interlocutor pode intervir, desviando a conversa.
O hipertexto, além disso, recorre a formas de comunicação audiovisual que
se tornam aliciantes.
Como escritora, considero que o importante é comunicar, com qualidade,
seja qual for o suporte utilizado. Pessoalmente lamento que os livros me
não permitam a utilização de tantas potencialidades, que já integrei no meu
imaginário.
Os detractores da inovação já acusaram a rádio, a televisão de serem co-
veiros dos livros, agora apontam o dedo ao computador.
Mas, de facto, qualquer utilizador minimamente atento verificará que a in-
ternet se tornou o mais extenso catálogo de livros de que há memória e a
Amazon a maior livraria do planeta.

131
XVI Encontro de Literatura para Crianças

A literatura infantil na internet

Existem interessantíssimos sites e revistas sobre literatura infantil e seus


autores na net. Professores, pedagogos, escritores, ilustradores aí poderão
recolher um manancial de informação e crítica sobre publicações, eventos,
prémios, a par de biografias de autores, entrevistas, textos inéditos ou re-
produzidos.
Em Portugal não existem propriamente revistas dedicadas ao tema, como
o Doce de Letra do Brasil, a Imaginária, da Argentina, o Ricochet de França
e inúmeras congéneres de língua inglesa.
http://www.imaginaria.com.ar
http://www.ricochet-jeunes.org/
http://calgary.ca/~dkbrown/journals.html ver
No entanto há diversas páginas portuguesas que se revelarão muito úteis.
Refiro-me à da Associação dos Professores de Português, ao sítio dos Es-
critores de Sonho, ao do Crilij ou da Universidade do Minho.
http://guida.querido.net./autor.htm
http://boasleituras.com/projectocrilij.asp
http://nonio.uminho.pt ver
A Editorial Caminho construiu um site interactivo dedicado às autoras da
colecção Aventura e uma página mais modesta para Alice Vieira. Sofia Ester
e outros mantêm as suas próprias páginas com e-mail, que permite o con-
tacto directo com os leitores.

Como será o futuro?

Não voltaremos ao ieroglifo nem ao rolo de pergaminho ou ao códice ilumi-


nado. Não regressaremos à escrita com caracteres tipográficos inventados
por Gutemberg. Hoje os livros são compostos em computador. A ilustra-
ção é, por vezes, integralmente trabalhada informaticamente. A importância
do visual levou ao aparecimento de muitos e espectaculares ilustradores.
Vários livros são acompanhados de CDs. Alguns publicam-se inclusiva-
mente em versão electrónica.
Não me parece que o livro se encontre ameaçado. Continua a ser o bastião
da cultura tradicional, o suporte privilegiado da grande literatura, o íntimo
companheiro.
Mas voaremos cada vez mais na crista da onda da internet, sobre um
oceano imenso, em perpétuo movimento. Como a criatividade do homem
é imparável, havemos ainda de descobrir novas formas de navegar no fu-
turo.

132
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Pedro Rosa Mendes

Modernos Nautas

Obrigado e obrigado também à Luísa Ducla Soares pela sua riquíssima in-
tervenção.

Provavelmente fui convidado para este encontro de literatura infantil muito


por culpa deste livro e desta viagem que foi publicada com o nome Baía dos
Tigres, embora eu confesse que, quando a Dr.ª Helena Borges primeiro me
convidou, fiquei um pouco surpreendido, embaraçado porque me conside-
ro uma pessoa com uma imaginação bastante fraca. Digo isto sem querer
ser blasé; é por isso, talvez, que tenho tanta sede de viajar e de escutar.

Por falta de imaginação, eu nunca consegui escrever nada para crianças;


portanto, se calhar, a justificação mais próxima para a minha presença em
qualquer encontro de literatura infantil são as minhas duas filhas, para quem
eu continuo a tentar encontrar histórias à medida do seu mundo. É muito
mais fácil escrever para o mundo dos adultos! É muito mais fácil para mim,
como adulto, tentar sonhar outros espaços, tentar sonhar outros territórios
do que ter a inteligência e a imaginação para conseguir ler o mundo à altura
das minhas duas filhas, que têm quatro e sete anos.

Eu lembro-me, de há uns dois ou três anos, um amigo meu, também escri-


tor, bastante conhecido, que tem um filho agora com sete anos (na altura
o Carlinhos tinha cinco), me ter contado que certo dia eles estavam num
quiosque, ou numa livraria, e o Carlinhos pegou numa edição brasileira da
Playboy, começou a folhear e parou numa página em que estava uma mu-
lher nua, com um cinto à cowboy. O Carlinhos ficou parado na fotografia e
chamou: «Papá, olha esta página, esta imagem!» O meu amigo ficou tam-
bém a olhar para a mulher totalmente despida. Depois de alguns segundos,
o Carlinhos perguntou: «Já viste que o cinto de cowboy dela é quase igual
ao que eu tenho?» O Carlinhos conseguiu folhear a revista Playboy num
ângulo que eu ou o José Eduardo, de certeza, não teríamos ao folhear a
revista!

É verdade que o mundo visto pelas crianças, – e para voltar ao tema e à

133
XVI Encontro de Literatura para Crianças

literatura infantil e às viagens – tem uma ingenuidade, uma naiveté, que tem
a ver com uma abertura total, uma espécie de porosidade para apreender e
para ter uma insaciedade enorme em relação a tudo o que os rodeia.

Penso sempre que, em primeiro lugar, o que há de comum entre esta de-
manda da literatura de viagens e a literatura infantil (e, às vezes, as coi-
sas são coincidentes, os resultados são coincidentes), é, digamos, esta
abertura também total e uma postura quase obsessiva de curiosidade para
viajar. Pode não ser viajar literalmente, pode não ser estar no outro lado
do mundo, mas, em primeiro lugar, ter uma atitude intelectual de busca e
de pensar, pois o primeiro motor de busca nesta era da Internet é a nossa
própria inteligência, como diria o Mia Couto, é uma arma de construção
maciça, com que nós todos contamos.

Sou provavelmente classificado como um viciado da Internet, nos sítios


mais incríveis eu preciso de ter acesso ao meu e-mail, pelo menos, e, to-
dos os dias, durante várias horas, leio os jornais, tiro imensa informação
da Internet, e, portanto, uma explicação como a que a Luísa Ducla Soares
nos fez mostra, de facto, todas as potencialidades que há, também para a
criança, hoje, com a Internet.

Por outro lado, - e gostaria de acrescentar esta perspectiva – há também um


lado geográfico, digamos, de uma cartografia desta mesma questão da via-
gem, da importância da Internet e do acesso ao conhecimento e dos vários
mecanismos de curiosidade com que hoje somos confrontados. É verdade
que este mundo da aldeia global, para nos remetermos à expressão do
MacLuhan, é um mundo também em grande parte virtual. Basta salientar
que, para a maior parte da humanidade, para centenas de milhões de seres
humanos não há sequer o acesso que, digamos, faz parte da logística mais
básica para participar, para entrar, para ser um cidadão desta aldeia global,
que é uma linha telefónica. É verdade que hoje, aqui em Lisboa, Portugal,
Europa, Norte, Ocidente, o que queiramos chamar, há uma aldeia global
que funciona em termos de espelho de si próprio, também na Internet. A
Internet está espalhadíssima por todo o mundo. Obviamente, às vezes é
mais vital em sítios onde não há outra forma de acesso ou de circulação da
informação.

Estou a falar de espaços politicamente fechados; por exemplo, a importân-


cia da Internet, hoje, na China, em termos individuais e em termos de es-
paço de liberdade, é algo que nós, população de um mundo democrático,
dificilmente podemos tocar. É algo vital!
134
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Mas essa aldeia exclui, e cada vez mais é um processo de exclusão para-
doxal. Paradoxal, porque sendo criança ou adulto, sendo jornalista, sendo
escritor, ou qualquer outra coisa, nunca, como hoje, uma pessoa teve um
acesso tão instantâneo a tanta informação. Normalmente, informação, diria
o grosso de informação que está disponível na Internet, o grosso dos con-
teúdos como se costuma dizer, são conteúdos (por isso, eu falava de espe-
lho) postos por nós para nos vermos ou para nos revermos.

Em muitos países, em muitos sítios, fora da nossa normalidade ocidental


– estou a falar de África ou de alguns sítios da Ásia, sobretudo da Ásia
Central, desde o Afeganistão à Libéria – é impressionante a quantidade de
cibercafés que, por exemplo, até há um ano, antes da batalha de Monróvia,
existia em Monróvia, era quase a cada esquina, porque é, de facto, vital
para as pessoas. Só que em Monróvia ou em Cabul, ou em muitos outros
sítios, pode-se ter acesso e tem-se acesso à informação e a conteúdos
que são, em primeiro lugar, europeus e, sobretudo, americanos; portanto
há aqui uma dupla exclusão que a Internet pode fazer: uma exclusão de
acesso e uma exclusão de informação.

Estou a lembrar-me, por exemplo, de um sítio como Bissau, em que a maio-


ria das crianças em idade escolar, tem acesso a livros infantis, a livros es-
colares que reflectem uma realidade que não é a deles. São histórias que
se passam em países onde há montanhas, onde há neve, onde há quatro
estações, onde há flores de uma determinada cor, onde há certos animais,
onde há animais domésticos tão diferentes dos de lá; portanto, queria pôr
este outro lado da realidade que é tomada de uma forma cada vez mais
virtual e vice-versa.

Voltando à viagem, e porque estamos a falar da Internet, eu tenho um site


que não está disponível agora, que é o mais óbvio, baiadostigres.com, que
é um site magnífico, posso dizer magnífico porque não é a minha parte, foi
feito por um web designer um site da Baía dos Tigres que foi publicado,
lançado no mesmo dia, à mesma hora, do livro em papel, e na altura não
foi óbvio.

Lembro-me de algumas discussões que tive com o meu editor, que tinha
muito receio de que esta viagem que estávamos a lançar em papel, (esta
viagem de Angola à contra costa, é esse o pretexto para levar o leitor para
uma multiplicação, para um harmónio de outras viagens), ao mesmo tempo
estivesse integralmente (quatrocentas páginas de texto) disponível na In-
ternet.
135
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Acabei por convencê-lo de que, em primeiro lugar, quem tem acesso, quem
tinha na altura – estávamos em 1999 - acesso a um computador e à Internet
não se dava ao trabalho de imprimir oitenta janelas diferentes, que corres-
pondem, grosso modo, aos capítulos do livro, com quatrocentas páginas
de texto para não pagar os doze ou treze euros do livro. Quero dizer, é um
não problema! E convenci-o também, questão mais importante, que a via-
gem virtual que era possível ao leitor fazer no site da Baía dos Tigres era
uma viagem, também paradoxalmente, muito mais autêntica, mais próxima
da viagem que eu tinha feito, uma viagem durante o Verão de 1997, de Ju-
nho a Setembro, que acabou, precisamente, duas semanas antes da minha
filha mais velha nascer e, pour cause, tinha de acabar, tinha esse timing.

Essa autenticidade da minha experiência, das emoções, da informação, e


dos encontros que tinham acontecido nessa viagem. A tudo isso o leitor
podia ter um acesso mais completo através do site.

Tentei que a Baía dos Tigres fosse constituída por uma espécie de fluidez,
um percurso, um rio de histórias de informação e que, a cada página, o
leitor pudesse acompanhar-me e pudesse sentir que estava, não a viajar
virtualmente, a viajar sem ter acesso a nada em termos de emoções, em
termos do que está em causa numa viagem, mas pudesse participar um
pouco nisso, pudesse angustiar-se, pudesse ter medo (a própria mecânica
do hipertexto possibilitava isso).

Para o bem e para o mal, o livro tem uma linearidade implícita, que é a
linearidade tipográfica. Começamos a ler na página um até à página cem,
duzentos, etc. No site, essa ordem não existe, pelo menos eu não quis dá-
-la assim, portanto, o site tem uma estrutura com oitenta fragmentos, e em
cada fragmento, o leitor tem três escolhas para evoluir na viagem, que re-
produzem as escolhas que eu tinha de fazer em cada momento da viagem
africana: ficar no mesmo sítio, e isso no site significa continuar a um nível
mais profundo, por exemplo, descer mais à intimidade de um determinado
personagem, saber mais sobre um episódio histórico, portanto, descer à
intimidade da história, ou ir para a frente, ou recuar. Nada mais do que es-
tas três hipóteses me eram dadas nessa viagem entre Angola e o norte de
Moçambique e eu quis que o leitor fosse confrontado com isso. Isso é pos-
sível, não no papel, em que, de facto, as pessoas têm uma linearidade que
as obriga a ler dessa maneira, mas há uma maior plasticidade, por absurdo
que pareça, no livro virtual. O livro virtual é mais real!

E é o livro virtual que também possibilita, por exemplo, que a viagem na In-
136
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ternet tenha crianças a cantar, tenha canções, tenha o relato de crianças do
Cuito sobre a sua própria guerra, tenha toda uma iconografia, tenha sons
de uma canoa a atravessar um rio; portanto, há palavras e há narrativas que
completam a própria narrativa que está no papel.

Isto porque, voltando à noção de viagem e dos mecanismos de curiosidade,


na literatura infantil, e em qualquer boa obra literária, às vezes é quase im-
possível distinguir o que é para um nível de conhecimento adulto ou não.

É importante ter a noção de que viajar é percorrer um determinado mapa,


uma determinada cartografia, não é aquele mapa de x graus norte, x graus
este ou oeste, aquele mapa, diríamos, aquele mapa político; tem a ver com
cartografias íntimas, pessoais, que nos põem em relação com o outro. E
essa é uma cartografia feita de palavras e, portanto, a viagem não é, na
Internet ou no terreno, um sítio, não é um site, neste aspecto. A viagem é
muito mais um momento. A viagem é quando se dá um encontro e quando
estamos abertos para esse encontro e isso acontece naquele momento,
naquele instante.

Não sei se é essa a experiência da Luísa. Por exemplo, até a experiência


dos chats, até a experiência de consultar coisas na Internet, às vezes tenta-
mos repeti-las e já não estão lá.

Os postais que recebemos pela Internet em vez de recebermos pelo correio


normal! Parece que a palavra fugiu! Mas a palavra existiu, mesmo que já
não exista, mas nós sabemos que existiu porque, apesar de irmos ao sítio
dessa palavra, que não está lá, nós lembramos o encontro que a tornou
possível, portanto houve esse momento, houve esse instante em que nós
interceptámos a nossa curiosidade, o nosso saber, a informação disponível
com outra pessoa.

Isto é, digamos, o mecanismo base da viagem e, por isso, em termos do


que é produzido em papel, toda a história da literatura de viagens, da boa
literatura de viagens, é riquíssima em termos de encontro do autor com o
outro e quando isso não acontece, quando o autor é estanque a toda a in-
teracção, a toda a comunicação, então produzimos coisas de um exotismo
ou de um grande narcisismo.

A importância da palavra para construir um espaço torna-se cada vez me-


nos óbvia, precisamente para a nossa parte do mundo, que vivemos com
este paradigma da rede de Internet e da ilusão do acesso a todo o tempo,
137
XVI Encontro de Literatura para Crianças

a toda a informação. Penso que estamos a perder uma noção táctil do que
é que nos constrói e de qual é a nossa posição, porque a identidade de
cada um de nós, como pessoa, como grupo, tem também a ver com uma
cartografia, um lugar no mundo em relação aos outros.

Isso é uma noção que, noutros sítios do planeta, as pessoas têm de uma
forma muito aguda.

Estive recentemente, no início do Verão, a trabalhar várias semanas em


Timor num novo livro, que vai sair antes do Natal, com um autor que os
meus colegas de mesa conhecem bem, que é o Alain Corbel. Não é por
gostar dele, por ter uma relação de amizade, por termos feito dois livros
juntos, mas o Alain é precisamente das pessoas que eu conheço que con-
segue melhor funcionar num registo “infantil”, em termos de uma pureza
poética e de uma abertura total para uma espécie de originalidade pura de
estímulos ao que o rodeia.

Nós juntámo-nos para este projecto, para uma grande reportagem ilustrada
sobre Timor, e tivemos o privilégio de um dia sermos convidados para uma
cerimónia muito rara, apesar de este tipo de cerimónias acontecer agora
um pouco por todo o território, que foi a cerimónia de reconstrução de
uma casa ludic, que durante uma geração, quase duas gerações não pôde
acontecer.

“Ludic” é sagrado em tétum, portanto, é uma casa totémica, casa onde


habitam os antepassados da tribo, no sentido em que os antepassados são
toda a linhagem, desde o primeiro fundador da linhagem até cada um dos
membros dessa tribo, desse clã. A maior parte destas casas foram aban-
donadas ou destruídas no tempo indonésio. Timor, na independência, con-
segue voltar a formas muito fortes de religiosidade, sincrética e animista,
muito mais poderosas que o catolicismo romano que foi adquirido, pela
maior parte da população, sob o regime indonésio, algo que nós, aqui em
Portugal, costumamos ignorar.

Nós fomos convidados para ir à montanha, mais de dois mil metros de alti-
tude, já acima das nuvens, numa cerimónia que começou às seis da tarde e
quando nós saímos, ao meio-dia do dia seguinte, ainda continuava.

Aquela cerimónia teve lugar nos contrafortes do Tatamailau, que é o pico


mais alto de Timor. Era a montanha mais alta de todo o império português!
Três mil metros de altitude! Nós estávamos num dos contrafortes. Vêm pes-
138
XVI Encontro de Literatura para Crianças
soas dessa linhagem, desse clã, de Dili, de todo o Timor para lá.

Algures na madrugada, não sei a que horas, porque depois há o cansaço, há


o álcool, há o tabaco mascado, portanto entra-se num outro universo, mas
há um momento fundamental em toda a cerimónia, extremamente ritua-
lizada, vivida e participada pelo grupo, que é a narrativa: há uma narrativa
de grupo feita por um sacerdote, que é o dono das palavras, as palavras
das quais todo o clã, toda a tribo, retira a sua própria identidade.

Isto é claro para estes timorenses na montanha - voltando a esta noção de


viagem como construção de identidade - o que interessa não é o sítio que
ocupam; o que define o facto de eles existirem como indivíduos ou como
povo não é terem aquele sítio ou não, é saberem de que sítio vieram e, so-
bretudo, saberem quais as palavras, entre um sítio e outro e, digamos que,
ao extremo, é saber que pessoas são, cada um deles que lugar ocupa no
mundo, através, no fundo, de uma viagem que é uma viagem mítica e nesse
sentido é uma viagem virtual, é uma viagem mentirosa, mas é uma viagem
que os constrói, no mesmo sentido em que as canções dos aborígenes
australianos do Bruce Chatwin constroem um grupo e um indivíduo através
de uma narrativa, de uma palavra que coincide com uma viagem e que
coincide, por sua vez, com a construção de uma identidade e a descoberta
de uma identidade.

E é tudo.

139
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Francisco Pacheco

Modernos Nautas

Muito boa tarde a todos e a todas. É um prazer sempre grande estar aqui
nesta casa a apresentar uma viagem cuja primeira etapa terminou há dias.

Esta viagem chamada História do Dia não é, obviamente, um projecto meu


e, precisamente por não ser um projecto meu, sinto-me perfeitamente à
vontade para o poder elogiar.

Se calhar juntei-me a uma equipa de muita gente que tornou possível, de


facto, esta realidade de trezentas e sessenta e seis histórias durante trezen-
tos e sessenta e seis dias na Internet.

Dizia o António Torrado no início do projecto: ainda por cima calha-nos um


ano bissexto! Temos de escrever mais uma história!
Digamos que é de viagens que se trata!

Eu ando, de certa maneira, a viajar por estes mundos das tecnologias des-
de os idos anos 80 do século passado, quando acreditei, por estar em
Portalegre, que provavelmente as tecnologias poderiam ser e seguramente
são (está a ser demonstrado que são) um poderoso aliado das regiões mais
desfavorecidas.
Eu dei particular atenção à utilização da Internet em contexto educativo du-
rante os anos 90, principalmente, com o surgimento de alguns dos projec-
tos que a Dr.ª Luísa Ducla Soares já abordou, ligado a uma rede telemática
educativa, na altura com dezasseis escolas e jardins-de-infância do mundo
rural. Que loucura!
Precisamente quando as escolas do 1º ciclo ainda nem telefone tinham.
Nós estendíamos os cabos de telefone, montávamos o computador e ligá-
vamos a Internet ao mesmo tempo; portanto foi um upgrade tecnológico
estonteante para escolas de um meio rural da região de Portalegre.

Esta atenção pela componente tecnológica levou-me, desde cedo, a acre-


ditar numa coisa: a tecnologia sim, nas escolas o mais possível, mas, por
favor, uma tecnologia de rosto humano, uma tecnologia balizada pelas e

140
XVI Encontro de Literatura para Crianças
para as pessoas!

Daí também consciencializei, de certa maneira cedo, a pobreza dos con-


teúdos em Língua Portuguesa e isso constituiu, para mim (porque sou um
pouco desinquieto) um motivo acrescido de preocupação e também de es-
tímulo, porque, como educador de infância que sou, não admito que as
crianças portuguesas dos três aos seis anos e dos seis aos dez anos te-
nham menos oportunidades que as crianças de Língua Inglesa.

E sei que têm! porque neste mundo da comunicação virtual, neste mundo
dos conteúdos, se o meu filho falar Inglês como língua materna vê os sítios
que a NASA produz especialmente para crianças, vê os museus virtuais de
todo o mundo.
Nós, em Portugal, provavelmente por sermos demasiadamente formais,
criamos sítios na Internet a pensar nos adultos, honrosa excepção seja feita
ao contributo da Dr.ª Luísa Ducla Soares que transformou o sítio do Presi-
dente da República num sítio também para crianças.

Eu penso que devia ser uma medida política obrigar todos os serviços pú-
blicos, que têm páginas e presenças na Internet, a terem uma zona espe-
cialmente dedicada às crianças e não que mostrassem apenas os aspectos
formais do museu, o organigrama e, muitas das vezes, a cafetaria, o bar e
as coisas que se vendem. Digamos, portanto, que este foi o ponto de par-
tida que nos finais dos anos oitenta, marcou talvez o meu início de viagem
nesta aventura que foi a História do Dia.

A minha motivação foi depois, já mais recentemente, espicaçada por um


e-mail que considero um pouco emblemático.
Era de uma lusa descendente holandesa, se a memória não me atraiçoa,
que me dizia: consultámos o vosso sítio na Internet, o “Aproximar”, e diga-
-me, por favor, onde é que eu arranjo formas de que o meu filho, que tem
agora dois anos, possa continuar a falar Português?
Nós somos um país de viajantes e esquecemo-nos que temos viajantes
espalhados e ancorados por todo o mundo e a grande viagem da História
do Dia, se calhar, é uma viagem pela lusofonia!
É uma viagem que, por ser deste meio, por ter o rótulo que tem – um escri-
tor que dispensa qualquer tipo de apresentações – por estar diariamente
em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa, tem sido felizmente, talvez, um
acenar a todos aqueles que pelo mundo fora fizeram a viagem, continuaram
a poder ler e, neste caso também, a poder ouvir em Língua Portuguesa!

141
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Eu tenho que fazer uma pequena viagem desta mesa para a outra mesa,
atendendo a que a História do Dia é um projecto na Internet, nós temos
acesso à Internet e eu prefiro falar com o sítio ao lado. Com licença.

Seguramente para a maioria dos presentes nesta sala não é nada de novo
o que vos estou a mostrar: o sítio “História do Dia”, todos os dias uma
história nova na Internet, escrita e contada por António Torrado e ilustrada
por Cristina Malaquias, dois elementos fundamentais de uma vasta equipa
sedeada, na maior parte dos casos, em Portalegre.
E aqui é também um aspecto que eu gosto sempre de destacar: este mun-
do das tecnologias permite-nos uma coisa muito importante – podemos
descentralizar.
A equipa que aqui está, na maior parte da sua componente tecnológica é
constituída por jovens recém-licenciados, na maior parte dos casos, que
encontraram, em Portalegre, neste e noutros projectos financiados (no caso
pelo Programa da Sociedade de Informação) a possibilidade de regressa-
rem à sua terra natal.

É, de facto, um problema com que nós nos debatemos a nível do interior e,


digamos, que até este nível as tecnologias podem ser um contributo pre-
cioso para que meios menos centrais, que na Internet não há seguramente
locais físicos, possam impor-se e, dessa forma, dar trabalho, prestígio, von-
tade de testar os meios de onde as pessoas, ao fim ao cabo, são, de onde
muitas das vezes saem, contra vontade, empreendendo viagens que não
seriam aquelas que mais gostariam de fazer.
É todo ele falado (pensámos logo nas crianças mais pequenas e numa uti-
lização autónoma por parte das crianças mais pequenas) e tem também
uma versão em Língua Inglesa.

Da experiência da História do Dia, ao longo dos primeiros trezentos e


sessenta e seis dias, ficou-me a pena de ainda não o ter conseguido colo-
car em castelhano.
Em castelhano, não por Espanha, não por estar ali na zona raiana, mas prin-
cipalmente pela quantidade de acessos que nós tivemos da América Latina,
perfeitamente gratificante o que fará pensar que qualquer projecto de con-
tinuidade desta História do Dia terá forçosamente que pensar no castelhano
como língua importantíssima para, de certa maneira, dar resposta a essa
parte do mundo.
Trezentas e sessenta e seis histórias que vão ficar na Internet.

Sei que isto era uma questão que assustava um pouco o António Torrado:
142
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ficar até quando, até sempre?
Eu tenho uma chamada cópia de segurança de tudo isto, portanto, o mun-
do digital, digamos, não é perecível.
Há discos que mantêm toda esta informação e, se calhar, no século XXVIII,
algures no espaço, no ciberespaço, poder-se-á ouvir o António Torrado a
contar, por exemplo, Os Caracóis Portugueses, ou outra qualquer história.

A questão da democraticidade parece-me extremamente importante neste


projecto, ou seja, toda a gente teve acesso a poder ouvir as histórias de
uma forma gratuita, portanto, o sítio é de livre acesso.

O facto de ter sido financiado no âmbito do Programa para a Sociedade


de Informação – o que foi interessante, pois nós batemos a muitas portas,
estávamos quase a desanimar, a pensar que o projecto teria de ficar na
gaveta, mais um entre tantos em Portugal – pelo facto de ter tido este finan-
ciamento público, pôde ser, e apraz – nos muito, um sítio de livre acesso ad
eternum, se assim quiserem.

Neste momento já estão cá todas as histórias, são mesmo trezentas e


sessenta e seis.
Eu vou fazer uma pesquisa, vou passar para português, no arquivo, sem
colocar nomes de histórias, o que significa que ela me vai dar todas as
histórias disponíveis e, portanto, vão ver que são mesmo trezentas e
sessenta e seis.
Vão se repetir sempre ao longo dos dias de cada mês: a história correspon-
dente ao mesmo dia do ano passado, volta a ser editada hoje.
Paralelamente à história, existe uma ilustração ou duas, mas habitualmente
uma ilustração original de Cristina Malaquias, para cada uma das histórias.

Temos sempre a possibilidade de ouvir a voz do autor, a voz do escritor.


Mas, associadas a cada uma das histórias aparecem sempre algumas pro-
postas para que as crianças possam pesquisar por si. Esta parte das pro-
postas é da minha responsabilidade directa, nunca pela interpretação da
história!

Penso que é sempre uma das coisas que nós, professores e educadores,
devemos ter mais presente do que na realidade temos.
Não me interessa aqui de forma alguma que as propostas vão por uma in-
terpretação da história, o que leva a uma conclusão, queremos que sejam
algo que possa expandir a curiosidade.

143
XVI Encontro de Literatura para Crianças

No caso d’ Os Caracóis Portugueses, hipoteticamente será saber mais so-


bre caracóis e haverá, seguramente, na Internet muitos sítios onde se pode
saber mais sobre caracóis e também fazer aqui uma pequena maldade,
como sabem, os caracóis são uma “cultura” e, portanto, também se podem
dar algumas receitas bem portuguesas de como comer os caracóis.

Entretanto temos sempre duas, três, quatro propostas que ligam a criança
à Internet numa perspectiva de, a partir da história, poder encontrar fontes
de informação.

Construímos nós próprios, através de um dos técnicos do projecto, jogos


que, respondendo também ao que já aqui foi falado, à curiosidade e ao in-
teresse natural das crianças por jogos, os levam a alguns jogos de carácter
(eu não gosto muito da palavra) didáctico, que pudessem ter alguma coisa
a ver com os conteúdos abordados nas histórias.

Basicamente, o História do Dia é isto!


Eu tenho para mim que os projectos quanto mais simples, melhor!
Acho que muitas das vezes o difícil é chegar à simplicidade!
É sempre um grande desafio que temos!

Foi muito bom ter cruzado a viagem da equipa de Portalegre, e não é a


minha viagem pessoal, é a viagem de uma equipa.
Hoje, por acaso, estou eu aqui e a minha colega da Associação de Profis-
sionais de Educação do Norte Alentejo, Joaquina Caeiros, responsável pela
tradução para inglês.
Mas foi muito importante este cruzamento da equipa de Portalegre desta
viagem com algumas viagens, cada vez mais frequentes, do António Tor-
rado a Portalegre, porque cruzámos, alguns interesses. O António Torrado
dizia há pouco que é ainda um escritor muito avesso a estas tecnologias: eu
que o diga!, o que eu penei com essas aversões!, porque, como calcularão,
muitas das vezes não é fácil traduzir a escrita manual do António Torrado,
mas também, por isso mesmo, tivemos uma equipa de revisores gráficos.

Enfim, esta viagem terminou a sua primeira etapa no dia 30 de Setembro, e


os números que aqui vos apresento poderão servir apenas para ver se fo-
mos, ou não fomos, eficazes, se, ao fim ao cabo, esta viagem que fizemos
valeu a pena, se atingiu os seus objectivos.
A vantagem da Internet é também dar-nos diariamente, através de um
relatório, tudo o que acontece naquela máquina onde está sedeada a in-
formação.
144
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Nós temos dados muito fidedignos, se assim quiserem, do que se passou
durante os trezentos e sessenta e seis dias.
Se calhar, se eu vos disser que tivemos cerca de três milhões de visitas,
isto quer dizer que devemos estar muito satisfeitos porque, afinal, temos
leitores! Nós temos leitores!

Nós temos miúdos que, todos os dias, nesta zona do sítio, que é o Comu-
nicar, deixavam mensagens a falar sobre a história.
Nós temos aqui cerca de vinte e tal mil mensagens!

A propósito! eu desafio a Associação de Professores de Português a fazer


um estudo sobre o erro em Portugal a partir das mensagens que aqui estão,
porque, em certa altura, houve uma polémica que foi: deviam ou não cor-
rigir os erros ortográficos que aqui estão ?
Nunca!
Isto é a escrita de quem escreve!
Para mim foi o melhor testemunho!
Estes erros provaram-me uma coisa: é a escrita não mediada!
O que me diz que houve apetência directa das crianças pela utilização deste
sítio!

Agora que isto daria uma belíssima tese de mestrado ou doutoramento so-
bre o erro das crianças dos seis ao catorze anos, ai garanto-vos que dava!

Depois, surpresas absolutas, nestes milhares de mensagens que por aqui


apareceram, a última de ontem à noite, salvo erro, quando estive a fazer a
actualização das mensagens que têm de ser pré-validadas, foi de uma se-
nhora, que trabalha numa empresa de segurança e faz horário nocturno, e,
para ela, não é a História do Dia, é a História da Noite!
Ela dizia, e está aí escrito, que o companheiro da noite é a história do dia!
Quem trabalha com estes meios nunca sabe a quem é que se está a dirigir
e esse talvez seja um dos grandes aliciantes de trabalhar estes meios!

Eu também não sabia, aqui há uns meses atrás, que estava a falar com
um senhor em Nova Jersey, salvo erro, que escreveu: “ainda bem que há
uma história do dia! Eu já há muito tempo que não falava português, se-
guramente se o José Saramago me ouvisse falar não sei o que me faria e
agora, ouvindo o António Torrado todos os dias, lendo, eu estou a praticar
e a aprender muito mais português”.
E, seguramente vos garanto, este sítio foi pensado como um espaço de
literatura para crianças!
145
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Mas estava a falar-vos um pouco dos números, destes cerca de três mi-
lhões de amigos que nos visitaram ao longo do primeiro ano, o que dá, se
contarmos todos os dias e fizermos uma divisão simples por trezentos e
sessenta e seis, uma média de sete mil e oitocentas, sete e mil novecentas
visitas por dia.

Mas, como eu sei também que nos fins-de-semana (porque, infelizmente,


ainda vivemos num país em que o acesso à Internet em casa das pessoas
é dos mais baixos da Europa) tenho um abaixamento de visitas de cerca de
um terço, o que quer dizer que se eu apenas fizer a previsão dos dias da
semana, temos cerca de doze mil visitas diárias durante os dias de semana,
incluindo todo o período de férias de Julho e Agosto.

Eu falo-vos dos números só pelo lado de lá, pelo gozo que me dá saber
que estas coisas estão a ser lidas, porque nós acreditamos na eficácia e na
qualidade do que aqui está; portanto, quando no mês de Agosto, nós temos
uma média de três, quatro mil visitas por dia, sabemos que não está a haver
uma mediação por parte da escola.
É extremamente interessante!
E eu deixo-vos estes números só para que pensemos todos em conjunto!
Temos público para a escrita em Língua Portuguesa!
Ele está lá à nossa espera!

Há uma mensagem de ontem à noite: ”já estou a sentir saudades”, porque


foi alguém que, com certeza, nos acompanha desde o dia um de Outubro,
e, portanto, se calhar, já está repetir e diz – “Já estou a sentir saudades”!
Quatrocentos e quarenta e duas mil impressões da história no formato pdf!
Eles podem votar, podem imprimir e coleccionar uma versão em formato
pdf - e sei que ela está coleccionada em muitos sítios, porque por questões
técnicas, não publicámos dois ou três dias e houve logo uma chuva de
mensagens de pessoas não estavam a conseguir imprimir e estavam a co-
leccionar!

Como por exemplo uma avozinha, aqui de Lisboa, que tinha o neto em casa
no fim-de-semana e, então, a prenda era ter as histórias impressas para lhe
poder ler, lá em casa, no domingo.

Queria dizer-vos também que esta viagem, que nós empreendemos em


conjunto, foi consumida em cinquenta e cinco países!

E é extremamente gratificante saber, e eu poder dizer aqui hoje, que ela foi
146
XVI Encontro de Literatura para Crianças
consumida em todos os países de língua oficial portuguesa, sabendo nós
todos que estamos nesta sala, as fragilidades do acesso à tecnologia e à
Internet dos países de língua oficial portuguesa.

Achei particularmente enternecedor (o sítio dá-me essa informação) saber


que diariamente eu tinha visitas de Moçambique que, diariamente, eu tinha
visitas de Timor, que tivemos visitas – e temos provas factuais disso – de
todos os países de língua oficial portuguesa.

A seguir a Portugal, como calculam, o maior consumidor da História do Dia


foi o Brasil, e a seguir os Estados Unidos, que é protagonista de uma céle-
bre história, que alguns conhecerão.

Como nós tínhamos uma média superior a quatrocentas visitas por dia
disparou, como é normal que dispare, o serviço de controlo de visitas dos
servidores americanos e, portanto, nós fomos visitados pelo Pentágono
e, portanto, como em Portugal, isto não é nenhuma crítica, o que faz, às
vezes, notícia é o Pentágono visitar um sítio português e não o facto de
portugueses estarem a fazer um sítio em Portugal.

De facto, nessa altura foi bom porque nunca se falou tanto da História do
Dia, e eu, encarecidamente, daqui agradeço ao Pentágono, se me estiver a
ouvir, esta oportunidade de publicidade acrescida que nos deu.

Mas, portanto, estivemos mesmo nas cinco partidas do mundo!


Abrir o mapa de África, por exemplo, e ver estes salpicos vermelhos e saber
que andámos por aqui...
Valeu a pena a viagem?
Valeu pois!
Estes sítios todos, estas bolinhas vermelhas são os sítios por onde nós
andámos, por onde a História do Dia e, consequentemente, a Língua Por-
tuguesa para crianças!

Pouco mais vos posso adiantar sobre a História do Dia, a não ser garantir-
vos que ela vai ficar, continuar online.
Dizer-vos que isto nos criou a responsabilidade acrescida de pensar no que
fazer com esta espada!
Vamos ver!
Vamos continuar!
Vamos pensar num conjunto de projectos a partir da História do Dia!
Este é o ponto de partida!
147
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Vamos, seguramente, convidar outros escritores e bons escritores da luso-


fonia para estar connosco, alguns, com certeza, presentes nesta sala!
Vamos associar-nos, em parceria com outras instituições e fazer muitas
histórias do dia!

Digamos que está quase garantida a história com arte, ou seja, criar histórias
infanto-juvenis a partir das principais obras de arte dos museus portugue-
ses.

Está pensado um projecto megalómano que é a história do dia em que tu


nasceste.
É um projecto que pretende ser uma base de dados dos acontecimentos
mais relevantes em Portugal e no mundo nos últimos trinta anos, para que
a criança escreva o dia em que nasceu e que tenha um simulacro do jor-
nal que fez notícia nesse dia, sendo portanto, a história do dia em que ele
nasceu!

António Torrado vai-se “virar”, de certa maneira, por desafio pessoal, para
alimentar as crianças que, por natural crescimento, se interessarão por ou-
tros temas e por outras leituras.

Queremos é continuar a tê-los como leitores, e, provavelmente, no ar anda


todo um conjunto de projectos e de subprojectos a partir desta História do
Dia que foi, atrevo-me a dizê-lo, das viagens mais interessantes que con-
segui fazer nos últimos anos!

Vou terminar com uma coisa muito simples: estou agora, por questões
meramente pessoais (o que me havia de dar com quarenta e tal anos) mais
ligado ao mundo agrícola, e vejo, todos os dias, um conjunto de sobreiros
lindíssimos, enormes – eu adoro sobreiros! – Há dias estava a passear por
debaixo daqueles sobreiros e pensei assim: eu agora estou a tomar conta
desta terrinha, mas estes sobreiros devem estar a rir-se de mim porque já
houve tanta gente antes de mim a tomar conta desta terra e, seguramente
(eles já estão a pensar) tanta gente que vai ainda passar por aqui a seguir
a ele.

As boas histórias infanto-juvenis são como os sobreiros: dão sombra a mui-


ta gente! Obrigado.

148
149
XVI Encontro de Literatura para Crianças
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Miguel Che, Marta Martins, Olga Pombo, Paula Moura Pinheiro, Ana Maria Maga-
lhães, Ondjaki e José Pedro Serra

Isabel Marques da Costa, Ana Sousa Dias, Eduardo Marçal Grilo, Manuel Carmelo
Rosa e Maria Helena Melim Borges

150
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Debate:

Clássicos: inevitáveis?

Moderadora – Paula Moura Pinheiro (PMP)


Muito bom dia.
O XVI Encontro de Literatura para Crianças, dedicado ao tema da viagem,
celebra também, antecipadamente, os 200 anos do nascimento de Hans
Christian Andersen, um clássico que nos chega trazendo a marca dos tem-
pos que o precederam e a marca dos tempos que atravessou e que conti-
nua a ressoar em nós com a frescura e a novidade do que resiste à erosão
dos dias, como todos os clássicos.
Clássicos: são eles inevitáveis?
É este o debate a que vamos proceder esta manhã.
Comigo tenho seis personalidades com formações, sensibilidades e percur-
sos distintos, cujo diálogo, aviso já, não produzirá sempre convergências
pacíficas, mas vai, seguramente, fornecer-nos mais elementos para melhor
reflectirmos sobre a importância fundamental, ou não, (peço desculpa por
esta heresia à cabeça, mas parece-me importante que todas as hipóteses
estejam em aberto), da leitura dos grandes textos clássicos.
Peço às pessoas da plateia que não deixem, durante a próxima hora, de
anotar as interpelações que, eventualmente, queiram fazer aos nossos con-
vidados na segunda parte desta sessão onde o debate será aberto à sala.
Passo agora a apresentar, muito brevemente, os protagonistas da viagem
que estamos prontos e prestes a empreender.
Começo, naturalmente, pelas senhoras. À minha esquerda, Ana Maria Ma-
galhães, que, muito antes de ser, juntamente com Isabel Alçada, a prolixa
e bem sucedida autora de literatura infanto-juvenil que todos conhecemos,
acumulou uma larga e diversa experiência como professora em escolas do
segundo ciclo. Em 1993, assinou, com Isabel Alçada, o estudo: Os jovens e
a leitura nas vésperas do século XXI.
Olga Pombo, à minha direita, A escola, a recta e o círculo, o penúltimo livro
de Olga Pombo, é apenas um dos muitos textos onde se dá a ver a rigorosa
reflexão que Olga Pombo tem realizado sobre as questões da educação.
Doutora em História e em Filosofia da Educação, Olga Pombo é Professora
Auxiliar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Coordena-
dora Científica do projecto: Enciclopédia e Hipertexto da Fundação para a
Ciência e Tecnologia.

151
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Marta Martins, aqui ao centro, à minha direita, autora do livro Ler Sofia,
os valores, os modelos e as estratégias discursivas, na obra de Sophia de
Mello Breyner Andersen para crianças. Marta Martins é licenciada em Filo-
logia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa e prestou provas de
aptidão pedagógica e capacidade científica em Língua Portuguesa e Li-
teratura Infantil na Universidade do Minho, onde também leccionou. Marta
Martins é professora da Escola Superior de Educação Paula Frasinetti, no
Porto, onde lecciona Literatura para a Infância.
E agora os cavalheiros: José Pedro Serra, Doutor em Cultura Clássica,
é membro docente do Departamento de Estudos Clássicos da Faculdade
de Letras de Lisboa onde tem leccionado disciplinas na área do Grego, da
Literatura Grega e da Cultura Clássica. José Pedro Serra foi, em 2003, o
brilhante, peço desculpa pela subjectividade, mas penso que é uma sub-
jectividade que, no caso, encontrou muitos paralelos em muita gente, o
brilhante comentador da Oresteia de Ésquilo na primeira Edição dos Clás-
sicos na Gulbenkian.
Ondjaki, à minha esquerda ao centro, com 27 anos apenas e compreenderão
que no caso se justifica a menção, Ondjaki tem já seis títulos publicados
numa das mais prestigiadas editoras portuguesas e uma obra traduzida em
França. Mas para lá da poesia, do conto e do romance, Ondjaki estudou
teatro e cinema e realizou duas exposições individuais de pintura. Ondjaki,
que nasceu e viveu em Luanda até aos 17 anos, licenciou-se em Sociologia,
em Lisboa, no ISCTE.
Miguel Che Soares, à minha direita, licenciado em Biologia e Doutorado em
Imunologia pela Universidade de Lovaine, na Bélgica. Miguel Che Soares,
esteve dez anos na Universidade de Harvard, em Boston, onde abriu o seu
primeiro laboratório de investigação em Imunologia, está, há um ano, a viver
em Lisboa e a trabalhar como investigador no Instituto Gulbenkian Ciência,
sob a direcção de António Coutinho.

E, para quem esteve nos dias precedentes a este encontro, imagino que a
questão que agora vou colocar já tenha surgido, mas creio que é, por uma
questão de método, obrigatório começar por aqui. Para que saibamos pelo
menos, não digo que todos estamos a partir do mesmo patamar, ou que
os senhores, em presença, têm todos a mesma opinião, mas para quem
nos está a ouvir e para vós também fique claro do que é que cada um fala
quando fala de clássicos.
Começo pelo nosso Professor em Cultura Clássica e queria saber, José
Pedro Serra, como é que identifica, sinteticamente, um Clássico?
José Pedro Serra (JPS)
Antes de mais nada eu queria voltar a agradecer, aliás como já fiz ontem,
à Fundação Calouste Gulbenkian e especialmente ao Serviço de Educa-
152
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ção e Bolsas, mas, estendendo esse agradecimento, gostaria de saudar a
nossa moderadora, excessivamente amável nas suas palavras e dirigir um
cumprimento muito especial aos meus colegas de debate e também ao
público.
A pergunta que me põe não é, de modo nenhum, uma pergunta fácil e não
é ingénua. E eu, depois de ontem ter aqui tentado dar a ver a inevitabilidade
dos clássicos sinto-me um pouco como quem deu a moralidade e agora vai
contar a história.
Mas, retomemos a pergunta, de facto, acerca da inevitabilidade ou não dos
clássicos.
PMP
Desculpe José Pedro Serra, interrompê-lo.
A pergunta é: o que é um clássico?
A inevitabilidade já lá vem.
JPS
Compreendo que quem quer discutir essa questão tenha metodologica-
mente de começar por tentar estabelecer, ainda que indecisamente, o perfil
do que é um clássico.
Ora bem, eu julgo que há dois modos de responder à pergunta: num sen-
tido mais restrito e num sentido mais alargado.
Diz-se de um autor que é clássico quando está compreendido tradicional-
mente entre o período que vai desde os Poemas Homéricos até ao Século
V antes de Cristo.
A primeira vez que aparece a expressão scriptor classicus justamente, diz
respeito aos autores que pertenciam a este período histórico, mas eram
clássicos porque, de uma forma ou de outra, serviam de modelo e, subja-
cente a isso estava um juízo de valor, uma apreciação, segundo a qual, por
mérito, qualquer que ele seja, inerente, pelo seu especial significado, pelos
sentidos que acumulavam, dele se dizia que era um clássico.
Em sentido mais lato, clássico é o autor ou a obra que justamente por méri-
to inerente rasga o tempo e paralelamente à antiguidade greco-latina me
surge também como um ponto de referência inevitável de um processo ou
de uma demanda histórica que é a nossa. Nesse sentido, o clássico não é
já o elemento pertencente a um mundo restrito que pela história da cultura
foi particularmente valorizado num dado momento, particularmente no Re-
nascimento, mas diz respeito sim àquele que, de uma forma ou de outra, foi
arrancado à trituração do tempo, e isso parece-me importante.
Subjacentemente à admissão de um clássico estão duas coisas que servem
de critério e que eu gostaria de sublinhar.
Primeiro, trata-se de uma obra ou de um autor eleito e por isso intrinseca-
mente na apreciação ou no julgamento «isto é um clássico» há uma peneira,
uma distinção, uma separação entre o clássico e outros, que é inevitável.
153
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Segundo, há uma espécie de trespassar o tempo, de vitória sobre o dobrar


dos séculos que faz dele um ponto de referência que pode ser dito como de
identidade ou de fonte de inspiração, isto é, que, em todo o caso, serve de
fonte particularmente inspiradora ao nosso pensar e ao pensar do processo
histórico que se vai seguindo.
Esta era a minha proposta.
PMP
Ana Maria Magalhães: Para si o que é um clássico?
AMM
Para mim o que é um clássico?
Antes de mais queria também agradecer à Fundação o convite para estar
aqui e dizer que é um prazer participar nesta mesa redonda.
Mas, eu vou ser muito mais breve.
Para mim, um autor clássico é um autor que nos deixou uma obra de arte.
Miguel Ângelo deixou-nos a Capela Sistina, Camões deixou-nos Os Lusía-
das, Tolstoi deixou-nos a Guerra e Paz, portanto são os grandes autores
que deixaram grandes obras de arte.
Tout court.
PMP
Tout Court. Tout court é refrescante, porque isto não é habitual em Portugal.
Mas, sem querer, enfim, insistir muito, como é que destrinça, (o José Pedro
usou uma expressão que é adequada e que estava inerente à pergunta que
eu fiz), o critério para identificar, uma obra de arte? Podemos deixar essa
questão como sendo relativamente pacífica e ultrapassada e concentrar-
-nos noutra: de entre todas as obras de arte que fazem parte do capital da
humanidade – e não falo agora só no contexto da cultura ocidental, – como
é que entre essas define as que se inscrevem na História como um elo de
uma cadeia, como de alguma forma dizia o José Pedro Serra.
AMM
De alguma forma essa pergunta equivale, eu acho, àquelas: o que é o amor?
o que é o tempo? Nós sabemos o que é e não vale a pena eu estar a dizer
este é clássico, aquele não será, porque viveu noutra época, porque não
teve tantas edições, todos sabemos o que é uma obra de arte.
Os grandes autores não é preciso dizer quais, sabe-se quais são, assim
como se sabe quais são os grandes pintores. Impõem-se, sobrevivem!
Acho que é uma perda de tempo eu estar a dizer estes são clássicos e
aqueles não são, pelo menos do meu ponto de vista.
PMP
Marta Martins, Professora de Literatura Infantil. Quando se diz Clássicos
Infantis, eu confesso-lhe e peço desculpa se estou a manifestar uma extre-
ma ignorância, que esta classificação me levanta uma interrogação, porque

154
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ou é clássico ou não é. Porquê esta destrinça?
Até porque eu tenho presente, do Encontro de há dois anos, que alguém
levantou, pertinentemente a questão da Literatura para Infância ou para
Crianças padecer sempre, como o Tribunal de Menores, de uma espécie
de estatuto de menoridade e eu pergunto-me se a classificação, Clássicos
Infantis, não poderá arrastar esse ónus, esse risco. Porque não dizer só
clássicos?
MM
Pois, eu penso que é importante não confundir o estatuto de menoridade
com uma especificidade.
PMP
Não, mas eu não estou a dizer que isso seria o adequado. Eu digo é que há
esse risco, haverá?
MM
De facto, há referentes que pertencem a determinadas faixas etárias. O que
não quer dizer que não se prolonguem para a vida toda.
Provavelmente os clássicos da literatura para a infância são textos matri-
ciais que organizam o nosso imaginário para toda a vida.
PMP
Isso também se pode dizer do Homero para quem o leu.
MM
Sim, mas repare, isso depende. Depende se leu Homero no texto original,
se leu nas adaptações, se leu nas vulgatas dirigidas às crianças. Do que é
que nós estamos a falar quando falamos desse tipo de referências?
Eu penso que são textos que nos trouxeram temas e personagens que con-
vivem connosco ao longo da vida e que nos fazem sentir uma reconfortante
segurança numa comunidade cultural. Sentimos que temos elos de perten-
ça a uma determinada comunidade. São essas referências básicas que nos
permitem constituir uma identidade cultural, um sentido de pertença no es-
paço.
Hoje, que tanto se fala em Europa, é importante perceber que o nosso
imaginário, sobretudo na literatura para a infância, é comum, porque nós
importámos os grandes autores europeus quando a nossa literatura para
crianças ainda era muito incipiente e hoje, provavelmente, quando nós fa-
lamos em clássicos portugueses não nos apercebemos que os clássicos
alemães, os franceses e os ingleses, já andam misturados com os clássicos
portugueses, porque eles são tanto nossa pertença como são, obviamente,
de outros países.
PMP
Eis um argumento que os federalistas iam adorar ouvir. É um óptimo e
poderoso argumento sob o ponto de vista do comportamento das pessoas
e das mentalidades.
155
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Estamos sempre a dizer que isto é um saco de gatos inventado, esta co-
munhão é uma coisa inventada.
MM
Provavelmente. Não tenha dúvida.
PMP
Eis um dado que nunca me tinha ocorrido e que me parece muito impor-
tante.
Olga Pombo (OP)
Eu gostava de dizer três coisas.
Esqueci-me de fazer os agradecimentos, peço desculpa, mas como já
foram tão repetidos assumo-os inteiramente e faço minhas as palavras dos
colegas que falaram antes de mim.
Curiosamente as três coisas que eu tinha pensado dizer sobre essa questão,
que era inevitável, têm muito a ver com o que os colegas disseram.
A primeira tem a ver com a correspondência entre a chamada Antiguidade
Clássica e o Clássico que leva a uma tal concepção restrita, como disse o
José Pedro Serra, que faz com que se identifique, num primeiro momento,
o Clássico com o autor da Antiguidade Clássica, Grega e Romana. Daí se
poderia dizer que sai uma espécie de modelo.
Eu não poria tanto as coisas em termos de modelo, mas em termos de pen-
sar o seguinte: será que esta utilização, quase histórica ou fundacional de
que o Clássico é o autor da Antiguidade Clássica, poderia levar a concluir
que só esses é que seriam os Clássicos? Penso que não!
Acho eu que estaríamos todos de acordo de que pode haver um Clássico,
o Fernando Pessoa, por exemplo.
A questão pertinente é perguntar que sentido tem esse deslocamento, ou
seja, será que esta tendência para pensar que o Clássico é apenas o autor
da Cultura Clássica decorre de uma utilização dupla da palavra Clássico e
de uma espécie de um abuso da palavra Clássico?
Será que essa é a utilização restrita da palavra, como dizia José Pedro
Serra, ou será que haverá de facto alguma razão que leve a pensar de uma
forma mais constitutiva esta espécie de equívoco que leva muita gente a
pensar que o Clássico é apenas o autor da antiguidade clássica?
Parece-me, não tanto em termos de exemplo ou de modelo, que os grandes
temas da literatura posterior foram, em grande parte, dados pela Cultura
Clássica. Assim, por exemplo, o tema da viagem foi um tema tratado pelos
Gregos, e que nos leva imediatamente a pensar na Odisseia.
Quer dizer: não há, atrevo-me a dizer, obra que trate o tema da viagem, seja
infantil ou não, juvenil ou o que seja, que não tenha necessariamente o re-
gresso e a viagem de Ulisses como matriz; então se assim é, e se eu tenho
razão naquilo que estou a dizer, o que é profundamente discutível, então

156
XVI Encontro de Literatura para Crianças
haveria quase uma legitimidade original para pensar que o Clássico, mesmo
o Clássico contemporâneo, é aquele que, de alguma maneira, está inscrito
em qualquer coisa que se iniciou na Cultura Clássica Grega e Romana.
Portanto, não seria uma relação abusiva, mas seria uma relação constitu-
tiva.
Os temas das relações pais/filhos, das relações mães/filhos, o tema da rela-
ção do herói, o tema do regresso, da viagem, que posteriormente só vieram
a ser acrescentados, e isto é referido por alguns autores, os temas relativos
ao amor cortês, na Idade Média, e à paixão a partir, em grande parte, de
Shakespeare: a gente pensa em Othello e pensa na paixão e todas as mo-
dalidades da paixão e todos os romances posteriores sobre a paixão terão
a ver ou com Romeu e Julieta ou com Othello ou com as grandes peças de
Shakespeare.
PMP
Olga, desculpe interrompê-la.
Mesmo que, e é importante sublinhá-lo, as pessoas não tenham disso a
menor consciência, é importante sublinhar, não é?
É qualquer coisa que subjaz...
OP
Era aí que eu ia agora chegar.
E porque é que isto acontece? É porque aquilo que os Gregos produziram
não é qualquer coisa que eles poderiam ter produzido ou não. Aquilo que
eles produziram foi a passagem do fundo oral da cultura humana para a
cultura escrita. E este primeiro momento de passagem vai ao encontro de
qualquer coisa que é primordial a todas as culturas e que nós, obviamente,
só conhecemos através da cultura escrita, porque não temos acesso às
culturas orais antigas, senão em casos excepcionais já escritos, obvia-
mente, ou então que se conservam na memória popular, mas essa é outra
questão.
Agora a segunda coisa que eu queria dizer é que é muito importante para
mim a pergunta o que é?
Aí estou em total desacordo, inclusive com a minha ex-colega de facul-
dade.
PMP
Sim, porque a Ana Maria Magalhães também é de Filosofia, temos aqui uma
dominância de Filosofia.
OP
Descobrimos hoje que fomos colegas de faculdade. Eu reconheci-lhe a voz,
não pelo nome, não pela figura, mas pela voz.
E a segunda questão é essa, que eu acho, de facto, que é muito importante
a pergunta o que é? Para mim é a pergunta mais importante que há.
Para que serve?, por exemplo, é uma pergunta muito menos interessante.
157
XVI Encontro de Literatura para Crianças

O que é que eu faço com isto? é uma pergunta muito menos interessante.
A mais importante de todas é saber o que é? É também a mais difícil, claro,
porque se tivermos algumas luzes sobre esta pergunta o que é? depois vem
por arrastamento, para que serve, para quê isto para quê aquilo. É a própria
pessoa, na liberdade do seu conhecimento sobre o que é, que depois es-
colhe aquilo que tem a dizer.
Agora, em que é que isto se prende com a questão do Clássico?
É que não gosto de definir o Clássico como aquilo que resiste à passagem
do tempo, porque acho que é uma definição negativa: ele é aquele que não
é erodido pelo tempo, é aquele que não é efémero e eu não gosto desta
forma negativa de dizer o que é o Clássico.
Há duas maneiras fundamentais para dizer o que é. Os medievais ensina-
ram-nos, por exemplo, que dizer o que é Deus é impossível. A única coisa
que podemos fazer é dizer o que ele não é. Quem somos nós para dizer
agora o que é Deus? E há toda uma teologia negativa que parte justamente
desta impossibilidade, da consciência desta impossibilidade de definir o
que é. Então tenta-se circunscrever o que é dizendo o que é que Ele não
é, porque em relação a Deus, sobretudo na Idade Média, esta questão foi
muito debatida, é muito importante e é lindíssima.
Gostaria mais de dizer que Clássico é aquele que reenvia ao universal, é
aquele que nunca acaba e aqui entram as célebres definições que Calvino
dá naquele texto famoso, Porquê ler os Clássicos? Todas elas estão certas.
Todas estas definições, pela positiva, reenviam a qualquer coisa que eu
diria que é uma décima quinta definição. Ele deu catorze, e eu quero ser
atrevida, e vou sintetizar estas catorze numa décima quinta que seria dizer
assim: Clássico é aquele que serve para compreendermos quem somos
e aonde chegámos, nós, como alguém que pertence a alguma coisa que
vem de muito longe e, de facto, nós pertencemos a isso. Portanto, uma
definição pela positiva e não pela negativa.
E a terceira questão que gostava de pôr é a seguinte e também tem a ver
com a positiva. É que um Clássico reenvia – e isto tem a ver com a questão
da literatura para crianças – sempre a uma nostalgia face ao primordial.
Nós quando estamos a ler um grande texto sentimos que há nele qualquer
coisa que nos aproxima do começo, do inaugural, em alguns casos, da in-
fância. Quando estamos a ler, por exemplo, um Clássico Grego, para falar
restrito, sentimos muito isso, estamos na infância, mas numa infância de
uma exuberância, uma infância rica, plena de potencialidades.
E o que um Clássico muitas vezes nós dá, quando nós lemos um texto
desses, é exactamente as potencialidades, a riqueza de estar perante uma
criança. Quanto mais velhos somos menos possibilidades temos, não é?
Quando somos jovens temos todas as possibilidades abertas e a leitura de
um Clássico promove uma experiência do primordial, uma experiência do
158
XVI Encontro de Literatura para Crianças
inicial, uma experiência do inaugural e, portanto, num certo sentido, uma
experiência da infância com toda a abertura de possibilidades que uma
qualquer criança tem. Ela ainda pode vir a ser tudo, nós já não podemos vir
a ser grande coisa.
PMP
Já volto a passar-lhe a palavra.
Uma aliciante exposição, como, aliás todas até agora e sobretudo porque
se completam e acrescentam.
Miguel Che Soares (nós combinámos antes do início deste encontro que
nos iríamos tratar por tu, por isso não estranhem), quais são os teus Clás-
sicos?
Talvez não seja irrelevante dizer, para quem acabou de chegar, que o Miguel
é um investigador na área da Imunologia e isso é interessante, porque, para
pôr a coisa pela negativa, pela exclusão, não é de Filosofia, quando três das
quatro pessoas que já falaram são.
Miguel Che Soares (MCS)
Só reiterar os agradecimentos em dois segundos, não vou perder mais tem-
po: os meus agradecimentos.
Quais são os meus Clássicos, pessoalmente?
Eu acho que o interesse não é tanto o pessoalmente; eu presumo que a per-
gunta é mais para um pobre cientista que passa a vida a olhar para genes
e células a mexerem.
Eu acho que as definições que acabam de ser expostas são quase univer-
sais.
Primeiro, acho que tenho os mesmos Clássicos que todas as outras pes-
soas.
No campo da ciência, penso que exactamente os mesmos critérios podem
ser aplicados, tirando o facto de não termos a definição mais académica e
estrutural de tempo e espaço: não são os gregos não são os romanos, mas
esta definição de universalidade.
Eu não estava muito de acordo com o que estava a dizer a Olga Pombo,
pois, um Clássico, na minha percepção, não tem uma fronteira cultural.
Um verdadeiro Clássico pode ser africano, chinês, europeu e, no fundo,
toca com qualquer coisa que nós é universal.
São pessoas que conseguem, através da escrita ou do cinema ou de outra
forma de expressão, transmitir-nos algo que nós nem sabemos porque o
sentimos como universal; se calhar é por isso que os Clássicos são gregos
e romanos: por terem sido os primeiros a ter a oportunidade de expor temas
universais.
No caso da ciência, nós temos coisas que são absolutamente clássicas;
por exemplo, os investigadores que descobriram a estrutura genética do
ADN, o que faz os nossos genes, o que nós temos todos em comum e, no
159
XVI Encontro de Literatura para Crianças

fundo, o que codifica o que somos.


Essa informação é transmitida, depois de feita uma investigação, em forma
de um artigo, que é uma página, e que ainda por cima é escrito de uma
maneira cada vez mais leiga.
Todos nós podemos ler e perceber qual é a mensagem e isso torna-se no
fundo um Clássico, porquê? Porque volta a tocar nos mesmos temas, é
absolutamente universal, e penso que será transmissível durante os próxi-
mos milhares de gerações. Tem uma coisa muito diferente da literatura: em
ciência, quando se chega a este ponto, como este artigo que define qual é
a base genética estrutural bioquímica, a mensagem é imutável, não pode
ser nunca mais modificada. Aquilo é assim e vai ser sempre assim. E isso,
talvez, por definição, seja um Clássico, porque, daqui a vinte séculos vamo-
-nos referir sempre a esta descoberta e dizer: «nós até nos referimos a uma
descoberta clássica» (em inglês é seminal finding).
As pessoas têm uma percepção dos cientistas como sendo nada emo-
cionais, completamente frios e dizem: «nós fizemos isto e descobrimos
aquilo», ponto final parágrafo. Neste caso específico, os quatro autores que
descobriram o ADN poderiam ter feito isso: a base bioquímica do código
genético é esta, ponto; mas não, eles acabam com uma frase que eu acho
que é muito emocional e que talvez possa acentuar ainda mais o facto de
terem feito deste artigo um Clássico. Dizem: não escapou à nossa atenção
as possíveis implicações das descobertas que acabámos de fazer, o que se
tornou noutro Clássico, numa maneira de dizer: isto é muito importante, vai
tornar-se um Clássico.
PMP
É uma bela frase, repete lá.
MCS
Não escapou à nossa atenção a importância e as implicações das descober-
tas que acabámos de fazer.
PMP
É uma hiper consciência. É engraçado.
MCS
Eu acho que é a consciência de entrar, não sei se se pode dizer num clas-
sicismo, mas numa categoria do imutável, que nunca mais mudará, que
será transmitido.
PMP
Que fundou alguma coisa. É uma frase que explica a consciência.
MCS
Eles estavam na melhor instituição do mundo.
PMP
Estavam de costas muito quentes.

160
XVI Encontro de Literatura para Crianças
MCS
Era mais isto: «nós perdemos imenso tempo, mas agora damos este pre-
sente à humanidade». É quase dar uma prenda à humanidade.
Agora não sei se todas as pessoas que fazem um Clássico têm a noção de
dar…
PMP
Eu acho que a novidade, nesse caso, é precisamente a consciência disso.
Eu diria quase o desplante.
MCS
Penso que Shakespeare tinha essa noção. Não sei há outros autores, não
só na literatura, mas noutras formas artísticas, que tenham a perfeita noção;
pelo menos têm a aspiração. Depois pode não passar o teste do tempo.
(Não sei se saí muito da pergunta e isso é um conflito que eu tenho)
A noção de Clássico é uma coisa que não muda, é um padrão que vai ficar
para sempre, mas talvez eu não tenha razão e isto seja um argumento sen-
timental.
Eu acho que os Clássicos, muitas vezes, vêm por ruptura. Uma pessoa que
consegue estabelecer um Clássico não vem propriamente no seguimento
de tudo o que foi feito. Muitas vezes vêm por ruptura; por exemplo, neste
caso da descoberta do ADN, ninguém a podia prever e aquilo era uma rup-
tura com tudo o que estava para trás.
PMP
É engraçado que isto, de alguma forma, seja o contrário do que foi dito. É
a inscrição numa cadeia, é uma espécie de passagem de testemunho, não
é?
Estamos a falar da ciência, precisamente, mas também se inscreve numa
história.
Eu queria aferir com o Miguel isto: estamos a falar de ciência, não é? Mas
haverá assim uma diferença tão grande? Porque, de facto, para se ter chega-
do a essa página da (qual era a revista?) The Nature, para se ter chegado a
essa página sobre o ADN e a essa frase há toda uma história para trás.
Portanto, a pergunta que eu faço é (agora sim, vou usar uma expressão
completamente sentimental): que carinho é que os cientistas, os investiga-
dores têm pela história que os precede e que precede os seus trabalhos?
Interessam-se? Cultivam a consciência do lugar que ocupam numa cadeia
ou estão absolutamente tomados pela experiência imediata? É porque isto
remete para a ideia da consciência, da pertença a uma comunidade e eu
tinha curiosidade de espreitar para dentro de um laboratório, dos vossos
laboratórios e saber como é que vocês se colocam.
MCS
A resposta é sim.
Nós não nos podemos posicionar como um satélite que acabou de apa-
161
XVI Encontro de Literatura para Crianças

recer e que não entra no contexto do que foi feito. E temos uma maneira
muito formal de fazer isso. Transmitimos o que fazemos e o que descobri-
mos, eventualmente em debate e, às vezes, na televisão, mas o veículo é a
publicação científica, como por exemplo, essa publicação na Nature.
É feito de uma maneira muito formal que é: quando se insere uma nova
descoberta no conhecimento da humanidade - sendo que a descoberta é
pôr mais um tijolo no muro do conhecimento - tem que se definir qual é o
muro. Não se pode dizer: «eu vou pôr um tijolo mais ou menos aqui». Tem
de se dizer onde é que se está a pôr o tijolo e isso faz-se de uma forma
muito formal de referenciação. Por isso, por cada fase que nós fazemos,
temos de dizer quem é que a descobriu.
Agora, eu não acho que haja qualquer necessidade – e parece-me uma ati-
tude juvenil, apesar de tudo, salutar – de romper com os Clássicos. Mas, no
entanto, em ciência há a ideia de challenge, de dizer: «este é o muro, será
que este muro está bem feito?»
Se se provam coisas que consolidam o muro, muito bem, mas se se desco-
brem coisas que fazem com que o muro tome uma outra forma, e se as coi-
sas são muito importantes, essas coisas tornam-se Clássicos. Mas nunca
se perde a percepção de base desse muro. Não sei como é na literatura.
PMP
Acho que foste claríssimo.
OP
Morais Soares escreveu um livro que se chamava A Filosofia Do Não, refe-
rindo-se justamente aos cientistas. Os cientistas são aqueles que dizem
não. São aqueles que dizem: «não, não é assim, até aqui foi assim, mas
agora passa a ser de outra maneira». Portanto, é um conhecimento que
cresce.
PMP
E, portanto, sob esse ponto de vista há uma diferença fundamental relativa-
mente às humanidades.
Não vamos agora gastar aqui o nosso tempo todo, porque nos atrasámos
um bocadinho a começar, mas é tão interessante que é imperdível desen-
volver isto. O José Pedro também quer intervir.
MCS
Referimos a Capela Sistina e não é literatura. A minha pergunta é: a Capela
Sistina quase de certeza que surge como uma ruptura em relação ao que
se fazia antes e que se tornou depois num Clássico. Se calhar não é tão
diferente da ciência.
Havia uma base, uma maneira, uma percepção de transmitir pela forma da
pintura emoções e conhecimento e, de repente, aparece uma pessoa, que
tem uma forma, na altura, completamente nova, que entra em ruptura com

162
XVI Encontro de Literatura para Crianças
o que se faz. Mas, por ser uma mensagem tão universal, por ser tão resis-
tente ao tempo torna-se, ela própria, um Clássico.
PMP
José Pedro Serra, eu sei que queria intervir.
JPS
Queria por isto, sobretudo queria dirigir-me à Olga, estou e não estou de
acordo.
O que não é um bom começo para quem quer ser coerente.
Em primeiro lugar, queria salvaguardar o seguinte, quando eu disse que os
Clássicos, em sentido restrito, eram um objecto de imitação ou modelo, fa-
lava como um facto histórico, isto é, porque o foram numa época em que os
Clássicos Greco-Latinos eram fonte de inspiração e, sobretudo, de imita-
ção. É um facto histórico; não quer dizer que eu tome esse modelo ou esse
aspecto modelar, essa tentativa de imitação, que, de resto, é uma imitação
criativa, não é apenas a cópia. Justamente, o que me parece é que o andar
do tempo mostrou que a criatividade humana era maior do que essa estrita
imitação e, por isso, estou de acordo: é necessário fazer uma transferência
do tempo Clássico para algo que sucedeu a essa época histórica em que
se imitavam os autores greco-latinos.
No que não estou inteiramente de acordo consigo, que deu uma imagem
muito negativa a essa resistência ao tempo, é porque me parece que o que
está em causa é sempre, sempre, um reavivar de algo primordial, o que quer
que seja – podemos depois discutir – que se está reavivando, a que é que
se está regressando e quem é que o fez? São duas perguntas distintas.
PMP
Eu agradeço que se esclareçam para avançarmos.
Percebo que queira, como a Olga o interpelou, responder. Mas, é um ponto
de partida este tópico. Não é o nosso móbil.
JPS
Mas eu acho que se está a perder uma dimensão importante. É que jus-
tamente esse regresso a uma fonte primordial importa, não apenas como
regresso a um mesmo ponto, mas como histórias do regresso e isso reco-
loca-nos numa demanda que é histórica e que é ela própria semeada de
Clássicos. Por isso é que eu penso que a questão do tempo se transforma
na questão da história, e é importante.
PMP
Eu tinha esperança, independentemente de querer responder à Olga, que
quisesse fazer um comentário ao Miguel e à Olga quando ela sugeria que
o universo da ciência, não tem nada a ver com este universo das Humani-
dades, concretamente.
Não disse isso? Então como é que era?. Mas, disse: «mas é a ciência, é

163
XVI Encontro de Literatura para Crianças

outra coisa, é a ruptura».


OP
Na formação de um cientista, veja lá se está de acordo comigo, eu penso
que os Clássicos não pesam muito.
Como diz o Thomas Kuhn, «os Clássicos estão lá nas bibliotecas onde ra-
ramente os cientistas vão», porque fazem aquilo que você disse, lêem as
grandes revistas onde estão os últimos texto publicados, porque é sobre
esses últimos, contra esses últimos ou na dialéctica com esses últimos que
as suas próprias investigações se processam.
PMP
O Miguel está a dizer que não, mas a Marta também quer intervir.
OP
Isto até nem é meu, é de Thomas Kuhn. Por isso, é que ele diz que haveria
um interesse muito grande em regressar aos Clássicos.
Também sei que os grandes cientistas fazem esse trabalho, vão ler New-
ton, embora já estejam muito longe do Newton, vão ler na mesma o Arqui-
medes, vão ler na mesma Euclides, compreende? mas como uma espécie
de complemento compreensivo do que é a ciência e não como uma ferra-
menta para poder desenvolver o seu trabalho. Ninguém vai hoje ler Newton
para poder desenvolver o seu trabalho. Vai ler a Nature, com certeza.
Era isto que eu queria dizer.
PMP
Miguel, concordas?
MCS
Não, mas acho que vamos sair do tema.
PMP
Marta, para terminar esta fase.
MM
Eu queria dizer o seguinte: é engraçado, nós, de certo modo, estamos a
universalizar as referências culturais, estamos a centrar as matrizes na Cul-
tura Greco-Latina, mais uma vez estamos a esquecer que estamos a fazer
uma leitura muito etno-centrada da cultura. Nós somos europeus…
PMP
O Ondjaki saiu por cinco minutos. O Ondjaki ia dar-nos exactamente o outro
lado.
MM
Onde é que está essa universalidade?
PMP
Está aqui! Muito bem representada, pois até tivemos o cuidado de incluir
variadas disciplinas e também vários contextos geográficos.
MM
Mas Paula, eu queria acrescentar outra coisa. É sobre a matéria-prima dos
164
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Clássicos. Nós estamos aqui num encontro de literatura e estamos a chamar
obviamente outras áreas ao debate, mas agora temos de pensar que os
tecidos de que se fazem os Clássicos são completamente diferentes.
É relativamente fácil universalizar o David de Miguel Ângelo, porque é uma
escultura, mas, de qualquer modo, a universalização passa por imagem,
por fotografia e não na visão da própria estátua.
Agora, no tecido da palavra o que é que vai acontecer? Nós universalizamos
o quê? O tema? As personagens? As traduções que temos das obras?
Repare, como é que é divulgada a obra de Andersen. Os textos estão em
dinamarquês, nenhum de nós, provavelmente, aqui na sala consegue ler
dinamarquês e, por isso, todos nós recebemos os textos em segunda
mão.
O que é para nós comum em termos culturais, são os temas, as persona-
gens, e acreditamos, que lemos uma boa tradução. Agora, é sobre o mate-
rial que constitui o texto, isso sim, que se exerce a arte.
O que é que dizia, há bocado, a Ana Maria Magalhães, o que é uma obra
de arte? Uma tradução é uma obra de arte, se o tradutor fizer arte com ela.
Todos os tradutores fazem por isso.
Como é que eu dou por isso se não conheço o original? Pelo bom portu-
guês? mas pode ser um mau dinamarquês. Nós estamos a receber uma
quantidade de coisas em segunda e terceira mão.
PMP
Esse era um dos temas obrigatórios: qual é a importância.
Mas antes disso, a Ana Maria já está a ficar enervada, porque acha este
chão uma grande maçada, muito teórico e muito académico.
O Ondjaki ainda não falou e é fundamental que o faça até para nos ilibarmos
desta suspeição de que estamos a ser completamente etnocêntricos.
Eu vou recordar, para quem não estava cá no início deste debate, que o
Ondjaki com uma notável, sobretudo atendendo à sua idade, produção
literária – conto, poesia, romance – estudou teatro e cinema, pinta, e fez já
exposições individuais.
Estás aqui, evidentemente, na qualidade de criador, mas também porque
pode dar um contributo importante em relação ao que a Marta Martins
dizia.
Tu nasceste e viveste em Luanda até aos dezassete anos. Todos nesta sala
temos presente que Angola esteve em guerra desde os anos sessenta,
portanto foram muitos anos e sobretudo a pós independência deu origem
a uma enorme migração dentro do próprio território angolano, com uma
enorme convergência para Luanda. Este dado é importante para sublinhar
que tu frequentaste escolas públicas, segundo sei, e portanto, sendo tu um
urbano, cosmopolita, que estudou em Lisboa, que viveu em Nova Iorque,

165
XVI Encontro de Literatura para Crianças

estiveste até aos dezassete anos em Luanda e tiveste, muito seguramente,


muitos colegas que vinham de muitas partes de Angola e a pergunta, como
é evidente, é: o que é para um menino do Huambo, (que é aquela boutade
habitual quando se fala destas coisas) ou para outro jovem ou outra pessoa
qualquer de outra parte de Angola, (que são muitas nações dentro daquela
nação), um Clássico em função do que tu observaste?
Ondjaki
Nós, os que somos de outras latitudes, normalmente a nossa presença é
requisitada, mais por causa disso do que por causa…
PMP
Não, eu disse que estavas aqui como criador.
Ondjaki
Eu estou aqui como criador africano, mas não há problema nenhum.
PMP
Eu não disse africano.
Eu disse como criador, mas, já agora, fala-nos sob esse ponto de vista.
Ondjaki
Só ia dizer que é curioso, a requisição normalmente é essa e está bem que
seja, de vez em quando. Para mim também seria bom participar simples-
mente porque escrevo ou porque sonho. Isto para começar a explicar que
eu vou aqui fazer uma brevíssima reflexão que é, de facto, uma reflexão
cultural e contextualizada. Sendo que eu não gosto muito, porque não sou
estudioso da matéria, de falar de questões que acabam por generalizar,
não posso falar daquilo que é o Clássico dos angolanos ou aquilo que os
angolanos consideram Clássico, mas posso, eventualmente, passar a visão
daquilo que eu apreendi.
Eu fiz aqui um esquema breve, porque, de facto, nos últimos tempos e
principalmente para as pessoas da minha geração, não é possível falar de
Angola, das coisas de Angola e de coisas relacionadas com o nosso pro-
cesso de maturação e crescimento, que não passem pela guerra. Essa é
uma das coisas que me interessa e que eu vou observando, quer se fale
de bicicletas, de literatura, de história, de qualquer tipo de criatividade, de
criação; nas crianças, nos jovens há sempre o factor guerra presente. Agora
é um factor guerra imanente, começa a ser ausente, mais como memória
do que como prática.
Isto divide basicamente a coisa em dois contextos: o rural e o urbano. Eu
cresci num contexto urbano, tive contactos com pessoas que vieram de
contextos rurais. Começo pela guerra, porque a guerra criou uma série de
limitações, isto é, os sítios de apreensão daquilo que seriam os Clássicos,
mesmo do ponto de vista literário, que se dividem, por exemplo, entre a
casa, a escola e depois os processos individuais de cada um, em Angola,
começa só na Escola.
166
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A falta de condições – estou a falar da maioria das pessoas, eventualmente,
há excepções – que havia naquele contexto fazia com que o primeiro con-
tacto literário das pessoas fosse feito na escola, com uma prévia escolha
pedagógica; ou seja, os alunos tomam contacto com os livros que o siste-
ma sugere.
Daí que é curioso que apareçam como Clássicos, aquilo que eu julgo que
os jovens da minha idade chamariam os Clássicos e que terá influenciado o
seu imaginário, os livros do Luandino e as aventuras de Ngunga do Pepe-
tela.
Mas uma coisa muito curiosa e muito bonita, que eu vou tentando encontrar
e vou partilhando, é que há um texto muito bonito do escritor moçambicano
Luís Bernardo Honwana, que é Nós matámos o cão tinhoso, e até hoje eu
estudo e detecto isso, que, na sexta e oitava classe, os rapazes tinham
receio que lhes fosse pedida a leitura deste texto na turma, porque se emo-
cionavam, e tinham vergonha de chorar nas aulas.
Eu escrevi uma crónica sobre isso e entreguei-me: fiz tudo por tudo e até
expliquei que pensamentos é que eu usava na altura, à medida que estava
a ler o Cão Tinhoso e o Dino a apontar a arma e a Isaura a chorar. Recebi
um monte de emails de gente, mais ou menos da minha geração, a dizer:
«é verdade, aquele texto do Cão Tinhoso»; parecia que era um referente
geracional. Muitos não sabiam quem era o autor do texto, eu indiquei, mas
lembravam-se da Isaura e do cão tinhoso.
Isto só para dizer, que, obviamente, os Clássicos variam de contexto para
contexto.
A guerra dificulta a comunicação. A imagem, a fotografia são coisas que,
agora com a Internet, começam a entrar mais em linha de conta.
Depois fazia aqui uma breve referência ao veículo dos Clássicos Orais. E eu
ponho aqui a pergunta: existirão Clássicos Orais? Obviamente que sim!
A fixação e a circulação desses Clássicos é mais complicada.
Em África existem os textos que se vão repetindo, que vão ficando ao longo
da memória e que vão sendo alterados e daí vamos para aquela categoria:
quem é que elege o quê?
Eu penso que é uma necessidade, a pertinência dos textos vai resistindo
aos séculos e aí é a própria urgência ou a maneira de contar que define
porque é que aquele Clássico, que eu estou aqui a chamar de Clássico Oral,
se vai manter. É uma espécie de eleição.
Depois, por causa da guerra, eu diria que há o impedimento de migrações
físicas e imaginárias. A guerra, por um lado, criou êxodos, depois impediu
certo tipo de movimentações, mas também as imaginárias. Já não gosto
muito de falar da guerra, mas aqui é pertinente. E a guerra ocupa um es-
paço no imaginário das pessoas.

167
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Uma amiga minha comentou comigo que um primo seu tinha uma pistola
em casa, e que o filho ia chegar à escola e dizer aos outros colegas: «ai! o
meu pai tem uma pistola em casa». Isso não é problemático?
Eu respondi: «não, porque todos os outros pais também têm uma pistola
em casa e todas as crianças já mexeram e já viram pistolas.»
A guerra está inculcada no nosso imaginário, mesmo quem não esteve lá,
sofreu os efeitos colaterais da guerra. Mas é curioso, como ocupa espaço
e cria um imaginário próprio.
As crianças contavam histórias de guerra, agrediam-se verbalmente com
histórias da guerra, «o meu tio é melhor que o teu, isto e aquilo».
Por outro lado, queria ler-vos só um pedacinho deste livro do Manuel Rui
Monteiro, Rio Seco, porque conta uma coisa curiosa, que é o encontro de
uma senhora mais velha, que veio do sul, da guerra, chega a Luanda, e re-
fugia-se numa ilha, que é a Ilha de Mossulo e está ali a tomar os primeiros
contactos com aquela realidade. Ela é do interior, não tem aquela coisa
do mar, da água salgada e há um miúdo, dos seus onze, doze anos, que
está a falar com ela e pede-lhe para contar uma história. Ela preferiu contar
na forma como bem sabia o bombardeamento aéreo, as casas cobertas
de capim a incendiar-se num fósforo repentino, os meninos que ficavam
sem os pais e as pessoas a fugirem atoamente, sem escolherem caminho
e a deambularem pelo mato fora sempre em desespero pelo imprevisto.
A fome, a sede e a solidariedade anónima. Por sorte, em cada sanzala se
encontrava um pouco de aconchego, um fogo para aquecer, mesmo pobre,
todavia cheio de amor. Mas eu não gosto de falar da guerra, disse a se-
nhora. E o miúdo – “então fale outra vez do jacaré.” Contei já no outro dia,
diz a senhora – “mas fala mais.”
Então lá está: ou a guerra ou o jacaré. Ou falo do presente, do real, do duro
ou vou remeter para a oralidade, para o belo, o bonito, que também contém
ensinamentos.
Portanto, eu só quis dar uma perspectiva de relatividade desta questão do
que é o Clássico.
PMP
Fez muito bem. Mas sublinho que isso é mais um dado do que tens para
partilhar connosco; não é a razão fundamental pela qual te convidámos.
Italo Calvino, no seu Porquê ler os Clássicos, a que Olga Pombo já aludiu
aqui, coloca, sem ironia, uma pergunta que seguramente está na cabeça de
muitas pessoas que estão aqui connosco.
Porquê ler os Clássicos? sobretudo depois de tudo o que já aqui foi dito.
De alguma forma, os Clássicos e os Clássicos Modernos, inscrevem-se
numa cadeia e, portanto, são subsidiários (pode-se dizer assim) de uma
espécie de filiação matricial, mesmo que quem os escreve não tenha disso

168
XVI Encontro de Literatura para Crianças
consciência de alguma forma, tudo isto faz parte do mesmo caldo e, por-
tanto, os Clássicos Modernos participam disto.
Porquê ler os Clássicos? em vez de nos concentrarmos em leituras que
nos façam compreender agora, aqui, o nosso tempo. Evidentemente que
ele está a referir-se aos textos mais complexos, mais difíceis, de mais difícil
acesso.
Esta é uma pergunta que Calvino coloca, sobretudo no pressuposto de que
todos os textos participam da tal matriz, pelo menos os melhores.
Ana Maria, porquê?
AMM
Eu aproveitava para dar uma pedrada no charco.
Na verdade, a esmagadora maioria da população não lê os Clássicos. Nós
estamos aqui, entre nós, partilhando o nível máximo de literacia, o patamar
sublime, superior da leitura, todos os que estamos aqui chegámos ao en-
sino superior, estão aqui professores da faculdade, um cientista, um escri-
tor que já escreveu, não foram seis, foram oito livros.
PMP
Mas então tens que acrescentar ao teu currículo, só lá estavam seis, contei-
-os.
AMM
Só tem vinte sete anos. Portanto as pessoas podem sair daqui arrebatadas
com esta sensação: «que maravilha, vou levar aos meus alunos os Clássi-
cos», quando, na realidade, a esmagadora maioria da população não os lê,
não chega lá. E, agora, no fim do século XX, princípio do século XXI, surgiu
um problema grave: já não chega lá só quem não teve acesso à instrução.
Posso referir-vos uma experiência imediata. Foi ontem à noite, estive a jan-
tar em casa de uns amigos, tinham muita gente convidada e vários jovens.
O filho do dono da casa é um jovem professor do ensino secundário, da
área de Artes, e estava a preparar uma aula com vídeo e, em conversa,
disse-me: «eu tenho que preparar tudo em vídeo, porque com os alunos
de Arte do secundário é escusado pensar: eles não lêem». Fiquei muito
admirada: «então eles não lêem nada? Então depois como é que se mani-
festam os conhecimentos por escrito?» «Muito mal, e se eu quero ter algum
sucesso uso o vídeo».
Depois, em conversa, estava também outra sobrinha dos donos da casa
que é estudante de arquitectura, daquelas conversas cruzadas, ao jantar,
eu disse, anteontem estava em casa sozinha, estava chateada e comecei a
fazer um zapping e vi uma coisa extraordinária, a Júlia Pinheiro a falar com
um burro e pensei, mas como é que alguém quer ver isto?
PMP
Nem faz ideia quanta gente.
AMM
169
XVI Encontro de Literatura para Crianças

A resposta dela foi extraordinária, tendo em conta que é uma estudante do


terceiro ano de arquitectura, de uma família que pertence à classe média
alta, que tem livros em casa, que já os avós eram formados. Se fosse uma
aluna minha, ou noutras circunstâncias eu aprofundaria, porque tento sem-
pre ir ao fundo das coisas procurando a verdade, que é muito difícil.
Como professora, eles pensam sempre que se dizem o que pensam, se
calhar, têm pior nota, portanto, é melhor dizer o que o professor quer ou-
vir. Mas eu tenho por hábito, conduzi-los a dizer a verdade, porque não os
penalizo por isso e sempre fiz isto na vida. Não nasci com a capacidade de
me iludir.
Estou aqui a criar suspense sobre o que ela me disse do programa em que
a Júlia Pinheiro fala com um burro, na Quinta das Celebridades. Disse-me
assim: «sabe, ver esses programas é difícil, é preciso aprender a vê-los, não
é uma coisa fácil, mas depois quando a pessoa aprende é muito interes-
sante». Fiquei estupefacta e como vos digo gostaria de ter aprofundado o
que ela me queria dizer com aquilo, porque ela não estava a brincar!
Portanto, é óptimo estarmos aqui a falar de tudo isto e às vezes esquecer-
mo-nos do mundo que está lá fora.
Eu ponho sempre o problema: o que é que eu posso fazer, com estes alu-
nos, para semear o desejo de ler para que eles, por sua alta recreação, seja
qual for o seu percurso, cheguem a poder um dia apreciar uma obra de arte.
Por exemplo, quem olha para os Jerónimos e não sabe nada de História,
nunca ouviu falar nada da História da Arte, vê um edifício grande, branco
e vai achar bonito, mas não vai muito além disso; quanto mais História da
Arte souber, melhor vai apreciar tudo aquilo. Portanto, o que é que eu posso
fazer com os meus alunos para que ainda que se tornem, por exemplo, fun-
cionários de uma bomba de gasolina, tenham adquirido hábitos de leitura
que lhes abram horizontes? O caminho não é um, o caminho é múltiplo,
não há um percurso único. Se quisermos um percurso único, conseguimos
cativar uma pequena faixa e os outros ficam todos de fora.
E nisto volto à história da verdade.
Tenho uma experiência que gosto de contar do que é procurar a verdade.
Eu fui um dia ao Faial, estava na Cidade da Horta, e, por uma série de
coincidências engraçadíssimas, o único leitor que tínhamos nessa altura,
(agora temos muitos) na Cidade da Horta, era filho duma funcionária da TAP.
Quando eu fui tratar do bilhete, ela chamou o filho para me ver. Fui dar um
passeio com o miúdo para ele falar da sua terra. Quando íamos na marginal
que tem aquelas casas antigas muito bonitas, o miúdo começa-me a dizer:
“estas casas maravilhosas, antigas têm de ser preservadas, não se pode
tocar em nada disto, não se pode nunca alterar…”
Eu comecei a achar aquilo tão estranho, fui criando à-vontade, fomos con-
versando e depois disse: “olha lá, Pedro, se tu mandasses realmente, se
170
XVI Encontro de Literatura para Crianças
tivesses o poder, o que é que fazias?” E o miúdo disse-me também uma
coisa extraordinária: “Mas quer mesmo saber a minha opinião? O que é que
eu penso?” E eu disse: “sim, gostava mesmo de saber o que é que tu pen-
sas”. “Deitava isto tudo abaixo! Construía prédios altos e ali naquela ponta
fazia um hotel de quinze andares chamado Baía Palace”.
Portanto, nós muitas vezes conseguimos um discurso muito politicamente
correcto, as crianças dizem a tudo que sim e não conseguimos atingir a
alma deles.
Os professores ou os pais, ou quem quer que seja, julgam que os con-
venceram e eles até já têm nome para o hotel de quinze andares que hão-
-de mandar fazer ali, um dia se puderem.
PMP
O Zé Pedro diz que não. Também fazia o Baía Palace. A maioria fazia o Baía
Palace, também me parece.
AMM
É muito frequente, e a fase em que nós os apanhamos, embora para nós
seja o primeiro ano, para eles é o quinto que estão numa escola. E aquilo que
eles dizem que fizeram é muito engraçado. Por exemplo, dizem o seguinte
em relação ao que leram no ano anterior, na quarta classe: “Lemos isto.”
“E gostaram?” “Muito, muito”. “Então agora vamos à biblioteca!” “Ooooh,
não!” E gostaram, não é?
Então aqui, podemos optar: ou falamos só de coisas magníficas e elevadas
e depois vamos com a alma refrescada lá para fora, ou lembramo-nos tam-
bém que cá fora não é bem assim.
PMP
Então, na prática, o que é que se faz? Eu sei que varia de contexto para
contexto e que não há um só caminho. Aliás, acabou de o dizer.
Mas, antes de passar a palavra à Marta, que eu gostava de ouvir sobre isto,
porque isto diz-lhe directamente respeito, só queria saber, Ana Maria Ma-
galhães, perante o desejo profundo de construir o Baía Palace, de quinze
andares, o que é que lhes dá a ler, apesar disso, com esse dado?
AMM
O que eu tento fazer é usar a metáfora da escadaria. Entendo que o acesso
aos patamares da leitura é uma grande escadaria, e tento perceber em que
patamar ou em que degrau estão os meus alunos. Por isso, nunca na vida
preparei um ano lectivo, nunca fiz projectos antes de os ver e de falar com
eles; isso significa que não tenho nunca um projecto e se o grupo de portu-
guês decidiu um projecto, eu digo a tudo que sim, mas não pratico. Se por
acaso aquilo que combinámos em grupo é adequado para os meus alunos,
com certeza; senão limito-me a dizer à Delegada que para os meus alunos
não se adapta, e portanto, o que eu tento é saber em que degrau eles estão,
do que é que eles gostam e vou começar por aí, seja o que for que eu sinta
171
XVI Encontro de Literatura para Crianças

que os pode fazer aderir.


Isto para quê? Para que, a partir de certa altura, sigam sozinhos. Um pro-
fessor pode fazer muito, mas não pode fazer tudo; quantos livros pode ler
com os seus alunos num ano? Tem é que lhes criar o gosto, o desejo, a
ansiedade, o vício pela leitura.
Se eu der aos meus alunos um livro que eles achem uma maçada, pro-
vavelmente não o lêem, fingem que o lêem. Copiam fichas de trabalho dos
colegas.
Aliás, eu pertenço a uma família de quinze irmãos e tive um irmão que odia-
va ler e então, em pequenos, ensaiámos tudo o que é possível para enganar
os professores.
Eu lia os livros e combinava com ele o que é que ele dizia para fazer um
vistão nas aulas e fomos sempre bem sucedidos. Ele nunca foi apanhado!
Portanto, eu digo sempre aos meus alunos que não me conseguem enga-
nar, porque eu fiz tudo o que é possível para enganar um professor!
Se eu der um livro maçador eles levam para casa, começam, acham uma
chatice, fecham o livro e vão ver a Júlia Pinheiro a falar com um burro.
Se lhes der um livro que, de facto, os arrebate, se calhar, eles reagem ao
contrário e acham estúpido um programa com uma mulher a falar com um
burro! E então eles é que vão encontrar o seu caminho. Como eu encontrei
o meu. Mas eu sou, para já, privilegiada. Nasci a gostar de ler. Fui para a
escola em Outubro, analfabeta e, no Natal, já só pedi livros. Aos dez anos,
por exemplo, em férias, na quinta, eu podia ler Os Cinco e depois ia à bi-
blioteca do meu avô e lia O Jogador do Dostoievski; portanto fui misturando
tudo num entusiasmo, numa alegria, numa felicidade, numa descoberta.
Depois podia falar sobre Os Cinco com os meus irmãos mais novos, mas
sobre o Dostoievski, tinha que esperar que o meu avô estivesse disponível
para falar comigo.
Portanto, sou privilegiada, como todos os que estão aqui, porque todos
provavelmente nasceram a gostar de livros, mas os outros temos de os
puxar para que eles partilhem deste gosto e se lhes impusermos um cami-
nho que foi o nosso, se eu puser alunos de dez anos a ler Dostoievski afas-
to-os definitivamente da leitura, porque acham aquilo uma seca e vão con-
cluir o quê? “Isto da leitura não é para mim”. E está o assunto arrumado.
PMP
O assunto não está arrumado. Vamos tomar um café, e quem vai assumir
a palavra imediatamente a seguir ao intervalo é a Marta. Eu já ouvi a Olga a
dizer que não.
Portanto, isto promete para a segunda parte, pois vamos também abrir o
debate à sala e falaremos sobre as adaptações e construções de elencos
e das experiências de criação de bibliotecas singulares. Até daqui a dez
minutos.
172
XVI Encontro de Literatura para Crianças
PMP
Vou sintetizar a intervenção da Ana Maria Magalhães, ou seja, no fundo,
a nossa realidade (a Ana Maria Magalhães não usou esta expressão, mas
corrija-me se não se revir nela), a revolução de costumes, de mentalidades
e tecnológica, que é uma coisa de que ainda não se falou, os consumos de
audiovisuais que os miúdos têm, a Internet, as alternativas, tudo isso colide,
bem como outros problemas de natureza social, de contexto, etc, tudo isso
colide, dificulta a passagem, que é uma expressão que me agrada particu-
larmente, a passagem do gosto pela leitura aos outros e concretamente aos
mais novos. Esta passagem de testemunho, passagem na qual podiam e
deviam ser veiculados os Clássicos.
Marta Martins, depois da intervenção da Ana Maria Magalhães, impõe-se
ouvi-la. Vou pedir a todos que sejam muito objectivos no que querem dizer,
com toda a sinceridade, que sabemos que terão, mas muito objectivos,
porque queremos também interpelações da sala.
MM
No que diz respeito à própria relação que as crianças estabelecem com os
Clássicos eu lembrava exemplos extremamente simples.
Quando as crianças brincam com peças de lego, por exemplo, admiram
as construções e têm interesse em fazê-las, porque manipulam peças de
diferentes tamanhos, diferentes cores e fazem selecções, etc.
Uma pessoa que ama roupas, por exemplo, provavelmente gosta de tex-
turas, tem uma sensibilidade cromática apurada, uma sensibilidade ao de-
sign.
Ora, nós falamos de uma matéria chamada literatura que é muito específica
e que trabalha com uma matéria prima chamada linguagem e nós, muitas
vezes, esquecemos que só se pode amar literatura se se amarem as pala-
vras e é normativo dizer isto.
Nós temos de começar com as crianças, desde muito pequenas, ensiná-las
que as palavras funcionam como pecinhas de lego. O gozo de as montar
e desmontar, o gozo de as variar, porque em literatura, mais importante do
que aquilo que se quer dizer, é a forma como se diz, é essa particularidade
que faz dum texto um texto artístico.
Se nós tivermos uma cultura onde tanto faz dizer de uma maneira como
dizer de outra, como é que depois queremos que haja um amor pelo dizer
diferente, haja a fruição estética de encontrar?
PMP
A Marta é especialista em Sophia, (pelo menos o seu livro é sobre Sophia de
Mello Breyner), forma professores e, portanto, não está em contacto com
os tais miúdos do segundo ciclo.
MM
Estou em contacto por interposta pessoa, pelas estagiárias, vou às salas
173
XVI Encontro de Literatura para Crianças

onde elas estão. Os meninos são reais no meu quotidiano.


PMP
Mas é uma coisa mediada.
Vamos falar de uma família de classe média-baixa, onde os pais não têm
quaisquer hábitos de leitura e que vêem pessoas a falar com burros na
televisão sendo este o seu prato dilecto, que, de facto, destruiriam todas
as casas antigas, que consideram velhas e substituiriam por arranha-céus
espelhados.
Como é possível fazer uma criança neste ambiente, que não tem qualquer
espécie de intimidade inicial com esse gosto pelas palavras, apaixonar-se
pelas palavras de Sophia de Mello Breyner, por exemplo?
MM
Retomo o que estava a dizer e vou fazer uma ligação com isso. O menino
pode vir de um meio muito desfavorecido da cultura escrita, mas se vive
numa família onde se gosta de conversar, onde se gosta de contar coisas,
em que as pessoas escolhem as palavras, escolhem os silêncios, há toda
uma paixão pela palavra e pelo dizer que faz com que as crianças depois
amem também o texto escrito. O que é preciso é que esses meninos te-
nham hipótese de ter quem os oiça, de serem elogiados na forma como
estão a dizer as coisas.
PMP
E se disseram mal?
MM
Se não forem corrigidos, pela prática de ouvirem coisas bem ditas, porque
não é uma questão de ter um professor sempre à perna a corrigir. Os me-
ninos imersos em determinadas comunidades sofrem as correcções da
própria comunidade, isso é óbvio.
Podem não dizer bem sob o ponto de vista do português padrão. Mas, po-
dem ter paixão na forma de dizer!
Conhecemos no nosso quotidiano pessoas que nos contam histórias es-
pantosas; se entrarmos naquelas mercearias de bairro, há sempre duas
ou três figuras que permanecem lá mais tempo a fazer compras, porque
são pessoas que contam histórias espantosas e que têm à volta delas um
público. Ora, essas pessoas, em casa, conversam, contam e também es-
timulam o amor a conversar e a dizer.
Portanto, é mais fácil pegar nessa apetência e desenvolvê-la do que pegar
num menino, inclusive de um estrato médio-alto, que não tem qualquer
prazer em conversar. Nós apanhamos na escola meninos que têm uma rela-
ção completamente solitária, ou com a televisão, ou com o computador e
que não lhes apetece rigorosamente nada partilhar conversas.
É isto que os fará amar os produtos que vêem nesse tecido constituído por
palavras.
174
XVI Encontro de Literatura para Crianças
PMP
E depois conduzi-los à excelência, a partir disso.
MM
Depende do conceito de excelência.
Cada comunidade estabelece os seus Clássicos conforme os poderes
dominantes. Quando nós consideramos excelência, estamos a considerar
também os níveis de excelência que o poder permite. É evidente que, para
mim, seria excelente se dominassem os Clássicos que eu domino, se não
valorizassem os Clássicos que eu desconheço.
Os professores nas aulas valorizam os seus saberes e passam esses sa-
beres aos meninos. Em determinadas comunidades é imperdoável não
conhecer determinadas referências, mas completamente perdoável não
conhecer outras.
PMP
Ana Maria Magalhães, faça o favor. O Miguel e a Olga também pediram a
palavra. Breves, todos.
AMM
Eu serei muito breve.
Comecei a minha vida profissional em África, num bairro periférico de Lou-
renço Marques, depois trabalhei no meio rural, em seguida na cidade de
Lisboa, depois na cintura industrial e finalmente voltei à cidade.
Na verdade, eu não acho que a relação das crianças com os livros tenha
nada a ver com o meio social a que pertencem. A relação de uma criança
com uma história é como uma relação de amor, inexplicável.
Por exemplo, uma das melhores alunas que tive na vida era filha de um
vaqueiro analfabeto, era uma criança super inteligente, só lia livros do me-
lhor que há, vivia nos Forros de Salvaterra de Magos e nas horas vagas
ajudava o pai com as vacas.
Por isso, o que eu tenho é de pôr o máximo possível de livros à disposição
para ver qual é que faz soar campainhas.
PMP
Que livros? Não no sentido de eu esperar que algum dos senhores apre-
sente aqui uma lista. Não é isso que se espera. Mas que critérios utilizar?
MCS
Se eu estou a perceber bem, do que se trata é de saber como é que se pode
levar uma criança a apreciar os Clássicos. Eu acho que a mensagem que
estava a ser dada antes do intervalo é a que eu acredito seja a verdadeira.
Eu tenho que lhes tocar na alma. Não interessa como é que se chega lá,
mas tem de se lhes tocar na alma. It takes one to see one. Só uma pessoa
que foi tocada é que pode tocar noutras pessoas.

175
XVI Encontro de Literatura para Crianças

PMP
Isso é um dado muito importante: só quem foi tocado é que pode tocar.
A questão é: quantos professores de português gostam realmente de ler e
têm uma paixão verdadeira pela leitura? Essa é a questão principal.
MCS
Eu gostaria de dar um exemplo de como é que eu fui tocado. Cada um tem
o seu veículo, e o meu chama-se António Alfredo, uma pessoa absoluta-
mente fantástica. Só para dar um exemplo, eu apresentava-lhe este exercí-
cio de física: uma bola cai, a que velocidade é que cai, com que força é que
bate e porque é que parte o vidro?
PMP
Eu adoro estes exemplos.
MCS
Ele era arquitecto, tinha enormes conhecimentos de física e quando não
tinha mentia, o que era uma coisa maravilhosa porque eu acreditava em
tudo.
Então eu chegava e dizia muito rapidamente, “olha António, tenho este de-
ver para a escola, ajuda-me lá. O que é esta coisa da força”. Ele dizia: “os
gregos…” E eu dizia: “não, não, espera aí, mas eu só quero saber...”. Ele
nunca me deixou fazer isso. Contava-me a história dos gregos, os amores
entre eles, e depois, lá no meio daquilo tudo, aparecia a bola e eu nunca
mais me esquecia e apaixonava-me por essas coisas. É um exemplo de
como é que se pode tocar na alma de uma criança. Ele utilizava esse veí-
culo, e era o mais maravilhoso mentiroso contador de histórias.
PMP
Olga, depois o José Pedro Serra e o Ondjaki.
OP
Esta questão é muito complicada e eu só vou dizer duas ou três coisas.
Induzir nos outros o amor por aquilo que nós amamos, é capaz de ser uma
boa possibilidade, uma boa forma de dizer o que é a escola. Ela foi, em
parte, inventada para isso. Depois da família ter já exercido todos os efeitos
sobre a criança, aos quatro, aos cinco, aos seis anos, cada vez mais cedo,
a criança sai de casa para ir a uma outra instituição que foi inventada há
dois mil e quinhentos anos, com uma porta, com um jardim, com um pátio,
com uma cabana, varia consoante o lugar, o espaço, o mapa em que nós
nos situamos. Mas é sempre uma escola e tem alguns elementos que a ca-
racterizam como tal. Um dos elementos fundamentais é que lá dentro dessa
escola haveria de estar alguém que amasse alguma coisa, e que achasse
que isso que ela tem deveria ser dado às crianças que vão entrar com uma
expectativa enorme de aprender.
Não se pode pensar na escola se não se acredita em duas coisas: na in-
teligência das crianças e no valor da cultura humana.
176
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A escola serve para fazer passar às crianças aquilo que elas nunca apren-
deriam se não fossem à escola, por isso, é que as crianças não ficam em
casa. O que uma criança quer é aprender a descobrir, a crescer e a ser
adulto, e ela tem toda uma apetência para crescer, aprender e descobrir.
A escola é o lugar onde as crianças são introduzidas, na expectativa de que
lá esteja um professor (a própria palavra “professor” tem muito que se lhe
diga: é aquele que professa uma determinada profissão) que é alguém que
transmite (a palavra “transmite” significa o elo de continuidade do mundo
que já existia antes para o mundo que vai existir depois). Ele vai permitir
à criança aprender aquilo que ela nunca saberia se não fosse à escola. O
professor tem de amar aquilo que vai ensinar, aquilo que vai pôr em palavra,
é esse o gesto de ensinar.
Se se começa por perguntar às crianças o que é que elas gostam, do meu
ponto de vista está tudo estragado, porque elas não vão à escola para
aprender aquilo de que gostam, ou que já sabem ou que já faz parte do seu
mundo. Elas vão lá para aprender aquilo que nunca aprenderiam se lá não
fossem, e aprender o quê? Aquilo que vale a pena aprender. E o que é que
vale a pena aprender? A grande ciência, a grande arte, a grande literatura,
etc.
A Marta pôs, e muito bem, o caso da passagem da língua à literatura. No
caso do português é ainda mais importante, porque aprender português
não é apenas aprender português, é aprender a possibilidade de aprender
todas as outras coisas. Portanto, aprender a ler não é uma aprendizagem.
Eu posso aprender, ou não, a fazer uma construção, posso nunca aprender
na minha vida a fazer um copo, que isso não faz de mim menos pertencente
ao género humano. Agora, se eu não souber ler, sou de certeza grande-
mente prejudicada na minha humanidade.
Não quero com isto dizer que não haja pessoas que, embora analfabetas,
não tenham conseguido grande valor humano mediante a oralidade, porque
aí também é a palavra, é o ler e o ouvir, a palavra lida e a palavra falada e
escrita. De qualquer maneira tem de se ser introduzido no universo das
palavras.
Ser homem é também saber ler, escrever, é saber pensar, mas com os ins-
trumentos necessários. É o passaporte para tudo.
Portanto, há que ser extremamente rigoroso, no que diz respeito à litera-
tura.
Num livro recente, George Steiner escrevia com toda a frontalidade, que a
escola tem o dever de obrigar as crianças a gostarem daquilo que vale a
pena gostar e aquilo que vale a pena gostar também tem obviamente de ser
alguma coisa de que o professor gosta.
Há aqui um triângulo que é importante, pois eu não consigo tocar a alma
de uma criança com um texto medíocre do Big Brother. Agora se eu fizer
177
XVI Encontro de Literatura para Crianças

um esforço, se eu mostrar o meu gosto, se eu for capaz de transmitir aquilo


que, de facto, é o meu amor por um texto magnífico, esplendoroso que
atravessou gerações, que tem, em si mesmo, na sua constituição, elemen-
tos de uma beleza objectiva que não se pode discutir, então a criança vai
ser tocada.
PMP
José Pedro Serra, há pouco, a Ana Maria Magalhães estava a dizer que
à universidade chegavam os alunos já peneirados e o José Pedro Serra
abanou a cabeça e disse que não. O que é que esse não queria dizer? E
a outra pergunta que lhe ponho, é: que critérios para construir um elenco
de leituras obrigatórias? Não uma lista; os critérios. Onde é que temos de
ser intransigentes na construção dessa biblioteca e onde é que podemos
ser mais flexíveis e atender ao interlocutor? Porque a Olga entende, como
ouviram, que a escola é para nos introduzir naquilo a que nunca teríamos
acesso se lá não fossemos.
OP
Eu não gosto de contar experiências pessoais, mas já agora conto uma
muito pequenina.
Na Faculdade de Ciências, há alunos de matemática que nunca contac-
taram com nenhum Clássico na sua vida académica e eu leio quase todos
os anos com eles um diálogo de Platão. No fim do ano, (quase sinto pudor
em dizer) os alunos ficam absolutamente fascinados com o que é Platão,
com o que é aquele texto que não lhes vai servir para nada.
PMP
Não lhes vai servir para nada?!
OP
Vai-lhes servir para tudo o que você quiser.
PMP
Não há uma finalidade estrita.
OP
É uma coisa que é livre no sentido pleno da palavra. Vai-lhes servir para
tudo o que eles quiserem.
JPS
Francamente não sei que dizer.
PMP
Concorda que é um problema, encontrar critérios para construir uma bi-
blioteca?
JPS
Antes disso, deixe-me dizer uma coisa.
Enquanto estava a ouvir, muito atentamente, as intervenções anteriores,
lembrei-me que a etimologia da palavra escola, do grego skhole, significa
esta coisa, para mim fantástica, que é “o espaço onde nada se fazia”, não
178
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fazer nada!
É claro que há aqui um sentido imediato e que, no contexto da cultura
grega, queria dizer “o espaço da ausência de uma ocupação manual para
fazer uma outra coisa”.
Mas, eu entendo isso talvez de uma outra forma que não é oposta, mas que
a completa; “não fazer nada”, significa hoje, e talvez em qualquer momento,
“silenciar os ruídos”, “calar este tumulto dos pragmatismos, das aparentes
finalidades para tentar ouvir, ver e amar aquilo que se revela como amável,
audível e visível”. Na verdade, para isso é preciso um grande ascetismo,
porque calar os ruídos é muito difícil. Não apenas para o professor, mas
para os alunos.
Ora, o que me parece é que há, neste nosso debate, dois níveis distintos:
um que assenta nesse aspecto muito pragmático, muito vivido, muito res-
peitável, por ser vivido, por ir ao encontro do que se experiencia; e outro
que procura pensar ou dar a ver aquilo para o que deve tender a nossa
viagem. Saber o que é, e como estabelecer o porto, para o qual a nossa
viagem da descoberta com o outro se deve dirigir.
Eu devo dizer que por mais respeito que eu tenha pelas dificuldades pes-
soais, concretas, que cada um de nós vai encontrando na escola primária,
no liceu ou na faculdade, não consigo desligar isso dessa formulação prin-
cipal, original, que é: qual o país para onde vamos?
Por isso, há pouco, a minha intenção não era apenas dizer, à boa maneira
grega, que lástima são os alunos da faculdade. Não! Também na faculdade
há um exercício de descoberta intensa, de dar a ver. Também aí estamos a
amar ou a dar a ver.
Já que a Olga falou do Steiner, há uma expressão do Steiner, no início de
um curso, que muito me tocou. Numa aula, o Steiner disse ao entrar: “so-
bre esta matéria eu sei infinitamente mais do que os senhores. Sei muito
mais! O meu objectivo, é que, no final do ano, se invertam as posições”.
E isso significa que há a assunção de uma responsabilidade, de um saber
que compete ao professor. Sou um pouco heterodoxo quando se fala nos
didactismos, na interactividade, soa nos meus ouvidos como uma espécie
de capitulação perante o movimento.
Quer dizer o que é preciso é: que se mexam, interajam. Penso que não há
interacção maior do que a do aluno que está atentamente a ouvir aquilo que
o professor diz e que é, se for bom, profundamente interpelativo e, nesse
sentido, muitíssimo interactivo.
Vi, há pouco tempo, num manual, que para se falar do aspecto coerci-
vo da lei, se devia desenhar três quadradinhos de banda desenhada em
que num está, uma Eva pudicamente tapada com três parras; no outro um
Adão igualmente pudicamente tapado, mas só com uma parra, e num ter-
ceiro quadrado, um ancião de costas, com os braços abertos e um cajado
179
XVI Encontro de Literatura para Crianças

na mão, onde se podia ler estas legendas: ai meu Adãozinho, ai minha


Evazinha, e a expulsão do Paraíso.
Eu fico esmagado, fico absolutamente chocado, porque, de facto, tudo está
a ser menorizado, que é o contrário do que deve ser exigido.
Qual é o critério?
Eu peço desculpa por discordar da minha caríssima colega de debate, mas
eu acho que os critérios não são subjectivos.
PMP
Está a falar da Marta Martins?
JPS
Sim. Disse que dependia de comunidade para comunidade. Eu aceito que
há uma franja indecisa na passagem e transmissão dos Clássicos, no sen-
tido em que aceito que uma dada época se possa rever melhor num, ou
que interprete um outro ou que, sobretudo, o ponha mais em evidência,
que o ilumine; eu aceito, o que, inesperadamente, Joyce fez com Ulisses,
por exemplo.
Agora, uma coisa é admitir que a criatividade duma época balance no perfil
indeciso dos limites dos Clássicos, e outra é ter a infantil e cruel arrogância
de pensar que na sua relatividade pessoal pode instaurar os Clássicos a seu
gosto. É que não pode! Isso é uma moda que o tempo triturará.
Os Clássicos impõem-se por si e, tal como eu digo aos meus alunos, o
gosto por Homero não é critério de vida, nem Homero depende dos alunos
gostarem ou não gostarem dele. Eu serei melhor professor se ao falar de
Homero e “dessa manhã de verdes róseos” os tornar sensíveis à madru-
gada, mas o valor de Homero não depende do valor judicativo dos alunos.
Nem do meu!
Por isso, eu acho que há aqui um reconhecimento já não subjectivo, mas
objectivo daquilo que os Clássicos revelam, dessa matriz inicial, como uma
espécie de fonte primeira, que nos ensina a dizer, que marca um ritmo novo,
uma musicalidade nova e, nesse sentido, marca a música da minha própria
vida.
PMP
Muito bem.
Para sintetizar: há um núcleo duro de capital, de conhecimento acumulado
e de produção da humanidade que não é negociável no contexto de uma
escola; é para transmitir e não é relativo. A Olga subscreve, já suspeitava.
JPS
Mas não ensaiámos.
PMP
Imagino, imagino! Mas podiam não coincidir.
OP
Aliás, eu já tinha dito quando falei do triângulo. É o professor e o aluno e
180
XVI Encontro de Literatura para Crianças
há o amor entre ambos. O professor ensina aquilo que ama. Imagine que
o professor ama o romance inferior. Não é assim; tem que haver o terceiro
elemento. É que aquilo que o professor ama, é aquilo que é para amar.
PMP
Portanto, há um cânone.
Ondjaki, como criador – e quando digo criador é nestas múltiplas disci-
plinas a que já aludi aqui – tu foste introduzido aos Clássicos, na escola e
em casa, porque és dos que teve o privilégio de ter um contexto familiar
onde também, com certeza, te foi dada alguma introdução a grandes tex-
tos. Mas, tu como criador, com certeza, que construíste, subjectivamente, a
tua própria biblioteca, lato sensu. Qual a biblioteca que te alimenta, que te
inspira, cingindo-nos aos livros?
Ondjaki
A minha biblioteca são as histórias que eu oiço, escritas no sentido em que
as leio, oiço, porque chegam até mim no sentido auditivo da coisa.
Depois desta ronda fui apanhando pedaços que fariam aqui um novo
puzzle, mas eu não posso pegar em tudo. Vou fazer alguns apontamentos,
por exemplo, penso que a socialização das pessoas é feita em casa, depois
na escola e depois na sociedade em vários pontos. Em todos esses sítios
sofremos influências. Todo o tipo de aprendizagens depende dos contextos
em que estamos inseridos. Eu não sei em que grau é que depende; penso é
que não seja independente do sítio onde estamos, das pessoas com quem
nos cruzamos, como diz o provérbio brasileiro: não independe a nossa for-
mação e o nosso trajecto.
Curiosamente, a ideia do vazio trouxe-me à memória uma palavra chinesa
muito bonita que é wuji, wuji é precisamente o vazio; eles usam-na em ter-
mos filosóficos e até nas artes marciais, como por exemplo, no Tai Chi e no
Kung Fu, onde o Mestre diz: vocês devem procurar o wuji, e se eu procurar
o wuji vou estar quieto e estar quieto é estar em harmonia com o universo;
portanto, esse wuji, esse vazio, essa escola do silêncio, remete-me para
uma ideia de criar espaço para uma aprendizagem, não no sentido de calar
tudo, calar apenas o desnecessário, o não essencial.
Mas, isto tudo para chegar onde? À sensibilidade!
Eu acho que esta ideia de aproximar as pessoas, a paixão com que se
transmite uma coisa e a maneira como se convence um aluno a aproximar-
-se seja de um Clássico, seja de outro texto, tem muito a ver com a ideia de
sensibilidade e, claro, a sensibilidade depois vai englobar o amor, o talento
ou a maneira como se fala com os alunos.
Eu gosto de contar histórias e vou contar duas histórias muito rápidas.
O meu avô era para se chamar Aníbal. Quando chegaram ao registo, o se-
nhor disse: “ai! Aníbal não, não gosto desse nome, vai-se chamar Eduardo”.

181
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Mas, lá em casa, continuaram a chamar-lhe Aníbal.


Quando ele mudou da terceira para a quarta classe, a professora tinha ou-
vido falar que vinha um Aníbal que era terrível. Ela nem sabia quem era! Mal
o meu avó entrou, ela perguntou:, quem é o Aníbal? Ele levantou-se e levou
logo umas reguadas; segundo dia, outras reguadas, terceiro dia, diz ela:
“eu já sei que tu és terrível; pelo sim pelo não eu vou-te já cascando”! Ao
fim de dez dias, o meu avô, com onze, doze anos, chegou a casa e disse
ao pai que não ia mais à escola. O pai dele que era pescador, disse “não
vais à escola, vais comigo para a pesca”. Esteve cinquenta e cinco anos
na pesca, teve um acidente, veio embora. Há pouco tempo, estava muito
doente e já naquela fase delirante, chamou-me porque eu era das poucas
pessoas que o entendia: – O que é avô? – Eu quero ir lá fora. Estava frio e
ele não tinha condições físicas. – Queres ir fazer o quê? – Quero ir brincar
com os meus amigos.
E eu achei aquilo engraçado. Tinha um elemento de demência, mas para
mim, a relação imaginária que eu fiz foi: estás a ver, não brincaste na escola,
foste para a pesca, agora queres ir brincar.
Portanto, a sociabilidade constrói histórias, constrói momentos e aquele
momento foi para mim muito ternurento. A minha avó estava tristíssima,
porque ele estava a morrer e eu ali deliciado a ouvir estas coisas, não podia
era sorrir, porque se não a minha avó podia ficar chateada.
Mas, há outra história muito rápida.
O escritor Manuel Rui é uma pessoa com quem estabeleci uma relação
muito interessante, porque julgo que descobri nele, ou na obra dele, uma
coisa que é a ternura, uma imensa ternura. Às vezes, é desagradável com
as pessoas, responde mal aos jornalistas, não gosta de americanos, nem
de sul-africanos, enfim, é uma pessoa problemática, mas quando eu vou a
casa dele lanchar e falamos, ele sempre conta histórias de ternura, seja a
falar de um feijão, seja a cozinhar, seja a beber, está sempre a ternura.
E um dia contou-me a história de uma menina a quem perguntaram o sig-
nificado de uma determinada cor. E que cor era aquela e a miúda não con-
seguia explicar. – Mas que cor é essa?, é cor de rosa?, e a miúda disse: não
é bem isso. – É cor de laranja? – Não! – Então é o quê? A miúda disse: “é
um vermelho devagarinho”.
Só uma criança é que se pode lembrar de dizer que uma cor é vermelho
devagarinho.
Eu só me lembrei disto, porque o que me marca são as histórias relativas à
sensibilidade. A sensibilidade tem muita força e muita brutalidade, em ter-
mos de simplicidade, que depois se torna muito, muito verídica.
A lista dos livros, devo dizer que passa muito por aí.
Os livros que me tocam são os livros com os quais vou, de facto, criar uma

182
XVI Encontro de Literatura para Crianças
habilidade para depois poder tocar os outros quando quiser passar.
Como o vermelho devagarinho, o Manuel Rui disse que a história pode
circular.
PMP
Miguel, tu és imunologista e, portanto, a palavra contaminação é-te segura-
mente familiar e muito presente no teu quotidiano de laboratório.
Tudo isto de que estivemos a falar me remete para uma ideia de contami-
nação, esta passagem de testemunho, às vezes, mais facilitada pelo amor
que se tem ao testemunho do mestre, outras vezes mais dificultada, porque
o mestre não tem esse amor. Achas que pode haver uma analogia pos-
sível entre a passagem dos Clássicos de geração em geração e a ideia da
contaminação? Eu tenho curiosidade em ouvir-te a ti, um cientista, ainda
por cima desta área, dizer se esta ideia é um disparate ou se há, de facto,
analogias possíveis e como é que tu as estabeleces.
MCS
Contaminação é uma coisa que nós vemos todos como relativamente hor-
rível, porque são as doenças que nos matam, se somos contaminados, e
por isso tem um lado negativo. Na transmissão do testemunho do Homero,
por exemplo, o mestre que transmite não quer, de modo algum que o pro-
cesso de transmissão caia, se suje e que depois, se aparece uma pessoa
que fica com ele, já não é bem Homero, é um Homero que se sujou. Em
cinco séculos se ele estiver sempre a cair no chão já não é Homero.
O que eu pretendo dizer é que na transmissão desse texto, podemo-nos
sempre referir à base, está escrito, e que a função do professor ao transmitir
esse texto, não é transmitir uma adaptação, mas esse texto, é o testemu-
nho no seu original e sensibilizar as pessoas para essa mensagem. Nesse
sentido a contaminação é uma coisa negativa, se se mudar o texto e se se
deturpar o seu sentido.
É absolutamente necessário manter um testemunho exactamente como
ele é, mas não impedir que outras ideias que sejam completamente contra
essa mensagem, não apareçam.
O facto de preservar, não deve limitar os horizontes ao aparecimento de
coisas que vão ser outros testemunhos que vão ser passados.
JPS
Por mim, devo-lho dizer que vejo a sua contaminação com muita alegria.
MCS
Mas é engraçado, porque quando se fala, no sentido leigo, do mestre que
transmite os Clássicos, é de uma maneira caricatural…
JPS
Cuidado…
MCS
...de uma maneira caricatural no sentido de ser uma pessoa clássica. Quem
183
XVI Encontro de Literatura para Crianças

transmite os Clássicos é um preservador daquele património, mas, no fun-


do, há que manter o horizonte aberto para outros…
E a contaminação nisto tudo?
Eu vou dar um exemplo: Houve agora um filme, que era uma versão ameri-
cana toda modernaça do Romeu e Julieta. Aquilo não é um Clássico; o
Clássico é Romeu e Julieta; no fundo, é uma contaminação do Clássico,
que pode ter o seu valor, mas não é um Clássico, não o substitui e eu pes-
soalmente não acho que aquilo não seja um avanço, de modo algum. Mas,
há outras coisas que vão aparecer de repente, que não tem a ver com os
Clássicos, e que eles próprios se vão tornar Clássicos e que são contami-
nações talvez paralelas.
PMP
Então os Clássicos geram um movimento de desdobramento.
Intervenção sem ser identificado o orador
Paula, deixe-me dar um exemplo. As Fábulas de La Fontaine, que são uma
grande matriz referencial na literatura para a infância, são do século XVII; no
entanto, sabemos que foram criadas a partir dos textos de Fedro do século
I d.c., mas de Fedro porquê? La Fontaine sabia latim, mas não sabia grego,
se soubesse grego teria ido aos de Esopo, que, supostamente, não se tem
a certeza, são do século VI a.c.; portanto, nós hoje, nem Fedro, nem Esopo,
só La Fontaine. Qual é o nosso Clássico afinal? Onde é que está a matriz?
Intervenção sem ser identificado o orador
O que é bonito é que todos diziam a mesma coisa. Isso é que é bonito.
Intervenção sem ser identificado orador
E repare, chegam às nossas mãos, longíssimo do texto de La Fontaine,
que é, enfim, um texto do século XVII, ao gosto da época. Portanto, em
verso, como já eram os anteriores, e a nós aparece-nos nas mãos em texto
narrativo corrido, adaptado, truncado, etc, e as pessoas adoptam-nos nas
escolas como Clássicos.
OP
Quanto à contaminação, eu acho que a grande figura da escola é a figura
do anão e do gigante; nós somos anões aos ombros de gigantes e, por-
tanto, temos de nos deixar contaminar pelos gigantes.
Segunda coisa, em relação à adaptação dos Clássicos para crianças eu
acho que é um problema, mas, hoje em dia, há um problema muito maior,
que é a adaptação das histórias infantis para adultos, que enchem as
prateleiras das bibliotecas e das livrarias. Esse é que é o grande problema.
A história que vende é no fundo, uma história infantil para adultos, contada
para adultos. O bestseller do romance.
PMP
Ainda bem que disse isso, porque o Miguel Che e mais gente aqui tem
uma experiência americana. Ele viveu dez anos nos Estados Unidos, e, de
184
XVI Encontro de Literatura para Crianças
facto, comentávamos isso, no outro dia, lê-se imenso, objectivamente lê-se
imenso, nos Estados Unidos, na Inglaterra e muitíssimo mais do que aqui,
mas lê-se o quê?
MCS
Lê-se porcaria. Lêem-se coisas que se compram no supermercado, que
têm todas o mesmo formato.
É como no cinema, no fundo, há uma estrutura que é imposta, que é o que
eles chamam bestsellers e, no fundo, isso acontece porque não lhes to-
caram na alma. São histórias muito simples e o facto de se ler e de se ter a
capacidade de ler, de se concentrar, de se sentar e de ir para a cama ler não
é suficiente; tem que se ser dirigido no que é que se vai ler. Há toda uma
outra educação que não tem que ver com o facto de ler.
Mas depois há outro problema, (eu não quero entrar em grandes debates
sociais), que é o seguinte: se nós tivéssemos a capacidade de tocar na alma
de noventa e nove por cento da nossa população era o pânico, porque a
nossa sociedade não funcionava e a estrutura americana não funcionava.
Por exemplo, eu tenho um laboratório de dez pessoas e quero que as dez
pessoas se sintam plenamente a trabalhar, que se divirtam, que sejam to-
dos inteligentes. Se eu tiver dez pensadores eruditos, o laboratório funciona
no que nós chamamos “para a frente em todas as direcções”, ou seja, não
funciona, fica parado. Já que estamos a falar da minha experiência ameri-
cana vou dizer-lhes como funciona: há uma “dose” igual para toda a gente,
depois há uma triagem e só alguns, por critérios que são aceites ou que
não são aceites, é que têm então a educação máxima e o acesso aos Clás-
sicos e a isso tudo. Não estou a dizer que é a boa maneira de o fazer, mas é
como eles o fazem e é uma coisa de que os americanos não têm vergonha.
Que toda a gente leia essa literatura de aeroporto, a eles não lhes importa
nada, aquilo é bom, good for business, mas depois há uns que lêem os
Clássicos.
Isto é um discurso que na Europa social é inadmissível, é escandaloso!
PMP
Estamos a ser esvaziados da nossa inteligência na Europa. Meus senhores
muito mais haveria a dizer, mas chega.
Agradeço aos membros desta mesa, que foram óptimos.

185
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Isabel Marques da Costa

Observadora Sala 1

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Drª Maria Helena Melim Borges


o convite que me fez para ser observadora do XVI Encontro de Literatu-
ra Infantil. É um convite que muito me honrou e que, ele próprio, resultou
numa viagem à minha infância e adolescência. Despertou-me a curiosidade
e também a necessidade de rever, nalguns casos reler (O “Cavaleiro da
Dinamarca”, por exemplo, já que falavamos de viagens) ou simplesmente
voltar a tocar nos livros que me foram oferecidos.

Livros de Matilde Rosa Araújo, Sophia de Mello Breyner, Alice Vieira, Maria
Rosa Colaço, Maria Alberta Menéres, António Torrado, isto só para citar
alguns. São dezenas de livros que até há uma semana estavam religiosa-
mente guardados numa estante em casa da minha mãe, mas que agora
estão todos em minha casa. E quando digo todos, são TODOS... mesmo
aqueles que foram autografados e dedicados aos meus irmãos.

Agradeço, por isso, esta viagem ao passado... e também a viagem que foi
este Encontro. Três dias muito enriquecedores.

E agora, então, o meu Bloco de Nautas recolhidas na Sala 1...

Os trabalhos começaram na quarta-feira, como habitualmente, com uma


sessão mais formal. Uma sessão daquelas que geralmente marca o início
de iniciativas como esta, mas que, a ser verdade, teve, desde logo, uma
boa notícia.

O Secretário de Estado da Educação, que marcou presença em substitui-


ção da ministra (Maria do Carmo Seabra estava no Parlamento a dar expli-
cações sobre o atraso no início do novo ano escolar), anunciou a criação
de um Plano para a Promoção da Leitura e da Escrita para crianças com
idades entre os 6 e os 10 anos. Um plano em que não estará incluído o tal
chicote (invocado por Miguel Sousa Tavares na Conferência de Abertura
quando questionado sobre de que forma pensaria ser possível incentivar
os miúdos a ler...), e que poderá ser uma pequena luz ao fundo do túnel. A
esperança de que todas as crianças de norte a sul do país, ricas ou pobres,
186
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ganhem o hábito da leitura, passem mais tempo a ler em vez de ficarem
frente a um cumputador, sozinhas, horas a fio, a jogar, a aceder a endereços
vazios de conteúdo ou impróprios para as suas idades.

Mas uma criança frente a um computador pode fazer outras coisas que não
jogar. O computador pode, e já é seguramente, um objecto incontornável
do futuro.

Na Conferência de Abertura com Miguel Sousa Tavares foi dada uma


perspectiva mais negativa, menos esperançosa do futuro no que às
crianças e novas tecnologias, como o computador e a internet, diz respeito.
Mas, ontem, quinta-feira, na sessão da tarde, na Sala 1, a mensagem foi
outra, como mais à frente mencionarei.

Da parte da manhã o tema foi “VIAJANTES INTRANQUILOS”: uma homena-


gem a Hans Christian Andersen, pelo bicentenário do seu nascimento, que
se completa em Abril de 2005. Uma homenagem que foi também estendida
a Natércia Rocha, uma das iniciadoras destes Encontros nos anos 80, numa
sessão moderada por Marta Martins.

A primeira a usar da palavra foi Leonor Riscado. Autora de vários artigos


sobre a literatura para a infância e juventude, a professora da Escola Su-
perior de Educação de Coimbra sobre a vida e obra de Andersen... e de
como também elas foram um belo conto. Com uma forma muito terna de
comunicar (e com um tom de voz fantástico para contar histórias!), falou-
-nos do início de vida difícil do escritor dinamarquês e de como isso marcou
todo o seu percurso como homem e escritor. Contou-nos também como
Andersen começou por escrever contos populares, dando continuidade à
tradição oral da sua região (não esquecendo as suas raízes), mas que de-
pois começou a desenvolver um estilo único com marcas visíveis da sua
infância. Um estilo que o levou a escrever 156 contos traduzidos já em mais
de 100 idiomas.

Depois de Leonor Riscado foi Diogo Dória. O actor contou-nos e encantou-


-nos com “A Sombra” de Andersen, como não podia deixar de ser.

Por último Rui Marques Veloso.


Também professor na Escola Superior de Educação de Coimbra e co-fun-
dador da Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juve-
nil falou-nos dos trilhos ANDERSENIANOS na literatura infantil portuguesa.
Ou seja, sendo Andersen reconhecido como o maior escritor de literatura
187
XVI Encontro de Literatura para Crianças

para crianças e tendo sido a sua obra amplamente divulgada em Portugal,


alguns escritores portugueses foram, naturalmente, por ele influenciados.
Rui Marques Veloso destacou quatro. Sophia de Mello Breyner, Matilde
Rosa Araújo, Ricardo Alberty e António Torrado. Entre eles e Andersen, o
professor consegue estabelecer uma ponte, encontrar semelhanças... mas
também consegue identificar diferenças. Entre elas, e comum aos quatro
escritores, um aspecto importante. Ao contrário do escritor dinamarquês,
os escritores lusos valorizam a esperança nas suas fábulas.

No final da sessão uma pequena intervenção de Matilde Rosa Aráujo que


comoveu grande parte, se não toda, a plateia e também um comentário de
António Torrado, comissário do Encontro. O escritor contou que quando
era miúdo leu as histórias de Hans Christian Andersen, entre elas a “A Som-
bra”. Um conto que o perturbou, mas que decerto, como todos os outros, o
inspiraram e, quem sabe, foram determinantes para se tornar o fantástico
escritor de literatura infantil que é. Eu acho que é!

Da parte da tarde falou-se, então, dos MODERNOS NAUTAS. Dos viajantes


de hoje. E, como referi há pouco, numa perspectiva mais positiva. Ao con-
trário do primeiro dia de trabalhos.

Luísa Ducla Soares contou-nos como no seu dia-a-dia na Biblioteca Na-


cional já não dispensa o computador e a internet. E como através deles
é possível escrever, aprender, dar entrevistas, pesquisar... Não há dúvida:
rendeu-se completamente às novas tecnologias. Como Luísa disse (creio
que foi mais ou menos assim): ‘é como viajar num tapete voador, tendo
como companheiro um rato... e num abrir e fechar de olhos dá-se a volta ao
mundo’. Muitos pais e educadores estão assustados com as novas tecno-
logias, mas para Luísa Ducla Soares elas podem dar bons exemplos desde
que as crianças sejam bem acompanhadas e não sejam largadas a seu
bel-prazer frente ao aparelho.
Sugeriu até que fossem criadas, por adultos responsáveis, listas de sites
adequados a cada faixa etária. Uma espécie de guias.

Os mails, os jogos, os sites didácticos, os blogs, os chats podem ser instru-


mentos positivos de aprendizagem e conhecimento, assim como a internet
pode estimular a leitura. Mas, ao contrário de outros países, como Ingla-
terra onde existe um sem número de sites de e com literatura infaltil, na lín-
gua portuguesa ainda há relativamente pouco ao dispôr. Mas já há qualquer
coisa e deu como exemplo o site “História do dia” de António Torrado. Para
Luísa é impossível voltar atrás. As novas tecnologias existem e são um su-
188
XVI Encontro de Literatura para Crianças
porte privilegiado da literatura. O importante agora, diz, é “descobrir novas
formas de navegar o futuro.”

Pedro Rosa Mendes, jornalista e escritor, é da mesma opinião. A internet é


já um meio indispensável, sendo que o principal motor de busca utilizado
por cada um de nós, adultos e crianças, deve ser a nossa própria imagina-
ção. E provou-o quando no mesmo dia em que lançou o seu livro em papel
“A Baía dos Tigres” – uma viagem de Angola ao norte de Moçambique
– lançou um site na internet onde também era possível ler o livro na íntegra
e até ir mais longe. Para Pedro esse livro virtual é mais real porque per-
mite um acesso mais completo. Permite, por exemplo, recorrer a elementos
iconográficos ou musicais.

Por último, Francisco Pacheco. Educador de infância em Portalegre con-


sidera que as novas tecnologias são grandes aliadas das regiões mais des-
favorecidas. Francisco Pacheco é o responsável pela existência da “História
do dia” de António Torrado. E não deixa de ser curioso que António Torrado,
que confessou que ainda escreve as suas histórias com a ajuda de papel
e de uma caneta, também se tenha rendido às novas tecnologias. Durante
um ano publicou todos os dias uma história diferente no site.
Foram 366 histórias.

Francisco Pacheco falou-nos do imenso sucesso do site português de


gema, mas que também tem uma versão em inglês. E deu-nos números
(que tanto agradam aos jornalistas e que eu me apressei a anotar!). Foram 3
milhões de visitantes, crianças mas também adultos, de 55 países. Natural-
mente de Portugal, do Brasil, mas também de todos os países africanos de
língua oficial portuguesa e de toda a américa latina. (De resto, esta imensa
afluência hispânica fez com que, quando voltar a arrancar, este site tenha
também uma versão em castelhano). Receberam também mais de 20 mil
mensagens, foram por 4 mil e 300 vezes impressas histórias...o que sig-
nifica que foram guardadas para voltarem a ser contadas.

Um caso de verdadeiro sucesso em português de Portugal, que andou nos


quatro cantos do mundo e que por agora, desde 30 de Setembro, está
parado. Mas promete voltar à carga.

Todos esperamos que sim. Sinceramente, espero que sim!

189
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Ana Sousa Dias

Observadora Auditório 2

O Miguel Sousa Tavares, na quarta-feira, disse que havia quatro livros que
todos devíamos obrigar as crianças a ler, nem que fosse a chicote: “A Ilha do
Tesouro”, o “Moby Dick”, “As Viagens de Gulliver” e o “Robinson Crusöe”.
O chicote é o lado MST da conversa - um homem, que escreveu “O Se-
gredo do Rio” e que ouviu em criança as histórias daquela mãe, não está a
falar a sério quando recomenda chicotes para pôr as crianças a ler - o gag
que levou o Henrique Cayatte a explicar que os chicotes estão à venda na
net, depois de um debate em que alguns – incluindo o Miguel – disseram
que os mais novos passam a vida agarrados aos jogos de computador. Este
momento e um outro – a Alice Vieira a contar que foi a um programa de tele-
visão em directo com o Adolfo Simões Müller que foi tratado pelo apresen-
tador como um bailarino reformado – poderiam exemplificar como questões
que à partida podem ser vistas como negativas acabam por mostrar que
não há nada melhor do que não nos levarmos demasiado a sério.

Vamos então começar pelo princípio, e no princípio, neste caso, era o Pré-
mio. Isto é, a nossa primeira manhã do XVI Encontro de Literatura para
Crianças foi a parte, digamos, institucional. A Isabel já deu a notícia do que
foi anunciado pelo secretário de Estado Diogo Feyo, portanto eu começo
mais tarde. Henrique Cayatte falou sobre o prémio atribuído ao André Letria
e ao António Mota pelo livro “Se eu Fosse Muito Magrinho” e realçou a im-
portância da nova geração de ilustradores que veio revigorar este campo da
literatura. Falou do André em especial, da forma como ocupa a mancha da
página e da capacidade de preservar o diálogo com o texto sem ofuscá-lo,
e esta é uma atitude que tem muito que se lhe diga. Sublinhou que o André
é também pintor, pai e cenógrafo, numa ordem aparentemente irrelevante.

Maria Cabral Pacheco de Miranda explicou as razões da atribuição do pré-


mio na modalidade “Texto Literário” a Jorge Araújo, pelo livro “Comandante
Hussi”. Este livro conta uma viagem iniciática de um menino em direcção à
idade adulta, uma viagem precipitada pela guerra. Quem ler o livro, e aqui a
observadora passa para outro papel e recomenda-o, vai certamente guar-
dar a ideia de Hussi e da bicicleta amorosa, saudosamente escondida para
um reencontro permitido pela paz.
O tema da conferência de Miguel Sousa Tavares era a Literatura de Viagens,
190
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ele que é um viajante solitário de desertos. Para além do pessimismo – e no
dia em que o ouvirmos dizer uma frase optimista podemos ficar preocupa-
dos – o Miguel, na agressividade do seu pudor, acabou por dizer, por exem-
plo, que o mundo seria infinitamente mais seguro se fosse governado por
antigos viajantes. “Quando se viaja, não se procura – encontra-se. Mesmo
que seja preciso ir ao limite de nós mesmos.” Aproveitou para fazer um
repto à Fundação Gulbenkian, depois secundado por Henrique Cayatte,
para que promova um debate sobre a comunicação social.
A questão dos novos meios de informação começou a ser debatida nesta
sessão mas, como a Isabel Marques da Costa já explicou, foi aprofundada
depois na Sala 1.

Voltei ao Auditório 2, no segundo dia, para a sessão sobre “Inevitáveis Clás-


sicos”. As histórias da infância da Maria João Seixas, a moderadora, eram
também de uma viagem – suponho que ninguém naquela sala vai esquecer
a imagem da casa em que viveu enquanto o pai coordenava a obra dos
caminhos-de-ferro, no norte de Moçambique, a casa que se deslocava de
lugar em lugar e ficava sustentada em bidões, mas que compunha, com
outras três casas, um largo itinerante com vista para os animais e a vegeta-
ção de África.

José Pedro Serra fez uma intervenção sobre a presença dos clássicos na
cultura ocidental, e sobre o papel que o educador deve assumir. Este tema
foi depois retomado no debate final de quarta-feira, mas já aqui José Pedro
Serra, eloquente, se manifestou desconfiado das “certezas sem a borda-
dura das dúvidas”, contra os professores que “procuram a docilidade dos
alunos”. Foi um apelo à insubmissão e ao apelo a dar a amar as coisas
amáveis. O caminho que propôs aos docentes foi o de “peneirar, seleccio-
nar e hierarquizar” o conhecimento, para “dar a ver, dar a ouvir, dar a amar”.
Homem da Filosofia, defendeu que os clássicos – tema que foi central na
manhã de quarta-feira – são os que resistiram ao tempo e sempre tocaram
as mais subtis cordas da alma. E usando uma palavra com que depois Ma-
ria João Seixas o atormentou durante o almoço (e é verdade, como disse
ontem a Alice Vieira, que há coisas muito importantes que são ditas nos
intervalos das sessões) “o maior risco de ignorar os clássicos é perder a
incandescência da nossa demanda”. Exemplo máximo da incandescência,
o livro que José Pedro Serra afirma que o moldou – a “Ilíada”.

Mário Avelar começou por dizer que é possuidor de primeiras edições da


“Praça da Canção” e de “O Canto e as Armas”, de Manuel Alegre, façanha
que assume muitos significados e não meramente a de coleccionador de
livros. Partiu da “Praça da Canção” para a literatura anglo-saxónica, em que
191
XVI Encontro de Literatura para Crianças

se especializou, fazendo principalmente um roteiro das “viagens” entre as


diferentes formas de arte – a literatura que nasce da pintura, da música, e
em sentido inverso a música ou as imagens que nascem da literatura. Deu
como exemplos o livro “Poezz”, antologia de poesia de língua portuguesa
relacionada com jazz, recentemente editada, e também os video clips dos
REM ou de Peter Gabriel. Porque, defendeu, o papel do educador está em
distinguir o trigo do joio, acompanhar a novidade intelectual com o teste-
munho ético, numa sabedoria alicerçada. “Educar é fornecer ferramentas”
e tentar evitar aquilo a que chamou o “sindroma de Zelig”, o camaleão que
faz uma identificação acrítica com o politicamente correcto.

Na tarde de ontem, o Auditório 2 ouviu três intervenções centrais sobre


clássicos portugueses da literatura para crianças e jovens. Glória Bastos
estabeleceu os pontos de contacto e as diferenças entre “Céu Aberto” de
Virgínia de Castro e Almeida e “Portugal Pequenino” de Raul Brandão e Ma-
ria Angelina. José Carlos Seabra Pereira falou sobre a vida e a obra de Ana
de Castro Osório e, no final, Alice Vieira falou sobre Adolfo Simões Müller.
Violante Florêncio presidiu à mesa e relembrou um dos conceitos de Italo
Calvino: “Os clássicos são os livros que constituem uma riqueza para quem
os leu e amou”.
Os três oradores fizeram abordagens diversas mas todos lamentaram a
dificuldade de encontrar hoje no mercado as obras de que falaram, ape-
lando à sua reedição. Vincaram as intenções didácticas de cada um destes
escritores. Certamente estas intervenções vão ser impressas, mas deixo
aqui a ideia de que os três oradores se mostraram pessimistas e classifica-
ram mesmo de “crise” a situação actual em termos de textos literários para
crianças – sublinhando que a ilustração está precisamente no pólo oposto,
em grande florescimento.

Para Alice Vieira, faz sobretudo falta um jornal ou revista de qualidade des-
tinado aos mais novos, e no fim de contas ela estava a falar de Adolfo
Simões Müller que criou o “Papagaio”, o “Diabrete” e o inesquecível “Cava-
leiro Andante”, com o seu suplemento “O Pajem”. Lembrou mais um autor,
Olavo d’Eça Leal, e o hilariante “Iratan e Iracema, os Meninos Mais Malcria-
dos do Mundo”.
A sessão da última manhã, a que provavelmente a maioria dos que aqui
estão assistiu, foi muito participada e foi certamente a que envolveu mais
polémica no debate. E tudo porque, mais uma vez, se falava de clássicos e
de como as obras fundadoras devem chegar às novas gerações. O debate
foi moderado por Paula Moura Pinheiro e juntou Ana Maria Magalhães, Olga
Pombo, Marta Martins, José Pedro Serra, Ondjaki e Miguel Che Soares. O
ponto de partida – “O que é um clássico?” – é naturalmente um ponto de
192
XVI Encontro de Literatura para Crianças
partida para mil e uma discussões. Em comum, todos os participantes têm
o mesmo amor pelos seus clássicos – a menina que fala de um “vermelho
devagarinho”, para Ondjaki, ou a “Ilíada” de José Pedro Serra ou o Sófocles
que veio da assistência, trazido por Isabel Alçada. Mais do que discutir,
convém explicar apenas que o que estava em causa era o percurso do
professor para levar o aluno a gostar dos clássicos, os diferentes passos.
Do chicote de Miguel Sousa Tavares passámos agora para a metáfora da
piscina – do banho fatal para quem não sabe nadar até ao indispensável
banho de cultura de que José Pedro Serra falou. Por onde começar, então?
Suponho que todos estão de acordo que é importantíssimo conhecer os
clássicos, mas cada um tem um caminho diferente para lá chegar. No fun-
do, cada um de nós percorreu um caminho muito próprio até aprender a
apreciar e a eleger os clássicos que nos moldaram a vida.

Agora, como estou aqui no papel de observadora e como, ao contrário do


que me tinham dito sobre as edições anteriores destes encontros, verifiquei
que o auditório não esteve cheio (e sublinho que a outra sala esteve a trans-
bordar de gente interessada, como relatou a Isabel) deixo aqui algumas
ideias minhas.

Proponho que tragam aqui professores, se necessário a chicote, e que lhes


seja dado participar numa reunião em que haja ideias concretas, pistas,
sinais, de como podem levar os seus alunos a gostar de ler, mesmo que mais
tarde venham a trabalhar numa bomba de gasolina. Que o próximo Encon-
tro não coincida com um lastimável momento de estranhíssimo processo
de colocação de professores, para que eles possam vir até cá, como nós
viemos, conhecer escritores cujo trabalho amamos – a Matilde Rosa Araújo,
a Luísa Ducla Soares, o António Torrado, a Alice Vieira, o António Mota - e
que haja um alargamento a mais autores que aqui não encontrei – e que se
calhar são os que estão a renovar os nossos paradigmas. E como gosto
imenso de fazer de menina um bocadinho malcriada, também gostava de
pedir que houvesse um bocadinho menos de filosofia e um bocadinho mais
de experiências concretas, práticas, porque suponho que esta questão de
alargar o gosto pela leitura nos preocupa a todos e tendemos a ter urgência
em dar mais passos. Claro que devemos saber pensar, parar para reflectir, ir
aos clássicos e duvidar das ideias feitas, mas sou muito pragmática e gosto
de aprender caminhando.

E como, apesar de tudo, sou um bocadinho bem-educada, quero agrade-


cer à Fundação Gulbenkian, ao seu serviço de Educação e Bolsas, à Maria
Helena Melim Borges e à Ana Gaiaz o convite e a impecável organização do
Encontro que aqui nos juntou.
193
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Prof. Eduardo Marçal Grilo

Sessão de Encerramento

Muito obrigada à Isabel e à Ana por estes magníficos resumos. Como lhes
foi pedido, transmitiram-nos as suas opiniões, e fizeram um trabalho no-
tável, de acompanhamento, de observação e de crítica ao Encontro.

Eu queria, antes de encerrar, fazer duas ou três brevíssimas reflexões.


A primeira tem a ver com o papel da Fundação nesta matéria.
A Fundação tem como objectivo, com este tipo de Encontros e com o Pré-
mio (porque o Encontro está associado à cerimónia de entrega dos pré-
mios), proporcionar este debate, isto é, fazer com que, na Fundação, as
pessoas se encontrem, conversem, tenham oportunidade de poder par-
ticipar nestes debates de uma forma aberta, possam ouvir as pessoas que
nós convidamos. Por vezes convidamos bem, outras vezes, se calhar, não
convidamos tão bem. Acho que desta vez convidámos muito bem, todos
os membros dos painéis são pessoas com um curriculum, um trabalho,
uma acção, uma actividade constante nestas matérias e que enriqueceram
enormemente este Encontro.

Não tive ocasião de assistir a tudo, mas assisti a mais do que as pessoas
pensam, porque assiste-se ali de cima sem estar aqui na sala.
Quanto a haver recomendações ou haver conclusões, eu sou sensível à
crítica da Ana, relativamente a um maior pragmatismo.

Temos também que perceber que, infelizmente, as pessoas que vêm a estes
debates são os convertidos, as pessoas que aqui estão vêm aqui, porque
entendem que este tema é prioritário, é importante nas suas actividades,
gostam destes temas, sabem que esta matéria tem uma importância muito
grande nas suas vidas, enfim, nas suas actividades profissionais.

A maior parte são pessoas ligadas à Educação e, portanto, as recomenda-


ções que se poderiam fazer são aquelas que cada um tira por si, cada um
dos participantes neste Encontro retira e leva seguramente as suas próprias
recomendações, e é capaz de encontrar um sentido muito prático, e muito
pragmático, para aquilo que aqui foi discutido e talvez com um pouco mais

194
XVI Encontro de Literatura para Crianças
de filosofia e teoria de acordo com a crítica da Ana, que eu aceito.

O segundo grande objectivo da Fundação é incentivar os próprios criadores


e acho que o temos feito não apenas nesta área. Procuramos fazê-lo não
apenas na área da literatura para crianças, mas em muitas outras áreas. A
Fundação funciona como um estímulo promovendo oportunidades e incen-
tivos para os criadores, seja na área da Ciência, seja na área da Escrita, seja
na área das Artes.

O Miguel Sousa Tavares disse aqui, anteontem, uma coisa, que eu acho
que é muito importante reter, é que nós vamos passar a distinguirmo-nos
pelos que lêem e os que não lêem. E hoje isto já é muito claro, por exem-
plo, há pessoas que consomem imenso televisão e nota-se, porque as pes-
soas têm uma agenda na cabeça e uns conteúdos na cabeça que se per-
cebe que foram apanhados ali naquela coisinha rápida daqueles quinze
segundos. Os americanos agora treinam os políticos para debates de nove
segundos, em nove segundos, é preciso transmitir uma mensagem que as
pessoas apanhem.

Ora, eu julgo que num país que tem sessenta por cento da população com
o máximo de seis anos de escolaridade, a nossa grande preocupação, pelo
menos a minha, independentemente de clássicos ou não clássicos, é pôr
as pessoas a ler, é tentar que as pessoas leiam e percebam que a leitura
tem um efeito encantatório e fantástico, tão grande ou maior do que a tele-
visão.

A televisão tem esta capacidade da cor, do ritmo, da música, e tudo isto é


muito atractivo, mas os livros têm um encanto muito maior.
Eu permito-me dizer isto, mas houve aqui uma participante, na quarta feira,
que me dizia que -“você está a dizer isto porque é sobre livros, se fosse
sobre a Internet, você dizia o contrário, não é verdade?“.

Ora digo isto com uma enorme convicção! E acho que a esmagadora maio-
ria das pessoas que está aqui pensa desta forma.

O livro tem um encanto enorme, muito maior do que qualquer programa em


DVD, ou qualquer vídeo, ou algo que possamos ver na televisão.
Isto significa que para nós o desafio é enorme!
Sobretudo para quem contacta com as crianças e com os adolescentes e
que tem a enorme responsabilidade de ser educador.

195
XVI Encontro de Literatura para Crianças

Acho que esta é uma matéria a que temos de ser muito sensíveis: somos
um país em que ainda há muita coisa a fazer no sentido de atrair mais e
mais jovens para a área da leitura, e do livro.

A terceira questão, prende-se um pouco com a ideia do chicote.


Eu acho que não há chicote e não acredito no chicote. Mesmo os chicotes
da Internet não devem ser muito utilizáveis nesta matéria, falo daqueles que
se vendem na Internet e a que o Henrique aqui se referiu.
Agora, como é que se consegue que os miúdos tenham atracção pelo li-
vro?
Eu confesso que não sou especialista nesta matéria. A minha formação de
base é engenharia mecânica, não é propriamente uma área muito próxima
destas matérias. Mas, quando se tem netos a gente percebe como é que
os miúdos reagem e eu gosto muito de ler histórias às minhas duas netas,
sobretudo à mais velha que tem cinco anos. Mas, as histórias que ela mais
gosta não são as histórias dos livros, há quatro ou cinco que ela vai esco-
lhendo, mas quando eu lhe digo: - Matilde que história é que gostavas? Ela
normalmente diz: - uma história da tua cabeça. Conta-me a história da tua
cabeça.

E eu vou inventando umas histórias, tant bien que mal, a gente acaba por
ver muita coisa e acaba por ter capacidade de inventar e acabo por con-
seguir entretê-la durante meia hora ou vinte minutos. Mais de meia hora,
às vezes, é mais complicado. É preciso ter uma capacidade de imaginação
que, eu por vezes, ao fim do dia já não tenho. Os nautas e os cavalos com
asas, aquelas coisas todas que nós vamos inventando que atraem miúdos
enormemente. E atraem muito mais do que pela televisão, se “a hora do
conto” for um encontro pessoal.

Eu não me esqueço, confesso que já contei aqui isto uma vez, e não resisto
a contar novamente.
Eu tinha uma tia quando era miúdo, a tia Lucrécia, que era prima direita do
meu pai, era uma pessoa muito idosa e uma contadora de histórias, contava
histórias, tinha uma série de histórias na cabeça, que ela tinha decoradas,
sempre na mesma sequência.
Lembro-me, quando nós estávamos doentes – peço desculpa a quem já
ouviu – em Castelo Branco e não havia televisão. Isto passa-se no início dos
anos cinquenta, a minha tia era cega, no final da vida cegou eu já só a co-
nheci cega e ela era trazida para nossa casa, vivia sozinha, o carro ia buscá-
-la, ela vinha para o nosso quarto, sentava-se numa cadeira e desbobinava
aquelas histórias todas na mesma sequência e eu lembro-me, coitadinha
196
XVI Encontro de Literatura para Crianças
da senhora, que já lá está, mas eu utilizava-a como uma espécie de vídeo,
eu dizia-lhe: - Oh tia, agora esta, agora a outra. Ela andava para trás e para
diante e contava as histórias todas e tinha histórias fantásticas.
Lembro-me apenas de uma, muito recauchutada, porque eu não tenho
aquela memória, não fixei e que conto a uma das minhas netas e ela adora
e, de facto, é uma história cheia de movimento e cheia de animais e tudo
aquilo. Eu ganhei o gosto pelos livros com esta minha tia, confesso, porque
percebi que aquilo tinha que estar escrito num sítio qualquer, quer dizer
não havia tia Lucrécia toda a vida, coitadinha!, depois morreu em 1961 e,
obviamente, que fui atraído para um outro tipo de histórias, um outro tipo
de contos que acabou por me proporcionar momentos inesquecíveis, ainda
hoje falo nesta minha tia, eu e os meus irmãos, com alguma emoção.
Portanto, eu acho que o chicote tem de ser inventado. Temos que inventar
uma forma e cada um tem a sua forma de inventar.

Há um conceito que eu não aceito muito bem, que é dos livros obrigatórios.
É obrigatório ler este livro e isto diz-se a uma pessoa quando tem dez anos
e quinze e vinte e quando tem quarenta e, até eu que tenho sessenta e dois,
diz-se-lhe: - tens que ler este livro.
Não tenho nada que ler o livro!
Eu leio o livro que eu quiser!
Esta coisa de se dizer de uma matéria, tu agora interessaste-te muito por
isto, este livro é obrigatório. Quanto à ideia da obrigatoriedade do livro, que
me desculpem alguns pedagogos, eu sou contra. Acho que cada um faz na
sua cabeça a biblioteca que quiser e escreve na cabeça o livro dos livros
que quiser.

É essa a minha ideia, é por aí que eu acho que nós devemos ir. Isto é um
pressuposto, contém o pressuposto que a Ana aqui referiu, e que a Isabel
também o intuiu no que disse relativamente ao uso do computador e da
Internet. Contido na frase que, salvo erro, foi dita por Pedro Rosa Mendes
“é preciso que cada um tenha o seu próprio motor de busca”.
Eu acho que isto é muito verdade, o Umberto Eco, aqui há três semanas,
em Bolonha, numa conferência, terminou dizendo uma coisa fantástica: que
com isto da Internet, hoje em dia, aquilo que era o conceito de enciclopédia,
a partir do século XVIII, com o Diderot e d’Allambert, as enciclopédias são
essencialmente trabalhos colectivos de equipas imensas de especialistas
que as escrevem. Como Eco dizia, com o acesso à Internet, hoje, qualquer
um dos seis biliões de terrestres que tenha acesso à Internet pode fazer a
sua própria enciclopédia, desde que tenha capacidade para o fazer, isto é,
desde que tenha capacidade de escolha, que tenha o tal motor de busca,
197
XVI Encontro de Literatura para Crianças

que introduza os filtros que permitam retirar da Net aquilo que é a enciclo-
pédia de cada um, nas mais diversas áreas.
Ele, aliás, dizia uma coisa muito engraçada: que cada um poderá fazê-lo
inclusivamente na sua própria língua, o problema depois é que as enciclo-
pédias sejam lidas pelos outros cinco biliões, novecentos e noventa e nove,
novecentos e noventa e nove e ele dizia, com alguma graça, nem Bruxelas
tem intérpretes e tradutores para traduzirem os seis biliões das enciclopé-
dias que cada um fizer e isto mostra, que o mais importante, antes do motor
de busca, é a formação pessoal de cada um.
É a formação de base de cada um, é o domínio da língua materna, é o
domínio dos fundamentos da matemática, é o domínio dos conceitos es-
senciais, é o domínio da história, da geografia, de onde vimos, o que somos
e para onde vamos.
Eu acho que isto nos retorna e nos reporta àquilo que é a formação de base
sobretudo nos primeiros anos da escolaridade, e a importância enorme que
têm a parte do pré-escolar e dos quatro primeiros anos de escolaridade,
para não falar na escolaridade obrigatória dos nove anos ou dos doze,
como quiserem.

A sexta nota é sobre o debate da comunicação social, que aqui foi proposto
pelo Miguel e depois foi proposto e foi consolidado pelo Henrique e que a
Ana, agora, reforçou.
Nós, como tive a ocasião de dizer, na sessão de abertura, organizámos em
1993 ou 94, se a memória não me falha, um debate sobre comunicação so-
cial, exactamente aqui nesta sala, sob a égide do Professor Ferrer Correia,
que nessa altura era o Presidente da Fundação Gulbenkian. Foi a primeira
grande conferência organizada, da chamada série das Conferências do
Presidente, sobre o tema Comunicação Social e os Direitos da Personali-
dade, que era uma questão que nos preocupava muito e eu reconheço que
hoje, à velocidade a que tudo se alterou nos últimos dez anos, esse debate
necessitará, talvez, de ser actualizado.
Tentarei fazer por isso, proporcionar o debate, talvez até um pouco mais
alargado, estendendo-o aos professores, aos técnicos de educação, e aos
editores, em temas ligados à escrita e à literatura.
É uma sugestão, recomendação, que nós seguramente vamos ter em con-
ta.

O último aspecto que eu gostava de referir são os agradecimentos.


Gostava muito de agradecer, em primeiro lugar, a todas as pessoas que
quiseram vir à Fundação nestes três dias, algumas que estiveram todo o
Encontro, outras que estiveram apenas uma parte, e dizer-lhes do gosto
198
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que é sempre para nós tê-los na Fundação Gulbenkian. Temos imenso gos-
to em que venham à Fundação, em que façam barulho na Fundação.
A Fundação é um bocadinho sossegada de mais, quer dizer, as pessoas en-
tram aqui, às vezes, como se entra numa igreja, fala-se baixo. Eu acho que
as pessoas devem falar alto, gosto imenso que os miúdos venham aqui,
gosto imenso que os miúdos encham estas salas, estes corredores e este
hall com aquela berraria que anteontem aqui houve e que é muito saudável
para todos nós.

O segundo agradecimento é para todos os membros dos painéis, os co-


ordenadores, os moderadores e os membros especialistas que aqui es-
tiveram, escritores e comentadores, jornalistas e professores, para lhes
agradecer muito, grande parte deles não é a primeira vez que colaboram
connosco e, portanto, este é um agradecimento reforçado.
Depois queria agradecer às nossas duas muito queridas observadoras, à
Isabel e à Ana, por se terem disponibilizado para fazer este trabalho, que
muito trabalho lhes deu, que lhes ocupou tempo, e que nós agradecemos
muito.

Finalmente queria, permitam-me que eu faça agora um agradecimento para


dentro da casa, estes são os agradecimentos para o exterior mas dentro
da casa. Queria agradecer muito aos serviços Centrais e ao seu Director,
bem como ao Centro de Arte Moderna, pelo apoio que nos deram na orga-
nização do Encontro, e na própria exposição, e depois finalmente, last but
not least - peço desculpa por dizer isto em inglês, porque é sempre desa-
gradável, num sítio onde tanto se pugna pela língua portuguesa - mas que-
ria agradecer muito ao Serviço de Educação e ao Dr. Manuel Carmelo Rosa,
que é o Director do Serviço, mas, sobretudo, às duas pessoas que orga-
nizaram, conduziram e arcaram com a responsabilidade deste Encontro, a
Maria Helena Borges e a Ana Gaiaz. Estão aqui as duas e quero dizer-lhes
que, na minha perspectiva, o sucesso do Encontro se deve muito a elas e à
capacidade organizativa que tiveram para o levar para a frente.

E daqui por dois anos cá estaremos, se Deus quiser, para entregar prémios
e para os receber para o XVII Encontro.

Muito obrigado, muito boa tarde a todos e muito bom fim de semana.

199
XVI Encontro de Literatura para Crianças

um concurso, uma exposição, uma bienal

ILUSTRARTE é uma oportunidade de reunir, no Barreiro, de dois em dois


anos, ilustradores de livros para a infância, originais de ilustração, coleccio-
nadores, editores e leitores, qualquer que seja a sua idade. Criar um espaço
onde se veja e discuta a melhor ilustração para a infância mundial e con-
solidar o Barreiro como um dos pólos europeus de excelência, promotores
desta arte, são ainda alguns dos objectivos desta bienal.
Desafiaram-se ilustradores de livros para a infância de todo o mundo,
principiantes ou consagrados, a participar enviando 3 trabalhos originais,
inéditos ou publicados há menos de um ano. A 1ª edição da ILUSTRARTE
contou com a participação maciça de 476 ilustradores de 32 países num
total de 1428 ilustrações.
O júri da 1ª edição contou com a presença de cinco personalidades de
grande prestígio internacional na área da ilustração e do design: Hen-
rique Cayatte (português, ilustrador e designer de comunicação), Lisbeth
Zwerger (austríaca, ilustradora), Martin Jarrie (francês, pintor e ilustrador),
Olivier Douzou (francês, ilustrador e editor) e Stefano Giovanonne (italiano,
designer industrial).
O Prémio ILUSTRARTE 2003 foi atribuído à ilustradora francesa Frédérique
Bertrand. O júri atribuiu ainda 3 menções especiais aos ilustradores Chiara
Carrer (Itália), Katja Gehrmann (Alemanha) e José Manuel Saraiva (Portu-
gal) e seleccionou 50 ilustradores para a exposição, que esteve patente
no Auditório Municipal Augusto Cabrita, de 1 a 30 de Novembro de 2003.
Ao longo de 2004 a selecção esteve exposta no Centro de Arte de S. João
da Madeira, no Porto no Museu das Belas Artes e ESAD, em Coimbra na
Fundação Bissaya Barreto e no Teatro Gil Vicente e finalmente na galeria
do Instituto Camões em Paris. O conjunto de obras expostas na Fundação
Calouste Gulbenkian durante o XVI Encontro de Literatura para Crianças é
uma pequena selecção das 150 ilustrações da exposição original.
Comissariada por Ju Godinho e Eduardo Filipe, ILUSTRARTE é uma inicia-
tiva conjunta da Câmara Municipal do Barreiro e da VER P’RA LER – As-
sociação pr’á ilustração de livros infantis.
200

You might also like